a importÂncia diversidade cultural nas prÁticas 3...

26
3 unidade A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL NAS PRÁTICAS CURRICULARES Seção VII Currículo e diversidade. Seção VIII O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolares. Seção IX Saberes sociais e saberes pedagógicos.

Upload: duongkiet

Post on 18-Jan-2019

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

3unidade

A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL NAS PRÁTICAS CURRICULARES

Seção VII Currículo e diversidade.

Seção VIII O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços

escolares.Seção IX

Saberes sociais e saberes pedagógicos.

• SeçãoVII:refletirsobreasrelaçõesentrecurrículoe

diversidade cultural.

• SeçãoVIII:refletirsobreocotidianoesuasrelaçõesde

podernasignificaçãodetemposeespaçosescolares.

• SeçãoIX:refletirsobreas interaçõesentresaberes

sociais e saberes pedagógicos.Obje

tivos

A IMPORTÂNCIA DA DIVERSIDADE CULTURAL NAS PRÁTICAS CURRICULARES

seções 7 8 9

69PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o7

SEÇÃO VIICURRÍCULO E DIVERSIDADE

Currículo e diversidade cultural são duas noções básicas

na construção social do pensamento pedagógico e do pensamento

antropológico. O primeiro remete às estratégias de organização

dos espaços escolares para a formação humana e produção do

conhecimento. A diversidade cultural, por sua vez, auxilia diferentes

tendênciasdaAntropologiaarefletiremsobreasdiferençasculturais

que orientam as diversas formas de organização social da espécie

humana no planeta.

SAIBA MAIS

Currículo: palavra derivada dovocábulolatinocurrerequesignifica carreira, caminho.Tem sido utilizada na tradição do pensamento educacional, no ocidente, para designar a organização das áreas deconhecimento e as práticasde ensino e aprendizagem que lhes correspondem. Pode ser interpretada também, num sentido mais amplo, como processo e produto da escolarização.

70 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Currículo e diversidade.Antropologia e Educação

É possível estabelecer conexões entre essas duas noções

numa busca de compreender como a Educação e a Antropologia

tentam lidar com a difícil tarefa de pensar a espécie humana como

uma única espécie, sem deixar de lado características particulares do

humano em determinados contextos sociais. Na verdade, a relação

entre o universal e o particular, tanto do ponto de vista da Educação,

quanto do ponto de vista da Antropologia, constitui a fonte dos

muitos debates que ainda se fazem presentes nestes dois campos

das ciências humanas.

Vejamos (grosso modo) como as teorias pedagógicas e as

teoriasantropológicastrataramasduasnoçõespara,posteriormente,

tentaridentificareixosdecomplementaridadeentreambas.

As pesquisas educacionais buscam desenvolver seus estudos,

partindo do pressuposto de que o currículo deve ser compreendido

a partir de uma dupla dimensão: currículo formal e currículo real. O

currículo formal compreende os programas escritos e guias curriculares

que organizam os princípios e conceitos educacionais presentes num

determinadocontextoescolar.Currículorealcorrespondeàspráticas

de ensino e experiências vividas no interior das escolas. Um e outro

são resultantes de uma construção social e cultural, na qual cada

sociedade organiza seus modelos de escola.

Segundo Santos (1995), as diretrizes de um currículo formal

criampadrõesuniversaisquebuscamdefiniroqueensinareoque

aprender, por que ensinar e por que aprender, como ensinar e como

aprender, quem ensina e quem aprende. O

currículoformalédefinidopelaspolíticas

de educação praticadas num determinado

país, segundo orientações gerais do

Estado e da Sociedade. O currículo real

incide sobre o cotidiano das escolas,

está relacionado comas vivências entre

educadores e educandos e nem sempre

corresponde ao currículo formal. Tal

distinção entre uma e outra dimensão

docurrículosupõedificuldadesemcompreenderasrelaçõesentreo

universal e o particular no campo dos processos de escolarização, em

diferentes contextos culturais.

Do ponto de vista da Antropologia, duas fortes tendências

trataram a diversidade cultural de maneira distinta. Vamos utilizar

aquiasideiasdeMontero(1999)queidentificataistendênciascomo

racionalismo e relativismo cultural. Os racionalistas procuram leis

e regrasuniversaisque justifiquemaunidadedaespéciehumana,

SAIBA MAIS

Racionalismo: pode ser compreendida em amplo sentido como todas as abordagens antropológicas que buscam conceitos universais para explicar a relação entre o homem e a cultura. Seus modelos interpretativos inspiram-se na física e na biologia e têm no evolucionismo sua matriz teórica mais importante.

Relativismo cultural: trata-se de um princípio interpretativo da Antropologia criado pelas primeiras experiências da etnografia.Através deste princípio, os antropólogos consideram que só é possível compreender a relação do homem com a cultura dentro do contexto social em que ela se produz. O trabalho da observação participante é decisivo para a concretização de uma postura relativista.

71PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o7

valorizando características comuns a todos os humanos no planeta.

Apoiaram-se em conhecimentos da física e da biologia para sustentar

suas teorias, e foram duramente criticados pela tendência etnocêntrica

de compreender as outras culturas de um ponto de vista europeu.

Na contracorrente do racionalismo, o relativismo cultural procurou

mostrar a necessidade de se compreender as diferentes culturas

nosseuscontextosespecíficos.Aprincipalorientaçãodorelativismo

cultural é a aproximação do antropólogo das culturas que estuda, para

quepossacompreenderocontextoemqueestásituadodopontode

vistadosoutros.Acríticamaiscomumaestapráticadepensamento

éatendênciadasanálisesisoladasdecadapovoestudado,semque

hajaconexõesprofundascomaspectosmaisuniversaisdasculturas

presentes em povos de todo o planeta.

Num ensaio intitulado Os usos da diversidade, Geertz (2001)

chama a atenção para os riscos do etnocentrismo, presentes tanto

no racionalismo antropológico quanto no relativismo cultural. O autor

nosmostraque,nomundocontemporâneo,asdiferençasculturaisjá

não podem mais ser pensadas como aquilo que distingue selvagens

de civilizados, isto porque povos de diferentes origens circulam pelo

mundo inteiro. Há também os efeitos da mídia que, seja através

da televisão ou do uso do computador, nos torna mais próximos de

chineses, indianos, africanos, europeus e gente dos mais distantes

lugares do planeta. Para este autor, o desafio contemporâneo do

estudo da diversidade é a prática da etnografia como forma de

compreender também as diferenças mais sutis que nos distinguem

uns dos outros.

