a identidade em questÃo

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o Blackwell Publisher o da tradução: De Paulo Editora Proibida a reprodução total ou parcial. por qualquer ateio ou processo, seja reprográfico, fotográfico. gn álìa mi crofilmagem cte. Estas proibições aplicam-se, também às características gráficas e/ou editoriais. A violação dos direitos autora is é pmúvel como crime. (Cúdigo Penal, art. 184 e §§; Lei 6.895 ele 17/12/1980). Com busca e apreensão e indenizações diversas (Lei 9.610/98, Lei dos Direitos Autorais, arts. 111-124 e 126). Direitos reservados à DP&A EDITORA Rua Joaquim Silva, 98, andar- Lapa 20241-110 - Rio de Janeiro - RJ - BRASIL Tel/fax 4 21)2232.1768 Endereço eletrônico: [email protected] Sítio: www.dpa.com.br SUMÁRIO 1. A IDENTIDADE EM QUESTÁO, 07 Três concepções de identidade. O caráter da mudança na modernidade tardia. O que está em jogo na questão das identidades? 2. NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO, 23 Descentrando o sujeito. 3. As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS, 47 Narrando a nação: uma comunidade imaginada. Desconstruindo a "cultura nacional": identidade e diferença. 4. GLOBALIZAçÃO, 67 Compressão espaço-tempo e identidade. Em direção ao pós-moderno global? 5. 0 GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA, 77 The Rest in the West. A dialética das identidades. 6. FUNDAMENTALISMO, DIÁSPORA E HIBRIDISMO 91 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 99 Impresso no Brasil 2006

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Page 1: A IDENTIDADE EM QUESTÃO

o Blackwell Publishero da tradução: De Paulo Editora

Proibida a reprodução total ou parcial. por qualquer ateioou processo, seja reprográfico, fotográfico. gn álìa

microfilmagemcte. Estas proibições aplicam-se, tambémàs características gráficas e/ou editoriais.

A violação dos direitos autora is é pmúvel como crime.(Cúdigo Penal, art. 184 e §§; Lei 6.895 ele 17/12/1980).

Com busca e apreensão e indenizações diversas(Lei 9.610/98, Lei dos Direitos Autorais,

arts. 111-124 e 126).

Direitos reservados àDP&A EDITORA

Rua Joaquim Silva, 98, andar- Lapa20241-110 - Rio de Janeiro - RJ - BRASIL

Tel/fax 421)2232.1768Endereço eletrônico: [email protected]

Sítio: www.dpa.com.br

SUMÁRIO

1. A IDENTIDADE EM QUESTÁO, 07Três concepções de identidade. O caráter

da mudança na modernidade tardia.O que está em jogo na questão das

identidades?

2. NASCIMENTO E MORTEDO SUJEITO MODERNO, 23

Descentrando o sujeito.

3. As CULTURAS NACIONAIS COMOCOMUNIDADES IMAGINADAS, 47

Narrando a nação: uma comunidadeimaginada. Desconstruindo a

"cultura nacional": identidade e diferença.

4. GLOBALIZAçÃO, 67Compressão espaço-tempo e identidade.

Em direção ao pós-moderno global?

5. 0 GLOBAL, O LOCALE O RETORNO DA ETNIA, 77

The Rest in the West.A dialética das identidades.

6. FUNDAMENTALISMO,DIÁSPORA E HIBRIDISMO 91

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS, 99Impresso no Brasil

2006

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A IDENTIDADE EM QUESTÃO

A questão da identidade está sendoextensamente discutida na teoria social.Em essência, o argumento é o seguinte: as

velhas identidades, que por tanto tempoestabilizaram o mundo social, estão em declinio,fazendo surgir novas identidades e fragmentandoo indivíduo moderno, até aqui visto como umsujeito unificado. A assim chamada "crise deidentidade" é vista como parte de um processomais amplo de mudança, que está deslocando asestruturas e processos centrais das sociedadesmodernas e abalando os quadros de referênciaque davam aos individuos uma ancoragem estávelno mundo social.

0 propósito deste livro é explorar algumasdas questões sobre a identidade cultural namodernidade tardia e avaliar se existe uma "crisede identidade " , em que consiste essa crise e emque direção ela está indo. 0 livro se volta paraquestões como: Que pretendemos dizer com "crisede identidade"? Que acontecimentos recentes nassociedades modernas precipitaram essa crise? Queformas ela toma? Quais são suas conseqüênciaspotenciais? A primeira parte do livro (caps. 1-2)

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE A IDENTIDADE EM QUESTÃO

lida com mudanças nos conceitos de identidade ede sujeito. A segunda parte (caps. 3-6) desenvolveesse argumento com relação a identidadesculturais — aqueles aspectos de nossas identidadesque surgem de nosso "pertencimento" a culturasétnicas, raciais, lingüísticas, religiosas e, acimade tudo, nacionais.

Este livro é escrito a partir de uma posiçãobasicamente simpática à afi r mação de que asidentidades modernas estão sendo "descentradas",isto é, deslocadas ou fragmentadas. Seu propósitoé o de explorar esta afirmação, ver o que elaimplica, qualificá-la e discutir quais podem sersuas prováveis conseqüências. Ao desenvolver oargumento, introduzo certas complexidades eexamino alguns aspectos contraditórios que anoção de "descentração", em sua forma maissimplificada, desconsidera.

Conseqüentemente, as formulações destelivro são provisórias e abertas à contestação. Aopinião dentro da comunidade sociológica estáainda profundamente dividida quanto a essesassuntos. As tendências são demasiadamenterecentes e ambíguas. 0 próprio conceito com o qualestamos lidando, " identidade", é demasiadamentecomplexo, muito pouco desenvolvido e muito poucocompreendido na ciência social contemporânea paraser definitivamente posto à prova. Como ocorrecom muitos outros fenômenos sociais, é impossíveloferecer afirmações conclusivas ou fazer julgamentos

seguros sobre as alegações e proposições teóricasque estão sendo apresentadas. Deve-se ter issoem mente ao se ler o restante do livro.

Para aqueles/as teóricos/as que acreditamque as identidades modernas estão entrando emcolapso, o argumento se desenvolve da seguinteforma. Um tipo diferente de mudança estruturalestá transformando as sociedades modernas nofinal do século XX. Isso está fragmentando aspaisagens culturais de classe, gênero, sexualidade,etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nostinham fornecido sólidas localizações comoindivíduos sociais. Estas transformações estãotambém mudando nossas identidades pessoais,abalando a idéia que temos de nós próprios comosujeitos integrados. Esta perda de um "sentidode si" estável é chamada, algumas vezes, dedeslocamento ou descentração do sujeito. Esseduplo deslocamento – descentração dos indivíduostanto de seu lugar no mundo social e culturalquanto de si mesmos – constitui uma "crise deidentidade" para o indivíduo. Como observa ocrítico cultural Kobena Mercer, "a identidadesomente se torna uma questão quando está emcrise, quando algo que se supõe como fixo,coerente e estável é deslocado pela experiênciada dúvida e da incerteza " (Mercer, 1990, p. 43).

Esses processos de mudança, tomados emconjunto, representam um processo detransformação tão fundamental e abrangente que

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE A IDENTIDADE EM QUESTÃO

somos compelidos a perguntar se não é a própriamodernidade que está sendo transformada. Este livroacrescenta uma nova dimensão a esse argumento: aafirmação de que naquilo que é descrito, algumasvezes, como nosso mundo pós-moderno, nós somostambém "pós" relativamente a qualquer concepçãoessencialista ou fixa de identidade — algo que, desdeo Iluminismo, se supõe definir o próprio núcleo ouessência de nosso ser e fundamentar nossa existênciacomo sujeitos humanos. A fim de explorar essaafirmação, devo examinar primeiramente asdefinições de identidade e o caráter da mudança namodernidade tardia.

Três concepções de identidade

Para os propósitos desta exposição,distinguirei três concepções muito d iferentes deidentidade, a saber, as concepções de identidadedo:

a) sujeito do Iluminismo,b) sujeito sociológico ec) sujeito pós-moderno.

0 sujeito do Iluminismo estava baseadonuma concepção da pessoa humana como umindivíduo totalmente centrado, unificado, dotadodas capacidades de razão, de consciência e de ação,cujo "centro" consistia num núcleo interior, queemergia pela primeira vez quando o sujeito nascia

e com ele se desenvolvia, ainda que permanecendoessencialmente o mesmo — contínuo ou "idêntico"a ele — ao longo da existência do indivíduo. 0 centroessencial do eu era a identidade de uma pessoa.Direi mais sobre isto em seguida, mas pode-se verque essa era uma concepção muito "individualista"do sujeito e de sua identidade (na verdade, aidentidade dele: já que o sujeito do Iluminismo erausualmente descrito como masculino).

A noção de sujeito sociológico refletia acrescente complexidade do mundo moderno e aconsciência de que este núcleo interior do sujeitonão era autônomo e auto-suficiente, mas era formadona relação com "outras pessoas importantes paraele " , que mediavam para o sujeito os valores, sentidose símbolos — a cultura — dos mundos que ele/elahabitava. G.H. Mead, C.H. Cooley e os interacionistassimbólicos são as figuras-chave na sociologia queelaboraram esta concepção "interativa" daidentidade e do eu. De acordo com essa visão, quese tomou a concepção sociológica clássica da questão,a identidade é formada na "interação" entre o eu ea sociedade. 0 sujeito ainda tem um núcleo ouessência interior que é o "eu real", mas este éformado e modificado num diálogo continuo com osmundos culturais "exteriores" e as identidades queesses mundos oferecem.

A identidade, nessa concepção sociológica,preenche o espaço entre o "interior " e o "exterior"

—entre o mundo pessoal e o mundo público. 0 fato

in

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE A IDENTIDADE EM QUESTÃO

de que projetamos a "nós próprios" nessasidentidades culturais, ao mesmo tempo queintemalizamos seus significados ë valores, tornando-os "parte de nós", contribui para alinhar nossossentimentos subjetivos com os lugares objetivos queocupamos no mundo social e cultural. A identidade,então, costura (ou, para usar uma metáfora médica,"sutura") o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto ossujeitos quanto os mundos culturais que eleshabitam, tornando ambos reciprocamente maisunificados e predizíveis.

Argumenta-se, entretanto, que são exatamenteessas coisas que agora estão "mudando". 0 sujeito,previamente vivido como tendo uma identidadeunificada e estável, está se tomando fragmentado;composto não de uma única, mas de váriasidentidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades,que compunham as paisagens sociais "lá fora"e que asseguravam nossa conformidade subjetivacom as "necessidades" objetivas da cultura, estãoentrando em colapso, como resultado demudanças estruturais e institucionais. 0 próprioprocesso de identificação, através do qual nosprojetamos em nossas identidades culturais,tornou-se mais provisório, variável eproblemático.

Esse processo produz o sujeito pós-moderno,conceptualizado como não tendo uma identidadefixa, essencial ou permanente. A identidade

torna-se uma "celebração móvel": formada etransformada continuamente em relação às formaspelas quais somos representados ou interpelados nossistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). Edefinida historicamente, e não biologicamente. 0sujeito assume identidades diferentes em diferentesmomentos, identidades que não são unificadas aoredor de um "eu" coerente. Dentro de nós háidentidades contraditórias, empurrando em diferentesdireções, de tal modo que nossas identificações estãosendo continuamente deslocadas. Se sentimos quetemos uma identidade unificada desde o nascimentoaté a morte é apenas porque construímos uma cômodaestória sobre nós mesmos ou uma confortadora"narrativa do eu" (veja Hall, 1990). A identidadeplenamente unificada, completa, segura e coerente éuma fantasia. Ao invés disso, à medida em que ossistemas de significação e representação cultural semultiplicam, somos confrontados por umamultiplicidade desconcertante e cambiante deidentidades possíveis, com cada uma das quaispoderíamos nos identificar — ao menostemporariamente.

Deve-se ter em mente que as trêsconcepções de sujeito acima são, em algumamedida, simplificações. No desenvolvimento doargumento, elas se tornarão mais complexas equalificadas. Não obstante, elas se prestam comopontos de apoio para desenvolver o argumentocentral deste livro.

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A IDENTIDADE EM QUESTÃOA IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

O caráter da mudança namodernidade tardia

Um outro aspecto desta questão daidentidade está relacionado ao caráter da mudançana modernidade tardia; em particular, ao processode mudança conhecido como "globalização" e seuimpacto sobre a identidade cultural.

Em essência, o argumento é que a mudançana modernidade tardia tem um caráter muitoespecífico. Como Man disse sobre a modernidade:

é o permanente revolucionar da produção, oabalar ininterrupto de todas as condições sociais,a incerteza e o movimento eternos ... Todas asrelações fixas e congeladas, com seu cortejo devetustas representações e concepções, sãodissolvidas, todas as relações recém-formadasenvelhecem antes de poderem ossificar-se. Tudoque é sólido se desmancha no ar... (Marx e Engels,1973, p. 70).

As sociedades modernas são, portanto, pordefinição, sociedades de mudança constante,rápida e permanente. Esta é a principal distinçãoentre as sociedades "tradicionais" e as"modernas". Anthony Giddens argumenta que:

nas sociedades tradicionais, o passado é veneradoe os símbolos são valorizados porque contêm eperpetuam a experiência de gerações. A tradiçãoé um meio de lidar com o tempo e o espaço,inserindo qualquer atividade ou experiênciaparticular na continuidade do passado, presente

e futuro, os quais, por sua vez, são estruturadospor práticas sociais recorrentes (Giddens, 1990,pp . 37-8).

A modernidade, em contraste, não édefinida apenas como a experiência de convivênciacom a mudança rápida, abrangente e continua,mas é uma forma altamente reflexiva de vida, naqual:

as práticas sociais são constantemente examinadase reformadas à luz das informações recebidassobre aquelas próprias práticas, alterando, assim,constitutivamente, seu caráter (ibid., pp. 37-8).

