a funcao social da guerra na sociedade tupinamba (fernandes, florestan)

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Obras reunidas de Florestan FernandesCoordenação:Maria Arminda Nascimento ArrudaA função social da guerra na sociedade tupinambá O folclore em questão Fundamentos empíricos da explicação sociológica Asociologia numa era de revolução social A integração do negro na sociedade de classes A Revolução Burguesa no BrasilEducação e sociedade no Brasil Circuito fechado Pensamento e ação / Que tipo de república?

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  • A FUNO SOCIAL DA GUERRANA SOCIEDADE TUPINAMB

  • Obras reunidas de Florestan FernandesCoordenao:

    Maria Arminda Nascimento Arruda

    A funo social da guerra na sociedade tupinamb O folclore em questo Fundamentos empricos da explicao sociolgica Asociologia numa era de revoluo social A integrao do negro na sociedade de classes A Revoluo Burguesa no BrasilEducao e sociedade no Brasil Circuito fechado Pensamento e ao / Que tipo de repblica?

  • Florestan F ernandes

    A FUNO SOCIAL DA GUERRANA SOCIEDADE TUPINAMB

    prefcio:Roque de Barros Laraia

  • Copyright 2006 by herdeiros de Florestan Fernandes Todos os direitos reservados.Nenhuma parte desta edio pode ser utilizada ou reproduzida em qualquer meio ou

    forma, seja mecnico ou eletrnico, fotocpia, gravao etc. nem apropriada ouestocada em sistema de bancos de dados, sem a expressa autorizao da editora.

    Coordenao editorial: Quatro Edies Reviso: Otaclio Nunes ndice remissivo: Luciano Marchiori Capa:Paula Astiz Produo de ebook: S2 Books 1 edio, FFLCH/USP, 1952

    2 edio, Edusp/Pioneira, 19703 edio, Editora Globo, 2006

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Fernandes, Florestan, 1920-1995

    A funo social da guerra na sociedade tupinamb / Florestan Fernandes : prefcio Roque de BarrosLaraia. 3. ed. So Paulo : Globo, 2006.

    BibliografiaISBN 978-85-250-5523-1

    1.Antropologia social 2. Fernandes, Florestan, 1920-1995 Crtica e interpretao 3. ndios Artemilitar 4. ndios Tupinamb I. Laraia, Roque de Barros II. Ttulo.

    06-6884 CDD-980.3

    ndice para catlogo sistemtico:1. ndios Tupinamb : Guerras : Funo social : Civilizao 980.3

    Direitos de edio em lngua portuguesa adquiridos por Editora Globo S. A.Av. Jaguar, 1485 05346-902 So Paulo, SP

    www.globolivros.com.br

  • A Herbert Baldus e Roger Bastide,cuja influncia foi to importante em minha formao

    etnolgica e sociolgica, este trabalho dedicado comotestemunho de amizade e admirao.

  • Como os tupinambs so muito belicosos, todosos seus fundamentos so como faro guerra aosseus contrrios (Gabriel Soares de Souza, Tratadodescritivo do Brasil em 1587, p. 389)

  • SUMRIO

    CapaFolha de rostoCrditosDedicatriaPREFCIONOTA EXPLICATIVAINTRODUOLIVRO PRIMEIROA TECNOLOGIA GUERREIRA

    INTRODUO1. AS ARMAS2. A ORGANIZAO DAS EXPEDIES E A TIVIDADES GUERREIRASA. A guerra na sociedade tupinamb

    a. Motivao e objetivos da guerrab. O ritual guerreiro

    B. A contenda armadaa. O bando guerreirob. O combatec. O retorno ao grupo local

    LIVRO SEGUNDOOS MECANISMOS TRIBAIS DE CONTROLE SOCIAL E A GUERRA

    INTRODUO1. A SOCIALIZAO E A GUERRAA. Os ideais guerreiros na formao da personalidade masculinaB. Repercusses da guerra na estrutura social

    a. Condies e efeitos sociais da participao das atividades guerreirasb. A situao social dos cativos

    2. OS FUNDAMENTOS GUERREIROS DO COMPORTAMENTOCOLETIVOA. Os ritos de destruio dos inimigosB. O significado e a funo dos ritos de destruio dos inimigos

    LIVRO TERCEIROCONCLUSES

    1. CONTRIBUIO PARA O CONHECIMENTO DA GUERRA NASOCIEDADE TUPINAMB2. C ONTRIBUIO PARA O CONHECIMENTO DA SOCIEDADE

  • TUPINAMB3. C ONTRIBUIO GERAL TEORIA SOCIOLGIC A D A GUERRA

    APNDICEBIBLIOGRAFIANDICE REMISSIOSOBRE O AUTORCaderno de fotos

  • PREFCIO

    ESTE LIVRO UM DOS RESULTADOS da primeira fase da carreira acadmica de Florestan Fernandes.Fase esta que pode parecer surpreendente para o leitor atual, acostumado a ver no Autor oexcelente socilogo de orientao marxista. Poucos sabem que ele iniciou a sua trajetriautilizando temas antropolgicos e com uma orientao metodolgica funcionalista. Oreconhecimento internacional ento obtido demonstra o sucesso de sua fase inicial. RobertMerton, um dos expoentes da corrente funcionalista americana, em seu livro Social theory andsocial structure (The Free Press, Nova York, 1968) o relacionou entre os principais divulgadoresdo funcionalismo. Em 1966, o autor deste prefcio testemunhou a calorosa recepo conferida aFlorestan Fernandes, em sua visita Universidade de Harvard, por Talcoltt Parsons, o maisimportante dos pensadores funcionalistas, conhecido pela sua exagerada misantropia.

    Em 1944, Florestan Fernandes iniciou o seu mestrado na Escola de Sociologia e Poltica deSo Paulo, considerada ento um contraponto anglo-saxnico para a orientao francesa daUniversidade de So Paulo. O seu orientador foi Herbert Baldus, que o estimulou a elaborar umareconstituio da organizao social dos tupinamb. Alfred Mtraux, considerado ento o maiorconhecedor do tema, por ser autor de dois livros importantes (A religio dos tupinamb e Acultura material dos tupinamb, ambos de 1928), afirmou que era impossvel a reconstituio daorganizao social de um povo extinto havia tanto tempo.

    Florestan aceitou essa afirmao como um desafio, e nos dois anos subseqentes dedicou-se anlise dos trabalhos de numerosos autores seiscentistas que tinham entrado em contato diretocom os tupinamb, ndios da famlia lingstica tupi-guarani, ocupantes da maior parte do litoralbrasileiro no sculo XVI. Em 1946, defendeu a sua dissertao de mestrado A organizao socialdos tupinamb.

    Em uma nota explicativa da segunda edio (1963) do livro resultante de seu mestrado,Florestan afirmou ter limitado os seus objetivos em fazer apenas uma tentativa pura e simples dereconstruo histrica que possibilitaria, posteriormente, a realizao de um trabalho maislegtimo e ambicioso.

    Este livro, A funo social da guerra na sociedade tupinamb, a concretizao do desejoacima expressado. Florestan despendeu quatro anos (1947-51) na redao do mesmo, queapresentou como tese de doutoramento na Universidade de So Paulo, sob a orientao de RogerBastide. Afirmou, no entanto, que a sistematizao do material bsico tinha se processadoanteriormente. Com efeito, A organizao social dos tupinamb foi fundamental para a redaodo segundo livro. Sem a reconstituio da organizao social dos tupinamb, compreendendo osseus sistemas de parentesco, poltico e econmico, e os deveres deles decorrentes, seriaimpossvel entender os dados referentes guerra. Alm disso, foi nessa ocasio que o Autordesenvolveu um mtodo de investigao que consistiu em uma exaustiva busca e seleo de dados,alm de um excelente trabalho interpretativo, possibilitando uma razovel aproximao com arealidade estudada. Para fazer isso, teve que superar as dificuldades decorrentes da inexistnciade concordncia entre as fontes consultadas. Essa dissonncia era uma conseqncia de serem asmesmas resultantes de observaes de cronistas diferentes que atuaram em momentos diversos eem regies geogrficas diferentes. Atravs de uma anlise comparativa minuciosa foi possveltestar a veracidade das informaes, expurgando-as dos exageros cometidos com freqncia pelosviajantes, preocupados em valorizar as suas experincias em um mundo totalmente extico.

    Em 1949, Florestan publicou um extenso ensaio, A anlise funcionalista da guerra:

  • possibilidades de aplicao sociedade tupinamb. Ensaio de anlise crtica da contribuio doscronistas para o estudo sociolgico da guerra entre as populaes aborgines do Brasilquinhentista e seiscentista (Separata da Revista do Museu Paulista, Nova Srie, vol. III, SoPaulo), que foi republicado como 2 captulo do seu livro A etnologia e a sociologia no Brasil(Editora Anhembi, So Paulo, 1958). Nesse trabalho o Autor colocou disposio dos leitores omtodo que utilizou na crtica e no aproveitamento dos dados, o que autentificou ainda mais avalidade das informaes contidas em suas obras sobre os extintos tupinamb.

    Mesmo aps ter se tornado o mais importante socilogo brasileiro, e ter adotado uma novaorientao metodolgica, ele nunca renegou a sua fase inicial. Sempre reclamou do fato de que osseus livros e artigos sobre os tupinamb no mereceram a mesma ateno que os demais. Ementrevista concedida a Mariza Peirano, em 1981, afirmou ter escrito esses livros para provar queum pesquisador brasileiro poderia realizar uma obra comparvel com as feitas na Europa. No hdvida de que conseguiu o seu intento, apesar de alguns intelectuais, preocupados talvez com umaproduo politicamente engajada, terem considerado os dois livros sobre os tupinamb umdesperdcio de tempo, pois o tema nada tinha a ver com o Brasil atual. Posies estasincompreensveis quando sabemos da grande importncia dos tupinamb, e dos demais tupi, paraa formao de nossa cultura e da prpria nao brasileira.

    Ao descrever a guerra tupinamb, o Autor fez uma minuciosa etnografia da cultura materialblica, da organizao dos grupos guerreiros, do papel das lideranas, bem como das tticasutilizadas. Analisou detalhadamente a importncia da vingana como principal elemento causal.Destacou a importncia do ritual antropofgico, como o elemento central do processo dedestruio do inimigo e da satisfao ao esprito de quem est sendo vingado. Fez umainteressante comparao do ritual funerrio com o ritual de execuo, mostrando que enquanto oprimeiro pretende assegurar que a alma do morto atinja a regio dos ancestrais, o segundopretende exatamente o contrrio com a destruio da alma do executado por meio do esmagamentode seu crnio.

    A sua minuciosa anlise comparativa das informaes dos cronistas torna possvel ao leitor acompreenso do ritual e, principalmente, entender por que a vtima conhecia como devia agir emum to complexo cerimonial, no qual tem que demonstrar coragem diante da morte e explicitar acerteza de que um dia ele tambm ser vingado. Os tupinamb possuam uma unidade lingstica ecultural, mas eram constitudos por numerosos grupos com autonomia poltica desde que noexistia um poder central entre os quais as guerras eram freqentes. Muitas vezes, o executor e avtima eram unidos por laos de afinidade. Em suma, os tupinamb buscavam as suas vtimas nosmesmos grupos em que procuravam as suas esposas.

