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104 6 Porto Maravilha Zona portuária do Rio de Janeiro, setembro de 2011. Acontecia a primeira edição do Art Rua, festival de arte urbana ligado à feira internacional ArtRio (também em sua primeira edição). Seu idealizador, André Bretas, viu na ocasião a oportunidade de reproduzir um evento nos moldes do Wynwood Arts District, projeto no qual um bairro abandonado de Miami foi revitalizado por meio do grafite. O primeiro festival de arte urbana do Rio de Janeiro tinha então, como missão, estimular a cultura, a sustentabilidade e o desenvolvimento da sociedade. Entre os artistas participantes estavam nomes como Panmela Castro, Léo Uzai, Acme, Eco, Zezão, Ment, SWK, Gais Ama, Toz, Bruno BR e Bruno Big. Além da exposição de painéis, o grafiteiros convidados realizaram pinturas na região, ocupando muros e paredes do bairro da Gamboa. Figura 15 – Grafiteiro pintando painel durante a primeira Art Rua, em 2011 (fonte www.institutorua.org.br).

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6 Porto Maravilha

Zona portuária do Rio de Janeiro, setembro de 2011.

Acontecia a primeira edição do Art Rua, festival de arte urbana

ligado à feira internacional ArtRio (também em sua primeira edição).

Seu idealizador, André Bretas, viu na ocasião a oportunidade de

reproduzir um evento nos moldes do Wynwood Arts District,

projeto no qual um bairro abandonado de Miami foi revitalizado por

meio do grafite. O primeiro festival de arte urbana do Rio de Janeiro

tinha então, como missão, estimular a cultura, a sustentabilidade e

o desenvolvimento da sociedade.

Entre os artistas participantes estavam nomes como Panmela

Castro, Léo Uzai, Acme, Eco, Zezão, Ment, SWK, Gais Ama, Toz,

Bruno BR e Bruno Big. Além da exposição de painéis, o grafiteiros

convidados realizaram pinturas na região, ocupando muros e

paredes do bairro da Gamboa.

Figura 15 – Grafiteiro pintando painel durante a primeira Art Rua, em 2011 (fonte www.institutorua.org.br).

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No ano seguinte, 2012, o festival foi substituído por

intervenções artísticas em Wynwood Walls, em Miami, durante a

Miami Art Basel. A galeria Huma Art Projects, também de

propriedade de André Bretas, participou da feira Scope e levou

consigo os artistas Gais Ama, Patrícia Thompson, Rodrigo Tizil e

Felipe Brown. Entre os grafiteiros presentes, Gais Ama foi convidado

a pintar um painel na Gallery 47.

Figura 16 – Painel do grafiteiro Gais Ama em Miami, projeto capitaneado pelo jornalista e marchand André Bretas (fonte www.institutorua.org.br).

Em 2013, o Art Rua ocupou os galpões da Vila Olímpica da

Gamboa, com a proposta de fomentar, divulgar e valorizar a cultura

urbana e promover intervenções artísticas na região portuária. Nos

dois galpões do complexo foram expostos 41 painéis,

especialmente pintados para a mostra, de 50 grafiteiros brasileiros,

dois franceses e dois australianos. Além da exposição, houve

também um ciclo de palestras, duas festas, loja de produtos feitos

pelos patrocinadores, como os móveis da marca Oppa e as

camisetas da Redley. Destacam-se também os chamados live

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paintings, de nove painéis na área externa, performances, shows,

video mapping e oficinas para crianças.

Figura 17 – Painéis de grafite em exposição durante a edição de 2013 do Art Rua (arquivo pessoal).

No que diz respeito ao processo de cooptação e alienação da

prática do grafite, três pontos merecem destaque nessa referida

edição: 1) Das 14 palestras previstas, seis (cerca de 40%) tinham

como temática o mercado de arte; 2) Apesar dos grandes painéis

da mostra não estarem à venda, a galeria Huma Art Projects

comercializava obras dos mesmos grafiteiros. Em sua grande

maioria, essas obras eram uma releitura em miniatura dos painéis e

tinham valores que variavam entre R$ 5.000,00 e R$ 35.000,00.

Para aqueles que não podiam comprar uma obra, havia reproduções

a laser, por R$ 80,00, ou camisetas estampadas, por R$ 70,00; 3)

Pela primeira vez, a mostra teve patrocínio e apoio de grandes

corporações, como a Concessionária Porto Novo, TV Globo,

Prefeitura do Rio de Janeiro, Hotéis Marina e Redley.

