a formacao da culinaria brasileira publifolha

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A Formao da Culinria BrasileiraCarlos Alberto Dria

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Para Nina Horta, que no acredita em fronteiras. Para Paulo Martins, que dilatou as fronteiras da Amaznia.

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Apresentao

O que a cozinha brasileira? Sabemos e no sabemos. Se pedirmos a algum que a defina, ouviremos como resposta a enumerao de alguns pratos que exemplificam o que ela . No se trata, porm, de falta de conhecimento histrico. Falta-nos o conceito que unifique a coleo de receitas ou pratos rememorados. No de estranhar. Afinal, a histria s tem sentido de uma perspectiva atual e cosmopolita, e a cozinha brasileira, ao contrrio, parece coisa do passado. No entanto, no to velha assim. S se comea a falar em cozinha brasileira, no sentido atual, aps o movimento Modernista, na primeira metade dos anos 1920. Na mesma poca em que se descobriu o barroco como estilo arquitetnico, armou-se o discurso sobre a culinria brasileira um estilo que fruto do amlgama dos modos de comer7

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de ndios, negros e brancos. Depois, esse modelo de explicao difundiu-se pela indstria turstica de tal sorte que, hoje, as pessoas se movimentam pelo pas como se fossem cata de um pedao dessa cozinha. Na verdade, a cozinha brasileira nunca se apresenta integrada e, sim, como um conjunto de cozinhas regionais espalhadas pelas regies sociopolticas em que o ibge (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica) dividiu o Brasil. O que procuraremos mostrar o quanto de discurso falacioso h nessa abordagem, especialmente quando ela deixa de lado a geografia e os ingredientes e produtos dessa cozinha, enraizados numa biodiversidade to rica e em uma histria que pede para ser contada de outro modo. Assim, enquanto a indstria do turismo nos diz que o tpico do Rio Grande do Sul o churrasco, ns dizemos que o churrasco um hbito nacional, graas histria do Brasil pastoril; mais tpico do Rio Grande do Sul o amargo do mate, que o liga ao Paran, ao Mato Grosso, ao Uruguai e Argentina. Ao traar uma histria comprometida com o presente, o que perseguimos o percurso da criatividade culinria do povo brasileiro, ou seja, a experincia gastronmica que empreendeu ao longo do tempo gerando essa cozinha inzoneira de que, de alguma forma, nos orgulhamos. Mas, como na filosofia, que nos ensina que onde s um livre ningum livre, na culinria, de modo anlogo, onde no h8

liberdade no prospera a gastronomia. Isso quer dizer que nem sempre a liberdade de criao esteve presente em nossa histria por isso mesmo, o colonialismo foi um terreno estril para a construo gastronmica moderna. Sob o escravismo no prospera a expresso do esprito de um povo. Interessante que nos grandes centros urbanos, onde forte a presso das culinrias do mundo todo, vivemos uma nova fase talvez defensiva de celebrao da culinria brasileira. Com esforos prprios de estilizao, muitos chefs inovadores buscam situar novamente essa tradio no imaginrio e nos desejos de um pblico consumidor caracteristicamente vido por novidades. O estranho que isto ocorre quando pesquisas indicam que o hbito de consumo domstico desapareceu. Numa enquete realizada nas regies metropolitanas, coordenada pela antroploga carioca Lvia Barbosa, as pessoas mencionaram espontaneamente 130 diferentes itens que compem a sua dieta e, dentre eles, viu-se que o consumo dos itens regionais muito baixo. Tapioca e baio de dois, por exemplo, aparecem com 1,4% e 5,4% de consumo em Fortaleza; polenta, 4,1% em Porto Alegre e 0,3% em So Paulo. A cidade com maior consumo de itens relacionados a sua cozinha tradicional Recife, com 57,1% para o cuscuz, 10,2% para o queijo de coalho, 55% para o inhame, 36,7%9

