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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN 1808-8716 Silva, Fernandes. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 3(gt16):1-17 A IDEIA DE PROGRESSO E A ABORDAGEM CTS GT 16 – Historiografia dos Estudos de Ciência e Tecnologia Sidney Reinaldo da Silva Rodrigo Fernandes

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VII ESOCITE.BR tecsoc - ISSN∕ 1808-8716 Silva, Fernandes. Anais VII Esocite.br/tecsoc 2017; 3(gt16):1-17

A IDEIA DE PROGRESSO E A ABORDAGEM CTS

GT 16 – Historiografia dos Estudos de Ciência e Tecnologia

Sidney Reinaldo da SilvaRodrigo Fernandes

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1. Introdução

O tema progresso é abordado nesse texto dando-se ênfase ao seu sentido programático

visando às potencialidades dessa ideia para a abordagem CTS (Ciência, Tecnologia e Sociedade).

Destaca-se como ponto de partida a forma como a ideia de progresso foi afirmada na modernidade

frente à correlação ciência tecnologia e sociedade. Na sequência, apresentam-se aspectos da

concepção iluminista e positivista do progresso e, posteriormente, uma repercussão do debate no

âmbito da teoria crítica, especialmente, na obra de Allen (2016). O objetivo foi mostrar como a

ideia de progresso continuou “sobrevivendo” como uma categoria crítica capaz de romper com a

dicotomia fatos valores na abordagem da CTS.

O progresso em seu sentido programático pressupõe a capacidade humana de intervir na

realidade e sobre si mesma para melhorar o mundo e aperfeiçoar-se. A categoria progresso remete

ao computo geral dos avanços feitos por uma sociedade num terminado período de tempo,

mostrando ao mesmo tempo como as condições de possibilidades para isso, uma certa forma de

liberdade e abertura do futuro humano, se mostram em uma época e podem mesmo ser

transformadas. Mas o progresso programático leva em conta a falibilidade dos seres humanos, o que

problematiza o processo de agenciamento (do) coletivo para identificar e promover o que se

considera a melhor opção para aperfeiçoar um estado de coisas. Mas, ainda que provisoriamente

aceita, essa opção exigiria continua identificação de possíveis e reais consequências funestas das

medidas tomadas em vistas de promover novos ajustes, corrigir rumos e mesmo amenizar danos

delas decorrentes.

Ao se falar em progresso, admite-se um rumo melhor para as coisas, algo que é mais

desejável do que outro, ainda que isso não seja tão transparente para os próprios agentes envolvidos

no processo, nem esteja ao alcance total ou mesmo parcialmente de seu controle. Mas o

agenciamento democrático do progresso pressupõe que, em boa medida, isso pode ser conhecido e

decidido coletivamente, de modo que todos os que forem afetados por ele possam ser ouvidos, ou

pelo menos, ter seus interesses e direitos levados em consideração.

Há três formas destacáveis de negar o progresso como passível de controle democrático. Na

primeira, há uma rejeição da possibilidade de progresso, afirmando-se que não se poderia

aperfeiçoar uma realidade, tomando-a ou não como estado final de um processo, o que é útil apenas

aos já privilegiados pela situação. É também ideológica a concepção de progresso como necessário

e inevitável, cuja marcha arrasta os seres humanos, que, querendo ou não, acabam contribuindo para

sua realização, tendo Deus, a natureza, o espírito absoluto, a humanidade genérica ou mesmo a

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tecnociência como o verdadeiro sujeito e não os homens de carne e osso, o que se daria

mesmo quando aparentemente indivíduos concretos, grupos e classes sociais estariam

definindo o que seria o melhor e como isso poderia e deveria ser promovido. Uma terceira

forma de ideologia antidemocrática relativa ao progresso mostra-o como um empreendimento

histórico e social, mas elitizado, cujo controle só poderia estar ao alcance de especialistas,

empresários ou aristocracias governamentais.

Defende-se que a categoria progresso, em seu escopo crítico normativo, malgrado toda

as suas desventuras, ainda possibilita, de forma problemática, abordar os nexos entre ciência,

tecnologia e sociedade. São apresentadas concepções e críticas às visões deterministas,

positivistas e elitistas do progresso. Como resultado dessa discussão, é indicada a contribuição

da ideia de progresso de Allen (2016), destacando o sentido de sua abordagem crítica pós-

colonialista para tratamento democrático de questões de CTS na perspectiva programática do

progresso.