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O Art Rua, para mim é um evento muito importante. Participei do primeiro e de lá pra cá estou colhendo bons frutos, porque eu acabei apresentando um trabalho diferente do que eu vinha fazendo e foi a primeira vez que eu comecei a vender telas (SWK, em vídeo institucional do evento)20.

Em 2014, o festival assumiu a condição de feira de arte

urbana, diferenciando-se completamente das edições anteriores.

Desta vez, foi realizado no Centro Cultural Ação da Cidadania, sendo

que os 54 painéis pintados pelos grafiteiros participantes da mostra

anterior foram substituídos por apenas sete, de maior proporção.

Com curadoria artística do Instagrafite, um híbrido de agência de

mídia, curadoria e desenvolvimento de projetos especiais voltados

para arte urbana, os grafiteiros Ana Marieta (Porto Rico, USA),

Bicicleta sem freio (Goiânia), Ramon Martins (Belo Horizonte),

Rodrigo Branco (São Paulo), The London Police (Inglaterra e

Holanda), Seth Globe Painter (França) e Toz (Rio de Janeiro) foram

os responsáveis pelas obras em exposição. Além de uma mostra do

coletivo Acidum Project, que participou também da pintura de

muros da região, juntamente com os grafiteiros Gais Ama (Rio de

Janeiro), El Seed (Tunísia/França) e Inti (Chile).

A grande novidade da edição estava localizada no segundo

andar do galpão: em estandes de 20 galerias de arte, grafiteiros e

artistas comercializavam e divulgavam suas obras. Como na edição

anterior, a feira contou com oito palestras, exibição de dois filmes,

duas festas, shows, restaurantes e até mesmo um tour guiado pelos

grafites instalados no entorno do evento.

Estamos na terceira edição carioca e o público aumenta todo ano. Em 2014 estamos abrindo a área de galerias, pois acreditamos que

20 Disponível em < https://www.youtube.com/watch?v=mwaot36mK_4 > acesso em 15 de dezembro de 2015.

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o consumidor já aceitou a arte urbana. Temos uma brincadeira entre nós que diz que o Fashion Rio funciona, pois tem também o Fashion Business (André Bretas, em entrevista ao blog Farm21 , 2014, s/p).

Figura 18 – Visão geral da edição 2014 do Art Rua (arquivo pessoal).

A entrada efetiva das galerias e a redução do número de

painéis na edição marcaram de forma decisiva a mudança do

evento. Com um aspecto mais comercial que as outras versões, o

caráter de feira sobressaiu-se ao de festival. Em comparação com o

ano anterior, o ambiente festivo que prevalecia nos galpões da

Gamboa deu lugar a uma espécie de shopping center de grafite e

arte urbana, onde o consumo das chamadas obras de arte urbana

era o ponto mais importante, como afirma André Bretas:

A arte urbana é uma arte muito democrática porque ela está na rua, você não precisa ir a um museu ou a uma exposição pra você ver a arte urbana. Ela tem a cidade como pano de fundo, então é uma arte muito democrática. O nosso evento é aberto ao público e a gente faz na verdade esse trabalho de mostrar que a arte urbana pode ser consumida também como arte contemporânea (André

21 Disponível em< http://www.farmrio.com.br/adorofarm/das-ruas-pro-galpao-e-pra-nossa-casa/ > acesso em 10 de setembro de 2015.

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Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).

Os grandiosos painéis do primeiro andar eram vistos com

relativa rapidez, em virtude inclusive da quantidade, eram

fotografados ou serviam de cenário para fotos e selfies. Já no

segundo andar os visitantes circulavam, quase sempre apertados,

entre os estandes das galerias, em busca de pequenas mostras,

opções de compra de quadros, gravuras e ilustrações.

Em 2015, a feira repetiu o formato do ano anterior, ocupando

novamente o Centro Cultural Ação da Cidadania, em meio às obras

de revitalização e requalificação da região para tornar-se o chamado

Porto Maravilha. Novamente, com sete painéis de grandes

proporções, desta vez pintados por grafiteiros paulistas, e algumas

instalações artísticas; 22 estandes de galerias de arte, grafiteiros e

artistas plásticos que comercializavam suas obras; três estandes de

venda de produtos, como o estande da marca de cadernos Cícero, e

os próprios produtos da feira; sete restaurantes e lanchonetes;

além de diversos shows com bandas e DJs em todos os dias do

evento.