No que diz respeito ao trato com as questões de currículo,

háindicaçõesquesugerem,porexemplo,que“...ahistóriadevida

dosprofessorespoderáserumvaliosoinstrumentoparaoestudoda

práticapedagógicanointeriordeumadisciplina,desdequesecoloque

a experiência de vida do indivíduo dentro de um enquadramento

sócio-histórico...” (SANTOS, 1995, p.66). Esta indicação nos mostra

aimportânciadaetnografiaparaacompreensãodasrelaçõesentreo

cotidiano da escola e seus programas curriculares.

A esta altura das nossas reflexões, já podemos inferir

que a postura etnográfica, essa que nos orienta à interpretação e

compreensãocompartilhadadomundocomoutraspessoas,seafirma

como proposição para o reconhecimento da diversidade cultural,

comoprincípiodaconstruçãodaspráticascurricularesnasescolas.

Através da observação participante, os educadores poderão conhecer

mais a fundo as trajetórias de vida dos seus educandos e, com isto,

contribuirparaumacontextualizaçãoprofundadasdimensõesformal

72 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Currículo e diversidade.Antropologia e Educação

e real do currículo de suas escolas.

A título de síntese para a sistematização das ideias apresentadas

atéaqui,podemosafirmarque:

- currículoéoconjuntoarticuladodepráticasesaberesque

orientam a organização das instituições e processos de

escolarização de uma determinada sociedade;

- diversidade cultural é o conjunto articulado de diferenças

culturais que identificam práticas e saberes de diversos

indivíduosepovos,nosmaisvariadoscontextosgeográficos

e sociais.

Tais definições se interpenetram e compõem as dinâmicas

culturais que atravessam os contextos escolares com contextos sociais

mais amplos. Os exemplos estão por toda parte. A pandemia da gripe

suína que afetou o mundo inteiro, no ano de 2009, por exemplo, fez

com que as escolas do sul e sudeste do país ampliassem os seus

recessosdasfériasdeinverno.Outrasquestõesligadasàviolência,

sexualidade, meio-ambiente, artes e conflitos étnicos também

atravessam o mundo e as nossas escolas. É preciso que estejamos

atentos a observar e compreender o mundo diante de nós, para

podermos transformar nossos currículos escolares em instrumentos

de conversação com o mundo em que convivemos e, quem sabe,

assumirmosresponsabilidadescomasgeraçõesfuturas.

ATIVIDADE

• Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las.

• Descreva os princípios da educação expostos pela Lei de Diretrizes e Bases da

EducaçãoBrasileira,buscandoestabelecerrelaçõespossíveiscomalgumasdassuas

experiências escolares.

• Com a ajuda dos seus colegas de curso, procure organizar um texto sobre o tema

currículo e diversidade

73PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o7

No final da década de 90 do século passado o Ministério da EducaçãoBrasileiro adotou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) como programa de orientação para uma nova organização dos processos de escolarização nos níveisdoEnsinoFundamentaleMédio.OsPCNssugeremorientaçõesgeraissobreos conhecimentos básicos a serem ensinados e aprendidos em cada etapa doprocessodeescolarização.Asáreasdeconhecimentoqueconstamdodocumentosão: Português, Matemática, Ciências Naturais, História, Geografia, EducaçãoFísica e Arte. O documento prevê ainda a organização das atividades de cada área a partir dos seguintes temas transversais: Ética, Saúde,Meio Ambiente,Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Estes temas devem compor conteúdos presentes no cotidiano de educadores e educandos ao longo de suas experiências em sala de aula.

No ano de 1998, a Revista Nova Escola publicou uma edição especial intitulada:ParâmetrosCurricularesNacionaisFáceisdeEntender.AlémdeexplicardetalhadamenteosPCNS,aRevistaapresentasugestõesdecomotrabalharcomostemastransversaisarticuladosàsáreasdoconhecimento.VejamoscomatençãoassugestõesdarevistaquantoaotrabalhocomotemadaPluralidadeCulturalemdisciplinascomoHistóriaeGeografia,LínguaPortuguesaeEducaçãoArtística.

“História e Geografia: os caminhos da imigração

O estudo da maneira pela qual o território brasileiro foi ocupado e de como

a população se formou pode ser feito reconstituindo o caminho das diversas

etniasqueaquichegaram.Issoépossívelaotratardetemasbásicos,como

a ocupação e a conquista do território nacional, a escravização – tanto dos

indígenas quanto dos negros trazidos da África -, a imigração de outros povos

para o Brasil e os movimentos de migração internos.

Muitos livros didáticos descrevem os indígenas brasileiros como

pertencentes a um único grande grupo. Eles seriam, simplesmente, ‘índios’.

Com os povos vindos do continente africano ocorre o mesmo: são todos ‘negros’.

Isso é completamente falso. Por ocasião da chegada dos europeus às Américas,

havia por aqui centenas de grupos indígenas que tinham línguas, tipos físicos

ehábitospróprioseestavamemdiferentesestágiosdedesenvolvimento.Na

Áfricaaconteciaomesmo.ForamtrazidosparaoBrasilmembrosdenações

completamentediferentesentresi.Suas línguas, religiões,hábitose traços

físicos eram bem diversos”.

“Língua Portuguesa: todo mundo fala com sotaque

Fora de casa todos são estrangeiros. Compreender o sentido dessa

frase é entender como é relativo o conceito do que é sotaque ou do que seja

usarexpressõesregionais.EmSãoPaulo,umpaulistapercebeimediatamente

quando fala com alguém natural do Rio Grande do Norte ou de Santa Catarina,

pela maneira como essa pessoa pronuncia as palavras. No entanto, não nota

nenhuma característica fora do usual quando fala com os seus conterrâneos.

Omesmopaulista,naBahia,teráderesponder,todavezqueabriraboca,

à pergunta: ‘você não é daqui, não é?’ Tal discussão permite desenvolver a

percepção do que é exatamente pluralidade.

Poucos países do tamanho do Brasil têm uma língua única, tão amplamente

LEITURA COMPLEMENTAR

74 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Currículo e diversidade.Antropologia e Educação

LEITURA RECOMENDADA

difundida e uniforme – sem dialeto – como é o Português entre nós. Por

outro lado, seus alunos devem saber que existem no país diferentes idiomas

falados pelas etnias indígenas e que muitos imigrantes preservam a língua de

origem. Essa é mais uma forma de conhecer a diversidade brasileira”.

