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Copyright © Markus Zusak 2001Todos os direitos reservados.

TÍTULO ORIGINALGetting the Girl

TRADUÇÃOVera Ribeiro

REVISÃOShirley LimaJanaina Senna

CAPAMariana Newlands

FOTO DE CAPAEyecandy Images/SuperStock

GERAÇÃO DE EPUBIntrínseca

REVISÃO DE EPUBJuliana Latini

E-ISBN

Page 5: A garota que eu quero...assim. Para ser sincero, eu me perguntava se algum dia chegaria a hora de Cameron Wolfe (esse sou eu) se dar bem. Imaginara um eu diferente. Era diferente porque,

978-85-8057-372-5

Edição digital: 2013

Todos os direitos desta edição reservados à

Editora Intrínseca Ltda.Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar22451-041 — GáveaRio de Janeiro — RJTel./Fax: (21) 3206-7400www.intrinseca.com.br

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Um obrigado especial a Anna McFarlane,por sua confiança em meu trabalho de escritor.

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Para Scout,e para mamãe e papai.

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F

1

oi ideia da namorada do Rube fazer ospicolés de cerveja, não minha.

Vamos começar por aí.Foi um acaso ter sido eu quem saiu

perdendo por causa disso.Sabe, sempre achei que mais cedo ou

mais tarde eu ia crescer, mas isso aindanão tinha acontecido. Simplesmente eraassim.

Para ser sincero, eu me perguntava sealgum dia chegaria a hora de CameronWolfe (esse sou eu) se dar bem. Imaginara

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um eu diferente. Era diferente porque,naqueles momentos, eu achava querealmente me tornaria um vencedor.

A verdade, porém, era dolorosa.Era uma verdade que me dizia, com

uma brutalidade interna contundente, queeu era eu e que vencer não vinhanaturalmente para mim. Era algo peloqual tinha que lutar, nos ecos e naspegadas trilhadas da minha mente. Decerto modo, eu tinha que garimpar essesmomentos de satisfação.

Eu me masturbava.Um pouquinho.Certo.Certo.Muito.

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(Já me disseram que não se deveadmitir esse tipo de coisa muito cedo,porque as pessoas podem se ofender.Bem, tudo que posso dizer é: por quediabos não? Por que não dizer a verdade?Caso contrário, isso tudo não temsentido, tem?

Tem?)Eu queria apenas ser tocado por uma

garota, um dia. Queria que ela não meolhasse como se eu fosse um perdedorimundo, rasgado, meio risonho e meiocarrancudo que tentava impressioná-la.

Os dedos dela.Na minha cabeça, eles eram sempre

suaves, descendo pelo peito até minhabarriga. As unhas correriam por minhas

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pernas, bem de leve, enchendo minha pelede arrepios. Eu sempre imaginava isso,mas me recusava a crer que fosse puraquestão de tesão. E posso dizer issoporque, nos meus devaneios, as mãos dagarota paravam sempre no meu coração.Todas as vezes. Eu dizia a mim mesmoque era ali que queria que ela me tocasse.

Havia sexo, é claro.Nudez.Sempre presente, entrando e saindo

dos meus pensamentos.Mas, quando acabava, era pela voz

murmurante dela que eu ansiava, e porum ser humano enroscado em meusbraços. Só que, para mim, não era apenasuma porção de realidade. Eu estava

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engolindo visões e me espojando emminha própria mente, com a sensação deque poderia me afogar, satisfeito, dentrode uma mulher.

Nossa, como eu queria isso.Queria me afogar dentro de uma

mulher, no sentimento e no enlevo doamor que poderia lhe dar. Queria que aintensidade da pulsação dela meesmagasse. Era isso que eu queria. Eraisso que eu queria ser.

Mas.Não era.As únicas provinhas que eu conseguia

eram uma olhadela aqui e outra ali, eminhas esperanças e visões dispersas.

Os picolés de cerveja.

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É claro.Eu sabia que estava esquecendo

alguma coisa.Tinha sido um dia quente para o

inverno, embora o vento continuasse frio.O sol estava quente e meio pulsante.

Estávamos sentados no quintal,ouvindo o programa das tardes dedomingo sobre futebol americano e, comtoda a franqueza, eu olhava para aspernas, os quadris, o rosto e os seios danamorada mais recente do meu irmão.

O irmão em questão é o Rube (RubenWolfe) e, no inverno de que estoufalando, ele parecia ter uma novanamorada a cada poucas semanas. Àsvezes eu os ouvia, quando estavam no

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nosso quarto — um chamado ou grito,um gemido ou até um sussurro de êxtase.Eu tinha gostado da última namoradadele desde o começo, lembro bem. Onome dela era bonito: Octavia. Era artistade rua, além de simpática, comparada aalgumas das vadiazinhas que o Rubehavia levado para casa.

Nós a conhecemos no porto, em umatarde de sábado no fim do outono — elaestava tocando gaita, com uma jaquetavelha estendida a seus pés na qual aspessoas jogavam trocados. Havia ummonte de dinheiro nela, e Rube e euficamos assistindo, porque ela era muitoboa mesmo e arrebentava com aquelagaita. Às vezes as pessoas ficavam por

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perto e aplaudiam quando ela terminava.Até o Rube e eu jogamos dinheiro najaqueta a certa altura, logo depois de umvelhote de bengala e pouco antes de unsturistas japoneses.

Rube olhou para ela.Ela olhou para ele.Em geral, era só o que precisava,

porque aquele era o Rube. Meu irmãonunca tinha que realmente dizer nemfazer nada. Bastava ficar parado em algumlugar, ou se coçar, ou até mesmo tropeçarno meio-fio, e alguma garota começava agostar dele. Era assim com todas, e foiassim com a Octavia.

— E aí, onde você mora? —perguntou Rube.

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Lembro-me do verde-mar dos olhosdela elevando-se naquele momento. Rubejá ganhara a garota, eu sabia.

— Na zona sul, em Hurstville. Evocê?

Rube virou-se e apontou.— Sabe aquelas ruas feiosas depois da

Estação Central?Ela fez que sim.— Bom, é lá que nós moramos.Só o Rube poderia fazer aquelas ruas

horrorosas parecerem o melhor lugar domundo — e, com aquelas palavras, ele eOctavia tinham começado.

Uma das melhores coisas na Octaviaera que ela realmente reconhecia a minhaexistência. Não me olhava como se eu

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fosse um obstáculo entalado entre ela e oRube. Sempre perguntava: “Como vão ascoisas, Cam?”

A verdade é que...O Rube nunca amou nenhuma delas.Nunca se importou com elas.Só as queria por serem as próximas, e

por que não ficar com a próxima se eramelhor que a anterior?

Nem é preciso dizer que Rube e eunão somos muito parecidos em matériade mulher.

Mesmo assim.Eu sempre gostei da Octavia.Gostei quando entramos em casa

naquele dia, abrimos a geladeira e vimosuma sopa de três dias, uma cenoura, um

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treco verde e uma lata de cerveja ládentro. A gente se inclinou e ficouolhando fixamente.

— Perfeito.Isso foi o Rube quem disse, em tom

sarcástico.— O que é aquilo? — perguntou

Octavia.— O quê?— Aquela coisa verde.— Não faço a mínima ideia.— Um abacate?— Grande demais — observei.— Que diabo é aquilo? — perguntou

Octavia de novo.— Quem se importa? — intrometeu-

se Rube.

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Estava de olho na cerveja. O rótuloera a única coisa verde para a qual olhavafixamente.

— É do papai — disse eu, aindafitando a geladeira.

Nenhum de nós se mexeu.— E daí?— Daí que ele foi ver o jogo de

futebol americano do Steve com a mamãee a Sarah. Pode querer tomar uma cervejaquando chegar.

— É, mas ele também pode comprarmais no caminho.

O seio de Octavia roçou no meuombro quando ela se virou e saiuandando. Foi tão agradável que me fezestremecer.

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Imediatamente, Rube esticou a mão epegou a cerveja:

— Vale a pena arriscar — declarou.— De qualquer jeito, o velho tem andadode bom humor nos últimos dias.

Ele tinha razão.Um ano antes ele estava bem chateado

por ter perdido o emprego. Agora tinhabastante trabalho e, em um ou outrosábado, me pedia para ajudá-lo. Rubetambém. Meu pai é bombeiro hidráulico.

Sentamos à mesa da cozinha, os três.Rube.Octavia.Eu.E a cerveja, suando no centro da mesa.— Bem?

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A pergunta foi do Rube.— Bem o quê?— Bem, que diabos vamos fazer com

essa cerveja, seu idiota?— Vamos ficar calminhos, tá legal?Todos demos sorrisos tortos.Até a Octavia sorriu, porque já estava

acostumada com o jeito que Rube e eufalamos um com o outro, ou, pelo menos,o jeito que Rube fala comigo.

— Vamos dividir em três? —continuou ele. — Ou cada um toma umgole?

Foi então que Octavia teve a grandeideia.

— Que tal fazermos picolés decerveja?

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— Isso é uma piada de mau gosto? —perguntou Rube.

— É claro que não.— Picolés de cerveja? — Rube deu de

ombros e pensou um pouco. — Bem,acho que sim. Está bem quente, não é?Nós temos um daqueles troços deplástico para fazer picolé? Você sabe, comos pauzinhos?

Mas Octavia já investigava osarmários, e encontrou o que estavaprocurando.

— Na mosca.Sorriu (e tinha uma boca adorável,

com dentes certinhos, brancos, sensuais).— Está bem.Agora a coisa era séria.

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Rube abriu a cerveja e já ia servi-la, emquantidades iguais, é claro.

Interrupção.Eu.— Não devíamos lavar essas formas

ou sei lá o quê?— Por quê?— Bom, elas provavelmente passaram

uns dez anos nesse armário.— E daí?— Daí que devem estar todas mofadas

e nojentas e...— Será que eu posso servir a porcaria

da cerveja?Todos rimos de novo, tensos, e por

fim, com muito cuidado, Rube serviu trêsporções iguais de cerveja nas formas de

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picolé. Prendeu os palitos em cada formade modo que ficassem de pé.

— Certo. Graças a Deus por isso —disse ele, andando lentamente para ageladeira.

— No congelador — recomendei.Rube parou no meio do caminho,

virou-se para trás devagar, com cuidado, edisse:

— Você me acha mesmo ridículo obastante para pôr uma cerveja que acabeide tirar da geladeira, e de servir em formasde picolé, de volta na geladeira?

— Nunca se sabe.Ele se virou de novo e continuou

andando.— Octavia, abra o congelador, sim?

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Ela o fez.— Obrigado, querida.— Sem problemas.E então era só uma questão de esperar

os picolés endurecerem.Passamos um tempo sentados na

cozinha até Octavia perguntar — paraRube:

— Está a fim de fazer alguma coisa?Com a maioria das garotas, essa seria a

minha deixa para cair fora. Mas, comOctavia, eu não tinha certeza. Mesmoassim, fui saindo.

— Aonde você vai? — perguntouRube.

— Não sei.Saí da cozinha, peguei minha jaqueta

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para mais tarde e fui para a varanda dafrente. Já quase lá fora, mencionei:

— Talvez à pista de corridas de cães.Talvez só dar umas voltas por aí.

— Tudo bem.— Até logo, Cam.Com uma última olhada para Rube e

Octavia, percebi o desejo nos olhos deles.Octavia desejava Rube. O desejo de Rubeera por uma garota, só isso. Bem simples,na verdade.

— Até — respondi, e fui embora.A porta de tela bateu atrás de mim.Meus pés se arrastaram.Vesti um braço da jaqueta, depois

outro.Mangas quentes.

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Colarinho amarrotado.Mãos nos bolsos.Tudo certo.Saí andando.A noite logo tomou o céu e a cidade se

encolheu. Eu sabia aonde estava indo.Sem saber, sem pensar, sabia. Ia à casa deuma garota. Uma garota que eu conhecerano ano anterior, na pista de corrida decães.

Ela gostava.Ela gostava.Não de mim.Gostava do Rube.Tinha até me chamado de perdedor

uma vez, quando estava conversando comele, e eu entreouvi meu irmão dar-lhe um

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fora e empurrá-la para longe.O que eu fazia naqueles tempos era

ficar parado em frente à casa dela, dooutro lado da rua. Ficava lá, olhava,vigiava e torcia. E ia embora, depois queas cortinas ficavam fechadas por algumtempo. O nome dela era Stephanie.

Naquela noite, na qual hoje pensocomo a noite dos picolés de cerveja,fiquei lá, olhando fixamente, um poucomais que de costume. Parado, imaginei-me indo para casa com ela e abrindo aporta para ela. Imaginei com afinco, atéque uma dor funda me virou pelo avesso.

Fiquei ali.A alma do lado de fora.A carne do lado de dentro.

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— Enfim.Era uma boa caminhada, porque ela

morava em Glebe, e eu, mais perto daCentral, em uma ruazinha com bueirosdesnivelados e uma linha de trempassando ali perto. Mas eu estavaacostumado — com a distância e com arua. De certo modo, na verdade sintoorgulho de onde venho. Da casa pequena.Da família Wolfe.

Muitos minutos se arrastaramenquanto eu voltava para casa e, quandovi o pequeno furgão do meu pai na nossarua, cheguei a sorrir.

As coisas vinham mesmo correndobem para todo mundo, ultimamente.

Para Steve, meu outro irmão.

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Para Sarah, minha irmã.Para a Sra. Wolfe — a resiliente Sra.

Wolfe, minha mãe, que faz faxina emcasas e no hospital para ganhar a vida.

Para Rube.Para o papai.E para mim.Por alguma razão, ao voltar para casa

naquela noite, eu me sentia tranquilo.Feliz pela minha família inteira, porque ascoisas realmente pareciam estar indo bempara ela. Para todos os meus familiares.

Um trem passou a toda, e eu tive asensação de ouvir a cidade inteira nele.

Veio na minha direção e depoisdeslizou para longe.

As coisas sempre parecem deslizar

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para longe.Chegam até a gente, ficam por um

momento e tornam a partir.Naquele dia, o trem pareceu um amigo

e, quando foi embora, senti alguma coisadentro de mim tropeçar. Estava sozinhona rua e, embora continuasse sereno, abreve felicidade havia acabado e umatristeza me dilacerou, bem devagar e comdeterminação. As luzes da cidadebrilharam no ar, estendendo-me osbraços, mas eu sabia que elas nunca mealcançariam de verdade.

Recompus-me e entrei na varanda dafrente. Dentro de casa, estavam falandode picolés e do caso da cervejadesaparecida. Na verdade, eu estava

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ansioso para tomar a minha parte, emborajamais consiga terminar uma lata ougarrafa inteiras de cerveja. (Simplesmenteperco a sede, ao que Rube disse, certa vez:“Eu também, cara, mas continuo bebendomesmo assim.”) Mas a ideia do picolé erapelo menos meio interessante, e eu estavapronto para entrar e experimentar.

— Eu ia tomar aquela cerveja quandochegássemos — ouvi meu pai dizer,pouco antes de entrar em casa. Havia umtoque de maldade em sua voz. — E dequem foi a brilhante ideia de fazer picoléscom a minha cerveja, quer dizer, minhaúltima cerveja, aliás? De quem foi?

Houve uma pausa.Uma longa pausa.

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Silenciosa.E então, finalmente, veio a resposta,

no momento em que entrei na casa.— Minha.A única pergunta é: quem tinha

falado?Rube?Octavia?Não.Fui eu.Não me pergunte por quê, mas eu não

quis que Octavia levasse uma surra(verbal, é claro) de Clifford Wolfe, meupai. Era provável que ele fosse todo gentilcom ela, mas, mesmo assim, não valia apena arriscar. Era muito melhor eleacreditar que tinha sido eu. Estava

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acostumado a me ver fazer coisasridículas.

— Por que será que não estousurpreso? — perguntou ele, virando-separa mim com os picolés nas mãos.

Sorriu.O que foi bom, pode crer.Depois ele deu uma risada e disse:— Bem, Cameron, nesse caso, você

não se importa se eu tomar o seu, não é?— É claro que não.A gente sempre diz é claro que não em

situações assim, porque entende bemdepressa que, na verdade, o velho estáperguntando: “Posso tomar o picolé, oudevo fazer você sofrer de outras cemmaneiras diferentes?” É claro que não

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vou arriscar.Os picolés foram distribuídos, e

Octavia e eu trocamos um sorrisinho,depois fiz o mesmo com Rube, que meestendeu seu picolé.

— Quer um pedaço? — perguntou,mas recusei.

Saí da sala, ouvindo meu pai dizer:— Até que é bem gostoso.Cretino.— Aonde você foi? — perguntou-me

Rube no nosso quarto, mais tarde, depoisque Octavia foi embora.

Estávamos deitados nas nossas camas,conversando, cada qual em um lado doquarto.

— Só dei umas voltas por aí.

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— Lá para os lados de Glebe?Olhei para ele e perguntei:— O que isso significa?— Significa — prosseguiu Rube com

um suspiro — que um dia Octavia e euseguimos você, só por curiosidade, e ovimos em frente a uma casa, olhando pelajanela. Você é um cara meio solitário, nãoé?

Na hora, os momentos se contorcerame se enroscaram, e ouvi o trânsito aolonge, roncando quase em silêncio. Longedaquilo tudo. Longe de Cameron Wolfe eRuben Wolfe discutindo que diabo eufazia em frente à casa de uma garota quenão me dava a menor bola.

Então engoli em seco, respirei fundo e

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respondi a meu irmão:— É, acho que sou.Não havia mais nada que eu pudesse

dizer. Não havia como disfarçar. Houvesó um ligeiro momento de espera,verdade e sentimento, depois umaruptura, e continuei:

— É aquela garota, a Stephanie.— Aquela vadia — xingou Rube.— Eu sei, mas...— Eu sei — interrompeu ele. — Não

faz diferença se ela disse que detestavavocê ou se o chamou de perdedor. Agente sente o que sente.

A gente sente o que sente.Era uma das maiores verdades que o

Rube já tinha dito, pouco antes de uma

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quietude sufocar o quarto.No quintal da casa vizinha, ouvimos

um cachorro latir. Era Miffy, umdeplorável lulu-da-pomerânia queadorávamos detestar, mas que, mesmoassim, ainda levávamos para passearalgumas vezes por semana.

— Parece que o Miffy está meioaborrecido — observou Rube, depois dealgum tempo.

— É.Ri um pouco.Um cara meio solitário. Um cara meio

solitário...A afirmação do Rube reverberou

dentro de mim até sua voz parecer ummartelo.

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Mais tarde, quando me levantei esentei na varanda e assisti às sombras dotrânsito passarem, disse a mim mesmoque tudo bem ser assim, desde que eucontinuasse faminto. Parecia haver umacoisa brotando dentro de mim. Era algoque eu não via, nem conhecia ouentendia. Simplesmente estava lá,misturando-se no meu sangue.

Muito depressa, muitorepentinamente, palavras despencarampela minha mente. Aterrissaram no pisodos meus pensamentos e lá, lá embaixo,comecei a catá-las. Eram excertos deverdade recolhidos do meu interior.

Mesmo à noite, na cama, elas meacordaram.

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Pintaram-se no teto.Gravaram-se a fogo nos lençóis da

memória estendidos na minha mente.Quando acordei, no dia seguinte,

escrevi-as em um papel rasgado. E, paramim, o mundo mudou de cor naquelamanhã.

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N

AS PALAVRAS DECAMERON

ada vem fácil para um ser humano como eu.Isto não é uma queixa.

É só uma verdade.O único problema é que agora tenho visões

derramadas no chão da minha mente. Tenhopalavras lá dentro que estou tentando fazer comque saiam. Tentando escrever.

Palavras que vou escrever para mim.Uma história pela qual vou lutar.E assim começa...É noite e caminho pela cidade da minha

mente. Por ruas e becos. Por entre prédios que

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estremecem. Por entre casas recurvadas, com asmãos nos bolsos.

Ao passar por essas ruas, às vezes tenho asensação de que elas é que andam por mim. Ospensamentos dentro de mim parecem sangue.

Eu ando.Percebo.Para onde estou indo?, pergunto a mim

mesmo.O que estou procurando?Mas continuo a andar, e me aprofundo mais

na direção de um lugar desconhecido nestacidade. Sou atraído para ele.

Passo por carros feridos.Desço escadas mal iluminadas.Até chegar lá.Sinto.

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Sei.Sei que encontrei meu cerne em uma ruela

batida por sombras, em um beco em algum lugardeste lugar.

No fundo, alguma coisa espera.Dois olhos brilham.Engulo em seco.Meu coração me bate.Então continuo andando, para descobrir o

que é...Passo.Batida do coração.Passo.

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M

2

eu irmão mais velho, Steven Wolfe, éo que se chamaria de um cara durão. Ébem-sucedido. É inteligente. Édeterminado.

O negócio é que nada jamais detém oSteve. Isso não está apenas dentro dele.Está sobre ele, em volta dele. É algo que agente pode farejar, sentir. A voz dele éforte e calculada, e tudo nele diz: “Vocênão vai me atrapalhar.” Quando conversacom as pessoas, ele é bastante amável,mas, no minuto em que tentam levar

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vantagem sobre ele, pode esquecer. Sealguém lhe passar a perna, você podeapostar a sua casa que meu irmão vaiaprontar em dobro com o sujeito. Stevenunca esquece.

Já eu, por outro lado.Não me pareço muito com Steve nesse

ponto.Eu meio que perambulo muito por aí.É o que faço.Pessoalmente, acho que isso vem do

fato de eu não ter muitos amigos, ou, naverdade, amigo nenhum, pensando bem.

Houve uma época em que eurealmente ansiava por fazer parte de umgrupo de amigos. Queria uma turma decaras pelos quais me sentisse disposto a

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derramar meu sangue. Nunca aconteceu.Quando eu era mais novo, tive um amigochamado Greg, que era legal. Na verdade,fizemos uma porção de coisas juntos.Depois nos afastamos. Isso viveacontecendo com as pessoas, acho. Não énada especial. De certo modo, faço partedo grupo dos Wolfe, e isso basta. Sei, sema menor dúvida, que derramaria sanguepor qualquer um da minha família.

Em qualquer lugar.A qualquer hora.Meu melhor amigo é Rube.Já Steve, por outro lado, tem muitos

amigos, mas não derramaria sangue pornenhum deles, porque não confia quefariam o mesmo por ele. Nesse sentido,

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ele é tão sozinho quanto eu.Ele é sozinho.Eu sou sozinho.Só que, por acaso, há pessoas em volta

dele, só isso. (Pessoas no sentido deamigos, é claro.)

Mas, enfim, a razão por que estou lhedizendo tudo isso é que, às vezes, quandosaio perambulando à noite, vou até oapartamento do Steve, que fica a cerca deum quilômetro lá de casa. Em geral, équando não aguento ficar em frente à casadaquela garota, quando a dor disso dóidemais.

O Steve mora em um lugar legal, nosegundo andar, e tem uma garota quetambém mora lá. Muitas vezes, no

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entanto, ela não está em casa, porque fazvárias viagens de negócios e coisas assimpor conta da empresa em que trabalha.Sempre achei que ela era bem legal, acho,já que me aguentava quando eu visitavaSteve e ela estava em casa. Seu nome é Sale ela tem pernas bonitas. Esse é umdetalhe de que nunca consigo escapar.

— Oi, Cam.— Oi, Steve.É o que dizemos toda vez que apareço

e ele está em casa.Não foi diferente na noite seguinte ao

incidente do picolé de cerveja. Toquei acampainha no térreo. Ele me mandousubir. Dissemos o que sempre dizemos.

O engraçado é que, com o tempo,

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ficamos melhores em conversar um como outro. Na primeira vez, só ficamossentados, tomamos café preto e nãodissemos nada. Deixamos os olhosvagarem pelos poços de café e as vozespermanecerem adormecidas e em silêncio.Eu sempre pensei que talvez Steveguardasse uma espécie de ressentimentoda família Wolfe por parecer o únicobem-sucedido, pelo menos aos olhos domundo. Era como se talvez tivesse bonsmotivos para se envergonhar de nós.Nunca tive certeza.

Nos últimos tempos, depois que eleresolveu jogar futebol americano pormais um ano, chegamos até a ir ao campoali perto para bater uma bola. (Ou, na

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verdade, o Steve treinou chutes a gol e eudevolvia a bola.) Íamos lá, ele acendia asluzes e, mesmo quando fazia um friodanado e havia uma camada de gelo nochão e nossos pulmões eram destruídospelo ar do inverno, sempre passávamosalgum tempo lá. Quando ficava muitotarde, ele até me deixava em casa.

Nunca perguntava como o pessoal ia.Nunca. Steve era mais específico.

— A mamãe continua trabalhando atécair?

— Sim.— O papai está com trabalho

suficiente?— Sim.— A Sarah continua a sair, encher a

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cara e voltar para casa fedendo a boate,fumaça e bebida?

— Não, ela saiu dessa. Está semprefazendo hora extra no trabalho. Ela vaibem.

— O Rube continua a ser o Sr. Agito?Uma namorada atrás da outra? Uma brigaatrás da outra?

— Não, ninguém mais tem coragemde brigar com ele. — Rube é, sem dúvida,um dos melhores lutadores desta parte dacidade. Já provou isso. Inúmeras vezes.— Mas você tem razão sobre as garotas.

— É claro.Steve assentiu, e é aí que as coisas

sempre ficam meio tensas: quando se tratade perguntar sobre mim.

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O que ele poderia perguntar?“Continua sem nenhum amigo,

Cameron?”“Continua completamente sozinho,

Cameron?”“Continua perambulando pelas ruas,

Cameron?”“Continua com as mãos ocupadas

embaixo do lençol, Cameron?”Não.Toda vez, ele evita o assunto, como na

noite de que estou falando.— E você? — perguntou. Suspiro. —

Sobrevivendo?— É. — Balancei a cabeça. —

Sempre.Depois disso, houve mais silêncio, até

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eu perguntar com quem ele jogarianaquele fim de semana.

Como eu disse antes, o Steve resolveujogar mais um último ano de futebolamericano. No começo da temporada, seuantigo time implorou para que elevoltasse. Implorou tanto que ele acaboucedendo e, desde então, o time nãoperdeu um jogo. Steve é assim.

Naquela noite de segunda-feira, euainda estava com minhas palavras nobolso, porque havia decidido carregá-lascomigo para todo canto. Ainda estavamem um pedaço de papel amarrotado, emuitas vezes conferi para ver secontinuavam lá. Por um instante, à mesado Steve, cheguei a me imaginar falando

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sobre aquilo com ele. Eu me vi, me ouvi eme senti explicando que aquilo me faziasentir que eu valia a pena, que eusimplesmente estava bem. Mas não faleinada. Absolutamente nada, mesmoenquanto pensava: Acho que é isso que todosdesejamos, de vez em quando. Estar bem . Estarlegal. Era a imagem de olhar dentro de umespelho e não desejar nada, não precisarde nada, porque estava tudo ali...

Com as palavras nas mãos, era assimque eu me sentia.

Meneei a cabeça.Diante daquela perspectiva.— O que é? — perguntou Steve.— Nada.— Tudo bem.

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O telefone tocou.Steve:— Alô.Do outro lado:— Oi, sou eu.— Quem diabos é eu?Era o Rube.Steve sabia.Eu sabia.Mesmo a uma boa distância do

telefone, dava para saber que era o Rube,porque ele fala alto, especialmente aotelefone.

— Cameron está aí?— Está.— Vocês vão ao campo de futebol?— Talvez. — Steve me olhou e eu

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assenti. — Vamos, sim — respondeu.— Chego lá em dez minutos.— Está bem. Tchau.— Tchau.No fundo, acho que eu preferia

quando íamos só Steve e eu. Rube erasempre genial, vivia inventando coisas efazendo maluquices, mas, quando éramoseu e Steve, eu gostava da tranquilaintensidade de tudo aquilo. A gente podiaficar sem dizer uma palavra, e eu podia sójogar a bola de volta, com força e emlinha reta, e deixar a sujeira e o cheirodela baterem no meu peito, mas euadorava aquela sensação, assim como aideia de ser parte de algo silencioso everdadeiro.

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Não que eu nunca tivesse momentosassim com Rube. Eu tinha muitosmomentos ótimos com ele. Só acho que,com Steve, a gente realmente tem queconquistar esses momentos. Você ficariaesperando para sempre se quisesse umdeles de graça. Como eu já disse, poroutras razões, Steve é assim.

Quando descíamos para o térreo,minutos depois, ele disse:

— Ainda estou dolorido por causa dojogo de ontem. Tomei porrada nascostelas umas cinco vezes.

Era sempre a mesma coisa nos jogosdo Steve. O outro time sempre tratava dederrubá-lo com força. Ele sempre selevantava.

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Ficamos parados na rua, esperandoRube.

— Oi, garotos.Ao chegar, Rube estava um pouco sem

fôlego por causa da corrida. Seu cabelomacio, ondulado e volumoso era bonitodemais para o próprio bem dele, apesarde estar muito mais curto do que antes.Ele usava apenas uma camiseta de time,uma bermuda feita com uma calça decorrida cortada e tênis. Saía vaporcondensado de sua boca, por causa dofrio.

Começamos a andar, e Stevecontinuava o mesmo de sempre. Estavacom as mesmas calças jeans velhas queusava no campo de futebol e camisa de

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flanela xadrez. Chuteiras. Seus olhosficaram atentos, esquadrinhando ocaminho, e o cabelo era curto e espetado,de aspecto áspero. Steve era alto e rude;exatamente o tipo de sujeito com quem segostaria de andar pela rua.

Especialmente no centro da cidade.Especialmente no escuro.E então havia eu.Talvez a melhor maneira de me

descrever naquela noite fosse reexaminarmeus irmãos. Ambos tinham tudo sobcontrole. Rube, de um jeito temerário, noestilo haja o que houver, estarei pronto quandofor a hora. Steve, no estilo não há nada quevocê possa fazer que vá me ferir.

Meu rosto era o normal para mim.

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Concentrava-se em muitas coisas, masnunca por muito tempo, e acabavaficando voltado para meus pés, quepercorriam a ladeira leve. Meu cabeloestava arrepiado, e era crespo edesalinhado. Eu usava uma camiseta igualà do Rube (só que a minha estava umpouco mais desbotada), jeans velhos, umajaqueta impermeável e botas. Disse a mimmesmo que, embora nunca pudesse ter aaparência de meus irmãos, eu ainda tinhaalguma coisa.

Tinha as palavras no meu bolso.Talvez fosse isso que eu tinha.Isso e saber que eu havia caminhado

mil vezes sozinho pela cidade, e que sabiaandar pelas ruas com mais sentimento

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que qualquer um, como se andasse pordentro de mim. Tenho certeza de que eraassim — mais uma sensação que um jeito.

No campo, Steve deu chutes a gol.Rube deu chutes a gol.Eu devolvi a bola para eles.Quando Steve chutava, a bola subia

alto e continuava a se elevar entre astraves. Era um chute limpo e de longoalcance, e, quando descia, a bola batia nomeu peito com uma força completa eentorpecedora. Os chutes do Rube, poroutro lado, faziam a bola girar e espiralar,baixa e forte, mas também passava entreas traves. Sempre.

Eles chutavam de toda parte. Deperto. De longe. Até de fora do campo.

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— Ei, Cam! — gritou Rube, a certaaltura. — Venha aqui dar um chute!

— Não, cara, estou legal.Mas os dois me obrigaram. A vinte

jardas de distância, vinte jardas àesquerda. Fui até lá com o coraçãotrêmulo. Meus pés se firmaram, chutei abola e ela partiu para as traves.

Fez uma curva.Rodopiou.Em seguida, bateu na trave direita e

desabou no gramado.Silêncio.— Foi um bom chute, Cameron —

comentou Steve, e nós três ficamos lá,parados na grama úmida e gotejante.

Eram oito e quinze.

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Às oito e meia, Rube foi embora, e eutinha dado mais sete chutes.

Pouco depois das nove e meia, Stevecontinuava parado atrás das traves e euainda não havia conseguido fazer a bolapassar. Pedaços de escuridão pesavam nocéu, e agora éramos só Steve e eu.

Toda vez que meu irmão devolvia abola, eu procurava por um toque dereclamação, mas ele nunca veio. Sefôssemos mais novos, ele poderia ter mechamado de imprestável. De incorrigível.Tudo o que fez naquela noite, porém, foichutar a bola de volta para mim eaguardar.

Quando enfim a bola venceu adistância e passou entre as traves, Steve a

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pegou e ficou parado.Sem um sorriso.Sem um aceno de cabeça nem sinal de

reconhecimento.Ainda não.Pouco depois, ele veio andando com a

bola embaixo do braço e, quando estava apouco menos de dez metros de mim,lançou-me um olhar.

Seus olhos me fitaram de um jeitodiferente.

Com uma expressão vaidosa.Então.Eu nunca tinha visto o rosto de uma

pessoa se abrir daquele jeito.De orgulho.

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C

ENTRA O CÃO

hego mais perto aos pouquinhos, em direçãoaos olhos brilhantes que tinha visto dentro de

mim.A cidade está fria e escura.Este beco está cheio de torpor.O céu afunda. Escuro, escuro céu.Agora estou ali, talvez a uns cinco metros de

um bicho que me encara. Meus olhos se adaptame eu o vejo inteiro, encolhido no chão.

Vejo os olhos.O pelo áspero, irregular, cor de ferrugem.Respirando, arfando vapor.Lentamente, chego mais perto.Perto demais.

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Chego perto demais e o cachorro se levanta derepente e me rodeia, atento. Mantém a cabeçabaixa, mas tenta olhar para cima.

Passa por mim, para e olha para trás.— O que é? — pergunto.Mas eu sei.Tenho que segui-lo.Aos poucos, ele me conduz pelas ruas de

volta ao campo. Move-se com o que só possochamar de uma graça irregular.

E então.Há um lugar no chão.Na grama orvalhada.Ele para e se senta ali, e a cidade parece

morta à nossa volta.Gosto dos olhos dele.Parecem desejo.

