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A IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO DOS VALORES REPRESENTADOS POR DEPÓSITOS BANCÁRIOS, NA FALÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA JULIANA SOUZA MACEDO CANAVERDE 1 NELSON XISTO DAMASCENO FILHO 2 e SÉRGIO MONTEIRO DE ANDRADE 3 SUMÁRIO: 1. Breve introdução-2. Analisados arts. 1.256, l.257 e 1.280 do CC, bem como do art. 76 da Lei de Falências - 3. Segundo a Lei 6.024/ 74, na quebra da instituição financeira, o depósito bancário gera direito de crédito, jamais de restituição - 4. A posição da jurisprudência - 5. Ainda sobre o v. acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça Mineiro - 6. A Súmula 417 do STF - 7. Do sistema bancário - 8. Advertência — 9. Conclusões. 1. Breve introdução. Está em curso na lª Vara de Falências e Concordatas da Comarca de Belo Horizonte a falência do Banco do Progresso S.A., merecendo destaque o fato de que, desde a edição da Lei 6.024, de 13.03.1974, é esta a primeira falência de um banco processada judicialmente, vale dizer, que não segue o procedimento de liquidação extrajudicial instituído pelo referido diploma legal. Nessas circunstâncias, é natural que o assunto esteja despertando grande interesse dos estudiosos da matéria e daqueles que militam no setor bancário. 1 Procuradora do Bando Central do Brasil. 2 Advogado. Procurador do Bando Central do Brasil. 3 Advogado. Procurador do Bando Central do Brasil. Juiz de Direito Aposentado.

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A IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO DOS VALORES

REPRESENTADOS POR DEPÓSITOS BANCÁRIOS,

NA FALÊNCIA DA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA

JULIANA SOUZA MACEDO CANAVERDE1

NELSON XISTO DAMASCENO FILHO2

e

SÉRGIO MONTEIRO DE ANDRADE3

SUMÁRIO: 1. Breve introdução-2. Analisados arts. 1.256, l.257 e 1.280 do CC, bem como do art. 76 da Lei de Falências - 3. Segundo a Lei 6.024/ 74, na quebra da instituição financeira, o depósito bancário gera direito de crédito, jamais de restituição - 4. A posição da jurisprudência - 5. Ainda sobre o v. acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça Mineiro - 6. A Súmula 417 do STF - 7. Do sistema bancário - 8. Advertência — 9. Conclusões.

1. Breve introdução.

Está em curso na lª Vara de Falências e Concordatas da Comarca de Belo Horizonte a

falência do Banco do Progresso S.A., merecendo destaque o fato de que, desde a edição

da Lei 6.024, de 13.03.1974, é esta a primeira falência de um banco processada

judicialmente, vale dizer, que não segue o procedimento de liquidação extrajudicial

instituído pelo referido diploma legal.

Nessas circunstâncias, é natural que o assunto esteja despertando grande interesse dos

estudiosos da matéria e daqueles que militam no setor bancário.

1 Procuradora do Bando Central do Brasil. 2 Advogado. Procurador do Bando Central do Brasil. 3 Advogado. Procurador do Bando Central do Brasil. Juiz de Direito Aposentado.

2

Aspecto que vem suscitando aceso debate prende-se à discussão sobre a

possibilidade, ou não, da restituição do dinheiro representado pelo depósito bancário,

com base no disposto no art. 76 da Lei Falimentar.

No caso em tela, impende ressaltar que centenas de depositantes do Banco do

Progresso ajuizaram pedidos de restituição, recebendo sentença favorável da MM.ª

Juíza de Direito da l.ª Vara de Falências e Concordatas, a Dra. Márcia de Paoli Balbino,

a qual vem sendo confirmada, por maioria de votos, nos julgamentos do Egrégio TJMG,

por sua douta 1.ª Câmara Cível.

No momento, a questão encontra-se em fase de processamento de recursos especial e

extraordinário aviados pelo Banco Central do Brasil, na qualidade de credor do banco,

sustentando a tese do não cabimento da pretendida restituição.

A favor da restituição, além da emissão de parecer nos autos judiciais dos pedidos

respectivos, no exercício da sindicância, vêm-se manifestando, repetidas vezes, os

ilustres Professores Osmar Brina Corrêa Lima e Sérgio Mourão Corrêa Lima, seja por

meio de entrevistas à imprensa, seja pela publicação de artigo na Revista do Direito

Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem (São Paulo, 1999, vol. 9, p. 243),

sob o título "Direito de restituição de dinheiro em falência de instituição financeira".

Mais recentemente, em julho de 2002, no volume n. 801 da Revista dos Tribunais,

em artigo intitulado "Das preferências e privilégios creditórios na falência", Sérgio

Abdalla Semião trata do assunto, fazendo referência à mencionada sentença e ao

trabalho supra citado, pugnando, também, pela possibilidade de restituição do dinheiro

objeto de depósito, na falência do banqueiro.

Dessa forma, embora a composição do litígio esteja ainda pendente de decisão

definitiva, a cargo dos Tribunais Superiores, considerando o grande interesse que a

discussão do tema vem provocando; tendo em vista, por outro lado, as ponderáveis

repercussões que certamente advirão da definição judicial sobre tal questão, por essas

razões, animam-se os autores deste singelo estudo a buscar sua divulgação, defendendo

3

tese contrária à pretendida restituição, e o fazem visando dar sua modesta contribuição

ao adequado entendimento dos pontos em debate.

Nessa linha de raciocínio, os Procuradores do Banco Central do Brasil que assinam o

presente trabalho não só apresentam os fundamentos teóricos e práticos da posição que

vêm defendendo, até hoje não mencionados nas publicações de que se tem notícia,

como também buscam refutar os argumentos contrários, sejam os argüidos pelos

apontados doutrinadores, sejam aqueles constantes dos provimentos jurisdicionais já

referidos.

2. Análise dos art. 1.256,1.257 e 1.280 do CC, bem como do art. 76 da Lei de

Falências.

De início, passemos a examinar a questão da restituição do depósito bancário à luz do

estatuído nos arts. 1.256, 1.257 e l .280 do CC, bem assim do art. 76 da Lei de Quebras.

Por este prisma, inicialmente, cabe salientar que, como o depósito bancário se refere a

um bem fungível, que é o dinheiro, conseqüentemente, trata-se de depósito irregular,

que se regula pelo disposto acerca do mútuo, à luz do estatuído no art. 1.280 do CC.