“Educação Artística: cerâmica e berrante não são folclore

A transversalidade com Educação Artística existe quando é feita a relação

entreasdiversasmanifestaçõesartísticas,comocerâmica,músicasedanças

de certos grupos étnicos e o cotidiano de seus criadores. O que se quer não

émostrar apenas o folclore,mas a importância de taismanifestações na

organização da vida de um grupo. Por exemplo, o berrante, que pode ser

apreciado como um elemento decorativo, para o boiadeiro tem outra função:

reunir a boiada”.

Revista Nova Escola, Edição Especial, 1998

Assugestõesapresentadaspela revistanosajudamacompreenderdeformamaisprecisaanecessáriarelaçãoentreadiversidadeculturaldonossopaís e as disciplinas com as quais produzimos conhecimento na escola. Através dos Parâmetros Curriculares Nacionais, podemos encontrar novos caminhos para estabelecermosconexõescomaspropostascurricularesdenossasescolasecomapráticadeensinoquedesenvolvemoscotidianamente.

Assista ao filmeSociedade dos Poetas Mortos, de PeterWeir, procuremais informaçõessobre os Parâmetros Curriculares Nacionais. Conheça a experiência da Escola da Floresta, noestadodoPará,acessandoaosite:WWW.ideflor.pa.gov.br

RESUMINDO

Pensaro currículodopontodevistadadiversidade cultural supõe

oaprofundamentonodiálogoentreAntropologiaeEducação.Ocurrículoé

constituintedeumaduplafacedavidaescolar:a)delimitaconceitosepráticas

que orientam e disciplinam o conhecimento escolar; b) institui relações

sociais concretas que são marcadas por diferentes experiências culturais dos

indivíduos que participam do cotidiano escolar.

A etnografia pode ser compreendida como postura investigativa

de complementaridade na busca de compreensão das dinâmicas culturais

entre contextos locais e globais. No âmbito das pesquisas em educação,

as contribuições do trabalho etnográfico podem orientar abordagensmais

profundas entre a dimensão formal e real do currículo.

75PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o8

O currículo é uma construção cotidiana. Para além dos conceitos

e princípios que referenciam suas orientações programáticas; os

cenáriossociaiseasdinâmicasculturais,nointeriordavidaescolar,

redimensionam suas teorias.

Vejamos um exemplo disto. A maioria dos programas curriculares

das nossas escolas sugere a formação ‘de sujeitos críticos’, no entanto

as regras para tal formação estão sujeitas à compreensão daqueles

quecontrolamedeterminamasorientaçõespedagógicas.Istoquer

dizer que o sujeito torna-se crítico a partir daquele que ensina. A

crítica, no seu sentido mais elementar, é a nossa habilidade intelectual

de questionar o mundo a partir das nossas experiências interpessoais.

Não nos tornamos mais ou menos críticos por frequentar uma escola.

No entanto, é na escola que aprendemos a exercitar a crítica através

da mediação dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos

que constituem os conteúdos de ensino delimitados pelo currículo. Na

maioriadasvezes,aspráticas curriculares subjugamacapacidade

crítica dos indivíduos, ensinando-os uma obediência a conteúdos

preestabelecidos. Os estudantes que questionam tais conteúdos e

as metodologias de ensino instituídas para a operacionalização do

conhecimento em sala de aula são considerados garotos e garotas

problema.

SEÇÃO VIIIO COTIDIANO COMO BIOPOLÍTICADE TEMPOS E ESPAÇOS ESCOLARES

76 Módulo 2 I Volume 1 EAD

O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolaresAntropologia e Educação

A Antropologia contemporânea tem tentado compreender as

formas como o pensamento produz cultura e é produzido pela cultura.

Paradesenvolversuasanálises,osantropólogostêmbuscadodialogar

comosfilósofosqueanalisamasrelaçõesentresaberepoder.Isto

sedeveaofatodequetaisfilósofosnosajudamacompreenderas

nossas relações uns com os outros como relações de poder. Para

estabelecermos relações com outras pessoas estamos sujeitos a

regras, formas de controle e conformação de comportamentos.

Umadasgrandescontribuiçõesdadasparaodesenvolvimentodesta

interpretaçãodasrelaçõessociaistemasuaorigemnofilósofofrancês

Michel Foucault. Segundo Rabinow (2002), a noção de biopoder,

origináriadopensamentodeFoucault,nosauxilianacompreensão

decomoassociedadescontemporâneasprecisamdefinirumconceito

de humano e manter o controle do corpo humano para garantir a

ocupação e mobilidade das pessoas no tempo e no espaço das ordens

sociais vigentes.

Vamosaoutroexemplo.Escolaseafirmacomoescolaatravés

dosseusmobiliários,dosuniformesescolares,dassuasnormasde

convívio, da diferenciação dos lugares do professor, dos alunos, dos

diretores e dos demais funcionários das instituições educandárias.

A Escola, no seu sentido mais amplo, é um espaço padronizado

pelasregrasquedefinemassuasfunçõesenquanto instituição.No

entanto,àmedidaquerelaçõesinterpessoaisseestabelecemneste

lugar,outrasconfiguraçõespossíveisvãoseconstruindo.Escrevem-

se nos braços das carteiras escolares, acrescentam-se aos uniformes

acessórios de indumentária (brincos, pulseiras, cintos, nós nas

blusas), as paredes dos prédios escolares vão sendo coloridas,

conforme a criatividade daqueles que habitam este espaço. Entre

uma aula e outra, professores trocam receitas de bolos, comentam

sobreohoróscopododia,recomendamasliquidaçõesdahora,trocam

confidênciassobresuasvidaspessoais.Escolassãoinstituiçõesvivas.

Sãoinstituiçõescapazesdeseguirasdurasleisqueasdirigemede

subvertê-las, segundo a efervescência do convívio entre todos que a

frequentam.

Apesardosconceitosquefixamasidentidadesdeeducadores

eeducandos,asrelaçõesqueestesestabelecemnosseuscotidianos

sãotransformadorasdospadrõescomportamentaisqueasregulam.