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B

3

icha. Veado. Punheteiro.Quando alguém quer dar um esporro,

fazer o outro cair fora ou simplesmentehumilhá-lo, é comum usar essas palavras.Também chamam o sujeito assim quandoele dá qualquer sinal de ser diferente dotipo de cara comum desta parte da cidade.E ele também pode ser tratado desse jeitose tiver irritado alguém sem querer, e se apessoa não tiver nada melhor para falar.Até onde sei, é assim em toda parte, masnão posso falar por nenhum outro lugar,

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realmente. O único que conheço é este.Esta cidade.Estas ruas.Você logo saberá por que mencionei

isso...Na quinta-feira daquela semana,

resolvi cortar o cabelo, o que é sempreuma decisão bem perigosa, especialmenteporque meu cabelo é cronicamenteteimoso e sempre fica espetado para cima.Só resta mesmo rezar para a coisa nãoacabar em tragédia e torcer para obarbeiro não ignorar todas as instruções enão fazer uma matança geral na suacabeça. Mas é um risco que você tem quecorrer.

— Olá, parceiro — cumprimentou o

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barbeiro quando entrei na loja, mais nocentro da cidade. — Sente-se, não voudemorar.

Na sala de espera furreca havia umbom sortimento de revistas, embora fosseóbvio que todas estavam ali fazia algunsanos, a julgar pelas datas de publicação.Havia a Time, a Rolling Stone, uma sobrepesca, a Who Weekly, outra sobrecomputadores, a Black and White, a SurfingLife e uma eterna favorita, a Inside Sport. Éclaro que a melhor coisa da revista InsideSport não são os esportes, mas a mulherem trajes sumários na capa. Ela é sempresarada e cheia de desejo nos olhos. Obiquíni é bonito e cavado, e as pernas sãocompridas, bronzeadas e elegantes. Ela

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tem seios que a gente só pode se imaginartocando e massageando. (Desculpe, mas éverdade.) Tem quadris graciosos, barrigachapada e dourada, e um pescoço que agente só consegue se imaginar chupando.Os lábios são sempre cheios e famintos.Os olhos dizem “possua-me”.

Ela é sempre fantástica.Completamente.Você lembra a si mesmo que há uns

artigos bem legais na Inside Sport, mas sabeque está mentindo. É claro que existemboas matérias, mas uma ova se é isso queo faz pegar a revista. É sempre a mulher.Sempre. Pode confiar em mim.

E assim, como era típico, inspecionei aárea e me certifiquei de que não havia

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ninguém olhando quando apanhei a InsideSport, abri-a depressa e fingi examinar apágina do sumário em busca de boasreportagens. Procurava (como eraprevisível) a página em que estaria amulher da capa.

Setenta e seis.— Tudo bem, chefe — disse o

barbeiro.— Eu?— Não tem mais ninguém esperando,

não é?É, mas, pensei, desamparado, ainda não

cheguei à página setenta e seis!Era inútil.O barbeiro estava pronto e, se existe

um homem que não convém fazer

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esperar, é o sujeito que está prestes acortar o seu cabelo. Ele é onipotente. Naverdade, poderia muito bem ser Deus. Eleé tão poderoso assim. Alguns meses naescola de barbeiros e o homem se torna apessoa mais importante da sua vida,durante dez ou quinze minutos. Esta é aregra: não o deixe puto, senão você vai seferrar.

No mesmo instante, devolvi a revista àmesa, virada para baixo, para o barbeironão saber de imediato o pervertido quesou. Teria que esperar até mais tarde,quando arrumasse as revistas.

Sentado na cadeira (o que parece maisou menos tão perigoso quanto a cadeiraelétrica), pensei em toda aquela situação

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da mulher da capa.— Curto? — perguntou o barbeiro.— Não, não muito curto, amigo, por

favor. Só estou querendo dar um jeitopara ele não ficar em pé o tempo todo.

— Mais fácil falar do que fazer, não é?— É.Trocamos um olhar de amabilidade

recíproca, e eu me senti bem mais àvontade na linha de fogo da tesoura, dacadeira e do barbeiro.

Ele começou a cortar e, como eu dissehá um minuto, pensei na questão damulher da capa. Minha teoria sobre oassunto era, e continua sendo, que éóbvio meu desejo pela dimensão física damulher. Mas acredito de verdade que essa

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parte do meu desejo por uma garota ficana superfície da minha alma, ao passoque, muito mais profundamente, está oardente desejo de agradá-la, tratá-la bem emergulhar no espírito dela.

Acredito de verdade nisso.De verdade.Mas tive que parar de pensar no

assunto e conversar com o barbeiro. Essaé outra regra das barbearias. Se vocêconversar com o sujeito e fizer com quegoste de você, pode ser que ele nãoestrague tudo. Pelo menos, essa é aesperança. Não significa que vá funcionarcom certeza, mas talvez ajude, e por issovocê tenta. Não há garantias no mundodas barbearias. É um jogo de azar, de um

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jeito ou de outro. Eu tinha que começar afalar, e rápido.

— E então, como têm andado osnegócios? — indaguei, enquanto obarbeiro abria caminho pela massacerrada de cabelos.

— Ah, você sabe, rapaz. — Parou esorriu para mim pelo espelho. — Vamoslevando. Pagando as contas. Isso é oprincipal.

Conversamos por um bom tempodepois disso, e o barbeiro disse há quantotempo trabalhava na cidade e comentoucomo as pessoas haviam mudado.Concordei com tudo que ele disse, comum perigoso aceno de cabeça ou com umdiscreto “É, acho que é isso mesmo”. Ele

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era um sujeito bem legal, para falar averdade. Grandão. Peludo. Vozeirão.

Perguntei se morava no apartamentoem cima da loja e ele respondeu: “Sim,nos últimos vinte e cinco anos.” Nessahora senti um pouco de pena, porimaginar que ele nunca fazia nada nem iaa parte alguma. Só cortava cabelos.Jantava sozinho. Talvez comida de micro-ondas (embora seus jantares nãopudessem ser muito piores que ospreparados pela Sra. Wolfe, que Deus aabençoe).

— Importa-se se eu lhe perguntar se jáfoi casado? — indaguei.

— É claro que não. Fui casado, sim,mas minha mulher morreu há alguns

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anos. Vou ao cemitério todo fim desemana, mas não levo flores. E não falo.— Deu uns suspiros e soou muitosincero. De verdade. — Gosto de pensarque fiz isso o bastante enquanto ela eraviva, sabe?

Assenti.— Não adianta nada, depois que a

pessoa morre. Isso é para se fazer quandoas pessoas estão juntas, ainda vivas.

Ele havia parado de cortar meu cabelopor alguns momentos, e por isso pudecontinuar a balançar a cabeça sem perigo.

— E o que você faz quando fica lá,junto à sepultura? — perguntei.

Ele sorriu.— Fico lembrando. Só isso.

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Que legal, pensei, mas não falei nada.Apenas sorri pelo espelho para o homematrás de mim. Tive uma visão daquelesujeito grande e peludo, parado nocemitério, ciente de ter dado tudo de si.Também me imaginei lá com ele, em umdia cinza-escuro. Ele com seu aventalbranco de barbeiro. Eu com minha roupanormal. Jeans. Camisa de flanela xadrez.Jaqueta impermeável.

“Tudo bem?”, dizia, virando-se paramim, na minha visão.

— Tudo bem? — perguntou, nabarbearia.

Despertei de novo para a realidade.— Sim, muito obrigado, está ótimo —

respondi, mesmo sabendo que o cabelo

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voltaria a ficar arrepiado em menos dequarenta e oito horas. Mas eu estavacontente, não só pelo corte de cabelo.Pela conversa também.

Com o chão coberto de cabelo emvolta dos meus pés, paguei doze dólares edisse:

— Muito obrigado. Foi um prazerconversar com você.

— Para mim também.O barbeiro peludo e grandão sorriu, e

me senti culpado por causa da revista. Sóme restou esperar que ele compreendesseas diferentes camadas da minha alma.Afinal, era barbeiro. Supõe-se que osbarbeiros saibam as respostas sobre comogovernar o país, junto com os motoristas

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de táxi e com comentaristas de rádioirritantes. Agradeci de novo e me despedi.

Ao sair, vi que ainda estava na metadeda tarde e, sendo assim, por que não?,perguntei a mim mesmo. Bem que eupoderia ir até Glebe.

Nem preciso dizer que cheguei lá efiquei parado em frente à casa da garota.

Stephanie.Era um lugar tão bom quanto

qualquer outro para ver o sol desabaratrás da cidade e, passado algum tempo,sentei-me encostado em uma parede etornei a pensar no barbeiro.

O importante era que ele e euestávamos na verdade fazendo coisasparecidas, só que na ordem inversa. Ele

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rememorava. Eu antecipava. (Umaantecipação esperançosa, quase ridícula,admito.)

Depois que escureceu, resolvi que eramelhor ir para casa jantar. Eram sobrasde bife, acho, com legumes cozidos atéquase desaparecerem.

Levantei-me.Enfiei as mãos nos bolsos.Depois, olhei, tive esperança e

caminhei, nesta ordem.É patético, eu sei, mas acho que aquela

era a minha vida. Não adianta negar.Acabou que estava mais tarde do que

eu tinha suposto quando finalmente fuiembora, então resolvi pegar o ônibus devolta para o meu bairro.

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No ponto de ônibus, havia umpunhado de pessoas esperando. Havia umhomem com uma maleta, uma mulherque fumava um cigarro atrás do outro,um sujeito que parecia operário oucarpinteiro e um casal que trocava beijosenquanto esperava, um encostado nooutro.

Não pude evitar.Fiquei olhando.Não de forma óbvia, é claro. Só uma

olhadinha aqui e ali.Droga.Fui apanhado.— Está olhando o quê, você aí? — O

sujeito cuspiu as palavras em mim. —Não tem nada melhor para fazer?

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Nada.Foi essa a minha resposta.Absolutamente nada.— E aí?Ainda nada.Então, a garota também soltou os

cachorros em cima de mim:— Por que não vai olhar para outra

pessoa, seu esquisitão? — O cabelo delaera louro, os olhos, verdes, espremidossob a luz do poste, e a voz parecia umafaca cega com que me batia. —Punheteiro.

Típico.É muito comum ser tratado desse jeito

por aqui, mas dessa vez doeu. Acho quedoeu por ser dito por uma garota. Sei lá.

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De certo modo, foi meio deprimente terchegado a esse ponto. Não se podia nemesperar um ônibus em paz.

Eu sei, eu sei. Eu devia ter retrucadocom uma boa resposta, mas nãoretruquei. Não consegui. Que Wolfe,hein? Que grande cão selvagem eu virei!Tudo que fiz foi roubar uma últimaolhadela, para ver se eles iam atirar algunsúltimos fragmentos de xingamento emmim.

O rapaz também era louro. Nem altonem baixo. Usava calças escuras, botas,jaqueta preta e um sorriso de desdém.

Enquanto isso, o homem da maletaconsultou o relógio. A fumante acendeuoutro cigarro. O trabalhador deslocou o

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peso do corpo de um pé para o outro.Não se disse mais nada e, quando o

ônibus chegou, todos se apressaram aentrar, e eu fiquei por último.

— Desculpe.Quando entrei e tentei pagar, o

motorista me disse que o preço daspassagens acabara de subir, e eu não tinhadinheiro suficiente para o bilhete.

Desci, dei um sorriso pesaroso e láfiquei.

O ônibus estava bem vazio.Quando comecei a andar, vi o veículo

afastar-se, avançando pela rua aossolavancos. Muitas ideias cambalearamdentro de mim, inclusive:

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• Como eu iria chegar tarde para ojantar.

• Se alguém perguntaria onde euestava.

• Se o papai iria querer que Rube e eutrabalhássemos com ele no sábado.

• Se algum dia a garota chamadaStephanie sairia de casa e me veria(se é que fazia alguma ideia de queeu estava lá).

• Quanto tempo ainda levaria paraRube dar o fora na Octavia.

• Se Steve se agarrava à lembrança doolhar que tínhamos trocado na noitede segunda-feira com a mesmafrequência que eu.

• Como andaria minha irmã, Sarah,

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ultimamente. (Fazia algum tempoque não nos falávamos.)

• Se a Sra. Wolfe ficava ou nãodecepcionada comigo em algummomento, ou se sabia que eu metornara uma pessoa tão solitária.

• E como estaria se sentindo obarbeiro em cima da sua loja.

Também me dei conta, enquantoandava, e depois, quando comecei acorrer, de que nem sentia raiva do casalque me xingara. Sabia que devia sentir,mas não sentia. Às vezes, acho que eupreciso ter um pouco mais de vira-lata emmim.

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S

O CEMITÉRIO

eguimos em frente, mas o cachorro continua amanter distância. Não há palavras. Não há

perguntas.Para além da cidade, ele me leva a uma

escuridão que a princípio cheira a maldade. Aochegarmos mais perto, entretanto, percebo que naverdade não é para a maldade que estamosandando. É para a morte.

Apenas a afável morte, com toda a suapaciência.

Paramos sob um céu cor de carvão ecompreendo que este é o cemitério do mundo.Abriga todas as pessoas que já viveram emorreram e todas as pessoas que vão viver e

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morrer. Estamos todos ali. Todos.O cão para.Abaixa a cabeça.Ela está sempre baixa. Quase caída.Há sepulturas até onde a vista alcança —

uma infinitude de morte.Movemo-nos por ela até o cão ver outra

pessoa, simplesmente parada diante de umtúmulo.

Nas mãos não traz flores nem palavrasfaladas.

É apenas uma pessoa, rememorando.Ela nos vê, lança um último olhar à

sepultura e se vai.Caminhamos.Cabeça baixa, até onde a pessoa estivera.Ao lá chegarmos, olho para o nome no

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túmulo. Há palavras que não consigo decifrar edatas que não consigo ler.

Posso ler apenas o nome:CAMERON WOLFE.Espero que seja verdade.

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— E

4

sse cachorro é uma vergonhaabsoluta — disse Rube, e eu

compreendi que certas coisas nuncamudariam. Apenas sumiriam e voltariam.

Após todo o episódio do ponto deônibus, cheguei em casa e, depois dojantar, Rube e eu fomos levar Miffy, ocachorro nanico do nosso vizinho, paraseu passeio costumeiro. Como sempre,vestíamos os capuzes para que ninguémnos reconhecesse, porque, nas palavras doRube, a visão do Miffy era um desastre

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completo.— Quando o Keith arrumar outro

cachorro — sugeriu ele —, vamos pedirpara arranjar um rottweiler. Ou umdobermann. Ou, no mínimo, algumacoisa com que se possa ser visto empúblico.

Paramos em um cruzamento.Rube se inclinou para Miffy e, em um

tom superamistoso, disse:— Você é um cretininho horroroso,

Miffy, não é? Não é? É, sim. Você sabeque é.

O cachorro lambeu os beiços e arfou,todo contente. Não tinha a menor ideiade que Rube o estava sacaneando. Nóstrês atravessamos a rua.

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Meus pés se arrastaram.Os do Rube passeavam.Miffy andava aos pinotes, e a guia

tilintava junto dele, no compasso da suarespiração.

Olhando-o, percebi que ele tinha ocorpo de um roedor e a pelagem dealguma coisa que só poderia se chamar deespantoso. Como se tivesse girado milvezes em uma secadora de roupas. Oproblema é que adorávamos aquelecachorro, apesar de tudo. Na mesmanoite, ao chegarmos em casa, eu lhe dei opedaço de bife que a Sarah nãoconseguira terminar na janta.Infelizmente, estava meio duro para osdentes fraquinhos do Miffy, e por pouco

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ele não engasgou.— Mas que diabo, Cameron. — Meu

irmão riu. — O que está tentando fazercom o pobre cretininho? Ele estáentalado.

— Pensei que não teria problema.— Não teria problema o cacete. Olhe

para ele — disse Rube, apontando. —Olhe só para ele!

— O que devo fazer? — perguntei.Rube teve uma ideia:— Talvez você deva tirar a carne da

boca dele, mastigar um pouco e depois dara carne a ele.

— O quê? — Olhei para Rube. —Você quer que eu ponha aquilo na boca?

— Isso mesmo.

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— Talvez você deva fazer isso.— De jeito nenhum.Aí basicamente deixamos o Miffy se

engasgar um pouquinho. No final, nãopareceu mesmo tão grave assim.

— Vai fortalecer o caráter dele —sugeriu Rube. — Nada como uma boaengasgada para incentivar um cachorro.

Nós dois observamos com atençãoenquanto Miffy ia enfim terminando decomer a carne.

Quando ele acabou e tivemos certezade que não ia morrer sufocado, fomoslevá-lo em casa.

— A gente devia era jogá-lo por cimada cerca — disse Rube, mas nós doissabíamos que nunca faríamos uma coisa

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dessas.Há uma grande diferença entre ver um

cachorro meio sufocar e atirá-lo por cimado muro. E, depois, o nosso vizinhoKeith não ficaria nada satisfeito conosco.Keith sabia ser meio desagradável,especialmente quando se tratava daquelecachorro. Ninguém imaginaria que umhomem tão durão tivesse um tipo decachorro tão fofinho, mas tenho certezade que provavelmente ele colocava aculpa na mulher.

“É o cachorro da patroa”, imaginoKeith dizendo à rapaziada do pub.“Minha sorte é ter aqueles dois garotoscom titica na cabeça, na casa do lado, quelevam o bicho para passear. A mãe deles

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os obriga.” O Keith, ele podia ser durão,mas era legal mesmo assim.

Por falar em homens durões, acabouque o papai quis mesmo a nossa ajuda nosábado seguinte. Agora ele nos pagagenerosamente e está sempre bem feliz.Tempos atrás, como eu disse antes,quando era uma batalha conseguirtrabalho, ele andou bem abatido, masultimamente era bom trabalhar com ele.Às vezes saíamos para comer peixe comfritas no almoço e jogávamos cartas emcima da pequena caixa térmica vermelha esuja do papai, mas só se todo mundotrabalhasse pesado. Cliff Wolfe era fã detrabalho pesado e, para ser justo, Rube eeu também éramos. Só que também

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éramos fãs de peixe com fritas e carteado,apesar de geralmente ser o velho quemganhava. Ou ele ganhava, ou o jogoestava demorando demais e ele ointerrompia. Certas coisas são inevitáveis.

O que não mencionei é que Rubetambém tem outro emprego. Ele largou aescola no ano passado e conseguiu umestágio em uma construtora, apesar de tertido um péssimo resultado nas provasfinais.

Lembro-me de quando Rube recebeuos resultados.

Ele abriu o envelope junto ao portãotorto e manchado da nossa entrada.

— Como foi? — perguntei.— Bom, Cam — sorriu, como se

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estivesse totalmente satisfeito consigomesmo —, posso resumir em duaspalavras. A última é total. A primeira émerda.

Mesmo assim, ele arranjou umemprego.

Rapidinho.Típico do Rube.Ele não precisava trabalhar com o

velho aos sábados, mas trabalhava, poralguma razão. Talvez fosse um ato derespeito. O papai pedia e Rubeconcordava. Talvez não quisesse ninguémachando que ele era preguiçoso. Não sei.

De um modo ou de outro, iríamostrabalhar com o velho Cliff naquele fimde semana, e ele nos acordou bem cedo.

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Ainda estava escuro.Estávamos esperando o papai sair do

banheiro (que ele quase sempre deixavacom um cheiro pavoroso) quando o Rubee eu resolvemos pegar logo o baralho.

Enquanto meu irmão dava as cartas namesa da cozinha, fiquei pensando no quetinha acontecido umas semanas antes, aojogarmos uma partida durante o café damanhã. A ideia não era má, só que dealgum jeito consegui derramar meu cerealno baralho todo, porque ainda estavameio zonzo de sono. Mesmo esta semana,ainda havia um sucrilho seco grudado emuma carta que joguei na pilha de descarte.

Rube a pegou.Examinou-a.

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— Hum.— Eu sei.— Você é de fazer dó.— Eu sei.Só me restou concordar.A descarga foi acionada, a água correu

e papai saiu do banheiro.— Vamos?Fizemos que sim e recolhemos as

cartas.No trabalho, Rube e eu ralamos à

beça, conversamos e rimos. Admito queRube é sempre bom para fazer a gentedar umas risadas. Estava me contando ahistória de uma antiga namorada quetinha mania de morder suas orelhas.

— No fim, tive que comprar a

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porcaria de um chiclete para ela, senão iaficar sem orelhas.

Octavia, pensei.Perguntei a mim mesmo que história

Rube teria sobre ela dali a algumassemanas, quando tudo estivesse acabado.O olhar inquisitivo dela, o cabelodespenteado, as pernas humanas e oslindos pés. Fiquei pensando em quaisseriam as esquisitices dela que meu irmãoteria para comentar. Podia ser que elainsistisse em que o Rube tocasse suaperna no cinema, ou gostasse de reviraros dedos na mão dele. Eu não sabia.

Foi rápido.Falei.Perguntei.

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— Rube?— O que é?Ele parou de trabalhar e me olhou.— Quanto tempo resta para você e

Octavia?— Uma semana. Talvez duas.Depois disso, não houve mais nada

para eu fazer senão continuar a trabalhar,e o dia foi passando lentamente.

No almoço, o peixe estava gorduroso egostoso.

As batatas estavam salpicadas de sal eencharcadas de vinagre.

Enquanto comíamos, o papai deu umaolhada no jornal, Rube pegou o guia datevê e eu comecei a escrever mais palavrasna minha cabeça. Nada mais de baralho

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naquele dia.À noite, a Sra. Wolfe me perguntou

como iam as coisas na escola, e voltei àsminhas ideias anteriores da semana sobreela ter ou não motivos para sedecepcionar comigo nos últimos tempos.Falei que estava tudo bem. Por ummomento, considerei se deveria contar aalguém sobre o que havia começado aescrever, mas não consegui. De certomodo, senti vergonha, embora minhaspalavras fossem a única coisa que mecochichava no ouvido uma sensação detudo bem. Não falei com ninguém.

Arrumamos a cozinha juntos, antesque as sobras do jantar tivessem a chancede ficar largadas, e a Sra. Wolfe me falou

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do livro que estava lendo, chamado Meuirmão Jack. Disse que era sobre doisirmãos e sobre como um deles subia navida, mas continuava a lamentar seumodo de viver e de ser.

— Um dia você vai subir. — Essasforam suas penúltimas palavras. — Masnão seja rigoroso demais consigo mesmo.— Essas foram as últimas.

Quando ela saiu e eu fiquei sozinho nacozinha, vi que a Sra. Wolfe era genial.Não genial de inteligência, ou comqualquer tipo particular de genialidade.Apenas genial, porque era ela mesma, eaté as rugas em volta dos seus olhosenvelhecidos tinham a cor discreta dabondade. Era isso que a tornava genial.

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— Oi, Cameron. — Minha irmã,Sarah, foi falar comigo, mais tarde. —Está a fim de ir ao jogo do Steve amanhã?

— Legal — respondi. Não tinha nadamelhor para fazer.

— Ótimo.No domingo, Steve ia jogar sua

partida costumeira de futebol americano,só que em um campo diferente, mais paraos lados de Maroubra. Apenas Sarah e eufomos ao jogo. Fomos ao apartamento deSteve e ele nos deu uma carona até lá.

Aconteceu uma coisa importante nessejogo.

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V

A COR DA BONDADE

oltamos à cidade passando pelo cemitério, e anoite ainda está começando.Ao avançarmos, trôpegos, penso na cor da

bondade, reconhecendo que seus tons e matizesnão são pintados nas pessoas. São usados pordentro.

O cachorro me olha.Conhece meus pensamentos.Logo ele torna a parar, e ficamos diante de

um prédio que espirala em direção ao céu.Tem portas de vidro, como espelhos escuros, e

lá ficamos.O cachorro late.Um latido grave e desafiador, que me faz

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olhar para meu reflexo. Tenho que fazer isso.Olho diretamente para dentro de mim e vejo

a cor do acanhamento, da insegurança e doanseio.

E, pela primeira vez na vida, não me afastodisso com um dar de ombros. Mergulho dentrodessa cor, sinto sua força.

Preparo-me.Para transpor.

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N

5

o caminho para a casa do Steve, fiqueipensando que diabos minha irmã ia fazerda vida. Sarah andava a meu lado, e amaioria dos homens que passava olhavapara ela. Muitos se viravam depois depassarem e davam uma segunda olhadano corpo dela. Para eles, parecia, minhairmã se resumia àquilo. A ideia me deixoumeio nauseado (não que eu possa falar) etorci para Sarah nunca acabar realmentevivendo aquela vida.

— Sacanas pervertidos — xingou ela.

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O que me deu esperança.A questão é que acho que somos

todos pervertidos. Todos os homens.Todas as mulheres. Todos os sacaninhasmal-humorados como eu. É engraçadopensar no meu pai ou na minha mãecomo pervertidos, mas em algum lugar,nas frestas da alma, tenho certeza de queeles já escorregaram, ou até mergulharam.Quanto a mim, às vezes tenho a sensaçãode viver nelas. Talvez todos vivamos.Talvez, se houver alguma beleza emminha vida, seja sair de lá.

Como sempre, Steve desceu bemdepressa quando chegamos a seuapartamento. Estava na varanda, levantoua cabeça e, quando percebemos, estava

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conosco, com as chaves na mão. Stevenunca se atrasou para coisa alguma navida.

Jogou o equipamento na mala docarro, e fomos embora.

Pegamos a rua Cleveland, que estásempre meio engarrafada, mesmo aosdomingos, e o rádio permaneceu caladoenquanto Steve dirigia. Algumas pessoaslhe deram fechadas e ônibus encostaramna sua frente, mas ele não se alterou. Emmomento algum buzinou ou gritou. Parao Steve, essas coisas eram irrelevantes.

Foi bom para mim ir ao campo deMaroubra naquele dia. Foi bom observarSteve e seus hábitos. Assim como aspalavras que eu vinha escrevendo me

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faziam ver e sentir as coisas de outramaneira, também me aumentavam acuriosidade. Eu queria ver como aspessoas se moviam e falavam e as reaçõesque provocavam. Steve era uma boapessoa para se observar.

Havia uma corda circundando ogramado e, de onde Sarah e eu estávamos,vi Steve se aproximar dos outrosjogadores do seu time. Todos olharam nadireção dele e trocaram algumas palavrasrápidas. Apenas um ou dois falaram comele por mais tempo. Meu irmão semantinha um pouco distante do grupo epercebi que não tinha intimidade com oscolegas. Com nenhum deles. Mas elesgostavam do Steve. Respeitavam-no. Se

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quisesse, ele poderia rir e ser aquele aquem todos davam ouvidos.

Mas isso não significava nada.Não para o Steve.No jogo, porém, quando dizia que

queria a bola, ele a recebia. Quando havianecessidade de alguma coisa importante,Steve a fazia. Nos jogos fáceis, os outrosbrilhavam, mas, quando a situação ficavadifícil, Steve estava lá, mesmo que fossesozinho.

Todos se prepararam e houve muitagritaria e bagunça nos vestiários, e os doistimes entraram em campo. Steve era ocapitão de sua equipe e, como eu haviaimaginado, falou muito mais em campo.Sem gritar. Eu sempre o via comentando

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alguma coisa com outro jogador ou lhedizendo o que fazer. Todos o escutavam.

Eram três horas quando o jogocomeçou.

A plateia era bem grande, a maioriatomando cerveja, comendo salgados, ouas duas coisas. Muitos gritavam, a todahora cuspindo comida ou saliva.

Como era comum acontecer, houveuma briga bem nos primeiros minutos, daqual Steve se afastou logo. Um sujeitodeu um pulo e o acertou perto dagarganta, e todo mundo veio correndo.Murros se chocaram com a pele e punhosse cortaram em dentes.

Steve apenas se levantou e saiuandando.

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Ficou de cócoras.Cuspiu.Depois, levantou-se, cobrou a falta e

correu duas vezes mais.O nome dele era incessantemente

gritado.— Wolfe. Vigiem o Wolfe.A todo momento mandavam caras

cuidarem dele, sempre tentando machucá-lo.

Todas as vezes, Steve tornava a ficarde pé e seguia em frente.

Sarah e eu sorrimos ao vê-lo cortarpor entre os adversários em algunsmomentos e fazer passes para outrosjogadores marcarem. No intervalo, seutime estava bem à frente. Foi no final do

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segundo tempo que se manifestou aimportância do dia.

O céu estava cinza-chumbo e nãotardaria a chover.

Já havia gente se amontoando porcausa do frio.

Um vento esquivo deslizava pelo ar.Crianças corriam atrás de uma bola às

nossas costas, com molho de tomategrudado nos cantos da boca emachucados nos joelhos.

Steve estava preparando um chute agol no ponto mais distante possível docampo, bem onde ficavam os torcedoresdo time adversário.

Caçoaram dele.Xingaram-no.

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Disseram que era inútil.Quando ele ia fazer o chute, jogaram

uma lata de cerveja na sua cabeça. Vooucerveja para todo lado, e a lata bateu nalateral do seu rosto.

Ele parou.No meio de um passo.Ficou imóvel.Sem a menor pressa, curvou-se, pegou

a lata e a examinou. Virou-se para ogrupo do qual ela viera, que se calouquase no mesmo instante, e, sem tornar aolhar para o público, depositoudelicadamente a lata no chão, fora docaminho, e preparou o chute de novo.

A plateia observou enquanto Steve seaproximava e chutava a bola.

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Ela subiu alto e passou voando entreas traves, e Steve se virou para ostorcedores adversários. Encarou-os poralguns segundos e voltou ao jogo,deixando a lata de cerveja, meio cheia,meio vazia e meio desanimada,abandonada junto à linha lateral.

Ao assistir ao fim do incidente, nãopude deixar de notar que não havianenhum sinal de raiva no olhar de Steve.Se tanto, havia uma expressão dediversão. Ele poderia ter feito o quequisesse. Poderia ter dito qualquer coisa.Poderia ter cuspido neles ou lhes atiradoa lata de volta.

Mas essas eram coisas que eles podiamfazer com igual facilidade.

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O que não tinham condições de fazerera voltar ao jogo, dar o chute, acertar abola bem no meio das traves, virar-se eencará-los, como quem dissesse: “E aí?Vocês têm mais alguma coisa para mim?”

Foi assim que ele os derrotou.Foi assim que venceu.Fez a única coisa de que eles não eram

capazes.Ao perceber isso, sorri. Cheguei até a

rir, o que fez Sarah rir também, e fomosas únicas pessoas rindo em todo o campo.Para todos os demais, o jogo continuou.

O jogo continuou, a chuva não caiu, eo time do Steve venceu por quilômetrosde vantagem.

Quando terminou, ele se despediu e

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disse que talvez fosse beber alguma coisacom os outros jogadores, embora todossoubessem que não iria. Eles sabiam.Steve sabia. Eu sabia. Nós iríamos paracasa.

Houve mais silêncio que qualqueroutra coisa no carro, e não sei quanto aoSteve ou à Sarah, mas eu não conseguiaparar de pensar na lata de cerveja. Fiqueirevendo a bola voar entre as traves e oolhar contente no rosto de meu irmão.Mesmo quando Sarah levou a mão aopainel e cantou junto com o rádio, foi alembrança daquele olhar que falou maisalto em minha mente. O rosto dele era omesmo enquanto dirigia, e, de uma formaestranha, achei que Steve também estava

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pensando nisso. Cheguei até a esperar quesorrisse, mas ele não sorriu.

Ao contrário, ficamos todos muitocalados, até meu irmão nos deixar emcasa.

— Obrigada — disse Sarah.— De nada. Obrigado por terem ido.Quando eu ia saindo do carro, ele me

deteve.Steve me deteve, dizendo:— Cam?— Sim?Ele me olhou pelo espelho e pude ver

seus olhos enquanto falava comigo.— Espere só um instante.Isso nunca havia acontecido, por isso

eu não soube ao certo o que esperar. Ele

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iria me dizer o que tinha significadoaquele olhar, ou qual fora a sensação defazer aquela gente parecer tão idiota? Seráque me daria um manual sobre como serum sucesso?

É claro que não.Ou, pelo menos, não assim.Seu olhar foi meigo e franco quando

ele falou e, para mim, foi estranho mesentir daquele jeito em relação a StevenWolfe.

— Quando eu tinha a sua idade,quatro caras me deram uma surra. Elesme levaram para os fundos de um prédioe me bateram, por razões que nuncasaberei quais foram — disse ele.

Parou por um momento, sem parecer

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emocionado em nenhum sentido. Nãoestava me contando uma históriamelodramática sobre como outrosgarotos o detestavam, e sobre ser essa arazão para ele ter crescido como cresceu.Estava apenas me contando uma coisa.

— Enquanto estava lá caído, todotorto, jurei que cada um deles iria recebero troco pelo que tinha feito comigo.Repassei isso na minha cabeça e pensei noque queria fazer. Todas as manhãs, todasas noites. E, quando estava pronto,procurei um a um e cobri todos eles deporrada. Depois que peguei o terceiro, oúltimo tentou fazer as pazes. — O olharde Steve se aguçou um pouco com alembrança. — Também lhe dei uma surra,

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pior ainda que a dos outros três.Parou.Parou de falar e fiquei esperando mais,

até me dar conta de que era só isso, eassenti para meu irmão.

Para os olhos no espelho.Por um momento, pensei: Por que ele

está me contando isso?Steve não parecia orgulhoso nem feliz.

Talvez parecesse ter a mesma expressãode contentamento de antes. Ou talvez sóestivesse feliz por ter contado a alguém,porque, com certeza, não parecia provávelque contasse a um monte de gente o queacabara de me contar. Não dava para tercerteza. Como de costume.

Por fim, quando saí do carro,

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perguntei-me se alguém conhecia meuirmão. Perguntei-me se a Sal o conhecia.

Eu sabia apenas que Steve haviaconversado comigo, e tinha sido legal.