    Florestan no se limitou, neste livro, a uma explicao sociolgica da guerra apenas entre ostupinamb. Mais do que isso, buscou dar uma explicao geral para a teoria sociolgica daguerra. Utilizou em sua anlise uma ampla bibliografia, abrangendo dezenas de ttulos que incluemclssicos como Karl von Clausewitz, Nicolau Maquiavel, William James, entre outros, alm denumerosos trabalhos sobre o tema em sociedades indgenas de outros continentes.

    No aceitou as explicaes de alguns etologistas que consideram a guerra como um fenmenodecorrente de uma agressividade inata da espcie humana. Para ele, a guerra um fato social nosentido restrito de existir como uma das instituies sociais incorporadas s sociedadesconstitudas.

    Ao analisar a guerra tupinamb como um fenmeno mgico-religioso, Florestan retomou adiscusso da inter-relacionalidade entre a guerra e a religio. Com freqncia as atividadesblicas justificamse atravs de um discurso religioso. No resta dvida de que esta discusso

  • apresenta uma forte atualidade, em um momento em que dois blocos de naes utilizamargumentos fundamentalistas.

    Enfim, 36 anos depois de sua ltima edio, o leitor brasileiro volta a ter a possibilidade deacesso a um dos mais importantes livros de Florestan Fernandes. Um livro que foi importante noincio de sua carreira e que continua atual como um exemplo marcante de uma caractersticafundamental do Autor, o seu inegvel compromisso com os parmetros acadmicos, expresso emuma grande preocupao com o rigor cientfico. Rigor este evidenciado em seu livroFundamentos empricos da explicao sociolgica (1959), que serviu de manual para toda umagerao de cientistas sociais. Em um tempo dominado por ensastas brilhantes, mas com poucaspreocupaes com uma fundamentao emprica de seus dados, Florestan surgiu com um novomodo de fazer cincia. Esteve sempre preocupado em desenvolver uma metodologia cientficacapaz de permitir uma compreenso mais acurada da realidade. A este respeito, Antonio Candidoo definiu como um homem que transformava sem cessar a realidade em matria de reflexo e deinterpretao contanto que tivesse previamente elaborado o instrumental terico. No Brasil,ningum mais do que ele demonstrou que a Sociologia uma cincia e, mais do que isso, umacincia eminentemente crtica.

    O tempo transcorrido entre a segunda e a terceira edio deste livro coincide com osurgimento e desenvolvimento de muitos programas de ps-graduao em Cincias Sociais, o quegarante a existncia de um pblico altura do trabalho realizado por Florestan Fernandes.

    ROQUE DE BARROS LARAIA

  • NOTA EXPLICATIVA

    A PRESENTE MONOGRAFIA foi escrita para ser apresentada como tese de doutoramento II Cadeirade Sociologia da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo. Porisso, foi elaborada, quer quanto redao, quer quanto forma de exposio dos problemas oudas referncias empricas e tericas, segundo um padro de trabalho intelectual adequado scircunstncias.

    O trabalho foi escrito no perodo de tempo compreendido entre 1947-51, embora asistematizao do material bsico tenha se processado anteriormente. Levando em considerao aconvenincia de ter em vista todos os aspectos da guerra acessveis interpretao sociolgicaatravs da documentao existente sobre os tupinamb, ele foi dividido em trs partes. Naprimeira, so estudadas as tcnicas de luta mo armada empregadas pelos combatentes e astcnicas de organizao social das atividades guerreiras que aqueles aborgenes chegaram aconhecer e a manipular. Nesse ponto da anlise, procurei determinar ainda quais eram os efeitosda guerra no plano da competio por territrios e dos recursos naturais correspondentes. Issosignifica, em outras palavras, que foi feito um esforo no sentido de encarar a guerra como partedo sistema tecnolgico tupinamb e, de maneira especfica, como tcnica social com uma funoprpria na estrutura social. Na segunda parte, so estudadas as relaes da guerra com osmecanismos tribais de controle social. Nela procurei pr em evidncia, medida do possvel, queos mveis da conduta guerreira e a necessidade da guerra constituam, naquela sociedade, umaconseqncia da forma de integrao da estrutura social e do funcionamento da organizao sociale que, inversamente, a guerra intervinha de vrias maneiras na conformao da vida psquica esocial daqueles aborgenes. Por fim, na terceira parte, foram condensados os principais resultadosda investigao empreendida, seja para o conhecimento da guerra na sociedade tupinamb, sejapara o conhecimento da prpria sociedade tupinamb, seja ainda para a teoria sociolgica daguerra.

    O fato de ter escrito o trabalho como tese de doutoramento levou-me a estabelecer uma sriede relaes com colegas, amigos, alunos e auxiliares, as quais precisam ser mencionadas aqui.Fernando de Azevedo, escolhido para orientador da tese, manteve comigo um agradvelintercmbio na discusso das interpretaes desenvolvidas e do modo de sua apresentao,contribuindo, com sua inteligncia e esprito crtico, para escoimar o trabalho de determinadosdefeitos. Entre os demais membros da comisso examinadora, Herbert Baldus e Roger Bastide jestavam ligados minha investigao: o primeiro, porque fora em seu Seminrio de etnologia queeu iniciara em 1945, sob seu estmulo direto, a coleta sistemtica de dados sobre os tupinamb; osegundo, porque tivemos a oportunidade de discutir, em diversas ocasies e longamente, asinterpretaes a que cheguei a respeito do sacrifcio humano e de sua funo social na sociedadetupinamb. Plnio Ayrosa e Egon Schaden, que tambm fizeram parte da comisso examinadora,deram-me igualmente a sua contribuio, cada um no setor de sua especialidade. A todos sounaturalmente grato, no s por causa do interesse que demonstraram pelo trabalho, como pelassugestes que deram, das quais aproveitei aquelas que me pareceram procedentes.

    Durante a elaborao do trabalho, recebi a colaborao, que agradeo agora, de AntonioCandido de Mello e Souza, em particular, e de Gioconda Mussolini, meus colegas noDepartamento de Sociologia e Antropologia, bem como de Laerte Ramos de Carvalho, quegentilmente se incumbiram, a meu pedido, da leitura e comentrios de trechos ou captulos inteirosda monografia. Na preparao da edio mimeografada, destinada defesa de tese, foi de

  • inestimvel importncia a colaboraco de Zilah de Arruda Novaes e Ermelinda de Faria Castro,auxiliares-tcnicos do Departamento de Sociologia e Antropologia, de Paula Beiguelman, e deRenato Jardim Moreira, Fernando Henrique Cardoso, Ruth Correia Leite, Marialice Mencarini,Alis Cunio, Maria Sylvia de Carvalho Franco, Maria Alayde Trani, Tristo Fonseca e Maria daPenha, aos quais fiquei naturalmente agradecido. Agradecimentos especiais so ainda devidos: aoprofessor Wilhelm Trexler von Lindenau, pela traduo que fez comigo de algumas obras escritasem alemo; ao diretor da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras, dr. Eurpides Simes dePaula, por ter sempre demonstrado a maior boa vontade, compreenso e gentileza na soluo dosproblemas de rotina criados durante o meu processo de doutoramento, inclusive os concernentesao fornecimento de parte dos materiais necessrios edio mimeografada do trabalho; ao meuamigo Manoel Lopes de Oliveira Neto e a seus auxiliares Juracy Magro Silva e Gerson Simi, cujaboa vontade tornou possvel a referida edio em tempo realmente exguo.

  • INTRODUO

    A GUERRA UM FENMENO HUMANO. No se pode dizer precisamente como e quando ela surgiu, nopassado remoto da humanidade. Nem tampouco se pode presumir a que necessidadesexistenciais (biopsquicas ou sociais) ela correspondeu originariamente. At onde alcana ainvestigao emprico-indutiva, atravs da reconstituio arqueolgica, da reconstruo histricae da observao direta, a guerra se nos apresenta como um fato social, no sentido restrito deexistir como uma das instituies sociais incorporadas a sociedades constitudas. A esse respeitolembra com razo Montesquieu que a associao humana no poderia ser um produto da guerra,porque esta pressupe, por sua prpria natureza, a existncia da sociedade.

    Semelhante maneira de entender a guerra (e suponho que na sociologia no h outraigualmente legtima) implica uma delimitao precisa na observao e na explicao dessefenmeno social. Os problemas concernentes origem, integrao, funo e evoluo da guerra deixam de ser concebidos in genere e in abstracto, para serem definidos einterpretados concretamente, com relao a tipos sociais determinados. Na verdade, a origem, aintegrao, a funo e a evoluo da guerra so por sua vez fenmenos que variam de um tiposocial para outro. Nada justifica a preocupao, to difundida infelizmente, que tem conduzidomuitos especialistas a tratar os problemas em questo como se fosse possvel sociologia reduzira complexidade do real, a ponto de fornecer explicaes capazes de esclarecer de uma vez portodas a origem, a integrao, a funo e a evoluo da guerra. Para chegarmos a um conhecimentosinttico deste fenmeno, mas que seja ao mesmo tempo positivo, preciso lanar mo do mtodocomparativo. Ora, a menos que se pretenda reincidir em erros do passado, a aplicao do mtodocomparativo, com o propsito indicado isto , tendo em vista a formulao de generalizaesvlidas de maneira universal, na medida em que estas so possveis na sociologia , exige,preliminarmente, a realizao de pesquisas com objeto particular rigorosamente delimitado.

    A presente monografia constitui um passo nessa direo. Nela no procurei ir alm do que sepode legitimamente fazer em um trabalho de investigao desse gnero; porm, tenho a convicode que observei, de modo estrito, a obrigao alternativa, procurando realizar, atravs dela, tudoo que cientificamente desejvel fazer-se em tais desenvolvimentos da pesquisa sociolgica. Noentanto, em virtude da prpria natureza da documentao emprica disponvel, no tive aoportunidade de examinar seno os problemas relativos funo social da guerra e os problemascorrelatos de integrao deste fenmeno ao sistema organizatrio da sociedade tupinamb. Omtodo gentico, que possibilitaria a descoberta dos fatores sociais que determinaram oaparecimento da guerra na forma por ela assumida nessa sociedade tribal, e o mtodo histrico,que poderia pr em evidncia as condies e as causas sociais responsveis pela formao dopadro conhecido da guerra tupinamb, so igualmente inaplicveis explorao sistemtica dadocumentao existente. certo que o processo de interpretao conjectural poderia forneceralgumas sugestes. Mas preferi evitar esse terreno, limitando-me a explor-lo somente nascircunstncias em que o uso daquele processo encontra fundamento, seja na crtica histrica, sejanas regras do mtodo cientfico. O essencial que a constituio interna da sociedadetupinamb j est relativamente bem conhecida, o que me permitiu empreender a anlise dosaspectos da guerra suscetveis de investigao segundo uma orientao metodolgica que reputosegura.