Giddens cita, em particular, o ritmo e oalcance da mudança — "à medida em que áreasd iferentes do globo são postas em interconexãoumas com as outras, ondas de transformação socialatingem virtualmente toda a superficie da terra" —e a natureza das instituições modernas (Giddens,1990, p. 6). Essas últimas ou são radicalmentenovas, em comparação com as sociedadestradicionais (por exemplo, o estado-nação ou amercantilização de produtos e o trabalhoassalariado), ou têm uma enganosa continuidadecom as formas anteriores (por exemplo, a cidade),mas são organizadas em torno de princípiosbastante diferentes. Mais importantes são astransformações do tempo e do espaço e o que elechama de "desalojamento do sistema social " – a"extração" das relações sociais dos contextos locaisde interação e sua reestruturação ao longo de

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escalas indefinidas de espaço-tempo " (ibid., p.21). Veremos todos esses temas mais adiante.Entretanto, o ponto geral que gostaria de enfatizaré o das descontinuidades

Os modos de vida colocados em ação pelamodernidade nos livraram, de uma forma bastanteinédita, de todos os tipos tradicionais de ordemsocial. Tanto em extensão, quanto em intensidade,as transformações envolvidas na modernidade sãomais profundas do que a maioria das mudançascaracterísticas dos períodos anteriores. No planoda extensão, elas serviram para estabelecer formasde interconexão social que cobrem o globo; emtermos de intensidade, elas alteraram algumasdas características mais íntimas e pessoais de nossaexistência cotidiana (Giddens, 1990, p. 21).

David Harvey fala da modernidade comoimplicando não apenas "um rompimentoimpiedoso com toda e qualquer condiçãoprecedente", mas como "caracterizada por umprocesso sem-fim de rupturas e fragmentaçõesinternas no seu próprio interior" (1989, p. 12).Ernest Laclau (1990) usa o conceito de"deslocamento". Uma estrutura deslocada éaquela cujo centro é deslocado, não sendosubstituído por outro, mas por " uma pluralidadede centros de poder". As sociedades modernas,argumenta Laclau, não têm nenhum centro,nenhum princípio articulador ou organizadorúnico e não se desenvolvem de acordo com odesdobramento de uma única "causa" ou "lei".

A sociedade não é, como os sociólogos pensarammuitas vezes, um todo unificado e bem delimitado,uma totalidade, produzindo-se através demudanças evolucionárias a partir de si mesma,como o desenvolvimento de uma flor a partir deseu bulbo. Ela está constantemente sendo" descentrada" ou deslocada por forças fora de simesma.

As sociedades da modernidade tardia,argumenta ele, são caracterizadas pela"d iferença"; elas são atravessadas por diferentesdivisões e antagonismos sociais que produzem umavariedade de diferentes "posições de sujeito" –isto é, identidades – para os indivíduos. Se taissociedades não se desintegram totalmente não éporque elas são unificadas, mas porque seusdiferentes elementos e identidades podem, sobcertas circunstâncias, ser conjuntamentearticulados. Mas essa articulação é sempre parcial:a estrutura da identidade permanece aberta. Semisso, argumenta Laclau, não haveria nenhumahistória.

Esta é uma concepção de identidade muitodiferente e muito mais perturbadora e provisóriado que as duas anteriores. Entretanto, argumentaLaclau, isso não deveria nos desencorajar: odeslocamento tem características positivas. Eledesarticula as identidades estáveis do passado,mas também abre a possibilidade de novas

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articulações: a criação de novas identidades, aprodução de novos sujeitos e o que ele chama de"recomposição da estrutura em tomo de pontosnodais particulares de articulação " (Laclau, 1990,p. 40).

Giddens, Harvey e Laclau oferecem leiturasum tanto diferentes da natureza da mudança domundo pós-moderno, mas suas ênfases nadescontinuidade, na fragmentação, na ruptura eno deslocamento contêm uma linha comum.Devemos ter isso em mente quando discutirmos oimpacto da mudança contemporânea conhecidacomo "globalização".

O que está 7:logo na questãodos identidades?

Até aqui os argumentos parecem bastanteabstratos. Para dar alguma idéia de como eles seaplicam a uma situação concreta e do que está"em jogo" nessas contestadas definições deidentidade e mudança, vamos tomar um exemploque ilustra as conseqüências políticas dafragmentação ou "pluralização" de identidades.

Em 1991, o então presidente americano,Bush, ansioso por restaurar uma maioriaconservadora na Suprema Corte americana,encaminhou a indicação de Clarence Thomas,um juiz negro de visões políticas conservadoras.

No julgamento de Bush, os eleitores brancos (quepodiam ter preconceitos em relação a um juiznegro) provavelmente apoiaram Thomas porqueele era conservador em termos da legislação deigualdade de direitos, e os eleitores negros (queapóiam políticas liberais em questões de raça)apoiariam Thomas porque ele era negro. Emsíntese, o presidente estava "jogando o jogo dasidentidades " .

Durante as "audiências" em torno daindicação, no Senado, o juiz Thomas foi acusadode assédio sexual por uma mulher negra, AnitaHill, uma ex-colega de Thomas. As audiênciascausaram um escândalo público e polarizaram asociedade americana. Alguns negros apoiaramThomas, baseados na questão da raça; outros seopuseram a ele, tomando como base a questãosexual. As mulheres negras estavam divididas,dependendo de qual identidade prevalecia: suaidentidade como negra ou sua identidade comomulher. Os homens negros também estavamdivididos, dependendo de qual fator prevalecia:seu sexismo ou seu liberalismo. Os homensbrancos estavam divididos, dependendo, nãoapenas de sua política, mas da forma como elesse identificavam com respeito ao racismo e aosexismo. As mulheres conservadoras brancasapoiavam Thomas, não apenas com base em suainclinação política, mas também por causa de suaoposição ao feminismo. As feministas brancas,

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE A IDENTIDADE EM QUESTÃO

que freqüentemente tinham posições maisprogressistas na questão da raça, se opunham aThomas tendo como base a questão sexual. E, umavez que o juiz Thomas era um membro da elitejudiciária e Anita Hill, na época do alegado incidente,uma funcionária subalterna, estavam emjogo, nessesargumentos, também questões de classe social.

A questão da culpa ou da inocência do juizThomas não está em discussão aqui; o que estáem discussão é o "jogo de identidades " e suasconseqüências políticas. Consideremos osseguintes elementos:

• As identidades eram contraditórias. Elas secruzavam ou se "deslocavam" mutuamente.

• As contradições atuavam tanto fora, nasociedade, atravessando grupos políticosestabelecidos, quanto "dentro" da cabeçade cada indivíduo.

• Nenhuma identidade singular – porexemplo, de classe social – podia alinhartodas as diferentes identidades com uma"identidade mestra" única, abrangente,na qual se pudesse, de forma segura,basear uma política. As pessoas nãoidentificam mais seus interesses sociaisexclusivamente em termos de classe; aclasse não pode servir como umdispositivo discursivo ou uma categoriamobilizadora através da qual todos osvariados interesses e todas as variadas

identidades das pessoas possam serreconciliadas e representadas.

• De forma crescente, as paisagens politicasdo mundo moderno são fraturadas dessaforma por identificações rivais edeslocantes – advindas, especialmente,da erosão da "identidade mestra" daclasse e da emergência de novasidentidades, pertencentes à nova basepolítica definida pelos novos movimentossociais: o feminismo, as lutas negras, osmovimentos de libertação nacional, osmovimentos antinucleares e ecológicos(Mercer, 1990).Uma vez que a identidade muda de acordocom a forma como o sujeito é interpeladoou representado, a identificação não éautomática, mas pode ser ganhada ouperdida. Ela tornou-se politizada. Esseprocesso é, às vezes, descrito comoconstituindo uma mudança de uma políticade identidade (de classe) para uma politicade diferença.

Posso agora esquematizar, de forma breve,o restante do livro. Em primeiro lugar, vouexaminar, de uma forma um pouco mais profunda,como o conceito de identidade mudou: do conceitoligado ao sujeito do Iluminismo para o conceitosociológico e, depois, para o do sujeito " pós-moderno". Em seguida, o livro explorará aquele

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

aspecto da identidade cultural moderna que éformado através do pertencimento a uma culturanacional e como os processos de mudança – umamudança que efetua um deslocamento –compreen-didos no conceito de "globalização"estão afetando isso.

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NASCIMENTO E MORTEDO SUJEITO MODERNO

N este capítulo farei um esboço da descrição,feita por alguns teóricos contemporâneos,das principais mudanças na forma pela

qual o sujeito e a identidade são conceptualizadosno pensamento moderno. Meu objetivo é traçaros estágios através dos quais uma versão particulardo "sujeito humano" – com certas capacidadeshumanas fixas e um sentimento estável de suaprópria identidade e lugar na ordem das coisas –emergiu pela primeira vez na idade moderna;como ele se tornou "centrado", nos discursos epráticas que moldaram as sociedades modernas;como adquiriu uma definição mais sociológica ouinterativa; e como ele está sendo "descentrado"na modernidade tardia. 0 foco principal destecapítulo é conceitual, centrando-se em concepçõesmutantes do sujeito humano, visto como umafigura discursiva, cuja forma unificada eidentidade racional eram pressupostas tanto pelosdiscursos do pensamento moderno quanto pelosprocessos que moldaram a modernidade, sendo-lhes essenciais.

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

Tentar mapear a história da noção de sujeitomoderno é um exercício extremamente dificil. Aidéia de que as identidades eram plenamenteunificadas e coerentes e que agora se tornaramtotalmente deslocadas é uma forma altamentesimplista de contar a estória do sujeito moderno.Eu a adoto aqui como um dispositivo que tem opropósito exclusivo de uma exposição conveniente.Mesmo aqueles que subscrevem inteiramente anoção de um descentramento da identidade nãoa sustentariam nessa forma simplificada. Deve-seter essa qualificação em mente ao ler este capítulo.Entretanto, esta formulação simples tem avantagem de me possibilitar (no breve espaço destelivro) esboçar um quadro aproximado de como,de acordo com os proponentes da visão dodescentramento, a conceptualização do sujeitomoderno mudou em três pontos estratégicos,durante a modernidade. Essas mudançassublinham a afirmação básica de que asconceptualizações do sujeito mudam e, portanto,têm uma história. Uma vez que o sujeito modernoemergiu num momento particular (seu"nascimento " ) e tem uma história, segue-se queele também pode mudar e, de fato, sob certascircunstâncias, podemos mesmo contemplar sua"morte" .

E agora um lugar-comum dizer que a épocamoderna fez surgir uma forma nova e decisiva deindividualismo, no centro da qual erigiu-se uma

nova concepção do sujeito individual e suaidentidade. Isto não significa que nos tempos pré-modernos as pessoas não eram indivíduos masque a individualidade era tanto "vivida" quanto"conceptualizada" de forma diferente. Astransformações associadas à modernidadelibertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nastradições e nas estruturas. Antes se acreditava queessas eram divinamente estabelecidas; nãoestavam sujeitas, portanto, a mudançasfundamentais. 0 status, a classificação e a posiçãode urna pessoa na "grande cadeia do ser" – aordem secular e divina das coisas – predominavamsobre qualquer sentimento de que a pessoa fosseum indivíduo soberano. 0 nascimento do"indivíduo soberano", entre o HumanismoRenascentista do século XVI e o Iluminismo doséculo XVIII, representou uma ruptura importantecom o passado. Alguns argumentam que ele foi omotor que colocou todo o sistema social da"modernidade" em movimento.

Raymond Williams observa que a históriamoderna do sujeito individual reúne doissignificados distintos: por um lado, o sujeito é" indivisível" – uma entidade que é unificada noseu próprio interior e não pode ser dividida alémdisso; por outro lado, é também uma entidadeque é "singular, distintiva, única" (veja Williams,1976; pp. 133-5: verbete "individual"). Muitosmovimentos importantes no pensamento e na

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A IDENTIDADE CULTURAL NA POS-MODERNIDADE

cultura ocidentais contribuíram para a emergênciadessa nova concepção: a Reforma e oProtestantismo, que libertaram a consciênciaindividual das instituições religiosas da Igreja e aexpuseram diretamente aos olhos de Deus; oHumanismo Renascentista, que colocou o Homem(sic) no centro do universo; as revoluçõescientíficas, que conferiram ao Homem a faculdadee as capacidades para inquirir, investigar e decifraros mistérios da Natureza; e o Iluminismo, centradona imagem do Homem racional, científico,libertado do dogma e da intolerância, e diante doqual se estendia a totalidade da história humana,para ser compreendida e dominada.

Grande parte da história da filosofiaocidental consiste de reflexões ou refinamentosdessa concepção do sujeito, seus poderes e suascapacidades. Uma figura importante, que deu aessa concepção sua formulação primária, foi ofilósofo francês René Descartes (1596-1650).Algumas vezes visto como o "pai da Filosofiamoderna", Descartes foi um matemático ecientista, o fundador da geometria analítica e daótica, e foi profundamente influenciado pela "novaciência" do século XVII. Ele foi atingido pelaprofunda dúvida que se seguiu ao deslocamentode Deus do centro do universo. E o fato de que osujeito moderno "nasceu " no meio da dúvida edo ceticismo metafísico nos faz lembrar que elenunca foi estabelecido e unificado como essa forma

NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

de descrevê-lo parece sugerir (veja Forester,1987). Descartes acertou as contas com Deus aotorná-lo o Primeiro Movimentador de toda criação;daí em diante, ele explicou o resto do mundomaterial inteiramente em termos mecânicos ematemáticos.

Descartes postulou duas substânciasdistintas – a substância espacial (matéria) e asubstância pensante (mente). Ele refocalizou,assim, aquele grande dualismo entre a "mente" ea "matéria" que tem afligido a Filosofa desdeentão. As coisas devem ser explicadas, eleacreditava, por uma redução aos seus elementosessenciais à quantidade mínima de elementos e,em última análise, aos seus elementos irredutíveis.No centro da " mente" ele colocou o sujeitoindividual, constituído por sua capacidade pararaciocinar e pensar. "Cogito, ergo sum" era apalavra de ordem de Descartes: "Penso, logoexisto " (ênfase minha). Desde então, estaconcepção do sujeito racional, pensante econsciente, situado no centro do conhecimento,tem sido conhecida como o "sujeito cartesiano".

Outra contribuição crítica foi feita por JohnLocke, o qual, em seu Ensaio sobre a compreensãohumana, definia o indivíduo em termos da"mesmidade (sameness) de um ser racional" – istoé, uma identidade que permanecia a mesma eque era contínua com seu sujeito: "a identidadeda pessoa alcança a exata extensão em que sua

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A IDENTIDADE CULTURAL NA POS-MODERNIDADE NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

consciência pode ir para trás, para qualquer açãoou pensamento passado " (Locke, 1967, pp. 212-213). Esta figura (ou dispositivo conceitual) – o"indivíduo soberano" – está inscrita em cada umdos processos e práticas centrais que fizeram omundo moderno. Ele (sic) era o "sujeito" damodernidade em dois sentidos: a origem ou" sujeito" da razão, do conhecimento e da prática;e aquele que sofria as conseqüências dessaspráticas – aquele que estava "sujeitado " a elas(veja Foucault, 1986 e também PenguinDictionary of Sociology: verbete "subject').