2. Sobre o progresso programático

Narrativas sobre o progresso mostram a humanidade como sendo capaz de

aperfeiçoar-se ao longo do tempo, não apenas em termos de avanços no campo científico-

tecnológico, mas também ético e político, apontando para os nexos e correlações entre essas

dimensões da práxis humana. Contudo, cabe lembrar, a ideia de progresso é histórica. Nesse

sentido é discutível se todos os povos de alguma maneira a tiveram ou não ou mesmo se

importaram com o tema. Ideias como a de regresso, de um eterno presente, no sentido de que

não há nada de novo sob o sol, ou de um eterno retorno e mesmo de decadência em relação a

um passado paradisíaco também tem prevalecido na autocompreensão da temporalidade dos

povos. Bury (1920) defende que os antigos gregos não tiveram a ideia de progresso, o que é

objeto de contestação por parte de Nisbet (1986) e muitos outros. Há também o debate sobre

linearidade, necessidade e irreversibilidade como elementos ligados, necessariamente ou não,

à ideia de progresso. Como mostra Rossi (2000), o tema do naufrágio das civilizações é um

contraponto sempre presente da ideia de progresso: juntamente com a esperança de novidades

e melhoramentos da vida está o medo de catástrofes iminentes.

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De qualquer modo, a ideia de um progresso programático, como forma consciente de

direcionar o futuro para melhorar cada vez mais a realidade e a humanidade, baseando-se no

conhecimento científico, em projetos e métodos (arte social, tal como aparece em Condorcet e

Comte) se configura no final do Século Dezoito num momento de certa transição do

Iluminismo para o Positivismo. Nesse contexto, o progresso apresenta-se como inelutável, se

impondo, num prazo maior ou menor, mesmo quando ocorresse retrocessos temporários e

catástrofes pontuais, que não deteriam a marcha do aperfeiçoamento humano. Progredir faria

parte da natureza humana1. Mas a associação do progresso com a ideia de contingência

histórica e a autodeterminação democrática dos povos nem sempre foi muito clara e mesmo

aceitável.

Pensar o progresso como programa exige levar em conta seus aspectos epistemológico

e normativo. Do ponto de vista epistemológico, cabe perguntar como o progresso poderia ser

conhecido e que tipo de conhecimento seria esse. A ideia de que se progride é aprovada

quando se diz que o aperfeiçoamento é verdadeiro ou não é falso e quando se remete a um

valor relativo à bondade ou não do que se constata, ou seja, que algo melhor foi produzido.

Nesse sentido, o progresso remete ao mesmo tempo a juízos de valor e de fato. O fato

progresso só pode ser identificado quando um valor já foi estatuído de modo a poder ser

verificado ou não. Assim, pressupõe-se que a efetivação de um valor ou o incremento do

mesmo pode ser constatado empiricamente. Mas definir que valores são índices de progresso

é um processo ético-político.

A cesta dos valores definidores do que é progresso, ou seja, o que torna uma sociedade

melhor é ideologicamente definida. Contudo, no âmbito do discurso sobre o progresso, é

pacífico que este ocorre onde, por exemplo, não havia bem-estar, segurança e liberdade,

igualdade, justiça, e isso passa a existir ou, onde isso já havia sido constado e teria havido um

aumento ou expandido o campo onde se efetivam. Bem-estar, segurança, igualdade na

diversidade e liberdade são reconhecidos como índices mais eloquentes do progresso. Esses

índices permitem articular o incremento do conhecimento, das habilidades e das técnicas ao

1 O progresso não deixa de ser uma crença metafisica, tal como constata Bury (1920): “The process must be thenecessary outcome of the psychical and social nature of man; it must not be at the mercy of any external will;otherwise there would be no guarantee of its continuance and its issue, and the idea of Progress would lapseinto the idea of Providence.” (p. 7)

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progresso moral e político. Nesse sentido cabe aos teóricos do progresso provar que em

determinado contexto o aumento da eficácia e da produtividade foi acompanhado, e não

meramente compatível, com o aumento de felicidade, de autorrealização ou da solidariedade e

não meramente da competitividade, como usualmente os gerenciadores do capital costumam

fazer.

O progresso como programa pressupõe que, tendo ou não sido observado

aperfeiçoamento passado rumo a uma sociedade melhor, um povo pode intervir para

promover supostos aperfeiçoamentos em seu modo de ser. O filósofo Condorcet (1988) fala

de progressos que um povo aprende a continuar fazendo depois de estudar seu passado e de

progressos que certos povos recebem como lição de outros povos, de certo modo até de mão

beijada, mas também, em certos casos, como uma imposição. Nesse sentido, por afirmar a

supremacia da Europa na promoção do progresso, esse autor passou a ser identificado, muitas

vezes injustamente, como um dos arautos da concepção colonialista do progresso.