  • OS PROBLEMAS INVESTIGADOS

    A seleo dos problemas a serem investigados foi feita empiricamente. Atravs do inventrio e dacrtica das informaes e descries contidas nas fontes primrias conhecidas, foi possvel prem evidncia: 1) os dados de fato, com que se pode contar positivamente, para o estudo da guerrana sociedade tupinamb; 2) o alcance e a composio da documentao emprica existente, demodo a identificar quais foram os aspectos da guerra aborgene que caram no campo deobservao dos cronistas, estando por isso registrados ou descritos, e de maneira a esclarecercomo os dados recolhidos se distribuem no conjunto total de informaes e descries; 3) aconsistncia dessa documentao, quer sob o ponto de vista do exame de seu contedo, quer sob oponto de vista das possibilidades de aplicar-lhe um tratamento sociolgico.[1]

    Isso no significa, porm, que a determinao do objeto da investigao tenha sofrido umaconstrio empiricista. A seleo dos problemas por meios empricos se impe como condiode trabalho, especialmente em pesquisas de carter indutivo, pois ela permite lidar com osproblemas de forma objetiva, de molde a favorecer a compreenso deles em termos do seucontexto factual. Mas preciso no esquecer que os elementos da situao, considerados em siprprios, so insuficientes para orientar o processo de seleo dos problemas a sereminvestigados. A simples reproduo de circunstncias (observadas, vividas ou conhecidas por viaindireta) pressupe uma interveno criadora do sujeito, a qual introduz um elemento subjetivo naatividade intelectual. Por isso, no atribu aos critrios empricos de reconhecimento e de seleodos problemas de pesquisa maior importncia do que eles tm logicamente. O aproveitamento dosentido interpretativo das explanaes dos cronistas e a utilizao adequada de uma dasmodalidades de considerao sociolgica da guerra (efeitos da aplicao do mtodo deinterpretao funcionalista da guerra na delimitao dos problemas bsicos da explicaosociolgica do fenmeno) serviram-me como duas fontes intelectuais de elaborao racional doselementos da situao, as quais produziram apreciveis conseqncias na determinao doobjeto da investigao.

    Explica-se, assim, o plano segundo o qual foi desenvolvida esta monografia. Presumo que elecorresponde satisfatoriamente s possibilidades realmente abertas pela documentao reunida, aomesmo tempo que vai alm da mera concatenao de dados dispersos em vrias fontes primrias.Todo um conjunto de problemas foi proposto atravs da compreenso da guerra como tcnica ecomo elemento do sistema tecnolgico da sociedade tupinamb. Quais eram os instrumentosmateriais da guerra? Como se compunha o equipamento guerreiro dos nativos? Como eramorganizadas e realizadas as expedies guerreiras? As dimenses da guerra aborgene dependiamde fatores culturais e sociais? As situaes e as atividades sociais abrangidas pela guerra serepetiam regularmente? A que espcie de controle social estavam subordinadas? Como seestabelecia o aproveitamento do fator humano na contenda armada? Que relao existia entre aorganizao do bando guerreiro e a luta mo armada? Como esta se desenrolava? Quais eram osefeitos destrutivos do combate aborgene? Que operaes eram postas em prtica por ocasio doretorno ao grupo local, aps um ataque bem-sucedido ou infrutfero? Essas e outras questesforam colocadas, e medida do possvel respondidas, na primeira parte do presente estudo.Entretanto, a explicao sociolgica no se confina considerao da guerra no nvel tecnolgico:importa tambm descobrir quais so as vinculaes reversveis da guerra com a dinmica dasociedade que a engendra, fazendo dela um meio para preencher certas necessidades sociais.

  • Quais so os valores e os ideais que tornavam a guerra psicologicamente desejvel? Que funodesempenhavam os valores guerreiros na vida psquica de seres como os tupinamb, queassociavam a vingana ao sacrifcio sangrento dos inimigos e ao canibalismo? Como a guerrase incorporava estrutura da sociedade tupinamb? Ela contribua para construir o arcabouo dosistema social de posies sociais? Os prisioneiros de guerra tinham uma situao especial ou seconfundiam com os vencedores no seio do grupo domstico e dos grupos locais? Que relaesexistiam entre a guerra, o sacrifcio humano e o canibalismo? Por que os inimigos eramdestrudos por meios mgico-religiosos, e no simplesmente por meios fsicos? Como se definiasocialmente o inimigo? Como se explica causalmente a guerra tupinamb? Que conexes haviaentre a guerra e as condutas individuais ou os comportamentos coletivos? Essas e outras questes,por sua vez, foram examinadas, com sucesso varivel, na segunda parte deste trabalho.[2]

    A ORIENTAO METODOLGICAO termo funo tem sido empregado em diversos sentidos no campo das cincias humanas.Neste trabalho, ele foi manipulado predominantemente de maneira a exprimir as diversasmodalidades de relao da guerra com a satisfao de necessidades sociais proporcionadas pelascondies de existncia social dos tupinamb e por eles sentidas coletivamente, no importa comque intensidade ou de que forma (consciente ou inconsciente). A expresso mtodo deinterpretao funcionalista suscita, igualmente, a mesma ambigidade.[3]Para evitar dvidas, conviria indicar que considero o mtodo funcionalista aplicvel tanto aproblemas sincrnicos quanto a problemas diacrnicos;[4] e que, se me limitei anlise doprimeiro tipo de problemas, no foi seno em virtude da natureza da documentao utilizada. Emsegundo lugar, no procurei fazer do mtodo funcionalista um simples recurso intelectual paraexplicar descritivamente as ligaes da guerra com o desequilbrio e o restabelecimento doequilbrio do sistema de relaes sociais tupinamb. Ao contrrio, a escolha do mtodofuncionalista nasceu da preocupao de explicar causalmente as condies e os fatores sociaisdesses fenmenos (ou correlaes), e da convico, comprovada pelos resultados da presentemonografia, de que a posse de semelhante explicao causal abriria perspectivas para descobrir aparte tomada pela guerra na dinmica da sociedade tupinamb.

    sabido que o mtodo funcionalista, apesar de no ser o nico mtodo utilizvel com essefim, favorece a compreenso dos fenmenos singulares em suas conexes e vinculaes com osdemais fenmenos do contexto social, quer quando as conexes e vinculaes so diretas (dadasno contexto emprico imediato dos fenmenos singulares), quer quando elas so indiretas (dadasno contexto emprico geral dos fenmenos singulares). Tendo em vista o propsito de chegar auma explicao causal, a aplicao do mtodo funcionalista ao estudo da guerra na sociedadetupinamb se impunha naturalmente. que ele reunia duas condies ideais para a anlisesociolgica do fenmeno e para a ponderao das conexes e vinculaes por venturacaracterizveis interpretativamente. De um lado, era presumvel que ele facultaria o exame dasconexes e vinculaes, condicionantes ou determinantes, que articulavam a guerra estruturasocial da sociedade tupinamb. De outro, era tambm provvel que ele permitiria estabelecer umaespcie de considerao global das relaes causais postas em evidncia, fornecendo assim umcritrio para selecionar empiricamente as conexes e as vinculaes determinantes ou tpicas,ou seja, um critrio que possibilitaria agrup-las em termos de sua importncia na constelao dedeterminaes causais que produziam a guerra e regulavam a objetivao cultural de seus efeitos

  • sociais (reconhecidos ou no na conscincia social dos tupinamb). O estudo prvio dos dadoscontidos nas fontes primrias patenteara que seria possvel tentar a aplicao do mtodofuncionalista investigao da guerra na sociedade tupinamb, pois a documentao existente semostrara bastante slida para comportar uma anlise do tipo funcionalista[5]

    Na adequao do mtodo funcionalista ao fenmeno particular investigado explorei umahiptese de carter heurstico. Ela pode ser expressada da seguinte maneira: como as atividadesguerreiras e as suas conseqncias afetavam toda a vida social dos tupinamb,[6] possvel que afuno social da guerra se refletisse em todas as esferas da sociedade tupinamb a deadaptaes e controles sociais sobre o meio natural circundante, a de ajustamentos e controlessociais sobre o meio propriamente humano, e a de relaes e controles sociais desenvolvidos nointercmbio com o sagrado (representao do meio sobrenatural e comunicao com as foras ouentidades que o constituam). A explorao emprico-indutiva dessa hiptese dependia,certamente, da formulao de uma concepo diretriz do fenmeno, atravs da qual pudesseentender sociologicamente a guerra aborgene.[7] Parece-me desnecessrio insistir sobre ela, poisa discuti largamente no desenvolvimento das anlises interpretativas. preciso ressaltar, noentanto, que a concepo diretriz do fenmeno, elaborada como particularizao do conceitosociolgico de guerra (cf. nota 7, nesta introduo), no s favoreceu a explorao da hipteseheurstica apresentada, como ainda lhe emprestou maior consistncia.

    A compreenso da guerra tupinamb como o conjunto total das situaes sociais, queenvolviam a polarizao ou a projeo de atitudes e sentimentos coletivos de antagonismo contraos inimigos, vividas pelos tupinamb desde o momento da descoberta da necessidade de relaosacrificial at o momento de sua plena satisfao por intermdio de sacrifcio ritual e dos ritossubseqentes, se harmoniza com os propsitos interpretativos que orientaram a escolha do mtodofuncionalista. De fato, assim encarada, a guerra tupinamb abrange os ritos que preparavam e seseguiam organizao e realizao das expedies guerreiras, o choque armado, as operaesde retorno, o tratamento da pessoa dos prisioneiros de guerra, e a utilizao final deles com finsrituais. A guerra, como estado de relaes intersocietrias, transbordava das condies e doslimites militares, definidos pela natureza e pelas propores de luta mo armada bem comopor suas conseqncias imediatas, prolongando-se por outros meios atravs do sacrifciosangrento e do canibalismo. Ora, semelhante caracterizao do fenmeno particular investigadocorresponde nitidamente preocupao de explicar causalmente as diversas conexes evinculaes da guerra com outros fenmenos singulares na sociedade tupinamb, facilitandosobremaneira a tarefa de procurar as suas ramificaes e repercusses especficas no contextosocial. Como se ver, a essa concepo diretriz se deve boa parte do sucesso alcanado nainterpretao da funo da guerra nas trs esferas daquela sociedade tribal e na preservao daestabilidade da ordem social vigente.

    Algumas questes marginais tambm devem ser ventiladas aqui. Duas dizem respeito aoesprito que presidiu interpretao dos dados de fato. Primeiro, na medida de minhas foras,procurei observar o justo equilbrio da interpretao cientfica, preconizado por Simiand: nemteoria sem fatos, nem fatos sem teoria. A acumulao de dados sem dvida uma condio parao progresso da sociologia; mas, preciso que o socilogo procure ir alm da sistematizao dedados e da explicao descritiva, para chegar a explicaes causais. E conveniente que faaisso de tal modo que o aproveitamento dos resultados de uma pesquisa particular e a integraodeles ao corpus terico da sociologia se processe de forma racional, sem que se torne necessrioefetuar novas anlises interpretativas para apurar o contedo positivo de uma contribuiomonogrfica. Em outras palavras, o prprio especialista deve procurar pr em evidncia os

  • resultados gerais da investigao empreendida. Segundo, no menos aconselhvel que se evitemiluses da generalizao por sistema. O sculo passado deu origem a um mau hbito intelectual,que se espelha na idia de que a natureza de um fenmeno pode ser conhecida atravs dainvestigao de uma de suas manifestaes em qualquer tipo social. Em conseqncia, osresultados gerais de uma pesquisa poderiam ser apresentados como conhecimentos vlidos demaneira universal. O estado atual dos problemas do mtodo cientfico na sociologia me dispensada crtica dessa orientao. Contudo, no acredito que a orientao inversa seja menos criticvel,embora menos arriscada e perigosa. Certamente, ainda que limitado pelas injunes da anlisemonogrfica, o especialista pode pelo menos indicar quais so os possveis resultados gerais deuma investigao particular que possuem um interesse mais amplo na teoria sociolgica e em queconsiste esse interesse. Por fim, h uma terceira questo cujo debate se impe. Ao escolher aguerra como objeto de estudos pessoais, no o fiz porque estivesse convicto de que a guerra fosseo principal centro de interesses dos tupinamb ou alimentasse alguma pretenso de explicar porseu intermdio as condies de existncia social daqueles indgenas. Ao contrrio, sabiaperfeitamente de antemo que a guerra se subordinava ao sistema mgico-religioso tribal, e queela tinha importncia na vida social dos tupinamb precisamente por causa dessa circunstncia.

