a importÂncia das fontes nas narrativas historiogrÁficas.pdf

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  • A IMPORTNCIA DAS FONTES NAS NARRATIVAS HISTORIOGRFICAS

    Cibele Beirith Figueiredo Freitas (PUCRS)

    Este ensaio tem por objetivo traar algumas idias a respeito das fontes na

    construo das narrativas historiogrficas. Os autores tericos que fundamentaro os

    argumentos para este trabalho so: Peter Burke, Michel de Certeau e Paul Ricouer.

    No sculo XX, houve uma mudana de perspectiva da histria tradicional para a

    nova histria. Peter Burke, na sua obra A escrita da histria: novas perspectivas, trata

    da nova histria, cujas ideias se iniciaram na Frana, com a revista Annales: conomies,

    societs, civilisations, vista como uma histria no mais totalizante e globalizada.

    Ao contrrio da histria dita tradicional, do sculo XIX, vista de cima, cujo objetivo era

    narrar os grandes acontecimentos que os grandes homens realizavam, a nova

    perspectiva histrica leva em considerao a subjetividade, a histria menor, vista de

    baixo, sob o ponto de vista dos marginais1.

    Nessa perspectiva, o autor traz para sua discusso a questo das fontes e aponta

    para os problemas de mtodo que elas suscitam nos diversos tipos de documentos. As

    fontes documentais escritas, como, por exemplo, os inventrios e testamentos, so as

    mais atrativas aos pesquisadores devido ao fato de portarem mais dados passveis de

    anlise por mtodos quantitativos. Esse tipo de pesquisa sempre foi realizada, mas a sua

    propagao ocorreu nos anos de 1970 e 1980 para o campo dos estudos historiogrficos.

    O auxlio do computador auxiliou muito na propagao desses estudos, pois possibilitou

    a criao de bancos de dados que podem ser explorados das mais variadas formas por

    mtodos quantitativos.

    Apesar do computador ser um aliado a essas pesquisas quantitativas, preciso

    ter cuidado com a utilizao dos dados, bem como com os textos escritos, uma vez que

    eles podem ser alterados ou falsificados. Segundo Burke,

    os dados computadorizados no so amigveis, mas o mesmo se aplica a muitos manuscritos, escritos em caligrafias quase ilegveis ou a ponto de desintegrao. O necessrio uma ajuda na discriminao, na descoberta dos tipos de estatstica mais confiveis, em que extenso utiliz-los e para que propsitos.2

    1 No sentido do texto, marginais so os sujeitos que ficaram margem da sociedade.

    2 BURKE, Peter. A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: Unesp, 1992, p. 30.

    106

  • A partir da problematizao acerca dos diversos tipos de fontes verifica-se que o

    autor amplia as possibilidades de documentos e artefatos que podem ser investigadas e

    inquiridas pelos historiadores. O resultado dessa discusso aponta para o aumento

    significativo da diversidade de fontes que pode servir de estudo aos pesquisadores.

    Na cultura popular, os interrogatrios e julgamentos so fontes ricas de pesquisa,

    mas preciso fazer uma leitura crtica desses documentos. Na literatura oral, como no

    caso das entrevistas, preciso verificar qual a influncia do historiador-entrevistador

    sobre o entrevistado e do contexto da entrevista sobre o depoimento da testemunha.

    Outras fontes so as imagens, como as fotografias, que muitas vezes no

    condizem com o retrato fiel da realidade objetiva, pois o fotgrafo seleciona a imagem

    que mais condiz com os seus interesses, crenas e valores. Igualmente como os

    historiadores, os fotgrafos no refletem a realidade, mas a representam de acordo com

    os seus objetivos. Esse mesmo problema ocorre com as pinturas ou imagens pictricas,

    cujos critrios de interpretao so difceis de serem formulados. Muitos historiadores

    utilizam as imagens de pinturas em seu favor para evidenciar atitudes religiosas ou

    polticas.

    Outro autor que aborda a questo das fontes na escrita de narrativas histricas

    Michel de Certeau. Na sua obra A escrita da histria3, ele trata da operao

    historiogrfica, examina como os historiadores tratam a historiografia e quais so os

    aspectos que devem ser levado em conta na escrita do texto. Para ele, fazer histria

    uma prtica que deve ser realizada pela tcnica, na qual o historiador transforma a

    matria prima, ou seja, a informao primria, em informao secundria. Os

    documentos primrios, depositados nos arquivos culturais, ao serem analisados, passam

    a ser parte da histria. Nesse contexto, o historiador dever primeiramente estabelecer

    as fontes, separar, agrupar e reordenar esses documentos de forma coerente, dando um

    novo sentido ao conjunto.