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para a macaxeira e 6,3% para a batata doce.1 Ora, se comer brasileira se tornou marginal, qual ento a diretriz sobre o que levamos boca? Se no estamos mais enraizados numa culinria brasileira, s podemos pensar a nossa alimentao como um captulo do que se passa no mundo, onde comer se tornou uma aventura temerria. Cada garfada est envolta naquilo que um jornalista norte-americano chamou de conspirao da complexidade cientfica; isto , praticamente tudo o que consumimos foi produzido por uma poderosa mquina que, nos eua, movimenta 32 bilhes de dlares em marketing e traz luz, anualmente, cerca de 17 mil novos produtos, orientados pela confusa ideologia do nutricionismo. Esta ideologia transformou comida em nutrientes; e quando a nfase est na quantificao dos nutrientes contidos nos alimentos, qualquer distino qualitativa [...] tende a desaparecer.2 As cozinhas nacionais se perfilam entre as fontes de prazer ameaadas pela ideologia nutricionista. O vatap faz bem1 Lvia Barbosa, Feijo com Arroz e Arroz com Feijo. O Brasil no Prato dos Brasileiros. Em: Horizontes Antropolgicos, ano 13, n 28, jul/dez de 2007. Porto Alegre: Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2 Michael Pollan, Em Defesa da Comida. Rio de Janeiro: Intrnseca, 2008; p. 39.

ou mal sade? O nutricionismo combate hbitos pelo temor moderno diante da incorporao de alimentos, como se fossem fontes de morte e no de vida. O que se busca atravs deste pequeno livro aproximar o leitor do Brasil comestvel, procurando mostrar os seus contornos, sem preconceitos. Os pr-conceitos, no nosso caso, so aqueles que nos dizem que, na nossa histria, ndios, negros e brancos construram, num mesmo cadinho e num s amlgama, a cozinha brasileira que se expressa em centenas de receitas. A ideia dessa miscigenao culinria, que se materializaria num cardpio sinttico e partilhado pelos brasileiros, muito simplista para uma realidade to complexa. Exploraremos um pouco dessa complexidade, libertando-a do enfoque exclusivamente tnico, que responsabiliza ndios, negros e portugueses pelo que comemos ou deveramos comer para nos sentir brasileiros. Para Entender um Sistema Culinrio Nacional Quando uma nao se constitui, vrios sistemas simblicos se articulam, materializando o seu conceito. O desejo de ter uma literatura, uma pintura, uma msica ou uma culinria funciona como diretriz do trabalho criativo; a ele se dedicam especialmente os intelectuais, peneirando o que entendem ser a cultura do povo.11

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As naes modernas so construes polticas muito elaboradas. Elas foram arquitetadas no bojo do processo de formao dos estados surgidos a partir do sculo 19, combinando, quase sempre, um territrio, uma lngua, um exrcito, tradies partilhadas pela populao, religies e, claro, uma determinada culinria. Ernest Renan,3 um dos principais tericos do processo de formao nacional, acrescentou como ingrediente fundamental a vontade da populao de pertencer a esse agrupamento. Em termos simples: todo dia eu acordo me sentindo brasileiro, ou espanhol, ou tcheco etc. Isso porque falo uma lngua, como determinada comida, sei como meus compatriotas se comportaro, e assim por diante. Crticos modernos, no entanto, frisam o carter de imposio no desenho de boa parte das caractersticas da nao. Uma lngua lngua nacional na medida em que se sobreponha s demais no mesmo territrio, tornando-se obrigatria no sistema de ensino. As lnguas preteridas passam condio de dialetos, de tal sorte que como dizem muitos linguistas uma lngua sempre um dialeto que possui exrcito prprio.3 Ernest Renan, Quest-ce quune Nation?. Em: Quest-ce quune Nation? et autres crits politiques. Paris: Imprimerie Nationale, 1996.

O mesmo acontece com as religies, com as tradies e com a culinria. Mas o verdadeiramente importante que essa unidade, inicialmente voluntria ou imposta, acaba se apoiando numa forte vontade de obedecer, que caracteriza o estado moderno. Do ponto de vista da culinria, podemos imaginar que se forme, coerentemente, a vontade de comer certas coisas, feitas de determinadas maneiras. Na Europa do sculo 19, observamos claramente essa unificao de velhas tradies, pois as 18 potncias europeias grandes e pequenas estavam longe de coincidir com as fronteiras tnicas dos povos ali existentes por volta de 1870. Muito especialmente se podia observar isso na Europa oriental, onde os imprios russo, austraco e otomano se estendiam sobre um confuso amontoado de nacionalidades. A Alemanha, por exemplo, inclua os poloneses, holandeses, lorenenses de fala francesa, mas no os alemes da ustria ou da Sua. No caso especfico da Itlia, foi necessrio partir do nada para resolver o problema resumido por DA zeglio na seguinte frase: Ns fizemos a Itlia, agora temos de fazer os italianos. Ora, os ingredientes para inventar um povo estavam em tudo aquilo que tinha uma longa histria que se perde na noite dos tempos; da a necessidade de inventar, de trazer o velho para o presente para desenhar a nao moderna. longo o tempo da culinria. Por isso difcil acompanhar13