    OS RESULTADOS DA INVESTIGAOOs mritos e os defeitos de um mtodo se conhecem pelos resultados de sua aplicao. Aexplorao da documentao emprica disponvel por meio do mtodo de interpretaofuncionalista produziu os resultados esperados ou, pelo menos, resultados satisfatrios? Aresposta a essa pergunta depende, naturalmente, da perspectiva de que se encare a presentemonografia e a contribuio que ela traz para o conhecimento da guerra entre os tupi, emparticular, e os povos primitivos, em geral. Colocando-me na posio de autor, e tomando aliberdade de considerar os resultados da investigao do ponto de vista do que achava possvelobter, penso que estou em condies de responder afirmativamente s duas estimativas.

    Os resultados correspondem ao que esperava, em termos do que poderia pretender daaplicao do mtodo funcionalista ao estudo de um fenmeno social to complexo como a guerra,atravs de documentao de procedncia leiga. Reconstruir as situaes sociais e oscomportamentos individuais ou coletivos desencadeados pela guerra, lig-los entre si de modocoerente com o contexto social e explicar causalmente a emergncia e os efeitos sociais da guerraaborgene, eis o que gostaria de conseguir atravs da interpretao funcionalista dos dadosfornecidos pelos cronistas. Mas os resultados da investigao, expostos nesta monografia, tambmse revelaro satisfatrios se observados do ngulo da anlise sociolgica da guerra. Devido aoscuidados metodolgicos e ao aproveitamento sistemtico de todas as pistas teis, de carteremprico ou de ordem interpretativa, as possibilidades oferecidas pela anlise funcionalista daguerra na sociedade tupinamb foram, presumivelmente, exauridas. Na verdade, no me competeavaliar a contribuio teoria sociolgica da guerra contida no presente ensaio. Contudo, a guerratem sido pouco estudada como fenmeno social luz do mtodo funcionalista,[8] especialmenteno que concerne aos povos primitivos.[9] Por pequena que seja, essa contribuio ter o seuinteresse e a sua importncia, que tendero a aumentar medida que o mtodo comparativo setornar uma fonte mais explorada do conhecimento sociolgico da guerra.

    Quanto natureza dos resultados, preciso distinguir quatro tipos de explanao: a) areconstruo histrica propriamente dita; b) a reconstruo interpretativa; c) a explicao

  • descritiva; d) a explicao causal. A reconstruo histrica foi aplicada em larga escala, e de umamaneira que, segundo penso, d ao leitor elementos para separar o que vem indicado de modoexpresso ou implcito nas fontes daquilo que resulta das elaboraes pressupostas nareconstituio de situaes sociais desaparecidas, atravs de depoimentos escritos. Asexplanaes deste tipo no oferecem grandes dificuldades, j que vm acompanhadas, geralmente,das provas testemunhais correspondentes (pelo menos das mais significativas). A reconstruointerpretativa foi empregada com cuidado, mas ainda assim com relativa freqncia. Os melhoresexemplos de explanaes deste tipo se encontram no captulo referente aos ritos de destruiodos inimigos. O leitor poder ou no concordar com certos resultados da reconstruo, desde queaceite ou no as premissas interpretativas que orientam a referncia dos dados de fato ao contextosocial ou estabelecem condies para elaboraes reconstrutivas baseadas em informaesisoladas e em inferncias de carter indutivo. A explicao descritiva situa relaes cujaexistncia, regularidade e sentido so determinveis, sem que se possa, ao contrrio do queacontece na explicao causal, apontar precisamente o papel jogado por cada um dos elementosque as constituem, como causa, condio determinante ou efeito. Estes dois tipos de explanaoforam aplicados de maneira peculiar. Enquanto a rigor a primeira parte do trabalho quase nopassa de uma sistematizao de explicaes descritivas, a segunda parte, que termina com umensaio de interpretao positiva da guerra na sociedade tupinamb, formada predominantementede explicaes causais. Assim, a segunda parte completa a primeira. Como tendncia expositivageral, nesta se descreve como e naquela se explica por que os tupinamb se lanavam guerra.

    A TCNICA DE APRESENTAO DOS MATERIAISE DAS INFERNCIAS INTERPRETATIVAS

    Duas referncias tcnica de apresentao dos materiais so indispensveis. Primeiro, adoteineste trabalho o critrio de apresentao concomitante das principais provas documentais. Issotalvez dificulte a leitura, mas d ao leitor a possibilidade de acompanhar, se no toda a marcha dainvestigao, pelo menos o desenvolvimento das elaboraes reconstrutivas e das anlisesinterpretativas. No penso que esse critrio seja o mais recomendvel, mas ele possui duasvantagens ponderveis. De um lado, ele facilita o exame dos resultados da investigao pelosespecialistas; de outro, ele permite pr uma parte considervel da documentao emprica aoalcance imediato do leigo, em linguagem no cientfica. A razo que me decidiu a aceitar ocritrio outra: em uma monografia como a presente, a criao do ambiente algo decisivo,especialmente para a captao e transferncia do significado de comportamentos e de valores toestranhos nossa mentalidade. Pareceu-me, no sei se com razo, que as descries doscronistas, por causa de seus dotes artsticos,[10] poderia preencher satisfatoriamente essanecessidade.

    Segundo, permiti-me a liberdade de construir os captulos segundo o princpio do textocompleto. Este princpio tem os seus inconvenientes, j que pode favorecer, dependendo danatureza do trabalho, a repetio de fatos e de idias. Ora, o presente ensaio estava fadado a queambas as coisas sucedessem inevitavelmente. As limitaes da documentao quase semprecompelem o especialista a explorar um documento sob todos os aspectos possveis: da, repetiode fatos. O planejamento do trabalho, por sua vez, pode implicar a disposio do mesmofenmeno em dois planos distintos, um descritivo e outro explicativo: da, repetio de

  • idias. Por paradoxal que parea, o princpio do texto completo se imps, no entanto, como ummeio para reduzir as repeties ao mnimo inevitvel. Ele deu margem a que elas fossem feitas deforma racional, inclusive com anotaes e referncias capazes de orientar o leitor a respeito desua ocorrncia.

    Quanto apresentao das inferncias interpretativas, elas foram expostas emcorrespondncia com as gradaes e os desenvolvimentos das anlises. Todavia, patenteou-se aconvenincia de completlas em duas direes. Seja por intermdio de uma colocao tericainicial dos problemas bsicos, realizada nas introdues das divises ou dos captulos e naformulao sistemtica das questes, onde isto se tornou necessrio. Seja por meio da evidnciados resultados globais das anlises interpretativas, construdas sob a forma de sumrio nos finsdos captulos. A exposio gradual das inferncias interpretativas resulta, doutro lado, do prprioplano do presente trabalho. Assim, a relao entre as atividades guerreiras e a vingana, porexemplo, tratada desenvolvidamente em dois captulos: Motivao e objetivos da guerra eFundamentos guerreiros do comportamento coletivo. que em um captulo ela foi explicadadescritivamente e no outro causalmente. A mesma relao se viu considerada de duas maneirasdiversas e com base em dados de fato diferentes. Cumpria naturalmente manter as infernciasinterpretativas no nvel das anlises respectivas.

  • LIVRO PRIMEIRO

  • A TECNOLOGIA GUERREIRA

    INTRODUO

    NESTA PARTE DO TRABALHO pretendo analisar os aspectos guerreiros do sistema tecnolgico dostupinamb. A anlise implicar a considerao de certos problemas que, usualmente, soexcludos das preocupaes dos socilogos quando investigam fenmenos desta natureza. Emparticular, a ateno dada aos aspectos ergolgicos do sistema guerreiro dos tupinamb poderiaparecer excessiva. Por isso, considero da maior importncia a exposio dos motivos que melevaram a estender o objeto da anlise. So dois os motivos: um, nasceu das exigncias dainvestigao particular empreendida; outro, resultou da colocao do problema da tcnica nacincia moderna.

    Quanto ao primeiro motivo, sabido que as pesquisas de reconstruo histrica no sepodem circunscrever s inferncias baseadas exclusivamente nas informaes fornecidas de mododireto e explcito pelas fontes histricas compulsadas. Ao contrrio, impe-se, como regra detrabalho, entre outros recursos, a explorao sistemtica de evidncias estabelecidas de modoindireto. Em virtude dos conhecimentos que possumos sobre as formas de adaptao dostupinamb ao meio natural circundante, sabe-se que a guerra desempenhava um papel relevante naestratgia tribal da luta pela vida.[11] Do xito das atividades guerreiras dos tupinambdependia extensamente o funcionamento normal dos sistemas econmico e organizatrio tribais.Em torno delas giravam todas as possibilidades de preservao do domnio e usufruto de reasterritoriais ocupadas e de conservao da iniciativa nos movimentos de invaso de reasterritoriais dominadas por outros grupos tribais. legtimo admitir, portanto, que a descriominuciosa da tecnologia guerreira dos tupinamb (inclusive em seus aspectos ergolgicos)representa um meio adequado, e sem dvida o nico acessvel em nossos dias, para se investigara funo da guerra no plano ecolgico daquelas sociedades tribais. As duas implicaessociolgicas de semelhante anlise so evidentes, exprimindo: 1) quais eram as fontes daeficincia do sistema guerreiro tribal; 2) como este se integrava estrutura e ao funcionamentodo sistema adaptativo da sociedade tupinamb.

    O segundo motivo referese explicao da tcnica como fenmeno social. Como salientaMannheim, a palavra tcnica no se aplica somente a objetos tangveis, como as mquinas,instrumentos de produo em sociedades industriais, mas tambm s relaes sociais e aoprprio homem.[12] Esta maneira de encarar a tcnica envolve um alargamento na manipulaotradicional do conceito. Mesmo os socilogos que admitiam a extenso do conceito s situaeshumanas, como Espinas, restringiam sua compreenso aos processos operativos das artes teise adultas, isto , as prticas conscientes e refletidas, em certo sentido opostas s prticassimples, que se estabelecem espontaneamente.[13] Por isso, o mesmo especialista sugeria aaplicao do termo prtica para designar todas as manifestaes coletivas do querer, tantoaquelas que so espontneas, quanto aquelas que so refletidas.[14] Contudo, graas contribuio dos historiadores e especialmente dos etnlogos, o termo tcnica tambm foiaplicado s prticas inconscientes e espontneas, independentemente do grau de civilizao dassociedades investigadas.[15] Paralelamente, as razes que aconselhavam o emprego discriminadodo termo tecnologia como cincia dos grupos de regras prticas, das artes ou das tcnicasobservadas nas sociedades humanas adultas, de algum modo civilizadas[16] deixaram deexistir. Por isso, a maioria dos especialistas designa com esse termo, ou por meio da expresso

  • sistema tecnolgico, o conjunto de processos operativos e de conhecimentos tcnicosincorporados ao equipamento adaptativo das sociedades humanas.[17]

    Portanto, na investigao dos sistemas tecnolgicos cabe sociologia um conjunto deproblemas especficos. Todas as sociedades dispem de um equipamento cultural adaptativo, porcujo intermdio o meio natural circundante domesticado e as fontes de recursos naturais soprotegidas contra outras sociedades, os animais e as mudanas naturais cataclsmicas; oorganismo humano adestrado para suportar a vida em sociedade; e os indivduos soencadeados em uma rede organizada de relaes de interdependncia bitica, expressadas eatualizadas socialmente atravs de objetos tangveis e de processos operativos.[18] Osproblemas especficos levantados pela investigao do sistema tecnolgico, assim compreendido,podem ser distribudos em trs categorias: 1) como os elementos e os conhecimentos tcnicospromovem a domesticao do meio natural circundante e o adestramento de organismosbiolgicos para a vida social; 2) como os elementos e os conhecimentos tcnicos so criados ouadquiridos socialmente, integrando-se em unidades socioculturais mais amplas, e como estas searticulam s demais esferas da sociedade; 3) como os elementos e os conhecimentos tcnicos serefletem nas relaes humanas, contribuindo para desenvolver tipos determinados de ordenao ede controle sociais das aes e das atividades das personalidades em interao.