Nos primeiros anos era mais um festival de arte urbana, onde a gente apresentou nos três primeiros anos mais de 160 artistas do Rio de Janeiro e do Brasil. Ano passado a gente transformou o Art Rua de festival, a gente criou também a área de feira, onde a gente tem 22 galerias de arte urbana do Brasil inteiro expondo o trabalho desses artistas que doam seus trabalhos para nossas ruas (...). Aqui na região do porto a gente está pintando duas laterais de prédio, grande, com um artista que vem da França, chamado Brusk, e com um artista de Portugal chamado Pantonio. Na área externa a gente também tem uma artista chamada Luna Buschinelli, uma artista que veio de São Paulo para pintar na área externa. E na área interna nós temos sete painéis de grande formato com sete artistas urbanos consagrados de São Paulo (André Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).

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Figura 19 – Visitantes da edição 2015 do Art Rua, em uma das diversas galerias montadas no local (arquivo pessoal).

A edição foi marcada também por ações promocionais dos

patrocinadores. A grife de roupas Taco promoveu o Taco Rock

Walls 22 , um estande sobre o projeto de live paintings, que

aconteceria em uma semana do festival Rock in Rio: uma batalha de

grafiteiros, em parceria com o Instituto RUA, prevista para os sete

dias do evento que se aproximava. Já a Abra Casa, empresa de

móveis e decoração, sorteou duas poltronas, customizadas pelas

grafiteiras Talitha Rossi e Lynn Court, entre os visitantes que

postassem fotos com as peças na rede social Instagram.

Outro evento que acontece na cidade e tem o grafite como

uma de suas principais atrações é o Arte Core – Festival de Arte

Urbana. Com três edições realizadas (2013, 2014 e 2015) reúne,

no vão livre do Museu de Arte Moderna, painéis pintados por

22 Na ação promocional realizada no evento, oito grafiteiros escolhidos por André Bretas levaram para o Rock in Rio suas técnicas e ideias para uma “batalha” de grafiteiros. A cada dia dois artistas trabalharam em telas de 4m x 2m, com temas relacionados ao ano de estreia do evento, 1985, e ao ano corrente, 2015. O público pôde acompanhar o passo a passo ao vivo, vendo as grandes telas em branco ganharem cores e formas, para depois atingirem o melhor trabalho.

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grafiteiros de várias partes do país, pistas de skate e shows de

bandas e DJs. Produzido pela Homegrown, um misto de loja de

roupas, galeria de arte urbana e produtora de eventos, o Arte Core

conta com uma enorme estrutura e o apoio de grandes

patrocinadores, como marcas de tênis e empresas de viação urbana.

Figura 20 – Ônibus grafitado pelos grafiteiros do FleshBeck Crew para a edição 2014 do Arte Core, no Museu de Arte Moderna do Rio (arquivo pessoal).

Trata-se dos maiores e mais importantes eventos da cidade

no que diz respeito ao grafite. A grande diferença entre eles está na

participação das mais diversas galerias no Art Rua e apenas da

Homegrown, no Arte Core, que vende, além de gravuras, camisetas

e outros produtos com estampas feitas por grafiteiros como Bruno

Big, Marcelo Ment, Lelos e Mateu Velasco. Eventos que atraem cada

vez mais o público apreciador de grafite e tornam-se parte do

calendário da cidade.

Você pode ver, pela proporção do evento [Arte Core 2014], pelo tamanho da proporção que o grafite tomou. Eventos como estes são reconhecimento, cada vez mais acontece esse tipo de evento e mais pessoas se interessam. Você vê que o Art Rua do ano passado foi menor, este ano foi maior, com muito mais gente. Cada ano que

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passa a gente tem mais adeptos. (BR, em entrevista ao autor em 16 de outubro de 2014).

O grafiteiro Toz também reconhece a importância desses

eventos, porém, vê com precaução o efeito que eles podem causar

em gerações mais novas, que se sentem seduzidas pela fama e

reconhecimento.