Não, tinha sido muito bom.Quando ele partiu, acenei-lhe um

adeus, mas ele já estava na metade da rua.Em casa, encontrei Octavia sentada nacozinha.

Mas não Rube.Os dois estavam quase terminados.Ela estava linda.

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D

GAROTOS NO BECO

eve haver milhares de becos aqui, nestacidade da minha mente.Becos escuros por toda parte.Em cada um deles, há pessoas brigando,

retalhando-se mutuamente e desferindo socos epontapés em corpos já caídos.

Passamos por cada um deles, observando edescobrindo que algumas pessoas são derrubadaspara sempre, enquanto outras se levantam econtinuam a lutar...

Por fim, chegamos a um beco deserto. Ésolitário e indiferente, e uma brisa leve percorre ochão. Sussurra para os detritos, depois os ergue emove.

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Exatamente como eu.Neste instante.Por este cachorro.Ele sai de fininho quando um grupo de

rapazes entra no beco.Apenas suas passadas falam quando eles se

aproximam de mim e no mesmo instante mejogam no chão. Acertam os punhos e os pés nomeu rosto e no meu corpo.

Minhas costelas se esfacelam.Meu coração luta para permanecer dentro do

peito.Olho para o cão, implorando por ajuda, mas

nada chega.A ajuda já está aqui.Está nas mãos, nos pés, nas vozes cobertas

pelo hálito dos meus agressores; e, quando vão

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embora, eles passam por cima de mim e saem dobeco como se nada houvesse acontecido.

Meu sangue corre.A rua é fria.O cachorro aparece acima de mim, olhando

para baixo. Faz com que eu pense em todas asoutras pessoas espancadas nos becos. Todos osvencedores. Todos os lutadores. Todos osperdedores. E todos os que se recusam a ficarcaídos.

Ele espera.Ele me observa.Demora um pouco, mas me ponho de pé.Olho para ele — é preciso tomar uma

decisão.O desejo me percorre.E me inunda.

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Transborda.Incendeia-se em meus olhos, e eu contemplo o

beco. Começo a andar, através da dor, sempredecidindo. Escolhendo. Sabendo.

Dizendo ao cachorro que vou lutar.Com o desejo escrito nos olhos.

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T

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rês palavras:Desgraçado do Miffy.Eu não estava nem um pouco disposto

a levá-lo para passear, especialmentetendo que esperar um tempão pelo Rube.

Primeiro, fiquei sentado na cozinhacom a Octavia.

Ela não parecia muito impressionada,considerando-se que era para ela e Rubeterem saído naquela tarde. Devia terescapado a meu irmão. Pelo menos, foi oque falei a Octavia. Mas e eu? Eu sabia.

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Rube tinha sumido de propósito. Eu já ovira fazer isso.

Chegar atrasado.Discutir.Dizer a elas que não precisava dessas

porcarias.Era uma técnica muito boa para o

Rube. Ele não se importava em ser ovilão.

Havia umas sobras de comida, porémOctavia não aceitou a oferta. Saí com elae sentamos um pouco na varanda,conversando e até conseguindo rir, de vezem quando.

Tirei minha jaqueta e ofereci. Elaaceitou e, pouco depois, disse:

— Está quente, Cam. — Olhou

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através de mim. — Fazia um bom tempoque eu não sentia nada tão quente...

De certo modo, torci para que ela nãoestivesse falando apenas da jaqueta, masera melhor não pensar assim. Quando sepensa desse jeito, acaba-se parado emfrente à casa das pessoas, à espera de algoque nunca vem.

Fosse como fosse, Octavia medevolveu a jaqueta quando fomos até oportão e eu o abri para ela.

A lua estava grudada no céu e Octaviadisse:

— Não adianta voltar, não é mesmo?— Por quê? — retruquei.— Não me venha com porquês,

Cameron. — Desviou o rosto, depois

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voltou a me olhar. — Está tudo bem.Mesmo quando se apoiou no portão

com as duas mãos e sua voz vacilou,Octavia estava linda, e não digo isso emum sentido sexual. Quero dizer apenasque eu gostava dela. Tinha pena dela elamentava pelo que Rube estava fazendocom ela. Seus olhos me sorriram, apenaspor um instante. Um dos sorrisosmagoados que a pessoa nos dá para nosdizer que está bem, apesar de estar longedisso.

Em seguida, ela foi embora.Mal acabara de cruzar o portão, e eu

lhe perguntei:— Octavia?Ela se virou.

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— Você vai voltar?— Talvez. — Ela sorriu. — Um dia.Saiu andando pela nossa rua, e deu

mesmo a impressão de estar atravessandouma alma, e de ser forte e encantadora elegal. Por alguns segundos, odiei meuirmão pelo que estava fazendo com ela.

Além disso, ao vê-la subir lentamentea nossa rua, lembrei-me do que o Rubedissera sobre os dois me haveremseguido, um dia, quando eu tinha ido aGlebe e parado diante da casa daStephanie. Visualizei claramente Octaviae Rube me observando. Os dois meobservando. Ela devia ter me achadopatético. Um cara meio solitário, comodissera Rube. Talvez naquele momento,

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andando pela rua, ela soubesse o que eusentia.

Mas, de algum modo, compreendi queeram pensamentos sobre Rube que aenchiam. Não sobre mim. Talvez elaestivesse pensando nas mãos dele em seucorpo, tocando-a, segurando-a.Possuindo-a. Talvez fosse do riso que elase lembrasse, ou das palavras de umaconversa. Eu jamais saberia.

Rube chegou atrasado para o jantar eo velho lhe deu uma boa bronca por isso,assim como por ele ter deixado Octaviana mão. Tratei de ficar fora da briga.Tudo que fiz foi sair pela porta quandomeu irmão acabou de comer, para buscaro Miffy.

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Fazia frio lá fora e eu não estava a fim.Não depois daquilo.O ar estava tão frio que poderíamos

usar o capuz para sempre e ver o vaporjorrar da nossa boca ao respirarmos.

Da boca do Miffy, também saiu vapor,especialmente quando ele teve umpequeno acesso de tosse. Foi nessa horaque apertamos o passo e voltamos paracasa.

Mais tarde, assistimos à televisão.Dei uma olhadela para o meu irmão.

Ele percebeu.— O que foi? — perguntou.Eu estava no sofá, e Rube, na poltrona

surrada.— A Octavia já era?

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Ele olhou.Primeiro para longe. Depois para mim.Sim.Era essa a resposta, e Rube sabia que

não precisava dizê-la. Eu sabia que elenão precisava dizê-la.

— Tem outra garota?Mais uma vez, ele não precisava

responder.— Como é o nome dela?Rube esperou um pouco, depois disse:— Julia... Mas relaxe, Cam, eu ainda

não fiz nada.Assenti.Assenti e engoli em seco, e desejei

muito que não tivesse que ser assim coma Octavia. Eu não poderia me importar

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menos com o Rube naquele momento. Sópensava na pobre garota, e me lembrei deuma ocasião, anos antes, em que Sarahhavia levado um fora de certo sujeito.Pensei em quanto ela ficara destroçada,especialmente ao descobrir que haviaoutra garota.

Rube e eu tínhamos odiado o sujeito.Queríamos matá-lo.Principalmente o Rube.E agora, o Rube era aquele cara.Por um momento, quase mencionei o

assunto, mas tudo que fiz foi ficar lásentado, estupidamente, olhando deesguelha para o rosto do meu irmão. Nãohavia nenhum remorso nele. Quasenenhum vestígio de reflexão sobre o que

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estava fazendo.Julia.Eu só podia imaginar como ela seria.O único problema, para Rube, foi que

Octavia quis ter certeza, e por isso voltoudurante a semana.

Os dois foram até o quintal e,passados alguns minutos, ela saiu sozinha.Ao me ver, disse, “Até outro dia,Cameron”, e me deu aquele sorrisocorajoso de novo — aquele que eu virana outra noite. Só que, dessa vez, seusolhos verdes estavam mais marejados, aslágrimas subindo mais, mal se contendopara não cair. Octavia se recompôs eficamos parados no corredor, e ela disse,pela última vez:

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— Vejo você por aí.— Não, não vai ver — retruquei,

retribuindo o sorriso.Nós dois sabíamos que as pessoas não

viam Cameron Wolfe; pelo menos, nãosem andar muito pelas ruas da cidade.

Dessa vez, ao partir, ela me disse paranão levá-la lá fora, mas, em segredo,postei-me na varanda da frente e a videsaparecer.

— Sinto muito — murmurei.Imaginei que era a última vez que

veria Octavia, a namorada do Rube.Estava enganado.

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A

CONTINUE A ANDAR

gora estou com frio.Sem jaqueta.

Por algum motivo, deixei minha jaqueta emum beco escuro, e agora vago por aí com estecachorro, ambos tiritando de frio ao caminhar.

Pela primeira vez, sinto raiva.“O que é isso?”, vocifero, mas não há

resposta. Apenas o som das patas e unhas delena rua chega a meus ouvidos. E seu hálito. Seuhálito cheio de vapor.

É como se não estivéssemos indo a lugarnenhum — apenas errando a esmo pelas ruas,no escuro.

Meu coração está sangrando.

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De solidão.O sangue cai em meus pés e bate no chão.A dor do beco se apodera de mim, e tropeço.Caio.Agora estou estatelado e imóvel no chão frio

da cidade.Sangrando.Desintegrando-me.Logo a presença do cão volta para mim.

Sinto-o ajeitar-se e deitar a meu lado. Apoia ofocinho em meu braço e sinto na pele a suarespiração.

Abro os olhos e espio de esguelha. Ele estádormindo, mas à espera.

À espera de que eu me levante e continue aandar.

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ulia era, claro, uma perfeita vadia. Nãohá muito mais que eu possa dizer a seurespeito. Vadia (caso você não saiba) éuma garota que pode ser descrita comomeio dada ou animada demais, mas semser uma prostituta completa nem nadaassim. Masca muito chiclete. Talvez bebademais e fume para se exibir. Chama vocêde bicha, veado ou punheteiro, com umadorável sorrisinho falso no rosto. Usajeans muito apertados e decotesgenerosos, e não se importa muito se está

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com o farol ligado. Joias: moderadas apesadas, talvez com um piercing no narizou na sobrancelha, para demonstrar umaoriginalidade rebelde. E há também amaquiagem. Às vezes, é emplastrada feitoreboco, especialmente quando há acneenvolvida, embora em geral as vadias nãosejam nada feias. Têm apenas umatendência a se enfear, em função do quedizem e do que fazem.

E a Julia?O que posso dizer?Ela era linda. Era loura.E para lá de vadia.— Então, esse é o Cameron — disse,

ao me ver pela primeira vez.Estava mascando aquele chiclete sem

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açúcar que é altamente recomendadopelos dentistas.

— Oi — respondi, e o Rube me deuuma piscadela. Eu sabia o que ela queriadizer. Algo assim como Nada mau, hein?O u Você não ia dispensar, ia? Ou até,simplesmente, Belos peitinhos, não é?Cretino.

Como você pode imaginar, saí de lámais que depressa, porque a garota medeu no saco em uma velocidade incrível.Minha única esperança era que Rube nãoa levasse para me ver observando a casada tal da Stephanie. Com a Octavia eupodia lidar, porque nela ao menos haviacerta classe. Certa gentileza. Mas nessa,não. O mais provável era que também

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dissesse que sou meio solitário. Ou talvezdissesse alguma coisa do tipo “vá fazeralgo de útil na vida”, ou repetisse umafrase já dita pelo Rube, na esperança deque o carisma dele se transferisse para ela.De jeito nenhum. Eu não lhe daria essachance. Não a essa (muito embora euhouvesse pensado, a certa altura, Nossa!Dê só uma olhada nela! A moça tinha umcorpo estilo Inside Sport, sem dúvidaalguma).

Mas não.Eu já estava decidido.Em vez de circular em volta deles

como um cheiro ruim, resolvi ir aocinema e circular por lá como um cheiroruim.

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Em um sábado frio e de muito ventoem que papai não precisou de mim, vitrês filmes em um dia só, antes de ficarum tempinho em Glebe e então voltarpara casa. À noite, desci ao nosso porão epassei algumas horas escrevendo,sentindo tudo o que eu era se remexer ese revirar dentro de mim.

Fazia um bom tempo que estavadeitado quando o Rube chegou e desabouna outra cama do outro lado do quarto.Riu um pouco, e fui obrigado a apagar aluz quando me perguntou:

— E aí, Cam?— E aí o quê?— O que você achou?— Do quê?

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— Da Julia.— Bem — comecei, mas não queria

lhe dar os parabéns pela garota e tambémnão queria interferir. A escuridão feridado quarto oscilou e tropeçou, e eudeclarei: — Ela é legal, acho.

— Legal?! — Rube levantou a voz,empolgado. — Ela é para lá de fantástica,se você quer saber.

— Mas eu não perguntei nada,perguntei? Você fez uma pergunta a mime eu respondi.

— Espertinho.Eu ri.— Está querendo puxar briga? —

perguntou ele.— É claro que não.

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— Bom, é melhor mesmo você não...A voz de Rube se extinguiu e ele caiu

no sono, deixando a noite pulsar ao meuredor. Sozinho.

Passei horas deitado ali, sem dormir,pensando na modelo da capa da revista dabarbearia, e depois em uma supermodeloexótica que eu vira em um anúncio nocinema. Na minha cabeça, eu estava comelas. Dentro delas. Sozinho. Por algumtempo, cheguei até a pensar na Julia, masisso era demais. Quer dizer, há perversõese perversões. Até para mim.

De manhã, a conversa da noiteanterior entre mim e Rube estavaesquecida. Ele comeu nacos de bacon nacozinha, antes de sair de novo, enquanto

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eu fiquei em casa, porque tinha trabalhosescolares para entregar no dia seguinte.

Eu sabia que Rube estava com a Julia,é claro, e o padrão se repetiu.

Passaram-se umas duas semanas evoltou tudo ao normal. À rotina.

Papai trabalhava duro comoencanador.

A Sra. Wolfe continuava a mesma,limpando a casa das pessoas e fazendoalguns turnos de faxina no hospital.

Sarah fez horas extras.Steve continuou a ganhar no futebol

americano, a trabalhar no emprego deescritório e a morar em seu apartamentocom a Sal.

Rube saía com Julia.

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E eu continuava a escrever minhaspalavras, ora no nosso quarto, ora noporão. Também fui a Glebe um bomnúmero de vezes, mais por hábito quepor qualquer outra razão.

Aí.Veio um dia que modificou tudo.Ele... Não sei como explicá-lo.Parecia tudo perfeitamente normal,

mas, ao mesmo tempo, um pouco fora deesquadro.

Andei pelas ruas da cidade, comosempre.

Fui ao subúrbio de Glebe, sem nempensar por onde estava.

Fui até lá, me sentei e fiquei de pé lá,esperei lá, cheguei até a implorar que

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acontecesse alguma coisa lá, qualquercoisa.

Era uma quinta-feira e, nos momentosagonizantes do dia, quando os últimosraios de luz estavam prestes a serassassinados no céu, senti alguém atrás demim, meio para o lado. Havia umapresença, uma sombra, mal obscurecidaatrás de uma árvore.

Virei-me.Olhei.— Rube? É você, Rube? — perguntei.Eu me sentara, encostado na cerca

baixa de tijolos, quando vi a pessoaavançar por entre os últimos restos de luze andar lentamente na minha direção. EraOctavia.

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Era Octavia, que se aproximou e sesentou a meu lado.

— Oi, Cameron — cumprimentou.— Oi, Octavia.Foi um susto para mim.Então o silêncio curvou-se, só por um

instante, e sussurrou nos nossos ouvidos.Meu coração se atirou na minha

garganta.E voltou a descer.Descer.Octavia olhou para a janela que eu

estivera contemplando. A janela daStephanie.

— Nada? — perguntou, e eu entendio que queria dizer.

— Não, hoje não — respondi.

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— Em alguma noite?Não pude evitar.Eu juro, não pude...Uma lágrima enorme e idiota brotou

do meu olho e caiu. Tropeçou por meurosto até a boca e provei-a. Senti seugosto salgado nos lábios.

— Cameron?Olhei para ela.— Você está bem? — perguntou.E tudo que fiz, a partir desse ponto,

foi contar-lhe a verdade.Eu disse:— Ela não vem hoje nem nunca, e não

há nada que eu possa fazer. — Chegueiaté a citar o Rube: — Cada um sente oque sente, e essa garota não sente nada

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por mim. É só isso...Desviei os olhos para o céu

agonizante, tentando me controlar.Comecei a me perguntar exatamente

por que havia escolhido essa garota deGlebe como aquela a quem eu queriaagradar, aquela em quem me afogar.

— Cam — chamou Octavia. — Cam.Continuou pedindo que eu olhasse

para ela, mas eu ainda não estava pronto.Em vez disso, levantei-me e olhei para acasa. As luzes estavam acesas. As cortinas,fechadas, e a garota, como sempre, nãoestava em parte alguma.

No entanto, havia uma garota perto demim, que a essa altura também se havialevantado, e ambos estávamos encostados

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na mureta de tijolos. Ela me olhou e mefez retribuir o olhar. Chamou meu nomemais uma vez:

— Cam.Finalmente respondi, em voz baixa,

tímido:— Sim?E o rosto de Octavia clamou por mim

no silêncio da noite urbana quando elaperguntou:

— Você quer ficar em frente à minhacasa, em vez disso?

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S

INDO PARA CASA

ó sei que procuramos alguma coisa.Sentamo-nos, imóveis — eu, encostado no

muro, o cachorro a meu lado.Vamos, vejo o cachorro pensar. O que está

esperando?Mesmo assim, continuo sentado.Quero uma resposta. Preciso saber para onde

vamos e o que estamos procurando.A brisa começa a gritar. Transforma-se em

um uivo — um vento uivante que arrastadetritos, poeira e areia pelas ruas.

Os olhos do cachorro estão pousados em mim.Sobem até os meus.E é neste momento que sei. É neste

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momento que vejo a resposta.O cão está me levando para casa — mas

não para nenhum lugar que eu conheça. É umacasa nova, e é um lugar que terei que lutar paraencontrar.

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E

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la me invadiu.Foi simples assim.Suas palavras me alcançaram,

agarraram meu espírito pelo coração e osurrupiaram do corpo.

Foram as palavras e a voz, e Octavia eeu. E meu espírito, na rua silenciosa,tomada por sombras. Só me restouobservá-la, enquanto, devagar, ela pegavaminha mão e a punha delicadamente nasua.

Absorvi-a por inteiro.

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Fazia frio e o hálito enfumaçado lhefluía da boca. Ela sorria e seu cabeloficava caindo no rosto, tão lindo everdadeiro. De repente, os seus eram osolhos mais humanos que eu já tinha visto,e os leves movimentos de sua boca mechamavam. Senti sua pulsação na minhamão, batendo suave na minha pele. Seusombros eram estreitos, e ela ficou comigonaquela rua que lentamente se inundavade escuridão. Segurando a minha mão.Aguardando.

Uivos silenciosos me perpassaram.Os postes de luz se acenderam.Continuei parado. Completamente

imóvel, vendo-a. Vendo a veracidade dela,parada diante de mim.

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Quis me abrir e deixar minhas palavrasse derramarem pela calçada, mas não dissenada. A garota acabara de me fazer apergunta mais fantástica do mundo, e euestava completamente sem fala.

“Sim”, quis dizer. Quis gritar elevantá-la do chão e abraçá-la e dizer“Sim, sim, vou ficar em frente à sua casa,seja quando for”, mas não falei nada.Minha voz encontrou o caminho da boca,mas não saiu. Sempre tropeçava emalgum lugar, e depois se perdia, outornava a ser engolida.

O momento foi retalhado.Despedaçou-se à minha volta, e não tiveabsolutamente a menor ideia do queaconteceria em seguida, ou se viria de

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Octavia ou de mim. Senti vontade de meabaixar e catar todos os pedacinhos eguardá-los nos bolsos. De algum modo,em algum lugar perto de mim, eu ouvia avoz do meu espírito, dizendo-me o quefalar ou o que fazer, mas não conseguiaentendê-la. O silêncio a meu redor eraintenso demais. Deixou-me indefeso, atéeu notar os dedos dela apertando os meuscom mais força por apenas um instante.

E passou.Lentamente, ela deixou sua mão se

soltar, e estava acabado.Minha mão baixou e bateu de leve na

lateral do meu corpo, pelo impacto dequando Octavia a soltou.

Ela olhou.

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Para mim, depois para longe.Estaria magoada? Esperava que eu

falasse? Queria que eu segurasse sua mãode novo? Queria que eu a puxasse paramim?

As perguntas ladravam dentro de mim,mas, apesar disso, não cheguei nem pertode fazer nada. Simplesmente fiqueiparado ali, feito um tolo desventurado eincorrigível, à espera de que algomudasse.

No fim, foi a voz da Octavia queextinguiu o silêncio candente da noite.

Uma voz baixa, corajosa.Ela disse:— Só... — Hesitou. — Só pense nisso,

Cam.

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E, depois de um instante de reflexão euma última olhada para mim, deu meia-volta e foi embora.

Fiquei olhando.Para as pernas dela.Seus pés, caminhando.O cabelo ecoando por suas costas na

escuridão.Lembrei-me também da sua voz, e da

pergunta, e do sentimento que seavolumara dentro de mim. Ele gritava eme aquecia e me enregelava e se jogavadentro de mim. Por que eu não tinha ditonada?

Por que você não disse nada?, brigueicomigo mesmo.

Ouvi os passos de Octavia.

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Que subiam e arranhavam umpouquinho, enquanto ela seguia nadireção da estação de trem.

Ela não olhou para trás.— Cameron.Uma voz me chamou.— Cameron.Lembro-me com clareza de estar com

as mãos nos bolsos e, quando olhei para adireita, juro que pude discernir a silhuetado meu espírito, também encostado namureta de tijolos, também as mãos nosbolsos. Ele me olhou. Fixou os olhos. Edisse mais.

— Que diabo você está fazendo? —perguntou.

— O quê?

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— Que quer dizer com o quê? Vocênão vai atrás dela?

— Não posso. — Olhei para baixo,para meus sapatos velhos e as barrasesgarçadas dos jeans. Apenas olhei, edisse: — De qualquer jeito, agora é tardedemais.

Meu espírito chegou mais perto.— Mas que diabo, moleque! — As

palavras foram rudes. Fizeram-melevantar a cabeça e olhar com atenção,para encontrar o rosto ligado à voz. —Você fica parado, esperando em frente àcasa de uma garota que não lhe dá amínima, e, quando uma coisa de verdadeacontece, você desmorona! Que espécie depessoa é você?

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Então, calou-se.A voz cessou abruptamente.O que queria dizer já fora dito, e

retomamos nossa posição, encostados nomuro, com as mãos nos bolsos e osilêncio se alimentando em nossa boca.

Passou-se um minuto.Outro veio e se foi, e mais outro. O

tempo se coçou nos meus pensamentos,como o som dos pés de Octavia.

Finalmente me mexi.Depois de uns quinze minutos.Dei uma derradeira olhada na casa,

sabendo que provavelmente era a últimavez que a veria, e comecei a andar emdireção à estação Redfern, sob os cabosda rede elétrica e através do frio da rua.

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Os vitrais das casas cintilavam quando asluzes de fora corriam para elas, e ouvimeus pés se levantando e depoisarranhando o chão quando comecei acorrer. Em algum lugar atrás de mim,ouvi os passos e a respiração do meuespírito. Eu queria chegar à estação antesdele. Tinha que chegar.

Corri.Deixei o ar frio chapinhar em meus

pulmões, enquanto ia pensando repetidasvezes no nome de Octavia. Corri atémeus braços doerem tanto quanto aspernas e minha cabeça latejar com oafluxo de sangue.

— Octavia — disse.Para mim mesmo.

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Continuei a correr.Passei pela universidade.Passei pelas lojas abandonadas.Passei por uns sujeitos que pareciam

capazes de me assaltar.— Vamos — dizia a mim mesmo,

quando achava que estava reduzindo opasso, e forçava a vista ao longe, tentandover as pernas e os passos de Octavia.

Quando cheguei à estação, jorravamhordas humanas pelos portões, e euconsegui me enfiar por entre um sujeitocom uma maleta e uma mulher quecarregava flores. Fui para a linha deIllawarra e disparei pela escada rolante,passando por todos os ternos, maletas ediferentes aromas de perfume e laquê já

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meio vencidos.Cheguei à base.Quase tropecei.Olhe só para essa quantidade de gente!,

pensei, mas fui abrindo caminho aospoucos pela plataforma. Quando o tremchegou, todas as pessoas se amontoaram ese espremeram, balançando a cabeçaquando eu ficava no caminho. Houve atéum mau cheiro danado, como o suor dasaxilas de alguém. O fedor me lambeu orosto, mas continuei a procurar e aavançar pela multidão.

— Saia da frente — rosnou alguém, eeu fiquei sem alternativa.

Embarquei no trem.Embarquei e fiquei no compartimento

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central lotado, bem ao lado de um sujeitode bigode que era obviamente o dono dosuor pútrido nas axilas. Ambos nosseguramos no apoio de metalengordurado, até o trem e eu entrarmosem movimento.

— Com licença — falei. — Desculpe.Assim fui abrindo caminho pelo vagão

para o andar de baixo. Calculei que antespercorreria o primeiro nível do trem edepois voltaria para o segundo. Esse era oúnico trem que ia para Hurstville.Octavia tinha que estar nele.

Não a encontrei no vagão em que euhavia embarcado, nem no seguinte.

Fui abrindo as portas entre os vagões epassando, com o vento frio do túnel

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guinchando à minha volta até eu entrarno próximo vagão. Em dado momento,quase dei com a porta na cara do meuespírito quando ela se fechou atrás demim.

— Ali!Ouvi a voz dele apontá-la para mim na

multidão de seres humanos trancafiadosno trem.

Vi-a logo depois que o tremchacoalhou, brotou do túnel e entrou notom carvão mais pálido da noite. Octaviaestava de pé, como eu havia ficado algunsvagões antes, mas virada para o outrolado. Do andar inferior do trem, pude versuas pernas.

Passo.

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Passo.Fui me esgueirando para mais perto,

cheguei à escada e comecei a subir.Logo a vi inteira.De pé, ela olhava pela janela suja do

trem. Perguntei-me no que estariapensando.

Eu estava perto.Pude ver o pescoço e o movimento da

respiração dela. Vi seus dedos segurandoo apoio, enquanto o trem gaguejava e asluzes oscilavam e piscavam.

Octavia, eu disse, por dentro.Meu espírito me empurrou para a

frente.— Vá em frente — disse ele, mas não

me desafiou, não me deu ordens nem

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exigiu nada. Apenas me disse o que eracerto e o que eu precisava fazer.

— Está bem — murmurei.Cheguei mais perto e parei atrás dela.De sua camisa de flanela.Da pele do seu pescoço.Das mechas despenteadas de cabelo

que lhe desciam pelas costas.Do ombro...Estendi a mão e a toquei.Ela se virou.Virou, e eu a olhei, e um sentimento

deu uma guinada em mim. Caramba, elaestava linda. Ouvi minha voz. Que disse:

— Vou ficar em frente à sua casa,Octavia. — Cheguei até a sorrir. —Amanhã vou lá e fico diante dela.

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Foi então que ela suspirou, fechou osolhos por um instante e retribuiu osorriso.

Sorriu e disse:— Está bem.Com a voz baixa.Cheguei mais perto, segurei a blusa

dela na altura do estômago e a abracei,aliviado.

Na parada seguinte, falei que eramelhor eu saltar.

— Vejo você amanhã? — perguntouela.

Fiz que sim.As portas do trem se abriram e eu saí.

Quando se fecharam, eu não fazia ideia daestação em que estava, mas, quando o

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trem partiu e começou a se arrastar para afrente, segui andando com ele, aindaolhando para Octavia pela janela.

Depois que o trem se foi, fiqueiparado ali, até finalmente perceber comofazia frio na plataforma.

Uma coisa me ocorreu.Meu espírito.Tinha ido embora.Procurei por toda parte, até perceber.Ele não tinha descido do trem comigo.

Ainda estava naquele vagão, com Octavia.

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L

TRILHOS

evanto-me, e agora há uma urgência nospassos do cachorro. Está doido para que eu

vá atrás dele.O sentimento me inunda.É quente e pesado e me atravessa.Corro atrás do cachorro e o persigo pelas ruas

e pelo vento uivante. No começo, ele olha paratrás à minha procura, mas logo percebe que oacompanho.

Ele me leva e me arrebata.Até que estamos correndo para a linha

ferroviária, quase arrancando o asfalto da rua aoavançar, então o vejo. Vejo-o ao longe, aochegarmos aos trilhos. Vejo um trem piscando e

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aumento meus passos até ficarmos ao lado dele.Correndo.Pechinchando com o cansaço — dizendo que

ele pode me dominar depois, se eu puder seguirem frente agora.

Vamos adiante.Vamos adiante e...Eu os vejo.Vejo-o percorrendo o trem até chegar, com a

alma logo atrás, murmurando em seu ouvido.Ela se vira e ele a segura pela blusa.O trem vai mais depressa.Ultrapassa-nos, desaparece, e eu diminuo a

velocidade até parar e dobro o corpo para afrente, deixando as mãos se apoiarem nosjoelhos.

O cachorro continua comigo e eu olho para

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ele, como que dizendo: Se houver mais dissono caminho de casa, vou gostar.

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— E

9

i — disse Rube, quando chegueinaquela noite —, que diabo

aconteceu com você? Está meio atrasado,não é?

— Eu sei. — Confirmei com a cabeça.— Tem sopa na panela —

interrompeu a Sra. Wolfe.Levantei a tampa, o que costuma ser a

pior coisa que se pode fazer. Mas servepara esvaziar a cozinha, o que foi muitoútil naquela noite, pensando bem. Eu nãoestava mesmo disposto a responder a

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perguntas, especialmente às do Rube. Oque eu poderia lhe dizer? “Ah, sabe, cara,acabei de sair com a sua ex-namorada.Você não se incomoda, não é?” De jeitonenhum.

A sopa demorou alguns minutos e eume sentei para tomá-la sozinho.

Enquanto comia, comecei a aceitar oque tinha acontecido. Quer dizer, não étodo dia que uma coisa daquelas acontecee, quando acontece, é difícil não demorara acreditar.

A voz dela continuava ressoandodentro de mim.

— Cameron?— Cameron?Depois de ouvi-la algumas vezes, eu

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me virei e descobri que Sarah tambémestava falando comigo.

— Tudo bem com você? —perguntou.

Sorri para ela.— É claro.E nós lavamos a louça.Mais tarde, Rube e eu fomos buscar o

Miffy e passeamos até ele começar aofegar de novo.

— Ele está com uma chiadeiradesgraçada. Vai ver que está com gripe,ou coisa assim — sugeriu Rube. — Oucom gonorreia.

— O que é gonorreia?— Não sei direito. Acho que é uma

espécie de doença sexual.

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— Bem, acho que ele não estásofrendo disso.

Quando o devolvemos ao Keith, eledisse que Miffy soltava muitas bolas depelo, o que fazia sentido, já que ocachorro parecia ser feito de noventa porcento de pelo, um pouquinho de carne,outro tanto de osso, e um ou dois porcento de latidos, ganidos e confusão. Masprincipalmente pelos. Pior que um gato.

Fizemos um último carinho nele esaímos.

Na nossa varanda, perguntei ao Rubecomo estava indo com a tal da Julia.

“É uma vadia”, eu o imagineianunciando, mas sabia que ele não falariaisso.

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— Ah, não vai nada mal, sabe? —respondeu ele. — Não é a melhor, mastambém não é a pior. Não tenho queixas,na verdade.

Não demorava muito para uma garotapassar de fantástica a trivial para o Rube.

— Certo.Por um momento, quase lhe perguntei

qual era sua avaliação da Octavia, masnão me interessava por ela da mesmamaneira que o Rube, logo não faziasentido. Não era importante. Para mim, oimportante era quanto os pensamentossobre ela iam aos recônditos maisprofundos dentro de mim. Eusimplesmente não conseguia parar depensar nela, enquanto me convencia de

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tudo que havia acontecido.O aparecimento dela na rua em Glebe.Sua pergunta.O trem.Tudo.Passamos um tempo lá sentados, no

sofá surrado que papai tinha posto navaranda alguns verões antes, observandoo trânsito que fluía preguiçoso.

— Tão olhando o quê? — indagouuma garota meio vagabunda que passouflanando pela calçada.

— Nada — respondeu Rube, e só nosrestou rir enquanto ela nos xingava semmotivo e seguia em frente.

Meus pensamentos voltaram-se paradentro.

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A cada momento que passava, Octaviaencontrava mais um caminho paramergulhar em mim. Mesmo quando Ruberecomeçou a falar, eu estava de novo notrem, abrindo caminho por entre oshumanos suados e engravatados.

— Nós vamos trabalhar com o papaineste sábado? — perguntou Rube,pisoteando meus pensamentos.

— Tenho quase certeza que sim —respondi.

Então ele se levantou e entrou emcasa. Continuei na varanda por mais umbom tempo. Pensei na noite seguinte e emparar em frente à casa da Octavia.

Passei a noite em claro.Os lençóis grudaram em mim e eu me

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virei e me enrosquei neles. A certa altura,cheguei a me levantar e simplesmenteficar sentado na cozinha. Já passava dasduas da manhã e, quando a Sra. Wolfeacordou para ir ao banheiro, foi ver quemestava lá.

— Oi — murmurei.— O que está fazendo? — perguntou

ela.— Não consegui dormir.— Bem, volte logo para a cama, sim?Passei mais um tempo sentado à mesa

da cozinha, ouvindo no rádio o programade entrevistas ao vivo que conversava ediscutia consigo mesmo. Octavia meocupou durante aquela noite inteira,fazendo com que eu me perguntasse se

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ela estava sentada na cozinha dela,pensando em mim.