    Ora, a pesquisa destes aspectos da tecnologia guerreira dos tupinamb, dentro dos limites daspossibilidades de reconstruo histrica, implicava necessariamente uma anlise extensiva dosmeios elementares de ao guerreira dos tupinamb. Por isso, procurei descrever: os objetostangveis (as armas) atravs dos quais os tupinamb enfrentavam os seres vivos, que partilhavamcom eles os recursos do meio natural circundante (primeiro tpico desta parte do trabalho); asformas de organizao social das atividades humanas durante os empreendimentos guerreiros e acontenda armada (segundo tpico desta parte do trabalho). As evidncias possveis a respeito dafuno ecolgica da guerra na sociedade tupinamb, claro, precisaram ser extradas,indiretamente, destas descries, combinadas a dados explcitos, fornecidos pelas prprias fontesprimrias, sobre os fins das expedies guerreiras.

    Verifica-se, pois, que os dois motivos, responsveis pela extenso da anlise, atuaram nomesmo sentido. E que a forma de sistematizao dos materiais adotada nesta parte do trabalho, nafalta de outras, apresenta a dupla vantagem de corresponder s possibilidades concretas deexplorao das fontes primrias e de satisfazer pelo menos as exigncias mnimas de investigaodo fenmeno em uma sociedade particular. Alm disso, espero ter evitado certas deficincias deorientao metodolgica em que incorreram alguns especialistas ao tratar do fenmeno,procedendo como se a guerra e o sistema tecnolgico de uma sociedade dada fossem duasrealidades distintas, apenas vinculadas entre si.[19]

  • 1. AS ARMAS

    As armas constituem os instrumentos materiais do combate: os artefatos por cujo intermdio osgrupos de guerreiros antagnicos em luta decidem de fato o curso militar da guerra. Por isso,embora a guerra e os instrumentos de guerra sejam coisas distintas,[20] impossvelcompreender claramente a primeira sem conhecer de modo preciso o arsenal dos combatentes.Graas s investigaes etnogrficas de Mtraux,[21] no entanto, os artefatos guerreiros dostupinamb j so conhecidos. Limitei-me, em vista disso, transcrio das descries fornecidaspor este autor, completando-as, quando necessrio (especialmente no que se refere ao uso dasarmas, aspecto do sistema guerreiro dos tupinamb que no interessou quele especialista).

    A sistematizao dos dados disponveis, e aproveitveis cientificamente, ofereceu poucasdificuldades. Conforme Leroi-Gourhan, o conjunto de meios pelos quais se podem capturar oumatar os seres vivos (compreendendo-se o homem nesta categoria) impe duas divisesdesiguais: as armas e as armadilhas. A classificao mais cmoda consiste em separar as armascurtas: faca, sabre, machado, maa etc.; as armas longas: lanas, arpes etc.; as armas deprojteis: arcos e sarabatanas.[22] Esta classificao, bvio, baseia-se exclusivamente sobrecritrios formais; o mesmo autor assinala como se poderia torn-la mais precisa, referindo-a aoemprego das armas (armas curtas de mo, armas longas de mo e armas de tiro). Contudo,como observa Marcel Mauss, as armas podem ser estudadas como formando uma indstria geralcom usos especiais uma mesma faca ser empregada para a caa, para a guerra, para amatana.[23] Por isso, seria melhor distinguir as armas umas das outras de acordo com a funoque lhes atribuda. Na teoria dos poderes militares encontra-se uma classificao bastantesimples, em que as armas so caracterizadas da seguinte maneira, na base de um critriofuncional: 1) armas de fogo (ou de tiro, num sentido mais amplo); 2) armas de choque; 3) armas demobilidade: 4) armas de proteo. Turney-High pensa que essa classificao tambm aplicvelao estudo do equipamento guerreiro dos povos primitivos,[24] tendo eu seguido este parecer,adotando o esquema na sistematizao dos dados relativos s armas empregadas nos contactosguerreiros pelos tupinamb. Lembro, porm, que em sociedades de determinados nveis decivilizao, como a dos tupinamb, as armas de mobilidade so os prprios homens. Oorganismo humano realiza, ento, as operaes essenciais de deslocao no espao, deaproximao dos inimigos e de complementao militar das armas de tiro e de choque,executadas em outras sociedades por meio da utilizao tcnica de animais ou de engenhos deguerra. Isso explica por que tais aspectos do sistema guerreiro tupinamb foram analisadosadiante, e no neste tpico do trabalho.

    Os observadores quinhentistas e seiscentistas que descreveram o equipamento guerreiro dostupinamb no mencionam, pelo menos da forma que seria desejvel do ponto de vistasociolgico, aspectos importantssimos do mesmo: inclusive os que dizem respeito ao modomanual de aplicao das armas. Mas, como se sabe, no dado ao pesquisador evitar, em estudosde reconstruo histrica, as lacunas oriundas de deficincias das fontes primrias. Emborapreferisse fazer uma anlise to completa quanto possvel do manejo das armas pelos tupinamb,[25] tive que me contentar com a explorao das informaes que os cronistas julgaram dignas derelato. Como se ver, elas mal correspondem necessidade que temos de conhecer a eficincia eas habilidades guerreiras dos tupinamb.

    a. As armas de tiro

  • 1)2)

    3)

    4)

    A arma de tiro dos tupinamb era o arco e a flecha. Usavam-na nos combates a distncia,complementando-a pelo emprego combinado das flechas incendirias e de gases nocivos. Osarcos dos tupinamb, escreve Mtraux, parecem ter sido bastante compridos. Talhados emmadeira negra extremamente dura, eles eram de difcil distenso. Sua seco era plano convexa,pelo que se pode julgar pelo arco representado no quadro de Eckhout. s vezes eles eramornamentados com uma guarnio de palmas tranadas; tratava-se provavelmente de um mosaico[ou tranado] de palha que cobria a madeira. Cardim,* que nos d esta indicao, ajunta comefeito que estas palmas eram de diferentes cores. As extremidades dos arcos podiam ser tambmadornadas com plumas.[26] O mesmo etnlogo informa o seguinte, a respeito da corda: a cordade seus arcos era de algodo, mais raramente de fibra de tucum, e era freqentemente pintada deverde ou vermelho. Quando o arco era retesado, as pontas inaproveitadas da corda eramenroladas nas duas extremidades.[27] Quanto flecha, a mesma fonte fornece as seguintesindicaes: As flechas dos tupinamb eram do tamanho de uma braa [1,60 m aproximadamente].Seu cabo era feito com uma cana sem ns. possvel que a fixao fosse reforada por uma peade madeira, mas a passagem de Lry onde este pormenor fornecido no concludente asemelhante respeito. De todos os tupi-guarani, os guaray e os pauserna so, no meuconhecimento, os nicos que fazem uso deste pequeno tampo de madeira.

    As plumas de suas flechas tinham, aproximadamente, um palmo de comprimento. Elas eramfendidas em duas e cada metade era aplicada ao cabo, ao qual ela era fixada por suas duasextremidades por um fio de algodo. Este tipo de emplumao, chamado de emplumao do Estedo Brasil (East Brazilian feathering), caracterstico da maioria das tribos tupi-guarani.[28]

    Os tupinamb empregavam como ponta de flecha:

    seja uma simples haste de madeira rija, arpoada; ou no, de um p e meio;seja uma lasca de taquara em forma de lanceta, com um p e meio de comprimentoaproximadamente;seja um osso ou ossos de peixes pontiagudos e mais ou menos do tamanho de um dedopequeno, muito bem amarrados e com uma ponta recurvada em forma de gancho;*seja um dente de tubaro ou de outro animal, seja enfim o rabo de uma arraia.[29] Comono possuam aljavas, guardavam suas flechas em um estojo de casca.[30]

    Mtraux assevera categoricamente que o costume de envenenar as flechas estranho aostupi-guarani.[31] provvel que tenha razo, pois somente Cardim, pelo que sei, informa ocontrrio: e s vezes as ervam [s flechas] com peonha,[32] no sendo, no entanto, confirmadopor outras fontes. Cardim referese ao emprego dos dentes de tubares: os tupinamb usariam-noscomo pontas para as flechas por serem muito agudos, cruis, e peonhentos, e raramente saramdas feridas ou com dificuldade;[33] e Lry afirma a mesma coisa sobre semelhante utilizao dosferres do rabo da arraia, que so muito venenosos.[34] Estas informaes, entretanto, nada tmde comum com a explanao de Cardim transcrita acima, segundo a qual os tupinamb teriam

  • praticado o envenenamento das flechas.O uso das flechas incendirias documentado por Staden e Thevet; aproveitando os dados

    fornecidos por estas fontes, escreve Mtraux: em tempo de guerra, os tupinamb incendiavam asaldeias de seus adversrios, atirando sobre suas cabanas flechas em cuja ponta ardia uma mechade algodo.[35] A primeira fonte descreve um ataque dos nativos em que as flechas incendiriasforam utilizadas contra os brancos, e d informaes a respeito da fabricao das mesmas.Aproximaram-se da povoao, lanaram ao ar grande quantidade de flechas que deviam atingir-nos quando cassem, utilizando tambm muitas delas s quais haviam amarrado mechas de algodoembebido em cera. Com estas flechas acesas pretendiam atear fogo ao teto das choas; apanhamtambm algodo, misturam-no com cera, prendem-no sobre as flechas e inflamam-nas. So asflechas incendirias.[36] O cronista francs indica, por seu turno, o que acontecia aps oemprego bemsucedido das flechas incendirias, pondo em evidncia sua funo no combate: equando alcanam a aldeia, usam o artifcio de lanar fogo s cabanas dos adversrios, a fim deobrig-los a sair do abrigo, juntamente com sua bagagem, suas mulheres e seus filhos.[37]

    O uso de gases nocivos (fumaa de pimenta) pelos tupinamb foi analisado primeiramentepor Nordenskild. Este etnlogo explica a funo dessa arma ofensiva pela necessidade dedesalojar os inimigos de seus redutos fortificados (as paliadas): com suas imperfeitas armasofensivas, os ndios deviam sentir grande dificuldade no assalto a uma aldeia que fosse bemfortificada.[38] Mtraux tambm se refere ao emprego dos gases nocivos pelos tupinamb,aceitando essa explicao: para desalojar seus inimigos de uma fortificao ou de uma praaforte, os tupinamb, como em nossos dias os oyampi, queimavam pimenta de Caiena, cuja fumaaproduz efeitos anlogos aos dos gases irritantes.[39] As informaes em que estas explanaesse baseiam so fornecidas por Hans Staden. O cronista participou da defesa de Igarau, emcolaborao com os portugueses, e presenciou como os ndios tupi praticavam a operao: osndios nada podiam fazer-nos nas barcas. Trouxeram ento galhos secos de suas trincheiras e osatiraram no espao existente entre a praia e os botes. Queriam incendi-los e jogar s chamaspimenta que a medra. A fumaa nos obrigaria a fugir.[40] Adiante volta a referir-se a estatcnica guerreira e relaciona sua utilizao ao ataque de grupos locais nativos fortificados.