Condorcet sistematizou um programa para o progresso humano, detalhando como o

futuro poderia e deveria ser construindo no sentido de melhorar a humanidade, “eliminar a

desigualdade entre as nações, promover o progresso da igualdade em um mesmo povo e

aperfeiçoar de modo real o ser humano” (CONDORCET, 1988, p. 194). Pressupondo a

perfectibilidade como condição ontológica da humanidade, Condorcet também a estatuiu

como modelo normativo capaz de orientar a definição do bem e mal do ponto de vista

coletivo, dando assim um valor considerado, por muitos, como sagrado à ideia de progresso.

Contudo, o que fez esse filósofo, no contexto da Revolução Francesa, foi reafirmar a

pertinência e a necessidade da ideia de perfectibilidade para a abordagem de questões ético-

políticas, tais como: por que levar em conta o progresso quando se decide sobre o que

devemos fazer ou exigir uns dos outros? Devemos aceitar alguma obrigação política,

imposição coletiva ou governamental, em seu nome?

Mas Condorcet inspirou as concepções positivistas do progresso. Com o positivismo, a

programação do progresso tornou-se autoritária, tecnocrática. O progresso e a ordem passam a

fundamentar um programa de desenvolvimento da humanidade com nítida inspiração nas

ciências naturais, sobretudo na física e biologia. Assim escreve Comte:

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Para a nova filosofia, a ordem constitui sem cessar a condição fundamental doprogresso e, reciprocamente, o progresso vem a ser a meta necessária da ordem; comono mecanismo animal, o equilíbrio e a progressão são mutuamente indispensáveis, atítulo de fundamento ou destinação (COMTE, 1978, p. 69)

A concepção comteana de progresso como programa retoma a ideia de arte social de

Condorcet, radicalizando o tom cientificista desta, ou seja, conformando-a ao “espírito

positivo”.

Pois a arte não será mais então unicamente geométrica, mecânica ou química, etc.,mas também e sobretudo política e moral. A principal ação exercida pela Humanidadedeve, sob todos os aspectos, consistir no aprimoramento contínuo de sua próprianatureza, individual ou coletiva, dentre os limites que indicam, do mesmo modo queem todos os outros casos, o conjunto das leis reais. (COMTE, 1978, p 56)

Para Comte, o progresso seria controlado por uma elite, pois nem todas as

inteligências chegariam a compreender seus princípios e fundamentos, tal como ocorre com

os que se orientam pelos conhecimentos e técnicas sofisticadas decorrentes das mais variadas

ciências, sem jamais compreender as suas teorias. Ele cita como exemplo os marinheiros que

“arriscam cotidianamente suas existências, baseados na fé de teorias astronômicas que não

compreendem de modo algum”. (COMTE, 1978, p. 75). Por isso, ele afirma a necessidade de

uma autoridade espiritual, de uma aristocracia intelectual do progresso, para dirigir

sabiamente as aplicações das ciências e promover o progresso (LE GOFF, 1990). Há, no

projeto positivista, uma total incompatibilidade entre a ciência e a democracia na promoção

do desenvolvimento da humanidade. A ideologia do progresso comteana não tem nada de

democrática.

A tendência eurocêntrica do progresso também foi uma marca do positivismo. O

progresso passou a ser associado de diferentes modos a ideias darwinistas, racistas, liberais e

colonialistas (GOLDMAN, s.d.). Contudo, com a crise civilizacional do século XX, a ideia

de progresso foi duramente criticada e mesmo rejeitada. O otimismo em relação ao progresso

continuo e linear da humanidade deixou de fazer sentido perante as catástrofes ocorridas,

sobretudo, na Segunda Guerra Mundial.

Para Condorcet (1988), malgrado as interpretações positivistas de suas ideias, o

progresso trata-se antes de tudo de um critério ou guia da razão comum (pública), no sentido

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de “alertar” para a sua perfectibilidade2. Nesse sentido, suas ideias apontam para

possibilidades democráticas de agenciamento das decisões em torno da ciência e da

tecnologia. A exaltação da ideia de progresso, em sua obra, refere-se mais ao seu poder para

produzir legitimidade em torno do que se deve fazer e de crítica para avaliar as tendências de

uma sociedade.

Com a crise da ideia de progresso durante o Século XX, o otimismo condorcetiano foi

relegado à condição de mero desvario ou ilusão, dando relevo mais ao seu contrário, à crença

na decadência dos povos por meio da degeneração (HERMAN,1997) ou da regressão à

“barbárie”. Mas a ideia de perfectibilidade, ou seja, do valor do progresso, tem sido também

reabilitada na atualidade.