E, sendo o mútuo o empréstimo de coisas fungíveis (art. 1.256), torna-se

inquestionável que referido empréstimo transfere o domínio da coisa emprestada ao

mutuário, segundo claríssima regra do art. 1.257.

Ora, uma vez transferido o domínio do dinheiro depositado, que era de propriedade

do cliente-depositante e passa a ter como dono o banco-depositário, por força das ex-.

pressas disposições legais ora mencionadas, resta induvidoso que não cabe sua

restituição na falência, conforme art. 76 do Dec.-lei 7.661, de 21.06.1945, que só admite

a restituição da coisa "quando seja devida em virtude de direito real ou de contrato".

Para exata compreensão dessa realidade jurídica, há que se ter bem definido o que

seja coisa fungível, isto é, o bem móvel que se pode substituir por outro da mesma

4

espécie, qualidade e quantidade, a teor da regra do art. 50 do CC, definição em que o

dinheiro se encaixa à perfeição.

E isso resulta muito claro, quando se visualiza o fato de que, uma vez entregue certa

quantia ao banco, pelo depositante, ela vai misturar-se à massa de dinheiro que já estava

em poder da instituição financeira e, a partir daí, já não se pode mais precisar qual

dinheiro é de fulano ou de beltrano, mas apenas se pode dizer que os depositantes

passam a ter um direito de crédito contra o banco, no sentido de receber a mesma

quantia, ou, como diz a lei, a "mesma espécie, qualidade e quantidade". Tanto assim que

o dinheiro em depósito é incluído na contabilidade do banco, por tratar-se de

propriedade deste (não mais do depositante), logicamente, destacado, nas contas do

passivo, isto é, como dívida do banco ao depositante.

Neste passo, com a devida vênia, sem razão se mostra a argumentação contrária, no

sentido de que, para o imposto de renda, o cliente continua a declarar como seu o

dinheiro depositado em banco, o que seria prova de que não ocorre a transferência da

propriedade.

Em primeiro lugar, como óbvio, a declaração de bens, como o próprio nome está a

dizer, produz efeito meramente declaratório, logo, não tem efeito constitutivo, no

sentido de criar o direito real. Em outras palavras, o simples fato de estar um bem

incluído na declaração de bens não significa seja o contribuinte seu proprietário, como é

curial.

Outrossim, venia permissa, na declaração de bens o contribuinte inclui todos os seus

bens e direitos e, naturalmente, também ali deve ser inserido o valor do depósito

bancário, que constitui direito de crédito contra o banco.

Aliás, esboroa-se tal raciocínio quando se atenta ao fato de que, caso se tratasse de

um dinheiro emprestado (mútuo), também o mutuante o incluiria em sua declaração de

bens, como crédito seu, sendo que jamais se poderia colocar em dúvida o fato da

transferência da propriedade, no mútuo, tal a clareza da regra do art. l.257 do CC.

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Por outro lado, ainda com a devida vênia, razão não assiste, também, aos que

afirmam que o contrato de depósito bancário se rege "realmente, por normas próprias,

não sendo possível a aplicação dos arts. 1.257 e 1.280 do CC".

Com todo o respeito, não pode o intérprete distinguir onde a lei não distingue,

segundo vetusta regra de hermenêutica. Se o dinheiro é bem fungível, e isso ninguém

discute, se o depósito de bem fungível regula-se pelo mútuo, se no mútuo ocorre a

transferência da propriedade, não há como negar tais realidades, decorrentes da letra

clara e taxativa da lei, que não abre qualquer exceção ao caso de depósito bancário.

Depois, pergunta-se: quais seriam essas "normas próprias", que estariam a reger o

depósito bancário?

Sempre com redobrado acatamento, responde-se: nenhuma, pois inexiste norma

específica para o depósito de dinheiro em banco, cabendo, de tal arte, a aplicação da

regra geral sobre depósito de bens fungíveis, inadmitindo-se a exceção criada pelos

defensores da tese da possibilidade de restituição do dinheiro objeto de depósito

bancário, por absoluta falta de amparo legal.

Outrossim, já se falou, também, que, no depósito bancário, "o banco não tem plena

disponibilidade sobre o dinheiro dos seus depositantes, pois obriga-se a devolvê-lo, tão-

logo lhe seja solicitado pelo depositante".

Data venia, tal entendimento contém flagrante equívoco, pois o simples fato de ter o

banco de devolver o dinheiro ao depositante, sempre que a tanto solicitado, não

descaracteriza o depósito irregular.

Em primeiro lugar, porque tal possibilidade de pronta devolução existe sempre que o

banco estiver funcionando normalmente, como é lógico, mas, não em situação de

insolvência, em liquidação extrajudicial ou falência, quando o depositante passa a ter

um direito de crédito, concorrendo com os demais credores quirografários.

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Por outro lado, também, no mútuo existe a possibilidade de pronta devolução

mediante solicitação do mutuante, pois é perfeitamente possível que assim seja

convencionado, uma vez que os prazos do art. 1.264 somente se aplicam no silêncio do

contrato.

Em outras palavras, a possibilidade de pronta devolução não desnatura o depósito

irregular, nem interfere sobre seu efeito de transferência da propriedade, visto que tal

característica somente vigora em situação de normalidade do banco, conforme

apontado, não na falência.

Em resumo, com o devido respeito, a questão colocada em discussão é simples e a

interpretação direta dos normativos legais aplicáveis leva à conclusão inafastável de

que, no nosso ordenamento jurídico, não é possível a restituição do dinheiro objeto de

depósito bancário, na falência do banqueiro.

De fato, no exercício da mais elementar lógica, cumpre buscar na lei as premissas que

conduzirão à solução do problema, a saber:

1.ª premissa - O depósito bancário é depósito irregular, por ser o dinheiro bem

fungível, regulando-se pelo disposto na lei acerca do mútuo, segundo reza o art. 1.280

do CC;

2.ª premissa - O mútuo transfere o domínio da coisa emprestada ao mutuário, vale

dizer, ao banco-depositário, in casu, segundo estipula o art. 1.257 do CC;

3.ª premissa - O direito de restituição, na falência, somente incide sobre bens que,

arrecadados em poder do falido, não sejam de sua propriedade, isto é, de coisa cuja

restituição 'seja devida em virtude de direito real ou de contrato', a teor do art. 76 da Lei

de Falências;

Conclusão - Não cabe a restituição do dinheiro objeto de depósito bancário, pois,

tratando-se de depósito irregular, a propriedade do bem passou a ser do banqueiro.