Eu acho que é importante pra caramba ter esse tipo de evento. É lógico, eu acho importante, mas eu acho mais importante todo mundo pintar na rua. Pra mim tem uma coisa muito diferente da minha geração, tem muito moleque hoje em dia, a maioria pintam só em evento. Já nasceram com muros liberados e eventos. Então, vira uma coisa muito padronizada. Eu acho muito fácil. E acho que o prazer de você pintar na rua, desbravar os muros, você conseguir ter essa conquista é muito maneiro. Você sente o verdadeiro sentido de atuar na rua e esses eventos eu tenho só um pouco de medo disso, de incentivar muito os moleques a aparecerem, porque bem ou mal, você tem o assédio das pessoas, neguinho fica famoso... Tem tudo o que vem com a fama e com o reconhecimento (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).

A atração e a sedução que o grafite, enquanto arte ou

produto, exerce sobre as gerações mais novas são vistas com

cuidado pelo grafiteiro BR. De acordo com ele, os novos grafiteiros

não têm interesse em pintar nas ruas, mas apenas levar a estética e

a aparência da prática para galerias de arte ou para estampas em

produtos. Interessante notar que BR assume uma parcela de culpa,

juntamente com outros grafiteiros de sua geração, por

comercializar o grafite.

A gente faz grafite na rua de graça, de verdade, continua fazendo até hoje, independente de estar fazendo trabalho (...). O cenário do Rio é meio preocupante, porque pouca gente pinta na rua, muita gente está preocupada em expor em galeria e fazer trabalho comercial. Isso pode ser um pouco culpa nossa, mas a gente nunca

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deixou de pintar na rua. Hoje em dia tem pessoas que fazem três grafites, posta no Instagram e já está falando que pinta tela, que está fazendo trabalho comercial e esquece um pouco da essência do que é o grafite de verdade (...). Galera que está fazendo grafite não está tão esforçada, não está tão interessada em crescer. Está mais querendo aparecer do que querer desenvolver um bom trabalho (BR, em entrevista ao autor em 16 de outubro de 2014).

A grafiteira Panmela Castro faz coro às opiniões de BR, no

que diz respeito a uma espécie de glamourização do grafite,

admitindo também sua mea-culpa. Segundo ela, os grafiteiros já

não pintam mais como antigamente nas ruas da cidade, onde a

força do grafite residia na ousadia dos próprios grafiteiros que

enfrentavam, entre outras coisas, dificuldades logísticas para a

realização de seus trabalhos.

Hoje em dia que o grafite se profissionalizou, a gente ficou cheio de frescura. Então tem que ter o melhor material, não dá nem mais pra ir de ônibus... tem que ter todo o material, aí tem que ter a estrutura pra levar o material dentro do carro, quer o melhor muro da cidade: é tudo diferente! Não vale mais a pena sair de casa para fazer o tipo de grafite que se fazia antigamente, porque não tem mais aquela cultura de antes (...). Hoje em dia não, você faz o grafite lá na rua, alguém posta lá no Instagram, no Instagrafite ou então no Streetartrio e amanhã ninguém lembra mais, uns comentam, tem as outras pessoas... falta alguma coisa (...)! Falta o grafite pelo grafite, hoje em dia o grafiteiro tem um objetivo comercial (Panmela Castro, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).

Para o grafiteiro Toz, um aspecto negativo referente aos

eventos como o Art Rua e o Arte Core é que eles parecem

preocupar-se somente com a mídia e, consequentemente, com o

comércio gerado por eles, não se interessando em deixar um legado

para a cidade. Dentro de uma concepção mais ampla, de acordo

com o grafiteiro, o grafite poderia proporcionar, não só àqueles

diretamente envolvidos em sua prática, mas à população de modo

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geral, maiores benefícios do que simplesmente exposições

temporárias.

Falta nesses eventos, de modo geral, isso é uma crítica pessoal minha, incentivar e deixar um legado na cidade. Não adianta chegar aqui e transformar isso num circo de arte contemporânea, enquanto na cidade, a gente que pinta na rua precisa de estrutura e não tem. Tem um monte de lateral de prédio, um monte de coisa que poderia estar sendo pintada, viadutos incríveis e que neguinho está pintando com tinta anti-pichação. Então, acho que está faltando essa visão de um modo geral (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).

A crítica de Toz é indiretamente rebatida por André Bretas

em entrevista à Rádio MEC, por ocasião da quinta edição do Art Rua.

De acordo como o marchand e produtor, o Instituto RUA, do qual

ele está à frente, promove desde 2010 intervenções na região

portuária do Rio de Janeiro, com objetivos de recuperação de áreas

urbanas deterioradas.