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o seu processo de formao. Sabemos quase nada, por exemplo, sobre como comiam as pessoas do povo na Idade Mdia. Os registros histricos so restritos aos hbitos das elites; mas sabemos que existiam vrios padres alimentares e, por isso, possvel falar num cardpio de elite e outro(s) popular(es). Um dos livros mais importantes de culinria moderna o L Arte di Ben Cucinare (1662), de Bartolomeo Stefani, cozinheiro da famlia de Otavio Gonzaga, Marqus de Mantova, na Itlia.4 Nesse livro de culinria barroca, consta claramente a separao entre o cardpio di cavalieri e altre persone di qualit e o cardpio da tradizione popolare mantovana. Em geral, as tradies anteriores ao sculo 18 sofrem dessa dualidade que nos mostra mais o comer das elites do que o da plebe, sendo que as classes altas europeias compartilharam muitos hbitos alimentares, conferindo-lhes ainda cedo uma dimenso internacional, em contraste com as cozinhas regionais, baseadas em diferentes histrias comunitrias. Por essa razo, alis, que depois do perodo napolenico o mundo todo passou a comer francesa, j que, no sculo 19, Paris era a capital do mundo burgus.4 Bartolomeo Stefani, Cucina mantovana di principi e di popolo. Mantova: Cassa Rurale ed Artigiana di Castell Goffedo, 1991.

Diferentemente de imprios antigos, como o romano ou o chins, as naes modernas contaram com o concurso das suas burguesias para limitar o poder das aristocracias, submetendoas a estruturas polticas que incorporavam os demais segmentos de classe dominante (os prprios burgueses) e as classes subalternas todos sob os ditames da Revoluo Francesa. Pois exatamente quando se necessita construir uma nova hegemonia que se torna crucial transacionar os contedos culturais do novo pacto. compreensvel que seja assim. No plano mais alto de integrao simblica, vai se criando uma mitologia sobre a origem dos tempos nacionais atravs de um processo longo, cheio de idas e vindas, onde se seleciona aquilo que realmente conta para a unidade; dessa forma, ndios, negros, mulheres, imigrantes excludos da grande poltica e das prticas sociais mais importantes vo sendo arranjados no relato histrico de modo a cimentar o todo num corpo nico. A cuisine bourgeoise (cozinha burguesa) francesa um exemplo bem sucedido desse processo. Um simples cozido o pot au feu esteve presente em todo o territrio da Frana, assim como de outros pases europeus, desde tempos imemoriais.55 Julia Csergo, pot-au-feu. Convivial, Familial: Histoires dun mythe. Paris: Editions Autrement, 1999.

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Este produto, que aparece sob diversas formas e combinaes de matrias-primas, ao mesmo tempo uma soluo culinria camponesa, com suas dimenses gustativas familiares, e uma expresso de status gastronmico que reveste a cozinha rural a partir do sculo 19, ganhando lugar na prpria literatura internacional como um prato que fez a Frana. com base no enraizamento na cultura popular camponesa que veremos o desenvolvimento conceitual do pot au feu como prato nacional, conforme os vrios tratamentos que receber na literatura culta, desde o grande cozinheiro Taillevent e especialmente a partir do sculo 18. Os enciclopedistas faro o elogio do bouillon, assim como Brillat-Savarin, que ver nele a qumica dos sucos e dos sumos, tendo merecido tambm tratamento destacado na obra do chef e fundador da alta cozinha francesa, Antonin Carme. Em 1789, surge um fascculo annimo denominado La poule au pot ou premire Cause du Bonheur public [Cozido de Galinha, ou Razo Primeira da Felicidade Geral] e, em 1849, Sbastien Rhal lana um apelo unidade dos franceses, divididos pela revoluo de 1848, propondo a poule au pot como forma de contrato social. em torno de pratos e conceitos culinrios como esse que vo se agregando uma infinidade de receitas; a partir de fins do sculo 19, so essas receitas que permitem aos cozinheiros16