    Nesse novo arranjo, a escolha das fontes suscita, na construo da narrativa

    histrica, um ato fundador que ordenar o restante dos fatos a serem narrados. Isso

    significa que algum documento (composies, imagens, objetos, artefatos, testamentos)

    dever sair da penumbra e passar a fazer sentido num novo contexto.

    3 CERTEAU, Michel de. A escrita da histria.Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 1982.

    107

  • A pesquisa deve ter um carter cientfico, com um objeto, uma hiptese sobre

    esse objeto e um recorte. Quando menor o recorte, mais cientfico ser o trabalho

    historiogrfico. So as fontes que garantem a cientificidade da pesquisa, conforme

    afirma Certeau:

    Um trabalho cientfico quando opera uma redistribuio do espao e consiste, primordialmente, em se dar um lugar, pelo

    estabelecimento das fontes quer dizer, por uma ao instauradora e por tcnicas transformadoras.4

    Cada trabalho historiogrfico estabelece o seu lugar numa determinada condio

    de produo, num meio, e resulta num deslocamento, com questes e respostas novas. O

    fato dito real e verdadeiro multiplica-se numa narrativa literria que ultrapassa a

    histria.

    Nesse contexto, ao observar as antigas bibliotecas, verifica-se que a sua funo

    inicial era de trazer a erudio para um sistema de pesquisa. Atualmente, o

    estabelecimento das fontes apresenta uma nova estrutura das relaes razo e/ou real e

    cultura e/ou natureza, reordenando a redistribuio do conhecimento cientfico em seus

    diversos ramos do conhecimento.

    Outro autor que aborda o papel das fontes Paul Ricouer. Na sua obra Tempo e

    narrativa5, ele traz um elemento importante para a discusso da escrita historiogrfica:

    o tempo. Para o autor, a memria coletiva s pode existir a partir da existncia do

    calendrio, o qual organiza o tempo cronolgico, que est entre o tempo vivido e o

    tempo csmico. O calendrio constitui-se como um tempo socializado, dividido

    conologicamente, com as seguintes caractersticas:

    a) organizado a partir de um acontecimento fundador, um momento axial a partir do

    qual os demais acontecimentos sero datados;

    b) a partir de algum eixo de referncia, ser possvel percorrer o tempo nas duas

    direes: do passado para o futuro ou do futuro para o passado;

    c) as unidades de medidas para contar o tempo sero estabelecidas por um conjunto de

    denominaes (auxiliadas pela astronomia), que marcam os intervalos constantes, tais

    como o dia, o ano, o ms.

    4 CERTEAU, Michel de. A escrita da histria.Traduo de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:

    Forense Universitria, 1982, p. 83. 5 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo III. Traduo Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Papirus,

    1997.

    108

  • Assim, o tempo cronolgico segmentado numa direo que relaciona o antes e

    o depois, o passado e o futuro, mas ele s tem sentido se for referido sob a noo do

    presente, aqui e agora, a partir do qual se constri conhecimento novo.

    Nessa perspectiva, o rastro constitui um novo conector entre as perspectivas

    sobre o tempo que o pensamento especulativo dissocia sob o aguilho da

    fenomenologia6. O rastro seria o requisito para a construo da narrativa

    historiogrfica, uma vez que os documentos que compem os arquivos (testemunhos,

    inventrios) auxiliam na construo desse rastro.

    Os arquivos possuem trs caractersticas essenciais: so conjuntos organizados

    de documentos que resultam numa atividade institucional ou profissional, so recebidos

    ou produzidos por entidades mantenedoras que tm o objetivo de conservar e preservar

    os documentos que portam parte da histria e constituem prova material dos

    acontecimentos, ou seja, so meios comprobatrios dos fatos. A arquivao, portanto,

    tem carter institucional, cujo objetivo conservar, preservar e divulgar a memria.

    Dessa forma, a noo de documento d a ideia de apoio e garantia, de prova

    material de uma acontecimento ou fato que levado histria narrativa ou oral que

    constitui um rastro. Qualquer rastro deixado no passado pode se transformar numa fonte

    de pesquisa para o historiador. O documento como instrumento de memria est ligado

    ao rastro, ou seja, o registro encontrado no momento atual, como vestgio ou marca

    que permanece no tempo.