Nos seus estudos sobre currículo e subjetividade, Antonio Viñao Frago

e Agustín Escolano (1998) nos mostram que os espaços escolares

são construções sociais, são definidos por um conjunto de signos

e símbolos que buscam dar sentido às suas ocupações enquanto

espaços institucionais. Os autores nos mostram, também, que são

Biopoder: a noção passou a ser utilizada a partir das contribuiçõesde Michel Foucault para a reflexão sobre as relaçõesde poder presentes nas experiências de vida cotidianas dos indivíduos. A Antropologia tem utilizado talnoçãoemsuasreflexõessobre cotidiano e vida comum, sobretudo pelo reconhecimento de que no dia a dia as pessoas criam formas de controle e manipulação das regras de convívio umas com as outras.

77PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o8

asrelaçõescotidianasquetransformamtaisespaçosemlugares.Nos

seus estudos, o espaço se projeta e se imagina, o lugar se constrói

apartirdasrelaçõesqueosindivíduospassamaestabelecercoma

ideia instituída do espaço.

Partimos do pressuposto de que os cotidianos escolares são

atravessadospor relaçõesdepoder.Tais relações tornampossíveis

múltiplasformasdeconvivênciacomasregrasdeensinoeasdefinições

deaprendizagem.Predominamasregrasedefiniçõesestabelecidas

pelocurrículoformal,masasregrasedefiniçõescriadasdiariamente

no currículo real também existem e são capazes de significativas

inovaçõesnas formas comoaspessoaspensame vivemoespaço

escolar.

Para compreender a escola em sua complexidade e diversidade

cultural, é preciso compreender a maneira como os indivíduos

constroem suas relações cotidianas neste lugar. É fundamental

considerar seus biopoderes, ou seja suas formas de criar outras

ordens para estarem uns com os outros neste espaço.

Um dos problemas mais frequentes de muitas escolas tem sido

ocontroledisciplinardosseusestudantes.Brigas,situaçõesextremas

de violência, drogatização, desrespeito às regras de ocupação de

espaço são alguns dos principais dilemas dos contextos escolares

na atualidade. A indisciplina é tratada pelos regimentos escolares de

forma rígida: adverte-se, repreende-se, suspende-se e expulsa-se.

Ao se deparar com uma situação extrema, que induz ao processo

de expulsão, a escola entra em choque com o Estatuto da Criança e

do Adolescente, que indefere tal procedimento. O que fazer em tal

situação? Consideremos ainda que muitos estudantes indisciplinados

nemsemprecriamsituaçõesextremasnodescumprimentoderegras,

apenas cometem pequenas fraudes contra a disciplina. Tais alunos

passam a frequentar o Serviço de Orientação Pedagógica, às vezes a

sala do diretor e, um dia, acabam se acostumando com a pecha de

seremproblemáticos e incorrigíveis.Que fazer em situações como

essas?Taisquestõesnosindicamanecessidadedenãodissociaras

normas estabelecidas no papel das normas construídas no cotidiano

nas nossas escolas.

Para se chegar a tal compreensão, é fundamental observar e

participar mais de perto das inúmeras vivências da escola. Ver mais.

Ouvir mais. Conviver mais. É preciso apreender e aprender com essas

formas de poder que estão ao nosso alcance, mas que negamos por

reconhecermos, apenas, a dura e fria força da lei.

78 Módulo 2 I Volume 1 EAD

O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolaresAntropologia e Educação

ATIVIDADE

• Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las.

• A partir das suas experiências com a escola descreva formas de ocupação do

tempo e do espaço presentes no cotidiano escolar.

• aorganizaçãodohoráriodaescolaésempreproblemática,exigeoesforçode

adaptarostemposescolaresàscondiçõesdevidadosindivíduos.Desenvolvaum

textoemquevocêbuscaaprofundarestareflexão.

LEITURA COMPLEMENTAR

Roberto Sidnei Macedo é professor da Faculdade de Educação da UFBA, coordenador do FORMACCE, Doutor em Ciências da Educação pela Universidade de Paris, Saint-Dénis, com pós-doutorado em Currículo e Formação pela Universidade de Fribourg-Suiça. Possui vários livros e artigos publicados em Currículo eFormação.

A entrevista que se segue foi concedida com exclusividade para a elaboração desta aula. Cada questão busca articular os principais conceitos trabalhados nesta unidade e nas unidades anteriores, com a elaboração teórica de Macedo.

O entrevistado desenvolveu o conceito de etnopesquisa crítica e multirreferencialnaeducaçãoapartirdeinspiraçõesantropológicas,filosóficas,históricasesociológicas.Oseunomefiguranosdiasdehojeentreosmaioresnomes dos estudos sobre currículo no Brasil.

Entrevista a Roberto Sidnei Macedo

1. Qual a importância da Antropologia da Educação para os estudos sobre

currículo?

Em várias e importantes publicações, pesquisas e práticas envolvendo

problemáticas curriculares.Critica-seahistórica formaabstracionistade se

conceber componentes e dispositivos curriculares. Priorizam-se os modelos

teóricos hegemônicos, vindos dos centros de produção do conhecimento, que,

em geral, advogam para si a capacidade de dizer como devemos compreender o

mundo. Extremamente autocentrados, esses conhecimentos carregam consigo

umpoderquasesempre“escondido”, levandoemcontaoquesedenomina

nocampocurriculardecurrículooculto,deconfigurarvisõesdemundo,de

homem e de educação, sem que as pessoas tenham a oportunidade de discutir

e se posicionar, definindo situações curriculares. Hoje, em grandemedida,

não temos dúvida, que o currículo é um complexo dispositivo educacional

culturalmente configurado, bem como um (in)tenso produtor de culturas.

Podemosverificar,porexemplo,comoocampodos“estudosculturais”esua

provocante compreensão da dinâmica cultural, aparece na educação pelas

mãos dos nossosmais refinados curriculistas comoAntônio FlávioMoreira,

Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-Neto, Elizabeth Macedo, Alice Casimiro

79PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o8

Lopes, Sandra Corazza, entre outros. É neste âmago, mas não só, que da

nossa perspectiva o currículo pode ser analisado hoje, como um território de

lutaporsignificados,assumindo,nummundoculturalmenteemtranse,uma

importânciaformativanuncaverificadanahistóriadaeducaçãosistematizada.

No seio do currículo a cultura é uma pauta política fundante. Nestes termos,

da nossa perspectiva, ou o currículo acolhe a multirreferencialidade como

política curricular ou ele será borrado, rasurado, queiramos ou não. É aqui

que os estudos antropológicos assumem uma centralidade formativa para mim

ineliminável.Atéporqueosespaços/temposformativosjánãopodem,desde

as suas concepções, desprezar a heterogeneidade como condição humana.