    Ouvi-lhes dizer tambm, mas no vi propriamente, que utilizam pimenta, que h em sua terra, ecom que conseguem afugentar das fortificaes os seus inimigos. Isto se d da maneira seguinte:quando o vento sopra, fazem uma grande fogueira e lanam-lhe dentro um monto de ps depimenta. Se a fumaa d de encontro s cabanas, o inimigo tem que sair ento para fora. Assimnarram e eu creio, pois j estive uma vez, como j foi dito, com os portugueses, em umaprovncia daquela terra, que se chama Pernambuco. L permanecemos com um navio, em umbrao de mar em seco, porque a mar nos supreendera, tendo vindo muitos selvagens que nosqueriam capturar, o que no conseguiram. Atiraram muitos arbustos secos entre o navio e a praiae esperavam afugentar-nos com a fumaa da pimenta, mas no puderam, entretanto, atear-lhesfogo.[41]

    Os dados expostos evidenciam que a principal arma de combate a distncia dos tupinambera o arco e a flecha. As flechas incendirias constituam, evidentemente, um desenvolvimentotcnico desta arma ofensiva, ocorrido no sentido de satisfazer a necessidade de compelir osadversrios ao contacto pessoal e direto, disputa decisiva por meio das armas de choque. Os

  • gases nocivos tinham a mesma funo. Contudo, provvel que sua aplicao fosse mais reduzida,pois sua eficcia dependia de fatores naturais ingovernveis (existncia e direo dos ventos,condies favorveis do terreno etc.) e da possibilidade fortuita de atuao constante dosmesmos, de modo a exporem inevitavelmente os inimigos, pelo menos durante certo tempo, a umasituao intolervel. Por isso, no de admirar que Hans Staden no tenha observado, comorelata, o emprego desta tcnica nas expedies guerreiras dos tupinamb de que participou ou tevenotcia. Doutro lado, ambas as tcnicas (flechas incendirias e gases nocivos) complementavam oarco e a flecha em combinaes de natureza ttica. compreensvel que se tornavam armasvantajosas e temveis em duas condies ideais: 1) quando o inimigo era apanhado inteiramentede surpresa; 2) quando o inimigo se encontrava encurralado dentro das prprias fortificaes,dispondo os atacantes de alguma espcie de superioridade.

    As informaes sobre a capacidade guerreira dos tupinamb e suas habilidades no manejo doarco e da flecha so pouco descritivas. Pode-se, mesmo, qualific-las como generalizaes dosenso comum: exposies sintticas de experincias pessoais ou de conhecimentos indiretos,obtidos de terceiros, sobre o comportamento dos guerreiros tupinamb. Entretanto, essa a nicafonte, acessvel em nossos dias, capaz de proporcionar alguns esclarecimentos sobre tais aspectosdo sistema guerreiro dos tupinamb. Por isso, a citao dessas exposies dos cronistas possuiinegvel importncia analtica.

    Gandavo asseverava em sua Histria:[42] as armas com que pelejam so arcos e flechasnas quais andam to exercitados que de maravilha erram a coisa a que apontarem, por difcil queseja de acertar. E no despedir delas so mui ligeiros em extremo, e sobretudo mui arriscados nosperigos, e atrevidos em gran maneira contra seus adversrios; a mesma informao repetidapelo cronista em seu Tratado:[43] a coisa que apontarem no na erram, so mui certos com estasarmas e temidos na guerra, andam sempre nela exercitados. Anchieta tambm ressalta ahabilidade deles no uso do arco e das flechas, escrevendo: So guerreiros e grandes flecheiros;basta ver um olho s descoberto a um homem para lhe pregar; so to destros que no lhes escapapassarinho que no matem, e a flechadas matam o peixe na gua.[44] Com o mesmo vigor, outrasfontes apreciam de maneira uniforme esta capacidade dos tupinamb. Cardim, por exemplo, quaserepete a informao de Anchieta: e so grandes flecheiros e to certeiros que lhes no escapapassarinho por pequeno que seja, nem bicho do mato, e no tm mais que quererem meter umaflecha por um olho de um pssaro ou de um homem, ou darem em qualquer outra coisa, porpequena que seja, que o no faam muito ao seu alvo, e por isso so muito temidos, e tointrpidos e ferozes que mete espanto.[45] Mais interessantes ainda so as consideraes e ascomparaes feitas por Lry e Abbeville. O primeiro no esconde a admirao sentida pelosfranceses diante da habilidade dos tupinamb como flecheiros, afirmando, quanto ao arco, queum europeu no o poderia vergar e muito menos atirar com ele mas to somente o conseguiriacom um arco desses que usam os meninos indgenas de nove ou dez anos de idade.[46] Adianteestende a comparao eficincia demonstrada no tiro; quanto ao arco diro comigo os que oviram em exerccio que embora com os braos nus o envergam com tanta desenvoltura e atiramcom tanta rapidez que no desagradariam aos ingleses, considerados timos flecheiros; pois umndio, com molhos de flechas na mo, lanaria uma dzia de setas mais depressa que um inglsmeia dzia delas;[47] segundo o mesmo autor, os prprios tupinamb teriam desenvolvidoapreciaes comparativas a respeito da eficincia de sua arma de tiro: e diziam, alis com razo,que atiravam mais depressa seis flechas do que ns um tiro de arcabuz.[48] O capuchinho francslimita-se a comparar a habilidade, comprovada no tiro, dos seus compatriotas dos tupinamb: eso to destros que nunca erram o ponto visado; e to rpidos que atiram seis flechas enquanto os

  • nossos arqueiros lanam apenas trs.[49]Essas consideraes dos autores quinhentistas e seiscentistas permitem supor, como seria de

    esperar, tratando-se de guerreiros adestrados no emprego do arco e das flechas, que esta armaofensiva alcanava toda a eficincia possvel nas mos dos tupinamb. Estes foram exmiosmestres no manejo dessa arma, cuja capacidade destrutiva tambm descrita nas mesmas fontes.Assim, Staden referese ao incndio do grupo local de Mambucaba, provocado por um ataque dostupiniquim, inimigos dos tupinamb.[50] E sabe-se pelo menos o que os brancos pensavam sobrea gravidade dos ferimentos causados pelas flechas. Cardim, por exemplo, d algumasinformaes, to pitorescas quanto significativas: estas flechas ao parecer, parece coisa dezombaria, porm arma cruel; passam umas couraas de algodo, e dando em qualquer pau oabrem pelo meio, e acontecem passarem um homem de parte a parte, e ir pregar no cho.[51] Asreferncias de Abbeville no so menos expressivas; graas tcnica de construo das pontasdas flechas, estas se tornavam realmente perigosas: o que faz com que o indivduo ferido, se nofor atravessado pela flecha, tenha soluo melhor em completar a obra do que em tentar retir-la,porquanto, neste caso, arrisca-se a trazer no gancho [na ponta da flecha] as prprias entranhas.[52] Essas indicaes so confirmadas por Lry, que compara os efeitos das flechas aos da cargado arcabuz: mas eu direi que por mais que nos resguardemos com cabees de bfalos, saias demalha ou outras armaduras ainda mais resistentes, robustos como so e impetuosos no tiro, osnossos selvagens nos transpassariam o corpo com as suas flechas to bem como ns o faramoscom um tiro de arcabuz.[53] Portanto, pelo que se pode inferir atualmente, os tupinambmanejavam com grande habilidade e eficcia a arma ofensiva de que dispunham, nos tipos decombate em que se empenhavam, e estavam aptos (de acordo com a opinio expressada peloscronistas) a extrair delas um rendimento destrutivo aprecivel.

    b. As armas de choque

    A principal arma de choque dos tupinamb era o tacape (tipo de clava), empregada tanto no

    combate corpo a corpo quanto nos sacrifcios rituais; considerada por Mtraux como a arma depredileo dos tupinamb.[54] A matria-prima do tacape era uma madeira dura, de corvermelha ou negra: provavelmente o pau-de-arco.[55] Conforme Gabriel Soares, os guerreirostransportavam-no a tiracolo.[56] O tacape tinha um tope mais ou menos rolio, quase triangular.A haste, de comprimento de 7 a 8 palmos, tinha perto do tope uma largura de 4 dedos, estreitando-se progressivamente na direo da extremidade inferior. Esta era ornamentada com um mosaico[ou tranado] de palha, nitidamente evidenciado no desenho de Staden em que uma destas clavasrituais representada.[57] O punho da clava era enriquecido com uma guarnio que eleschamavam Aterabb feita de diversas espcies de plumas, lindamente entrelaadas ejustapostas.* Esta guarnio de penas era feita segundo a mesma tcnica que os barretes ou ascapas de plumas. Da ponta da haste pendiam os cordes aos quais eram presos os tufos ou, maisexatamente, os penachos. Na vspera da execuo do prisioneiro, a clava-espada era polvilhadade cascas de ovos azuis reduzidas a finas parcelas, aderidas madeira por meio de cera.Aplicavam-lhe tambm rodelas de conchas.[58]

    Existem ainda dois espcimes das clavas dos tupinamb. Um se encontra no MuseuEtnogrfico de Berlim e outro no Museu do Trocadero, em Paris.[59] Segundo Mtraux, queestudou os dois espcimes, eles so idnticos. O exemplar existente no Museu Etnogrfico deBerlim (cf. figura 4) descrito da seguinte maneira pelo referido etnlogo: seu comprimento total de 1,20 m e a largura maior de seu tope de 0,20 m. Seu punho ornamentado por uma densa

  • franja de fios de origem vegetal ligados a um cordo de algodo relativamente encorpado. Aextremidade dos cordis assim obtidos termina em um tufo de penas vermelhas, provavelmente deibis rubra, do qual s restam atualmente alguns fragmentos.[60]

    Com base na documentao disponvel, nada se pode afirmar de positivo quanto existnciaou no, no combate, de momentos tticos distintos, vinculados natureza e utilizao das armastupinamb (de tiro e de choque). Pode-se reconhecer precisamente apenas a funo das armas detiro durante a abordagem e a preparao dos contendores para o choque decisivo, corpo a corpo.Contudo, parece pouco provvel que este se desenrolasse exclusivamente atravs do tacape.Como se ver adiante, o arco e as flechas eram tambm empregados nesta parte da luta armada; euma informao de Anchieta sugere alm disso o uso da flecha como uma espcie de lana, sem oauxlio complementar do arco.[61] Os recursos pessoais dos guerreiros desempenhavam, por suavez, um papel importante nessa fase da contenda. A astcia, a agilidade e a fora fsicaencontravam, a julgar por algumas descries de combate, que sero aproveitadas adiante, extensocampo de aplicao, mesmo sem nenhuma complementao material por meio de armas. Asgravuras de Thevet e de Lry, que ilustram cenas de combate, apesar do reduzido valoretnogrfico que possuem, servem para documentar estas modalidades de choque. A figura 13mostra que o tacape, o arco e a flecha eram igualmente empregados nesta fase da luta armada. Asfiguras 10, 11 e 12 evidenciam a mesma coisa, revelando ainda algumas formas de aplicao daenergia fsica (como guerreiros desarmados ou cados enfrentavam os antagonistas ou de quemodo procuravam segurar o adversrio, introduzindo um dedo no orifcio destinado colocaodo tembet). Na gravura 10 v-se tambm que dois guerreiros manejavam as flechas como se estasfossem lanas rudimentares. As mesmas ilustraes no deixam dvida quanto ao fato de ter otacape assumido, aos olhos dos europeus, o carter de arma por excelncia do combate corpo acorpo dos nativos.