franceses falarem na cozinha burguesa como um referencial forte do modo de ser francs. *** Nos pases de passado colonial raramente se deu esse processo de construo de smbolos culinrios com a capacidade de unificar toda a populao em torno de uma ementa. A razo disso que nem sempre as respectivas burguesias conseguiram construir um terreno cultural comum com os demais estratos e classes da populao. Na verdade, no quiseram se confundir com as populaes nativas, mantendo como referencial de identidade a origem europeia. Atravs do acesso controlado cultura letrada, criaram uma verdadeira dualidade cultural. Assim, ndios, negros e europeus raramente foram reunidos sob os mesmos signos. Religio de negro, cozinha de bugre, eram modos de falar que expressavam a excluso. A dualidade armou-se de modo muito claro. No Brasil, a partir da corte de dom Pedro I, o francs se tornou a lngua das elites. Falava-se francs, escrevia-se em francs, pensava-se em francs e comia-se francesa. Esses hbitos se consolidaram no Rio de Janeiro e se difundiram pelas casas-grandes dos engenhos. Durante o sculo 19, depois da Independncia, os jornais17

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cariocas publicavam anncios de oferta e procura de cozinheiros franceses, aptos a realizar cardpios domsticos baseados nessa tradio. Do mesmo modo, em cafs, penses, hotis e restaurantes frequente a citao dessa culinria como garantia de excelncia. Ainda hoje, as grandes portas de entrada das influncias externas so as grandes cidades brasileiras, como So Paulo e Rio de Janeiro. Nessas cidades tem livre trnsito uma cozinha internacional um amontoado de heranas que j perderam os cacoetes de origem. Mas na mesma poca em que esse processo metropolitano comeou, e no muito longe do Rio (nos sertes de So Paulo), se comia sem qualquer refinamento: no se usava o garfo e o que vinha mesa era mais prximo da comida de bugre do que de qualquer coisa que pudesse remeter cultura europeia cortejada. Uma grande exceo nesse quadro de formao burguesa o Mxico. No sculo 20, o pas desembarcou em outro tipo de sociedade. Basta observar os painis de Diego Rivera para se perceber a profunda identidade com a cultura indgena, ou seja, como a burguesia criolla representada como classe nacional, sem necessidade de se diferenciar em relao ao passado indgena nem de se esconder atrs da tradio francesa. Essa unificao simblica se deve, em grande parte, dimenso popular da Revoluo de 1910 e aos governos que se18

sucederam, de olho no campesinato que emergiu para a cena poltica. No plano culinrio deu-se algo semelhante. Hbitos alimentares com dimenses de culinria nacional, claramente decalcados em prticas pr-colombianas, permanecem at hoje.6 Num mundo globalizado, essa cozinha mexicana um orgulho nacional de exportao, ainda que o filtro do gosto internacional elimine seus elementos mais originais. Mas as culinrias nacionais no se resumem a conjuntos de receitas partilhadas. Elas incluem dimenses que no so visveis nas receitas, como tabus alimentares; ideias sobre a nobreza de alguns ingredientes e preferncias amplas; idealizaes sobre cardpios relacionados a vivncias especiais (como festas); tcnicas de tratamento das matrias-primas etc. Assim, tambm intervm na culinria elementos que so rigorosamente extraculinrios. No vale a pena nos aprofundarmos em discusses tericas sobre essas demarcaes. Basta registrar, sinteticamente, que uma cultura consiste numa multiplicidade de caractersticas que ela tem parcialmente em comum (alis, em nveis diferentes) com as culturas vizinhas ou distantes, das quais, sob outros aspectos, est separada de modo mais ou menos acentuado.6 Teresa Castell Yturbide, presencia de la Comida prehispanica. Mxico: Fomento Cultural Banamex, 1986.

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Esses caracteres se equilibram dentro de um sistema que deve ser duradouro [...]. Para desenvolver certas diferenas [...] as condies so [...] idnticas quelas que favorecem a diferenciao biolgica entre as populaes: isolamento relativo durante um perodo prolongado, limitados intercmbios de ordem cultural ou gentica. Em certo sentido, as barreiras culturais so da mesma natureza que as barreiras biolgicas.7 Desse modo, as fronteiras entre vrias culinrias regionais ou nacionais podem ser definidas a partir de marcadores culturais fortes. Por exemplo, os cubanos tomam cerveja misturada a suco de tomate e os franceses chopp misturado a soda limonada coisas que nos parecem repulsivas. Do mesmo modo, a maior parte dos povos latino-americanos sente repulsa simples meno de se comer abacate com acar, como ns fazemos, pouco contando que, entre ns e os cubanos, haja tanto em comum: as culturas negras, o consumo de carne de porco, de feijes, a religiosidade popular etc. Portanto, a formao dos sistemas culinrios permanece, em geral, um grande mistrio no havendo outro remdio seno interrogar sobre a histria e a cultura de cada povo para tentar iluminar as solues adotadas a respeito de o que comer7 Claude Lvi-Strauss, A Cor da pele Influencia as Ideias? So Paulo: Escola de Comunicao e Artes/usp, 1971; p. 19.