3. Uma perspectiva pós-colonialista do progresso

O progresso, para a teoria crítica, continua sendo uma categoria necessária para

conhecer e avaliar a correlação entre o incremento do conhecimento e das destrezas, da

ciência e da técnica, com o aperfeiçoamento social no sentido de se promover liberdade,

igualdade e justiça. A teoria crítica recusa pensar o progresso em termos apenas de avanço

tecnocientífico, o que seria uma forma de mutilar o seu poder investigativo, não

operacionalizando todas as potencialidades da categoria. Como diz Adorno, “a fetichização do

progresso reforça a sua particularidade, sua limitação às técnicas” (1992, p. 236).

Enquanto categoria de investigação histórica, o progresso possibilita reconstruir

trajetórias de avanços rumo a liberdade ou de retrocessos em relação a essa. Nesse sentido o

progresso se refere aos fatos, ao que empiricamente pode ser constado. Mas enquanto uma

categoria normativa o progresso identifica o que deve ser feito e como deve ser feito para que

se preserve os avanços realizados ou para levá-los mais adiante. Assim, como sendo capaz de

articular fato e valor no estudo da relação ciência, tecnologia e sociedade, a categoria

progresso refere-se à investigação da efetivação de um valor, ou seja, como algo considerado

melhor pode ser identificado no passado ou pode ser produzido no presente, permitindo

2 Condorcet põe a ideia de progresso a serviço do ideário da burguesia, contudo ele fez isso de tal modo que essatarefa não poderia ser realizada cabalmente sem desmontar o próprio projeto burguês, pois ele viveu nummomento em que a luta pela sociedade burguesa tinha atingido o seu limite (ADORNO, 1992)

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mesmo se conceber qual futuro também seria desejável. Mesmo numa forma mais pessimista

de reconhecer o valor do progresso, este se apresenta como resistência contra o sempre

presente perigo de recaída, ou no mínimo como uma forma de evitar que uma catástrofe se

instaure (ADORNO, 1992). As ideias de adorno sobre o progresso foram fundamentais para

romper com a concepção dogmática a respeito das possibilidades de aperfeiçoamento das

sociedades humana como mero espelhamento de suas realizações passadas.

Embora Adorno seja um pensador marcado pelo eurocentrismo, Allen aponta que em

sua dialética negativa o autor ofereceu importantes recursos para as estratégias pós-coloniais,

sobretudo como o conceito de diferença é destacado em sua obra, o que, numa coincidência

com Foucault3, leva o filosofo da Escola de Frankfurt também a admitir que “the

blematization of our own point of view has a normative point” (ALLEN, 2016, p. 196).

O pós-colonialismo é uma estratégia político-epistemológica não necessariamente

ligada ao pensar de povos que se libertaram de alguma forma de dominação e passaram a criar

uma nova cultura, filosofia, ciência e tecnologia. A abordagem pós-colonial tem sido mais

uma estratégia de combate e desconstrução de metanarrativas hegemônicas, sobretudo

eurocêntricas, das quais os textos sobre progressos são casos paradigmáticos. Allen (2016)

apropria-se do enfoque pós-colonial como uma oportunidade de autocrítica para os que

pensam a partir do centro.

De qualquer forma, a crítica pós-colonialista refere-se a uma guinada cultural, a um

novo modo de interpretar a história visando alternativas emancipadoras. Gurminder K.

Bhambra (2011) afirma que reinterpretar a história, aqui pode-se pensar também nas

3 “Adorno and Foucault encourage critical theorists to enter into intercultural dialogue with subaltern subjectswithout presuming that we already know what the outcome of that dialogue should be, that is to say, with anopenness to the very real possibility of unlearning. Indeed, both Foucault and Adorno see a kind of unlearning—a critical problematization of our own, historically sedimented point of view that frees us up in relation to it—asthe very point of critique. As such, their work makes room for the kind of openness to the other that Chakrabartyhas characterized as a ‘capacity to hear that which one does not already understand.’ Both Foucault andAdorno allow us to see how we might open ourselves up to postcolonial difference while realizing and acceptingthat we might be radically transformed in this encounter and that our future selves might well regard thattransformation as a kind of progress and we who resisted it as benighted. Moreover, both Foucault and Adornounderstand this openness not as a flatfooted rejection of the ideals of European modernity or Enlightenment butrather as a way of taking up this normative inheritance, that is, a way of reaffirming modernity’s core notions offreedom and justice to the Other by radically transforming the way that such notions are typically grounded andjustified.” (ALLEN, 2016, pp. 202-3.)