Os“novos”héteros chegam, não pedem mais licença, são protagonistas que

querem alterar, querem ser autores e co-autores de si, autorizam-se portanto,

não aceitando a reprodução colonialista como natural. Descolonizar o currículo

e conquistar a formação é a questão importante dos nossos tempos. Em sendo

essa uma realidade que não podemos mais negar, os atos de currículo se

deslocam e acabam nos mostrando a emergência da cultura como uma força

queconfigura,comoumarkhédoscenárioseducacionais,bemcomoumapauta

políticadecisivaparaosideáriosdemocratizantesdaeducação.

2. Nas suas investigações sobre práticas curriculares o senhor indica uma

etnopesquisa crítica e multi referencial, qual a relevância dessa proposta para a

compreensão do cotidiano como dimensão viva do currículo?

Tomando a etnometodologia, desenvolvida como uma teoria do social por

Garfinkel, como uma inspiraçãomaior, bem como levando em consideração

que currículo é um artefato/dispositivo socialmente construído por homens

e mulheres datados, situados e intencionados, compreendo que só há

possibilidade de compreendermos o processo curricular acontecendo, in situ,

em ato, se conseguirmos encontrar os atos de currículo na sua emergência

cotidiana. Não estamos desconhecendo as estruturas curriculares instituídas

e seu poder de reprodução, entretanto, até mesmo o fenômeno que se

reproduz se realiza por atos instituintes. Ademais, para a etnopesquisa, não

existepossibilidadedecompreensãodasnossasaçõessenãoindexalizarmos

essasaçõesàsbaciassemânticasemqueelasemergem,bemcomosenão

estabelecermos uma conversação compreensiva com os atores sociais e

seus etnométodos curriculares. É nestes termos que a etnopesquisa tem

umapossibilidade significativa de desnaturalizar osatos de currículo e suas

realizações.Éaquiquesuapotênciapolíticaapontaparanovoshorizontesde

estudos, principalmente quando se leva em consideração a importância que os

“novos”héterosatribuemhojeàsquestõescurricularesvinculadosà relação

com o conhecimento eleito como formativo. Atravessar esta fronteira é o nosso

desafioemtermosdeproduçãodeconhecimentonocampodaetnopesquisa

críticaedocurrículo,que,inclusive,játemumtítuloprovisório:“Etnopesquisa

Crítica e Ações Afirmativas”. Trabalhar com o conhecimento eleito como

formativo da perspectiva da etnopesquisa crítica e vislumbrar uma formação

afirmativaéoobjetivodestaobraqueaindaestáacaminho.

3. Osenhorconcordaqueasdefiniçõesdetempoeespaçoescolaressãoconstruídas

pelos biopoderes presentes na vida institucional das escolas?

80 Módulo 2 I Volume 1 EAD

O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolaresAntropologia e Educação

De alguma forma a ideia de atos de currículo é enriquecida pelo conteúdo

que sua questão apresenta.QuandoGaston Pineau vemnos falar de um

bioquestionamento em crescimento, que reflete a maneira pela qual as

biotecas humanas e sua irredutível heterogeneidade começam a assumir,

uma certa, centralidade na compreensão das realidades que construímos.

“Pequenas”históriasimplicadas,narradasporatoressociais,queconstituem

seus saberes no dia a dia da vida, vêm demonstrando que explicitam melhor

um conjunto de realidades antes dissolvidas pelas e nas metanarrativas,

pela grande história, que, não raro, contavam a história e falavam da cultura

do vencedor. As consequências políticas dessa última opção foram terríveis

para a formação do povo brasileiro. Hoje, a cultura da escola, que não pode

ser confundida com a cultura escolar, instituída pelas pessoas concretas

queaconstituiéindispensávelparacompreendermosdeformarefinadade

como tempos e espaços curriculares se contextualizam, descontextualizam

e recontextualizam de forma única e, portanto singular. Para um curriculista

comprometido com o fazer curricular cotidiano isso é muito caro.

4. Recentementeosenhor lançouumaobraemquerefletesobreosAtosde

Currículo.Qualaimportânciadesteconceitoparaosestudosnessaárea?

Em alguns dos meus devaneios curriculares, algo me chamava a

atenção: como radicalizar em termos conceituais a processualidade

interativa e instituinte do currículo, no sentido de dar-lhe mais abertura

político-democrática.Comotornarocurrículoalgodoâmbitodaágora nas

nossas polis. Esse conceito caminhou seus caminhos, e, aos poucos, foi me

demonstrando a capacidade que tem de esgarçar o tecido do pensamento

curricular.Claroquenossasinfluênciasligadasàsteoriasacionalistasderam

base a esta inspiração conceitual, mas a experiência concreta tratando com

concepções,mudançaseacríticadaspráticas,possibilitoumaisrobustezao

conceito. Em realidade nossa intenção é de dizer de forma mais interativa e

construcionistapossível,viaesteconceito,queocurrículoéuma“tradição

inventada”, como nos revela Goodson. É um artefato concebido por homens

e mulheres intencionados e orientados por determinada concepção de

formação, para todos os fins práticos. Essa explicitação onde a formação

assume centralidade elucidativa vem assumindo no meu pensamento uma

importância cada vez maior, no seguinte sentido: como problematizar

o currículo, levando em conta os atos de currículo e seus etnométodos,

tomando a complexidade humana e pedagógica do fenômeno formação,

que, fundamentalmente é do âmbito da experiência. Compreender os atos

de currículo é compreender como se instituem os etnométodos daqueles que

concebem, organizam, implementam, institucionalizam e avaliam currículos,

bem como direta ou indiretamente interferem no seu dinamismo e nas suas

possibilidades formativas.

5. Sabemos que boa parte das tradições escolares dissocia as experiências

de vida dos indivíduos das experiências de ensino e aprendizagem na vida

escolar. O que o senhor pensa a respeito desta questão?