e o que no comer. Entre ns, brasileiros, ideia muito corrente que construmos nosso patrimnio culinrio a partir de contribuies advindas dos portugueses, dos negros escravos e dos ndios. Essa tese tem o carter de um dogma. O que compreensvel: se no foi assim, como explicar a nossa lngua culinria? A Miscigenao deglutiu a Cozinha Brasileira Como vimos antes, vrios so os marcadores culturais que, como em gentica, constituem o dna de uma cultura. O recurso paisagem e sua diversidade, os modos (tcnicas) de cozinhar, a religiosidade, entre outros fatores, podem ser convocados para demarcar o campo de uma culinria. Entre ns, brasileiros, a primeira demarcao erudita foi de natureza tnica. Sempre achamos pertinente a pergunta que hierarquiza a cultura: de onde vem tal ou qual coisa dos ndios, dos negros ou dos brancos? Mas quando Gilberto Freyre publicou CasaGrande & Senzala (1933), ps fim discusso sobre a hierarquia das raas na formao da sociedade brasileira. Sua tese engenhosa, a par de um estilo cativante, foi uma verdadeira revoluo na maneira de compreender a formao do povo brasileiro: a miscigenao de brancos, negros e ndios sob direo da grande propriedade rural legitimou a convico de que ramos mestios por definio.21

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Mas a ideia que Gilberto Freyre apresentou j circulava na cultura brasileira desde a Semana de Arte Moderna de 1922, capitaneada por Oswald de Andrade e Mrio de Andrade. O tema da antropofagia, da deglutio cultural, esteve presente em toda a produo intelectual a partir de ento. Tratava-se, no dizer do poeta Jorge de Lima, de empreender um grande esforo de achamento, isto , de abandonarmos a maneira boc de nos vermos, como se fssemos europeus ou estrangeiros em nossa prpria terra, e acharmos a nossa expresso. O problema da cultura nacional, para os modernistas, era de expresso.8 Na medida em que o achamento da nossa expresso se espraiou como diretriz de procura, chegou-se tambm ao terreno da culinria. Era um terreno indito. Se olharmos as pesquisas anteriores sobre a cultura brasileira, como na obra de Slvio Romero, no encontraremos descries da culinria brasileira. Gilberto Freyre, mais uma vez, foi desbravador. A partir do seu famoso Manifesto Regionalista, de 1926, ele j indicava:8 Correntes estranhas de pensamento, nocivas, desviaram o esprito brasileiro do achamento de sua expresso, de seus ritmos, de suas verdades [...]. As primeiras tentativas de expresso nacional foram, assim, todas elas falsas pelo exagero (Jorge de Lima, Todos Cantam Sua Terra, em: poesia Completa, vol. II, 2 edio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980; p. 370).

Trs regies culinrias destacam-se hoje no Brasil: a baiana, a nordestina e a mineira. A baiana decerto a mais poderosamente imperial das trs. Mas talvez no seja a mais importante do ponto de vista sociologicamente brasileiro. Outras tradies culinrias menos importantes, poderiam ser acrescentadas, com suas cores prprias, ao mapa que se organizasse das variaes de mesa, sobremesa e tabuleiro em nosso pas: a regio do extremo Norte, com a predominncia de influncia indgena e dos complexos culinrios da tartaruga [...] e da castanha, que se salienta no s na confeitaria como nas prprias sopas regionais tudo refrescado com aa clebre [...]; a regio fluminense e nortepaulista, irm da nordestina em muita coisa pois se apresenta condicionada por idnticas tradies agrrio-patriarcais e mais de uma sub-regio fluminense, pelo menos uso farto do acar; a regio gacha, em que a mesa um tanto rstica, embora mais farta que as outras em boa carne [...]. O mais poderia ser descrito, do ponto de vista culinrio, como serto: reas caracterizadas por uma cozinha ainda agreste [...] e nas florestas do centro do pas pela utilizao da caa e do peixe de rio tudo asctica e rusticamente preparado. A influncia portuguesa onde parece manifestar-se ainda hoje mais forte no litoral, do Maranho ao Rio de Janeiro ou a Santos. [...] A influncia africana sobressai na Bahia. A influncia 23