    A concluso de que ele foi a principal arma de choque dos tupinamb esbarra, no entanto,com uma fonte aparentemente discrepante. Staden no enumera o tacape entre as armas queintegravam o equipamento guerreiro dos tupinamb.[62] Descreve-o apenas como pea desacrifcio ritual.[63] Alm disso, no indica as armas atravs das quais foram mortos osprisioneiros sacrificados no acampamento de retorno, em que esteve com aqueles ndios.[64] Umaanlise mais minuciosa patenteia, porm, que o depoimento de Staden no invalida os dadosfornecidos pelas demais fontes. Em primeiro lugar, a expedio descrita por ele abrangiaexclusivamente uma frota de canoas, estando portanto os tripulantes equipados para um combatemartimo (combate a alguma distncia, por meio de arcos e flechas). Em segundo lugar, reconhecvel o lapso narrativo daquele cronista: sabe-se, pela gravura relativa ao acampamentode retorno, onde foram sacrificados os prisioneiros feridos gravemente, que pelo menos algunsguerreiros tupinamb se encontravam munidos de tacape.[65] Observam-se nitidamente nessagravura dois tacapes, sendo que em um deles visvel at a ornamentao. Portanto, no podemsubsistir dvidas, em nossos dias, quanto funo de arma de choque desempenhada pelo tacapeno equipamento guerreiro dos tupinamb. Somente seria preciso admitir que ela eracomplementada, no combate, por outros recursos tcnicos (como as armas de tiro, usadas comestes fins especiais: de choque; e a capacidade fsica dos guerreiros na luta corporal).

    As referncias ao manejo e aos efeitos destrutivos do tacape so bem pobres. Cardimqualificava tais armas como cruis porque no do ferida, mas pisam e quebram a cabea de umhomem sem haver remdio de cura.[66] Esta informao corroborada por Brando e porGabriel Soares. De acordo com o primeiro autor, os tacapes seriam espadas curtas de um paupesado e forte, que desbaratam e pem por terra qualquer parte do corpo aonde assenta o golpe.

  • [67] Gabriel Soares trata especificamente do ataque: para o que vo apercebidos de uns paus, feio de arrochos, com uma quina por uma ponta, com o que da primeira pancada que do nacabea ao contrrio, lhe fazem em pedaos.[68] Lry observou a destreza com que os tupinambmanejavam os tacapes[69] e descreveu-os da seguinte maneira: afiado como um machado,cortando como este por ser de madeira dura e pesada como o bucho. E so to hbeis, quandoenraivecidos, no manejo do tacape, que dois de nossos mais destros espadachins teriamdificuldade em haver-se com um tupinamb.[70] Apesar da pobreza das indicaes especficas,essas fontes salientam duas coisas: 1) os tacapes dos tupinamb ocasionavam efeitos comparveisaos de qualquer outra espcie de clava ou de maa, apesar da matria-prima de que eles eramfeitos. Por isso, no combate corpo a corpo eles se tornavam realmente armas perigosas eeficientes; 2) a habilidade dos tupinamb no manejo dessa arma de choque devia ser aprecivel,pois mereceu a ateno e o reconhecimento dos cronistas, acostumados ao emprego das armas dechoque europias, de transporte mais fcil, de manejo mais simples e superiores quanto capacidade destrutiva.

    e. As armas de proteo

    Os tupinamb conheciam dois tipos de arma de proteo: o escudo, utilizado como meio de

    proteo pessoal pelos guerreiros, e a paliada, por cujo intermdio conseguiam algumasegurana coletiva contra as armas de tiro dos inimigos, seja durante o ataque a grupos locaisadversrios, seja na defesa dos prprios grupos locais. Como armas defensivas, os tupinambsomente possuam escudos redondos, geralmente de couro de tapir, de madeira leve ou de casca.Esses escudos eram comumente pintados de vrias cores ou guarnecidos de penas de caninds.[71] Brando informa que as rodelas, que tambm consigo levam, so grandes e pintadas, feitasde um pau leve, bastante a lhes cobrir todo o corpo, com que se reparam das flechas dosinimigos.[72] Thevet confirma esta informao: a terceira pea do armamento o escudo, queusam os ndios na guerra. muito comprido e feito de peles de um animal, cuja cor igual dasvacas, todavia diverso no tamanho.[73] Conforme j indiquei, as gravuras de Thevet e de Lry,que ilustram cenas de combate, possuem um valor etnogrfico muito reduzido; em duas delas (cf.gravuras 11 e 12), os escudos so representados, sem que se possa julgar, no entanto, se eram ouno to grandes como o afirmam Brando e o prprio Thevet. Quanto funo defensiva da arma,os cronistas que a ela se referem confirmam a informao de Brando.[74] Alm disso, cumpreressaltar que ofereciam alguma segurana efetiva contra as armas aborgenes de tiro: Thevet, pelomenos, observa o seguinte: esses escudos so to fortes e slidos quanto os barceloneses, demodo que resistem a um tiro de arcabuz, e, conseqentemente, a armas menos poderosas.[75]

    Mtraux reconstruiu os dois tipos de paliada dos tupinamb: as empregadas durante o ataquea grupos locais inimigos e as construdas como meio de defesa dos seus prprios grupos locais.Quanto primeira, escreve: quando os tupinamb assediavam uma aldeia, construam bem pertodela uma paliada com ramos de rvores e com saras. Eles impediam assim toda espcie de stioe ficavam ao abrigo de suas flechas. Se eles fossem surpreendidos por um bando de inimigossuperiores em nmero, eles se entrincheiravam detrs de uma fortificao anloga.[76] Apaliada construda em torno das malocas dos tupinamb vem representada em uma das melhoresxilogravuras de Staden (cf. figura 5). Utilizando as informaes fornecidas pelas fontesquinhentistas e seiscentistas, eis como Mtraux restabeleceu etnograficamente o segundo tipo defortificao:

  • [...] as aldeias dos tupinamb situadas nas proximidades de tribos inimigas eram protegidascontra toda agresso por uma paliada dupla. A cerca exterior era formada de grossas estacaspontudas, fixadas na terra a certa distncia umas das outras, mas a intervalos suficientementeprximos para impedir que algum se introduzisse entre eles. A segunda cerca elevava-se a 20 ou30 palmos em torno da primeira. Compunha-se de troncos de palmeiras fendidos, apertados unsaos outros de modo a no deixar nenhuma abertura, exceto estreitas seteiras para as flechas dosarqueiros. Esta paliada tinha a altura de uma toesa e meia e formava ngulos reentrantes esalientes que permitiam surpreender o inimigo de flanco. No caso de ataque iminente, ostupinamb enterravam cunhas de madeiras pontudas ao alcance das flechas da fortificao.[77]

    Estas fortificaes, erguidas principalmente nas povoaes localizadas perto de tribosinimigas,[78] constituam um abrigo relativamente seguro pelo menos quando os atacantesdispunham de um equipamento militar do tipo do que os tupinamb possuam. Por isso,Nordenskild associou, como foi visto acima, o uso dos gases nocivos s condies de seguranacriadas por semelhantes fortificaes. Adiante procurarei mostrar, entretanto, que esta no era anica tcnica, conhecida e praticada pelos aborgenes, de desalojamento dos inimigos sitiados.

    d. Acessrios do equipamento guerreiro

    A anlise precedente incidiu sobre os aspectos formais e funcionais das armas que

    integravam o equipamento guerreiro dos tupinamb; aparentemente, o assunto parece esgotado:todas as armas tribais (de tiro, de choque e de proteo) foram descritas e, medida do possvel,referidas s suas formas manuais de aplicao. Todavia, seja-me permitido fazer uma pergunta:dando-se ao guerreiro tupinamb um arco, algumas flechas, um tacape, um escudo etc., ele sesentiria militarmente equipado para a guerra? bvio que no. Existiam outros elementos,tambm incorporados ao equipamento guerreiro tribal, dos quais dependia o sucesso militar dosguerreiros. Entre eles preciso contar: as insgnias guerreiras; os instrumentos musicais, quandoempregados com finalidades guerreiras; alguns processos mgicos, associados guerra; e, porfim, a utilizao de trofus. Esses elementos vinculavam-se de tal maneira s atividades dosguerreiros que impossvel negar-lhes uma funo de ordem instrumental, de carter tcnico, porcujo intermdio eram alcanados certos objetivos durante as expedies guerreiras ou no decorrerdos combates.[79] Infelizmente, esta parte do equipamento guerreiro dos tupinamb foi poucopenetrada pelos europeus. Escapou-lhes quase que por completo o significado dos artefatos(inclusive das armas descritas acima) empregados pelos guerreiros e dos comportamentos poreles observados nas expedies guerreiras. Nada impede que se tente coligir o que possvelsaber a respeito; nesta parte do trabalho me limitarei, porm, anlise das insgnias guerreiras,dos instrumentos musicais e da utilizao dos trofus. Os processos mgicos associados guerrasero naturalmente examinados na parte relativa organizao das expedies guerreiras.

    Algumas gravuras das obras quinhentistas e seiscentistas revelam que os tupinambguerreavam ornamentados: o combate constitua uma situao propcia ostentao dos diferentesadornos masculinos.[80] Em conjunto, os textos dessas obras comprovam que a pintura do corpo,os adornos e as incises traduziam, de maneira simblica, o valor pessoal e os poderescarismticos de que estavam dotados os contendores, inclusive como e enquanto guerreiros. Tais

  • smbolos correspondiam ao reconhecimento pblico de capacidades pessoais, demonstradas demodo notrio em determinadas situaes por seus portadores; todavia, impossvel descobrirneles um significado especial, capaz de refleti-los como insgnias guerreiras. Por isso, Mtrauxescreve o seguinte a respeito: parece que os chefes tupinamb, cuja autoridade era mnima, nose distinguiam dos outros guerreiros por insgnias particulares e o mesmo fato pode ser assinaladorelativamente a todas as demais tribos tupi-guarani, com exceo dos chiriguano.[81] Apenas emum sentido lato seria possvel encarar os adornos ou certas peculiaridades da personalidade doscombatentes como insgnias guerreiras. Staden, por exemplo, informa: enfeitam-se com penasvermelhas como sinal identificador frente aos contrrios.[82] Explicao correspondente atribuda ao tipo de tonsura: tanta a variedade que tm em se tosquiarem, que pela cabea seconhecem as naes:[83] o modo de pentear o cabelo diferente para os homens, para com elese distinguirem as tribos.[84] Contudo, as fontes insinuam que mesmo assim havia uma inflexoparticular desses valores, denotativa da situao enfrentada pelos guerreiros. Segundo Brando,atravs dos ornamentos de pena para a cabea procuravam amedrontar os inimigos.[85] Umaassociao de carter mgico explicaria por sua vez a tonsura, dando-lhe uma funo correlata dos ornatos de penas.[86] E mesmo ornamentos como o tembet, assinalados como ndices deprestgio pessoal,[87] exprimiam a preocupao de impressionar o inimigo; Gabriel Soares pelomenos afirma que se submetiam dolorosa operao por parecer temerosos a seus contrrios.[88]

    A escassez de informaes no impede que se vislumbre a existncia de uma correlao entreos adornos masculinos e o comportamento dos guerreiros diante dos inimigos. Como atributos dapersonalidade masculina, interferiam nos combates, como em outras situaes enfrentadas peloshomens. Mas, provvel que a vigncia de significados especiais alargasse, nessas ocasies, ombito dentro do qual eles podiam determinar o curso das aes masculinas na sociedadetupinamb.