    O rastro consiste em seguir, remontar e decifrar o tempo num determinado

    espao. Ele no um signo como qualquer outro, mas um indcio que sugere uma

    passagem. Seu significado diferente dos outros signos porque ele significa fora da

    inteno dos outros signos, no tem inteno.

    O rastro , assim, um dos instrumentos mais enigmticos pelos quais a narrativa histrica refigura o tempo. Ela o refigura construindo a juno que efetua o recobrimento do existencial e do

    emprico na significncia do rastro. Sem dvida, o historiador, enquanto tal, no sabe o que faz ao construir signos como rastros.7

    6 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo III. Traduo Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Papirus,

    1997, p. 196. 7 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo III. Traduo Roberto Leal Ferreira. So Paulo: Papirus,

    1997, p. 209.

    109

  • O rastro serve como instrumento de construo da narrativa historiogrfica. O

    historiador, quando entra em contato com os documentos arquivsticos, ou seja, com as

    fontes historiogrficas, est procura das pistas deixadas nesses documentos num

    determinado tempo e espao passado.

    A partir das ideias apresentadas, verifica-se que as pesquisas histricas no

    podem ser realizadas sem considerar os vestgios deixados pelo homem ao longo da

    histria. Burke abre um leque de diversidade de fontes que podem ser utilizadas para a

    escrita da narrativa histrica, levando em considerao no somente as referidas pela via

    tradicional, que so os registros oficiais, que fazem parte de uma histria considerada

    oficial, mas tambm as fontes orais e visuais que portam fragmentos importantes da

    histria.

    Para complementar a ideia de Burke, Certeau fala da tcnica baseada na reflexo

    de uma prolematizao, uma vez que no a fonte apenas que legitima o historiador,

    mas os efeitos produzidos pela narrativa construda acerca desses documentos. Recorrer

    s fontes documentais o que garante a cientificidade da pesquisa, uma vez que elas

    legitimam o discurso historiogrfico, oferecendo a ele o estatuto de saber cientfico,

    mesmo tendo em vista que o historiador possui liberdade para realizar o recorte que

    coloque-o no meio do caminho entre a histria e a fico. Assim, a cincia e o discurso

    historiogrfico como narrativa se mesclam e recuperam os fatos histricos, sem ter a

    pretenso de alcanar uma totalidade ou verdade absoluta, mas como uma forma de

    compreender o passado.

    Para Ricouer, na recuperao dos rastros do passado, tranformando os

    vestgios em pistas, que o pesquisador vai desenvolver a sua narrativa. Nessa percepo,

    o autor acrescenta o tempo cronolgico e afirma a impossibilidade de atingir o momento

    passado a no ser atravs dos arquivos. Os arquivos formam um conjunto organizado

    de documentos reunidos que possibilitam a elaborao de novos arranjos sobre os

    acontecimentos transcorridos. O rastro deixado nos arquivos o efeito da ao de

    algum. Ele pode ser analisado e servir de base para a construo de hipteses sobre o

    passado. A manipulao do rastro pelo historiador se tornar fonte de pesquisa que

    impem mudanas nas tadies histricas que so geralmente pautadas nos modelos.

    A escrita da histria na comtemporaneidade no traz mais a ideia de uma histria

    globalizada, mas de uma narrativa que utiliza fontes tanto orais, imagticas, ou textuais

    para reconstruir o passado no momento presente. A ideia de defender uma histria

    110

  • fragmentada, vista pelo desvio, constri um conhecimento mais qualitativo acerca dos

    que ficaram sombra da histria tradicional.

    Nesse contexto, o papel das fontes evidencia a preocupao em retratar no texto,

    atravs dos seus vestgios ou rastros, uma importante contribuio para a recupeao do

    passado, no tendo como prerrogativa e a intenso de ser verdadeiro, mas capaz de

    auxiliar na compreenso dos fatos e abrir novas possibilidades de interpretao e

    reflexo, tanto para quem l, como para que escreve.

    REFERNCIAS

    BURKE, Peter. A escrita da histria: novas perspectivas. So Paulo: Unesp, 1992.

    CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Traduo de Maria de Lourdes Menezes.

    Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1982.

    RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa: tomo III. Traduo Roberto Leal Ferreira. So

    Paulo: Papirus, 1997.

    111