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Este raciocínio, de linear simplicidade, decorre da estrita aplicação da lei, vale dizer,

do estatuído nos arts. 1.257 e 1.280 do CC, bem como do art. 76 da Lei de Falências.

Logo, se a lei civil diz, com clareza cristalina, que o depósito de coisa fungível é de

natureza irregular e equipara-se ao mútuo (e ninguém vai contestar que dinheiro seja

coisa fungível) e que, no mútuo, há transferência da propriedade do bem objeto do

contrato, não há como, permissa venia, deixar de aplicar mencionada lei.

Pelo que foi dito, comprovado está que a interpretação sistemática dos arts. 1.256,

l.257 e l .280 do CC e art. 76 da Lei de Falências leva à inarredável conclusão de que

nosso direito positivo não admite restituição de dinheiro depositado em banco, na

falência da instituição financeira.

3. Segundo a Lei 6.024/74, na quebra da instituição financeira, o depósito bancário

gera direito de crédito, jamais de restituição.

Para comprovar, de forma definitiva, que, segundo nosso direito positivo, na quebra

do banqueiro, o depósito bancário gera um direito de crédito, jamais de restituição,

basta atentar para o fato de que a Lei 6.024, de 13.03.1974, em seu art. 22, caput,

cuidando do processo da liquidação extrajudicial, ao mencionar o aviso aos credores

para que declarem os respectivos créditos, dispensa "desta formalidade os credores por

depósitos" (grifos nossos), indicando nitidamente que o caso não é de restituição, como

se passa a demonstrar.

Mais adiante, no mesmo dispositivo, em seu § 2°, colhe-se:

"Relativamente aos créditos dispensados de habilitação, o liquidante manterá, na sede

da liquidanda, relação nominal dos depositantes e respectivos saldos..." (grifo nosso).

Tratando-se de um direito de crédito, não de restituição, como claramente deflui dos

textos legais apontados, essas providências são tomadas com vistas à formação do

quadro geral de credores, ao qual concorrerão os titulares de depósitos bancários

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(naturalmente como quirografários, à míngua de qualquer privilégio ou preferência),

conforme estatuído no art. 25, verbis:

"Esgotado o prazo para a declaração de créditos e julgados estes, o liquidante

organizará o quadro geral de credores e publicará, na forma prevista no art. 22, aviso de

que dito quadro, juntamente com o balanço geral, se acha afixado na sede e demais

dependências da entidade, para conhecimento dos interessados."

Tudo isso a evidenciar, sem margem a retruque, que o depositante tem um direito de

crédito em face do banqueiro, jamais de restituição do valor que lhe entregou em

depósito.

Não se venha dizer, contudo, que assim se passa apenas no âmbito da liquidação

extrajudicial, sendo outro o disciplinamento legal no processo de falência, porque,

apesar da diversidade de procedimentos que distingue os referidos institutos, o direito

material do depositante, ontologicamente, é exatamente o mesmo, por força do disposto

no art. 34 da Lei 6.024/74, que manda aplicar ao sistema de liquidação extrajudicial

"...as disposições da Lei de Falências (Dec.-lei 7.661, de 21.06.1945), equiparando-se

ao síndico, o liquidante, ao juiz da falência, o Banco Central do Brasil...".

4. A posição da jurisprudência.

No caso, o v. acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais deu

à lei federal interpretação divergente da que lhe atribuiu o Colendo Superior Tribunal de

Justiça, no julgamento do REsp 98.623 (96/0038353-7)-MG, em 02.09.1997, em

votação unânime da douta Quarta Turma, sendo relator o Exmo. Sr. Min. Sálvio de

Figueiredo Teixeira, tudo conforme v. acórdão publicado no DJ de 06.10.1997.

Já na ementa do v. acórdão ora mencionado se percebe claramente a divergência:

"Direitos processual civil e comercial. Execução, penhora, banco como devedor,

dinheiro em caixa. Possibilidade. Inocorrência de ofensa ao art. 620, CPC. Precedente,

recurso desacolhido.

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- Classificando-se o depósito de dinheiro em banco como contrato de depósito

irregular, que ao mútuo se equipara, por ele o banco recebendo a propriedade do bem,

não há ilegalidade na penhora do dinheiro em caixa, desde que não recaia sobre as

reservas técnicas existentes junto ao Banco Central."

De fato, conforme acertadamente assinalado no v. acórdão recorrido, o núcleo da

presente discussão reside em saber se ocorre, ou não, a transferência da propriedade

do dinheiro objeto de depósito bancário, havendo o v. acórdão fixado o entendimento

de que não ocorre tal transferência, o que tornaria possível a sua restituição no processo

de falência.

Neste sentido, frisou o v. acórdão do Egrégio TJMG:

"O entendimento de que há transferência da propriedade no depósito bancário

consiste em verdadeira afronta também ao princípio constitucional da proteção ao

consumidor, pois possibilita enriquecimento sem causa, onera de forma absoluta o

depositante consumidor do serviço bancário, e retira a segurança do depositante ou

investidor, que o legislador buscou proteger não só com a Lei 6.024/74, mas também

com a Lei 8.078/90.

(...)

Muito embora por remissão (art. 1.280, CC), tenha-se que o depósito transfere ao

mutuário o domínio da coisa emprestada (art. 1.257 do CC), na verdade a situação que

se configura nos autos é outra. Trata-se de depósito bancário, regido por normas

próprias, no qual o depositário pode ter eventual disponibilidade do dinheiro, mas não

terá seu domínio pleno, pois, em qualquer tempo, está obrigado a devolver a coisa ao

depositante, tão-logo a solicite.

(...)

Conceitos jurídicos mal interpretados não podem justificar uma violência à intenção

da parte que, ao fazer um depósito bancário, tem a certeza de que aquele bem é somente

seu, e pode reavê-lo a qualquer momento, uma vez que não o transferiu ao banco."

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Em posição diametralmente oposta, entendendo que há transferência do dinheiro no

depósito bancário, colhem-se os seguintes excertos do v. acórdão do STJ:

"No contrato de depósito bancário, diferentemente do depósito comum, no qual a

coisa é entregue para posterior devolução, opera-se a transmissão de propriedade ao

banco, que recebe as quantias, tendo em vista tratar-se de empréstimo de bem fungível,

que ao mútuo se equipara.