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amerndia particularmente notvel no extremo Norte [...]. Mas como noutras artes, as trs grandes influncias de cultura que se encontram base das principais cozinhas regionais brasileiras e de sua esttica so a portuguesa, a africana e a amerndia, com as predominncias regionais j assinaladas.9

Essa passagem resume o discurso sobre a culinria brasileira, vigente ainda hoje com pequenas variaes. Ele equilibra os componentes do mito modernista o ndio, o negro e o branco suprimindo exatamente a hierarquia real que houve entre eles. As contribuies so tomadas como equivalentes, sem reterem a histria da opresso que marcou o colonialismo e, portanto, o poder seletivo que o colonizador exerceu sobre os colonizados.10 Mas o Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre no foi um manifesto nacional. Ele defendia exclusivamente as cores do Nordeste, procurando mostrar a sua contribuio ampla cultura e economia brasileiras, protestando contra a sua marginalidade9 Gilberto Freyre, O Manifesto Regionalista de 1926: Vinte e Cinco Anos Depois. Em: manifesto Regionalista de 1926. Recife: Regio, 1952. 10 Francisco de Assis Guedes de Vasconcelos, Fome, Eugenia e Constituio do Campo da Nutrio em Pernambuco: Uma Anlise de Gilberto Freyre, Josu de Castro e Nelson Chaves. Em: Histria, Cincias, Sade manguinhos, vol. VIII (2), 2001; p. 319.

poltica; isto , visava ampliar o espao de influncia da regio no seio da nao poca da decadncia da sua principal indstria: o acar. Os regionalismos da Repblica Velha se opunham exatamente ao nacionalismo expresso pela aliana poltica entre So Paulo e Minas Gerais, que dominava o estado brasileiro. S com a Revoluo de 1930 essas tenses em meio s oligarquias iriam cessar. Talvez por isso mesmo, a primeira obra a consolidar a ideia moderna de culinria nacional tenha sido escrita depois dessa diviso intraoligrquica ter sido silenciada politicamente. Cmara Cascudo levou cerca de vinte anos preparando a sua Histria da Alimentao no Brasil, que surgiu na dcada de 1960. O livro de Cmara Cascudo a bblia dos que se dedicam, ainda hoje, ao estudo da culinria brasileira. Toma corpo nele a ideia miscigenista dos anos 20 e 30. Cascudo mostrou, atravs de uma pesquisa de grande flego, feita no Brasil e no exterior, o que compunha originariamente a ementa portuguesa, a ementa indgena e a ementa africana, que se plasmando em vrios pratos e hbitos alimentares poderia ser entendida como o patrimnio culinrio brasileiro. O grande problema que persistiu que as cozinhas dos prncipes e do povo, mais uma vez, no se fundiram numa s cozinha nacional burguesa. Por25

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isso mesmo, foram apresentadas em separado segundo recortes tnicos que encarnavam as classes sociais. Mas o alcance da obra de Cmara Cascudo no pequeno, e ela representa uma quebra com o padro anterior de descrio da cozinha brasileira. Muito antes dele, na dcada de 1870, surgira o primeiro livro que se pretendia pertencente culinria nacional, o Cozinheiro Nacional, de autor annimo. Naquele livro se lia:[...] uma vez que demos o ttulo nacional nossa obra, julgamos ter contrado um compromisso solene, qual o de apresentarmos uma cozinha em tudo brasileira, isto , indicarmos os meios por que se preparam no pas as carnes dos inmeros mamferos que povoam suas matas e percorrem seus campos; aves que habitam seus climas diversos; peixes que sulcam seus rios e mares [...] inteiramente diferentes dos da Europa em sabor, aspecto, forma e virtude, e que por conseguinte exigem preparaes peculiares.11

Desse modo, est claro que o Cozinheiro Nacional representou um esforo de nacionalizao do saber culinrio e, por isso mesmo, pode ser tomado como o marco inicial de formao11 Cozinheiro Nacional. So Paulo: Editora Senac/Ateli, 2008.