Talvez.Talvez não.De um jeito ou de outro, eu iria lá no

dia seguinte, e as horas desapareciam maisdevagar do que eu imaginava possível.

Voltei para a cama e esperei. Quandoo sol surgiu, levantei-me com ele e, poucoa pouco, o dia passou por mim. A escolafoi a mistura habitual de piadas, cretinoscompletos, empurrões e risadas aqui e ali.

Durante alguns ansiosos segundos datarde, não tive certeza do sobrenome daOctavia e fiquei com medo de nãoconseguir achá-la na lista telefônica. Sentialívio ao me lembrar. Era Ash. Octavia

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Ash. Quando encontrei o endereço,verifiquei a rua no mapa e descobri queficava a uns dez minutos a pé da estação,desde que eu não me perdesse.

Antes de sair, pulei a cerca e passei umtempo fazendo carinho no Miffy. Decerto modo, eu estava nervoso. Nervosopara caramba. Pensei em tudo quepoderia dar errado. O trem podiadescarrilar. Talvez eu não conseguisseencontrar a casa certa. Eu podia ficarparado diante da casa errada. Considereitudo isso enquanto afagava aquela bolotafelpuda, que virara de barriga para cima eque, de algum modo, parecia sorrirenquanto eu a coçava.

— Deseje-me sorte, Miffy — pedi

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baixinho, ao me levantar para sair, mastudo o que ele fez foi ficar de pé e melançar um olhar de Não pare de fazercarinho, seu cretino preguiçoso. Mesmo assim,pulei a cerca, passei pela minha casa e saí.Deixei um bilhete, dizendo que talvezfosse à casa do Steve à noite, para queninguém se preocupasse demais. (Oprovável era que eu acabasse mesmopassando por lá.)

Eu vestia o mesmo tipo de roupa desempre. Jeans velhos, minha jaquetaimpermeável preta, camiseta de time emeus sapatos surrados.

Antes de sair, fui ao banheiro e tenteiimpedir que meu cabelo ficasse arrepiado,mas isso é como tentar desafiar a

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gravidade. O cabelo fica espetado, haja oque houver. Volumoso como pelo decachorro e sempre ligeiramentebagunçado. Nunca há muita coisa que eupossa fazer. E depois, pensei, devo procurarapenas ficar como estava ontem. Se ontem foibom o bastante, deve ser bom o bastante hoje.

Estava resolvido. Eu estava a caminho.Deixei a porta da entrada bater às

minhas costas e a de tela chacoalhar. Foicomo se elas me chutassem para fora daantiga vida que eu havia levado naquelacasa. Eu estava sendo lançado no mundo,novo. O portão quebrado e torto rangeuao se abrir, deixou que eu saísse, e depoiseu o fechei delicadamente. Parti e, de umponto mais adiante na rua, talvez a uns

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cinquenta metros de distância, olhei paratrás por um segundo, para a casa ondemorava. Não era mais a mesma. Nuncamais seria. Continuei a andar.

O trânsito da rua passou lentamentepor mim e, em um dado momento,quando engarrafou de verdade, opassageiro de um táxi deu uma cusparadapela janela e o cuspe caiu perto dos meuspés.

— Caramba! — exclamou o sujeito.— Desculpe, companheiro.

Apenas sorri e retruquei:— Não tem problema.Não podia me dar ao luxo de me

distrair. Não naquele dia. Eu haviafarejado a pista de uma vida diferente e

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nada me desviaria dela. Eu a caçaria.Encontraria seu lugar dentro de mim. Iriaachá-la, prová-la, devorá-la. O cara podiater cuspido no meu rosto e eu limparia ocuspe e continuaria andando.

Não haveria distrações.Nem arrependimentos.A tarde ainda não havia caído quando

cheguei à Estação Central, comprei meubilhete e desci para o subsolo. Plataformavinte e cinco.

Parado ali, esperei no fundo daplataforma até sentir o vento frio trazidopelo trem que avançava pelo túnel. Elecercou meus ouvidos até o rugido meatravessar e se reduzir a um suspirosurdo, capenga.

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Era um trem velho.Um trem nojento.No último vagão, na parte de baixo,

um velho com um rádio escutava jazz.Sorriu para mim (evento raríssimo emqualquer forma de transporte público), eeu soube que tudo teria que correr bemnaquele dia. Senti como se tivessemerecido isso.

Meus pensamentos deram guinadasjunto com o trem.

Meu coração se conteve.Ao chegar a Hurstville, levantei-me,

saltei e, para meu espanto, encontrei a ruada Octavia sem o menor problema. Emgeral, em matéria de senso de direção, souum horror completo.

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Caminhei.Olhei para cada casa, tentando

adivinhar qual delas era a de númerotreze na rua Howell.

Ao encontrá-la, descobri que era quasetão pequena quanto a minha casa, feita detijolos vermelhos. Começava a escurecer efiquei por ali, esperando e torcendo, comas mãos nos bolsos. Havia uma cerca eum portão, um gramado bem-aparadocom um caminho. Comecei a meperguntar se ela sairia.

Vieram pessoas da estação.Passaram por mim.Por fim, quando a mesma escuridão da

véspera apoderou-se da rua, dei as costaspara a casa, me virei para a estrada e

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fiquei meio sentado, meio encostado nacerca. Minutos depois, ela veio.

Mal ouvi a porta da entrada se abrir ouos passos dela na minha direção, mas nãohouve dúvida quanto à sensação de suapresença às minhas costas quandoOctavia parou perto de mim. Pude senti-la e imaginar seu coração batendo...

Ainda estremeço ao me lembrar dasensação de suas mãos frias no meupescoço, e do toque de sua voz na minhapele.

— Oi, Cameron — cumprimentouela, e eu me virei para olhá-la. —Obrigada por ter vindo.

— Tudo bem — retruquei, com a vozseca e rachada.

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Lembro-me de ter sorrido, e meucoração nadou no próprio sangue. Já nãohavia como parar. Na minha cabeça, eutinha passado mil vezes por momentoscomo aquele e, agora que um deles estavarealmente acontecendo, não havia comoestragá-lo. Eu não me permitiria.

Caminhei ao longo da cerca, passeipelo portão e, ao chegar até Octavia,peguei sua mão e a segurei.

Levei sua mão à boca e a beijei. Beijeios dedos e o pulso, com toda a delicadezaque meus lábios desajeitadosconseguiram, e, quando olhei para seurosto, percebi que isso nunca lhe haviaacontecido. Acho que ela só havia sidotomada à força, e minha gentileza deve tê-

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la surpreendido.Seus olhos se arregalaram.A expressão de seu rosto tornou-se

um pouquinho mais íntima.Sua boca fundiu-se em um sorriso.— Venha — disse ela, conduzindo-me

para depois do portão. — Hoje nãotemos muito tempo.

E, quase nos tocando, saímos pelatrilha.

Descemos a rua e fomos até um antigoparque, onde procurei dentro de mimmesmo coisas a dizer.

Não encontrei nada.Só consegui pensar nas porcarias mais

idiotas, como o tempo e coisas do gênero,mas não me reduziria a isso. Octavia,

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porém, continuou a sorrir para mim,dizendo-me em silêncio que não haviaproblema em ficar quieto. Tudo bem seeu não a conquistasse com histórias ouelogios ou qualquer outra coisa quedissesse só para dizer alguma coisa. Elaapenas caminhou e sorriu, mais contenteno silêncio.

No parque, passamos um longo temposentados.

Ofereci-lhe minha jaqueta e a ajudei avesti-la, mas, depois disso, não houvenada.

Nenhuma palavra.Nada de nada.Não sei o que mais eu esperava,

porque não tinha absolutamente a menor

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ideia de como enfrentar aquilo. Não faziaideia de como agir perto de uma garota,porque, para mim, seus desejos estavamcompletamente envoltos em mistério. Eunão tinha mesmo nenhuma ideia. Só sabiaque a queria. Essa era a parte simples.Mas e saber de verdade o que fazer?Como eu poderia sequer tentar enfrentaruma coisa dessas? Você sabe me dizer?

Meu problema, acho, vinha de eu terpassado tanto tempo dentro da solidão.Eu sempre observava as garotas de longe,mal me aproximando o bastante parasentir seu perfume. É claro que as desejava,mas, apesar de me sentir péssimo por nãotê-las de verdade, isso também traziacerto alívio. Não havia pressão.

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Incômodo. De certo modo, era mais fácilapenas imaginar como seria, em vez deenfrentar a realidade da coisa. Eu podiacriar situações ideais e maneiras de agirque me fariam conquistá-las.

A gente pode fazer qualquer coisaquando não é real.

Quando é real, não há nada paraconter a queda. Nada entre você e o chão,e, naquela noite no parque, eu nunca mesentira tão real. Nunca me sentira tão semcontrole. Parecia ser como era e comosempre seria.

Antes, a vida tinha a ver comconquistar garotas (ou torcer paraconseguir).

Não com conhecê-las.

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Agora era muito diferente.Agora tinha a ver com uma garota, e

com descobrir o que fazer.Pensei um pouco, tentando alcançar

mentalmente a solução fugidia para o quefazer. As ideias me aprisionavam,deixando-me ali para refletir. No fim,tentei me convencer de que tudo correriabem. Só que nada corre por si só.

Tudo bem, falei a mim mesmo, tentandomanter a compostura. Comecei até a listaras coisas que de fato fizera direito.

Eu tinha ido atrás dela no trem, navéspera.

Falara com ela e dissera que ficariadiante da casa dela.

Caramba, eu havia até beijado a mão

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dela.Mas agora eu precisava falar, e não

tinha nada para dizer.Por que você não tem nada para dizer, seu

cretino idiota?, perguntei a mim mesmo.Supliquei dentro de mim.Várias vezes.Foi amarga a decepção, sentado com

ela em um banco de parque infestado defarpas, pensando no que fazer em seguida.

Em dado momento, abri a boca, masnada saiu.

No fim, tudo o que pude fazer foiolhar para ela e dizer:

— Desculpe, Octavia. Desculpe porser tão estupidamente inútil.

Ela balançou a cabeça e vi que

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discordava de mim.— Você não tem que falar nada,

Cameron — disse ela, baixinho, e olhoupara dentro de mim. — Você poderianunca falar coisa alguma, e mesmo assimeu saberia que você tem um grandecoração.

Foi aí que a noite explodiu de repentee o céu despencou em pedaços à minhavolta.

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E

SILÊNCIO

stou parado no escuro.Tremendo.

O vento para de soprar.Morre.Cai de quatro e desaba no silêncio.Eu paro.O cachorro para.E.Tudo.Que existe.É o silêncio.Parece um fracasso, como um coração

começando a se rasgar por dentro.Por dentro, ele me segue.

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Acorrenta-me e observa enquanto tento melibertar.

Quase espero que tente inundar-me.Posso gritar e tentar me afastar dele, porém

ele nunca larga.De certo modo, espero que estas palavras

escritas falem. Espero que ardam e clamem egritem.

Espero que gritem.Para romper meu silêncio...Viro-me com o cão e continuamos andando.Nossos passos.São silenciosos.

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A

10

Sarah soube.Percebeu só de me olhar quando

cheguei em casa naquela noite, segundoela. E falou isso na mesma hora, quandotentei passar de fininho, seguindo para oquarto que eu dividia com o Rube.

Foi engraçado.Inacreditável.Como ela pôde ter tanta certeza, tanta

certeza a ponto de me deter quandoentrei, pôr a mão no meu peito e dizer,com um sorriso e um sussurro:

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— Pode contar, Cameron: como sechama a garota que é capaz de fazer seucoração bater tão depressa?

Devolvi o sorriso, assustado, sem jeitoe admirado.

— Não é ninguém — neguei.— Hum — respondeu com um

risinho.Hum.Foi só o que ela disse, soltando-me e

se afastando, ainda sorridente.— Parabéns, Cameron. — Foi o que

disse ao se afastar. Encarou-me umaúltima vez. — Você merece. Merecemesmo, estou falando sério.

E me deixou parado ali, recordando oque havia acontecido logo depois que os

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pedaços de céu caíram à minha volta.Durante algum tempo, Octavia e eu

permanecemos no banco, enquanto o aresfriava. Foi só quando ela começou atremer que nos levantamos e começamosa andar para sua casa. Em um dadomomento, os dedos dela tocaram os meuse ela os segurou bem de leve.

No portão, percebi que eu não iaentrar. Senti.

Antes de entrar, ela disse:— Eu vou ao cais no domingo, se

você quiser aparecer. Estarei lá por voltade meio-dia.

— Está bem — respondi, já meimaginando parado lá, vendo-a tocar suagaita e as pessoas jogando dinheiro na

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jaqueta. Um luminoso céu azul. Nuvensaltas. O sol estendendo as mãos.Visualizei tudo.

— E, Cameron — prosseguiu ela.Voltei da minha visão.— Vou esperar por você. — Deixou

os olhos baterem no chão e subirem denovo até os meus. — Sabe o que querodizer?

Assenti, devagar.Octavia esperaria por mim, para falar e

para estar com ela do jeito que eupudesse. Acho que só nos restava aesperança de que aquilo fosse apenas umaquestão de tempo.

— Obrigado — respondi e, em vez deme deixar vê-la entrar, ela ficou no portão

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e acenou todas as vezes que virei para tráspara me permitir ter um último vislumbreseu. A cada vez que me voltava, eumurmurava “tchau, Octavia”, até dobrara esquina, sozinho de novo.

As lembranças do trajeto para casaforam toldadas pela nebulosidade daviagem noturna no trem. O som dosvagões deslizando e rolando sobre ostrilhos ainda me perpassa. Cria uma visãode mim mesmo sentado nele, regressandoao lugar de onde viera, mas a um lugarque já não seria o mesmo.

Foi estranho como a Sarah notou deimediato.

Percebeu em um instante a mudançaocorrida em mim, em minha maneira de

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existir em nossa casa. Talvez eu tenha memovido de um modo diferente ou faladode um modo diferente, não sei. Mas estavadiferente.

Eu tinha minhas palavras.Eu tinha Octavia.De certo modo, foi como se eu já não

me pedisse nada. Não estava implorandopor aqueles fragmentos de bem-estar.Apenas dizia a mim mesmo para serpaciente, porque eu estava finalmente emum lugar próximo de onde queria estar.Havia lutado por isso, e agora estavaquase lá.

À noite, muito mais tarde, Rubechegou e desabou na cama, como sempre.

Ainda de sapatos.

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Com a camisa meio desabotoada.Havia um leve cheiro de cerveja,

fumaça e seu perfume barato de sempre,do qual ele nem precisava, porque asgarotas caíam em cima dele de qualquermaneira.

Respiração alta.Sorrindo enquanto dorme.Típico Rube. Típica noite de sexta-

feira.Ele também deixou a luz acesa, por

isso tive que levantar para apagá-la.Nós dois sabíamos muito bem que

papai nos acordaria de manhã, quandoainda estivesse escuro. Eu também sabiaque Rube acordaria com ar cansado eabatido, mas, ainda assim, bonito para

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cacete. Ele, o meu irmão, tinha um jeitode fazer isso que me deixavacompletamente fulo da vida.

Deitado ali, do outro lado do quarto,fiquei pensando no que ele diria quandodescobrisse sobre mim e Octavia.Percorri mentalmente toda uma lista depossibilidades, porque era provável queRube dissesse algo, dependendo do queestivesse acontecendo no momento, doque houvesse acontecido antes e do queestivesse para acontecer depois. Algumasdas coisas em que pensei foram:

Ele me daria um pescotapa e diria:“No que diabos você está pensando,Cam?” Outro tapa. “Não se faz esse tipode coisa com a ex-namorada do seu

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irmão!” Outro tapa, e depois mais um,por via das dúvidas.

Por outro lado, ele podia só dar deombros. Nada. Nem palavras, nem raiva,nem mudança de humor, nem sorriso,nem risada.

Ou ele poderia me dar um tapinha nascostas e dizer: “Bom, Cam, já estava nahora de você se dar bem.”

Ou talvez ficasse sem fala.Não.Nem pensar.Rube nunca ficava sem fala.Se não pudesse pensar em nada para

dizer, o mais provável era que olhassepara mim e exclamasse: “A Octavia?Jura?!”

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Eu faria que sim.“Jura?”“Sim.”“Ora, isso é pra lá de fantástico, ora se

é!”As situações fundiram-se em minha

mente à medida que fui lentamentepegando no sono. Meus sonhos juntaramtudo, até que às seis e quinze da manhãseguinte alguém me chacoalhou com amão pesada e me acordou.

Era o velho.Clifford Wolfe.— Hora de levantar — disse a voz

dele no escuro. — Acorde aquele sacanapreguiçoso também. — Apontou com opolegar na direção do Rube, mas dava

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para perceber que estava sorrindo. Entremim, o papai e Rube, “sacana” era umapelido carinhoso.

O serviço era bem no litoral, emBronte.

Rube e eu basicamente ficamosenfiados embaixo da casa o dia inteiro,ouvindo rádio.

No almoço, andamos pela praia epapai comprou o peixe com fritas de tododia. Ao terminarmos, Rube e eu fomosaté o mar tirar a gordura das mãos.

— A água está gelada pra cacete —avisou Rube, mas, assim mesmo, encheuas mãos e molhou o rosto e a cabeleirafarta e loura.

Ao longo da praia, havia conchas

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trazidas pela maré.Comecei a remexer nelas e a catar as

melhores para guardar.Rube deu uma olhadela.— O que você está fazendo? —

perguntou-me.— Só pegando umas conchas.Ele me olhou, incrédulo:— Você é uma porra de um baitola ou

o quê?Olhei para as conchas nas minhas

mãos.— Qual é o problema?— Caramba! — disse ele. — Você é,

não é?Apenas olhei para ele e ri também,

depois peguei uma concha limpa e lisa,

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com um desenho tigrado suave. Nocentro havia um buraquinho por onde sepodia espiar.

— Olhe para esta — comentei,estendendo-a para Rube.

— Nada má — admitiu ele, e,enquanto contemplávamos o oceano, meuirmão disse: — Você é legal, Cameron.

Só pude contemplar a paisagem pormais alguns segundos antes de voltarmos.O velho já nos gritara um “Ei”, para nosfazer retornar ao trabalho. Atravessamosa faixa de areia e subimos a rua de novo.Mais tarde, naquele mesmo dia, Rube medisse umas coisas. Sobre a Octavia.

Começou de forma bem inocente,quando perguntei quantas namoradas ele

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achava já ter tido.— Não sei direito — respondeu. —

Nunca contei. Talvez doze, treze.Por algum tempo, ouviu-se apenas o

som das pás cavando, mas percebi quemeu irmão, assim como eu, estavareexaminando as garotas na sua cabeça,alisando cada uma com os dedos damente.

No meio daquilo, tive que fazer umapergunta.

— Rube?— Cale a boca; estou tentando me

concentrar.Ignorei-o e prossegui. Agora eu havia

começado e não ia parar.— Por que você deu o fora na

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Octavia? — perguntei.Ele parou de cavar.— Simples — começou. — Porque

aquela garota deve ser a pessoa maisestranha que eu já conheci. Mais até doque você, se é que dá para acreditar.

— Por quê?Concentrei toda a minha atenção na

boca do Rube, que falava sobre OctaviaAsh. Podia até ver a respiração sair deseus lábios junto com as palavras.

— Bem, para começo de conversa, umdia você podia passar a mão nela toda e,no dia seguinte, ela nem deixava vocêchegar perto. — Rube parou para pensarde repente. — Também é impossível tirara roupa dela. — Sorriu para mim. —

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Acredite, eu tentei. — Mas eu aindasentia que ele estava guardando algumacoisa. Então a revelou. — Agora, o maisestranho de tudo é que aquela garotanunca me deixou entrar na casa dela.Nem uma vez. Nem sei qual era a cor daporta da frente...

— Foi por isso que você a dispensou?Meu irmão me olhou com ar

pensativo, sincero, e sorriu.— Que nada.Abanou de leve a cabeça.— Então, por que foi?— Bem. — Ele deu de ombros. —

Pra falar a verdade, Cam, foi ela queterminou comigo. Naquela noite em quevoltou lá em casa. Eu estava esperando

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que ela chorasse e fizesse drama comoalgumas outras. — Abanou a cabeça. —Mas me enganei. Ela só veio me dar umabronca dos diabos. Disse que eu não valiao esforço.

O que mais me confundiu foi nãosaber como o Rube podia ficar tão calmocom isso. Se fosse eu no lugar dele, aagonia de alguém como a Octavia rompercomigo me deixaria em frangalhos nochão. Iria me destruir.

Mas isso era eu.Para o Rube, apareceu uma segunda

opção melhor e ele a aproveitou, e achoque não havia nada de errado nisso. Oúnico problema para meu irmão, nomomento, era que a tal da Julia parecia

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ter vindo com excesso de bagagem. Haviacobrado um preço.

— Ao que parece, ela ainda estavacom outro cara quando começou a saircomigo — disse ele, com naturalidade. —E, ao que parece, o cara está querendo mematar por causa disso. Não sei por quê.Não é como se eu tivesse feito algumacoisa errada. Não há nada que eu possafazer se a garota não me diz que já estáamarrada.

— Só tome cuidado — falei.Acho que ele pôde perceber, pelo tom

da minha voz, que eu não era um grandefã da tal da Julia. Fez uma perguntadireta:

— Você não gosta dela, não é?

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Abanei a cabeça.— Por quê?Você magoou a Octavia para ficar com ela,

pensei, mas disse:— Não sei. Só tenho um mau

pressentimento a respeito dela, só isso.— Não se preocupe comigo —

retrucou Rube. Deu-me uma olhada e oseu sorriso habitual, aquele que semprediz que vai dar tudo certo. — Eusobrevivo.

Acabei ficando apenas com umaconcha da praia. Foi aquela com odesenho tigrado. Em casa, segurei-a naluz da janela do nosso quarto. Já sabia oque fazer com ela.

A concha estava no meu bolso, no dia

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seguinte, quando andei até a EstaçãoCentral e peguei o trem para o CaisCircular. A água do porto era de um azulintenso que as balsas cruzavamlentamente, cortavam e depois deixavamacomodar-se. No cais, havia gente portoda parte e uma porção de músicosambulantes. The Good, the Bad and the Ugly.Demorou um pouco, mas finalmente a vi.Vi Octavia na calçada do bairro TheRocks, e notei as pessoas que zanzavamao redor dela, atraídas pela voz poderosade sua gaita.

Cheguei quando ela estava terminandouma música e as pessoas jogavamdinheiro na jaqueta velha estendida nochão. Ela sorriu para os espectadores e

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agradeceu, e a maioria das pessoas seafastou devagar.

Sem notar minha presença, Octavialogo emendou em outra melodia e, maisuma vez, algumas pessoas começaram a sejuntar à sua volta. Não tantas, dessa vez.O sol circundou seu cabelo ondulado eobservei atentamente o deslizar de seuslábios pelo instrumento. Olhei para o seupescoço, a camisa macia de flanela, eroubei vislumbres de seus quadris epernas por brechas na aglomeração. Namúsica pude ouvir suas palavras: “Tudobem, Cameron, eu posso esperar.”Também a ouvi dizer que eu tinha umgrande coração e, hesitante a princípio,depois sem pensar, juntei-me à multidão e

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comecei a atravessá-la.Respirando, parando e me agachando,

tornei-me a pessoa mais próxima deOctavia Ash no mundo. Ela tocava suagaita e eu me ajoelhei à sua frente.

Octavia me viu e percebi o sorrisodominar seus lábios.

Minha pulsação se acelerou.Senti-a arder na garganta quando

enfiei lentamente a mão no bolso, pegueia concha tigrada e a depositei comgentileza na jaqueta em que se espalhavatodo o dinheiro.

Ali a coloquei, o sol a atingiu, e,quando eu já ia dando a volta para meafastar, a música parou. No meio, acanção foi interrompida.

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O mundo calou-se e me virei de novo,e vi uma garota que se erguia acima demim, completamente imóvel.

Ela se abaixou, pôs a gaita no meio dodinheiro e apanhou a concha.

Segurou-a.Levou-a aos lábios.Beijou-a de leve.Depois, com a mão direita, puxou-me

pela jaqueta e me beijou. Seu hálito meatravessou, e, enquanto a maciez, o calor,a umidade e a abertura de sua boca metomavam, um som vindo de forairrompeu em meus ouvidos. Por ummomento, perguntei-me o que seria, mastornei a mergulhar por inteiro emOctavia, enquanto seu espírito se

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derramava em mim. Estávamos ambosajoelhados e minhas mãos a seguravampelos quadris. Seus lábios continuaram abuscar os meus, tocando-me.Conectando-se. Sua mão direita pousouem minha face, segurando-me, mantendo-me por perto.

O som estrondoso continuou à nossavolta, formando muros que faziam desteum mundo dentro do resto do mundo.De repente, compreendi o que era. Umsom claro, límpido e magnífico.

Era o som de gente aplaudindo.

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— Q

MÃOS QUE APLAUDEM

ual é a do som de mãos aplaudindo?— pergunto.

O cachorro continua a andar, mas não meimporto. Apenas continuo a falar.

— Por que ele parece um mar de som, comoondas quebrando em cima da gente? Por que faza maré virar dentro de nós?

Agora só penso nisso.Talvez seja porque é uma das coisas mais

nobres que os seres humanos fazem com asmãos.

Digo, os seres humanos cerram as mãos empunhos. Usam-nas para ferir uns aos outros epara roubar coisas.

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Quando os humanos batem palmas, é oúnico momento em que se unem para aplaudiroutros seres humanos.

Acho que os aplausos existem para conservarcoisas.

— Eles mantêm unidos os momentos aserem lembrados — comento, baixinho.

O cão não se impressiona muito, e aescuridão desce.

Calo a boca e continuo a andar.

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— F

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oi a melhor coisa que já mederam — disse ela, levantando a

concha e olhando para mim pelo furo.Tornou a me beijar na boca, de leve, euma vez no pescoço. Cochichou no meuouvido: — Obrigada, Cameron.

Eu adorava seus lábios, principalmentequando o sol os atingia e ela sorria paramim. Eu nunca a vira sorrir daquele jeitoquando estava com o Rube, e torci paraser um sorriso que ela nunca tivesse dadoa nenhum outro ser vivo. Não pude

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evitar.As pessoas tinham ido embora e

recolhemos o dinheiro da jaqueta deOctavia. Era pouco mais de cinquenta eseis dólares. No bolso esquerdo da minhajaqueta eu ainda levava todas as minhaspalavras, inclusive as que acabara deescrever quando ela havia recomeçado atocar. Meus dedos as seguravam comfirmeza, protegendo-as.

— Vamos — disse Octavia, ecomeçamos a andar pela beira-mar emdireção à ponte.

Sombras de nuvens espreitavam sobrea água, como buracos que o sol tivesseesquecido. A garota a meu ladocontinuava a olhar para a concha, e meu

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coração parecia escalar as costelas a cadabatida. Mesmo quando diminuiu o ritmo,continuou a pulsar com certa força.Gostei disso.

Embaixo da ponte, sentamosencostados na parede, Octavia com aspernas estendidas, eu com os joelhosdobrados, chegando à garganta. Olhei-a enotei o jeito como a luz tocava sua pele ebagunçava o cabelo caído no rosto. Erada cor do mel. Octavia tinha olhos verde-mar, como água salgada em diasnublados, pele bronzeada e um sorriso dedentes retos, que se acavalavam um poucodo lado direito quando ela abria mais aboca. Tinha o pescoço liso e algunsmachucados nas canelas. Belos joelhos e

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quadris. Gosto dos quadris das garotas,mas gostava especialmente dos daOctavia. Eu...

Lá estava ele de novo.Entre nós.O silêncio.Havia apenas o som da água atirando-

se nas paredes do porto, até que,finalmente, olhei para Octavia e disse emvoz baixa:

— Eu só queria...Pausa.Uma longa pausa.Ela queria falar, senti. Notei isso na

súplica de seus olhos e no ligeiromovimento de seus lábios. Estava doidapara dizer uma coisa, mas se conteve.

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Terminei a frase:— Eu só queria dizer... — Pigarreei,

mas a voz continuou rachada. —Obrigado.

— Por quê?— Por... — hesitei. — Por me querer.Ela se virou e me olhou nos olhos por

um brevíssimo segundo. Seus dedostocaram meu pulso e desceram para seentrelaçar nos meus. Então ela disse, emum tom muito resoluto:

— Eu o quereria ainda mais se vocême revelasse quem é.

As palavras me abriram por inteiro.Eu poderia ter fingido não entender

do que Octavia estava falando, mas sabiaque a espera havia acabado. Ela esperaria,

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eu sabia disso. Mas ninguém pode esperarpara sempre.

Por isso, indaguei:— O que você quer saber?Ela sorriu por um instante e disse,

calmamente:— Gosto do seu cabelo, Cameron.

Gosto de como ele fica espetado, pormais que você tente abaixá-lo. É a únicacoisa que você não consegue esconder. —Fez uma pausa para engolir. — Mas orestante está escondido. Escondido atrásdo seu andar calculado, da golaamarrotada da sua jaqueta e do seusorriso nervoso, sem jeito. Nossa, euadoro esse sorriso, sabia?

Olhei-a de relance.

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— Sabia disso? — perguntou de novo,quase em tom de acusação.

— Não.— Bem, é verdade, mas...— O quê?— Você não percebe? — Ela apertou

minha mão. — Eu quero mais do queisso. — Um sorriso decidido lutou paratomar seus olhos. — Só quero conhecervocê, Cameron.

Notei de novo o som da água.Subindo.Esmurrando a parede, antes de

mergulhar de volta.Por fim, assenti.— Tudo bem — respondi.Foi um sussurro. Quase meia voz.

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— O único problema — disse ela,depois de algum tempo — é que vocêtem que me contar. Tem que falar.

Examinou meu rosto em busca do queeu estava prestes a dizer ou a fazer.

Eu o fiz.Levantei-me e andei até a água.Dei meia-volta.A ponte se agigantava acima de mim e

eu comecei a falar, agachando-me amenos de dez metros de distância eolhando dentro dela.

As palavras fluíram da minha boca.— Meu nome é Cameron. Eu sempre

disse que queria me afogar dentro de umagarota, dentro da alma dela, porém nuncacheguei nem perto... mal cheguei sequer a

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tocar em uma garota. Não tenho amigos.Vivo à sombra dos meus dois irmãos: umpela concentração obstinada no sucesso, ooutro pelo brilho, sorriso bruto e pelacapacidade de fazer as pessoas gostaremdele. Espero que a minha irmã não venhaa ser apenas mais um naco de carne,desses que um sujeito qualquer pega, parao qual o cara joga alguns dólares e diz:“Compre um batom, mas não vá esquecera cerveja.” Trabalho com meu pai nos finsde semana e fico com as mãos sujas echeias de bolhas. Já aluguei filmes comcenas de sexo e me masturbei pensandoem garotas da escola, modelos, uma ouduas professoras, garotas de comerciais,garotas de calendários, garotas de

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programas de televisão, garotas vestindouniforme ou terninho, sentadas no metrô,lendo livros grossos, com o pescoçocarregado de perfume e a maquiagemperfeita. Ando muito pela cidade e,quando o faço, é como se ela fosse a almado lar. Adoro meu irmão Rube, masodeio o que ele faz com as garotas,especialmente quando são garotas deverdade como você, que deviam saber quenão é bom sair com ele, para começo deconversa. Idolatro a Sra. Wolfe, porqueela nos mantém unidos e trabalha pracacete. Trabalha mais do que deveria terque trabalhar e, um dia, quero fazeralguma coisa genial por ela, como colocá-la na primeira classe de um avião para ir

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aonde quiser...Lembrei-me de respirar, mas esqueci o

que ia dizer em seguida.Parei de falar e me levantei, porque as

pernas estavam ficando doloridas naquelaposição.

Caminhei devagar em direção aOctavia Ash, cujas canelas machucadasagora eram envolvidas pelos braçoscruzados.

— Eu...Parei de novo e me agachei diante

dela. Senti o sangue se acumular de novoem minhas pernas.

— O quê? — perguntou ela. — Oque é?

Por alguns segundos, perguntei-me se

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devia ou não fazê-lo, mas, antes que mepermitisse parar, enfiei a mão no bolsodos meus jeans surrados, tirei montes depapel amassado e estendi a ela, como selhe oferecesse minha alma. No papelestavam as palavras.

— Isto é meu — disse, pondo-as emsua mão estendida. — São palavrasminhas. Abra e leia. Elas lhe dirão quemeu sou.

Octavia fez o que eu tinha pedido,abrindo o pedacinho de escrito que tinhasido o primeiro. Só que tudo o que elaleu foi o começo. Em seguida, devolveu-me o papel e pediu:

— Quer ler para mim, Cameron?Meus pensamentos se ajoelharam.

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A brisa vagou por entre nós, sentei-meao lado de Octavia de novo e comecei aler as palavras que tinha escrito noCapítulo Um desta história:

— Nada vem fácil para um ser humanocomo eu. Isto não é uma queixa. É só umaverdade...

Li a página com vagar e franqueza,exatamente como a sentia, como se elavazasse de mim.

Li a última parte só um pouquinhomais alto:

— Sei que encontrei meu cerne em umaruela batida por sombras, em um beco em algumponto deste lugar. No fundo, alguma coisaespera. Dois olhos brilham. Engulo em seco.Meu coração me bate. E então continuo

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andando, para descobrir o que é... Passo. Batidado coração. Passo...

Quando terminei, um silêncio finalapossou-se de nós, e o som do papelvoltando a ser dobrado pareceu algo sequebrando. Ou talvez tenha sido o somda lágrima que atravessou o rosto daOctavia.

Ela esperou um pouco antes deperguntar, em tom meigo:

— Você nunca tocou em uma garota?— Não.— Não antes de mim?— Não.— Quer me fazer um favor?Assenti, olhando-a.— Pode segurar minha mão?

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Sentindo cada parte dela, segurei amão da Octavia, que chegou mais perto edescansou a cabeça em meu ombro. Pôsuma perna sobre a minha e enganchou opé sob meu tornozelo, ligando-nos.