Algumas pessoas têm questionado se ocapitalismo realmente exigiu uma concepção deindivíduo soberano desse tipo (Abercrombie etalli, 1986). Entretanto, a emergência de umaconcepção mais individualista do sujeito éamplamente aceita. Raymond Williams sintetizouessa imersão do sujeito moderno nas práticas ediscursos da modernidade na seguinte passagem:

A emergência de noções de individualidade, nosentido moderno, pode ser relacionada ao colapsoda ordem social, econômica e religiosa medieval.No movimento geral contra o feudalismo houveuma nova ênfase na existência pessoal do homem,acima e além de seu lugar e sua função numarigida sociedade hierárquica. Houve uma ênfasesimilar, no Protestantismo, na relação direta eindividual do homem com Deus, em oposição aesta relação mediada pela Igreja. Mas foi só aofinal do século XVII e no século XVIII que um

novo modo de análise, na Lógica e na Matemática,postulou o indivíduo como a entidade maior (cf. as"mónadas" de Leibniz), a partir da qual outrascategorias (especialmente categorias coletivas)eram derivadas. 0 pensamento político doIluminismo seguiu principalmente este modelo.0 argumento começava com os indivíduos, quetinham uma existência primária e inicial. As leise as formas de sociedade eram deles derivadas:por submissão, como @!e-•Hobbes; por contratoou consentimento, ou pela nova versão da leinatural, no pensamento liberal. Na economiaclássica, o comércio era descrito através de ummodelo que supunha indivíduos separados que[possuíam propriedade e] decidiam, em algumponto de partida, entrar em relações econômicasou comerciais. Na ética utilitária, indivíduosseparados calculavam as conseqüências desta oudaquela ação que eles poderiam empreender( Williams, 1976, pp.135-6).

Ainda era possível, no século XVIII,imaginar os grandes processos da vida modernacomo estando centrados no indivíduo "sujeito-da-razão". Mas à medida em que as sociedadesmodernas se tornavam mais complexas, elasadquiriam uma forma mais coletiva e social. Asteorias clássicas liberais de governo, baseadas nosdireitos e consentimento individuais, foramobrigadas a dar conta das estruturas do estado-nação e das grandes massas que fazem umademocracia moderna. As leis clássicas da economiapolítica, da propriedade, do contrato e da troca tinhamde atuar, depois da industrialização, entre as grandes

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE NASCIMENTO E MORTE DO SUJEITO MODERNO

formações de classe do capitalismo moderno.0 empreendedor individual da Riqueza das "açõesde Adam Smith ou mesmo d' 0 capital de Marx foitransformado nos conglomerados empresariais daeconomia moderna. 0 cidadão individual tornou-se enredado nas maquinarias burocráticas eadministrativas do estado moderno.

Emergiu, então, uma concepção mais socialdo sujeito. 0 indivíduo passou a ser visto comomais localizado e "definido " no interior dessasgrandes estruturas e formações sustentadoras dasociedade moderna. Dois importantes eventoscontribuíram para articular um conjunto maisamplo de fundamentos conceptuais para o sujeitomoderno. 0 primeiro foi a biologia darwiniana. 0sujeito humano foi "biologizado" — a razão tinhauma base na Natureza e a mente um "fundamento"

no desenvolvimento físico do cérebro humano.0 segundo evento foi o surgimento das novas

ciências sociais. Entretanto, as transformações queisso pôs em ação foram desiguais:

• 0 "indivíduo soberano " , comas suas (dele)vontades, necessidades, desejos einteresses, permaneceu a figura centraltanto nos discursos da economia modernaquanto nos da lei moderna.

▪ 0 dualismo típico do pensamento cartesianofoi institucionalizado na divisão das ciênciassociais entre a psicologia e as outras

disciplinas. 0 estudo do indivíduo e de seusprocessos mentais tornou-se o objeto deestudo especial e privilegiado da psicologia.

• A sociologia, entretanto, forneceu umacrítica do " individualismo racional" dosujeito cartesiano. Localizou o indivíduoem processos de grupo e nas normascoletivas as quais, argumentava, subjaziama qualquer contrato entre sujeitosindividuais. Em conseqüência, desenvolveuuma explicação alternativa do modo comoos indivíduos são formados subjetivamenteatravés de sua participação em relaçõessociais mais amplas; e, inversamente, domodo como os processos e as estruturassão sustentados pelos papéis que osindivíduos neles desempenham. Essa"internalização" do exterior no sujeito, eessa "externalização" do interior, atravésda ação no mundo social (como discutidaantes), constituem a descrição sociológicaprimária do sujeito moderno e estãocompreendidas na teoria da socialização.Como foi observado acima, G. H. Mead eos interacionistas simbólicos adotaram umavisão radicalmente interativa desteprocesso. A integração do indivíduo nasociedade tinha sido uma preocupação delonga data da sociologia. Teóricos comoGoffman estavam profundamente atentos

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ao modo como o "eu" é apresentado emdiferentes situações sociais, e como osconflitos entre estes diferentes papéissociais são negociados. Em um nível maismacrossociológico, Parsons estudou o"ajuste" ou complementaridade entre "oeu" e o sistema social. Não obstante, algunscríticos alegariam que a sociologiaconvencional mantivera algo do dualismode Descartes, especialmente em suatendência para construir o problema comouma relação entre duas entidadesconectadas mas separadas: aqui, o"indivíduo e a sociedade".

Este modelo sociológico interativo, com suareciprocidade estável entre "interior" e "exterior",é, em grande parte, um produto da primeirametade do século XX, quando as ciências sociaisassumem sua forma disciplinar atual. Entretanto,exatamente no mesmo período, um quadro maisperturbado e perturbador do sujeito e daidentidade estava começando a emergir dosmovimentos estéticos e intelectuais associado como surgimento do Modernismo.

Encontramos, aqui, a figura do indivíduoisolado, exilado ou alienado, colocado contra opano-de-fundo da multidão ou da metrópoleanônima e impessoal. Exemplos disso incluem a

famosa descrição do poeta Baudelaire em "Pintorda vida moderna " , que ergue sua casa "no coraçãoúnico da multidão, em meio ao ir e vir dosmovimentos, em meio ao fugidio e ao infinito" eque "se torna um único corpo com a multidão",entra na multidão " como se fosse um imensoreservatório de energia elétrica " ; o flaneur (ou ovagabundo), que vagueia entre as novas arcadasdas lojas, observando o passageiro espetáculo dametrópole, que Walter Benjamin celebrou no seuensaio sobre a Paris de Baudelaire, e cujacontrapartida na modernidade tardia é,provavelmente, o turista (cf. Urry, 1990); "K", avítima anônima, confrontado por uma burocraciasem rosto, na novela de Kafka, 0 Processo; e aquelalegião de figuras alienadas da literatura e da críticasocial do século XX que visavam representar aexperiência singular da modernidade. Váriasdessas "instâncias exemplares da modernidade",como as chama Frisby, povoam as páginas dosprincipais teóricos sociais da virada do século,como George Simmel, Alfred Schutz e SiegfriedKracauer (todos os quais tentaram capturar ascaracterísticas essenciais da modernidade emensaios famosos, tais coma The Stranger ouOutsider) (veja Frisby, 1985, p.109). Estasimagens mostraram-se proféticas do que iriaacontecer ao sujeito cartesiano e ao sujeitosociológico na modernidade tardia.

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Descentrando o sujeito

Aquelas pessoas que sustentam que asidentidades modernas estão sendo fragmentadasargumentam que o que aconteceu à concepçãodo sujeito moderno, na modernidade tardia, nãofoi simplesmente sua desagregação, mas seudeslocamento. Elas descrevem esse deslocamentoatravés de uma série de rupturas nos discursosdo conhecimento moderno. Nesta seção, farei umrápido esboço de cinco grandes avanços na teoriasocial e nas ciências humanas ocorridos nopensamento, no período da modernidade tardia(a segunda metade do século XX), ou que sobreele tiveram seu principal impacto, e cujo maiorefeito, argumenta-se, foi o descentramento finaldo sujeito cartesiano.

A primeira descentração importante refere-se às tradições do pensamento marxista. Osescritos de Marx pertencem, naturalmente, aoséculo XIX e não ao século XX. Mas um dosmodos pelos quais seu trabalho foi redescobertoe reinterpretado na década de sessenta foi à luzda sua afirmação de que os "homens (sic) fazema história, mas apenas sob as condições que lhessão dadas". Seus novos intérpretes leram isso nosentido de que os indivíduos não poderiam denenhuma forma ser os "autores" ou os agentesda história, uma vez que eles podiam agir apenascom base em condições históricas criadas por

outros e sob as quais eles nasceram, utilizando osrecursos materiais e de cultura que lhes foramfornecidos por gerações anteriores.

Eles argumentavam que o marxismo,corretamente entendido, deslocara qualquer noçãode agência individual. O estruturalista marxistaLouis Althusser (1918-1989) (ver PenguinDictionary of Sociology: verbete "Althusser")afirmou que, ao colocar as relações sociais (modosde produção, exploração da força de trabalho, oscircuitos do capital) e não uma noção abstrata dehomem no centro de seu sistema teórico, Marxdeslocou duas proposições-chave da filosofiamoderna:

• que há uma essência universal de homem;• que essa essência é o atributo de "cada

indivíduo singular", o qual é seu sujeitoreal:

Esses dois postulados são complementares eindissolúveis. Mas sua existência e sua unidadepressupõem toda uma perspectiva de mundoempirista-idealista. Ao rejeitar a essência dohomem como sua base teórica, Marx rejeitou todoesse sistema orgânico de postulados. Ele expulsouas categorias filosóficas do sujeito do empirismo,da essência ideal, de todos os domínios em queelas tinham reinado de forma suprema. Nãoapenas da economia politica (rejeição do mito dohomo economicus, isto é, do indivíduo, comfaculdades e necessidades definidas, como sendoo sujeito da economia clássica); não apenas dahistória; ... não apenas da ética (rejeição da idéia

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ética kantiana); mas também da própria filosofia(Althusser, 1966, p. 228).

Essa "revolução teórica total" foi, é óbvio,fortemente contestada por muitos teóricoshumanistas que dão maior peso, na explicaçãohistórica, à agência humana. Não precisamosdiscutir aqui se Althusser estava total ouparcialmente certo, ou inteiramente errado. 0 fatoé que, embora seu trabalho tenha sidoamplamente criticado, seu "anti-humanismoteórico" (isto é, um modo de pensar oposto àsteorias que derivam seu raciocínio de algumanoção de essência universal de Homem, alojadaem cada sujeito individual) teve um impactoconsiderável sobre muitos ramos do pensamentomoderno.

0 segundo dos grandes "descentramentos"no pensamento ocidental do século XX vem dadescoberta do inconsciente por Freud. A teoriade Freud de que nossas identidades, nossasexualidade e a estrutura de nossos desejos sãoformadas com base em processos psíquicos esimbólicos do inconsciente, que funciona deacordo com uma "lógica" muito diferente daquelada Razão, arrasa com o conceito do sujeitocognoscente e racional provido de uma identidadefixa e unificada – o "penso, logo existo" , do sujeitode Descartes. Este aspecto do trabalho de Freudtem tido também um profundo impacto sobre opensamento moderno nas três últimas décadas.

A leitura que pensadores psicanalíticos, comoJacques Lacan, fazem de Freud é que a imagemdo eu como inteiro e unificado é algo que a criançaaprende apenas gradualmente, parcialmente, ecom grande dificuldade. Ela não se desenvolvenaturalmente a partir do interior do núcleo doser da criança, mas é formada em relação com osoutros; especialmente nas complexas negociaçõespsíquicas inconscientes, na primeira infância,entre a criança e as poderosas fantasias que elatem de suas figuras paternas e maternas. Naquiloque Lacan chama de "fase do espelho " , a criançaque não está ainda coordenada e não possuiqualquer auto-imagem como uma pessoa " inteira " ,se vê ou se "imagina" a si própria refletida – sejaliteralmente, no espelho, seja figurativamente, no" espelho " do olhar do outro – como uma "pessoainteira" (Lacan, 1977). (Aliás, Althusser tomouessa metáfora emprestada de Lacan, ao tentardescrever a operação da ideologia). Isto estápróximo, de certa forma, da concepção do"espelho", de Mead e Cooley, do eu interativo;exceto que para eles a socialização é uma questãode aprendizagem consciente, enquanto que paraFreud, a subjetividade é o produto de processospsíquicos inconscientes.

A formação do eu no "olhar" do Outro, deacordo com Lacan, inicia a relação da criançacom os sistemas simbólicos fora dela mesma e é,assim, o momento da sua entrada nos vários

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sistemas de representação simbólica – incluindoa língua, a cultura e a diferença sexual. Ossentimentos contraditórios e não-resolvidos queacompanham essa difícil entrada (o sentimentodividido entre amor e ódio pelo pai, o conflitoentre o desejo de agradar e o impulso para rejeitara mãe, a divisão do eu entre suas partes "boa" e"má", a negação de sua parte masculina oufeminina, e assim por diante), que são aspectos-chave da "formação inconsciente do sujeito" eque deixam o sujeito "dividido", permanecem coma pessoa por toda a vida. Entretanto, embora osujeito esteja sempre partido ou dividido, elevivencia sua própria identidade como se elaestivesse reunida e "resolvida " , ou unificada, comoresultado da fantasia de si mesmo como uma"pessoa " unificada que ele formou na fase doespelho. Essa, de acordo com esse tipo depensamento psicanalítico, é a origem contraditóriada "identidade".

Assim, a identidade é realmente algoformado, ao longo do tempo, através de processosinconscientes, e não algo inato, existente naconsciência no momento do nascimento. Existesempre algo "imaginário " ou fantasiado sobre suaunidade. Ela permanece sempre incompleta, estásempre "em processo", sempre "sendo formada".As partes "femininas" do eu masculino, porexemplo, que são negadas, permanecem com elee encontram expressão inconsciente em muitas

formas não reconhecidas, na vida adulta. Assim,em vez de falar da identidade como uma coisaacabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidadesurge não tanto da plenitude da identidade quejá está dentro de nós como indivíduos, mas deuma falta de inteireza que é "preenchida" a partirde nosso exterior, pelas formas através das quaisnós imaginamos ser vistos por outros.Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a"identidade" e construindo biografias que tecemas diferentes partes de nossos eus divididos numaunidade porque procuramos recapturar esseprazer fantasiado da plenitude.

