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- A GUERRA DOS DEUSES RELIGIÃO E POLíTICA NA AMÉRICA LATINA. l aureado com o prêmio Sérgio Buarque de Holanda, concedido pela Fundação' Biblioteca Nacional do Rio de Janei- ro, este ensaio de Michael Lowy oferece uma análise renovada sobre o comple- xo desenvolvimento das re- lações entre as culturas religiosa e política na Amé- rica Latina nas últimas quatro décadas. Toman- do como marcos referenciais a Revolução Cubana e o pontificado de João XXIII, que promoveram intensas mudanças no conflituoso cenário latino americano, o autor volta seu olhar para movi- mentos religiosos comprometidos com a eman- cipação social e política, focalizando a Teologia da Libertação. Fenômeno dos mais expressivos no âmbi- to das relações políticas e religiosas no conti- nente, este movimento vem suscitando a produção de uma vasta literatura, com diversas abordagens e interpretações. No escopo dessas produções, A Guerra dos Deuses destaca-se por realizar um esforço compreensivo mais abrangente sobre o tema. Ao contrário da maio- ria dos trabalhos que lidam com esta problemá- tica, em geral restritos a estudos de caso de países específicos ou a aspectos particulares deste mo- vimento, este ensaio apresenta de modo vigoro- so uma análise geral acerca do engendramento do Cristianismo de Libertação, expressão empre- gada pelo autor para se referir à Teologia da Libertação que, mais que uma corrente teológi- ca, constitui-se num movimento social com im- plicações políticas marcantes. A metodologia utili- zada por Lowy baseia-se na sociologia cultural inspira- da em Marx e Weber, foca- lizando os conflitos de classe na América Latina e a tensão entre a ética cató- lica e o espírito do capita- lismo. Aqui, como em Redenção e Utopia (989), a noção de afinidade eletiva é evocada como instrumento para exploração e explicação do Cristianismo de Libertação. O título, enigmático à primeira vista, refe- re-se à expressão weberiana que define precisa- mente o ethos religioso e político da América Latina no período analisado. Por um lado, refle- te a luta que se desenvolve no interior do cam- po religioso entre duas concepções de Deus radicalmente distintas: o dos cristãos progressis- tas e os conservadores. Por outro, o conflito entre o Deus libertador e os ídolos da opressão repre- sentados pelo Capital, a Mercadoria, etc. C: 8). Embora se declare uma "pessoa sem fé", ao identificar-se ética e politicamente com a temática, o autor apresenta um texto permeado por uma visão otimista e, porque não dizer, esperançosa, em relação aos impactos e rumos do Cristianismo de Libertação enquanto forma de auto-emancipa- ção dos explorados na América Latina. O livro se divide em três grandes capítu- los e um posfácio. O primeiro capítulo, intitulado "Religião e política: revisitando Marx e Weber" apresenta uma análise minuciosa das perspecti- vas de autores marxistas acerca da religião. A discussão é iniciada com uma pergunta provo- cativa - "Marxismo e religião: ópio do povo?" DE MICHAEL Lõwv A Guerra dos Deuses. Religião e Política na América Latina. Petrópolis: Vozes. 272p. POR RENATA MARINHO' Doutoranda, aluna do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFC. MARINHO, RENATA. A GUERRA DOS DEUSES. RELIGIÃO E POLfTlCA NA AMÉRICA LATINA. P. 135 A 137 135

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-A GUERRA DOS DEUSES

RELIGIÃO E POLíTICA NA AMÉRICA LATINA.

laureado com o prêmioSérgio Buarque deHolanda, concedido

pela Fundação' BibliotecaNacional do Rio de Janei-ro, este ensaio de MichaelLowy oferece uma análiserenovada sobre o comple-xo desenvolvimento das re-lações entre as culturasreligiosa e política na Amé-rica Latina nas últimas quatro décadas. Toman-do como marcos referenciais a Revolução Cubanae o pontificado de João XXIII, que promoveramintensas mudanças no conflituoso cenário latinoamericano, o autor volta seu olhar para movi-mentos religiosos comprometidos com a eman-cipação social e política, focalizando a Teologiada Libertação.