— Nunca pensei que fosse mostrarminhas palavras a ninguém — comenteiem voz baixa.

— São lindas — sussurrou ela emmeu ouvido.

— Elas fazem com que eu me sintabem...

Pouco depois, Octavia ficou de frentepara mim, cruzou as pernas e me encarou,fazendo-me ler tudo que tinha escrito atéentão.

Quando terminei, passou minhas mãos

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pela sua barriga, para que eu segurasseseus quadris. Disse:

— Você pode se afogar dentro demim quando quiser, Cameron.

Então tornou a pôr os lábios nosmeus, e se deixou fluir pelo interior daminha boca. As páginas ainda estavam nasminhas mãos, pressionadas, enquanto eusegurava seu corpo pelos quadris, e pudesenti-la em cima de mim, consumindo-me.

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— N

A PONTE

ão vou atravessar aquilo — digo aocachorro.

Ele me olha como quem dissesse: Ah, senão vai.

— Olhe só como é fraca! — protesto, mas ocão simplesmente não está interessado.

Sobe na ponte e começa a atravessá-la. Commuito cuidado, piso nela também...

É de madeira.Tem rachaduras, e minhas mãos ardem com

a força que uso para segurar as cordas.Olho para baixo.Para aquilo que parece um abismo.Aos poucos, porém, vou fazendo a travessia,

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às vezes engatinhando para conseguir.É como as palavras faladas, a ponte. Eu a

quero, mas tenho medo dela. Deus do céu, querodesesperadamente chegar ao outro lado — assimcomo quero as palavras. Quero que minhaspalavras construam pontes tão fortes que sejapossível caminhar sobre elas. Quero que elas seelevem acima do mundo, para que eu possa meerguer e andar até o outro lado.

Às vezes a gente tem que se agachar paraconstruir uma ponte.

Já é um começo, acho.

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Q

12

uando cheguei em casa naquela noitede domingo, Rube e eu cumprimos nossatarefa habitual de levar o Miffy parapassear. O bicho estava ainda pior que depraxe. A tosse soava mais grave, como seviesse direto dos pulmões.

Ao voltarmos, perguntei ao Keith seiria levá-lo ao veterinário.

— Acho que não são bolas de pelo —observei.

A resposta de Keith foi bem curta esimples:

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— É, acho que é melhor. Ele está comuma cara horrorosa.

— Pior.— É, ele já ficou assim antes —

explicou, mais por esperança que porqualquer outra coisa. — Nunca foi nadamuito grave.

— Bem, nos avise sobre o queacontecer, está bem?

— Tá. Tchau, parceiro.Pensei no cachorro por um instante.

Miffy. Acho que, por mais que Rube e eureclamássemos dele, sabíamos quesentiríamos certa saudade se alguma coisalhe acontecesse. É engraçado como hácoisas neste mundo que só nos enchem osaco, mas de que a gente sabe que vai

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sentir falta quando se forem. Miffy, osuperlulu-da-pomerânia, era uma dessascoisas.

Mais tarde, sentado na sala de estarcom o Rube, perdi muitas oportunidadesde contar sobre a Octavia e mim.

Agora, dizia a mim mesmo. Agora!Mas nenhuma palavra saía, e apenas

ficamos por lá.Na noite seguinte, fui fazer uma visita

ao Steve. Fazia algum tempo que eu nãoo via e, de certo modo, estava comsaudade. É difícil explicar exatamente porquê, mas eu tinha passado a gostar muitoda companhia do Steve, apesar de semprefalarmos muito pouco. É claro queconversávamos mais do que antes, mas

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ainda não era grande coisa.Quando cheguei, apenas a Sal estava

em casa.— Mas ele deve chegar a qualquer

momento — disse ela, não parecendomuito entusiasmada. — Quer algumacoisa para comer? Ou para beber?

— Não, estou bem assim.Ela não me fez sentir-me muito bem-

vindo naquela noite, como sesimplesmente não estivesse disposta a metolerar dessa vez. Sua expressão pareciaatirar palavras em mim. Palavras do tipo:

Perdedor.Sacaninha de merda.Tenho certeza de que, em algum

momento, tempos atrás, antes de Steve e

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eu nos entendermos melhor, ele deve terfalado com a Sal sobre a dupla de panacasimprestáveis que eram seus irmãos.Sempre havia menosprezado o Rube e amim, quando morávamos juntos. A gentefazia muitas coisas idiotas, admito: roubarplacas de trânsito, entrar em brigas,apostar em corridas de cachorros... Nãoera muito a praia do Steve.

Quando chegou, uns dez minutosdepois, ele sorriu de verdade e disse:

— Ei, faz tempo que não vejo você!Por um momento, retribuí o sorriso e

achei que ele estava falando comigo, eentão percebi que era à Sal que se referia.Ela andara trabalhando muito fora doestado nos últimos tempos. Steve se

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aproximou e lhe deu um beijo. Depois,notou o irmão sentado no sofá.

— Oi, Cam.— Oi, Steve.Percebi que eles queriam ficar

sozinhos, por isso esperei algunssegundos e me levantei. A luz da cozinhase derramava sobre eles quando parei napenumbra da sala de estar.

— Ei, eu volto outra hora — falei,superdepressa.

Tratei de me levantar rápido e memandar de lá. Sal estava me lançando omaior olhar de cai fora que eu já tinhavisto.

— Não.Eu praticamente havia cruzado a porta

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quando a palavra me acertou nas costascomo um chute. Dei meia-volta e o Steveestava parado atrás de mim. Tinha o rostosério ao dizer:

— Você não tem que ir, Cam.Tudo o que fiz foi olhar para meu

irmão e dizer “Não se preocupe”, depoisvirei-me e saí sem me preocupar com oassunto. Eu tinha outros lugares para iragora, de qualquer jeito.

Ainda era bem cedo, por isso decidicorrer até a estação e pegar o metrô paraHurstville. Na janela do trem, vi meureflexo — o cabelo estava crescendo denovo e se eriçando, rebelde edespenteado. Era preto. Preto feito pichena janela e, pela primeira vez, meio que

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gostei dele. Balançando com o trem, olheipara dentro de mim.

A rua de Octavia estava envolta emtrevas. As luzes das casas pareciamlanternas. Se eu fechasse bem os olhos eentão os abrisse de novo, era como se ascasas tropeçassem no escuro, tentandoencontrar o caminho. Fiquei esperandoque sumissem a qualquer momento. Vezpor outra, sombras humanas as cruzavamenquanto eu esperava em frente aoportão.

Por algum tempo, imaginei-me indoaté a porta da entrada e batendo, mas melembrava muito bem das palavras doRube. Ele nunca estivera lá dentro.Nunca chegara sequer a ver a porta da

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frente de perto. A última coisa que euqueria era passar dos limites. Continuavadoido para que ela saísse; quanto a issonão tenha dúvida. Mas sabia que, setivesse que ir embora sem nem mesmo terum vislumbre dela, eu iria. Se fizera issopor uma garota que não estava nem aípara mim, poderia fazê-lo por Octavia.

Naquele segundo roubado, pensei nagarota de Glebe. Ela entrou na minhamente como um ladrão e tornou a sumirsem levar nada. Foi como se a humilhaçãodo passado tivesse sido instantaneamenteretirada das minhas costas e largada nochão. Pensei por um instante em comopudera ficar diante da casa dela tantasvezes. Cheguei até a rir. De mim. Ela já se

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apagara por completo, minutos depois,quando Octavia afastou a cortina dacozinha e saiu ao meu encontro.

A primeira coisa que notei, antes quequalquer palavra atingisse o ar, foi aconcha. Estava amarrada em um cordão,pendurada no pescoço dela.

— Ficou bonita — comentei,apontando a concha com a cabeça eestendendo o braço direito para segurá-la.

— Ficou mesmo — concordouOctavia.

Fomos ao mesmo parque da primeiranoite, mas, dessa vez, não sentamos nobanco lascado. Dessa vez, andamos pelagrama orvalhada e acabamos parandojunto a uma árvore antiga.

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— Tome — disse eu, e entreguei aOctavia as palavras que tinha escrito nanoite anterior, na cama. — Para você.

Ela leu as palavras, beijou o papel epassou um bom tempo abraçada a mim.Durante aquele tempo, surgiraminúmeras perguntas que tive vontade defazer. Eu queria saber que histórias haviana casa dela, o que ela fizera com o Rube,por que ele nunca havia entrado, e se ela,como eu, tinha irmãos e irmãs. Mas nãoperguntei nada. Havia uma paredeclaramente erguida ali e, mesmo sabendoque teria que enfrentá-la um dia, não meatrevi a fazê-lo tão cedo.

Eu lhe disse que adorava o somuivante da sua gaita. Esse pareceu ser o

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limite da minha coragem naquela noite, eaté essas palavras faladas tiveram quelutar para sair da minha boca. Tudo bemque as palavras construam pontes, mas, àsvezes, acho que a questão é saber quandofalar. Saber qual é a hora certa.

Ao voltarmos para o portão, eu lhedisse uma coisa quase por engano. Minhavoz simplesmente pareceu falar sozinha.

— Talvez você possa me dizer maiscoisas a seu respeito em breve.

Não houve hesitação na minha voz.Nenhum sentimento de dúvida.

Ela olhou para sua casa, para a luzopaca que se espalhava pela janela.

— Está bem. — Seu rosto erabondoso. Franco. — Acho que não posso

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fazer tudo do meu jeito, não é? —perguntou. — Ninguém pode afogar-seem uma pessoa se ela não deixar. —Tinha razão. — Vejo você no domingo?

— É claro.Beijei sua mão logo depois e fui

embora.Em casa, ao voltar, levei um susto ao

encontrar Steve na nossa varanda,esperando por mim.

— Eu estava pensando em quantotempo teria que ficar sentado aqui —disparou quando apareci. — Estou aquihá uma hora.

Cheguei mais perto.— E você veio por quê?— Vamos — retrucou ele,

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levantando-se. — Vamos voltar lá paracasa.

— Só vou entrar e...— Já falei com eles.O carro do Steve estava estacionado

mais adiante na rua, e pouquíssimaspalavras foram trocadas entre nós depoisde entrarmos. Liguei o rádio, mas não melembro da música.

— E aí, que história é esta? —perguntei.

Olhei para ele, mas Steve tinha osolhos fixos na rua. Passei algum temposem saber se ele havia sequer escutadominha pergunta. Seus olhos meexaminaram por um ou dois segundos,mas ele não disse nada. Ainda estava

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esperando. Ao saltarmos, falou para mim:— Quero que você conheça uma

pessoa. — Bateu a porta do carro. — Oumelhor, na verdade, quero que elaconheça você.

Subimos a escada e entramos noapartamento. Não havia ninguém.

— Ela ainda está no banho —comentou meu irmão.

Fez café e pôs uma xícara diante demim. O líquido ainda girava, levandoconsigo meu reflexo. Puxando-me parabaixo.

Por um instante, achei que estávamosem vias de cumprir nossa rotina habitualde perguntas e respostas sobre todos emcasa, mas percebi que ele decidiu não

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segui-la. Já passara antes lá em casa etinha descoberto como eles estavam porsi. Não era típico do Steve fabricarconversas.

Fazia algum tempo que eu não o viajogar, por isso perguntei como ia ofutebol. Ele estava no meio da respostaquando Sal saiu do banheiro, aindaenxugando o cabelo.

— Oi — disse ela para mim.Assenti e abri um meio sorriso.Foi então que Steve se levantou e

olhou para mim, depois para ela. Naqueleexato momento eu soube que, em algumaocasião, como eu havia suspeitado, ele lhefalara do Rube e de mim. Eu haviaimaginado a cena em um banco do

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parque em Hurstville, por alguma razão, epudera ouvir a voz marcante e serena doSteve praticamente renegando os irmãos.Ele estava reescrevendo a história, ou,pelo menos, tentando corrigi-la.

— Levante-se — disse ele, e obedeci.— Sal — A moça me olhou. Olhei paraela enquanto Steve continuava. — Este éo meu irmão Cameron.

Trocamos um aperto de mão.Minha mão áspera de garoto.Sua mão macia e limpa, que cheirava a

sabonete perfumado. Sabonete queimaginei ter sido obtido em quartos dehotel que eu nunca visitaria.

Sal me reconheceu com o olhar epassei a ser Cameron, e não apenas o

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irmão perdedor do Steve.No trajeto de volta para casa, algum

tempo depois, Steve e eu conversamosum pouco, mas apenas sobre trivialidades.No meio da conversa, eu o interrompi. Edisse, com palavras cortantes como facas:

— Quando você falou com a Sal pelaprimeira vez sobre mim e Rube, você lhedisse que éramos dois perdedores. Disseque tinha vergonha de nós, não foi?

Minha voz ainda estava calma, nemum pouco acusadora, embora eu estivessefazendo um esforço danado.

— Não — negou ele, quando o carroparou em frente à nossa casa.

— Não?Percebi a vergonha em seus olhos e,

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pela primeira vez na vida, vi que eravergonha que ele sentia de si mesmo.

— Não — repetiu Steve, e naquelemomento me olhou com algo semelhantea raiva, quase como se não conseguisseengolir aquilo. — Não de você e do Rube— explicou, e seu rosto pareceumagoado. — Apenas de você.

Caramba.Caramba, pensei, e fiquei boquiaberto.

Foi como se Steve houvesse enfiado amão dentro de mim e arrancado minhapulsação. Meu coração estava em suasmãos e o olhava fixamente, como setambém pudesse vê-lo.

Batendo.Jogando-se no chão e levantando de

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novo.Não teci comentários sobre a verdade

que Steve acabara de contar.Apenas tirei o cinto de segurança,

peguei meu coração e desci do carro omais depressa que pude.

Steve me seguiu, mas era tarde demais.Ouvi os passos atrás de mim quandoentrei na varanda. As palavras caíramentre seus pés.

— Cam! — chamou ele. — Cameron!— Eu estava quase do lado de dentroquando ouvi sua voz gritar: — Desculpe.Eu estava... — Elevou ainda mais a voz.— Cam, eu estava errado!

Cruzei a porta e a fechei, depois mevirei e olhei para fora.

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A figura de Steve caía como umasombra na janela da frente. Estava caladae imóvel, pregada na luz.

— Eu estava errado.Ele repetiu, embora com a voz mais

fraca dessa vez.Passou-se um trêmulo minuto.Cedi.Andando devagar até a porta de

entrada, abri-a e vi meu irmão do outrolado da porta de tela.

Esperei, depois disse:— Não se preocupe com isso. Não

tem importância.Eu ainda estava magoado, mas, como

falei, não tinha importância. Eu já haviasido magoado antes e seria magoado

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outras vezes. Steve devia desejar nuncater tentado me fazer o favor de mostrar àSal que eu não era o perdedor que elasupunha. Tudo que conseguira fazer foraprovar que não apenas houvera umaépoca em que ele achava que eu era umacausa perdida, como também que eu era oúnico.

Logo depois, porém, senti a facada.Um sentimento me atravessou e me

libertou. Todos os meus pensamentos sedesprenderam da corrente, até surgir umafrase solitária que não quis me largar.

As palavras e Octavia.Foi essa a frase.Ela se agitou dentro de mim.Salvou-me, e, quase em um sussurro,

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eu disse ao Steve:— Não se preocupe, meu irmão. Não

preciso que você diga à Sal que não souum fracasso. — Ainda estávamosseparados pela porta de tela. — Tambémnão preciso que você diga isso a mim. Eusei o que sou. Sei o que vejo. Talvez, umdia, eu lhe fale um pouco mais de mim,mas, por enquanto, acho que teremos queesperar para ver o que acontece. Nãoestou nem perto do que serei, e... — Sentiuma coisa em mim. Uma coisa quesempre havia sentido. Fiz uma pausa ecaptei o olhar de Steve. Saltei para dentrodele através da porta e o prendi. — Vocêjá ouviu um cachorro chorar, Steve? Sabecomo é, uivar tão alto que quase chega a

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ser insuportável? — Ele fez que sim. —Acho que uivam assim porque estão comtanta fome que chega a doer, e é isso quesinto em mim, todos os dias da minhavida. Tenho uma fome enorme de seralguma coisa, de ser alguém. Está meouvindo? — Ele estava. — Não vou merebaixar nunca. Não diante de você. Nemde ninguém. — Encerrei o assunto. —Eu tenho fome, Steve.

Às vezes acho que essas foram asmelhores palavras que eu já disse.

“Eu tenho fome.”E, depois disso, fechei a porta.Não a bati.Não se atira em um cachorro que já

está morto.

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A

QUANDO OS CÃESCHORAM

gora estamos na parte mais afastada dacidade e, quando o cão para e vira para mim,

seus olhos estão mais famintos que nunca.Fome de orgulho.Fome de sustentar seu desejo.Isso me afeta, faz meu coração mergulhar

mais fundo em mim, bater mais forte, maisorgulhoso, maior.

Ele escolheu aquele momento para memostrar o que sou.

O vento recomeça a soprar e uma tempestadese agita no céu.

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O relâmpago estala e o trovão estrondeiaacima de nós.

E o cachorro começa.Procura em seu âmago e os pelos se eriçam,

alçando-se ferozmente para o céu. Do fundo docoração, do espírito, de tudo que há nele deinstinto, começa a uivar.

Uiva mais alto que o trovão uivante.Uiva mais alto que o uivar do raio, mais

longe que os uivos do vento.Com a cabeça clamando ao céu infinito, ele

uiva sua fome e eu a sinto enfurecer-se dentro demim.

É a minha fome.O meu orgulho.E sorrio.Sorrio e posso senti-la em meus olhos, porque

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a fome é poderosa.

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O

13

telefone tocou. Era noite de quarta-feira. Pouco depois das sete.

— Alô?— Ruben Wolfe?— Não, é o Cameron.— Seguinte — prosseguiu a voz, com

um toque de amável malícia. — Vocêpode chamar o Ruben para mim?

— Sim. Quem quer falar?— Ninguém.— Ninguém?— Escute, parceiro. Só ponha o seu

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irmão no telefone, senão vamos cobrirvocê de porrada também.

Levei um susto. Afastei o fone, torneia colocá-lo no ouvido.

— Vou chamá-lo. Espere um minuto.Rube estava no nosso quarto com

Julia, a Vadia. Bati à porta e entrei,dizendo:

— Rube, tem alguém no telefone.— Quem é?— Não quis dizer.— Vá perguntar.— Eu tenho cara de secretário?

Levante daí e vá atender o telefone.Ele me olhou de um jeito estranho,

levantou-se e saiu, deixando-me sozinhono quarto com Julia, a Vadia.

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Julia, a Vadia: — Oi, Cam.Eu: — Oi, Julia.Julia, a Vadia, sorrindo e chegando

mais perto: — O Rube me contou quevocê não é muito meu fã.

Eu, afastando-me aos poucos: — Bem,acho que ele pode contar o que quiser.

Julia, a Vadia, percebendo meucompleto desinteresse: — É verdade?

Eu: — Bem, para ser sincero, não sei.Na verdade, o que o Rube faz não é daminha conta... O que sei é que quem estánaquela ligação quer acabar com ele, etenho a impressão de que é por sua causa.

Julia, a Vadia, rindo: — O Rube já égrandinho. Sabe cuidar de si.

Eu: — É verdade, mas ele também é

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meu irmão, e de jeito nenhum eu odeixaria sangrar sozinho.

Julia, a Vadia: — Quanta nobreza asua.

Rube voltou, dizendo:— Não sei do que você está falando,

Cam. Não tinha ninguém no telefone.— Estou lhe dizendo — retruquei, já

saindo. — Um cara ligou, Rube, e eleparecia querer matar você. Portanto, dapróxima vez que o telefone tocar, levantee vá atender.

O telefone realmente tocou de novo e,dessa vez, Rube saiu correndo do quartoe atendeu. Desligaram na cara dele denovo. Na terceira vez, meu irmãovociferou ao telefone:

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— Que tal começar a falar? Se vocêestá procurando o Ruben Wolfe, sou eumesmo. Então pode falar!

Não houve resposta do outro lado, e otelefone não voltou a tocar nessa noite,mas, depois que a Julia saiu, percebi queRube ficou meio pensativo. Estava tãopreocupado quanto Ruben Wolfe chega aficar, porque agora ele sabia sem sombrade dúvida, como eu, que alguma coisa iriaacontecer. No nosso quarto, ele olhoupara mim. No olhar que trocamos, disse-me que uma briga se aproximava.

Sentou-se em sua cama.— Acho que aquele mau

pressentimento que você teve estava certo— começou. — Sobre a Julia.

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Assustar-se não era do feitio do Rube,pois nós dois sabíamos que ele era capazde cuidar de si. Era uma das pessoas maisqueridas, porém também mais temidas,do nosso bairro. O único problema,agora, era que não havia nada certo. Eraum pressentimento, só isso, e eu percebique o Rube também o tinha. Dava parasentir o cheiro.

— Se acontecer alguma coisa — falei—, pode contar comigo, viu?

Rube assentiu.— Obrigado, mano.Sorriu.O telefone também tocou na noite

seguinte, e na outra.Na terceira ligação da noite de sexta-

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feira, Rube pegou o telefone e berrou:— O que é!?Em seguida, calou-se.— É. — Pausa. — Sim, me desculpe

por isso. — Deu uma olhada para mim edeu de ombros. — Vou chamá-lo. —Afastou o fone e cobriu o bocal: — Épara você.

Estendeu-me o fone, pensativo. Noque estaria pensando?

— Alô.— Sou eu — disse ela. Sua voz me

alcançou pelo telefone e me agarrou. —Você vai trabalhar amanhã?

— Até umas quatro e meia.Ela pensou por um momento.— Talvez possamos fazer algo quando

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você voltar. Vou levá-lo a um lugar —disse, com palavras suaves, mas intensas.— Vou lhe contar umas coisas.

A voz era excitação. A voz era arrepio.Sorri. Não pude evitar.— Com certeza.— Está bem, passo por aí logo depois

das quatro e meia.— Ótimo; a gente se vê.— Tenho que desligar. — Ela quase

me interrompeu e não se despediu. —Estou vigiando o relógio. — E desligou.

Quando coloquei o fone no gancho,Rube me perguntou o que eu sabia queperguntaria:

— Quem era? — Mordeu uma maçã.— A voz me pareceu conhecida.

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Aproximei-me, sentei à mesa dacozinha e engoli em seco. Concentrei-meem respirar. Tinha chegado a hora. Ahora era aquela e eu tinha que falar.

— Você se lembra da Octavia? —perguntei.

Nada.A torneira pingou.O pingo explodiu na pia.Rube estava no meio de outra dentada

quando se deu conta do que eu estavadizendo.

Sua cabeça inclinou-se. Ele engoliu opedaço de maçã e fez as contas, enquantoeu pensava: Ah, não, que diabo vai aconteceraqui?

Aconteceu uma coisa.

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Aconteceu quando Rube foi fecharmelhor a torneira, virou-se de novo paramim e disse:

— Bem, Cam.Ele riu.Seria uma risada boa ou má? Risada

boa ou risada má? Risada boa ou risadamá? Não consegui decidir. Aguardei.

— O que é? — perguntei. Já nãoaguentava mais. — Fale.

Nervoso, comecei a contar o que haviaacontecido. Falei de estar em frenteàquela casa em Glebe. De Octavia teraparecido. Do trem e de ter ido até lá, eda concha e...

— Está tudo bem — disse ele, comuma expressão quase de orgulho. — ...

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Aquela Octavia... — E abanou a cabeça.— Ela é uma ótima garota, sabe? Meiomaluquinha, é claro, mas é gente boa.Você a merece, Cam, mais do que eu. —Esperou que eu o olhasse. O quedemorou um pouco. — Tudo bem?

Balancei a cabeça devagar,concordando.

— Tudo bem.— Ótimo.— Você não está com raiva?— Ora, por que diabos eu ficaria com

raiva? Uma garota daquelas precisa serbem-tratada, e você pode fazer isso. Eu,não. — Em seguida, ele descarregou umaverdade muito mais dura do que o Stevejamais poderia sonhar. Só que o Rube o

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fez consigo mesmo. — Já eu — dissecom seus botões — tratei aquela garotafeito lixo, e agora ela está com você. Vocêprovavelmente vai tratá-la como umadeusa. Não vai, Cam?

Sorri, mas sem mostrar os dentes.Ele repetiu a pergunta:— Não vai, Cam?Porque ambos sabíamos a resposta.Dessa vez, não consegui esconder.

Rube e eu rimos e ficamos mais umpouco juntos na cozinha.

— Por que vocês estão tão contentes?— perguntou Sarah, ao entrar. — Istoaqui está parecendo o fim da porcaria deum episódio de Scooby-Doo...

Rube bateu palmas.

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— Espere até ouvir isto — quasegritou. — Você se lembra da Octavia?

— É claro.— Bem, pois eu vou lhe contar. Você

vai tornar a vê-la mais um pouco,porque...

— Eu sabia! — interrompeu-o Sarah.Apontou para mim. — Eu sabia muitobem que havia uma garota, seu safado, evocê não quis me contar nada!

Eu nunca tinha visto a Sarah sorrirdaquele jeito.

— Esperem! — exclamou ela, e, talvezuns trinta segundos depois, voltou comsua câmera polaroide e tirou uma foto doRube e de mim, os dois encostados napia, conversando e rindo.

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Juntamo-nos em volta da foto para vera imagem se formar, e logo pude discernirum esboço do contorno do cabelo doRube e do sorriso na minha boca. A maçãainda se equilibrava na mão dele eestávamos ali de pé, encostados, rindo, osdois de jeans velhos, o Rube com umacamisa xadrez flanelada, usada notrabalho, eu com minha velha jaquetaimpermeável. Rube olhava para mim,dizendo alguma coisa, e meu rosto estavamarcado pelo riso.

Sarah puxou a foto para mais perto.— Adorei essa foto — disse, sem

pensar. — Tem cara de irmãos.De como os irmãos devem ser, pensei, e

ficamos mais um tempo contemplando-a,

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enquanto a torneira continuava a pingar,as gotas explodindo mais baixinho na pia.

Mais tarde, fui ao quarto da Sarah daroutra espiada na foto.

— Octavia, hein? — disse ela. Nãopude ver seu rosto, mas senti aempolgação na voz. — Ela é linda,Cameron. — Sua voz soou muitobaixinha, naquele momento. Tão baixaque mal pude ouvi-la. — Ela é linda.

“Como você”, tive vontade de dizer,mas não consegui. Já fazia algum tempopara a Sarah. Algumas experiências ruinscom homens tinham feito com que minhairmã ficasse sozinha por algum tempo,mas, quando a olhei, ela não estavainfeliz. Apenas repetiu o que tinha dito

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no corredor naquela noite, que agoraparecia ter sido anos antes.

— Parabéns, Cam. Parabéns.O trabalho, no dia seguinte, foi de

uma lentidão angustiante, enquanto euesperava. Era como se as horas estivessemengatinhando, sendo arrastadas paraadiante a contragosto.

Ao chegarmos em casa, estava maisperto das cinco horas que das quatro emeia, e Octavia já me esperava nacozinha. Ela e Rube se falaram e nãohouve animosidade. Nemconstrangimento.

Quanto a mim, fiquei ali parado,deslumbrado.

Octavia estava sem maquiagem e sem

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nada no cabelo, e vestia roupas normais.Nada de top justo. Nada de jeansapertados. Nada de joias, exceto a concha,pendurada no pescoço.

Mas estava adorável.Era tão...Puxa, não consigo explicar direito. Até

hoje, não consigo.— Bem? — Ela entrou em meus

pensamentos, com sua voz baixa e seusolhos humanos. — Não vai me dar umbeijo, Cameron?

Levei um susto.Com a beleza.Com as palavras.Vá até lá, eu disse a mim mesmo, e

pouco depois segurei a mão dela na

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minha e a beijei, depois beijei seu pulso eseus lábios.

— Ele encontrou você — disse a Sra.Wolfe para Octavia. — Que bom!

Minha mãe entrou e olhou para mim, eme lembrei do que ela me dissera naquelemesmo cômodo, algum tempo antes, noinício do inverno. Ela me falara sobre umirmão que um dia subiria na vida e quenão devia se envergonhar. Talvez elatambém estivesse se lembrando disso.

— É melhor você se apressar, Cam —falou para mim. — Acho que a Octavia jáesperou bastante.

Fui tomar um banho, me vesti, eOctavia e eu saímos logo depois. Nãohouve recomendações para eu voltar em

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certo horário ou não chegar muito tarde.Nada disso. Para começar, minha famíliaestava acostumada comigo perambulandopelas ruas, e segundo, se eu ficasse na ruaaté tarde demais, isso seria dito napróxima vez que eu saísse. Na minhafamília, cada um tinha uma chance porconta própria, e o tempo que ela durariadependia de seu comportamento. Sarah jáhavia passado dessa idade fazia anos, e oRube também estava chegando lá. Eu, poroutro lado, ainda tinha que tomarcuidado, e ia me certificar disso.

— Vamos andando? — perguntouOctavia, e segurei a porta aberta. Saímos.

Tínhamos percorrido um bom pedaçoda rua quando me dei conta de que não

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fazia a mínima ideia de para ondeestávamos indo. Perguntei.

Octavia apenas continuou concentradano lugar aonde íamos.

— Você vai ver. Não é nenhum lugarespecial — disse ela.

Soou satisfeita, como se nada além denós parecesse importar. Não naquelanoite, pelo menos. Sua mão encontrou aminha e a segurou. Não houve palavras,mas não fazia mal. O sinal abriu para nósem uma das ruas e atravessamos. Tomeicuidado para não tropeçar na sarjeta.

— Por aqui — indicou ela, maisadiante, fugindo das aglomeraçõesmaiores e nos levando para um pequenocinema em uma rua estreita e abarrotada.

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— Você se incomoda se entrarmos aqui?— perguntou. — Sou meio chegada afilmes antigos, e esse cinema passa algumtodo sábado.

— Parece legal — retruquei.Quer dizer, sejamos sinceros: a garota

podia ter me convidado para ir aoinferno, e eu iria. De jeito nenhum eu iadiscutir, por isso entramos.

Entramos e o filme foi bom.E r a Touro Indomável, e o sujeito do

cinema parecia conhecer Octavia e nosdeixou entrar, mesmo dizendo que nãodevia. Às vezes eu pensava em outrosfilmes que tinha visto no cinema, onde opessoal da nossa idade ia para namorar ecomer pipoca e parecer bonito e tirar

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retratos três por quatro em uma daquelascabines de fotografia nos supermercados.

Uma coisa era certa.Nós não éramos assim.Não éramos porque, a certa altura,

Octavia se inclinou para perto de mim eachei que ia me beijar. Não beijou.

Dormiu.Olhei-a e afaguei seu cabelo, e ela

dormiu enquanto De Niro estapeava aspessoas e ia ficando cada vez mais gordo,mais feio e mais perverso. Era um filmeem preto e branco, e eu sentia uma garotarespirando no meu pescoço, sentia seuseio tocando de leve no meu peito.

Eu estava feliz.Quando os créditos subiram na tela,

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afaguei o rosto dela com as costas dosdedos. Gentilmente, sussurrei:

— Octavia. — E de novo: — Octavia.Ela acordou, assustada, com medo do

escuro, e então se deu conta.— Graças a Deus — murmurou. —

Cameron. É você. — Os créditos aindaestavam rolando quando ela se mexeu deleve e disse, baixinho: — Você pode medar um beijo, Cameron?

Abraçando-a, inclinei-me para baixo.Lembro-me de uma coisa daquele

momento, e é uma das melhoreslembranças que tenho.

Foi no instante exato em que chegueimais perto e ela me puxou para si, enossos dentes se tocaram no escuro. Sua

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boca me absorveu e, de algum modo,nossos dentes colidiram, e aquele somecoou através de mim. Gostei daquilo. Daverdade acidental daquilo.

Com as luzes começando a se acenderprogressivamente, Octavia disse em vozbaixa:

— Sabe de uma coisa, Cameron? Vocêé a primeira pessoa que eu realmente quisque me beijasse. É a primeira pessoa aquem pedi isso.

Foi uma surpresa.— Você nunca pediu ao Rube?— Ele não precisava que eu pedisse.— Imagino. Eu já devia saber —

concluí.Quando o Rube queria alguma coisa,

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não havia espera. Comigo, era esperademais.

— A questão — Octavia viroudelicadamente minha cabeça para ela — éque eu gosto de ter que pedir. Isso tornavocê diferente de qualquer pessoa que eujá tenha conhecido. — Tornou a mebeijar. Suave. Lenta. — É o tipo depessoa com quem eu quero estar.

Na rua, ela resolveu que era melhor irpara casa, e por isso voltamos a pé para aEstação Central e esperamos o metrô.Havia o costumeiro grupo disperso defrequentadores de festas, lunáticos,filantes de cigarros e bebuns, cujas ideiase conversas tropeçavam pela plataformasuja. Octavia me falou de sua gaita e de

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como, provavelmente, o instrumento eraa única coisa que ela já tinha amado ou naqual confiara. Quando o trem chegou,nós dois ficamos olhando para ele. Vimosas portas se abrirem, sentamos na estaçãoe observamos o trem partir. Issoaconteceu outras três vezes.

— Nem acredito que peguei no sono— disse ela.

Estava abanando a cabeça quando ovento do quarto trem entrou com forçana plataforma. Empurrou os detritos paraa frente e lançou ondas de friagem no ar.

Mais uma vez, quando o trem parou eas portas se abriram, Octavia não semexeu. Fiquei feliz. Ela me fez contar oque tinha acontecido no fim do filme e,

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nos olhos com que falei, pude ver comoera grande o cansaço. Vi alguma coisaoculta, ou enterrada, mas continuei semperguntar. Lembrei-me de ela ter dito aotelefone que me contaria coisas, e calculeique a gaita havia sido o princípio disso.Octavia me contou que começara a tocaraos oito anos e que, aos quatorze, já seconsiderava boa o bastante para tocar pordinheiro. Perguntei onde ela tocava e,quase com vergonha, ela listou uns trintalugares pela cidade. Contou sobre asmúsicas. Sobre a primeira, sobre a última.A melhor, a pior. Eu a vira feliz quandoela estava com o Rube. Vira-a feliz econtente comigo. Mas nunca a tinha vistoassim. Era orgulho e, de certo modo, foi

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algo com que pude me identificar, talvezpor causa do começo das minhas palavras.