De novo, o trabalho de Freud e o depensadores psicanalíticos como Lacan, que o lêemdessa forma, têm sido bastante questionados. Pordefinição, os processos inconscientes não podemser facilmente vistos ou examinados. Eles têm queser inferidos pelas elaboradas técnicaspsicanalíticas da reconstrução e da interpretaçãoe não são facilmente suscetíveis à "prova". Nãoobstante, seu impacto geral sobre as formasmodernas de pensamento tem sido muitoconsiderável. Grande parte do pensamentomoderno sobre a vida subjetiva e psíquica é " pós-freudiana", no sentido de que toma o trabalho deFreud sobre o inconsciente como certo e dado,mesmo que rejeite algumas de suas hipótesesespecíficas. Outra vez, podemos avaliar o dano

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que essa forma de pensamento causa a noçõesque vêem o sujeito racional e a identidade comofixos e estáveis.

O terceiro descentramento que examinareiestá associado com o trabalho do lingüistaestrutural, Ferdinand de Saussure. Saussureargumentava que nós não somos, em nenhumsentido, os "autores" das afirmações que fazemosou dos significados que expressamos na lingua.Nós podemos utilizar a língua para produzirsignificados apenas nos posicionando no interiordas regras da lingua e dos sistemas de significadode nossa cultura. A língua é um sistema social enão um sistema individual. Ela preexiste a nós.Não podemos, em qualquer sentido simples, serseus autores. Falar uma lingua não significa apenasexpressar nossos pensamentos mais interiores eoriginais; significa também ativar a imensa gamade significados que já estão embutidos em nossalingua e em nossos sistemas culturais.

Além disso, os significados das palavras nãosão fixos, numa relação um-a-um com os objetosou eventos no mundo existente fora da lingua. Osignificado surge nas relações de similaridade ediferença que as palavras têm com outras palavrasno interior do código da língua. Nós sabemos oque é a "noite" porque ela não é o "dia". Observe-se a analogia que existe aqui entre língua eidentidade. Eu sei quem "eu" sou em relação com"o outro" (por exemplo, minha mãe) que eu não

posso ser. Como diria Lacan, a identidade, comoo inconsciente, "está estruturada como a língua".O que modernos filósofos da linguagem – comoJacques Derrida, influenciados por Saussure e pela"virada lingüística " – argumentam é que, apesarde seus melhores esforços, o/a falante individualnão pode, nunca, fixar o significado de uma formafinal, incluindo o significado de sua identidade.As palavras são "multimoduladas " . Elas semprecarregam ecos de outros significados que elascolocam em movimento, apesar de nossosmelhores esforços para cerrar o significado. Nossasafirmações são baseadas em proposições epremissas das quais nós não temos consciência,mas que são, por assim dizer, conduzidas nacorrente sangüínea de nossa língua. Tudo quedizemos tem um "antes" e um "depois" – uma"margem" na qual outras pessoas podem escrever.0 significado é inerentemente instável: ele procurao fechamento (a identidade), mas ele éconstantemente perturbado (pela diferença). Eleestá constantemente escapulindo de nós. Existemsempre significados suplementares sobre os quaisnão temos qualquer controle, que surgirão esubverterão nossas tentativas para criar mundosfixos e estáveis (veja Derrida, 1981).

O quarto descentramento principal daidentidade e do sujeito ocorre no trabalho dofilósofo e historiador francês Michel Foucault.Numa série de estudos, Foucault produziu uma

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espécie de "genealogia do sujeito moderno".Foucault destaca um novo tipo de poder, que elechama de "poder disciplinar", que se desdobraao longo do século XIX, chegando ao seudesenvolvimento máximo no início do presenteséculo. 0 poder disciplinar está preocupado, emprimeiro lugar, com a regulação, a vigilância é ogoverno da espécie humana ou de populações inteirase, em segundo lugar, do individuo e do corpo. Seuslocais são aquelas novas instituições que sedesenvolveram ao longo do século XIX e que"policiam" e disciplinam as populações modernas —oficinas, quartéis, escolas, prisões, hospitais, clínicase assim por diante (veja, por exemplo, História daloucura, 0 nascimento da clínica e Vigiar e punir).

0 objetivo do "poder disciplinar" consisteem manter "as vidas, as atividades, o trabalho, asinfelicidade e os prazeres do indivíduo", assimcomo sua saúde física e moral, suas práticassexuais e sua vida familiar, sob estrito controle edisciplina, com base no poder dos regimesadministrativos, do conhecimento especializadodos profissionais e no conhecimento fornecidopelas "disciplinas" das Ciências Sociais. Seuobjetivo básico consiste em produzir "um serhumano que possa ser tratado como um corpodócil" (Dreyfus e Rabinow, 1982, p. 135).

0 que é particularmente interessante, doponto de vista da história do sujeito moderno, éque, embora o poder disciplinar de Foucault seja

o produto das novas instituições coletivas e degrande escala da modernidade tardia, suastécnicas envolvem uma aplicação do poder e dosaber que "individualiza" ainda mais o sujeito eenvolve mais intensamente seu corpo:

Num regime disciplinar, a individualização édescendente. Através da vigilância, da observaçãoconstante, todas aquelas pessoas sujeitas aocontrole são individualizadas... 0 poder nãoapenas traz a individualidade para o campo daobservação, mas também fixa aquelaindividualidade objetiva no campo da escrita. Umimenso e meticuloso aparato documentário torna-se um componente essencial do crescimento dopoder [nas sociedades modernas]. Essaacumulação de documentação individual numordenamento sistemático torna "possível amedição de fenômenos globais, a descrição degrupos, a caracterização de fatos coletivos, ocálculo de distâncias entre os indivíduos, suadistribuição numa dada população " (Dreyfus eRabinow, 1982, p. 159, citando Foucault).

Não é necessário aceitar cada detalhe dadescrição que Foucault faz do caráter abrangentedos "regimes disciplinares " do moderno poderadministrativo para compreender o paradoxo deque, quanto mais coletiva e organizada a naturezadas instituições da modernidade tardia, maior oisolamento, a vigilância e a individualização dosujeito individual.

O quinto descentramento que osproponentes dessa posição citam é o impacto do

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feminismo, tanto como uma crítica teórica quantocomo um movimento social. 0 feminismo faz partedaquele grupo de "novos movimentos sociais" ,que emergiram durante os anos sessenta (o grandemarco da modernidade tardia), juntamente comas revoltas estudantis, os movimentos juveniscontraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitoscivis, os movimentos revolucionários do "TerceiroMundo " , os movimentos pela paz e tudo aquiloque está associado com " 1968". O que é importantereter sobre esse momento histórico é que:

• Esses movimentos se opunham tanto àpolítica liberal capitalista do Ocidentequanto à politica " estalinista" do Oriente.

• Eles afirmavam tanto as dimensões"subjetivas" quanto as dimensões"objetivas " da política.

• Eles suspeitavam de todas as formasburocráticas de organização e favoreciama espontaneidade e os atos de vontadepolitica.

• Como argumentado anteriormente, todosesses movimentos tinham uma ênfase euma forma cultural fortes. Eles abraçaramo "teatro" da revolução.

• Eles refletiam o enfraquecimento ou o fimda classe política e das organizaçõespolíticas de massa com ela associadas, bemcomo sua fragmentação em vários eseparados movimentos sociais.

• Cada movimento apelava para a identidadesocial de seus sustentadores. Assim, ofeminismo apelava às mulheres, a politicasexual aos gays e lésbicas, as lutas raciaisaos negros, o movimento antibelicista aospacifistas, e assim por diante. Isso constituio nascimento histórico do que veio a serconhecido como apolítica de identidade —uma identidade para cada movimento.

Mas o feminismo teve também uma relaçãomais direta com o descentramento conceitual dosujeito cartesiano e sociológico:

• Ele questionou a clássica distinção entre o"dentro" e o "fora", o "privado" e"público". 0 slogan do feminismo era: "opessoal é politico " .

• Ele abriu, portanto, para a contestaçãopolitica, arenas inteiramente novas de vidasocial: a família, a sexualidade, o trabalhodoméstico, a divisão doméstica dotrabalho, o cuidado com as crianças, etc.

• Ele também enfatizou, como uma questãopolítica e social, o tema da forma comosomos formados e produzidos comosujeitos generificados. Isto é, ele politizoua subjetividade, a identidade e o processode identificação (como homens/mulheres,mães/pais, filhos/filhas).

• Aquilo que começou como um movimentodirigido à contestação da posição social das

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A IDENTIDADE CULTURAL NA POS-MODERNIDADE

mulheres expandiu-se para incluir aformação das identidades sexuais e degênero.

• 0 feminismo questionou a noção de queos homens e as mulheres eram parte damesma identidade, a " Humanidade",substituindo-a pela questão da diferençasexual.

Neste capítulo, tentei, pois, mapear asmudanças conceituais através das quais, de acordocom alguns teóricos, o " sujeito" do Iluminismo,visto como tendo uma identidade fixa e estável,foi descentrado, resultando nas identidadesabertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas,do sujeito pós-moderno. Descrevi isso através decinco descentramentos. Deixem-me lembrar outravez que muitas pessoas não aceitam as implicaçõesconceituais e intelectuais desses desenvolvimentosdo pensamento moderno. Entretanto, poucasnegariam agora seus efeitos profundamentedesestabilizadores sobre as idéias da modernidadetardia e, particularmente, sobre a forma como osujeito e a questão da identidade sãoconceptualizados.

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As CULTURAS NACIONAIS COMOCOMUNIDADES IMAGINADAS

Tendo descrito as mudanças conceptuais pelasquais os conceitos de sujeito e identidadeda modernidade tardia e da pós-modernidade

emergiram, me voltarei, agora, para a questão decomo este "sujeito fragmentado" é colocado emtermos de suas identidades culturais. A identidadecultural particular com a qual estou preocupadoé a identidade nacional (embora outros aspectosestejam aí implicados). 0 que está acontecendo àidentidade cultural na modernidade tardia?Especificamente, como as identidades culturaisnacionais estão sendo afetadas ou deslocadas peloprocesso de globalização?

No mundo moderno, as culturas nacionaisem que nascemos se constituem em uma dasprincipais fontes de identidade cultural. Ao nosdefinirmos, algumas vezes dizemos que somosingleses ou galeses ou indianos ou jamaicanos.Obviamente, ao fazer isso estamos falando deforma metafórica. Essas identidades não estãoliteralmente impressas em nossos genes.Entretanto, nós efetivamente pensamos nelascomo se fossem parte de nossa natureza essencial.

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As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADASA IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

0 filósofo conservador Roger Scruton argumentaque:

A condição de homem (sic) exige que o indivíduo,embora exista e aja como um ser autônomo, façaisso somente porque ele pode primeiramenteidentificar a si mesmo como algo mais amplo —como um membro de uma sociedade, grupo,classe, estado ou nação, de algum arranjo, aoqual ele pode até não dar um nome, mas que elereconhece instintivamente como seu lar (Scruton,1986, p. 156).

Ernest Gellner, a partir de uma posição maisliberal, também acredita que sem um sentimentode identificação nacional o sujeito modernoexperimentaria um profundo sentimento de perdasubjetiva:

A idéia de um homem (sic) sem uma nação parecei mpor uma (grande) tensão à imaginaçãomoderna. Um homem deve ter umanacionalidade, assim como deve ter um nariz eduas orelhas. Tudo isso parece óbvio, embora,sinto, não seja verdade. Mas que isso viesse aparecer tão obviamente verdadeiro é, de fato,um aspecto, talvez o mais central, do problemado nacionalismo. Ter uma nação não é um atributoinerente da humanidade, mas aparece, agora,corno tal (Gellner, 1983, p. 6).

0 argumento que estarei considerando aquié que, na verdade, as identidades nacionais nãosão coisas com as quais nós nascemos, mas sãoformadas e transformadas no interior darepresentação. Nós só sabemos o que significa ser

"inglês" devido ao modo como a " inglesidade "

(Englishness) veio a ser representada – como umconjunto de significados – pela cultura nacionalinglesa. Segue-se que a nação não é apenas umaentidade politica mas algo que produz sentidos–um sistema de representação cultural. As pessoasnão são apenas cidadãos/ãs legais de uma nação;elas participam da idéia da nação tal comorepresentada em sua cultura nacional. Uma naçãoé uma comunidade simbólica e é isso que explicaseu " poder para gerar um sentimento deidentidade e lealdade " (Schwarz, 1986, p.106).

As culturas nacionais são uma formadistintivamente moderna. A lealdade e aidentificação que, numa era pré-moderna ou emsociedades mais tradicionais, eram dadas à tribo,ao povo, à religião e à região, foram transferidas,gradualmente, nas sociedades ocidentais, à culturanacional. As diferenças regionais e étnicas foramgradualmente sendo colocadas, de formasubordinada, sob aquilo que Gellner chama de" teto politico" do estado-nação, que se tornou,assim, uma fonte poderosa de significados paraas identidades culturais modernas.

A formação de uma cultura nacionalcontribuiu para criar padrões de alfabetizaçãouniversais, generalizou uma única línguavernacular como o meio dominante decomunicação em toda a nação, criou uma culturahomogênea e manteve instituições culturais

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS

nacionais, como, por exemplo, um sistemaeducacional nacional. Dessa e de outras formas, acultura nacional se tornou uma característica-chaveda industrialização e um dispositivo da modernidade.Não obstante, há outros aspectos de uma culturanacional que a empurram numa direção diferente,trazendo à tona o que Homi Bhabha chama de "aambivalência particular que assombra a idéia danação" (Bhabha, 1990, p. 1). Algumas dessasambigüidades são exploradas no capítulo 4. Napróxima seção discutirei como uma cultura nacionalfunciona como um sistema de representação. Naseção seguinte, discutirei se as identidades nacionaissão realmente tão unificadas e tão homogêneas comorepresentam ser. Apenas quando essas duas questõestiverem sido respondidas é que poderemosconsiderar adequadamente o argumento de que asidentidades nacionais foram uma vez centradas,coerentes e inteiras, mas que estão sendo agoradeslocadas pelos processos de globalização.