(...)

Fran Martins, ao escrever sobre o tema, assinala que 'os bancos, nas operações e nos

contratos que realizam, agem sempre em seu próprio nome. Ao receberem depósitos

pecuniários, constituem-se devedores dos depositantes; assumindo a propriedade desses

depósitos, empregando-os em seguida em empréstimos aos que necessitam de capital,

dão esses empréstimos não em nome dos depositantes mas em seu nome próprio,

tornando-se, desse modo, credores dos prestamistas' (Contratos e obrigações

comerciais, 2. ed., Forense, 1990, n. 371, p. 485).

(...)

A Terceira Turma desta Corte, no RMS 7.230-SP (DJ 28.04.1997), entendeu não

afrontar o ordenamento jurídico-processual a penhora em dinheiro do banco. O acórdão

restou assim ementado:

'Execução. Banco. Penhora de dinheiro.

Classificando-se como depósito irregular o efetuado em banco, aplicam-se as regras

do mutuo. Passa o dinheiro à propriedade do depositário, contra quem o depositante terá

um crédito.

Possibilidade de ser o dinheiro penhorado, já que não se trata de instrumento

necessário ao exercício profissional'."

Em conclusão, conforme se pode ver, não somente o Colendo Superior Tribunal de

Justiça entende que ocorre, sim, a transferência da propriedade do dinheiro objeto de

depósito em banco, do depositante para o banqueiro, como também afirma que daí

nasce um crédito, assim admitindo que, na falência da instituição financeira, não cabe a

restituição, mas a habilitação do referido crédito.

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Entretanto, outras ponderáveis razões estão a evidenciar o desacerto da tese favorável

à restituição, como se passa agora a demonstrar, rogata venia.

5. Ainda sobre o v. acórdão do Egrégio Tribunal de Justiça Mineiro.

Apesar do que foi dito, sempre com o maior respeito, insta assinalar que os princípios

constitucionais invocados no v. acórdão atacado não guardam qualquer pertinência com

a matéria em debate.

Na verdade, nem se chega a compreender como possa ter sido vulnerado o princípio

da propriedade privada, por exemplo, quando se tem como certo que a transferência da

propriedade, no depósito irregular, é efeito que decorre de vetusta norma legal (art.1.257

do CC), cuja validade jamais foi posta em dúvida.

Não há falar, outrossim, de "interesses da coletividade", quando se trata unicamente

de grandes depositantes, como adiante será visto, pois litigam apenas os que tinham

mais de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) em conta-corrente no Banco do Progresso, visto

que os demais, isto é, a quase totalidade da massa de depositantes já recebeu seu

dinheiro do Fundo Garantidor de Créditos - FGC.

De outra face, não se chega a atinar com os motivos da invocação dos princípios da

"isonomia" e do "não-confisco", porque aqui se cuida da estrita aplicação da lei, que

assim vigora, em nosso país, sem qualquer contestação, há quase um século, e é a

mesma em todo o mundo civilizado, pois o sistema bancário sempre se assentou nesta

característica do depósito irregular, pelo qual o banqueiro funciona como intermediário,

recebendo a aplicação do dinheiro dos que o têm sobrando, a fim de emprestá-lo aos que

dele necessitam para desenvolvimento de suas atividades empresariais. Como se pode

perceber, pelas mesmas razões, jamais se poderia pensar em ofensa ao princípio da

"segurança jurídica".

Aliás, é curioso que essa matéria esteja a despertar tamanha celeuma e que tanta

indignação tenha causado o fato de operar-se a transferência da propriedade do dinheiro,

no momento de depósito bancário, pois isso acontece há séculos, da mesma maneira, em

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todo o mundo, sendo este um dos principais fundamentos em que se assenta a atividade

bancária.

Paula Ponces Camanho, Professora na Faculdade de Direito da Universidade Católica

Portuguesa, da cidade do Porto, que tem obra específica sobre o assunto, estudando-o

em profundidade, nos ensina que, já na mais remota antiguidade, era conhecido o efeito

de transferência de propriedade, no depósito bancário:

"O contrato de depósito de disponibilidades monetárias (ou depósito de numerário),

doravante designado por contrato de depósito bancário, surgiu na Babilônia no século

VI a.C. O papel dos bancos era o de colocar em segurança os fundos que os seus

proprietários não utilizavam e não queriam conservar consigo, com receio de furtos ou

outros perigos e, ao receber esses fundos dos depositantes com a possibilidade de os

utilizar, os bancos começam a pagar juros aos clientes. E, conseqüentemente, com a

obrigação de restituir, não exactamente as moedas depositadas, mas o equivalente."

(Vide Do contrato de depósito bancário, Coimbra, Almedina, 1998, p. 98.)

Ainda na p. 104-105 da referida obra, a mesma doutrinadora portuguesa, na nota de

rodapé n. 288, nos dá a certeza de que a apontada transferência da propriedade do

dinheiro, no depósito bancário, é ponto pacífico no direito de todos os povos

civilizados, haja vista a inserção de referências a mestres de Portugal, Itália, França,

Inglaterra, Alemanha, Bélgica, Colômbia e do Brasil, na pessoa do insigne Carvalho de

Mendonça, todos mencionados como inteiramente de acordo com a citada tese, a saber:

"288 Cfr. pires de Lima, Anotação ao Acórdão do STJ de 12 de janeiro de 1968, RLJ,

Ano 101, 1968-69, n. 3380, p. 368: 'há que considerar o dinheiro depositado como

pertencente ao patrimônio do estabelecimento bancário e não ao patrimônio do

depositante' e Alberto Luís, ob. cit., p. 165, afirmando este Autor que 'para legitimar a

aplicação dos depósitos, a dogmática jurídica entende que o banco adquire a

propriedade do dinheiro' e A mobilização dos depósitos a prazo cit., p. 159. Ellinger,

por seu turno, afirma que 'a quantia depositada pelo cliente torna-se parte e uma parcela

do dinheiro do próprio banco', ob. cit.,p. 119e 166). Veja-se ainda, Schönle, ob. cit., p.