Fenômeno dos mais expressivos no âmbi-to das relações políticas e religiosas no conti-nente, este movimento vem suscitando aprodução de uma vasta literatura, com diversasabordagens e interpretações. No escopo dessasproduções, A Guerra dos Deuses destaca-se porrealizar um esforço compreensivo maisabrangente sobre o tema. Ao contrário da maio-ria dos trabalhos que lidam com esta problemá-tica, em geral restritos a estudos de caso de paísesespecíficos ou a aspectos particulares deste mo-vimento, este ensaio apresenta de modo vigoro-so uma análise geral acerca do engendramentodo Cristianismo de Libertação, expressão empre-gada pelo autor para se referir à Teologia daLibertação que, mais que uma corrente teológi-ca, constitui-se num movimento social com im-plicações políticas marcantes.

A metodologia utili-zada por Lowy baseia-se nasociologia cultural inspira-da em Marx e Weber, foca-lizando os conflitos declasse na América Latina ea tensão entre a ética cató-lica e o espírito do capita-lismo. Aqui, como emRedenção e Utopia (989),a noção de afinidade eletiva

é evocada como instrumento para exploração eexplicação do Cristianismo de Libertação.

O título, enigmático à primeira vista, refe-re-se à expressão weberiana que define precisa-mente o ethos religioso e político da AméricaLatina no período analisado. Por um lado, refle-te a luta que se desenvolve no interior do cam-po religioso entre duas concepções de Deusradicalmente distintas: o dos cristãos progressis-tas e os conservadores. Por outro, o conflito entreo Deus libertador e os ídolos da opressão repre-sentados pelo Capital, a Mercadoria, etc. C: 8).

Embora se declare uma "pessoa sem fé", aoidentificar-se ética e politicamente com a temática,o autor apresenta um texto permeado por umavisão otimista e, porque não dizer, esperançosa,em relação aos impactos e rumos do Cristianismode Libertação enquanto forma de auto-emancipa-ção dos explorados na América Latina.

O livro se divide em três grandes capítu-los e um posfácio. O primeiro capítulo, intitulado"Religião e política: revisitando Marx e Weber"apresenta uma análise minuciosa das perspecti-vas de autores marxistas acerca da religião. Adiscussão é iniciada com uma pergunta provo-cativa - "Marxismo e religião: ópio do povo?"

DE MICHAEL Lõwv

A Guerra dos Deuses.Religião e Política na América Latina.

Petrópolis: Vozes. 272p.

POR RENATA MARINHO'

Doutoranda, aluna do Programa de Pós-graduação emSociologia da UFC.

MARINHO, RENATA. A GUERRA DOS DEUSES. RELIGIÃO E POLfTlCA NA AMÉRICA LATINA. P. 135 A 137 13 5

-cuja resposta principal é o não esgotamento poresta fórmula das complexas relações entre reli-gião e política. Lôwy apresenta as reflexões deMarx e Engels, mas também de autores comoRosa Luxemburgo, Lenin e Gramsci, entre ou-tros, permitindo compreender tanto as modifi-cações que vêm ocorrendo nas relações entremarxismo e religião, quanto o papel social des-ta última. Destacam-se Ernest Bloch e LucienGoldmann, pelas análises que fazem acerca dopotencial utópico da tradição judaico-cristã (:29-34), e José Carlos Mariátegui, referência basilarpara Gustavo Gutierrez, fundador da Teologiada Libertação.

Saindo de Marx e indo para Weber, Lôwyilumina o texto com um interessante insight: apartir da análise de A Ética Protestante e o Espí-rito do Capitalismo, ele afirma que a idéia dereligião como fator causal determinante do de-senvolvimento econômico não é, como se pen-sa freqüentemente, o principal argumento destetrabalho de Weber. Na parte intitulada "Éticacatólica e o espírito do capitalismo: o capítuloda sociologia da religião que Weber não escre-veu", o autor ressalta a existência de uma rela-ção de afinidade eletiva entre certas formasreligiosas (como o calvinismo, por exemplo) eo estilo de vida capitalista. Haveria também aexistência de um subtexto entre catolicismo eethos capitalista marcado pelo que Lowy deno-mina de antipatia cultural, ou uma afinidadenegativa (:40) entre ética católica e capitalismo.A igreja dos pobres da América Latina é herdei-ra da rejeição ética do catolicismo frente ao ca-pitalismo, especialmente da tradição francesa eeuropéia do socialismo cristão (elementos cui-dadosamente desenvolvidos no posfácio). Masnão se trata de dizer que o Cristianismo de Li-bertação é apenas uma continuação doanticapitalismo tradicional da Igreja. Ao contrá-rio: é a criação de uma nova cultura religiosa,que expressa as condições latino-americanas,marcadas pelo capitalismo dependente, desigual-dades sociais, violência institucionalizada e reli-giosidade popular (54-55).