As instituições especializadas em educação adoram abstracionismos,

adoram instituir impérios teóricos que se especializaram em desprezar as

81PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o8

experiências que não foram produzidas pelo ethos e pela ética das experiências

produzidas fora da ciência e da academia. Vejo isso como arrogância e

imoralidade, face aos epistemicídios que produzem, para citar Boaventura

deSouzaSantos.Avidaéumespetáculodeaprendizagensqueacontecea

partirdosváriosmundosexperienciaisqueconstituímosem interação.Mas

o prejuízo que constituímos desprezando os diversos mundos culturais e as

aprendizagens que constituem, fazem com que sejam criadas verdadeiras

esquizofrenias formativas, onde se imagina que o mundo do trabalho, o mundo

das experiências familiares, das próprias experiências escolares, são mundos

queapenasdevemserpreparadospararefletiremasfamigeradasformasde

aplicar o conhecimento especializado e requentado, bem como suas formas de

controle. Eis aqui o império da disciplina e suas lógicas seculares. Penso que,

emváriosmomentos,adisciplinaeoseuethos se transformam num delírio,

quando se avaliam como a última fronteira da verdade, ou mais alucinatório

ainda,averdadeemsi.Saberessãoconstruçõesantropossociaiscomplexas,

que inclui o não-saber e, muitas vezes, o não-construído.

Faz-senecessárioperguntardeformaproblematizanteporquesemprea

disciplina veio e vem primeiro? Porque a experiência não-disciplinar é colocada

nolugardoadorno,da“ponte”,doexemploqueilustra?Asrespostasaessas

perguntas nos abririam para uma história de colonização e violência ainda

hoje um tanto quanto em opacidade. Para o interesse de muitos!

6- AIntercríticaéocaminhoparaoestabelecimentodediálogosentresaberese

práticaspedagógicosesaberesepráticassociais?

Gratopelasapiênciacomquevocêorganizousuasquestõesparamim.Eles

se entretecem de forma cuidadosa em termos de argumento compreensivo.

Tomoacríticaaquicomoumacategoriafilosófica,queacolheainterpretação

que deseja explicitar, a demanda da falta, a vontade de questionamento, a

compreensão e o trabalho com contradição. Vejo-a como uma possibilidade

para todos, indistintamente, desde quando as condições sejam criadas.

Vejo-atambémcomoirredutível,pormaisquepossamvirdeidentificações

constituídas por segmentos sociais em processos interativos de entendimento.

O que não podemos admitir é que a crítica como explicitamos aqui seja

propriedade privada de alguém, ou condição única de um grupo, nem possa

se dissolver numa só perspectiva. É nestes termos que a crítica faz parte

também de uma política da diferença, ou seja, a intercriticidade implica numa

conversação onde a crítica não pode ser compreendida por analogias, formas

colonizadas de interpretação ou coisas como tal, mas como um encontro de

modos diferenciados de compreender o mundo, que, nas suas singularidades,

contribuem para essa compreensão, com possibilidades de interfecundação

de saberes. Nestes termos saberes escolares ou acadêmicos e saberes da

“prática”,semqualquertentativadeidentificarpurismonestessaberes,têm,

para nós, o mesmo status em termos de formação, são saberes de possibilidades

formativas, sem qualquer pretensão hierarquizante. São especificidades

quedevemser tratadas com refinado cuidadopelo senso crítico que tenta

qualificaraformação.Éassimquegostodepensarcurrículocomoágora. O

lugarondeasdiferençasseexpõemeseencontramnoesforçode,pelassuas

singularidades, produzirem o bem comum social via educação. Pensamos,

portanto, se existe verdade curricular é porque é discutível, intercriticamente.

82 Módulo 2 I Volume 1 EAD

O cotidiano como biopolítica de tempos e espaços escolaresAntropologia e Educação

RESUMINDO

ATIVIDADE

Após a leitura desta entrevista procure conhecer a história do currículo da escola

em que você trabalha. Utilize o recurso da entrevista à equipe pedagógica da escola

e consulte os principais documentos de referência da política curricular da instituição

em que você trabalha. Após a realização de tal levantamento produza um texto síntese

contendoassuasreflexõesacercadomaterialcoletado.

O cotidiano escolar é atravessado por dinâmicas de construção e

reconstruçãoculturaldocurrículo.Atravésdas relaçõesdepoder instituídas

entre os participantes deste cotidiano, são estabelecidas significações dos

tempos e espaços escolares. Algumas perspectivas teóricas da Antropologia

contemporânea buscam compreender os biopoderes, inerentes às ações

humanas, através dos discursos que instituem as práticas culturais. Deste

pontodevistaosconceitosquedefinemocurrículo,assimcomoaspráticas

de convivência intra-escolar, são compreendidos com biopolíticas de tempos e

espaços institucionais da escola.

LEITURA RECOMENDADA

Assista ao filme Os Incompreendidos, de François Truffaut, buscando refletir sobre asquestões apresentadas nesta seção. Conheça as ideias da escola nômade acessando:WWW.escolanomade.org.br, sobretudo no que diz respeito à proposta de autogestão do conhecimento. Leia o livro de David Gilmour intitulado: O Clube do Filme, trata-se de uma históriarealdatentativadeumpaiemofereceroutrasformasdeeducaçãodoprópriofilhoqueinconformadocomaspráticasdeensinodasuaescoladesistedeestudar.

83PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o9

Os saberes produzidos nas escolas precisam dialogar com

os saberes produzidos fora da escola. É no meio da vida social

que os indivíduos experimentam a relação com o conhecimento,

transformando suas habilidades intelectuais e conteúdos acumulados

acerca dos mais variados temas, em atitudes concretas de interação

com outras pessoas.

Quandoaprendemossobredeterminadosassuntosquecompõe

o currículo escolar e não encontramos formas de interagir com este

assunto fora do ambiente escolar, logo o esquecemos. Esquecemos o

conteúdo e a forma de lidar com o conteúdo do assunto apreendido.

Vamos ao exemplo de uma tabela periódica, assunto recorrente nas

aulas de ciências e química. Fica difícil guardar na memória todos os

elementos químicos presentes na tabela e suas respectivas referências

quantitativasparaaaprendizagemsobreasdimensõesatômicasde

cadaelemento.Aoassociarmostaiselementoscomsituaçõesdevida

experimentadas socialmente, a aprendizagem da atomística assume

outrosignificadoparanós.

SEÇÃO IXSABERES SOCIAIS E SABERES PEDAGÓGICOS

84 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Saberes sociais e saberes pedagógicosAntropologia e Educação

Lembro-me de uma aula de biologia em que a professora

tentavaexplicarosignificadodasbactériassaprófitas(consumidoras

de matéria orgânica). Para digerir a matéria orgânica, tais bactérias

produzem uma enzima que, por sua vez, produz luz. No escuro,

no interiordeumcemitério,porexemplo,podemos identificar tais

bactérias, fazendo a digestão do seu alimento. Segundo a professora,

qualquer pessoa que desconhecesse tal dinâmica iria acreditar na

existência de fantasmas ou assombrações luminosas. Guardo este

exemplo na minha memória, porque foi uma das muitas experiências

com o saber escolar que me fez gostar da biologia, apesar de ter

seguido outro ramo das ciências modernas.