10.11.1, Heenen Bruyneel, ob. cit., p. 20.11.5, Coppa-Zuccari, 'La natura giuridica dei

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deposito bancário', Archivio Giuridico 'Filippo Serafini', Modena, 1902, p. 445, Coltro

Campi, ob. cit, p. 286, Cabrillac, ob. cit., p. l, Vasseur, ob. cit., p. 1333, Molle, ob. cit,

p. 122, Greco, ob. cit, p. 158, Scordino, ob. cit, p. 34 e 61, Lordi, ob. cit., p. 382, Blair,

European Banking law cit, p. 12, Ruperto, Rassegna di giurisprudenza sul codice civile,

direita da Nicolò e Richter, Libro quatro, Tomo V, Milano, 1970,p.21,Branca, ob. cit, p.

427, Colagrosso e Molle, ob. cit, p. 292, Auletta e Salanitro, ob. cit, p. 472,

SALANITRO, 'Problerni in tema de depositi bancari', Le operazioni bancarie, Tomo I,

Milano, 1978, p. 367, Carvalho de Mendonça, ob. cit., pág. 161, Luís Barbosa e

Marlene Barbosa, Contratos bancários, Bogotá, 1978, p. 135 a 137 e Garciadiego, ob.

cit., p. 47 e 51. A norma do Códice Civile que se refere ao depósito bancário (1834.°)

prescreve essa transmissão da propriedade: 'este [banco] adquire a propriedade do

dinheiro' depositado. Afirmando ainda a transmissão da propriedade das quantias veja-

se Ac. Do STJ de 14 de junho de 1984, BMJ, n. 338, p. 432: 'depósito bancário' implica

'que haja uma transferência da propriedade das quantias depositadas do depositante para

o depositário pelo tempo que dure o contrato, o que significa que o depositante é dono

das respectivas quantias quando procede ao depósito delas', Ac. do STJ de 3 de outubro

de 1995, BMJ, n. 450, p. 416, Ac. da Rei. de Lisboa de 22 de abril de 1980, CJ, Ano V,

Tomo II, p. 230, Ac. da Rei. de Lisboa de 17 de março de 1983, CJ, Ano Vffl, Tomo II,

p. 114, Ac. da Rei. de Lisboa de 13 de outubro de 1988, CJ, Ano XIII, Tomo IV, p. 121.

Quanto à jurisprudência italiana pode ver-se Cass., '30 giugno 1938', Le Banche, II

(Giuseppe Alessi)... cit, p. 795, 'App. Bari, 6 giugno 1938' e' App. Catania, 29 maggio

1939', Le Banche..., cit, p. 800 e 'App. Catanzaro, 30 luglio 1957', Le Banche..., cit, p.

801."

De forma praticamente unânime, também a doutrina pátria entende que, no depósito

bancário, ocorre, sim, a transferência de propriedade do dinheiro, do depositante para o

banqueiro, conforme agora se passa a demonstrar.

Inicialmente, veja-se comentário de Nelson Abrão:

"O contrato de depósito bancário tem como características essenciais ser real e

unilateral. Real, porque só se aperfeiçoa com a efetiva entrega do dinheiro ou seu

equivalente ao banco.

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Tal entrega é o elemento constitutivo do negócio, iniciando-se com ela os efeitos

próprios do contrato, a transferência da propriedade do dinheiro do depositante ao

banco e a obrigação deste último à restituição." Grifos nossos (Direito bancário, 4. ed.,

RT, 1998, p. 96).

Em seguida, cite-se Fran Martins, que assim leciona:":.. os bancos, nas operações e

nos contratos que realizam, agem sempre em seu próprio nome. Ao receberem depósitos

pecuniários, constituem-se devedores dos depositantes; assumindo a propriedade desses

depósitos, empregando-os em seguida em empréstimos aos que necessitam de capital,

dão esses empréstimos não em nome dos depositantes mas em seu nome próprio,

tornando-se, desse modo, credores dos prestamistas." (Contratos e obrigações

comerciais, 2. ed., Forense, 1990, p. 485 -grifos nossos.)

Sérgio Carlos Covello tem a seguinte posição:

"Por outro lado, no depósito comum, o depositante continua com a propriedade da

coisa e, como proprietário, possui um direito real sobre ela. Tal não ocorre no depósito

bancário, em que o depositante tem apenas um direito de crédito, visto que perdeu a

propriedade do dinheiro, no momento em que a entregou ao Banco." Grifos nossos

(vide Contratos bancários, 3. ed., Leud, 1999, p. 73).

Orlando Gomes assim se manifesta:

"Quando um recebe certa soma em dinheiro, obrigando-se a restituí-la em

determinado prazo, ou ad nutum de quem a entrega, realiza o contrato de depósito

bancário. Adquire, nesse caso, pleno gozo da quantia depositada. Não a recebe para

guardá-la. Aceitando-a, não está a prestar serviço ao depositante, como ocorre no

depósito regular. Depositando, o cliente empresta ao banco, em última análise, a soma

depositada. O depósito bancário não se confunde com a custódia, que é depósito regular.

Nesta, o depositante não perde a propriedade da coisa depositada. Naquela, torna-se

credor do banco..." (Contratos, 7 ed., p. 394, n. 261.)

15

Aramy Dornelles da Luz leciona:

"Se há um contrato de conta-corrente vinculado ao depósito, o lançamento, na coluna

haver, do valor depositado apaga sua identidade, entra no jogo de compensação com

outros créditos e débitos e não subsiste mais que uma só massa patrimonial que tem a

representá-la o saldo disponível. Perde, por esta forma, sua característica de coisa

autônoma, individuada, para se transformar numa entidade abstrata chamada crédito.

Desaparece o depósito, dele se originando o crédito. Nessa desfiguração ou

configuração nova é que se pode considerar que o valor depositado passa à propriedade

do depositário e, isso mesmo, é preciso aprofundar a compreensão de como se dá esta

aquisição." Grifos nossos (Negócios jurídicos bancários, São Paulo, RT, 1996, p. 75.)

E, last but not least, ouçamos a palavra do insuperável Pontes de Miranda, na

verdade, radicalmente contrário à posição abraçada pelo v. acórdão mineiro:

"Objeto e natureza do contrato de depósito bancário - a) Os depósitos bancários,

quaisquer que sejam (com termo fixo, pré-aviso ou à vista) supõem, sempre, dação de

dinheiro ao banco, com a transmissão da propriedade, por se tratar de bem fungível. O

banco vincula-se a restituir a quantia, no mesmo gênero e qualidade, e não a restituir

com as mesmas cédulas, ou, sequer, do mesmo valor (e.g., em cédulas de mil cruzeiros).