Narrando a nação:uma comunidade imaginada

As culturas nacionais são compostas nãoapenas de instituições culturais, mas também desímbolos e representações. Uma cultura nacionalé um discurso – um modo de construir sentidosque influencia e organiza tanto nossas ações quantoa concepção que temos de nós mesmos (veja

Penguin Dictionary of Sociology: verbete"discourse"). As culturas nacionais, ao produzirsentidos sobre "a nação", sentidos com os quaispodemos nos identificar, constroem identidades.Esses sentidos estão contidos nas estórias que sãocontadas sobre a nação, memórias que conectamseu presente com seu passado e imagens que delasão construídas. Como argumentou BenedictAnderson (1983), a identidade nacional é umacomunidade imaginada".

Anderson argumenta que as diferençasentre as nações residem nas formas diferentespelas quais elas são imaginadas. Ou, como disseaquele grande patriota britânico, Enoch Powell:" a vida das nações, da mesma forma que a doshomens, é vivida, em grande parte, naimaginação" (Powell, 1969, p. 245). Mas comoé imaginada a nação moderna? Que estratégiasrepresentacionais são acionadas para construirnosso senso comum sobre o pertencimento ousobre a identidade nacional? Quais são asrepresentações, digamos, de " Inglaterra", quedominam as identificações e definem asidentidades do povo " inglês" ? "As nações " ,observou Homi Bhabha, " tais como as narrativas,perdem suas origens nos mitos do tempo eefetivam plenamente seus horizontes apenas nosolhos da mente" (Bhabha, 1990, p.l).Como écontada a narrativa da cultura nacional?

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A IDENTIDADE CULTURAL NA POS-MODERNIDADE As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS

Dos muitos aspectos que uma respostaabrangente à questão incluiria selecionei cincoelementos principais:

• Em primeiro lugar, há a narrativa danação, tal como é contada e recontada nashistórias e nas literaturas nacionais, namídia e na cultura popular. Essas fornecemuma série de estórias, imagens,panoramas, cenários, eventos históricos,símbolos e rituais nacionais quesimbolizam ou representam as experiênciaspartilhadas, as perdas, os triunfos e osdesastres que dão sentido à nação. Comomembros de tal "comunidade imaginada " ,nos vemos, no olho de nossa mente, comocompartilhando dessa narrativa. Ela dásignificado e importância à nossa monótonaexistência, conectando nossas vidascotidianas com um destino nacional quepreexiste a nós e continua existindo apósnossa morte. Desde a imagem de umaverde e agradável terra inglesa, com seudoce e tranqüilo interior, com seus chalésde treliças e jardins campestres — "a ilhacoroada " de Shakespeare — até àscerimônias públicas, o discurso da"inglesidade" (englishness) representa oque "a Inglaterra" é, dá sentido àidentidade de "ser inglês" e fixa a"Inglaterra " como um foco de identificação

nos corações ingleses (e anglófilos). Comoobserva Bill Schwarz:Essas coisas formam a trama que nos prendeinvisivelmente ao passado. Do mesmo modo queo nacionalismo inglês é negado, assim também oé sua turbulenta e contestada história. 0 queganhamos ao invés disso... é uma ênfase natradição e na herança, acima de tudo nacontinuidade, de forma que nossa cultura políticapresente é vista como o florescimento de umalonga e orgânica evolução (Schwarz, 1986, p.155).Em segundo lugar, há a ênfase nas origens,na continuidade, na tradição e naintemporalidade. A identidade nacional érepresentada como primordial — "está lá,na verdadeira natureza das coisas " ,algumas vezes adormecida, mas semprepronta para ser "acordada" de sua " longa,persistente e misteriosa sonolência", parareassumir sua inquebrantável existência(Gellner, 1983, p. 48). Os elementosessenciais do caráter nacional permanecemimutáveis, apesar de todas as vicissitudesda história. Está lá desde o nascimento,unificado e contínuo, " imutável" ao longode todas as mudanças, eterno. A sra.Thatcher observou, na época da Guerradas Malvinas, que havia algumas pessoas"que pensavam que nós não poderíamosmais fazer as grandes coisas que uma vez

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havíamos feito... que a Grã-Bretanha nãoera mais a nação que tinha construído umI mpério e dominado um quarto domundo... Bem, eles estavam errados... AGrã-Bretanha não mudou" (citado emBarnett, 1982, p. 63).

• Uma terceira estratégia discursiva éconstituída por aquilo que Hobsbawm eRanger chamam de invenção da tradição:"Tradições que parecem ou alegam serantigas são muitas vezes de origem bastanterecente e algumas vezes inventadas...Tradição inventada significa um conjuntode práticas..., de natureza ritual ou simbólica,que buscam inculcar certos valores e normasde comportamentos através da repetição, aqual, automaticamente, implica continuidadecom um passado histórico adequado". Porexemplo, "nada parece ser mais antigo evinculado ao passado imemorial do que apompa que rodeia a monarquia britânicae suas manifestações cerimoniais públicas.No entanto..., na sua forma moderna, elaé o produto do final do século XIX e XX"(Hobsbawm e Ranger, 1983, p.l).

• Um quarto exemplo de narrativa da culturanacional é a do mito fundacional: umaestória que localiza a origem da nação, dopovo e de seu caráter nacional numpassado tão distante que eles se perdem

nas brumas do tempo, não do tempo"real", mas de um tempo "mítico". Tradiçõesinventadas tornam as confusões e os desastresda história inteligíveis, transformando adesordem em "comunidade" (por exemplo,a Blitz ou a evacuação durante a II GrandeGuerra) e desastres em triunfos (por exemplo,Dunquerque). Mitos de origem tambémajudam povos desprivilegiados a "conce-berem e expressarem seu ressentimento esua satisfação em termos inteligíveis"(Hobsbawm e Ranger, 1983, p. 1). Elesfornecem uma narrativa através da qualuma história alternativa ou umacontranarrativa, que precede às rupturasda colonização, pode ser construída (porexemplo, o rastafarianismo para os pobresdespossuídos de Kingston, Jamaica; verHall, 1985). Novas nações são, então,fundadas sobre esses mitos. (Digo "mitos"porque, como foi o caso com muitas naçõesafricanas que emergiram depois dadescolonização, o que precedeu àcolonização não foi "uma única nação, umúnico povo", mas muitas culturas esociedades tribais diferentes).

• A identidade nacional é também muitas vezessimbolicamente baseada na idéia de umpovoou folk puro, original. Mas, nas realidadesdo desenvolvimento nacional, é raramente

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esse povo (folk) primordial que persiste ouque exercita o poder. Como, acidamente,observa Gellner: "Quando [os ruritananos]vestiram os trajes do povo e rumaram paraas montanhas, compondo poemas nos clarõesdas florestas, eles não sonhavam em setornarem um dia também poderososburocratas, embaixadores e ministros"(1983, p. 61).

O discurso da cultura nacional não é, assim,tão moderno como aparenta ser. Ele constróiidentidades que são colocadas, de modo ambíguo,entre o passado e o futuro. Ele se equilibra entrea tentação por retornar a glórias passadas e oimpulso por avançar ainda mais em direção àmodernidade. As culturas nacionais são tentadas,algumas vezes, a se voltar para o passado, a recuardefensivamente para aquele "tempo perdido " ,quando a nação era " grande " ; são tentadas arestaurar as identidades passadas. Este constituio elemento regressivo, anacrônico, da estória dacultura nacional. Mas freqüentemente esse mesmoretorno ao passado oculta urna luta para mobilizaras "pessoas " para que purifiquem suas fileiras,para que expulsem os "outros " que ameaçam suaidentidade e para que se preparem para uma novamarcha para a frente. Durante os anos oitenta, aretórica do thatcherismo utilizou, algumas vezes,os dois aspectos daquilo que Tom Nairn chamade "face de Janus" do nacionalismo (Nairn, 1977):

olhar para trás, para as glórias do passado imperiale para os "valores vitorianos " e, ao mesmo tempo,empreender uma espécie de modernização, empreparação para um novo estágio da competiçãocapitalista global. Alguma coisa do mesmo tipopode estar ocorrendo na Europa Oriental. As áreasque se separam da antiga União Soviéticareafirmam suas identidades étnicas essenciais ereivindicam uma nacionalidade sustentada por" estórias " (algumas vezes extremamenteduvidosas) de origens míticas, de ortodoxiareligiosa e de pureza racial. Contudo, elas podemtambém estar usando a nação como uma formaatravés da qual possam competir com outras"nações" étnicas e poder, assim, entrar no rico"clube" do Ocidente. Como tão agudamenteobservou Immanuel Wallerstein, " os nacionalismosdo mundo moderno são a expressão ambígua [deum desejo] por... assimilação no universal... e,simultaneamente, por... adesão ao particular, àreinvenção das diferenças. Na verdade, trata-sede um universalismo através do particularismo ede um particularismo através do universalismo"(Wallerstein, 1984, pp. 166-7).

Desconstruindo a "cultura nacional":identidade e diferença

A seção anterior discutiu como uma culturanacional atua como uma fonte de significados

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As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADASA IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

culturais, um foco de identificação e um sistemade representação. Esta seção volta-se agora paraa questão de saber se as culturas nacionais e asidentidades nacionais que elas constroem sãorealmente unificadas. Em seu famoso ensaio sobreo tema, Ernest Renan disse que três coisasconstituem o princípio espiritual da unidade deuma nação: " ...a posse em comum de um ricolegado de memórias..., o desejo de viver emconjunto e a vontade de perpetuar, de uma formaindivisiva, a herança que se recebeu" (Renan,1990, p. 19). Devemos ter em mente esses trêsconceitos, ressonantes daquilo que constitui umacultura nacional como uma " comunidadeimaginada": as memórias do passado; o desejo porviver em conjunto; a perpetuação da herança.

Timothy Brennan nos faz lembrar que apalavra nação refere-se "tanto ao moderno estado-nação quanto a algo mais antigo e nebuloso – anatio – uma comunidade local, um domicilio, umacondição de pertencimento" (Brennan, 1990, p.45). As identidades nacionais representamprecisamente o resultado da reunião dessas duasmetades da equação nacional – oferecendo tantoa condição de membro do estado-nação politicoquanto uma identificação com a cultura nacional:"tornar a cultura e a esfera politica congruentes"e fazer com que " culturas razoavelmentehomogêneas, tenham, cada uma, seu próprio tetopolitico" (Gellner, 1983, p. 43). Gellner identifica

claramente esse impulso por unfcação, existentenas culturas nacionais:

...a cultura é agora o meio partilhado necessário,o sangue vital, ou talvez, antes, a atmosferapartilhada mínima, apenas no interior da qual osmembros de uma sociedade podem respirar esobreviver e produzir. Para uma dada sociedade,ela tem que ser uma atmosfera na qual podemtodos respirar, falar e produzir; ela tem que ser,assim, a mesma cultura (Gellner, 1983, pp. 37-8).

Para dizer de forma simples: não importaquão diferentes seus membros possam ser emtermos de classe, gênero ou raça, uma culturanacional busca unificá-los numa identidadecultural, para representá-los todos comopertencendo à mesma e grande família nacional.Mas seria a identidade nacional uma identidadeunificadora desse tipo, uma identidade que anulae subordina a diferença cultural?

Essa idéia está sujeita à dúvida, por váriasrazões. Uma cultura nacional nunca foi um simplesponto de lealdade, união e identificação simbólica.Ela é também uma estrutura de poder cultural.Consideremos os seguintes pontos:

• A maioria das nações consiste de culturasseparadas que só foram unificadas por umlongo processo de conquista violenta – istoé, pela supressão forçada da diferençacultural. "0 povo britânico" é constituídopor uma série desse tipo de conquistas –

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE As CULTURAS NACIONAIS COMO COMUNIDADES IMAGINADAS

céltica, romana, saxônica, viking e normanda.Ao longo de toda a Europa, essa estória serepete ad nauseam. Cada conquistasubjugou povos conquistados e suas culturas,costumes, línguas e tradições, e tentou imporuma hegemonia cultural mais unificada.Como observou Ernest Renan, essescomeços violentos que se colocam nasorigens das nações modernas têm, primeiro,que ser "esquecidos", antes que se comecea forjar a lealdade com uma identidadenacional mais unificada, mais homogênea.Assim, a cultura "britânica" não consistede uma parceria igual entre as culturascomponentes do Reino Unido, mas dahegemonia efetiva da cultura " inglesa",localizada no sul, que se representa a siprópria como a cultura britânica essencial,por cima das culturas escocesas, galesas eirlandesas e, na verdade, por cima de outrasculturas regionais. Matthew Arnold, quetentou fixar o caráter essencial do povoinglês a partir de sua literatura, afirmou,ao considerar os celtas, que esses"nacionalismos provinciais tiveram que serabsorvidos ao nível do político, e aceitoscomo contribuindo culturalmente para acultura inglesa" (Dodd, 1986, p. 12).

• Em segundo lugar, as nações são semprecompostas de diferentes classes socaise diferentes grupos étnicos e de gênero.

0 nacionalismo britânico moderno foi oproduto de um esforço muito coordenado, noalto período imperial e no periodo vitorianotardio, para unificar as classes ao longo dedivisões sociais, ao provê-las com um pontoalternativo de identificação — pertencimentocomum a "família da nação" . Pode-sedesenvolver o mesmo argumento a respeitodo gênero. As identidades nacionais sãofortemente generificadas. Os significados eos valores da "inglesidade" (englishness) têmfortes associações masculinas. As mulheresexercem um papel secundário como guardiâsdo lar e do clã, e como "mães" dos "filhos"(homens) da nação.Em terceiro lugar, as nações ocidentaismodernas foram também os centros deimpérios ou de esferas neoimperiais deinfluência, exercendo uma hegemoniacultural sobre as culturas dos colonizados.Alguns historiadores argumentam,atualmente, que foi nesse processo decomparação entre as "virtudes" da"inglesidade " (Englishness) e os traçosnegativos de outras culturas que muitas dascaracterísticas distintivas das identidadesinglesas foram primeiro definidas (veja C.Hall, 1992).

Em vez de pensar as culturas nacionaiscomo unificadas, deveríamos pensá-las como

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constituindo um dispositivo discursivo querepresenta a diferença como unidade ouidentidade. Elas são atravessadas por profundasdivisões e diferenças internas, sendo "unificadas"apenas através do exercício de diferentes formasde poder cultural. Entretanto — como nas fantasiasdo eu "inteiro" de que fala a psicanálise lacaniana —as identidades nacionais continuam a serrepresentadas como unificadas.