A separação entre saberes sociais e saberes escolares foi um

dosartifíciosdaeducaçãocientífica,namodernidade,queprejudicou,

de um lado, a compreensão de diversas formas não científicas de

produção autêntica do conhecimento. Tal separação produziu, ainda,

currículosescolaresemquearelaçãocomosabercientíficoignoraa

relação com outros saberes.

Em seus estudos sobre a aprendizagem da matemática,

D’Ambrosio (2002) elabora uma contundente crítica a esta separação

entre ciência e vida comum e reivindica o diálogo entre saberes

escolares e saberes sociais como uma estratégia de aproximação

daeducaçãocientíficadavidasocial,noseusentidomaisamploe

profundo. O autor diz o seguinte: “O currículo deve refletir o que

estáacontecendonasociedade[...]oproblema-chavenadinâmica

curricular é relacionar o momento social, o tempo e o lugar, na forma de

objetivos, conteúdos e métodos, de forma integrada...” (D’AMBROSIO,

2002, p.34). Tal argumento sustenta-se no reconhecimento de que

tanto a matemática quanto todas as demais ciências aprendidas

na escola só conseguirão transformar contextos sociais quando

conseguirem efetivamente encontrarem lugar na vida cotidiana dos

indivíduos.

Hápessoasque,apesardenãoteremfrequentadoaescola,

conseguem lidar com os conhecimentos matemáticos tais como a

contagem,medições,cálculosdeproporção,entreoutros.Noentanto,

quando passam a frequentar a escola sequer são consultados sobre

os saberes que construíram ao longo de suas vidas.

A Antropologia, ao longo de sua história como ciência humana,

tem demonstrado como diferentes povos produzem diferentes formas

de organização social e diferentes conhecimentos. Servem de exemplo

asexpressõesgeométricasdosdesenhostípicosdeetniasafricanas,

americanas ou australianas (só para citar alguns exemplos). Povos

espalhadospelomundointeirodesenvolveramcálculosparaaprática

85PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o9

da caça, da colheita ou da pesca. Desenvolveram, ainda, diferentes

expressões de arquitetura para a ocupação dos espaços de suas

aldeias. Enfim,atravésdo trabalhodos antropólogosao longodas

últimas décadas, podemos compreender outras formas de ensinar e

aprender com a ciência.

Énecessárioressaltarqueaeducação,sejaelaescolarounão

escolar, exige pensar sociedade e cultura como processo e produto

da passagem da vida individual para a vida coletiva. À medida que

avançamos na relação com o conhecimento, aprofundamos nossas

relaçõesunscomosoutros.

Ao considerarmos a diversidade cultural como uma dimensão

articuladora de diferenças culturais, capaz de ampliar nossas

referências de ensino e aprendizagem, consideramos, também, a

transformação dos saberes com os quais confeccionamos nossas

práticaspedagógicas.

É importante que objetivos, conteúdos, métodos e contextos

de ensino e aprendizagem, presentes nos currículos escolares,

sejam mediados por outras expressões de saberes presentes na

vidaemsociedade.Alémderessaltarovalordeoutrastradiçõesde

pensamento,estamediaçãovalorizaráaciênciacomoexpressãoda

vida. O papel dos saberes pedagógicos será ampliar as condições

de compreensão da ciência, dentro e fora dela mesma. Em última

análise,istopoderágerarumacompreensãodaimportânciaprofunda

do papel da escola para a formação humana em seu sentido mais

amplo.

ATIVIDADE

• Organize suas dúvidas sob a forma de perguntas e busque respondê-las.

• Citeexemplosdeinter-relaçõesentresaberessociaisesaberespedagógicos.

• Procure descrever a experiência de aprendizagem de um conteúdo ou habilidade

escolar que se deu fora da escola. Tente descobrir tal experiência em sua

comunidade inspirada(o) na seguinte afirmação: Pessoas não alfabetizadas

desenvolvem relações com a leitura e a escrita, conseguem distinguir marcas

de produtos, linhas de ônibus urbanos e decifrar os calendários expostos nas

cozinhas de suas casas.

• Elabore um texto em que você expressa sua própria compreensão da relação

entre saberes sociais e saberes pedagógicos.

86 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Saberes sociais e saberes pedagógicosAntropologia e Educação

LEITURA COMPLEMENTAR

Durante a década de 90 do século passado, a Secretaria de Educação do Município de Porto Alegre produziu inúmeras mudanças no currículo do Serviço deEducaçãodeJovenseAdultos(SEJA).Duasdasprincipaisalterações foram:a) a mudança do conceito de seriação por Totalidades do Conhecimento; b) a organização do conhecimento a partir da construção de habilidades intelectuais. Alémdetrabalharemcomosconteúdosdasáreasdeconhecimentohistoricamenteconstruídas no processo de escolarização, os estudantes produzem textos e interagem com o conhecimento a partir de suas experiências vividas. Os textos dos estudantes foram organizados em publicações intituladasCadernos do Trabalhador. Nessas publicações, constam: o texto produzido, aescola em que foi produzido, a professora ou o professor que orientou o trabalho e o tema utilizado para desenvolver o trabalho. Vejamos a seguir um texto publicado no volume sétimo do Caderno do Trabalhador.

A Escola e a disciplina

“Os alunos da nossa escola mostram-se indecisos e dividem-se em suasrespostas. Mesmo que eles tenham respondido as perguntas que lhes foram citadas, nem sempre agem da maneira que relataram em relação a disciplina e ao agir, sabe-se que não é assim que funciona. Osprofessoressedividemnasopiniõessobreadisciplina,mostraramcomsuas respostas que cada aluno é um caso a se resolver, tomar como caso sem solução não seria correto. Não depende das suas atitudes, que certamente cada um deles tomaria e talvez resolvesse, mas tem que esperar a aprovação dos superiores. A direção mostrou dificuldades que tem para resolver o caso do nãocumprimentodasdisciplinas,conservaçãodaescolaeagressãoentrealunos,jáquedeclarouquealeiosproíbetomardecisõesenérgicas. Pensoquecomessapesquisaposso refletir commaiscertezasobreoqueacontece em nossa escola. Vejo que falta maior interesse tanto da direção e, principalmentedosalunosemmelhorarascondiçõesdaescola. Aprendi que quando os alunos não conservam a higiene dos banheiros e sala de aula, os prejudicados são eles próprios, e não estão atingindo diretamente a escola. Concordo que mais segurança na entrada da escola resolveria o problema de entradadepenetras,avendadedrogaseconsumodentrodopátio.Discordoque as regras das escolas particulares são obedecidas por ser uma empresa, acho que é uma questão de alunos conscientes e bem orientados pelos pais e pela própria direção da escola.”