Com a transmissão da propriedade do dinheiro, o banco pode dispor, no que entenda,

como, onde e quando entenda, do recebido, sem que o cliente depositante se possa

envolver nas operações que vão ser feitas, para o interesse da empresa bancária,

inclusive se essa transfere à filial, agência ou à sede a quantia depositada. Na figura do

depósito bancário, há a estrutura do depósito irregular e algo de mútuo, assunto que

merece exame à parte, mais aprofundado do que se costuma fazer, e adiante nos

desincumbiremos disso.

(...)

Todos os depósitos bancários têm como elemento comum a entrega de soma de

dinheiro, da qual o banco adquire a posse própria e a propriedade, com o dever de

restituição na mesma espécie de moeda, quando exigida de acordo com a convenção e

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a lei. A convenção pode resultar de uso bancário.O banco pode dispor como entenda

do que foi depositado, porque é seu. Não tem dever de conservar, porque restitui o

tantundem eiusdem generis ac' qualitatis, e não a eadem res." (Tratado de direito

privado, 3. ed., São Paulo, RT, 1984, vol. LII, p. 75-77 - Grifos nossos.)

Como se pode facilmente verificar, Pontes de Miranda entende que, no depósito

Bancário, ocorre, sim, a transferência da propriedade do dinheiro, que passa a ser do

banco, tornando-se, de tal arte, insuscetível de restituição, no caso de falência.

Aliás, não é outra a posição da jurisprudência dominante em nosso país, a propósito

da transferência da propriedade do dinheiro, no caso do depósito bancário, conforme

retratado acima.

Idêntica posição adotou, muito recentemente, o Egrégio TAMG, no julgamento do

Agln 319.538-4 (MG de 13.01.2001):

"Penhora. Dinheiro. Estabelecimento bancário. Possibilidade.

Desde que não recaia sobre recursos disponíveis em conta de reserva técnica, é

possível a penhora de dinheiro existente em agência bancária, porquanto, segundo

sólida jurisprudência do STJ, o depósito de dinheiro em banco classifica-se como

contrato de depósito irregular, que ao mútuo se equipara, por ele recebendo o banco a

propriedade do bem."

No corpo do v. acórdão, cita-se o Min. Eduardo Ribeiro:

'Também não é dos clientes o dinheiro que se acha no banco. Trata-se de depósito

irregular a que se aplicam as regras do mútuo. Transfere-se a propriedade para o

depositário, contra quem o depositante passa a ter um crédito."

Ademais, no julgamento de Medida Cautelar ajuizada pelo Estado da Paraíba, contra

o Banco Central do Brasil, na "Petição 455-8-Distrito Federal" (DJU 10.12.1993,

Ementário 1729-1), num caso de muito maior gravidade, porque ali o Estado da Paraíba

17

pedia a restituição imediata de seu dinheiro depositado no Paraíba, em regime de

liquidação extrajudicial, inclusive alegando que sua retenção representaria indevida

intervenção da União no Estado-membro, o Colendo Supremo Tribunal Federal julgou

improcedente mencionada cautelar, indeferindo o pedido de levantamento do dinheiro

depositado, em extenso acórdão, no qual o Exmo. Sr. Min. Carlos Velloso deixou claro

que "o contrato que há entre o depositante e o Banco transfere para o Banco a

titularidade do depósito, resultando para o depositante direito de crédito", salientando,

ainda, que "nesse arremedo de concurso de credores, se se liberar esses recursos,

estaríamos decidindo em detrimento de créditos privilegiados em relação ao próprio

Estado, como, por exemplo, os créditos trabalhistas, que preferem a qualquer outro

crédito, e nem poderia ser de outra forma, dada a sua feição alimentar".

6. A Súmula 417 do STF.

Com todo o respeito, equivocada a leitura da Súmula 417/STF contida no julgamento

Egrégio TJMG, na r. sentença e nos pareceres do Ministério Público, dando-lhe um

alcance que representa o contrário de seu enunciado, este exatamente no sentido de não

permitir a restituição do dinheiro objeto de depósito bancário, visto que, neste caso, o

falido dele tinha disponibilidade, não se configurando, de tal arte, um dos requisitos ali

especificados.

Neste ponto, imprescindível considerar a fungibilidade do dinheiro depositado na

instituição financeira.

Via de regra, as coisas fungíveis não podem ser objeto de restituição, porque é

imprescindível, no pedido respectivo, a individuação da coisa, para que, perfeitamente

identificada, se saiba exatamente o que deva ser restituído. O dinheiro somente poderia

ser identificado se houvesse um registro da numeração das cédulas de papel-moeda, o

que não acontece no depósito bancário, como é óbvio.

Como sabemos, no depósito bancário o dinheiro depositado incorpora-se ao

patrimônio do falido. De acordo com Aramy Dorneles, o dinheiro depositado "perde sua

característica de coisa autônoma para se transformar numa entidade abstrata chamada

18

crédito". Impossível, portanto, a sua identificação e, conseqüentemente, a sua

restituição.

Esse é também o entendimento dos nossos Tribunais, inclusive do Colendo STF:

"Falência. Restituição.

Somente versa coisa que possa ser individuada e identificada (art. 76, §§ l.°e 2.°, da

Lei 7.661/45). A restituição do dinheiro estará assim subordinada à individuação das

notas ou do metal que o represente." (RE 28.415 - Arq. Jud. 118/72.)

Trechos do voto

"O Decreto 7.661, de 21 de junho de 1945, exatamente para pôr um paradeiro à

faculdade com que a massa falida era desfalcada para atender às reivindicações, delas

não mais cuidou, mandando fazer restituição de coisas arrecadadas em poder do falido,

quando fossem devidas em virtude de direito real ou contrato.

É de ver, porém, a cautela usada pelo legislador em tais restituições, para por logo de

manifesto que a restituição somente compreende as coisas devidamente individuadas

(art.76, §§ l.°e2.°).

A restituição do dinheiro estará assim subordinada à individuação das notas ou do

metal que o represente."

"Restituição de dinheiro mutuado.

O dinheiro é coisa fungível, que não admite restituição em falência, pois são

pressupostos do instituto da restituição a possibilidade de individualização e a

caracterização da coisa reivindicada." (Ag. 4028 - Revista Forense 159/218.)

19

"Pedido de restituição. Dinheiro. Coisa fungível. Ações. Aumento de capital.

Integralização. Lei de falências, art. 76. Súmula 417.