A gente trabalha desde 2010 aqui na região portuária, a gente não desenvolve só na época do Art Rua, mas sim o ano inteiro a gente desenvolve projeto de revitalização urbana, que vão desde a entrada do caju até a praça [Mauá] que foi inaugurada na frente do Museu do Amanhã. Então, são diversos painéis aqui na região portuária. A gente criou também o distrito criativo do porto. Estamos trabalhando nesse novo bairro que vai nascer aqui após as Olimpíadas (André Bretas, em entrevista à Rádio MEC FM, em 12 de setembro de 2015).

Nomeado de Gentileza Urbana, em homenagem à lendária

figura do Profeta Gentileza, o projeto iniciado no primeiro semestre

de 2015 pretende revitalizar toda a região entre a avenida Brasil e

o terminal rodoviário Novo Rio, com painéis de grafites e pinturas de

artistas diversos. Uma área que não foi escolhida por acaso, como

afirma o próprio marchand: o interesse se deu tanto pela questão

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da revitalização como também pela aposta de que, com as obras do

Porto Maravilha, a região ganharia destaque e notoriedade23.

Figura 21 - Projeto Gentileza Urbana: pinturas para recuperar áreas ainda deterioradas na região portuária do Rio de Janeiro (fonte www.institutorua.org.br).

Conhecida como uma das primeiras áreas tomadas pela

prática do grafite e da pichação no Rio de Janeiro, ainda no final da

década de 1990 (Moren, 2012), a região portuária já havia sido

palco de um outro grande painel em 2013. Oito grafiteiros,

liderados pelo próprio Toz, pintaram a lateral da B2W, a convite e

patrocínio da própria holding, da qual fazem parte empresas como

Americanas.com, Shoptime e Submarino. Com cerca de 30 metros

de altura e 70 metros de largura, o painel totaliza mais de 2.100

metros quadrados de área pintada. Dividindo-a em diferentes

espaços, os grafiteiros fizeram registros que remetiam à alegria e à

paz de espírito. 23 Disponível em <http://oglobo.globo.com/rio/design-rio/projeto-usa-grafites-desenhos-para-recuperar-areas-deterioradas-da-zona-portuaria-15921675 > acesso em 5 de janeiro de 2016.

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Figura 22 – Mural de grafite pintado na lateral de um prédio, na zona portuária do Rio de Janeiro (fonte www.institutorua.org.br).

As laterais de prédios, geralmente esquecidas e sem

importância na arquitetura, parecem ser hoje um dos espaços mais

cobiçados pelos grafiteiros. Talvez pelo tamanho e proporção com

que possibilitam a criação de imponentes painéis e o consequente

destaque que ganham na paisagem urbana. Como afirma Toz, o

critério para escolha dos locais de seus grafites é a possibilidade de

grande visualização que eles podem alcançar. Assim, lugares de

grande movimento e com maiores fluxos de circulação de indivíduos

têm sua preferência.

Hoje em dia o que eu quero mais é pintar legalmente nas laterais de prédios. Acho que isso é que está faltando aqui no Rio e acho que era minha ambição, eu acho que eu não precisaria sair do Rio para pintar laterais, entendeu? Pra mim, o que está faltando é isso: eu quero que o Rio de Janeiro venha a ser um lugar que tenha muitas laterais e grandes espaços pintados. Quero fazer parte desse movimento, quero estar vivo e fazendo (Toz, em entrevista ao autor em 15 de outubro de 2014).

Mais que um desejo de revitalização urbana, ao qual são

comumente ligadas tais pinturas, a fala do grafiteiro demonstra seu

interesse em painéis cada vez maiores, com mais destaque e,

consequentemente, maior público. A pintura de um painel como

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esse é um processo oneroso, um projeto que, direta ou

indiretamente, precisa de patrocínio para sua realização, tanto pela

quantidade de tinta e latas de spray utilizadas, como pelos

equipamentos de segurança necessários à sua criação, que vão

desde andaimes e gruas a material para prática de escalada.

Por outro lado, ao fomentar ações como essas, seja a pintura

de um painel ou a lateral de um prédio, uma empresa associa seu

nome, sua marca e sobretudo sua imagem a um movimento

diretamente ligado à juventude, dinâmico, que está em voga e tem

um público cada vez maior. Além disso, desempenha um papel

cultural e social de revitalização e preservação da cidade e do afeto

para seus cidadãos. O grafite torna-se, assim, uma ferramenta no

composto de marketing das organizações, uma ação comercial com

claros objetivos cenográficos e decorativos.