Havia também as esquisitices.Seu antigo vício em salgadinhos sabor

cheddar.Seu ódio intenso por Céline Dion.Seu amor por gaitas, violinos

desafinados e água do mar.Sua cantora favorita:— Lisa Germano, de longe, por anos-

luz, pelo vento que sopra por esses túneis.Filme favorito:— Um negócio francês. Não lembro o

nome, mas era bom pra cacete.Música favorita:— “Small Heads”, da Lisa Germano.

(Quem diabos é ela, afinal?)

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Peça de vestuário favorita:— Fácil. A concha.Invenção humana favorita:— Pontes. Para mim, é um mistério

como eles conseguem fincar os pilaresembaixo d’água.

Pior momento da sua vida:— Sem comentários.Melhor momento:— Quase um empate. Pode ter sido

quando pedi ao Cameron Wolfe paraficar em frente à minha casa, ou quandome ajoelhei com ele no cais, livrando-mede toda a insegurança e pondo minhaboca na dele.

Bebida favorita:— Nenhuma.

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Som favorito:— Dentes se chocando em um cinema

vazio.(Fiquei contente por ela também ter

notado isso.)Maior decepção:— Em breve eu lhe conto.Quando o trem seguinte chegou,

Octavia disse:— Esse eu tenho que pegar. — Na

porta, ela se inclinou, tocando minhamanga por um último instante, ecomeçou a dizer alguma coisa, mas asportas se fecharam. — Esta! — gritoupela janela. — Esta é a minha maiordecepção.

Era a minha também, apesar de ela ter

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me dito, antes de entrarmos no cinema,que no dia seguinte estaria no mesmolugar da semana anterior, tocando suagaita e ganhando dinheiro...

Quando o trem partiu, esperei umpouco, depois subi a escada rolante, seguipela rua Elizabeth e fui para casa.

Não houve perguntas quando cheguei,mas todos pareceram presumir que ascoisas haviam corrido bem. Eram ossorrisos escapando do meu rosto.Escapando o tempo todo.

Mais uma vez, não consegui dormir.A noite foi Octavia.Em alguns momentos, também

surgiram na minha cabeça ideias sobre oSteve e sobre o resto da família Wolfe.

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Mas principalmente sobre o Steve. Eunão estava com raiva dele pelo que haviaacontecido durante a semana, e queria vê-lo no dia seguinte, antes de ir para oporto.

De manhã, comi e fui até lá. Não tiveque tocar a campainha, porque ele e Salestavam na sacada. Steve não me mandousubir. Em vez disso, desapareceu e desceuao meu encontro. Foi simbólico, acho.Ele estava vindo a mim.

Abriu a boca para falar, mas passei nasua frente.

— Onde você joga hoje?Steve levantou os olhos para a sacada,

mas não respondeu à minha pergunta.— Obrigado.

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Foi um Obrigado por não me odiar.Ele me ofereceu o café da manhã, mas

não aceitei. Antes de ir embora, saí debaixo das varandas e gritei para a Sal:

— Até logo! Pode ser que eu venhaamanhã ou na terça — sugeri ao Steve. —Talvez possamos ir ao estádio.

— Está bem — retrucou ele, eseguimos nossos caminhos separados.

Quando eu já estava longe, ouvi a vozdele me chamar pela última vez.

— Ei, Cam! Cam!Ele veio na minha direção e parou a

uns dez metros. Distância na qual euconseguia ouvi-lo.

— Eu não esperava que vocêaparecesse por aqui, pelo menos não tão

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cedo — falou ele.— Bem — abri o zíper da jaqueta —,

você deu uma surra em quatro caras, uma um. Acho que perdoei meu irmão porter me chamado de causa perdida. Naverdade, não faz tanta diferença assim,faz?

— Eu odiaria você para sempre.Apenas balancei a cabeça.— Não tem importância, Steve. A

gente se vê logo.No cais, dessa vez, desci do trem do

metrô sem nervosismo. Todos os meuspensamentos se inclinaram para a imageme o som de Octavia, e, da plataforma,olhei lá para longe e vi as pessoas que acercavam, observando, escutando,

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absorvendo a música que fluía dela.Andei depressa quando a vi, mas, ao

chegar perto, não me aproximei daaglomeração que se formara ao seu redor,ou, pelo menos, não fui direto até lá.Segui mais para o lado e apenas me sentei,ouvindo. A voz uivante de sua gaita mealcançou.

— Foi fraco — disse ela, depois determinar e me encontrar. Ela se agacharae me abraçava por trás. — Só quarenta eoito e sessenta — explicou. As palavrasroçaram meu ouvido. — Mesmo assim,não foi tão mau. Venha, Cam, vamosembora.

Tomei a direção de quem estivessevoltando para a ponte, mas ela não me

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seguiu. Não naquele dia.— Está a fim de ficar alto? —

perguntou.— Alto? — perguntei.— É.Octavia deu um sorriso perigoso,

zombeteiro, e só comecei a entender oporquê ao voltarmos para o centro dacidade, para a torre. Lá dentro, fui pagar,mas ela não deixou.

— A ideia foi minha — explicou,empurrando meu dinheiro de volta para obolso. — Eu trouxe você aqui. E voulevá-lo lá em cima... Além disso, vocêpagou o cinema ontem.

Entramos no elevador e subimosdireto até o topo, com uns sujeitos com

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ar de jogadores profissionais de golfeamericanos e uma família em um passeiodominical. Uma das crianças ficoupisando no meu pé.

“Merdinha”, tive vontade de dizer. Seestivesse com o Rube, provavelmentediria, mas, com a Octavia, apenas olheipara ela e deixei o xingamento implícito.Ela assentiu, como se dissesse:“Exatamente.”

Uma vez lá em cima, circulamos portodo o andar e não pude deixar deprocurar minha casa, imaginando o queestaria acontecendo por lá e torcendo, atémesmo rezando, para estar tudo bem.Isso foi crescendo até incluir todo mundolá embaixo, até onde a vista alcançava, e,

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como sempre faço quando rezo para umDeus sobre quem não entendo nada,fiquei parado ali, batendo de leve nopeito, sem sequer pensar.

Mas especialmente esta garota, rezei. Queela fique bem, Deus. Está bem? Está bem,Deus?

Foi então que Octavia notou meupunho batendo de leve no peito. Nãohouve resposta de Deus. Houve umapergunta da garota.

— O que você está fazendo? —indagou ela. Senti a curiosidade de seusolhos no meu rosto. — Cameron?

Continuei concentrado na cidadeesparramada a nossos pés.

— Só meio que rezando, sabe?

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— Pelo quê?— Por você. — Parei, continuei, quase

ri. — E faz quase sete anos que não entroem uma igreja...

Passamos mais de uma hora lá emcima, e Octavia me contou mais algumascoisas a seu respeito.

Pouquíssimos amigos.Tempo passado em trens.Falou-me da vez em que sua gaita foi

roubada na escola, e ela a encontroudentro do vaso.

Só estava me dizendo quem era e,suponho, por que ia a um lugar comoaquele.

— Venho muito aqui — disse-me. —Eu gosto. Gosto da altura. — Chegou até

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a subir no degrau acarpetado da janela elá ficou, inclinando-se para a frente navidraça. — Não vai subir?

Serei franco: eu tentei, porém, pormais que quisesse me inclinar para afrente naquela vidraça, não consegui.Fiquei achando que ia atravessar o vidro.

E por isso me sentei.Só por alguns segundos.Depois, Octavia desceu do degrau e

viu que eu não me sentia muito bem.— Eu queria subir — declarei.— Tudo bem, Cam.O problema é que eu sabia que havia

uma coisa que eu tinha que perguntar, eperguntei. Até prometi a mim mesmo queseria a última vez que iria fazer uma

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pergunta desse tipo, apesar de não tercerteza de que manteria a promessa.

— Octavia — comecei. Continuava aouvi-la dizer que vivia indo àquela torre.Era o que ainda ouvia quando proferi aspalavras: — Você também trouxe o Rubeaqui?

Lentamente, ela confirmou com acabeça.

— Mas ele se debruçou na vidraça —respondi à minha pergunta seguinte. —Não foi?

Ela tornou a assentir.— Foi.Não sei por quê, mas pareceu

importante. Era importante. Eu me sentium fiasco, porque meu irmão mais velho

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havia se inclinado na vidraça, e eu nãoconseguira. Aquilo me deu a sensação deser um caso perdido, por alguma razão.Como se eu não fosse nem metade dosujeito que ele era.

Tudo porque ele se inclinara navidraça, e eu não.

Tudo porque ele tivera coragem, e eunão.

Tudo porque...— Isso não significa nada. — Octavia

derrubou meus pensamentos. — Nãopara mim. — Pensou por um instante,depois me encarou. — Ele se inclinou najanela, mas nunca me fez sentir comovocê me faz. Antes de você, eu tinha asensação de só estar viva de verdade

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quando tocava minha gaita. Mas agora écomo... — Ela se esforçou para nãoexplicar, e sim para realmente dizer. —Quando estou com você, é como se euestivesse fora de mim. — Então veio ogolpe final. — Não quero o Rube. Nãoquero mais ninguém. — Seus olhos medevoraram de mansinho. — Quero você.

Olhei.Para baixo.Para meus sapatos, depois de novo

para cima, para Octavia Ash.Ia dizer “obrigado”, mas ela me

impediu, apertando minha boca com osdedos.

— Lembre-se sempre disso —completou. — Está bem?

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Fiz que sim.— Diga.— Está bem — disse eu, e suas mãos

frescas afagaram meu pescoço, meusombros, meu rosto.

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C

CACOS DE VIDRO

hegamos a uma tela de vidro, bem alto naescuridão.Ao nos aproximarmos dela, sei o que tenho

que fazer. O cachorro dá um passo para trás e,devagar, sinistramente, eu me inclino para afrente na vidraça. Trêmulo.

Por algum tempo, apenas olho para baixo,vendo pela primeira vez uma névoa aveludada láembaixo. Ela cintila e se ondula, e fica maisluminosa a cada momento.

Por algum tempo, o vidro é forte, mas oinevitável não tarda a acontecer.

Ele racha.Desfaz-se em pedaços e se abre ao cair.

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O impulso me empurra, e sou puxado parao chão, a uma velocidade que ultrapassa minhaimaginação.

Vejo a vastidão do mundo.Quanto mais caio, mais rápido ele gira, e à

minha volta vejo tudo e todos que conheço. Láestão Rube e Steve, Sal, Sarah, papai e a Sra.Wolfe, e Julia, a Vadia, com aquele ar sedutor.Até o barbeiro está lá, cortando cabelos quechovem ao meu redor.

Só penso em uma coisa.Onde está a Octavia?Ao chegar mais perto do chão, noto que é na

água que estou caindo. É um mar verde e liso,até que...

Sou empurrado pela superfície e desço mais.Sou cercado.

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Estou me afogando, penso. Estou meafogando.

Mas também estou sorrindo.

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— S

14

erá que você vai apagar essa luzalguma hora? — perguntou Rube

quando eu ainda estava na metade dotexto.

Passava pouco das onze e meia danoite de domingo.

— Já, já — respondi.— Depressa.Assim que terminei e me deitei, o

resto da tarde ficou vagando por meuspensamentos. Como era comumacontecer quando eu estava na cama, vi

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minha vida pintada no teto.Depois que descemos da torre,

Octavia voltou lá para casa. Jogamosbaralho com a Sarah, e até papai e a Sra.Wolfe se sentaram conosco para umapartida. Papai ganhou, é claro, mas, nofinal das contas, foi uma tarde legal. Vi denovo a carta com o cereal grudado. Era arainha de espadas.

Quando Octavia já ia saindo, a Sra.Wolfe a convidou para ficar.

— Para jantar — disse.Mas Octavia não aceitou. Talvez por

ter ouvido falar da comida da Sra. Wolfe,mas acho que foi mais porque tinha queir para casa.

— Mesmo assim, obrigada — disse, e

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fomos para a estação.O que eu não sabia era que, enquanto

saíamos pela porta da frente, a Sarahtinha tirado outra foto nossa com apolaroide, através da porta de tela. Maiscedo, tirara algumas enquanto jogávamoscartas. Nenhuma posada. Sarah foibatendo as fotos do jeito que estávamos edeu uma para a Octavia levar para casa.Nada de muito especial. Estávamos sósegurando as cartas, mas nossos joelhos setocavam e, olhando bem, via-se queOctavia estava prestes a dizer algumacoisa. Pessoalmente, não saí muito bem,porque estava com os olhos meiofechados, e meu cabelo parecia elétrico.Mas a Octavia gostou da foto, e a Sarah a

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fez levá-la.Na volta da estação, dei um passeio

com o Miffy e, quando cheguei em casa,encontrei a outra foto no meu travesseiro— a que Sarah havia tirado quando íamossaindo. E aquela estava boa. Estava ótima.

Pela porta de tela ligeiramente rasgada,era possível ver Octavia e a mim, por trás.Nossas mãos se tocavam enquantocaminhávamos em direção ao portãocapenga e à rua. A luz vazava entre nós,menos no ponto em que nossas mãos seencontravam, e, quando achei a foto noquarto, fui direto falar com a Sarah.

— Obrigado — agradeci, e não estavacom a foto nem a mencionei. Ela sabia.

Guardei-a na gaveta, no mesmo lugar

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em que tinha decidido pôr meus escritos,e antes de dormir, beijei toda a imagemdela, até ver a marca de meus lábios nafoto.

Na cama, percebi que Octavia medissera muitas coisas naquele fim desemana, mas as principais que vinham meintrigando continuavam a ser ummistério.

A casa.A família.Ela não as mencionou nem uma vez.Eu não fazia ideia se Octavia tinha

irmãos ou irmãs, mas, afinal, poucosmeses antes, quando ela estava com oRube, eu sempre havia suposto que nãotivesse. Isso nunca tinha sido mencionado

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nem conversado. Agora havia a gaita, aaltura da torre e uma porção de outrascoisas, mas eu continuava sem ternenhuma ideia da origem dela.

Por um momento, tive vontade deacordar o Rube e lhe fazer umasperguntas, mas, como ele já haviareclamado da luz, achei que não ficariasatisfeito se eu começasse a puxarconversa. E, além disso, eu não haviaesquecido que o Rube vinha enfrentandoalguns problemas pessoais. Pensei emqual seria o resultado de todos aquelestelefonemas. Só sabia que alguma coisaviolenta estava prestes a acontecer e,provavelmente pela primeira vez no quedizia respeito ao Rube, eu não tinha

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certeza de qual seria o desfecho. Nopassado, eu sempre soubera que meuirmão estaria de pé no final. Dessa vez,não me sentia tão seguro. Só me restavaesperar para ver.

Por fim, o cansaço me venceu e eu caíem um sono pesado.

No dia seguinte, o telefone tocoumuito, como fizera a semana toda. Naquinta-feira, o Rube já pegava o fone e obatia de volta no mesmo instante.

Fomos à casa do Steve uma noite, masna verdade não aconteceu grande coisa.Só uns chutes a gol, café preto e umaconversa que girou em torno do futebolamericano e da família, com uma piadaaqui e ali.

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No caminho de volta, Rube parou, enós meio que sentamos juntos no meio-fio. A impressão era que fazia algumtempo que não conversávamos, e espereique ele falasse.

Passados uns cinco minutos, ele disse:— Seja quem for esse cara, ele está

mesmo a fim de acabar comigo.— Você perguntou à fulana sobre ele?— Julia?— É.— Ela diz que o sujeito não é dos

mais brilhantes, que tem tempo demais desobra e um montão de amigos.

— Amigos?— Amigos — confirmou Rube. —

Pensei em ir atrás dele, mas não vou sair

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procurando problemas. Se fizer isso, vouficar ainda pior.

— Mas, se você o achar antes que ele oencontre, pode apanhá-lo de surpresa.Pode acabar com essa história antesmesmo que ela comece.

— Não.Pensei no assunto.— Tudo bem, mas lembre-se disto,

Rube: se a coisa ficar feia, fale comigo. Seique não sou você, mas, mesmo assim, vaiser mais difícil contra nós dois.

A mão de Rube pousou no meuombro. Foi só, e voltamos para casa.

Na sexta-feira, Octavia chegou logodepois do almoço e, da varanda, vimos oRube vindo pela rua com um saco de

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boxe.— Um treinozinho extra — disse meu

irmão com um sorriso, quando oajudamos a entrar com o saco e descercom ele para o porão.

Rube o pendurou nos caibros e,durante quase uma hora, nós o ouvimossocá-lo. De certo modo, eu só podialamentar por quem quisesse enfrentarmeu irmão. Mesmo que houvesse mais deum, pelo menos alguns iriam sairmachucados, porque Rube tinhavelocidade e força, e nenhuma hesitação.

Quando o telefone tocou, atendi epedi ao cara do outro lado para esperar.

— Meu irmão quer falar com você —informei. — Quer dizer, isso está ficando

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ridículo. Você liga três vezes por dia. Nãofala nada. Estou começando a achar que,na verdade, você está é gostando do meuirmão, e não que quer matá-lo, senão,você dava logo uma surra nele e acabavacom isso. Então espere aí. Só um minuto.

Desci ao porão.— O que é?Rube não suava muito, mas, depois de

uma boa hora esmurrando o saco depancada, estava encharcado.

— É ele — disse eu.Rube subiu os degraus frios de

cimento e praticamente destruiu otelefone ao pegá-lo.

— Escute aqui — rosnou. — Vouesperar você amanhã, perto do pátio

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velho da ferrovia, às oito da noite. Sabeonde fica? ... É, esse mesmo. Se quiser,pode ir lá e me enfrentar. Caso contrário,pare de ligar para mim: você é um pé nosaco. — Houve um silêncio mais longo.Rube estava ouvindo. — Ótimo —assentiu. — Só você e eu, sozinhos. —Escutou de novo. — Está bem, podemoslevar outras pessoas, mas, na hora agá,somos só você e eu. Nada de ajuda nemde truques, e aí acabou-se. Até logo.

Bateu com o telefone e percebi que,em pensamento, ele já estava brigando.

— Então está marcado? — perguntei.— Parece que sim — disse ele, e foi

fechar o porão. — Graças a Deus.Então o telefone tocou. De novo.

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— Não se preocupe — continuouRube, de passagem. — Eu atendo.

Pegou o fone e percebi de imediatoque era o cara outra vez. Rube não ficousatisfeito.

— O que é agora? — berrou aspalavras ao telefone. — Você não pode?!— Foi ficando mais irritado a cadasegundo. — Escute aqui, cara, é você quequer me matar, então resolva logo quandoquer fazer isso. — Pensou um pouco. —Que tal durante a semana? Não? Bem,que tal no próximo sábado? Dá para vocêchecar a agenda para ter certeza de quenão tem mais nada marcado? — Esperou.— Agora tem certeza? Absoluta? Não vailigar daqui a uns minutinhos para

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remarcar? Não? Então, o próximo sábadoà noite parece um bom momento para mematar? Ótimo. Mesmo lugar, mesmohorário. No próximo sábado. Legal.

Desligou de novo, batendo o fone comforça. Abanou a cabeça, mas riu:

— Esse cara é um circo completo.Começou a comer um pão e a se

aprontar para sair com a Julia — a causadaquilo tudo. Fiz um esforço definitivopara antipatizar com a garota e pôr aculpa de tudo aquilo nela, mas, naverdade, eu sabia. Não era ela. Era meuirmão, Rube. A culpa era dele; finalmentehavia tropeçado na garota errada e, pelaprimeira vez, talvez tivesse que pagar. Éclaro, eu também disse a mim mesmo que

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havia me enganado no passado, porquemuitas vezes o Rube escapara desituações perigosas simplesmente por serRuben Wolfe, e Ruben Wolfe era capazde lidar com qualquer coisa.

Com os punhos.Com seu charme rebelde.Do jeito que desse.Mas, dessa vez, eu não tinha certeza.

Era diferente. Achei que descobriríamoso resultado dali a uma semana...

Octavia e eu ficamos em casa naquelanoite, no meu quarto e do Rube, e elatocou sua gaita, e ouvimos música. Emalguns momentos, ela acompanhava amúsica com a gaita, mas, na maior partedo tempo, conversamos. Houve histórias

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de dias que ela passara tocando pordinheiro, e de tipos que havia conhecidono porto e em outros lugares da cidade.Falei da escola e de como eu ficavasentado em um muro lá, sentindo ashistórias e as palavras passarem por mim,e às vezes umas pessoas iam conversarcomigo. Amigos antigos e conhecidos.

Contei que ninguém além dela sabiadas palavras.

Foi uma sensação boa.Íntima.Octavia estava de jeans, mas tirou os

sapatos e as meias, e eu me lembro de terolhado para seus pés descalços, elasentada de pernas cruzadas na minhacama. Lembro-me de ter olhado para seus

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dedos e tornozelos. Eu gostava dos seustornozelos e é claro que, quando levanteia cabeça, gostei da expressão no rostodela ao falar e escutar e pensar. Ela riu decoisas. Dos picolés de cerveja, e dehistórias que contei sobre mim e Rube esobre as idas às pistas só para olhar, rindoe apostando de vez em quando, só defarra.

Conversar foi bom.Parece uma coisa óbvia para se dizer,

mas me ajudou a conhecê-la, por seu jeitode falar as coisas e pelos momentos emque ela ficava pensando, e depois meexplicava o que era. Acho que, quandoalguém lhe conta uma coisa que costumaguardar, você se sente privilegiado, não

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por saber algo que ninguém mais sabe,mas por se sentir escolhido. Dá aimpressão de que aquela pessoa quer quea vida dela se entrelace com a sua. Achoque foi a melhor sensação.

Cheguei perto, muito perto de lheperguntar sobre sua família, mas nãoconsegui. De algum modo, intuí que esseera um assunto que ela é que teria quecomeçar.

Octavia voltou na tarde seguinte e, jáque papai, Rube e eu não tínhamosalmoçado peixe com fritas, eu estava meioque no clima para comer esse tipo decoisa. Fomos a uma loja ali perto evoltamos com uma porção enorme. ASra. Wolfe ficou grata por não ter que

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requentar as sobras, e todos comemos nacozinha, direto do embrulho.

Nós não somos endinheirados, naminha família.

Não somos uma porção de coisas.Mas notei que, quando estávamos

todos comendo o peixe com fritas, e oRube me xingou por eu ter deixado cairum pedaço de peixe, e o papai deu-lhe umtapa na testa por causa disso, a Octaviaficou observando com um brilhozinho noolhar.

Gostava da nossa casa, deu paraperceber.

Ela gosta de conversar com a Sarah ecom minha mãe, e agora, até com meupai, que lhe explicou em detalhes as

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complexidades da instalação, conserto ereforma de um sistema sanitário. Haviauma rudeza naquilo tudo, mas era real.Tudo, desde os pedaços de peixe quecaíam até os xingamentos coletivos e o salgrudado no canto da boca das pessoas.

A certa altura, quando Sarah nosfalava de uma garota com quemtrabalhava, que tinha o mau hálito maishorroroso do mundo, Octavia olhou paramim. E sorriu.

As coisas eram corretas naquele lugar.Não perfeitas.Corretas.Lembrei-me disso no dia seguinte, no

lugar de costume no cais, enquantoOctavia tocava e eu estava sentado de

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lado, meio longe, escutando e escrevendoumas coisas.

Quando ela acabou, fui até lá e aajudei a recolher o dinheiro. Ela levantoua cabeça, fechando um olho por causa dosol, e disse:

— Levei você a lugares, Cam. Lugaresa que eu queria ir. — Pôs o dinheiro emuma bolsinha de pano. — Por que nãome leva a um lugar aonde você queira ir?

O problema era que, na verdade, eununca ia a lugar nenhum.

Não conscientemente, pelo menos.Tudo que fazia era circular pelas ruas

desta cidade. Apenas andar, olhando aspessoas, as construções, e absorvendo osaromas e os sons do lugar.

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A alma da cidade, pensei, mas o quedisse foi:

— Eu não vou muito a lugar nenhum.Ela me lançou um olhar tipo Não me

venha com essa, e eu percebi que era inútiltentar escapar com esse tipo decomentário. Octavia já me conhecia bemdemais. Só me restou dizer:

— Bom, em geral eu só ando por aí.Não é nada de especial. Eu só...

— Parece bom. — Ela já estava de pé,à minha espera. Uma presença suave.Calma. — Mostre todos os lugares a quevocê vai.

E, perambulando devagar, saímos.Pegamos o metrô até a Estação

Central e caminhamos pelas ruas do

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centro da cidade. Mostrei-lhe a barbeariae falei do velho barbeiro que morava lá, eda história dele e de sua mulher.

Octavia lembrou-se da pequena páginaque eu tinha escrito sobre minhasesperanças para minha sepultura eperguntou:

— Aquilo veio daqui?Fiz que sim.Em seguida, veio o ponto de ônibus

em que aquele casal tinha me tratado male que depois eu não tivera dinheirosuficiente para pegar o ônibus. Octaviariu disso tudo. Disse que era exatamenteo tipo de coisa que ela só podia imaginaracontecendo comigo.

— Eu sei.

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Até eu ri nessa hora.Continuamos andando e, sem

reconhecer o lugar, logo chegamos aGlebe, aproximando-nos da casa emfrente àquela em que eu costumava ficar,esperando aquela garota.

Foi bom estar lá com Octavia. Comose fosse a coisa certa a fazer. Tive entãoque pensar na coisa certa a dizer.

— Eu vinha aqui — comecei — pelomenos três ou quatro vezes por semana.— Parei. As palavras dentro de mim seanimaram, pois compreendi que, agora,toda vez que pensava naquele lugar, jánão tinha a ver com a agonia que sentia.Tinha a ver com Octavia. — Mas, sabe?— prossegui. — Hoje em dia, quando

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penso neste lugar, acho que, toda vez queeu vinha aqui, não tinha realmente a vercom esperar por aquela outra garota. Erasó... — Eu queria falar da maneira certa.— Acho que era por você que eu estavaesperando. — Sacudi a cabeça e olheipara o chão, depois voltei a levantar osolhos. — Acho que aquela foi a melhornoite da minha vida, sabe?

Octavia deixou seus olhos nadarempara dentro de mim.

— É, eu sei — respondeu, e apenaspassamos um tempo ali, relembrandoaquela noite, e, pessoalmente, pensei emcomo tudo o que eu desejava era umavisão daquela garota, a Stephanie. Apenasa ideia dela. Não ela de verdade. O

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melhor disso tudo era que Octavia erareal.

Na volta, passamos pela estação acaminho de casa, conversando sobre ometrô daquela noite, e logo passamos poroutros lugares com histórias sepultadasneles. Contei à Octavia o que significavacada lugar. Era bom pensar nos lugarescomo histórias que queriam dizer algumacoisa.

Mostrei a ela um beco no qual um diaeu tinha visto o Rube dar uma surra emum cara, só porque o sujeito tinha ohábito de empurrar as pessoas que sabiaque eram mais fracas. Até encontrar oRube, é claro. O cara não contava que oRube o encarasse sem nem pestanejar.

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Meu irmão o largou lá, dizendo: “Bem, tásatisfeito agora? Devia estar.”

Percorremos ruas por onde Rube e eutínhamos passeado com o Miffy, com ocapuz escondendo o rosto. Havia pontosde ônibus em que as pessoas haviampulado das portas abertas enquanto eupassava. Lembrei-me de uma noite emque a Sarah fora uma dessas pessoas, e euhavia sentido o cheiro de álcool nela, masnão tinha dito nada. Agora já não eracomum ela fazer isso.

Quando já íamos chegando em casa,perguntei se Octavia estava cansada, masela ficou contente em continuar andando.

Percorremos uma distância um poucomaior até a casa do Steve, e contei à

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Octavia sobre mim e meu irmão. Faleidas coisas que ele me dissera e de como,no fim, eu tinha realmente ficado felizpor ele me dizer a verdade. Cheguei até acontar que o amava. Talvez fosse sóporque é isso que irmãos fazem, aindaque nunca o digam e raramente odemonstrem. Ou talvez fosse mais do queisso. Eu gostava da força dele e do nossoentendimento mudo. Falei com Octaviasobre a noite no campo. Ela me pediuque a levasse até lá.

Fomos.Já eram quase cinco horas e o lugar

estava deserto. Fomos até as traves do gole eu lhe mostrei de onde tinha dado todosaqueles chutes, e contei como o Steve

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havia reagido quando finalmente acertei.Saímos de lá pouco depois e enfim

chegamos à minha rua.Em casa, sentamos na varanda da

frente e falei de algumas outras coisas.Contei a Octavia sobre uma tarde doverão passado em que eu estava sentadoali, e a Sra. Wolfe chegou do trabalho umpouco mais cedo que o comum. Estavacom uma expressão vazia e passou diretopor mim. Na cozinha, simplesmentesentou-se em uma cadeira, murmurandopalavras quase mudas, que repetia semparar. Acabou levantando os olhos edisse:

— Sabe aquela casa em que eu façofaxina, em Bondi? A daquele cara

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riquíssimo, o Sr. Callahan?— É claro — respondi.— Bem, pois eu entrei lá hoje e... —

As mãos dela tremiam na mesa e a vozestava completamente entrecortada portremores. — Entrei no quarto e vi os pésdele...

O homem se matara com um tiro, eminha mãe o encontrou no meio de umapoça de sangue no tapete. Contei aOctavia que ela passou muito tempotremendo na cozinha, tentando nãochorar.

Algumas noites depois, a Sra. Wolfeentrou no nosso quarto, tarde. Passava dameia-noite e, quando Rube e euacordamos, com a luz tremida do

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corredor, nossa mãe disse uma coisa:— Tratem de levar a vida mais digna

que puderem. Sei que vocês vão cometererros, mas, às vezes, é para isso acontecermesmo, está bem?

E foi só.Ela não esperou que respondêssemos

nem que concordássemos. Só queria queouvíssemos o que tinha a dizer.

A porta voltou a se fechar e a luz docorredor desapareceu.

— Que diabo foi isso? — perguntouRube, do outro lado do quarto.

Mas ele sabia, assim como eu. Meuirmão Rube pode ser uma porção decoisas, mas não é burro. Entende tudomuito bem, o que pode torná-lo ainda

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mais frustrante.Octavia e eu passamos um tempo

sentados na varanda, antes de irmos à casaao lado buscar o Miffy. Em vez de levá-lopara passear, só zanzamos um pouco peloquintal e cedemos ao feroz desejo dele deganhar cosquinhas na barriga. Ele pareceuanimado naquela noite, embora ainda nãofosse o cãozinho que um dia tinha sido.Talvez só estivesse envelhecendo. OKeith vinha lhe dando uns comprimidosreceitados pelo veterinário, mas sei lá. Acentelha do Miffy estava ainda um poucomais apagada que de hábito.

Escurecia quando o devolvemos aovizinho, e Octavia tinha que ir embora.

No caminho para a estação, havíamos

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percorrido metade da rua quando parei eolhei para a varanda, lá atrás.

— O que foi? — indagou Octavia.— Há uma coisa que não mencionei

— respondi. E soltei o verbo. — Eu melembro de quando fiquei sentado lá navaranda, vendo você se afastar naquelanoite, na última vez que estava com oRube... A luz do céu a salpicou, e acheique você devia estar sentindo o que eusempre sentia lá em Glebe.

— Acho que sim — disse ela, com arsatisfeito. — Mas as coisas agora sãodiferentes.

— São — concordei, e recomeçamos aandar.

Mesmo mais tarde, naquela noite,

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quando lhe telefonei, Octavia me disse denovo quanto as coisas haviam mudado.Liguei para ela da nossa velha cozinha e,quando ela atendeu, quase não houvepalavras. Octavia só disse:

— Espere aí, Cam. Espere.Ouvi-a depositar o fone e se afastar.— Alô? — falei.Nada.— Alô?Então, o som chegou ao meu ouvido.Do outro lado da linha, Octavia estava

andando pela sala e, quando a músicacomeçou, apertei mais o fone no ouvido.

A gaita uivou como sempre. Moveu-sepor uma melodia que eu não ouvira antes,e foi uma das coisas mais lindas que já

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tinha escutado na vida. Veio cantandopela linha telefônica e imaginei Octaviatocando no escuro. A música subia edescia, levando-me com ela, e ossentimentos me abriram...

Algum dia você já teve vontade de cairde joelhos na cozinha?

Pois foi assim que me senti, ao ouvir amúsica daquela garota.

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R

SE SUA ALMAVAZASSE

uas escuras.O cão está sempre esperando para me

levar outra vez para as ruas escuras.Adiante, vemos uma garota andando pela

rua.Corro, passando à frente do cachorro pela

primeira vez.Ela dobra uma esquina, mas, quando a

sigo, sumiu.O cão chega e ficamos parados junto a um

muro.“Amo aquela garota”, tenho vontade de

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dizer, mas não digo. Sei que o cachorro está aquipara me guiar e mais nada.

Ficamos parados ali, e sei que sei muitopouco.

Não sei aonde vão dar essas ruas, nem porquê.

Não sei se consigo resistir à luta desta noite.Só há uma coisa que eu sei.É sobre a garota, e é isto:Se um dia sua alma vazar, quero que caia

em mim.

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O

15

uvi o barulho de novo, lá no porão.Os punhos do Rube esmurravam o sacode boxe. Ele estava ansioso pela luta.