Consoante o art. 76 da Lei de Falências, só pode constituir objeto de pedido de

restituição, quer fundado em direito real, quer em contrato, coisa corpórea, móvel ou

imóvel, de natureza infungível, arrecadada em poder do falido, designada por sinais

característicos." (ApCiv 238.209 - 6.ª Câm. Cível do TJSP -j. 07.03.1975.)

"Concordata preventiva. Pedido de restituição. Indeferimento. Dinheiro depositado

em conta-corrente, nos quinze dias anteriores, no estabelecimento bancário requerente

da concordata. Caso de depósito irregular equiparado ao mútuo." (AgPet 132.3000 - 2.ª

Câm. Cível do TJSP - grifo nosso.)

Nesse sentido, portanto, a Súmula 417/ STF, in verbis:

"417. Pode ser objeto de restituição, na falência, dinheiro em poder do falido,

recebido em nome de outrem, ou do qual, por lei ou contrato, não tivesse ele a

disponibilidade." (Grifo nosso.)

Do seu enunciado constam expressamente duas condicionantes que não se

configuram no caso concreto:

"a) não se trata de dinheiro recebido em nome de outrem, como seria aquele em que o

banco atuasse como mandatário;

b) o banco tem a disponibilidade do dinheiro, pois dele passou a ter a propriedade,

no momento do depósito irregular, contrariando, assim, o disposto na referida decisão

sumulada."

A propósito, confira-se o ensinamento de Nelson Abrão:

"Não vemos como caber restituição de dinheiro, coisa fungível, não individuada,

confundida no patrimônio do falido. A exata interpretação da Súmula 417 do Supremo

20

Tribunal há de amoldar à lição de Miranda Valverde, a ela anterior: O dinheiro, só

quando identificável e não confundido no patrimônio da massa, é suscetível de

devolução; é o caso por exemplo, de alguém que tem importâncias em dinheiro nos

cofres de aluguel de um banco, de que esse, a teor da aludida súmula, não tivesse a

disponibilidade. Não seria o caso de depósito em conta-corrente no banco." Grifos

nossos (Curso de direito falimentar, São Paulo, Universitária de Direito, 1997, p. 227).

Cite-se, ainda, Walter T. Alvares:

"Deve-se ainda indicar que na esfera de relações contratuais muitas hipóteses podem

ocorrer como, por exemplo, o caso de conta-corrente bancária, cujo saldo não se

restitui, na hipótese de falência do banco, pois se constitui crédito quirografário do

depositante-correntista.

Não obstante, o dinheiro, que por ser coisa fungível, normalmente não admite

restituição, pode, todavia, ser restituível pela massa:

a) o dinheiro do comitente, retido pelo comissário falido a título de mandato;

b) quando o dinheiro tiver individuação de cédulas ou metal;

c) o dinheiro resultante de descontos feitos pelo falido nos salários de seus

empregados a favor de instituições de previdência social;

d) o recebido pelo falido mas do qual não tivesse disponibilidade." Grifos nossos \

(Direito falimentar, São Paulo, Sugestões Literárias, 1966, p. 439).

Está de ver-se, portanto, que a Súmula 417/STF pode ser aplicada nos casos de

contrato de câmbio, de contribuição previdenciária e, até mesmo, de prestações pagas a

administradoras de consórcio, admitindo-se restituição nesses casos, que não se

equiparam ao contrato de depósito bancário.

21

Na verdade, no contrato de câmbio, a quantia é recebida pelo banco com fim

específico de aquisição de moeda estrangeira, atuando o banco em nome de outrem

(como mandatário), não tendo o banco disponibilidade sobre o dinheiro.

Diga-se o mesmo em relação ao dinheiro recolhido para pagamento de contribuições

previdenciárias, pois, também aqui, a empresa age em nome do Órgão Previdenciário e

não tem disponibilidade sobre tais recursos.

Como se percebe, essas duas situações enquadram-se no enunciado da Súmula 417, o

que não acontece, repita-se, com o depósito bancário.

Demais disso, nos casos acima citados existe previsão legal para restituição: a)

contribuição à seguridade social devida pelo empregado do falido e por este retida - Lei

8.212/91, art. 51, parágrafo único; b) de importâncias antecipadas ao exportador pela

instituição financeira com base em contrato de câmbio - Lei 4.728/65, art. 75, § 3.°.

Em resumo, tudo está mostrando que o caso não é de restituição, que se há de fazer

sobre o próprio bem arrecadado indevidamente, ou seja, in natura.

Logo, não é viável que, tratando-se de dinheiro (bem fungível), pretenda-se

restituição a ser feita com valores apurados após alienação do patrimônio do falido,

pois isso significa simplesmente quebra do princípio da par conditio creditorum,

desrespeitando-se a ordem legal de pagamento na falência.

7. Do sistema bancário.

Se a impossibilidade da restituição revela-se cristalina, diante dos princípios

referentes à natureza jurídica do depósito bancário e do mencionado instituto, no

processo falimentar, conforme acabamos de examinar, vista a questão pelo aspecto

econômico, o próprio sistema de funcionamento do mercado bancário está mostrando

que não pode prevalecer a tese adotada no v. acórdão recorrido.

22

Deveras, não só no Brasil, como em todo o mundo civilizado, o sistema bancário

aparece corno "rede distribuidora e órgão multiplicador da moeda, sob a regência do

Banco Central", na expressão de Amoldo Wald (vide "A Constituição de 1988 e o

Sistema Financeiro Nacional", Revista de Informação Legislativa 46, Brasília, jul.set.

1990).

No particular, assim se manifesta o festejado mestre, na obra citada:

"Já se disse, aliás, que a moeda é o sangue do sistema econômico do qual o Banco

Central é o coração, cabendo ao sistema bancário irrigar o organismo, de modo regular e

adequado, evitando tanto a inflação, como a recessão, garantindo a transformação do

sangue venoso em arterial, e impedindo o excesso do seu afluxo a determinadas áreas,

assim como a falta de irrigação de outras. Na realidade, o crédito multiplica a moeda e

permite o seu uso simultâneo por várias pessoas e em momentos distintos, repetindo, no

mundo moderno, mas sem a perfeição de outrora, o milagre divino da multiplicação dos

pães. De fato, conforme o ritmo da velocidade da circulação da moeda, os mesmos

recursos podem ser aproveitados e aplicados, ao mesmo tempo, por um grande número

de pessoas, o que transforma, em certo sentido, os próprios bancos comerciais em

verdadeiros criadores secundários da moeda. O Banco Central como orquestrador do

sistema e emprestador de último recurso, ou banco dos bancos, torna-se assim o titular

do poder monetário."