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narrativas de progresso, não é apenas propor diferentes interpretações dos fatos já

estabelecidos, ou seja dos “mesmos fatos”, mas trazer novos fatos, de modo a, a partir deles,

“to rethink our accepted frameworks of explanation, which have often been established on the

basis of much narrower histories.” (ALLEN, 2016, p. 662). Com isso, ela entende que novos

“insights about historical and social process” poderiam ser engendrando contestando os fatos

e interpretações até então hegemônicos4.

Allen (2016), por sua vez, destaca a importância da estratégia pós-colonialista que

inverte a interpretação da relação de dependência ao indicar que a Europa é o que é devido

mais as contribuições de suas colônias e sua relação com os países não ocidentais do que

propriamente a um suposto esforço interno isolado para se desenvolver. A afirmação de um

progresso histórico como fato europeu “is bound up with complex relation of domination,

exclusion and silencencing of colonized and racialized subjects” (ALLEN, 2016, p. 19). A

noção de estágios de desenvolvimento civilizacional como uma forma de mostrar a Europa no

topo da hierarquia do desenvolvimento precisou do encontro com os povos dos continentes

dominados para poder ser formulada. Na narrativa eurocêntrica do progresso, os habitantes

do novo continente passaram a ser concebidos como primitivos, menos civilizado e menos

desenvolvidos. A noção de diferentes e hierarquizados estágios de progressos foi associada à

inferioridade do outro, do “menos desenvolvido”, destaca a autora.

Allen (2016) propôs uma leitura “descolonizante” do progresso, num esforço de

resgatar o seu valor no interior da própria teoria crítica, movimento conhecido inicialmente

pela dura reprovação do progresso como fato, sua violência e guinada regressiva. Contudo,

para teóricos como Habermas e Honneth, que reafirmam o progresso como categoria crítica, o

seu valor decorre do processo de aprendizagem histórica que oferece uma orientação

imanente ou móvel moral de luta política por uma sociedade melhor ou mais justa5.

4 “The facts and interpretations that support standard ideas of European modernity, for example, are counteredby a growing body of literature that presents alternative interpretations and contestations of those ‘facts.’ Theweight of such arguments is sufficient to suggest that an alternative to the grand narrative of ‘Europeanmodernity’ is both plausible and likely to be productive of new insights about historical and social processes .”(BHAMBRA, 2011, p. 662)5 O progresso, para Habermas e Honneth, refere-se a um (…) “outcome of a learning process and thereforeneither merely conventional nor grounded in some a priori, transcendental conception of pure reason. Thisnormative orientation, in turn, provides us with a conception of the “good” or “more just” society that providesthe basis for our moral-political strivings.” (ALLEN, 2016, p. 14)

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A abordagem teórico-normativa do progresso revitalizou-se no seio da teoria critica

com novos enfoques em torno de como um valor melhor se realizou, se realiza ou pode se

realizar, o que pode ser verificado, de forma muito especial, na obra de Honneth (2015)

intitulada Das Recht der Freiheit (O direito da liberdade). Há uma retomada do valor do

progresso a partir do postulado de que na perspectiva do participante, o ser humano tende a

ver a si mesmo como capaz de se aperfeiçoar. O imperativo do progresso motiva o agir para

superar obstáculos à “melhoria” da vida individual e coletiva e para a criação de condições

capazes de garantir o aperfeiçoamento da humanidade. Nesse sentido, o progresso remete à

questão de como identificar e exigir um estado de coisas e/ou modo de ser melhor. Contudo,

indo além de Habermas e Honneth6, que teriam permanecido como guardiões da concepção

eurocêntrica do progresso, Allen propõe uma abordagem pós-colonial, apontando limites

críticos na forma eurocêntrica de ver o desenvolvimento da humanidade. Eis como Allen

destaca o valor da estratégia pós-colonial:

For perhaps the major lesson of postcolonial scholarship over the lastthirtyfive years has been that the developmentalist, progressive reading ofhistory—in which Europe or “the West” is viewed as more enlightened ormore developed than Asia, Africa, Latin America, the Middle East, and so on—and the so-called civilizing mission of the West, which served to justifycolonialism and imperialism and continues to underwrite the informalimperialism or neocolonialism of the current world economic, legal, andpolitical order, are deeply intertwined. In other words, as James Tully haspithily put the point, the language of progress and development is thelanguage of oppression and domination for two-thirds of the world’s people.(Allen, 2016, p. 175)