Uma forma de unificá-las tem sido a derepresentá-las como a expressão da culturasubjacente de "um único povo". A etnia é o termoque utilizamos para nos referirmos àscaracterísticas culturais — língua, religião, costume,tradições, sentimento de "lugar" — que sãopartilhadas por um povo. E tentador, portanto,tentar usar a etnia dessa forma "fundacional".Mas essa crença acaba, no mundo moderno, porser um mito. A Europa Ocidental não temqualquer nação que seja composta de apenas umúnico povo, uma única cultura ou etnia. As naçõesmodernas são, todas, híbridos culturais.

E ainda mais difícil unificar a identidadenacional em torno da raça. Em primeiro lugar,porque — contrariamente à crença generalizada —a raça não é uma categoria biológica ou genéticaque tenha qualquer validade científica. Hádiferentes tipos e variedades, mas eles estão tãolargamente dispersos no interior do que chamamosde "raças" quantoentre uma "raça" e outra. A diferença

genética — o último refúgio das ideologias racistas —não pode ser usada para distinguir um povo dooutro. A raça é uma categoria discursiva e não umacategoria biológica. Isto é, ela é a categoriaorganizadora daquelas formas de falar, daquelessistemas de representação e práticas sociais(discursos) que utilizam um conjunto frouxo,freqüentemente pouco específico, de diferenças emtermos de características físicas — cor da pele,textura do cabelo, características físicas e corporais,etc. — como marcas simbólicas, a fim de diferenciarsocialmente um grupo de outro.

Naturalmente o caráter não científico dotermo "raça" não afeta o modo "como a lógicaracial e os quadros de referência raciais sãoarticulados e acionados, assim como não anula suasconseqüências (Donald e Rattansi,1992, p.l). Nosúltimos anos, as noções biológicas sobre raça,entendida como constituída de espécies distintas(noções que subjaziam a formas extremas daideologia e do discurso nacionalista em períodosanteriores: o eugenismo vitoriano, as teoriaseuropéias sobre raça, o fascismo) têm sidosubstituídas por definições culturais, as quaispossibilitam que a raça desempenhe um papelimportante nos discursos sobre nação e identidadenacional. Paul Gilroy tem analisado as ligaçõesentre, de um lado, o racismo cultural e a idéia deraça e, de outro, as idéias de nação, nacionalismoe pertencimento nacional:

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Enfrentamos, de forma crescente, um racismoque evita ser reconhecido como tal, porque écapaz de alinhar "raça" com nacionalidade,patriotismo e nacionalismo. Um racismo quetomou uma distância necessária das grosseirasidéias de inferioridade e superioridade biológicabusca, agora, apresentar uma definição imagináriada nação como uma comunidade culturalunificada. Ele constrói e defende uma imagemde cultura nacional — homogênea na suabranqüidade, embora precária e eternamentevulnerável ao ataque dos inimigos internos eexternos... Este é um racismo que responde àturbulência social e política da crise e àadministração da crise através da restauração dagrandeza nacional na imaginação. Sua construçãoonírica de nossa ilha coroada como etnicamentepurificada propicia um especial conforto contraas devastações do declínio (nacional) (Gilroy,1992, p.87).

Mas mesmo quando o conceito de "raça" éusado dessa forma discursiva mais ampla, asnações modernas teimosamente se recusam a serdeterminadas por ela. Como observou Renan, "asnações lideres da Europa são nações de sangueessencialmente misto: a França é [ao mesmotempo] céltica, ibérica e germânica. A Alemanhaé germânica, céltica e eslava. A Itália é o paísonde... gauleses, etruscos, pelagianos e gregos,para não mencionar outros, se intersectam numamistura indecifrável. As ilhas britânicas,consideradas como um todo, apresentam umamistura de sangue celta e germânico, cujas

proporções são particularmente difrceis de definir"(Renan, 1990, pp.14-15). E essas são misturasrelativamente simples se comparadas com asencontradas na Europa Central e Oriental.

Este breve exame solapa a idéia da naçãocomo uma identidade cultural unificada. Asidentidades nacionais não subordinam todas asoutras formas de diferença e não estão livres dojogo de poder, de divisões e contradições internas,de lealdades e de d iferenças sobrepostas. Assim,quando vamos discutir se as identidades nacionaisestão sendo deslocadas, devemos ter em mente aforma pela qual as culturas nacionais contribuempara "costurar" as diferenças numa únicaidentidade.

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4GLOBALIZAÇÃO

O capítulo anterior questionou a idéia deque as identidades nacionais tenhamsido alguma vez tão unificadas ou

homogêneas quanto fazem crer as representaçõesque delas se fazem. Entretanto, na históriamoderna, as culturas nacionais têm dominado a"modernidade" e as identidades nacionais tendema se sobrepor a outras fontes, mais particularistas,de identificação cultural.

0 que, então, está tão poderosamentedeslocando as identidades culturais nacionais,agora, no fim do século XX? A resposta é: umcomplexo de processos e forças de mudança, que,por conveniência, pode ser sintetizado sob o termo"globalização " . Como argumenta AnthonyMcGrew (1992), a "globalização " se refereàqueles processos, atuantes numa escala global,que atravessam fronteiras nacionais, integrandoe conectando comunidades e organizações emnovas combinações de espaço-tempo, tornando omundo, em realidade e em experiência, maisinterconectado. A globalização implica ummovimento de distanciamento da idéia sociológicaclássica da "sociedade" como um sistema bem

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PDS-MODERNIDADE GLOBALIZAÇÃO

delimitado e sua substituição por uma perspectivaque se concentra na forma como a vida socialestá ordenada ao longo do tempo e do espaço"(Giddens, 1990, p. 64). Essas novas característicastemporais e espaciais, que resultam na compressãode distâncias e de escalas temporais, estão entreos aspectos mais importantes da globalização ater efeito sobre as identidades culturais. Eles sãodiscutidos com mais detalhes no que se segue.

Lembremos que a globalização não é umfenômeno recente: "A modernidade é inerentementeglobalizante" (Giddens, 1990, p. 63). Comoargumentou David Held (1992), os estados-naçãonunca foram tão autônomos ou soberanos quantopretendiam. E, como nos faz lembrar Wallerstein,o capitalismo "foi, desde o início, um elementoda economia mundial e não dos estados-nação. 0capital nunca permitiu que suas aspirações fossemdeterminadas por fronteiras nacionais"(Wallerstein, 1979, p. 19). Assim, tanto atendência à autonomia nacional quanto atendência à globalização estão profundamenteenraizadas na modernidade (veja Wallerstein,1991, p. 98).

Devemos ter em mente essas duastendências contraditórias presentes no interior daglobalização. Entretanto, geralmente se concordaque, desde os anos 70, tanto o alcance quanto oritmo da integração global aumentaram

enormemente, acelerando os fluxos e os laçosentre as nações. Nesta e na próxima seção, tentareidescrever as conseqüências desses aspectos daglobalização sobre as identidades culturais,examinando três possíveis conseqüências:

• As identidades nacionais estão sedesintegrando, como resultado docrescimento da homogeneização culturale do "pós-moderno global".

• As identidades nacionais e outrasidentidades "locais" ou particularistasestão sendo reforçadas pela resistência àglobalização.

• As identidades nacionais estão em declino,mas novas identidades – híbridas – estãotomando seu lugar.

Compressão espaço-tempoe identidade

Que impacto tem a última fase daglobalização sobre as identidades nacionais? Umade suas características principais é a "compressãoespaço-tempo " , a aceleração dos processosglobais, de forma que se sente que o mundo émenor e as distâncias mais curtas, que os eventosem um determinado lugar têm um impactoimediato sobre pessoas e lugares situados a umagrande distância. David Harvey argumenta que:

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE GLOBALIZAÇÃO

A medida que o espaço se encolhe para se tornaruma aldeia "global" de telecomunicações e uma"espaçonave planetária " de interdependências

econômicas e ecológicas — para usar apenas duasimagens familiares e cotidianas — e à medida emque os horizontes temporais se encurtam até aoponto em que o presente é tudo que existe, temosque aprender a lidar com um sentimentoavassalador de compressão de nossos mundosespaciais e temporais (Harvey, 1989, p. 240).

0 que é importante para nosso argumentoquanto ao impacto da globalização sobre aidentidade é que o tempo e o espaço são tambémas coordenadas básicas de todos os sistemas derepresentação. Todo meio de representação – escrita,pintura, desenho, fotografia, simbolização através daarte ou dos sistemas de telecomunicação – devetraduzir seu objeto em dimensões espaciais etemporais. Assim, a narrativa traduz os eventosnuma seqüência temporal "começo-meio-fim"; ossistemas visuais de representação traduzem objetostridimensionais em duas dimensões. Diferentesépocas culturais têm diferentes formas decombinar essas coordenadas espaço-tempo.Harvey contrasta o ordenamento racional doespaço e do tempo da Ilustração (com seu sensoregular de ordem, simetria e equilíbrio) com asrompidas e fragmentadas coordenadas espaço-tempo dos movimentos modernistas do final doséculo XIX e início do século XX. Podemos vernovas relações espaço-tempo sendo definidas emeventos tão diferentes quanto a teoria da

relatividade de Einstein, as pinturas cubistas dePicasso e Braque, os trabalhos dos surrealistas edos dadaístas, os experimentos com o tempo e anarrativa nos romances de Marcel Proust e JamesJoyce e o uso de técnicas de montagem nosprimeiros filmes de Vertov e Eisenstein.

No capítulo 3 argumentei que a identidadeestá profundamente envolvida no processo derepresentação. Assim, a moldagem e a remoldagemde relações espaço-tempo no interior de diferentessistemas de representação têm efeitos profundossobre a forma como as identidades são localizadase representadas. 0 sujeito masculino, representadonas pinturas do século XVIII, no ato de inspeçãode sua propriedade, através das bem-reguladas econtroladas formas espaciais clássicas, nocrescente georgiano (Bath) ou na residência decampo inglesa (Blenheim Palace), ou vendo a sipróprio nas vastas e controladas formas daNatureza de um jardim ou parque formal(Capability Brown), tem um sentido muito diferentede identidade cultural daquele do sujeito que vê a"si próprio/a" espelhado nos fragmentados efraturados "rostos " que olham dos planos esuperficies partidos de uma das pinturas cubistasde Picasso. Todas as identidades estão localizadasno espaço e no tempo simbólicos. Elas têm aquiloque Edward Said chama de suas "geografiasimaginárias " (Said, 1990): suas "paisagens "

características, seu senso de "lugar" , de "casa/

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lar", ou heimat, bem como suas localizações notempo – nas tradições inventadas que ligam passadoe presente, em mitos de origem que projetam opresente de volta ao passado, em narrativas denação que conectam o indivíduo a eventos históricosnacionais mais amplos, mais importantes.

Podemos pensar isso de uma outra forma:nos termos daquilo que Giddens (1990) chamade separação entre espaço e lugar. O "lugar" éespecífico, concreto, conhecido, familiar,delimitado: o ponto de práticas sociais específicasque nos moldaram e nos formaram e com as quaisnossas identidades estão estreitamente ligadas:

Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugareram amplamente coincidentes, uma vez que asdimensões espaciais da vida social eram, para amaioria da população, dominadas pela presença"—por uma atividade localizada... A modernidadesepara, cada vez mais, o espaço do lugar, aoreforçar relações entre outros que estão"ausentes", distantes (em termos de local), dequalquer interação face-a-face. Nas condições damodernidade..., os locais são inteiramentepenetrados e moldados por influências sociaisbastante distantes deles. 0 que estrutura o localnão é simplesmente aquilo que está presente nacena; a "forma visível" do local oculta as relaçõesdistanciadas que determinam sua natureza(Giddens, 1990, p. 18).

Os lugares permanecem fixos; é neles quetemos "raízes". Entretanto, o espaço pode ser

"cruzado " num piscar de olhos – por avião a jato,por fax ou por satélite. Harvey chama isso de"destruição do espaço através do tempo " (1989,p. 205)

Em direção aopós-moderno global?

Alguns teóricos argumentam que o efeitogeral desses processos globais tem sido o deenfraquecer ou solapar formas nacionais deidentidade cultural. Eles argumentam que existemevidências de um afrouxamento de fortesidentificações com a cultura nacional, e umreforçamento de outros laços e lealdades culturais,"acima" e "abaixo " do nível do estado-nação. Asidentidades nacionais permanecem fortes,especialmente com respeito a coisas como direitoslegais e de cidadania, mas as identidades locais,regionais e comunitárias têm se tornado maisimportantes. Colocadas acima do nível da culturanacional, as identificações "globais" começam adeslocar e, algumas vezes, a apagar, as identidadesnacionais.

Alguns teóricos culturais argumentam quea tendência em direção a uma maiorinterdependência global está levando ao colapsode todas as identidades culturais fortes e estáproduzindo aquela fragmentação de códigosculturais, aquela multiplicidade de estilos, aquela

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PDS-MODERNIDADE GLoBALIZAÇAO

ênfase no efêmero, no flutuante, no impermanentee na diferença e no pluralismo cultural descritapor Kenneth Thompson (1992), mas agora numaescala global – o que poderíamos chamar de pós-moderno global. Os fluxos culturais, entre asnações, e o consumismo global criampossibilidades de "identidades partilhadas"–como "consumidores" para os mesmos bens,"clientes" para os mesmos serviços, "públicos "

para as mesmas mensagens e imagens – entrepessoas que estão bastante distantes umas dasoutras no espaço e no tempo. A medida em queas culturas nacionais tornam-se mais expostas ainfluências externas, é difícil conservar asidentidades culturais intactas ou impedir que elasse tornem enfraquecidas através dobombardeamento e da infiltração cultural.

As pessoas que moram em aldeiaspequenas, aparentemente remotas, em paísespobres, do "Terceiro Mundo", podem receber,na privacidade de suas casas, as mensagens ei magens das culturas ricas, consumistas, doOcidente, fornecidas através de aparelhos de TVou de rádios portáteis, que as prendem á "aldeiaglobal" das novas redes de comunicação. Jeans eabrigos – o "uniforme" do jovem na cultura juvenilocidental – são tão onipresentes no sudeste daAsia quanto na Europa ou nos Estados Unidos,não só devido ao crescimento da mercantilizaçãoem escala mundial da imagem do jovem

consumidor, mas porque, com freqüência, essesitens estão sendo realmente produzidos em Taiwanou em Hong Kong ou na Coréia do Sul, para aslojas finas de Nova York, Los Angeles, Londresou Roma. E dificil pensar na "comida indiana "

como algo característico das tradições étnicas dosubcontinente asiático quando há um restauranteindiano no centro de cada cidade da Grã-Bretanha.