Nesse contexto, o aumento do número de painéis de grafite

patrocinados na região portuária nos últimos anos, desde a

implementação do projeto Porto Maravilha em 2010, parece estar

diretamente relacionado ao processo de gentrificação (Smith,

2007) pelo qual a área vem passando. Gentrificação, termo criado

em 1964 pela socióloga Ruth Glass, diz respeito, de forma crítica,

às transformações ocorridas em determinadas áreas urbanas, onde

processos de revitalização imobiliária de regiões degradadas atraem

moradores de classe média, expulsando assim os antigos habitantes

do local. Uma série de mudanças físicas, materiais, econômicas,

sociais e culturais que requalificam centros e espaços deteriorados,

de forma a recompor o ambiente a partir de investimentos públicos

ou privados.

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Inicialmente, em sua acepção urbanística, o escopo de uso do termo tendia a focalizar o mercado residencial e a reabilitação ou recuperação de imóveis dilapidados. Mais recentemente, sofreu nova inflexão, passando a designar uma nova forma de política urbana neoliberal (Portinari, 2015, p.6).

O projeto do Porto Maravilha visa à revitalização da região

portuária do Rio de Janeiro, numa área que abrange cinco milhões

de metros quadrados nos bairros Saúde, Gamboa e Santo Cristo,

além das comunidades dos morros da Conceição e Providência. As

obras iniciadas em 2012, realizadas por meio de Parceria Público-

Privada 24 , vêm transformando a região com ações como a

destruição do viaduto da Perimetral, a reestruturação das vias e

espaços públicos, a implementação de um novo sistema de

transporte público (VLT), a construção de dois museus (Museu do

Amanhã e Museu de Arte do Rio), um aquário e, sobretudo, o

incentivo à construção de mais unidades residenciais e comerciais.

Entre os benefícios citados no projeto inicial (Gaffney, 2013),

como uma nova experiência de gestão urbana, pode–se destacar

ainda: a construção de hotéis; edifícios luxuosos; sedes de

empresas telefônicas, financeiras e de petróleo; investimentos em

construções Retrofit; aumento da população residencial de 22.000,

à época, para até 100.000 em cerca de 10 anos, junto à melhoria

das condições socioeconômicas da região.

No Porto Maravilha, empresas privadas de construção irão realizar uma reconfiguração espacial de cinco milhões de metros quadrados em parcelas de terra em localização central. A área será

24 Acordo firmado entre a Administração Pública e pessoa do setor privado, com o objetivo de implantação ou gestão de serviços públicos, com eventual execução de obras ou fornecimento de bens, mediante financiamento do contratado, contraprestação pecuniária do Poder Público e compartilhamento dos riscos e ganhos entre os pactuantes (Carvalho Filho, 2009).

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administrada pela iniciativa privada. Enquanto esses processos estão ainda em fase inicial, uma vez que o projeto do Porto Maravilha tiver sido iniciado, o acesso a serviços irá ocorrer através de mecanismos do mercado, enquanto as novas torres residenciais e distritos de consumo irão criar territórios globalizados de consumo em bairros historicamente pobres, porém com ricas tradições culturais (Gaffney, 2013, p.11).

A partir de 1960, quando a Capital Federal foi transferida do

Rio de Janeiro para Brasília, a região portuária passou a sofrer a

redução do número de moradores, bem como de investimentos

públicos entrando em ostracismo econômico (Gaffney, 2013). Uma

área com diversos prédios abandonados, anteriormente utilizados

pelo Governo Federal, e onde os índices de pobreza estão acima da

média do município, atraindo o interesse imobiliário de construtoras,

a fim de transformá-la. A exemplo de outras experiências ao redor

do mundo, como as Docas de Londres, o Porto do Sul de

Manhattan, Puerto Madero em Buenos Aires e o bairro de

Barceloneta, em Barcelona.

No entanto, os processos de gentrificação não provocam

apenas a valorização imobiliária, mas sobretudo o aumento do custo

de vida da região, seja pelos preços dos aluguéis, impostos ou

serviços. Fato que provoca a retirada de antigos moradores para

localidades financeiramente viáveis aos seus padrões e a chegada

de uma nova classe economicamente superior. Dessa maneira, a

gentrificação modifica a dinâmica e a composição das regiões

afetadas, intensificando as divisões e desigualdades socioespaciais

do espaço urbano. Um projeto que segue a tendência global de

transformar áreas tradicionalmente pertencentes a classes

trabalhadoras em espaços de consumo (Barbassa, 2002).