6 “In other words, both Habermas and Honneth are committed to the thought that critical theory needs to defendsome idea of historical progress in order to ground its distinctive approach to normativity and, thus, in order tobe truly critical. But it is precisely this commitment that proves to be the biggest obstacle to the project ofdecolonizing their approaches to critical theory”. (ALLEN, 2016, p. 3)

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Depois de reconhecer a validade dos contundentes ataques de Said7 à insensibilidade

da teoria crítica ao colonialismo e ao imperialismo, Allen retoma o progresso como uma

categoria passível de usos emancipadores. Ela reconhece, tal como tem ocorrido com boa

parte dos pensadores ligados à teoria crítica, que sem a ideia de progresso a crítica careceria

de parâmetro para avaliar as tendências das sociedades e a explorar possibilidades

escamoteadas.

A ideia de progresso não é associada apenas a usos ideológicos, tudo depende do

modo como passado e futuro são des/articulados. Nesse sentido, Allen descarta inicialmente

duas dimensões do progresso, uma relativa ao passado e outra relativa ao futuro, uma de

cunho empírico e a outra relativa ao que é desejável como um bem da coletividade. Assim diz

a autora: “I will call the forward-looking conception of progress “progress as an imperative”

and the backward-looking one “progress as a ‘fact.’ ”” (2016, p. 12). Para a autora, é

fundamental destacar essa forma de imiscuir fatos e valores como base crítica da categoria

progresso. Contudo ela chama a atenção para o risco de fundar normativamente o progresso

futuro no progresso como fato. Trata-se de manter uma atitude de suspeita em relação ao que

se chama de backward-looking progresso, evitar arrogância em relação a isso. Allen propõe

uma abordagem contingente e não fundamentalista do progresso futuro.

Juntamente com a assunção da contingência histórica do progresso passado e de suas

interpretações, marcadas por relações de poder e dominação na avaliação do que ou não é

progresso, Allen retoma também o projeto pós-colonialista da passagem do aprender para o

desaprender - do learning para unlearn (ALLEN, 2016, p. 210). Desaprender é uma forma de

7 In 1993, in his sequel to his groundbreaking and field-defining book Orientalism, Edward Said offers thefollowing indictment of Frankfurt School critical theory: “Frankfurt School critical theory, despite its seminalinsights into the relationships between domination, modern society, and the opportunities for redemptionthrough art as critique, is stunningly silent on racist theory, antiimperialist resistance, and oppositional practicein the empire.” Moreover, Said argues, this is no mere oversight; rather, it is a motivated silence. FrankfurtSchool critical theory, like other versions of European theory more generally, espouses what Said calls aninvidious and false universalism, a “blithe universalism” that “assume[s] and incorporate[s] the inequality ofraces, the subordination of inferior cultures, the acquiescence of those who, in Marx’s words, cannot representthemselves and therefore must be represented by others.” Such “universalism” has, for Said, played a crucialrole in connecting (European) culture with (European) imperialism for centuries, for imperialism as a politicalproject cannot sustain itself without the idea of empire, and the idea of empire, in turn, is nourished by aphilosophical and cultural imaginary that justifies the political subjugation of distant territories and their nativepopulations through claims that such peoples are less advanced, cognitively inferior, and therefore naturallysubordinate.” (ALLEN, 2016, p. 1)

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problematizar constantemente o próprio ponto de vista e a presunção de superioridade

cognitiva e moral frente ao outro. Cabe também aprender com quem não partilha o “nosso”

ponto de vista e evitar tornar universal, o que se reconhece como progresso identificado no

próprio contexto (ALLEN, 2016, p. 211). O contextualismo normativo, para Allen, evita o

dogmatismo de uma abordagem externa ou transcendental sem redundar em relativismo ou

ceticismo. Em sua apropriação da epistemologia contexto-coerentista, Allen mostra que o

conhecimento prático e a justificação recebem garantias da situação em que se inserem, desde

que se leve em conta a contingência de sua construção e evite cuidadosamente o apelo a um

ponto de vista autoritário, externo ou transcendente. Os compromissos normativos são vistos

como bases contingentes para se definir o para onde do progresso8.

As bases contingentes da normatividade do progresso se justificam no diálogo como

como crivo pós-colonial. É via tal diálogo que se poderia reconciliar a razão com a

democracia. Retomando a concepção de razão prática de Anthony Laden, Allen conecta a

estratégia pós-colonialista com o exercício democrático da abordagem do outro. Acredita-se

na possibilidade de um processo de sintonização e engajamento aberto e reciproco para se

construir um espaço de partilha e mapeamento de razões, sem a pretensão de disputar pelo

melhor argumento para se sobrepor ao outro. Nesse processo a um comprometimento de falar

com outros e não pelos outros (ALLEN, 2016, p, 221).