Quanto mais a vida social se torna mediadapelo mercado global de estilos, lugares e imagens,pelas viagens internacionais, pelas imagens damídia e pelos sistemas de comunicaçãoglobalmente interligados, mais as identidades setornam desvinculadas – desalojadas – de tempos,lugares, histórias e tradições específicos e parecem"flutuar livremente" . Somos confrontados por umagama de diferentes identidades (cada qual nosfazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos adiferentes partes de nós), dentre as quais parecepossível fazer uma escolha. Foi a difusão doconsumismo, seja como realidade, seja comosonho, que contribuiu para esse efeito de"supermercado cultural" . No interior do discursodo consumismo global, as diferenças e asdistinções culturais, que até então definiam aidentidade, ficam reduzidas a uma espécie delíngua franca internacional ou de moeda global,em termos das quais todas as tradições específicase todas as diferentes identidades podem ser

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PDS-MODERNIDADE

traduzidas. Este fenômeno é conhecido como"homogeneização cultural".

Em certa medida, o que está sendo discutidoé a tensão entre o " global" e o " local" natransformação das identidades. As identidadesnacionais, como vimos, representam vínculos alugares, eventos, símbolos, histórias particulares.Elas representam o que algumas vezes é chamadode uma forma particularista de vínculo oupertencimento. Sempre houve uma tensão entreessas identificações e identificações maisuniversalistas – por exemplo, uma identificaçãomaior com a " humanidade" do que com a" inglesidade" (englishness). Esta tensão continuoua existir ao longo da modernidade: o crescimentodos estados-nação, das economias nacionais e dasculturas nacionais continuam a dar um foco paraa primeira; a expansão do mercado mundial e damodernidade como um sistema global davam ofoco para a segunda. No capítulo 5, que examinacomo a globalização, em suas formas maisrecentes, tem um efeito sobre as identidades,pensaremos esse efeito em termos de novos modosde articulação dos aspectos particulares euniversais da identidade ou de novas formas denegociação da tensão entre os dois.

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O GLOBAL, O LOCAL EO RETORNO DA ETNIA

A s identidades nacionais estão sendo"homogeneizadas " ? A homogeneizaçãocultural é o grito angustiado daqueles/as

que estão convencidos/as de que a globalizaçãoameaça solapar as identidades e a "unidade" dasculturas nacionais. Entretanto, como visão dofuturo das identidades num mundo pós-moderno,este quadro, da forma como é colocado, é muitosimplista, exagerado e unilateral.

Pode-se considerar, no mínimo, trêsqualificações ou contratendências principais. Aprimeira vem do argumento de Kevin Robin e daobservação de que, ao lado da tendência emdireção à homogeneização global, há também umafascinação com a diferença e com a mercantilizaçãoda etnia e da "alteridade". Há, juntamente com oimpacto do "global", um novo interesse pelo" local" . A globalização (na forma da especializaçãoflexível e da estratégia de criação de "nichos" demercado), na verdade, explora a diferenciaçãolocal. Assim, ao invés de pensar no global como"substituindo " o local seria mais acurado pensarnuma nova articulação entre "o global" e "o local" .

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A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE O GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIA

Este "local" não deve, naturalmente, serconfundido com velhas identidades, firmementeenraizadas em localidades bem delimitadas. Emvez disso, ele atua no interior da lógica daglobalização. Entretanto, parece improvável quea globalização vá simplesmente destruir asidentidades nacionais. E mais provável que elavá produzir, simultaneamente, novas identificações"globais" e novas identificações "locais".

A segunda qualificação relativamente aoargumento sobre a homogeneização global dasidentidades é que a globalização é muitodesigualmente distribuída ao redor do globo, entreregiões e entre d iferentes estratos da populaçãodentro das regiões. Isto é o que Doreen Masseychama de "geometria do poder" da globalização.

0 terceiro ponto na crítica dahomogeneização cultural é a questão de se sabero que é mais afetado por ela. Uma vez que adireção do fluxo é desequilibrada, e quecontinuam a existir relações desiguais de podercultural entre "o Ocidente" e "o Resto", podeparecer que a globalização — embora seja, pordefinição, algo que afeta o globo inteiro — sejaessencialmente um fenômeno ocidental.

Kevin Robins nos faz lembrar que:Embora tenha se projetado a si próprio comotrans-histórico e transnacional, como a forçatranscendente e universalizadora da modernizaçãoe da modernidade, o capitalismo global é, na

verdade, um processo de ocidentalização – aexportação das mercadorias, dos valores, dasprioridades, das formas de vida ocidentais. Emum processo de desencontro cultural desigual, aspopulações "estrangeiras " têm sido compelidas aser os sujeitos e os subalternos do impérioocidental, ao mesmo tempo em que, de formanão menos importante, o Ocidente vê-se face aface com a cultura "alienígena" e "exótica" deseu "Outro". A globalização, à medida quedissolve as barreiras da distância, torna o encontroentre o centro colonial e a periferia colonizadaimediato e intenso (Robins, 1991, p. 25).

Na última forma de globalização, são aindaas imagens, os artefatos e as identidades damodernidade ocidental, produzidos pelasindústrias culturais das sociedades "ocidentais"(incluindo o Japão) que dominam as redes globais.A prol iferação das escolhas de identidade é maisampla no "centro" do sistema global que nas suasperiferias. Os padrões de troca cultural desigual,familiar desde as primeiras fases da globalização,continuam a existir na modernidade tardia. Sequisermos provar as cozinhas exóticas de outrasculturas em um único lugar, devemos ir comerem Manhattan, Paris ou Londres e não em Calcutáou em Nova Delhi.

Por outro lado, as sociedades da periferiatêm estado sempre abertas ás influências culturaisocidentais e, agora, mais do que nunca. A idéiade que esses são lugares "fechados" — etnicamente

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puros, culturalmente tradicionais e intocados atéontem pelas rupturas da modernidade – é umafantasia ocidental sobre a "alteridade": uma"fantasia colonial" sobre a periferia, mantida peloOcidente, que tende a gostar de seus nativos apenascomo "puros" e de seus lugares exóticos apenascomo "intocados". Entretanto, as evidênciassugerem que a globalização está tendo efeitos emtoda parte, incluindo o Ocidente, e a "periferia"também está vivendo seu efeito pluralizador,embora num ritmo mais lento e desigual.

The Rest in the West(O Resto no Ocidente)

As páginas precedentes apresentaram trêsqualificações relativamente à primeira das trêspossíveis conseqüências da globalização, isto é, ahomogeneização das identidades globais. Elas são:

a) A globalização caminha em paralelo comum reforçamento das identidades Locais,embora isso ainda esteja dentro da lógicada compressão espaço-tempo.

b) A globalização é um processo desigual etem sua própria "geometria de poder".

c) A globalização retém alguns aspectos dadominação global ocidental, mas asidentidades culturais estão, em toda parte,

sendo relativizadas pelo impacto dacompressão espaço-tempo.

Talvez o exemplo mais impressionante desseterceiro ponto seja o fenômeno da migração. Apósa Segunda Guerra Mundial, as potências européiasdescolonizadoras pensaram que podiamsimplesmente cair fora de suas esferas coloniaisde influência, deixando as conseqüências doimperialismo atrás delas. Mas a interdependênciaglobal agora atua em ambos os sentidos. 0movimento para fora (de mercadorias, de imagens,de estilos ocidentais e de identidades consumistas)tem uma correspondência num enormemovimento de pessoas das periferias para o centro,num dos períodos mais longos e sustentados demigração "não-planejada" da história recente.Impulsionadas pela pobreza, pela seca, pela fome,pelo subdesenvolvimento econômico e porcolheitas fracassadas, pela guerra civil e pelosdistúrbios politicos, pelo conflito regional e pelasmudanças arbitrárias de regimes politicos, peladívida externa acumulada de seus governos paracom os bancos ocidentais, as pessoas mais pobresdo globo, em grande número, acabam poracreditar na "mensagem" do consumismo globale se mudam para os locais de onde vêm os "bens"e onde as chances de sobrevivência são maiores.Na era das comunicações globais, o Ocidente estásituado apenas à distância de uma passagem aérea.

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O GLOBAL, O LOCAL E O RETORNO DA ETNIAA IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

Tem havido migrações contínuas e de grandeescala, legais e "ilegais", para os Estados Unidos, apartir de muitos países pobres da América Latina eda bacia caribenha (Cuba, Haiti, Porto Rico,República Dominicana, ilhas do Caribe Britânico),bem como grande número de "migranteseconômicos" e de refugiados politicos do Sudesteda Asia e do Extremo Oriente – chineses, coreanos,vietnamitas, cambojianos, indianos, paquistaneses,japoneses. 0 Canadá tem uma substancial minoriade população caribenha. Uma conseqüência disso éuma mudança dramática na "mistura étnica" dapopulação dos Estados Unidos – a primeira desdeas migrações em massa das primeiras décadas desteséculo. Em 1980, um em cada cinco americanostinha origem afro-americana, asiático americana ouindígena. Em 1990, essa estatística era de um emcada quatro. Em muitas cidades grandes (incluindoLos Angeles, San Francisco, Nova York, Chicago eMiami), os brancos são agora uma minoria. Nos anos80, a população da Califórnia cresceu em 5,6milhões, 43 por cento dos quais eram pessoas decor – isto é, incluindo hispânicos e asiáticos, bemcomo afro-americanos (comparados com 33 porcento em 1980) – e um quinto tinha nascido noestrangeiro. Em 1995, previa-se que um terço dosestudantes das escolas públicas americanas seriaconstituído de "não-brancos " (Censo dos EstadosUnidos, 1991, citado em Platt, 1991).

Ao longo do mesmo periodo, houve uma" migração " paralela de árabes do Maghreb

(Marrocos, Argélia, Tunísia) para a Europa, e deafricanos do Senegal e do Zaire para a França epara a Bélgica; de turcos e norte-africanos para aAlemanha; de asiáticos das Índias Ocidentais eOrientais (ex-colônias holandesas) e do Surinamepara a Holanda; de norte-africanos para a Itália;e, obviamente, de pessoas do Caribe e da India,Paquistão, Bangladesh, Quênia, Uganda e SriLanka para o Reino Unido. Há refugiados politicosda Somália, Etiópia, Sudão e Sri Lanka e de outroslugares, em pequenos números, em toda parte.

Esta formação de " enclaves " étnicosminoritários no interior dos estados-nação doOcidente levou a uma "pluralização" de culturasnacionais e de identidades nacionais.

A dialética das identidades

Como esta situação tem se mostrado na Grã-Bretanha, em termos de identidade? 0 primeiroefeito tem sido o de contestar os contornosestabelecidos da identidade nacional e o de exporseu fechamento às pressões da diferença, da"alteridade" e da diversidade cultural. Isto estáacontecendo, em diferentes graus, em todas asculturas nacionais ocidentais e, como conseqüência,fez com que toda a questão da identidade nacionale da " centralidade" cultural do Ocidente fosseabertamente discutida.

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Num mundo de fronteiras dissolvidas e decontinuidades rompidas, as velhas certezas ehierarquias da identidade britânica têm sido postasem questão. Num país que é agora um repositóriode culturas africanas e asiáticas, o sentimento doque significa ser britânico nunca mais pode ter amesma velha confiança e certeza. 0 que significaser europeu, num continente colorido não apenaspelas culturas de suas antigas colônias, mas tambémpelas culturas americanas e agora pelas japonesas?A categoria da identidade não é, ela própria,problemática? E possível, de algum modo, emtempos globais, ter-se um sentimento de identidadecoerente e integral? A continuidade e a historicidadeda identidade são questionadas pela imediatez epela intensidade das confrontações culturais globais.Os confortos da Tradição são fundamentalmentedesafiados pelo imperativo de se forjar uma novaauto-interpretação, baseada nas responsabilidadesda Tradução cultural (Robins, 1991, p. 41).

Outro efeito desse processo foi o de terprovocado um alargamento do campo dasidentidades e uma proliferação de novas posições-de-identidade, juntamente com um aumento depolarização entre elas. Esses processos constituema segunda e a terceira conseqüências possíveis daglobalização, anteriormente referidas – apossibilidade de que a globalização possa levar aum fortalecimento de identidades locais ou âprodução de novas identidades.

O fortalecimento de identidades locais podeser visto na forte reação . defensiva daquelesmembros dos grupos étnicos dominantes que sesentem ameaçados pela presença de outrasculturas. No Reino Unido, por exemplo, a atitudedefensiva produziu uma "inglesidade"(englishness) reformada, um "inglesismo"mesquinho e agressivo e um recuo ao absolutismoétnico, numa tentativa de escorar a nação ereconstruir "uma identidade que seja una,unificada, e que filtre as ameaças da experiênciasocial" (Sennett, 1971, p.15). Isso freqüentementeestá baseado no que antes chamei de "racismocultural" e é evidente, atualmente, em partidospolíticos legais, tanto de direita quanto deesquerda, e em movimentos políticos maisextremistas em toda a Europa Ocidental.

Algumas vezes isso encontra umacorrespondência num recuo, entre as própriascomunidades comunitárias, a identidades maisdefensivas, em resposta à experiência de racismocultural e de exclusão. Tais estratégias incluem are-identificação com as culturas de origem (noCaribe, na India, em Bangladesh, no Paquistão);a construção de fortes contra-etnias – como naidentificação simbólica da segunda geração dajuventude afro-caribenha, através dos temas emotivos do rastafarianismo, com sua origem eherança africana; ou o revival do tradicionalismocultural, da ortodoxia religiosa e do separatismo

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político, por exemplo, entre alguns setores dacomunidade islâmica.