Era noite de terça-feira e desci paraobservá-lo por algum tempo. Ele não menotou até terminar. Martelava o saco depancada com as mãos nuas e tinha arespiração quente feito vapor a sair daboca. Ao vê-lo de jeans e camiseta regata,compreendi por que as garotas gostavamtanto dele. Era atlético, com todos osmúsculos bem-definidos. Não era

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grandão nem abrutalhado. Na medidacerta. O cabelo castanho-claro caía norosto e os olhos não tinham propriamenteuma cor. Eram olhos de brasas partidas.

Ele apoiava as mãos nos joelhosquando reparou que eu o observava. Arespiração estava arfante.

— Tá bonito — comentei, descendoos degraus frios de cimento.

— Obrigado.Ele se levantou e notou umas gotas de

sangue em seus dedos. Ele não seimportava, porque, para Rube, issosignificava apenas que suas mãos estavampreparadas para a luta. Acostumadas coma dor e a nudez. Mãos nuas batendo emum rosto nu.

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— Quer dar uns murros? — ofereceu,mas declinei. — Por que não? Você podebrigar bem, quando chegar a sua vez.

— Não, eu estou bem assim.Eu já ia saindo quando Rube chamou:— Ei, Cam. — Ele levantou a cabeça

para olhar para mim, do porão. — Achoque estou meio que acabando com aquelatal de Julia, sabe?

Fiquei surpreso.— É mesmo? Por quê?— Olhe só para mim! — Estendeu as

mãos, com as palmas viradas para cima.— Tem um cara por aí querendo acabarcomigo por causa dela. — Olhou para simesmo, para o peito, a barriga, os pés. Vique percebia a ironia da situação. Assim

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mesmo, declarou: — Ela não vale otrabalho que dá.

Meus pés me levaram de volta aoporão. Precisava perguntar uma coisa.

— Quer dizer que você já tem maisalguém na fila?

— Não.Rube balançou a cabeça e voltou os

olhos para a parede.— Acho que talvez tenha aprendido

minha lição desta vez.Então subimos juntos para o térreo.— Você ainda vai comigo no sábado à

noite? — perguntou ele, algumas horasdepois. — Para a briga?

Estávamos no nosso quarto, a luz jáapagada.

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A escuridão do cômodo me envolviaquando respondi:

— É claro.— Obrigado. — Rube soou incisivo.

Pronto. — Não confio nesse cara.— Você pediu para mais alguém

aparecer? — perguntei. — Para o caso deesse outro cara resolver usar ajuda?

— Não. — Eu só conseguia ver orosto dele vagamente, no escuro. Lascasde luz da janela batiam em seu rosto. —Nunca confiei em outras pessoas e nãovou começar agora. — Soergueu o corpo,apoiado em um cotovelo. — Com você édiferente. Você é meu irmão.

Era o que bastava. Ele poderia tercontinuado a falar, dito alguma coisa do

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tipo “E é isso que os irmãos fazem”, ou“Eu faria o mesmo, se fosse com você”,mas não havia necessidade. A conversaestava encerrada. Agora tudo o querestava era a escuridão.

Acho que irmão é irmão.Só isso.Na tarde de quinta-feira, fui até a casa

da Octavia e esperei do lado de fora. Emgeral, era assim que funcionava. Nós nosencontrávamos nos fins de semana etalvez uma ou duas vezes durante asemana. Era raro telefonarmos. Para sersincero, eu não gostava de conversar portelefone. Ele me deixava nervoso,constrangido. Eu não sabia qual era arazão da Octavia. Talvez ela não gostasse

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da ideia de que passar horas intermináveisfalando ao telefone era uma coisa que asgarotas da sua idade costumavam fazer.Octavia não era uma garota como asoutras.

Ela saiu uns quinze minutos depois.Como sempre, fomos ao parque e nos

sentamos encostados na árvore. Octaviaestava esperando. Por mim.

Suas pernas estavam estendidas e eume levantei, depois me ajoelhei, pondoum joelho de cada lado do seu corpo.Beijei a pele de sua bochecha. Beijei suaboca e na lateral do pescoço,mordiscando de leve.

Ela murmurou “não pare” e inclinou acabeça, para expor o pescoço inteiro, e

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beijei os dois lados e afastei a gola da suacamisa social, para pôr a boca nas pontesque levavam aos ombros. Passei as mãospor seu cabelo.

— O que você quer que eu faça? —perguntei, mas, a princípio, ela só mepuxou mais para perto.

— Só não pare — respondeu. — Eme beije de novo.

O calor de seu hálito me inundou.Absorvi-a. Ela me possuía.

Senti minha pele rasgar-se, à medidaque tudo foi ficando mais intenso e aboca de Octavia continuou a respirar pelaminha. Era bruta e quente e gritava naminha boca. Sempre me dominando.Sempre querendo mais.

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Querendo mais.Essa foi a melhor parte, acho. Ela não

me empurrou nem se afastou, como euesperava. O que mais me estarrecia eraseu jeito de sempre querer mais de mim.Quando sua boca se apossou do meupescoço, meu corpo todo estremeceu coma sensação. A mão dela ficou por baixo daminha camisa. Seus dedos se espalharampor minhas costelas e acabaram nabarriga, afagando, enquanto seus lábiosme beijavam no pescoço e no rosto.

No fim, ela beijou meus lábios de leve,deixando-os afundarem devagar nos seus.

Apoiou a cabeça no meu ombro, e vique estava à vontade. Foi gostoso poderfazê-la se sentir assim.

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Fez-se silêncio por um tempo e euouvi trens entrando e saindo da estação.Entravam coxeando. Recomeçavam aandar.

Conversamos sobre o confronto doRube, cada vez mais próximo.

— Você vai com ele, não é? —perguntou Octavia.

Ainda descansava a cabeça no meuombro. Em certos momentos, seu narizencostava na linha do meu queixo e euvoltava a me arrepiar.

— Tenho que ir — admiti. — Ele émeu irmão.

Octavia apenas ficou ali, e as nuvenscorreram pelo céu. Não adiantava tentarme dissuadir. Ela sabia e por isso nem

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tentou. Apenas disse:— Só não vá se machucar, por favor.

— Senti seus olhos subirem para meurosto. — Está bem?

Fiz que sim.— Prometo.Ela sorriu, senti, e tornou a beijar meu

pescoço, de leve.Voltamos depois de um bom tempo e,

quando a deixei no portão, ela não medeixou ir embora.

— Ei, Cam — disse. Tinha chegado ahora. Ela hesitou. — Você acha quegostaria de entrar, uma hora dessas?

— Ali? — perguntei, olhando para acasa.

— É...

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Lembrei-me das palavras de Rubesobre nunca haver chegado nem perto deentrar, e me perguntei por que issoimportava tanto, e por que era tãoimportante para mim. Quer dizer, era sóuma casa, pelo amor de Deus.

Era mais que isso, porém. Octavia medisse por quê.

— Antes de você, Cam, e antes doRube, houve um cara que me machucoulá dentro. Meio que me bateu quando eunão... Você sabe... — As mãos delaapertaram o portão. — E eu jurei àminha mãe que nunca mais levaria paracasa ninguém que eu não amasse comtodos os pedacinhos do meu ser. — Elasorriu, mas também estava sentindo dor.

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— Então, em breve, tudo bem?— Tudo bem — respondi, abraçando-

a no portão.Quase disse quanto lamentava pelo

que havia acontecido, e que eu nuncaseria capaz de magoá-la daquele jeito.Mas, de algum modo, eu sabia. Era obastante. Ela e eu e o portão.

Naquela noite, o Rube treinou noporão de novo e, dessa vez, aceitei seuconvite para socar o saco de boxe.

Em parte, foi por causa da alegria queeu sentia pela Octavia, em parte, por raivapelo que havia acontecido com ela, e emparte, pelo nervosismo por sábado ànoite.

O dia seguinte passou voando.

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Trabalhar com o papai no sábado foium gigantesco intervalo de espera,embora o Rube estivesse perfeitamentecalmo.

Nós nos aprontamos no quarto, lápelas sete e meia. Vesti o jeans mais velhoque tinha, minha camisa xadrez de flanelae a jaqueta impermeável. Dispensei ostênis e resolvi usar botas. Era um par queeu havia herdado do Rube e, quando mesentei encostado na parede, apertandobem os cadarços, olhei para cima e vi meuirmão olhando fixamente para o espelho.Dizia a si mesmo o que fazer.Examinando-se de cima a baixo.

Fiquei de pé.— Pronto?

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Ele não falou nada.Só se virou, pegou sua jaqueta e

assentiu. Fazia meses que o Rube nãoparecia tão sério.

Saímos de casa e, como Rube já tinhaanunciado que íamos à casa de um amigo,não houve problemas. O portão da frenteabriu e fechou depressa, e saímos pela ruapisando duro. Rube estava a mil, com acara amarrada. O ar frio da noite pareciasair da sua frente, assim como as pessoasque vinham andando na direção oposta.

Faltavam uns cinco minutos para asoito quando chegamos lá, e aí só nosrestava esperar. O lugar estava cheio devagões velhos e estropiados, espalhadosno escuro. As janelas tinham sido

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quebradas e havia palavras roubadasescritas nas paredes feito cicatrizes.

Havia uma cerca alta de arame farpadoseparando o pátio da rua, e ficamosencostados nela, esperando.

Passaram pensamentos.Passaram minutos.Umas figuras começaram a rondar no

início de uma ruela, parecendo vir nanossa direção.

— São eles? — perguntei.O rosto de Rube endureceu ainda

mais.— Vamos esperar que sim.As sombras chegaram mais perto e a

adrenalina disparou, derrubando-me.Estava na hora.

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C

O TÚNEL

hegamos a um túnel e entramos. Ele descefundo, até o âmago de tudo que somos. O

chão é manchado de humanidade e, aocaminharmos, começo a ver o final.

Parece haver um buraco ao longe, e sei que élá que vamos atravessar para o outro lado.

Sinto meus punhos se cerrarem.Minha respiração salta da boca na cara da

escuridão que nos cerca.Estou me aprontando, até solto um murro de

leve no ar.Aproximamo-nos do outro lado e, no espaço

logo adiante da boca do túnel, vejo uma sombraencostada em uma cerca de arame trançado. Seus

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dedos agarram-se à trama com força.Avance, digo a mim mesmo, e, depois de

encontrar os olhos faiscantes do cão, é o que faço.Saio do túnel e vejo os braços da cidade

escancarados de fora a fora, enquanto a sombrapermanece imóvel.

O ar da noite me esbofeteia.Tem cheiro de irmãos.

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A

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s sombras transformaram-se em sereshumanos e havia três deles caminhandona nossa direção. Estavam de jaquetas ecaras fechadas.

— Qual de vocês é o Rube? —perguntou o do meio, o maior.

Tinha a voz límpida e violenta ecuspiu na direção dos nossos pés, quasesorrindo ao ver a cusparada não nosatingir por um triz. Rube deu um passo àfrente.

— Sou eu.

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— Dizem que você é bom de briga,mas não está me parecendo essamaravilha toda.

— Bem, é uma questão de opinião,não é? — retrucou Rube, em tom amável.— E depois, ainda não fizemos nada.Você pode decidir quando a gente tiverterminado.

— Tudo bem.O sujeito começou a dizer mais

alguma coisa, só que era tarde demais.Rube o segurou pelo pescoço e o

jogou na cerca de arame, em seguida oacertou com uma saraivada de socos quecortou o sujeito na mesma hora. Eletentou se esquivar das mãos do meuirmão, mas Rube era rápido demais e

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sempre acertava o alvo. O sangueespirrou no chão e os dois caras quetinham ido para dar apoio moralcomeçaram a ficar nervosos. Até Rubenotou e, entre um murro e outro,encarou-os calmamente e disse:

— Nem pensem nisso.Foi aí que errou o primeiro soco, e o

outro cara conseguiu se esquivar,agarrando-se à cerca para se levantar.

Rube poderia ter ido atrás dele, maspreferiu parar a alguns passos de distânciae fazer algumas perguntas. Eu o vira agirassim uma centena de vezes. Para ele,estava dando ao adversário uma chancede fugir, antes que a coisa ficasse violentademais. Uns aproveitavam. Outros não.

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— E qual é o seu nome, afinal? —perguntou.

— Jarrod.A resposta escorreu da boca do sujeito

junto com o sangue.— Bem, Jarrod, você não está me

parecendo nada bem. Já apanhou obastante?

Infelizmente para Jarrod, a respostaera não, e, quando ele se levantou e partiupara cima do Rube, foi quase assustadorver a velocidade com que meu irmãoacertou-lhe as costelas e socou a cara dosujeito mais uma vez. O som do Jarrodbatendo na cerca lembrava um chocalho,enquanto os trens quebrados pareciamolhar desamparados do outro lado.

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Paft. Pausa. Paft.O sangue continuava a pingar

lentamente no chão, só que dessa vezJarrod foi caindo junto. Tinha sangue nocabelo, nas mãos e na roupa. A certaaltura, achei que ia se afogar nele.

O único problema da história foi este:Não era real.Não era real porque Rube e eu

ficamos esperando no antigo pátio daferrovia e o cara não apareceu. Assombras que vimos no beco viraram paraoutra ruela, deixando-nos sozinhos nofim da rua.

— Ele está atrasado.Foram as primeiras palavras do Rube,

minutos depois das oito. Às oito e meia,

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ele estava irritado, e às quinze para asnove, prestes a enfiar o punho na cerca.

Foi então que vi a luta imaginária. Foiuma cena bem típica do Rube. Admitoque era incomum ele entrar na briga tãocedo. Na maioria das ocasiões, o outrosujeito tentava surpreendê-lo, mas o Rubesempre era rápido demais. Por isso, dessavez, para variar, eu o imaginei sendo apessoa que tomava a iniciativa. Se um diaisso acontecesse, a luta acabaria antesmesmo de começar. Rube era ótimo embrigas, por muitas razões. Não hesitava,não tinha medo de se machucar, adoravavencer e tinha um timing fantástico.Mesmo quando não batia com força, doía,porque ele escolhia o momento perfeito e

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acertava exatamente onde pretendia.— Vai ver que ele se enganou com a

hora — sugeri, mas Rube me lançou umolhar de Você tá me gozando, não é?

Esperamos, mesmo sabendo que erainútil. O sujeito não ia aparecer. Rubesabia. Eu sabia. Pessoalmente, fiqueiaborrecido, porque podia ter saído com aOctavia. Em vez disso, estava parado emuma rua desgraçada de fria, à espera dealguém que não apareceria.

Mesmo assim, não fiquei zangado como Rube.

Ele começou a espreitar pela cerca,repetindo uma palavra.

— Babaca.Repetiu-a um sem-número de vezes e,

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às nove horas, virou-se e agarrou a cercapelo arame trançado. Esperei que ficasseainda mais irritado, porém, para minhasurpresa, ele relaxou. Só olhou fixamentepor um último momento, e depoistomamos o rumo de casa.

A última coisa que ele fez foi dar umsoco de leve na cerca. Ainda assim, elachacoalhou.

— O que você vai fazer agora? —perguntei, quando já estávamos quasechegando em casa.

— Sobre o cara que quer me matar,ou sobre hoje?

— As duas coisas.— Bem, quanto ao cara, vou esquecê-

lo, só isso. Quanto a esta noite, acho que

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posso dar uns socos no saco de boxe noporão. Vou descer com o rádio, ligar amúsica no volume mais alto e socar aténão me aguentar mais em pé.

E foi exatamente o que fez, excetopela parte de não se aguentar em pé. Oque aconteceu foi que liguei para aOctavia e disse que não tinha acontecidonada, depois fui para o porão com oRube. Quando a Sarah desceu também,tirou uma boa foto do Rube esmurrandoo saco de areia. O rosto dele na foto sópoderia ser descrito como intenso, e davapara ver como o saco se encolhia sob aforça das mãos dele.

— Nada má — decidiu, quando lhemostramos a foto.

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Mas não pediu para ficar com ela, porisso Sarah a levou para seu quarto, antesde voltar com o baralho. Depois disso,passamos muito tempo no porão, jogandocartas, com o rádio berrando à nossavolta.

Horas depois, Sarah foi a primeira a irpara o quarto se deitar, deixando a mim eRube no porão sozinhos.

Na saída, ele deu um último soco nosaco de boxe, desligou o rádio e o levoude volta para nosso quarto.

Dormi bem, para variar, e passei odomingo com Octavia no cais.

Era assim na maioria dos domingos.Eu fazia os deveres da escola pela manhãe pegava o metrô para o cais. Quando

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tinha tempo, ia a pé. Octavia ainda ia láem casa nas tardes de sábado e, durante asemana, aparecia principalmente àsquartas-feiras. Às vezes, antes de ela irembora, a gente dava um passeio com oMiffy. Em muitas dessas quartas-feiras,era eu que segurava a guia, com Octaviasorrindo a meu lado e o Rube secertificando de que nenhum conhecidonos visse. Como sempre, o Miffy puxava aguia, ora tossindo, ora lambendo ofocinho, e às vezes latindo, quando oRube estava a fim de agitá-lo.

Vez por outra, eu ia ao bairro daOctavia e assistíamos a um filme por lá.Não fiz mais nenhuma pergunta sobre ointerior da casa. Às vezes, até esquecia. Só

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me sentia grato por estar com a Octavia epor ela estar legal.

Havia momentos em que ficávamosjuntos e eu não conseguia deixar desorrir.

— O quê? O que foi? — perguntavaela.

— Sei lá.Era a única resposta que eu podia dar.

Não havia nenhuma razão específica. Euolhava para ela e ouvia. Era o bastante.

Todo domingo ela tocava no cais e,quase todos os sábados, era de lá quevinha, à tarde. Eu ouvia as moedastilintando no bolso da sua jaqueta.

Passou-se um mês e, em uma noite desábado qualquer, levei a Octavia para

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conhecer o Steve. Meu irmão gostou delae tocou uns discos antigos que a deixarambem impressionada.

— Tem umas coisas boas aqui —disse ela.

— Eu sei.Na volta para casa, naquela noite,

Octavia disse:— Ele também ama você, sabia?Tentei dar de ombros.— Não, Cam. — Ela me fez parar na

calçada. — Ele ama, sim.Foi então que percebi que, com ela,

não havia verdades que eu pudesseesconder.

— Ele parece triste pelas coisas quelhe disse — prosseguiu Octavia,

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enquanto íamos andando.— Mas contente porque as disse.Ela concordou.Era uma noite fria de terça-feira, no

começo de agosto, quando Rubefinalmente recebeu outro telefonema. Sóque dessa vez era a Julia. Ela contou quetinha reatado com o tal cara de antes — oTelefonador, como meu irmão e eupassamos a chamá-lo.

— Ele ainda está atrás de você —avisou Julia.

— É mesmo? — Rube estava de sacocheio. — Que diabo eu fiz desta vez? —Escutou. — Bem, diga a ele para dar umapassada aqui um dia desses que a genteresolve esse assunto no quintal.

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Julia desligou.— A Vadia já era mesmo? —

perguntei.— A Vadia já era — confirmou Rube.Parecia estar tudo encerrado e, como

me dissera, Rube ainda não tinha outragarota à vista. Ele continuava a trabalharcom afinco e a esmurrar o saco de boxeno porão. Ainda recebia ligaçõestelefônicas, mas nem de longe com amesma frequência. Às vezes ele xingavaos amigos sem querer, achando que era oTelefonador de novo.

— Ah, Jeff. — Ria. — Desculpe,parceiro, achei que fosse outra pessoa.

Foi até o cais com Octavia e comigoalgumas vezes, mas sempre acabava nos

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deixando a sós e seguindo seu rumo. Nãoestava infeliz nem solitário. Isso não erado feitio do Rube. Sempre aconteciaalguma coisa quando ele estava por perto.Se não acontecia, ele corria atrás.

— Não me leve a mal, Octavia —disse Rube, em uma noite de domingo —,mas estou tirando férias de mulheres.

Estávamos na varanda, depois depassear com o Miffy.

— Até a próxima — retrucouOctavia.

— É claro.Ele nos deu o sorriso que era sua

marca registrada e entrou.No metrô, naquela noite, tudo pareceu

estar nos conformes. Octavia e eu

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esperamos o trem, e foi como se o mundoem que eu vivia tivesse enfim encontradoa direção certa.

Dias depois, aconteceu a tragédia quebateu à nossa porta.

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TUDO CERTO

ela primeira vez, uma multidão me confrontanesta jornada urbana pelas noites, ruas e

trevas. Há uma enxurrada de gente vindo naminha direção, e todos, percebo, são desprovidosde rosto. Um vazio lhes tolda os olhos e eles nãotêm a menor expressão.

Tínhamos entrado em uma rua e lá estavameles, fluindo em direção a nós.

O cão vai abrindo caminho em zigue-zague eeu o sigo, escolhendo meus espaços na ondahumana.

Vez por outra, vejo um rosto que conservousua forma.

Em dado momento, vejo Sarah tentando

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encontrar seu caminho, e em outro, quandotropeço, alguém me ajuda a me levantar, e é orosto de meu pai que vem a meu encontroquando ergo a cabeça.

Sigo em frente. Não tenho escolha.A questão é que não me incomodo.Quero que o mundo apinhado gire do seu

jeito — que me faça encontrar meu própriocaminho, ainda que às vezes isso seja uma luta.

À medida que vou avançando, sinto atudocertice me perpassar.

O engraçado é que tudocertice não é umapalavra de verdade. Não está nem no dicionário.

Mas está dentro de mim.

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aía uma chuva torrencial, martelandoas ruas e os telhados da cidade em umatarde escura de terça-feira. Havia alguémesmurrando nossa porta da frente.

— Espere aí! — gritei.Eu estava comendo torradas na sala.

Abri a porta e lá estava um homenzinhomeio calvo, de joelhos, completamenteencharcado.

— Keith? — perguntei.Ele me olhou. Deixei cair a torrada. A

essa altura, Rube já estava atrás de mim.

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— O que aconteceu? — perguntou.O rosto de Keith estava coberto de

tristeza. Filetes de chuva escorriam pelassuas faces enquanto ele se levantavadevagar. Fixou os olhos na janela danossa cozinha e disse, com um soluçoentrecortando a voz:

— O Miffy. — Quase se desfez empedaços de novo. — Ele está morto. Noquintal.

Rube e eu nos entreolhamos.Saímos correndo pelos fundos e

começamos a escalar a cerca de qualquerjeito, enquanto a porta batia às nossascostas. No meio do caminho, eu vi. Haviauma bolota de lanugem empapada eimóvel caída na grama.

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Não, pensei, ao aterrissar do outrolado. A incredulidade impediu meuspassos, deixando meu corpo pesado emeu coração disparado.

Rube também alcançou o chão. Seuspés bateram na grama encharcada e, ondeterminavam minhas pegadas, as delecomeçaram.

Ajoelhei-me sob a chuva torrencial.O cachorro estava morto.Toquei-o.O cachorro estava morto.Virei-me para Rube, que se ajoelhara a

meu lado.O cachorro estava morto.Passamos um tempo sentados ali, em

completo silêncio, enquanto a chuva caía

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feito agulhas em nossos corposensopados. A pelagem castanha e fofa doMiffy, o lulu-da-pomerânia que era um péno saco, estava amassada e úmida porcausa da chuva, mas continuava macia.Rube e eu o afagamos. Brotaram até umaslágrimas perdidas dos meus olhos quandome lembrei de todas as vezes que oleváramos para passear à noite, comfumaça a sair dos nossos pulmões e comriso na voz. Ouvi a gente reclamandodele, fazendo troça, mas, no fundo, agente se importava com ele. Até o amava,pensei.

O rosto do Rube estava arrasado.— Coitado do merdinha — disse ele,

com dificuldade para falar.

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Eu queria dizer alguma coisa, masfiquei completamente mudo. Sempresoubera que esse dia ia chegar, mas nãohavia imaginado que seria assim. Não sobaquela chuva torrencial. Não umamontoado patético de pelo congelado.Não com uma depressão do tamanho doque senti naquele exato momento.

Rube o pegou e o carregou para oabrigo da varanda, na parte de trás da casade Keith.

O cachorro estava morto.Mesmo depois que a chuva parou, a

dor dentro de mim não cedeu.Continuamos a fazer carinho nele. ORube chegou até a lhe pedir desculpas,provavelmente por todos os xingamentos

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que proferia quase sempre que o via.Keith chegou um pouco depois, mas

principalmente o Rube e eu é que ficamosali. Durante cerca de uma hora,permanecemos sentados ao lado dele.

— Ele está ficando duro — assinalei, acerta altura.

— Eu sei — replicou Rube.Eu estaria mentindo se não dissesse

que um risinho de mofa cruzou nossosrostos. Foi a situação, acho. Estávamoscom frio, encharcados e famintos e, decerto modo, essa foi a derradeira vingançado Miffy contra nós — a culpa.

Lá estávamos, quase congelados noquintal do vizinho, fazendo carinho emum cachorro que ficava mais duro a cada

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minuto, tudo porque o havíamosinsultado várias e várias vezes e, depois,tivéramos a audácia de amá-lo.

— Bem, esqueça — acabou dizendoRube. Fez um último carinho no Miffy efalou a verdade, com a voz trêmula. —Miffy, você sem dúvida nenhuma foi umindivíduo ridículo. Eu odiei você, ameivocê e usei um capuz na cabeça paraninguém me ver com você. Foi umprazer. — Fez um último carinho nacabeça do cachorro. — Agora, estousaindo — esclareceu. — Não estoudisposto a pegar uma pneumonia sóporque você teve a coragem de morrerembaixo do varal, no meio do que erapraticamente um furacão. Por isso, adeus,

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e vamos torcer para que o próximocachorro que o Keith e a esposaresolverem adotar seja mesmo um cachorro,e não um furão, um rato ou um roedordisfarçado. Adeus.

Saiu andando pelo quintal escuro, mas,quando subiu na cerca, virou-se e lançouum último olhar para o Miffy. Um últimoadeus. E então se foi.

Demorei mais um pouco por ali e,quando a mulher do Keith chegou dotrabalho, ficou muito aflita com o que euestava começando a chamar de “OIncidente Miffy”.

— Vamos mandar cremá-lo. Temosque cremar esse cachorro — repetia semparar. Ao que parece, o Miffy tinha sido

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presente da mãe dela, já falecida, umamulher que insistia em que todos oscadáveres, inclusive o dela própria,tinham que ser cremados. — Temos quemandar cremar esse cachorro —prosseguiu, mas raras vezes chegousequer a olhar para ele. Estranhamente,tive a sensação de que o Rube e euéramos as pessoas que mais gostavamdaquele cachorro; um cachorro cujascinzas, era bem provável, acabariam emcima do televisor ou do vídeo, ou noarmário de bebidas, para que ficassem emsegurança.

Pouco depois, eu disse meu últimoadeus, passando a mão no corpo rígido eno pelo sedoso, ainda meio chocado com

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aquilo tudo.Fui para casa e dei a notícia da

cremação. Nem é preciso dizer que todosficaram admirados, especialmente Rube.Ou talvez “admirado” não seja bem apalavra certa para designar a reação domeu irmão. “Estarrecido” seria maispróximo.

— Vão cremá-lo?!? — gritou. Nãoconseguia acreditar. — Você viu aquelecachorro?!? Viu como estava encharcado?!Vão ter que secá-lo primeiro, senão elenão vai nem mesmo queimar! A chamamal vai pegar! Vão ter que usar o secadorde cabelo!

Não pude deixar de rir.Acho que foi por causa do secador.

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Fiquei imaginando Keith parado juntodo pobre cachorrinho, com o secadorligado em alta velocidade, e a mulherchamando da porta dos fundos:

— Ele já secou, meu bem? Já podemosjogá-lo no fogo?

— Não, ainda não, querida! Vouprecisar de mais uns dez minutos, acho.Não consigo secar a droga da cauda!

O Miffy tinha uma das caudas maisfelpudas da história do mundo. Podeacreditar.

Mais tarde, na sala, Rube continuou afalar do assunto. Àquela altura, jáconseguia rir, e discutimos quando seria ofuneral. Obviamente, se ia haver umacremação, tinha que haver um funeral.

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Descobrimos no dia seguinte quehaveria uma pequena cerimônia nosábado à tarde, às quatro horas. Ocachorro seria cremado na sexta-feira.

Naturalmente, como encarregados delevar o Miffy para passear, fomosconvidados para o funeral na casa vizinha.Mas não foi só isso. Keith tambémresolveu que queria espalhar as cinzas doMiffy no quintal que tinha sido seudomínio. Perguntou se gostaríamos de seras pessoas a espalhá-las.

— Sabem como é, eram vocês quepassavam mais tempo com ele.

— É mesmo? — indaguei.— Bem, para ser sincero — Keith

remexeu-se um pouco —, minha mulher

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não gostou muito da ideia, mas eu insisti.Eu disse: Não, aqueles garotos merecem, e estáresolvido, Norma. — Ele riu e completou:— Minha mulher se referiu a vocês comoos dois merdinhas da casa ao lado.

Vaca velha, pensei.— Vaca velha — disse Rube, mas, por

sorte, o Keith não ouviu.Devo admitir que a noite de quarta-

feira ficou meio vazia sem o Miffy.Octavia também não apareceu, de modoque fiquei no quarto que dividia comRube, lendo um livro. Podia ter assistidoà televisão, suponho, mas estava de sacocheio dela. Ler era mais difícil, porque apessoa tinha que se concentrar deverdade, em vez de só ficar sentada. O

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livro que eu estava lendo era genial, sobreum sujeito que pulava de um navio que ianaufragar em uma tempestade e depoisdescobria que ele não havia afundado.Ficou tão envergonhado que passou oresto da vida meio que fugindo desseincidente e meio que buscando o perigo,para enfrentá-lo e se testar, e para enfimprovar que não era covarde. Tive um maupressentimento de que aquilo acabaria emtragédia, e pensei que viver com vergonhae culpa devia ser a pior coisa do mundo.

Decidi que não deixaria isso acontecercomigo. Eu me via como um perdedor eum fracassado, às vezes, mas tudocomeçou a acabar naquele inverno.Naquele ano eu iria me levantar, e não

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estava dizendo isso só da boca para fora,na tentativa de me convencer.

Dessa vez, acreditei.Foi o que disse à Octavia na tarde de

sábado, e ela me abraçou e me beijou.— Eu também — retrucou.Papai, Rube e eu terminamos o

trabalho às duas, para podermos chegarem casa a tempo do grande funeral, e, àsquatro horas, Rube, Sarah, Octavia e eufomos até os vizinhos. Todos pulamos acerca.

Keith trouxe o Miffy em uma caixa demadeira, e o sol brilhava, a brisa ondulavae a mulher do Keith olhava com desdémpara o Rube e para mim.

Vaca velha , pensei, e sim, você

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adivinhou, o Rube efetivamente falou, emum cochicho que só ele e eu pudemosouvir. Isso nos fez rir, e eu quase falei“Ora, Rube, vamos deixar nossasdiferenças de lado, pelo bem do Miffy”,mas pensei melhor. Achei que a mulhernão veria com bons olhos nenhumcomentário que nós fizéssemos, àquelaaltura.

Keith segurou a caixa.Fez um discurso inútil sobre como o

Miffy era maravilhoso. E fiel. E lindo.— E patético — voltou a cochichar o

Rube.Tive de morder a bochecha por

dentro, para não rir. Na verdade, umrisinho chegou a escapar, e a mulher do

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Keith não ficou muito impressionada.Rube idiota, pensei.Mas a questão é que era apropriado

que fosse assim. Não fazia sentidoficarmos parados ali, falando de quantogostávamos do cachorro e tudo o mais.Isso só faria mostrar que não o amávamos.Nós havíamos expressado amor poraquele cachorro:

1. Depreciando-o.2. Provocando-o de propósito.3. Destratando-o verbalmente.4. Discutindo se devíamos ou não jogá-

lo por cima da cerca.5. Dando-lhe uma carne que ele quase

não era capaz de mastigar direito.

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6. Implicando com ele, para fazê-lolatir.

7. Fingindo que não o conhecíamos empúblico.

8. Fazendo piadas no funeral dele.9. Comparando-o a um rato, um furão

ou qualquer outra criatura parecidacom um roedor.

10. Sabendo, sem demonstrar, que nosimportávamos com ele.

O problema do funeral foi que oKeith não parava de falar, e a mulher delecontinuava insistindo em tentar chorar.No fim, quando estavam todos quasedesmaiando de tédio e quase esperandoque alguém cantasse um hino, o Keith fez

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uma pergunta vital. Em retrospectiva,tenho certeza de que desejou para cacetenunca tê-la feito.

Ele disse:— Mais alguém tem alguma coisa a

dizer?Silêncio.Silêncio absoluto.E aí, Rube.Keith estava prestes a me entregar a

caixa de madeira com os restos mortaisdo Miffy quando Rube disse:

— Na verdade, sim. Eu tenho umacoisa a dizer.

Não, Rube, pensei, desesperado. Porfavor. Não faça isso.

Mas ele fez.

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Enquanto o Keith me entregava acaixa, o Rube fez seu pronunciamento.Em voz alta e clara.

— Miffy, sempre nos lembraremos devocê. — Ergueu bem alto a cabeça.Orgulhoso. — Você foi, sem dúvidaalguma, o animal mais ridículo da face daTerra. Mas nós o amávamos.

Olhou para mim e sorriu.Mas não por muito tempo.Decididamente, não por muito tempo,

porque, antes mesmo que tivéssemos achance de pensar, a mulher do Keithexplodiu. Disparou na nossa direção.Caiu em cima de mim em um segundo, ecomeçou a lutar comigo pela porcaria dacaixa!

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— Dá isso aqui, seu merdinha —sibilou.

— O que foi que eu fiz? — retruquei,desesperado, e em um instante criou-seuma guerra, e eu e Miffy estávamos nocentro.

As mãos do Rube também já estavamna caixa e, comigo e o Miffy no meio, elee a Norma começaram a se estapear.Sarah, que já estava apaixonada pela talcâmera instantânea, tirou umas fotosgeniais da briga dos dois.

— Seu merdinha — cuspia Norma,porém Rube não desistiu.

Não havia jeito. Os dois continuarama brigar.