O acordo a respeito dos arranjos futuros, na proposta de Allen, não se prende apenas

ao aprendizado decorrente do progresso enquanto fato para balizar o que é o melhor, mas no

processo de des/aprendizagem com o outro, sem presunção de superioridade ou arrogância a

respeito do próprio ponto de vista normativo. Tal como ocorre com a suspeita relativa ao

progresso passado, a definição do que é desejável como progresso futuro deve manter-se

8 “Metanormative contextualism or contextualism about normative validity consists in two claims: First, moralprinciples or normative ideals are always justified relative to a set of contextually salient values, conceptions ofthe good life, or normative horizons—roughly speaking, forms of life or lifeworlds. Second, there is no über-context, no context-free or transcendent point of view from which we can adjudicate which contexts areultimately correct or even in a position of hierarchical superiority over which others. On this view, ournormative principles can be justified relative to a set of basic normative commitments that stand fast in relationto them, but because there is no context-transcendent point of view from which we can determine which contextsare superior to which others, those basic normative commitments must be understood as contingentfoundations.” (ALLEN, 2016, p. 215)

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aberta a contingência situacional e a constante problematização dos critérios usados para

identifica-lo:

This means that if we are to hold on to the idea of progress as a forward-

looking moralpolitical imperative, that commitment will have to go together

with a relentless and ongoing problematization not only of any and all

judgments about what would constitute progress but also of the normative

standards by which such progress could be measured. (ALLEN, 2016, p. 228)

Allen termina seu livro com a esperança de ter descolonizado a teoria crítica e

mostrado como a teoria pós-colonial poderia ser criticada. A abordagem CTS na perspectiva

da teoria crítica pós-colonial pode ser operacionalizada com uma concepção de progresso

programático democrático, mas em que sentido se poderia falar disso?

4. Considerações finais

O progresso programático tem como força normativa a autodeterminação de um povo

a se aperfeiçoar. O progredir é tomado como resultado positivo do esforço de uma nação para

promover consensualmente a ciência, a técnica e o ajuste de suas instituições sociais para

realizar certos valores tomados como norteadores ou desejáveis para promover justiça e vida

boa, índices mais consensuais do progresso.

Quando o progresso é posto como uma exigência externa, uma imposição ou ardil

colonial, o esforço e o sacrifício de um povo se dá no sentido de realizar valores que não são

seus, seu suposto aperfeiçoamento é então alienação. Uma concepção programática fincada na

democratização do progresso, para os que continuam o aceitando como um valor

problemático, marca-se pela recusa em tomá-lo como destino ou resultado de uma força

natural impelindo os povos rumo ao aperfeiçoamento e em afirmar arrogantemente que ele só

poderia ser realizado segundo o comando de uma elite.

A ideia pós-colonial de progresso apresenta uma dimensão crítica para denunciar

falsas e enganosas narrativas de aperfeiçoamento da humanidade que disfarçam o quanto isso

tem sido um longo e doloroso processo. Mas em que sentido, ao se reafirmar os potencias

críticos/emancipatórios da categoria progresso se poderia apontar possibilidades de controle

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democrático do aperfeiçoamento humano local e globalmente? Especificamente, seria viável

política e epistemologicamente uma abordagem do progresso democrático como categoria

central para os estudos e as práticas de CTS e, de modo invertido, uma abordagem CTS do

progresso?

Frente a isso, pode se inquirir a respeito de exigências para um agenciamento

democrático do progresso numa abordagem do campo CTS- Ciência Tecnologia e Sociedade.

Isso exige um rastreado da concepção que vigora no âmbito CTS do aprimoramento social

relativo ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia e dos sujeitos capazes de intervir nesse

processo. Conforme Linsingen, Pereira e Bazzo (2003), as questões de ciência, tecnologia e

sociedade têm extrapolado o mundo acadêmico tornando-se em centro de atenção e interesse

dos mais diversos segmentos sociais. Assim, afirmam os autores, ao se colocar “o processo

tecnocientífico no contexto social e defender a necessidade da participação democrática na

orientação de seu desenvolvimento, os estudos de CTS adquirem uma relevância pública de

primeira magnitude (2003, p. 9). Ter relevância pública significa entrar para uma arena de

disputa política, estar aberto à contingência da correlação de formas sociais, o que remete a

uma concepção de sociedade, ciência e tecnologia não determinista e não essencialista.