Seguindo a lógica capitalista, os processos de revitalização de

áreas urbanas criam novos espaços, ao mesmo tempo em que

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destroem outros espaços preexistentes (Silva, 2012). A serviço do

capital, tais ações têm a capacidade de criar uma nova imagem,

positiva e atrativa, de uma área anteriormente degradada e

decadente. Para tanto, tais processos substituem prédios antigos e

desvalorizados por construções modernas e maiores, o que acarreta

a mudança na maneira como se utiliza o espaço urbano, visto que a

criação de novos serviços, ligados diretamente a setores dinâmicos

da economia, elimina pequenos negócios, características tradicionais

e, sobretudo, a população (Maricato, 2008, p,126). Um processo

de requalificação e renovação que vem provocando profundas

alterações na região, com o intuito de conferir novas

funcionalidades e espaços, diferentes daqueles preexistentes, além

da substituição de serviços já existentes por outros mais modernos

(Duarte, 2005).

Os processos de revitalização de zonas portuárias constituem parte de um processo mais amplo de revitalização do capital. A busca por novos lugares em condições promissoras de rentabilidade e capazes de manter a lucratividade do capital determina as ações de renovação, revitalização e modernização do espaço urbano. As revitalizações são usadas pelas frações da burguesia no poder como estratégias para adequar a cidade às necessidades do capital (Silva, 2012, p. 61).

Assim, o grafite colabora com as transformações sociais que

vêm ocorrendo na zona portuária do Rio de Janeiro. As laterais de

prédios esquecidas, os muros e paredes denegridos pelo tempo,

pela má conservação e pela pichação são substituídos por coloridos

painéis com a função de disfarçar a aparência incômoda causada

pelo abandono e vandalismo. Os painéis tornam-se, assim, murais

decorativos que se adequam aos espaços que ainda não passaram

pela revitalização, de maneira a integrá-los à nova paisagem urbana

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da região portuária, de forma relativamente barata, se comparada

aos custos de reforma, por exemplo. Nesse contexto, painéis

pintados por grafiteiros famosos colaboram na valorização do bairro

por meio de cores, formas e personagens e, porque não, de seus

próprios nomes. Elementos que substituem os antigos espaços sem

atrativos visuais por espaços coloridos e visualmente mais

agradáveis.

Dessa forma, pode-se perguntar se o grafite torna-se, ele

mesmo, um elemento gentrificado a partir do momento em que,

cooptado pelo mercado, passa a fazer parte do sistema capitalista.

Ousa-se dizer aqui que tal processo aproxima-se daquilo que

Schulman (Apud Portinari, 2015) descreve como gentrificação do

espírito, conceito além do sentido urbanístico que o termo

representa e que diz respeito a uma espécie de pasteurização das

complexidades e das diferenças e sua gradual substituição por um

tipo de institucionalização. Uma transformação que afeta indivíduos

que não tinham direito, representação, poder ou consciência da

realidade em um processo interno de alienação artística e social. Um

processo intelectual, cultural e político, que substitui as

características transgressoras e contestadoras do grafite pelo

reconhecimento, pela fama e, sobretudo, pela remuneração.

Enquanto os grafiteiros das décadas de 1990 e início dos

anos 2000 eram considerados sujeitos transgressores e marginais,

que tomavam posse, sem autorização, dos muros e paredes da

cidade, hoje eles são considerados profissionais. Transitam

livremente, com autonomia e respeito, entre artistas e designers,

vendem quadros e objetos, criam produtos e estampas para o

mercado e são contratados para pintura de painéis tanto em

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espaços urbanos, como em lojas e ambientes particulares de casas

e apartamentos.

Hoje encontramos no mercado uma série de produtos desprovidos de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme de leite sem gordura, cerveja sem álcool... E a lista não tem fim: o que dizer do sexo virtual, o sexo sem sexo; da doutrina de Colin Powell da guerra sem baixas (do nosso lado, é claro), uma guerra sem guerra; da redefinição contemporânea da política como a arte da administração competente, ou seja, a política sem política; ou mesmo do multiculturalismo tolerante de nossos dias, a experiência do Outro sem sua Alteridade (…). (Zizek Apud Portinari, 2015, p.14).

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