Marta Margarete da Silva Espírito Santo, 35 anos

A autora do texto era estudante da Totalidade 3 do SEJA. Esta totalidade

correspondeaoprocessodealfabetizaçãoeprevêaconstruçãodassistematizações

87PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o9RESUMINDO

LEITURA RECOMENDADA

Contextualizarpráticasdeensinoeaprendizagem.Esteéodesafiodos

educadores que buscam operar sínteses entre as experiências de vida e as

experiências de escolarização dos seus educandos. Para cumprir tal tarefa é

precisocriarsituaçõesdediálogosentresaberessocaisesaberespedagógicos.

TaltarefasupõedapartedaAntropologia,oreconhecimentodasculturasdos

outros como legítimas para a produção do conhecimento escolar. Da parte da

Educaçãopressupõem-sereconstruçõesdeposturaspedagógicasemqueos

educadores aprendem com o universo cultural dos seus educandos, novas

formas de ensinar.

Conheça o documentário Escola e Inclusão Social disponível no site do Ministério da Educação.Paraacessá-loentreolinkDomínioPúblicoesolicitedocumentáriosdisponíveisna forma de vídeo. Conheça ainda os trabalhos desenvolvidos pelo Observatório de Favelas, no Rio de Janeiro, o site é WWW.observatoriodefavelas.org.br.

dos códigos escritos. Como se pode ver através do seu texto, além do domínio daescrita,aautoraconseguerealizarumaanálisecríticanarelaçãoentreescolae disciplina, questionando os modelos de autoridade vivenciados na sua escola. O texto foi produzido na Escola Municipal “Ildo Meneghetti” e orientado pelaprofessora Angelita Jussara Cruz Silva.

88 Módulo 2 I Volume 1 EAD

Saberes sociais e saberes pedagógicosAntropologia e Educação

OsavançosconceituaisemetodológicosnaAntropologiaproduzemconcepções

de mundo marcadas pelas diferenças e diversidade cultural. Tais avanços

contribuem para que o campo teórico e metodológico da Educação transforme

tambémsuasconcepçõesbásicas.Nodebateatualoconceitodecurrículotem

sidoquestionadoemsuasambiçõesuniversaisegeneralizantesdeeducação

escolar.

Ao buscar sistematizar os processos educativos para a instituição

dos sistemas escolares, pensadores ocidentais inspiraram-se no conceito de

currículo para formular práticas disciplinares da organização dos tempos e

espaçosescolares.Oconceitodecurrículoformalpassouadefinirparâmetros

teóricos para o estabelecimento de regras, valores, saberes e práticas

pedagógicas.Noentanto,dadaadiversidadeculturaldasinstituiçõesemque

esteconceitoéaplicado,têm-seobservadoassuaslimitaçõesparaenglobar

osprocessosculturaisquecompõemoscotidianosescolares.Sobaóticadas

vivências cotidianas na escola emerge o conceito de currículo real, aquele

queseproduzatravésdasinteraçõesdosindivíduosqueparticipamdavida

escolar.

Entre o currículo formal e o currículo real existem distâncias. No

exercíciodacríticaàformarígidacomoaspráticascurricularesbuscameliminar

asespecificidadesculturaispresentesnasdinâmicasescolares,emnomeda

universalidade dos processos educativos, vários intelectuais buscam definir

o conceito de currículo oculto. As regras implícitas às ações dos currículos

formaisimpõemformasautocráticasdegestãodoscotidianosescolares.

Compreendendo as relações cotidianas nas escolas como relações

de poder, bem como a exigência de trocas simbólicas entre saberes sociais

e saberes pedagógicos na escola, a discussão atual sobre currículo busca

incorporar,nanoçãodediversidadecultural,novospostuladosparapráticas

curriculares comprometidas com a participação plural dos indivíduos que

ocupamoscenáriosescolares.

Antropologia e Educação constituem campos de saberes cooperantes

naproposiçãodenovasbasesparaa reflexão sobrepráticas curricularese

diversidade cultural.

RESUMINDO A UNIDADE III

89PedagogiaUESC

Uni

dade

III

Seçã

o9

RE

FE

NC

IAS

CANDAU, Vera Maria (Org.). Sociedade, educação e culturas.

Petrópolis: Vozes, 2002.

D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática: um enfoque antropológico

da matemática e do ensino. In: Idéias Matemáticas de Povos

Culturalmente

Distintos.SãoPaulo:GlobalEditora/FAPESP,2002.

DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e

cultura. Belo Horizontes: UFMG, 1999.

FORQUIN, Jean Claude (Org.). Sociologia da Educação. Trad. de

Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1995.

FRAGO, Antonio Viñao; ESCOLANO, Agustín. Currículo, Espaço e

Subjetividade. Trad. de Alfredo Veiga Neto. Rio de Janeiro, 1998.

MACEDO, Roberto Sidney. A etnopesquisa crítica e multirreferencial

nas ciências humanas e na educação. Salvador: EDUFBA, 2000.

RABINOW, Paul. Antropologia da Razão.Trad. de João Guilherme

Biehl.RiodeJaneiro:RelumeDumará,2002.

REVISTA NOVA ESCOLA. Parâmetros Curriculares Nacionais: fáceis

de entender. Edição Especial. São Paulo: 1998.

SANTO, Marta Margarete da Silva Espírito. A escola e a disciplina. In:

Palavra de Trabalhador.v.7.SEJA/MOVA.PortoAlegre:Secretaria

Municipal de Educação, 1998.

SANTOS, Lucíola L. de C. P. História das disciplinas escolares: outras

perspectivasdeanálise.In:Educação e Realidade, v. 20, n. 2. Porto

Alegre: EDUFRGS, 1995.

________________________________________________________________ ___________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

Suas anotações