Tudo isso evidenciando que o sistema bancário funciona sempre com base no fato de

que - tratando-se de depósito irregular - o banco passa a ser proprietário do dinheiro

dado a ele em depósito, uma vez que o empresta a terceiros, no exercício de suas

atividades de fomento do comércio e da indústria, sem falar que, no momento do

depósito, parte do dinheiro é recolhida ao Banco Central, constituindo o chamado

"depósito compulsório".

E ninguém ignora como isso acontece, pois todos sabem que o depósito de dinheiro

em banco envolve sempre certo risco, decorrente da atividade do banqueiro, que vive de

emprestar dinheiro, e que naturalmente há de arrostar as possibilidades de insucesso dos

tomadores.

23

Se o depósito bancário viesse a ser considerado depósito regular, isto é, se o

banqueiro tivesse de responder pessoalmente, como depositário infiel, na eventualidade

do insucesso de seus negócios, sujeitando-se à prisão, por certo que a atividade

bancária desapareceria do cenário econômico, vez que ninguém se animaria a praticar

esta função de intermediário na circulação da moeda, isto é, receber o dinheiro dos

depositantes, numa ponta, e, na outra, emprestá-lo aos tomadores da indústria e do

comércio.

E é exatamente por essas razões que, à semelhança de inúmeros outros países

(Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Suíça, Alemanha, Japão etc.) temos um sistema de

"seguro de depósitos", o denominado Fundo Garantidor de Créditos - FGC, cuja

instituição foi autorizada pela Resolução 2.127, de 31.08.1995, seguindo-se a aprovação

de seu estatuto e regulamento, pela Resolução 2.211, de 16.11.1995, ambas essas

normas editadas pelo Conselho Monetário Nacional.

O FGC é uma associação civil sem fins lucrativos, com prazo indeterminado de

duração e constituído sob a forma de sociedade de direito privado, tendo por objetivo

dar cobertura, de até R$ 20.000,00 (vinte mil reais) por titular, a depósitos e aplicações

nas hipóteses de intervenção, liquidação extrajudicial ou falência de instituição

financeira.

Ora, num país pobre como o nosso, esta é uma quantia elevadíssima, que muito

poucos têm no banco em depósito. Logo, se já foram devidamente indenizadas, por este

FGC, todas as pessoas que tinham até R$ 20.000,00 em depósito, é de concluir-se que

não há alcance social na pretendida restituição, mas, muito ao contrário, mero desejo de

subtrair-se à ordem legal de preferências no pagamento a ser feito pela massa.

Então, na realidade, o que restou, no caso do Banco do Progresso, foi um pequeno

número de grandes investidores, pois assim hão de ser classificados os depositantes de

valores acima de R$ 20.000,00, os quais, nessa qualidade, eram exatamente os que

melhor conheciam os riscos de sua aplicação, não havendo sentido em quebrar a par

conditio creditorum em seu favor.

24

8. Advertência

Bem ao contrário do sustentado no julgamento do Egrégio Tribunal de Justiça, o tema

não é novo, mas, muito ao contrário, é velho e revelho, tanto assim que já se consolidou

no direito pátrio, e é exatamente por isso que há muito não se tem notícia de decisão

judicial sobre o assunto (interpretalio cessati in claris).

Aqui, é imperioso destacar que, se a falência de um banco (processada na via judicial)

é novidade, muito ao contrário, a quebra de instituições financeiras, lamentavelmente, é

fato que ocorre com certa freqüência, processando-se sempre extrajudicialmente a

respectiva liquidação.

E isso acontece porque, desde 13.03.1974, com a vigência da Lei 6.024, os bancos

sujeitam-se ao sistema de liquidação extrajudicial, ao qual se aplicam, conforme seu

art.34, "... as disposições da Lei de Falências (Dec.-lei 7.661, de 21.06.1945),

equiparando-se ao síndico, o liquidante, ao juiz da falência, o Banco Central do

Brasil...".

Assim, o direito de restituição, reconhecido nos arts. 76 e seguintes da Lei de

Quebras, se fosse cabível no caso de depósitos bancários, certamente, já teria sido

utilizado nos incontáveis casos de liquidação extrajudicial de bancos, mas isso jamais

ocorreu, em face da evidente falta de amparo jurídico a tal pretensão.

Em outras palavras, no que concerne ao alegado direito de restituição, pode-se

afirmar que, embora diferentes os procedimentos ligados à quebra de bancos (processo

de falência e liquidação extrajudicial), o direito material aplicável é exatamente o

mesmo, por força do disposto no art. 34 da Lei 6.024/74.

Ora, se jamais se ouviu falar de restituição de dinheiro objeto de depósito bancário é

porque inexiste base legal para tanto, em face de nosso ordenamento jurídico.

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9. Conclusões.

Concluindo, pode-se dizer, resumidamente:

1. Depósito bancário, segundo maciça doutrina e sólida jurisprudência do STJ, é de

natureza irregular, equiparando-se ao mútuo, por ele recebendo o banco a propriedade

do bem, passando o depositante a ter um direito de crédito, isto é, o de receber o

tantundem, jamais a eadem res;

2. Por essa razão é que, no exercício normal de suas atividades, o banqueiro empresta

a terceiros o dinheiro recebido dos depositantes, com riscos que são de todos

conhecidos, valendo assinalar que, no caso de insucesso, ele não é considerado

depositário infiel, em razão da característica especial do depósito irregular, que se rege

pelas normas referentes ao mútuo;

3. Também, pelo prisma da natureza jurídica do direito de restituição na falência,

torna-se certo que ela é feita sempre in natura, vale dizer, incidindo sobre o próprio bem

indevidamente arrecadado (eadem res), jamais com dinheiro que venha a ser apurado

após leilão dos bens do falido;

4. Portanto, conforme exaustivamente assinalado, lei, doutrina e jurisprudência, de

modo uníssono, dizem que, na quebra do banqueiro, judicial ou extrajudicial, o direito

do depositante é de crédito junto à massa, não de restituição do valor depositado;

5. O Fundo Garantidor de Créditos - FGC já pagou a todos os depositantes que

possuíam até R$ 20.000,00 (vinte mil reais), o que torna certo que somente restaram os

grandes investidores, que conhecem bem os riscos do mercado bancário, os quais

devem submeter-se ao quadro geral de credores, como quirografários que são.