Os determinismos econômicos, científicos e tecnológicos são contraditórios, pois

negam a ação e a inciativa humanas onde se manifesta o seu maior potencial criativo, de

descoberta e invenção, justamente no âmbito da produção de riquezas, da investigação

científica, da criação e aperfeiçoamento de tecnologias. Mas o determinismo facilmente pode

ser usado para justificar decisões autoritárias e supostamente imparciais. Medidas de cunho

CTS formuladas por peritos para efetivar interesses específicos de grupo, classe, nação, etc.,

muitas vezes são mostradas como a única alternativa para produzir o melhor para todos, para

modernizar e fazer progredir. Nesse sentido, os agentes do progresso apenas captariam,

objetiva, neutra e indiferentemente, a necessidade do momento, como se não fossem sujeitos

envolvidos política, ética e ideologicamente no processo e não necessitassem de

problematizar sua própria concepção de aperfeiçoamento das coisas e muito menos dialogar

com os que não são especialistas, por mais que estes estejam interessados e sejam afetados

pelas decisões tomadas.

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Um argumento a favor da abordagem CTS na perspectiva do progresso refere-se a

possível desorientação normativa do campo se não a fizer. Assim, recusar a pensar o

progresso, significa abordar a CTS sem levar em conta se teria ocorrido e se poderão ocorrer

no futuro melhoria das condições de co/existência humana num mundo cada vez mais

marcado pela intervenção tecnocientífica ou se, na presente situação, nos resta apenas evitar

que o pior aconteça. Com isso se recusaria também pensar até que ponto as descobertas

científicas e tecnológicas têm aumentado a liberdade e recuado formas dominação e

autoritarismo ou estariam mais promovendo a degradação da convivência humana, regressões

ao que se costuma, quase sempre preconceituosamente, chamar de “barbárie”. Restariam,

portanto, o niilismo e o cinismo para pensar a relação das ciências humanas com as demais

ciências e suas tecnologias, uma vez que a menção de critérios avaliativos abrangentes sobre o

que é melhor em relação ao que se tem (como crivo de exigência pública) não seria mais

disponibilizado.

A abordagem do campo CTS foi sendo preparada em torno de discussões relativas ao

modo como a ciência e a tecnologia tornaram-se constitutivas para se identificar e promover o

desenvolvimento social em conformidade com os padrões de modernização. A categoria

progresso, contudo, tem perdido sua força numa era em que o interesse CTS volta-se mais

para a inovação. O termo inovação sobrepondo-se ao modo mais abrange do enfoque calcado

no progresso possibilita perceber o aprimoramento social apenas de maneira fragmentada e

setorialmente, seja no campo da produção de tecnologia ou do ajuste institucional. A inovação

não deixa de ser uma forma míope de abordagem CTS.

O progresso refere-se ao desenvolvimento da humanidade, seu desdobramento

histórico como macro sujeito mesmo frente ao seu esfacelamento, tão comum em abordagens

pós-colonialistas. Ao contrário disso, na investigação da inovação, basta apontar para o modo

como novos arranjos vão se configurando, no sentido de incrementar produtos e processos em

conformidades com exigências e necessidades do mercado, das comunidades ou do governo.

A inovação é contábil, é local e pontual. Pensar o campo CTS na perspectiva de um

emaranhado de acúmulo de inovações pontuais e empiricamente catalogáveis tornou-se uma

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prática necessária no gerenciamento dos atuais sistemas mercados, mas isso não é suficiente

para pensar articulações globais da relação ciência, tecnologia e sociedade.

Cabe também pensar o progresso a partir da perspectiva CTS e não apenas esta no

prisma daquele. Isso exige criticar a concepção de CTS como aparato crítico. Até onde vai o

seu comprometimento com a modernidade, que epistemologia se privilegia, como se

constituem os seus processos de produção de valores, sua normatividade? Em que sentido se

pode apontá-la como uma categoria advinda de fora e quais seus potenciais para pensar o

progresso numa perspectiva pós-colonial.

A obra de Allen sobre a necessidade de descolonizar a ideia de progresso para torná-la

adequadamente crítica é uma exigência também cabível para uma abordagem CTS

democrática. Mas quais são as potencialidades da abordagem pós-colonial do progresso e do

campo CTS, no contexto latino-americano? A resposta a essas perguntas exige uma retomada

do pensamento latino-americano sobre a relação ciência tecnologia e sociedade frente às

narrativas do progresso “para nós” em confronto com as abordagens do progresso como um

legado recebido ou imposto de fora.

5. Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. “Progresso”. In: Revista Lua Nova, n. 27. São Paulo, CEDEC, 1992.

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