No fim, foi o Keith quem acabou com

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a briga.Entrou no meio e gritou:— Norma! Norma! Pare de ser idiota!Ela soltou a caixa, e o Rube também.

No momento, a única pessoa segurando acaixa era eu, e não pude deixar de rirdaquela situação ridícula. Para ser franco,acho que a Norma continuava irritadacom um incidente que ainda nãomencionei. Era uma coisa que haviaacontecido dois anos antes. Era oincidente que fez com que a gente saíssepara passear com o Miffy, para começo deconversa, ocorrido em um dia em que oRube, eu e uns outros caras estivéramosjogando futebol no quintal. O velhoMiffy tinha ficado todo agitado por causa

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da barulheira e da bola que batiaconstantemente na cerca. Latiu, latiu,latiu, até sofrer um infarto leve e, paracompensar, a Sra. Wolfe nos obrigara apagar o veterinário e a caminhar com elepelo menos duas vezes por semana.

Esse tinha sido o começo da históriado Miffy conosco. O verdadeiro começo; e,apesar de reclamarmos e falarmos maldele, realmente aprendemos a amá-lo.

Mas, na cena do funeral no quintal, aNorma não quis saber de nada disso.Continuou fumegando de raiva. Só seacalmou uns minutos depois, quando jáestávamos prontos para esvaziar as cinzasdo Miffy na brisa e no quintal.

— Certo, Cameron — disse Keith,

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meneando a cabeça. — Está na hora.Ele me fez subir em uma cadeira velha

de jardim e eu abri a caixa.— Adeus, Miffy — disse o vizinho, e

emborquei a caixa, esperando que o Miffyse derramasse.

O único problema foi que isso nãoaconteceu. Ele estava grudado lá dentro.

— Mas, que diabo! — exclamou Rube.— É bem coisa do Miffy ficar todogrudento!

Eu queria olhar para ele e concordar,mas pensei melhor, por causa da mulherdo Keith e tudo o mais. A única coisa quepude fazer foi sacudir a caixa, mas,mesmo assim, as cinzas não saíram.

— Ponha o dedo aí dentro e remexa

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um pouquinho — sugeriu Octavia.Norma só olhou para ela.— Você não vai vir com gracinhas

agora também, vai, garota?— De jeito nenhum — respondeu

Octavia, em tom sincero.Boa ideia. Ninguém ia querer

perturbar a senhora àquela altura docampeonato. Ela parecia prestes a esganaralguém.

Desvirei a caixa e me encolhi, antes derevolver as cinzas com a mão.

A tentativa seguinte de esvaziá-la foibem-sucedida. O Miffy foi libertado.Enquanto Sarah batia a foto, o ventocolheu as cinzas e as espalhou peloquintal do Keith e do outro vizinho.

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— Ah, não — disse ele, coçando acabeça. — Eu sabia que devia ter dito aopessoal aí do lado para tirar a roupa dacorda...

Os vizinhos usariam o Miffy na roupapor pelo menos uns dois dias.

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F

A PAUSA DA MORTE

aço uma pausa momentânea e pensamentosde morte me atropelam. O cão me permite

esse descanso, por respeito.A multidão acalmou-se, e eu penso na morte,

no céu e no inferno.Ou, para ser sincero, penso no inferno.Não há nada pior do que pensar que é

exatamente para lá que você vai quando aeternidade chegar.

É para lá que costumo pensar que eu vou.Às vezes me consolo com o fato de que é

provável que a maioria das pessoas que conheçotambém vá para o inferno. Até digo a mimmesmo que, se a minha família toda vai para o

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inferno, prefiro ir junto a entrar no céu. Digo, eume sentiria meio culpado. Lá estariam eles,ardendo por toda a eternidade, enquanto eucomo pêssegos e, muito provavelmente, façofestinha em deploráveis lulus-da-pomerânia comoo Miffy, no céu.

Sei lá.Não sei.Mesmo.Basicamente, só espero levar uma vida

decente. Espero que isso baste.Depois de uma longa pausa, recomeço a

caminhar.Para dentro da noite.

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gora, a pergunta é: que diaboaconteceu depois? Sempre que penso emtodo o desastre que foi a morte do Miffy,a história se turva na minha cabeça.

Na terça-feira, fui à casa do Steve e eleme disse que haveria um jogo importantenaquele domingo. Recomeçaram ostelefonemas para o Rube, e agora, aofundo, também era possível ouvir Julia, aVadia.

Sarah comprou um álbum paracolocar suas fotos e, quando as espalhou

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no chão para arrumá-las na noite dequinta-feira, fui até lá e me sentei para vê-las junto com ela. Havia uma porção defotos que eu ainda não tinha visto.

Papai saindo do seu furgão depois dotrabalho.

A Sra. Wolfe dormindo no sofá, umanoite.

Uma pessoa anônima batalhando paraandar por nossa rua, no dia daquelachuvarada toda.

E havia, é claro, Octavia e eu, o Rubeesmurrando o saco de boxe no porão, e asequência de quando Miffy morreu.Depois vinham várias fotos de sobras decomida sendo requentadas na cozinha,uma das fotografias de todos nós em

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épocas diferentes penduradas na parededa sala, e havia até uma foto do Steve narua, com sua bolsa do futebol americano,prestes a sair para um jogo.

Notei que a única coisa que faltava eraa própria Sarah. Por isso, peguei a câmerade mansinho, ajustei e foco e bati umafoto da minha irmã dispondo todas asfotografias para o álbum. Cortei umpouco o ombro esquerdo dela, mas oprincipal era que se podia ver a paz noseu rosto e suas mãos tocando as fotos.Ela parecia viva.

Sarah examinou a Polaroid e deu suaaprovação:

— Nada mau.No sábado seguinte, Octavia me levou

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à casa dela. O papai tinha tirado o dia defolga, e por isso eu estava livre.

Estava no meio da tarde quandodescemos sua rua e cruzamos o portão.Fiquei pensando em por que meu coraçãoestava acelerado quando ela abriu a portae chamou:

— Mamãe? Você está aí?Uma senhora veio de um cômodo nos

fundos. Octavia me dissera que já nãotinha pai. Ele fora embora com outrapessoa, fazia anos.

A senhora olhou para mim e sorriu.Tinha a mesma boca da Octavia e osmesmos olhos verde-mar. Só mais velhos.

— É um prazer conhecê-lo, Cameron— disse ela.

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— Prazer em conhecê-la, Sra. Ash.Ela foi muito amável comigo.

Ofereceu-me café e conversou. Fezperguntas. Sobre mim. Sobre os outrosWolfe. Em algum lugar, no meio dissotudo, percebi que ela estava pensando,Ah, então é você o tal. Eu era aquele queOctavia sabia que amava. Nunca umasensação melhor viveu dentro de mim.

Um pouco depois, voltamos ao antigocinema e assistimos a um filme chamadoAgonia e êxtase. Foi, sem sombra dedúvida, o melhor filme que eu já tinhavisto na vida. Era sobre Michelangelopintando o teto da Capela Sistina, e comotinha que ficar perfeito, e como ele quasese destruiu no processo de pintá-lo.

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Pensei em quanto sofrimento ele haviaenfrentado, pura e simplesmente porqueprecisava fazer aquilo. Fiquei sentado ali,assombrado. Isso nunca tinha meacontecido por causa de um filme.

Até quando os créditos passaramcorrendo pela tela, minha mão apertou ade Octavia e ficamos sentados,completamente imóveis.

Mas foi só depois que a verdadeiraimportância daquele dia chegou.

Octavia e eu estávamos na varanda,pouco antes de irmos para a estação,ainda falando sobre o filme. A cidadeestava envolta em nuvens e os matizespálidos da chuva formavam cobertoresluzidios em volta dos postes de

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iluminação.Fazia quase meia hora que estávamos

conversando quando ela perguntou:— Existe alguma coisa que você já

tenha desejado fazer com perfeição?Concentrei-me na chuva, que

começava a cair mais forte, e soube o queeu ia dizer. Aquilo se estendeu por dentrode mim e eu o disse em voz baixa.

— Uma coisa em que eu gostaria deser perfeito? — Mas, naquele momento,não pude deixar de desviar os olhos. —Amar você — completei. As palavras mesubiram à boca. — Eu gostaria de amarvocê de forma perfeita.

Então esperei pela reação.Ela veio.

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— Cam? — chamou Octavia. —Cameron?

Fez-me olhar para ela e vi osentimento que crescia em seu peito.Levei sua mão à minha boca e a beijei.

— É verdade — insisti, mesmosabendo que ela acreditava. Aquilo estavadentro de mim e ao meu redor. — Oúnico problema — continuei — é quesou apenas humano. Vou só fazer omelhor possível, está bem?

Octavia assentiu e, apesar de sabermosque ela precisava ir embora, ficamos umbom tempo na varanda, usando a chuvacomo desculpa. A concha ainda pendia dopescoço dela, mas agora não parecia tãoóbvia quanto no começo. Agora parecia

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que sempre estivera ali.Na tarde de domingo, chegamos do

cais e todos já tinham saído para o jogodo Steve. Calculei que poderíamos darum pulo lá mais tarde.

Era só Octavia e eu.Esperamos.Conversamos.Esperamos mais um pouco e, antes do

que eu havia pensado, ela me pegou pelamão e fomos para o meu quarto e doRube. Fechamos a porta. Fechamos ascortinas.

Lá dentro, eu me sentei na cama eOctavia se abaixou e tirou os sapatos.Não houve palavras quando se levantou ese aproximou de mim.

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Olhando para mim, desabotoou ablusa. Suas mãos foram para as costas eela abriu o sutiã. A peça caiu no chão e, aseguir, ouvi o botão do jeans se abrindo.Em seguida, o zíper. Ela deu um passopara trás, abaixou o jeans e tirou os pés, oesquerdo primeiro, ligeiro desequilíbrio,depois o direito. A calça ficou no chão esó me restou apreciar Octavia em todo oseu encanto.

Ela ajoelhou sobre mim, tirou minhajaqueta e desabotoou minha camisa deflanela.

Suas mãos acariciaram a nudez daminha barriga e subiram por meus braços,e ela tirou minha camiseta. Deixou asunhas deslizarem pela pele do meu

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pescoço e, bem devagar, elas foramdescendo por meu peito, minhas costelas,e voltando para minha barriga.

— Está tudo certo, Cam — sussurrouela.

Enquanto os arrepios se estendiampela minha pele, abriu delicadamenteminhas calças e as tirou. Os sapatosforam junto, depois as meias. Ficou tudoem uma pilha amontoada perto de nósquando Octavia me fez deitar no chão.

— Está tudo bem — voltou amurmurar.

— Como você pode...— Shhh...A voz dela me acalmava, mas eu tinha

que terminar a pergunta que ia fazer.

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— Como você pode fazer isso comigo,quando outro sujeito bateu em você e amachucou? Como pode suportar ficarnua e me deixar tocá-la?

Octavia parou.E disse:— Você é você.Beijou-me e me tocou e me abraçou.

Cobriu-me e deslizou os lábios por meucorpo todo, e nunca senti um quarto girare se enrolar e se quebrar em ondas comoaquele quarto naquele dia.

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PERFEIÇÃO

aímos para um campo aberto onde o céu setorna o teto da Capela Sistina.Paramos embaixo dele.Perfeição.E eu me pergunto qual seria a sensação de

tocá-lo.Como seria tocar uma coisa feita com toda a

perfeição que um ser humano pode esperaralcançar? Para onde se iria depois disso? O querestaria para ver?

Você ficaria inspirado?Ou se deprimiria, sabendo que nunca teria a

esperança de completar algo que se aproximassedaquilo?

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Ficamos ali, e a escuridão retorna.E então, por um momento, o céu é feito de

Octavia Ash e eu.Por um segundo humano.Então desaparece.Isso me faz pensar que eu gostaria de amá-la

com perfeição.Dar tudo de mim.Ou, pelo menos, dar o melhor que um

humano como eu possa dar.

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e certo modo, às vezes eu gostaria queestas páginas não fossem além das últimaspalavras do último capítulo, mas oinverno ainda não havia acabado deverdade.

Foi na noite da terça-feira seguinte queRube e eu fomos à casa do Steve e,depois, ao campo. Todos demos chutes agol e, apesar de eu ter errado a maioria,não teve muita importância. O Steve foipreciso como sempre e estava ansiosopelas finais.

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Antes de irmos lá, o Rube recebeuoutro telefonema. Era o primeiro depoisde algum tempo, e eu o ouvi falar alto, emum tom veemente:

— É, foi o que você disse da últimavez, parceiro. Você não vai aparecer. Estádesperdiçando o meu tempo e a conta detelefone da sua mãe, pelo jeito. — Ouviupor um instante. — Bom, então me faça aporcaria da gentileza de aparecer destavez. Tá legal? Certo. Ótimo.

Entrei na cozinha no instante em queele batia o telefone.

— De novo? — perguntei.— É.Naquela noite, conversamos no

quarto, cada um na sua cama. Havia

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algum tempo que não fazíamos isso, e foiuma sensação boa. Acabamos entrandono assunto de Julia, a Vadia, e doTelefonador.

— Oito da noite, na sexta-feira — foio que Rube me disse no escuro. — Se eleaparecer.

— Ele vai aparecer.— Como você sabe?— Não sei. É que parece que ele vem

tentando encher seu saco há muitotempo, só que, mais cedo ou mais tarde,virá atrás de você. Talvez esta sexta seja odia. — Lembrei-me da garota. Julia. Eunão confiava nela. De jeito nenhum elesdeixariam o Rube em paz. Iriam atrásdele, com certeza. — Acho que dessa vez

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vai acontecer.— Bem, veremos.— Você precisa de mim por lá?— Se você quiser ir.— Eu quero.E foi só.Nós dois socamos o saco de boxe no

porão na noite seguinte, e eu me habitueià ideia de que a coisa iria acontecer.

Quando chegou a sexta-feira, os nósdos dedos do Rube pareciam concreto, eos meus também haviam endurecido, detanto esmurrar o saco de areia. Saímos decasa como na vez anterior, às quinze paraas oito.

Chegamos cedo ao velho pátio daferrovia.

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Esperamos.Meu coração machucou minhas

costelas.E de novo.Nada aconteceu.Às oito e quinze, resolvi ir embora.Na metade da viela, percebi que meus

passos estavam sozinhos. Rube iriaesperar lá, e achei que não sairia enquantoo sujeito não aparecesse.

— Você não vem? — perguntei,virando-me.

Ele balançou a cabeça.— Desta vez, não.Voltei até ele e perguntei:— Quer que eu espere?Ele balançou a cabeça de novo e fez

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sinal para eu ir embora.— Não se preocupe com isso, Cam.

Acho que você já demorou o bastanteaqui.

Fiz meia-volta e, admito, não fiqueitriste por ir embora. É claro, tambémsenti certa culpa, mas para mim estavaencerrado. No início do beco, poucoantes de virar na rua, girei mais uma vezpara dar uma olhada no meu irmão. Asombra dele estava encostada na cerca,ainda esperando. Um dos pés estavaapoiado no arame, e mal discerni afumaça do seu hálito quente se formandono último ar noturno do inverno. Por uminstante, quase acenei, mas me virei econtinuei a andar.

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Quando cheguei em casa, Sarah meperguntou onde estava o Rube. Respondique ele tinha decidido ficar um pouco narua. Isso não era incomum, de modo quenão se disse mais nada.

Tentei ficar acordado e esperar por ele.O livro que eu estava lendo era bom,

mas mesmo assim adormeci no sofá.Quando todos os outros estavam indodormir, me acordaram e me disseram paradeitar também, mas tentei recomeçar aler. Só que estava muito cansado, emboradecidido a ver o Rube entrar pela portada frente.

Queria ver o rosto dele.Sem marcas.Sem machucados.

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Queria ouvir sua voz me dizer paralevantar, rindo ao passar por mim.

Mas, naquela noite, meu irmão Rubenão voltou para casa.

Passava um pouco da meia-noitequando acordei com um sobressaltosilencioso. Abri os olhos e foi como se aluz amarela da sala os cortasse.

Fui atingido duas vezes por uma ideia.Rube.Rube.O nome dele repetiu-se dentro de mim

enquanto eu me levantava do sofá eandava devagar até o nosso quarto.Esperava sem esperança encontrá-lo ládentro, esparramado na cama. Aescuridão do corredor me envolveu. As

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tábuas rangeram, denunciando minhapresença. Então, quando a porta seentreabriu, meus olhos entraram noquarto à minha frente. Estava vazio.

Acendi a luz e senti um arrepio. Elame ofuscou e compreendi. Eu ia sair denovo, na noite.

Na sala, calcei os sapatos da formamais silenciosa possível, vesti de novo ajaqueta e segui pela cozinha, em direção àporta de entrada. Um luar pálidodormitava no céu. Saí para o frio inseguroda rua.

Um mau pressentimento seintensificou no meu estômago.

Subiu para minha garganta.Logo depois, enquanto andava

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depressa para o velho pátio ferroviário,senti-o ganhando força por dentro demim. Havia uns bêbados que me fizeramchegar para a beira da calçada. Carrosavançaram velozes na minha direção, como brilho de seus faróis, passaram edesapareceram.

Minhas mãos transpiravam dentro dosbolsos da jaqueta. Meus pés estavam friosna quentura dos sapatos.

— Ei, garoto — chamou-me uma vozengrolada.

Evitei-a. Empurrei o sujeito que haviafalado e desatei a correr, até avistar obeco.

Quando cheguei lá, sentia as batidasdo coração dilacerando meu peito.

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O beco.Estava deserto.Deserto e escuro, exceto pelo luar que

se alargava e parecia derramar-se emtodos os cantos esquecidos da cidade.Farejei alguma coisa. Medo.

Senti seu gosto.Tinha o gosto de sangue na boca, e

senti-o deslizar por mim e me rasgar, eentão vi...

Havia uma figura sentada no chão,toda torta, encostada na cerca.

Alguma coisa me disse que o Rubenão se sentava assim.

Chamei-o pelo nome, porém malescutei minha voz. Havia em meusouvidos um martelar gigantesco, que

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bloqueava todo o resto.Chamei de novo.— Rube!?Quanto mais me aproximei, mais tive

certeza de que era ele. Meu irmão estavatombado junto à cerca e vi o sangue quelhe inundava a jaqueta, as calças e a frenteda velha camiseta de futebol.

Suas mãos agarravam a cerca.A expressão de seu rosto era algo que

eu nunca tinha visto nele.Eu soube o que era porque também

estava sentindo.Era medo.Era medo, e Ruben Wolfe nunca

sentira medo de nada nem ninguém navida, até aquele momento. Estava sentado

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sozinho no centro da cidade, ecompreendi que só uma pessoa nãopoderia ter feito aquilo com ele. Imaginei-os segurando Rube e se alternando. Seurosto quase achou o caminho de umsorriso ao me ver e, como uma brisacortando o silêncio, ele me disse, em tominexpressivo:

— Oi, Cam. Obrigado por ter vindo.A pulsação em meus ouvidos cedeu e

eu me agachei ao lado de meu irmão.Percebi que ele se arrastara para aquela

posição junto à cerca. Havia uma pequenatrilha de sangue deixando um borrão corde ferrugem no cimento. Ele pareciahaver se arrastado por dois metros, aténão poder mais e não conseguir

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continuar. Eu nunca tinha visto RubenWolfe derrotado.

— Bem — ele estremeceu —, achoque os caras me pegaram de jeito, né?

Eu tinha que levá-lo para casa. Eletremia incontrolavelmente.

— Você consegue se levantar?Rube tornou a sorrir.— É claro.Ainda estava com o sorriso pousado

nos lábios quando se ergueu junto àcerca, trôpego, e desabou. Alcancei-o e osegurei. Ele escorregou por meus braços ecaiu de bruços, agarrando a rua.

A cidade estava inchada. O céucontinuava entorpecido.

Ruben Wolfe estava de cara no chão,

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com o irmão postado a seu lado,desamparado e com medo.

— Você tem que me ajudar, Cam —disse ele. — Não consigo me mexer. —Suplicou. — Não consigo me mexer.

Virei-o de barriga para cima e vi oimpacto que ele sofrera. Não havia tantosangue quanto eu tinha suposto, mas orosto havia sido destruído pelo céunoturno que caiu sobre ele e o tornoureal.

Arrastei Rube de volta à cerca, escorei-o e o levantei. Mais uma vez, ele quasecaiu e, quando começamos a andar,percebi que ele não conseguiria caminhar.

— Desculpe, Cam — murmurou ele.— Sinto muito.

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Ele estava de novo no chão, e sóhavíamos percorrido uns cinco metros.

Descansei um minuto, com meu irmãoainda deitado de costas...

Enquanto a lua era tragada por umanuvem, enfiei os braços por baixo dascostas e das pernas dele e o levantei.Segurei Rube no colo e o carreguei pelobeco, em direção ao mundo mais largo darua.

Meus braços doíam e acho que Rubedesmaiou, mas eu não podia parar. Nãopodia deixá-lo cair. Tinha que chegar emcasa.

As pessoas olharam para nós.O cabelo ondulado e cheio do Rube

pendia para o chão.

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Caiu mais um pouco de sangue nacalçada. Pingou do Rube em mim e nacalçada.

Era o sangue do Rube.Era meu sangue.O sangue dos Wolfe.Alguma coisa doía bem dentro de

mim, mas continuei a andar. Tinha que irem frente. Sabia que, se parasse decarregá-lo, seria mais difícil prosseguir.

— Ele está bem? — perguntou umcara jovem, de jeito festeiro.

Só consegui dar um aceno afirmativocom a cabeça e seguir andando. Só parariaquando o Rube estivesse na cama e euestivesse a seu lado, protegendo-o danoite e dos sonhos que o despertariam

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nas horas esmagadoras até o amanhecer.Veio enfim a última esquina antes da

nossa rua, e eu o levantei com um últimoesforço.

Ele gemeu.— Vamos lá, Rube, a gente vai

conseguir — falei para ele.Quando penso nisso agora, não

entendo como consegui chegar tão longe.Ele era meu irmão. É, foi isso. Ele erameu irmão.

No nosso portão, usei um dos pés doRube para abrir o trinco e subi os degrausda varanda.

— A porta — falei, mais alto do quepretendia, e, depois de colocá-lo no chãoda varanda, abri a porta de tela, enfiei a

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chave e me virei de novo para ele.Meu irmão. Meu irmão Rube, pensei, e

meus olhos doeram.Ao andar novamente na sua direção,

meus braços latejavam e a coluna meentortava as costas. Quando tornei alevantá-lo, quase caímos de cara naparede.

No trajeto pela casa, consegui dar comum dos joelhos do Rube em um batentede porta e, quando entrei no quarto,Sarah estava parada lá, com os olhossonolentos, até que o pavor lheestrangulou o rosto.

— Que diabo...— Fique quieta — retruquei. — Só

me ajude.

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Ela tirou o cobertor da cama do Rubee eu o deitei. Meus braços estavam emchamas quando tirei sua jaqueta e acamiseta, deixando-o de jeans e botas.

Rube tinha uma porção de cortes ehematomas. Algumas costelas pareciamquebradas e um olho estavacompletamente roxo. Até as juntas deseus dedos sangravam. Ele acertou uns bonssocos, pensei, mas nada daquilo significavamais coisa alguma.

Ficamos parados ali. Sarah olhou doRube para mim, reconhecendo o sanguedele nos braços da minha jaqueta.Chorou.

A luz estava apagada, mas a docorredor acendeu-se.

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Sentimos mais alguém chegar e eusoube que era a Sra. Wolfe. Sem sequerolhar, pude imaginar a expressão de dorem seu rosto.

— Ele vai ficar bom — conseguidizer, mas ela não foi embora. Veioandando na nossa direção enquanto a vozdo Rube lutava para me alcançar.

A mão dele saiu de debaixo docobertor e segurou a minha.

— Obrigado — disse ele. —Obrigado, irmão.

A luz pálida da janela me atingiu. Meucoração uivou.

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A

ESTÁ NOS OLHOS

gacho-me, com braços, olhos e pernasexaustos.Em silêncio, o cão me pede para seguir um

pouco mais. A cabeça ainda pende e a respiraçãoé visível no último ar noturno antes do alvorecer.Enquanto andamos pela rua, o céu ganha o tomcinza-pistola da primeira luz.

Alguém espera no fim da rua, e eu sei quemé. Ele usa uma roupa igual à minha e está comas mãos nos bolsos, como eu. Ele aguarda.

Quando o cão se senta, toco nele pelaprimeira vez — o pelo grosso, cor de ferrugem,ainda atrevidamente espetado em direção ao céu.Amo a força dele em meus dedos. De sentir sua

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verdade.E então penso nos olhos.Olho dentro dele e deixo os olhos acenderem

os meus.Os olhos da fome.Os olhos do desejo.Quero ficar, mas não fico, e levanto a mão

devagar e me afasto.Quando viro para trás, falo para os olhos.

Meneio a cabeça e digo obrigado, sabendo quefarei o resto do percurso sozinho.

O humano me espera no fim da rua, mas,antes de chegar lá, viro-me pela última vez.

Tenho certa expectativa de que o cão váembora, mas ele não vai. Pagou por essemomento. Levou-me até ali, e agora devo a eleseguir adiante e ir até o fim. Ele merece ser

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alimentado.— Foi a fome que me guiou pela noite —

murmuro. Minha voz vacila. — Foi a fome.Foi você...

Ele ouviu o que eu disse, e agora se virapara ir embora.

Bruto e cru e real, como o sentimento dentrode mim.

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U

20

ma coisa eu tenho que reconhecer.Na manhã seguinte, o Rube de fato se

levantou e foi trabalhar com o papai ecomigo. Estava machucado e aindapropenso a sangramentos, mas, mesmoassim, apareceu e trabalhou com todo oempenho que pôde. Acho que não hámuitas pessoas capazes de levar uma surradaquelas e levantar no dia seguinte paratrabalhar.

O Rube era assim.Não há mais nada que eu possa dizer

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para explicar.Todos acordaram de manhã, com a

discussão entre ele e o papai, mas,terminada a briga, a história acabou. ASra. Wolfe pediu, ou melhor, imploroupara que o Rube passasse mais noites emcasa, e não houve jeito de ele negar isso.Concordou plenamente, nós entramos nocarro e fomos embora.

Era o meio da tarde quando Rubeenfim perguntou por alguns dos detalhesmais obscuros da noite anterior.

— E então, até onde foi, Cam?Suas palavras surgiram e se postaram

na minha frente. Queriam a verdade.Parei de trabalhar.— Até onde foi o quê?

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— Você sabe. — Ele viu sua imagemnos meus olhos. — Até onde você mecarregou, ontem à noite?

— Um bom pedaço.— O pedaço todo?Fiz que sim com a cabeça.— Desculpe — começou a dizer, mas

nós dois sabíamos que não era necessário.— Esqueça — retruquei.O resto da tarde passou bem depressa.

Fiquei observando Rube trabalhar de vezem quando, e de algum modo soube queele ficaria bem. Era seu jeito de ser. Seestivesse vivo, ele ficaria bem.

— Está olhando o quê? — perguntouele mais tarde, quando me viu a observá-lo, intrigado.

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— Nada.Até nos permitimos uma risada,

especialmente eu, porque resolvi quetinha que parar de ser flagradoobservando as pessoas. Observar aspessoas não é realmente um mau hábito,na minha opinião. É a parte de serapanhado que preciso evitar.

Ao chegarmos em casa, Octavia jáestava lá. Quando viu Rube, seu rostoficou parecido com o de Sarah na noiteanterior.

— Nem pergunte — disse meu irmão,ao passar por ela.

Quando me viu, ela pareceu aliviadapor eu não estar como o Rube. Apenasmurmurou as palavras, sem emitir som: O

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que aconteceu?— Depois eu conto — respondi.Na escrivaninha do quarto, havia um

presente à minha espera. Era uma velhamáquina de escrever cinza, com teclaspretas. Parei para contemplá-la, a algunspassos de distância.

— Gostou? — veio uma voz de trásde mim. — Eu a vi em uma loja deartigos usados e tive que comprá-la. —Ela sorriu e tocou no meu braço por trás.— É sua, Cam.

Andei até lá e a toquei. Deslizei osdedos pelas teclas e as senti sob meutoque.

— Obrigado. — Virei para ela. —Obrigado, Octavia. É linda.

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— Ótimo.Sarah passou algum tempo ao telefone,

falando com o Steve. A semifinal deleseria no dia seguinte, e Octavia e euresolvemos ir. O que eu não contava eracom o Steve aparecendo lá em casa maistarde naquela noite.

Octavia e eu estávamos na varandaquando o carro dele parou e o Steve veiona nossa direção. Ficou parado ali.

— Oi, Octavia. Cam.— Oi, Steve.Levantei-me e nós nos olhamos. Pensei

na última vez que havíamos conversadoali. Mas naquela noite o rosto do Steveestava desolado, como estivera no estádio,lá no começo do inverno.

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— Fiquei sabendo o que aconteceuontem — começou ele. — A Sarah mecontou por telefone.

— Você veio falar com o Rube? —perguntei. — Ele foi deitar, mas acho queainda está acordado.

Fui abrir a porta, mas o Steve nãoentrou. Ficou parado na minha frente,sem se mexer.

— O quê? — perguntei. — O que é?A voz dele foi abrupta, mas baixa.— Não vim falar com o Rube. Vim

falar com você.Octavia se remexeu no banco e

continuei concentrado em meu irmãoSteve.

— A Sarah me contou que ontem à

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noite você o carregou do velho pátioferroviário até em casa... — falou ele.

— Não foi nada...— Não. Não minta, Cam. Foi alguma

coisa. — Ele se erguia acima de mim, masagora era só uma coisa física. Umaquestão de altura. — Foi alguma coisa,está bem?

Concordei com ele.— Está bem.Sorrimos um para o outro.Steve ficou parado.Eu fiquei parado.O silêncio juntou-se a nossos pés, e

sorrimos um para o outro.Ele entrou um pouco depois, mas não

demorou muito. Octavia também foi

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embora, e eu entrei para usar a máquinade escrever. Na verdade, ela me assustou,porque eu queria escrever nela comperfeição. Pouco depois das dez horas,ainda a observava.

Logo, pensei comigo mesmo. Aspalavras virão logo...

Octavia e eu fomos mais cedo ao cais,no dia seguinte, para termos certeza deque não perderíamos o jogo do Steve.

Eu estava perto da água, escutando amúsica da Octavia a distância, quando oRube parou a meu lado. Fiquei surpresoao vê-lo, mas notei que seu rosto já tinhamelhorado um pouco.

— Oi, Cam — disse ele.— Oi, Rube.

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Estava nervoso, deu para perceber.— O que você veio fazer aqui? —

indaguei.Suas mãos brincavam com os bolsos

quando ele se agachou. Nós doiscontemplamos a água, e percebi que Rubeestava desmoronando, só um pouquinho.Ele olhou para a frente e disse:

— Eu tinha que vir lhe dizer umacoisa...

Olhou para mim então. Estávamosnos olhos um do outro.

— Rube? — chamei.A água do cais subia e mergulhava.— Olhe — disse ele —, passei a vida

inteira meio que esperando que você meadmirasse, sabe?

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A expressão de seu rosto me buscou.Assenti.

— Mas agora eu sei — prosseguiu. —Agora eu sei.

Esperei, mas não veio nada. Entãoperguntei:

— Sabe o quê?Rube me encarou e sua voz

estremeceu ao dizer:— Que sou eu que admiro você...Suas palavras giraram ao meu redor e

entraram em mim. Penetraram sob aminha pele, e eu soube que não haviacomo tornarem a sair. Ficariam ali parasempre, assim como o momento entremim e Ruben Wolfe.

Ficamos ali, agachados.

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Pensando em coisas verdadeiras.E, quando enfim nos levantamos e

viramos para enfrentar o mundo, sentiuma coisa me escalando por dentro.Senti-a nas mãos e nos joelhos, pordentro, subindo, subindo... e sorri.

Sorri e pensei: A fome. Porque eu aconhecia muito bem.

A fome.O desejo.E então, lentamente, enquanto

caminhávamos, senti a beleza e o sabordaquilo, como palavras na minha boca.

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E

AS BORDASDAS PALAVRAS

stou em casa.Sento-me aqui, na escada dos fundos da

minha mente, enquanto a cidade se levanta emdireção ao horizonte, como sempre.

Nasce a luz do dia, o inverno vai morrendo,e a fome cresce dentro de mim.

A máquina de escrever aguarda...Penso agora nas bordas das palavras, na

lealdade do sangue, na música das meninas, nasmãos dos irmãos e em cães famintos que uivampela noite.

Há inúmeros momentos a serem lembrados,

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e às vezes acho que não somos pessoas, naverdade. Talvez sejamos momentos.

Momentos de fraqueza, de força.Momentos de salvação, de tudo.Vaguei pela vida real e me escrevi pela

escuridão das ruas dentro de mim. Vejo pessoasandando pela cidade e me pergunto ondeestiveram, e o que os momentos de suas vidasfizeram com elas. Se são parecidas comigo, seusmomentos as sustentaram e as derrubaram.

Às vezes, apenas sobrevivo.Mas, às vezes, ergo-me no telhado da minha

existência, de braços abertos, pedindo mais.É então que as histórias aparecem em mim.Elas sempre me encontram.São feitas de perdedores e lutadores. São

feitas de fome e desejo e de tentativas de levar

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uma vida digna.O único problema é que não sei qual dessas

histórias vem primeiro.Talvez todas se fundam em uma só.Veremos, acho.Eu aviso quando decidir.

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SOBRE O AUTOR

© Bronwyn Rennex

MARKUS ZUSAK nasceu em Sydney,

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em 1975, filho de pai austríaco e mãealemã. Vive até hoje na cidade, com amulher e a filha. Publicou seu primeiroromance em 1999, e também é autor de Omensageiro e A menina que roubava livros,best-seller internacional que figurou pormais de um ano nas listas de maisvendidos do Brasil.

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