    Em sua anlise dos instrumentos musicais dos tupinamb, Mtraux anota somente a funoblica do tambor: o tambor era conhecido pelos tupinamb antes da chegada dos europeus;Thevet e Soares de Souza referem-se a ele como um acessrio indispensvel a toda expediomilitar.[89] Os relatos dos cronistas sugerem, no entanto, que os demais instrumentos de msicados tupinamb partilhavam da mesma funo. Gabriel Soares, por exemplo, informa o seguinte:os roncadores levam tamboril, outros levam buzinas, que vo tangendo pelos caminhos;[90] nomomento do assalto, faziam com isso [com gritos] e com suas buzinas e tamboris grandeespanto.[91] Staden confirma o informante portugus: assaltam, sob grande gritaria, batendo osps ao solo e soprando em instrumentos, que fazem de cabaas.[92] Coube a Lry, porm,fornecer a descrio mais minuciosa:

    [...] tanto no momento da partida como ao levantarem acampamento nos lugares onde pousam,surgem indivduos armados de cornetas da grossura de um obo e de quase um p e meio delargura na extremidade inferior, a que chamam inybia. Esses indivduos tocam no meio dastropas para lhes dar coragem e excitao. Outros carregam pfanos e flautas feitas de ossos dosbraos e pernas dos inimigos devorados e no cessam tampouco de tocar durante todo ocaminho, incitando o bando guerreiro a matar e devorar os adversrios contra os quais se atiram.[93]

  • O quadro de informaes completado por Thevet, que se refere ao uso dos mesmosinstrumentos na marcha do retorno.[94] preciso salientar que essas informaes so coerentescom a documentao iconogrfica deixada pelos cronistas; nas gravuras que ilustram os livros deStaden, Thevet e Lry reconhecem-se, de fato, esses instrumentos, nas mos dos guerreiros emluta. Pelas observaes de Lry, confirmadas por Thevet,[95] verifica-se que a prpria funoblica dos instrumentos musicais dos tupinamb no passou desapercebida aos olhos dos brancos.

    Os dados expostos sugerem tambm qual seria a funo dos trofus nas expediesguerreiras. Os ossos dos inimigos sacrificados ritualmente ou mortos em combate tornavam-seinstrumentos musicais e eram empregados como tcnica de intensificao do nimo belicoso doscombatentes. Alm disso, os dentes desses inimigos, ordenados em colares, constituamornamentos ostentados pelos guerreiros em pugna.[96] Lry descreve como irritavam eameaavam os adversrios, acenando-lhes com tais trofus: e mostrando-se mutuamente os ossosdos prisioneiros que haviam comido e os colares de dentes de mais de duas braas decomprimento que alguns traziam pendentes no pescoo; e o espetculo dessa gente era horrvel.[97]

    Embora no permitam concluir muito a respeito, os dados expostos mostram que osornamentos, os instrumentos musicais e alguns trofus integravam-se obrigatoriamente aoequipamento militar dos tupinamb. Na expedio guerreira desempenhavam funesespecficas, servindo quer para ressaltar o valor pessoal dos guerreiros empenhados emcombates, quer para intensificar o nimo belicoso dos combatentes, quer para provocar a ebuliodos dios intertribais. Em vista disso, patenteia-se o que tais elementos significavam para ostupinamb, como parte de sua tecnologia guerreira: meios de complementao das armas deataque e de defesa, graas aos quais conseguiam elevar a eficincia individual e coletiva dosguerreiros.

  • 2. A ORGANIZAO DAS EXPEDIES E A TIVIDADES GUERREIRAS

    O estudo das expedies guerreiras pe em evidncia como os tupinamb canalizavamsocialmente as energias e as habilidades pessoais dos guerreiros e dos seus colaboradores,compensando atravs de tcnicas sociais de ordenao das suas atividades o alcance limitado doarsenal blico. verdade que se poderia considerar a eficincia dos instrumentos de combatedos tupinamb, e dos processos operativos ligados ao uso deles, de outro ponto de vista. Pelo quese sabe, os tupinamb estavam, ao menos nas regies do Brasil onde entraram em contacto com oseuropeus, no mesmo nvel de civilizao que as demais tribos aborgenes. O grau de eficincia dosistema militar que possuam seria, pois, algo relativo, tanto quanto o das tribos aborgenes,resultando da equivalncia tcnica dos combatentes.[98] Os contactos com os brancosexemplificam como o rompimento desvantajoso dessa equivalncia tcnica teve efeitosdesastrosos para os tupinamb e demais sociedades aborgenes. Contudo, parece-me patente queeste segundo ponto de vista no exclui o primeiro: implica-o, ao contrrio, j que s se comparacom resultados positivos de unidades socioculturais precisamente conhecidas.

    A anlise das tcnicas sociais atravs das quais os tupinamb imprimiam uma configuraosocialmente definida s atividades dos guerreiros e dos seus colaboradores envolve duas espciesde problemas. Em primeiro lugar, preciso considerar como o sistema militar dos tupinamb seintegrava ao sistema organizatrio tribal. Como se sabe, em nenhuma situao a guerra constituium fim em si mesma;[99] os fins da guerra so determinados socialmente: cada sociedade possuipadres ticos prprios de relaes com estranhos,[100] nascidos e desenvolvidos em funo decondies reais de existncia social, aos quais se vinculam os ideais coletivos de guerra e de paz.Por isso, a organizao e o funcionamento do sistema militar dependem dos objetivos atribudos guerra em cada sociedade. Antes mesmo da investigao cientfica, a reflexo filosfica j puseraem evidncia a conexo existente entre as formas de estratificao social e o aparecimento de umgrupo permanente de guerreiros (em um sentido mais restrito, o exrcito). Plato, por exemplo,ligava a especializao militar competio das sociedades humanas no plano ecolgico[101] econsiderava os indivduos especializados na arte da guerra como artesos da salvao daptria.[102] O princpio social integrativo, pressuposto nesta explicao, foi formuladosociologicamente na conceituao clssica de Spencer: o exrcito a nao mobilizada e anao o exrcito em disponibilidade;[103] e continua a ter vigncia terica, pois Park apenasretoca esta conceituao, encarando o exrcito como uma sociedade dentro da sociedade.[104]Contudo, os resultados da investigao sociolgica permitem colocar a questo em termos maisamplos. A comunidade de guerreiros tanto pode constituir uma ordem social cerrada, supondoento uma socializao completamente autnoma e fechada para o exterior, quanto poderepresentar uma ordem social aberta, vinculada de maneira varivel e relativa aos tiposcorrespondentes de associao local poltica.[105] Isto mostra a convenincia terica de seconsiderar o sistema militar como uma esfera dependente da sociedade: torna-se possveldescobrir, assim, em que sentido se processa, em funo dos objetivos sociais da guerra, aintegrao das atividades dos guerreiros em segmentos sociais caractersticos e, atravs destes, aosistema organizatrio da sociedade como um todo.

    Em segundo lugar, necessrio analisar a estrutura e o funcionamento desse segmento socialna sociedade tupinamb. Isto , investigar o prprio sistema militar daqueles aborgenesenquanto e como um conjunto de atividades especficas, coordenadas socialmente. Se os objetivossociais da guerra determinam de fato a extenso e o carter das associaes de guerreiros, estasdevem refletir, em sua organizao, as conseqncias de semelhante vinculao em cada situao

  • particular enfrentada por seus membros. Rousseau exprimia-se com penetrao quando asseveravaque a relao das coisas e no dos homens que constitui a guerra.[106] As atividades doscomponentes dos grupos de guerreiros quanto durao, s propores e ao carter mais oumenos destrutivo desencadeiam-se e configuram-se em torno das relaes reais que articulamumas s outras as sociedades humanas. Encarando-se o objeto de estudo sob este prisma,compreende-se melhor por que so mantidos, em sociedades estrutural e funcionalmente todistintas, rgos de ataque e de defesa aptos a funcionar a qualquer momento, sob presso dascircunstncias, quaisquer que sejam os ideais e as disposies coletivas de viver em paz.[107]Nesse sentido, o conhecido aforismo de Napoleo, segundo o qual um exrcito precisa estar emestado de combater em todo dia e a qualquer hora,[108] to verdadeiro para as sociedadesprimitivas quanto para as sociedades civilizadas. Aquele ponto de vista tambm evidencia quea anlise da funo da guerra se coloca acima do plano imediato das operaes militares e dassuas conseqncias mais ou menos destrutivas, embora a investigao incida, no caso,predominantemente sobre o curso e as finalidades restritas das mesmas. Morte e destruio soefeitos inevitveis da guerra; em escala proporcionada composio do exrcito e ao nveltcnico do arsenal militar empregado, acompanham sempre todas as manifestaes histricasconhecidas da contenda armada. Todavia, essa , meramente, uma contingncia e um meio daguerra; sua funo, no quadro das relaes reais, consiste em promover a distribuio dassociedades humanas no espao, de maneira a garantir o domnio coletivo das fontes desubsistncia nele existentes, e a preservar ou fortalecer as barreiras sociais que o simbolizam.[109] preciso, no entanto, saber como isto assegurado, como se constituem e como operam osrgos responsveis pela segurana de uma sociedade.

    As linhas precedentes delineiam o plano a seguir no estudo das expedies guerreiras nasociedade tupinamb. Primeiro, ser estudada a integrao da guerra na sociedade tupinamb:como a guerra era motivada socialmente e quais eram os seus objetivos, e como se desenvolvia oritual guerreiro. Depois, sero analisados os rgos de ataque e de defesa daquela sociedade o bando guerreiro, a organizao para o combate, o retorno ao grupo local (retirada, numsentido mais restrito). Como fica evidenciado pela discusso acima, semelhante tratamento dofenmeno no implica nenhuma concepo atomstica da guerra; ao contrrio, ele corresponde necessidade de descobrir e explicar os laos de interdependncia existentes entre a organizaosocial e o sistema guerreiro dos tupinamb.

  • A. A guerra na sociedade tupinamb

    A anlise sistemtica da funo social da guerra na sociedade tupinamb s poder ser feitaadiante (cf. o Livro Segundo deste trabalho), pois ela depende de um conhecimento mais ntimo dofenmeno. Nesta parte da monografia, apenas ser examinado o aspecto da mesma subordinado srelaes reais. Alguns especialistas designam-no com a expresso funo ecolgica da guerra,levando em considerao a parte tomada pela guerra na adaptao das sociedades humanas aomeio natural circundante. Contudo, parece-me desnecessrio complicar de tal modo aterminologia sociolgica: o conceito de funo social abrange naturalmente esta esfera darealidade. Alm disso, basta que se tome o cuidado de referi-la como funo social da guerra noplano ecolgico para se obter uma particularizao conceptual suficientemente clara.

    O estudo dos aspectos da guerra ligados ao papel por esta desempenhado na configurao doequilbrio bitico da sociedade tupinamb revela: a) em que sentido a interdependnciaeconmica dos membros de um mesmo grupo local ou de grupos locais aliados contribua paracriar condies favorveis ao estabelecimento de laos de solidariedade social e emergncia deaes coletivas de envergadura; b) os limites dentro dos quais a rotinizao das atividadesguerreiras exprimia-se atravs da atuao permanente dos fatores tribais condiciona