136 REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS V. 33 N.2

o segundo capítulo "O cristianismo da li-bertação na América Latina" apresenta com aclareza peculiar aos textos de Lowy o que é aTeologia e o Cristianismo de Libertação, suasorigens e seu desenvolvimento, as relações des-ta corrente com diversos setores da hierarquiaeclesiástica e de movimentos religiosos laicos,além das divergências das igrejas católicas nointerior de cada país latino-americano. Emborase baseie na tradição marxista, o autor afirmaque entender o Cristianismo de Libertação a partirde questões econômicas e/ou interesses de classeé reduzir sua riqueza e autenticidade. Para ele,este movimento está voltado para a causa dospobres e explorados seguindo uma motivaçãoespiritual e moral fundada na fé e na tradiçãocristã e católica. Antes de ser um discurso sociale político, o cristianismo de libertação é umareflexão religiosa e espiritual, de acordo com amáxima consagrada em Puebla: a opção prefe-rencial pelos pobres.

Uma questão fundamental que norte ia aargumentação de Lowy refere-se à relação entrereligião e política no Cristianismo de Libertação.Novamente, a noção de afinidade eletiva éevocada para a compreensão da cultura destemovimento. Essa afinidade baseia-se numa ma-triz comum de crenças políticas e religiosas, per-mitindo a gestação de fortes relações entre éticareligiosa e utopias sociais na América Latina.

Religião e marxismo partilham a fé emvalores transindividuais, consideram os pobresinjustiçados, comungam uma perspectivauniversalista: a humanidade está acima de dife-renças étnicas, raciais, nacionais, etc: criticam aatomização, a alienação, a competição egoísta,etc; criticam o liberalismo e o capitalismo; am-bos tem a esperança de um reino futuro de paz,justiça, liberdade e fraternidade entre toda ahumanidade (:116-7). Há distanciamentos (notratamento que a Igreja dá aos pobres, por exem-plo), mas uma conjuntura histórica determina-da, caracterizada por forte polarização social epor conflitos políticos, aliada à Revolução Cu-bana e aos sucessivos golpes militares, assim

2002

-como a maior penetração do pensamento mar-xista entre intelectuais e estudantes fizeram comque religião e marxismo encetassem uma rela-ção mais profícua.

Após estas análises mais gerais, o terceirocapítulo "Política e religião na América Latina:três exemplos", está voltado para o estudo detrês casos latino-americanos: o brasileiro, o ni-caragüense e o salvadorenho. O autor tambémanalisa as contradições entre o ramo protestantedo cristianismo de libertação e a espetacularexpansão evangélica pentecostal, além da con-tra-ofensiva do Vaticano frente a essa expansãoe à própria Teologia da Libertação.

Embora este ensaio tenha sido publicadopela primeira vez em 1996 (edição inglesa), oautor confere a este capítulo uma tonalidade vi-vaz, sobretudo quando se refere ao caso brasi-leiro, talvez por querer se contrapor às visõespessimistas sobre o futuro deste movimento.Apesar de reconhecer suas contradições e limi-tações, o entusiasmo expresso no texto pode,em certa medida, obliterar a percepção dodeclínio da Teologia da Libertação que, aliadoao crescimento pentecostal e à força do movi-mento de renovação carismática católica no país,

constituem-se em elementos que, sobretudo naúltima década, vem alterando significativamen-te o cenário político-religioso no Brasil.

O livro termina com uma interrogação so-bre o futuro deste movimento diante de fatorescomo o conservadorismo do Vaticano (sobretu-do no pontificado de João Paulo 11),do avançopentecostal e do fim do socialismo no leste eu-ropeu. Ao questionar sobre o fim do Cristianis-mo de Libertação, Lowy reconhece a perda deespaço que este vem sofrendo nos últimos anosmas, ao apontar as suas evoluções e o seu ama-durecimento, se opõe às visões predominante-mente negativas e reafirma a força dessa novacultura religiosa que trouxe novas perspectivasde dignidade e auto-emancipação para os ex-plorados. Seu discurso aponta as dificuldades,as contradições e os entraves enfrentados poreste movimento mas, ainda assim, revela a con-fiança num futuro melhor.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Lowy, Michael. 1989. Redenção e Utopia. O judaís-mo libertário na Europa Central. (Um estudo de afi-nidade eletiva). São Paulo: Companhia das Letras.

MARINHO, RENATA. A GUERRA DOS DEUSES. RELIGIÃO E POLfTICA NA AMÉRICA LATINA. P. 135 A 137 137