Também há algumas evidências da terceiraconseqüência possível da globalização – a produçãode novas identidades. Um bom exemplo é o dasnovas identidades que emergiram nos anos 70,agrupadas ao redor do significante black, o qual,no contexto britânico, fornece um novo foco deidentificação tanto para as comunidades afro-caribenhas quanto para as asiáticas. O que essascomunidades têm em comum, o que elasrepresentam através da apreensão da identidadeblack, não é que elas sejam, cultural, étnica,lingüística ou mesmo fisicamente, a mesma coisa,mas que elas são vistas e tratadas como "a mesmacoisa" (isto é, não-brancas, como o "outro") pelacultura dominante. E a sua exclusão que forneceaquilo que Laclau e Mouffe chamam de "eixocomum de equivalência" dessa nova identidade.Entretanto, apesar do fato de que esforços sãofeitos para dar a essa identidade black umconteúdo único ou unificado, ela continua a existircomo uma identidade ao longo de uma larga gamade outras diferenças. Pessoas afro-caribenhas eindianas continuam a manter diferentes tradiçõesculturais. 0 black é, assim, um exemplo nãoapenas do caráter político das novas identidadesisto é, de seu caráterposicional e conjuntural (suaformação em e para tempos e lugares específicos)mas também do modo como a identidade e a

diferença estão inextrincavelmente articuladas ouentrelaçadas em identidades diferentes, umanunca anulando completamente a outra.

Como conclusão provisória, parece entãoque a globalização tem, sim, o efeito de contestare deslocar as identidades centradas e "fechadas"de uma cultura nacional. Ela tem um efeitopluralizante sobre as identidades, produzindo umavariedade de possibilidades e novas posições deidentificação, e tornando as identidades maisposicionais, mais políticas, mais plurais e diversas;menos fixas, unificadas ou trans-históricas.Entretanto, seu efeito geral permanececontraditório. Algumas identidades gravitam aoredor daquilo que Robins chama de "Tradição " ,tentando recuperar sua pureza anterior e recobriras unidades e certezas que são sentidas como tendosido perdidas. Outras aceitam que as identidadesestão sujeitas ao plano da história, da política, darepresentação e da diferença e, assim, éimprovável que elas sejam outra vez unitárias ou"puras" ; e essas, conseqüentemente, gravitam aoredor daquilo que Robins (seguindo HomiBhabha) chama de "Tradução".

0 capítulo 6 descreverá, brevemente, essemovimento contraditório entre Tradição eTradução, num quadro mais amplo e global, eperguntará o que isso nos diz sobre o modo comoas identidades devem ser conceptualizadas, emrelação com os futuros da modernidade.

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Naquilo que diz respeito às identidades, essaoscilação entre Tradição e Tradução (que foirapidamente descrita antes, em relação à Grã-Bretanha) está se tornando mais evidente numquadro global. Em toda parte, estão emergindoidentidades culturais que não são fixas, mas queestão suspensas, em transição, entre diferentesposições; que retiram seus recursos, ao mesmotempo, de diferentes tradições culturais; e quesão o produto desses complicados cruzamentos emisturas culturais que são cada vez mais comunsnum mundo globalizado. Pode ser tentador pensarna identidade, na era da globalização, comoestando destinada a acabar num lugar ou noutro:ou retornando a suas "raízes" ou desaparecendoatravés da assimilação e da homogeneização. Masesse pode ser um falso dilema.

Pois há uma outra possibilidade: a daTradução. Este conceito descreve aquelasformações de identidade que atravessam eintersectam as fronteiras naturais, compostas porpessoas que foram dispersadas para sempre desua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculoscom seus lugares de origem e suas tradições, massem a ilusão de um retorno ao passado. Elas sãoobrigadas a negociar com as novas culturas emque vivem, sem simplesmente serem assimiladaspor elas e sem perder completamente suasidentidades. Elas carregam os traços das culturas,das tradições, das linguagens e das histórias

particulares pelas quais foram marcadas. Adiferença é que elas não são e nunca serãounificadas no velho sentido, porque elas são,irrevogavelmente, o produto de várias histórias eculturas interconectadas, pertencem a uma e, aomesmo tempo, a várias "casas" (e não a uma"casa" particular). As pessoas pertencentes a essasculturas híbridas têm sido obrigadas a renunciarao sonho ou à ambição de redescobrir qualquertipo de pureza cultural "perdida " ou deabsolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmentetraduzidas. A palavra "tradução", observa SalmanRushdie, "vem, etimologicamentc, do latim,significando "transferir"; "transportar entrefronteiras " . Escritores migrantes, como ele, quepertencem a dois mundos ao mesmo tempo,"tendo sido transportados através do mundo...,são homens traduzidos " (Rushdie, 1991). Elessão o produto das novas diásporas criadas pelasmigrações pós-coloniais. Eles devem aprender ahabitar, no mínimo, duas identidades, a falar duaslinguagens culturais, a traduzir e a negociar entreelas As culturas híbridas constituem um dosdiversos tipos de identidade distintivamente novosproduzidos na era da modernidade tardia. Hámuitos outros exemplos a serem descobertos.

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FUNDAMENTALISMO,DIÁSPORA E HIBRIDISMO

Algumas pessoas argumentam que o"hibridismo" e o sincretismo – a fusão entrediferentes tradições culturais – são uma

poderosa fonte criativa, produzindo novas formasde cultura, mais apropriadas à modernidade tardiaque às velhas e contestadas identidades dopassado. Outras, entretanto, argumentam que ohibridismo, com a indeterminação, a "duplaconsciência" e o relativismo que implica, tambémtem seus custos e perigos. 0 romance de SalmanRushdie sobre a migração, o Islã e o profetaMaomé, Versos satânicos, com sua profundaimersão na cultura islâmica e sua secularconsciência de um "homem traduzido " e exilado,ofendeu de tal forma os fundamentalistas iranianosque eles decretaram-lhe a sentença de morte,acusando-o de blasfêmia. Também ofendeu muitosmuçulmanos britânicos. Ao defender seuromance, Rushdie apresentou uma defesa forte eirresistível do "hibridismo":

No centro do romance está um grupo de personagens,a maioria dos quais é constituída de muçulmanosbritânicos, ou de pessoas não particularmente

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FUNDAMENTALISMO, DIÁSPORA E HIBRIDISMOA IDENTIDADE CULTURAL NA POS-MODERNIDADE

religiosas, de origem islâmica, lutando precisamentecom o mesmo tipo de problemas que têm surgidoem torno do livro, problemas de hibridização eguetização, de reconciliar o velho com o novo.Aquelas pessoas que se opõem violentamente aoromance, hoje, são de opinião de que a misturaentre diferentes culturais inevitavelmenteenfraquecerá e destruirá sua própria cultura. Souda opinião oposta. 0 livro Versos satânicos celebra ohibridismo, a impureza, a mistura, a transformação,que vêm de novas e inesperadas combinações deseres humanos, culturas, idéias, politicas, filmes,músicas. 0 livro alegra-se com os cruzamentos eteme o absolutismo do Puro. Mélange, mistura, umpouco disso e um pouco daquilo, é dessa forma queo novo entra no mando. E a grande possibilidadeque a migração de massa dá ao mundo, e eu tenhotentado abraçá-la. 0 livro Versos satânicos é a favorda mudança-por-fusão, da mudança-por-reunião. Euma canção de amor para nossos cruzados eus(Rushdie, 1991, p. 394).

Entretanto, o livro Versos satânicos podeperfeitamente ter ficado preso entre asirreconciliáveis forças da Tradição e da Tradução.Essa é a visão, simpática a Rushdie, mas tambémcrítica, de Bhiku Parekh (1989).

Por outro lado, existem também fortestentativas para se reconstruírem identidadespurificadas, para se restaurar a coesão, o"fechamento" e a Tradição, frente ao hibridismo eá diversidade. Dois exemplos são o ressurgimentodo nacionalismo na Europa Oriental e o crescimentodo fundamentalismo.

Numa era em que a integração regional noscampos econômicos e politicos, e a dissolução dasoberania nacional, estão andando muitorapidamente na Europa Ocidental, o colapso dosregimes comunistas na Europa Oriental e o colapsoda antiga União Soviética foram seguidos por umforte revival do nacionalismo étnico, alimentadopor idéias tanto de pureza racial quanto deortodoxia religiosa. A ambição para criar novos eunificados estados-nação (que, como sugeri acima,nunca realmente existiram nas culturas nacionaisocidentais) tem sido a força impulsionadora pordetrás de movimentos separatistas nos estadosbálticos da Estônia, Letônia e Lituânia, dadesintegração da Iugoslávia e do movimento deindependência de muitas das antigas repúblicassoviéticas (da Geórgia, Ucrânia, Rússia e Armêniaaté o Curdistão, Usbequistão e as repúblicasasiáticas islâmicas do antigo estado soviético). Omesmo processo, em grande parte, tem ocorridonas "nações" da Europa Central, que forammoldadas a partir da desintegração dos impériosaustro-húngaro e otomano, no final da PrimeiraGuerra Mundial.

Esses novos aspirantes ao status de "nação"tentam construir estados que sejam unificadostanto em termos étnicos quanto religiosos, e criarentidades políticas em torno de identidadesculturais homogêneas. O problema é que elascontêm, dentro de suas "fronteiras", minorias que

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se identificam com culturas diferentes. Assim, porexemplo, há minorias russas "étnicas" nasrepúblicas bálticas e na Ucrânia, poloneses étnicosna Lituânia, um enclave armênio (Nagorno-Karabakh) no Adzerbajão, minorias turco-cristãsentre as maiorias russas da Moldávia, e grandenúmero de muçulmanos nas repúblicas sulistasda antiga União Soviética, que partilham maiscoisas, em termos culturais e religiosos, com seusvizinhos islâmicos do Oriente Médio do que commuitos de seus "conterrâneos".

A outra forma importante de revival donacionalismo particularista e do absolutismo étnicoe religioso é, obviamente, o fenômeno do"fundamentalismo" . Isto é evidente em toda parte(por exemplo, no ressuscitado e mesquinho"inglesismo", anteriormente mencionado), emboraseu exemplo mais impressionante deva serencontrado em alguns estados islâmicos do OrienteMédio. Começando com a Revolução Iraniana,têm surgido, em muitas sociedades até entãoseculares, movimentos islâmicos fundamentalistas,que buscam criar estados religiosos nos quais osprincípios políticos de organização estejamalinhados com as doutrinas religiosas e com asleis do Corão. Na verdade, esta tendência é difícilde ser interpretada. Alguns analistas vêem-nacomo uma reação ao caráter "forçado" damodernização ocidental: certamente, ofundamentalismo iraniano foi uma resposta direta

aos esforços do Xá nos anos 70 por adotar, deforma total, modelos e valores culturais ocidentais.Alguns interpretam-no como uma resposta ao fatode terem sido deixados fora da "globalização". Areafirmação de "raízes" culturais e o retorno àortodoxia têm sido, desde há muito, uma das maispoderosas fontes de contra-identificação em muitassociedades e regiões pós-coloniais e do TerceiroMundo (podemos pensar, aqui, nos papéis donacionalismo e da cultura nacional nosmovimentos de independência indianos, africanose asiáticos). Outros vêem as raízes dofundamentalismo islâmico no fracasso dos estadosislâmicos em estabelecer lideranças "modernizantes"bem-sucedidas e eficazes ou partidos modernos,seculares. Em condições de extrema pobreza erelativo subdesenvolvimento econômico (ofundamentalismo é mais forte nos estados islâmicosmais pobres da região), a restauração da féislâmica é uma poderosa força política e ideológicamobilizadora e unificadora.

A tendência em direção à "homogeneizaçãoglobal", pois, tem seu paralelo num poderosorevival da "etnia", algumas vezes de variedadesmais híbridas ou simbólicas, mas tambémfreqüentemente das variedades exclusivas ou"essencialistas" mencionadas anteriormente.Bauman tem-se referido a esse "ressurgimento daetnia" como uma das principais razões pelas quaisas versões mais extremas, desabridas ou

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indeterminadas do que acontece com a identidadesob o impacto do "pós-moderno global" exige umaséria qualificação:

0 "ressurgimento da etnia"... traz para a linhade frente o florescimento não-antecipado delealdades étnicas no interior das minoriasnacionais. Da mesma forma, ele coloca em questãoaquilo que parece ser a causa profunda dofenômeno: a crescente separação entre opertencimento ao corpo politico e o pertencimentoétnico (ou mais geralmente, a conformidadecultural) que elimina grande parte da atraçãooriginal do programa de assimilação cultural... Aetnia tem-se tornado uma das muitas categorias,símbolos ou totens, em torno dos quaiscomunidades flexíveis e livres de sanção sãoformadas e em relação às quais identidadesindividuais são construídas e afirmadas. Existeagora, portanto, um número muito menordaquelas forças centrifugas que uma vezenfraqueceram a integridade étnica. Há, em vezdisso, uma poderosa demanda por umadistintividade étnica pronunciada (emborasimbólica) e não por uma distintividade étnicainstitucionalizada.

0 ressurgimento do nacionalismo e deoutras formas de particularismo no final do séculoXX, ao lado da globalização e a ela intimamenteligado, constitui, obviamente, uma reversãonotável, uma virada bastante inesperada dosacontecimentos. Nada nas perspectivas iluministasmodernizantes ou nas ideologias do Ocidente nem

o liberalismo nem, na verdade, o marxismo, que,apesar de toda sua oposição ao liberalismo,também viu o capitalismo como o agenteinvoluntário da "modernidade" previa um talresultado.

Tanto o liberalismo quanto o marxismo, emsuas diferentes formas, davam a entender que oapego ao local e ao particular dariamgradualmente vez a valores e identidades maisuniversalistas e cosmopolitas ou internacionais;que o nacionalismo e a etnia eram formas arcaicasde apego – a espécie de coisa que seria "dissolvida"pela força revolucionadora da modernidade. Deacordo com essas "metananativas" da modernidade,os apegos irracionais ao local e ao particular, àtradição e às raízes, aos mitos nacionais e às"comunidades imaginadas " , seriam gradualmentesubstituídos por identidades mais racionais euniversalistas. Entretanto, a globalização nãoparece estar produzindo nem o triunfo do "global"nem a persistência, em sua velha formanacionalista, do "local". Os deslocamentos ou osdesvios da globalização mostram-se, afinal, maisvariados e mais contraditórios do que sugeremseus protagonistas ou seus oponentes. Entretanto,isto também sugere que, embora alimentada, sobmuitos aspectos, pelo Ocidente, a globalizaçãopode acabar sendo parte daquele lento e desigual,mas continuado, descentramento do Ocidente.

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Page 50: A IDENTIDADE EM QUESTÃO

A IDENTIDADE CULTURAL NA PÓS-MODERNIDADE

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