de um pensamento autctone sobre o comer entre a elite agrria e os nascentes setores urbanos do pas. O aspecto mais notvel de Cozinheiro Nacional que, enquanto procura transliterar os ingredientes nacionais (animais e vegetais) para o esquema rgido de uma culinria em tudo francesa; enquanto quase uma obra de fico, visto que as suas receitas eram adaptaes imaginativas e no uma coletnea de receitas vivas ou praticveis (salvo raras excees), ele acaba contrastando muito com a obra de Cmara Cascudo, um apanhado histrico e um levantamento etnogrfico de ingredientes e receitas que, aqui e ali, eram ou foram praticadas. Entre as duas obras no h grandes pontos de ligao. claro que a ideia de nao se nutre mais das verses do que propriamente dos fatos. Assemelha-se construo de um mito, e um mito efetivo pelas adeses com que conta. Alm dos produtos intelectuais tpicos como a sociologia e a antropologia , a indstria turstica, especialmente aps a dcada de 1970, cuidou de fomentar o mito culinrio, reforando a ideia de que os recortes regionais do comer, guardando fortes traos tnicos, so mais efetivos do que uma ementa nacional, como aquela cotidiana que se insinua atravs do simples arroz com feijo. Decorreu disso a representao culinria decalcada na27

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diviso sociopoltica do pas, conforme estabelecida pelo ibge (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica) no perodo da ditadura Vargas. O Nordeste foi representado pela culinria praieira, quase sem referncia ao modo de comer no serto; o Norte, pela culinria paraense; o Sul, pelo churrasco gacho, e assim por diante. Ora, o que se exige do mito apenas prestarse celebrao, dar substncia simblica aos ritos e, para isso, pouco se apoia no comer real. O estudo do comer real seguiu um caminho distinto. Partiu da constatao da fome, atravs das pesquisas nacionais sobre sade que tomaram impulso com a experincia bemsucedida de Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro e que acabaram por mostrar um mundo rural que mais se assemelhava a um imenso hospital, sendo o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, a sua personificao dramtica. A Revista do Brasil, atravs dos sucessivos escritos de vrios intelectuais que se reuniam sob a direo de Monteiro Lobato, mostrou ao pas que a fome, a desnutrio e as endemias comiam por dentro o brasileiro. Talvez esta percepo tenha motivado Monteiro Lobato a buscar sistematizar uma dieta conveniente para o povo brasileiro. por orientao sua que a construo do nacionalismo culinrio assume um aspecto prtico, gerando um repertrio consolidado de receitas. Abandonando o terreno histrico surge,28

em 1940, o livro Dona Benta: Comer Bem. O modo como foi escrito curioso. Rubens de Barros Lima, diretor da Companhia Editora Nacional, solicitou a colaborao dos demais diretores e funcionrios que saram cata dos cadernos de receitas de suas mes, avs e tias, alm de conhecidas quituteiras. A seleo das receitas ganhou o nome tomado de emprstimo da obra ficcional infantil de Monteiro Lobato, proprietrio da editora. Dona Benta uma senhora bem-educada que, em tom professoral, ensina aos netos disciplinas como fsica, geografia, histria etc. No caso do livro de receitas, a simptica senhora aparece como quem ensina a cozinhar. No entanto, como sabido, no mesmo Stio do Pica-Pau Amarelo, de onde sai Dona Benta, quem cozinha a negra Tia Anastcia. Desse modo, o ttulo de livro reproduz o imaginrio brasileiro, onde a velha e boa av a mestra, ao passo que o negro suprimido da histria. Dona Benta o primeiro repositrio sistemtico de receitas praticveis e a julgar pelo sucesso estrondoso da obra por dcadas seguidas foi o guia prtico da cozinha que se fazia no Brasil nos moldes do velho ideal de cozinha burguesa. A prpria obra infantil de Monteiro Lobato esteve semeada de referncias culinrias. Fbulas, O Saci, Viagem ao Cu, O minotauro e tantos outros ttulos inesquecveis so veculos de educao das crianas nos hbitos e gostos da terra. A Lobato,29

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horrorizavam os francesismos da elite paulistana, praticados em espaos como a famosa Villa Kyrial, de Freitas Valle, e que, pedantemente, se repetiam por toda parte; em vrias ocasies, ridicularizou essa dieta que considerava alienada. Pessoalmente, assumia-se caipira e na contramo. Comer o que se quer regionalismo srdido. Come-se o que de bom-tom comer. Manducar leito assado, picadinho, feijoada, pamonha de milho verde, moqueca e outros petiscos da terra uma vergonha to grande como pintar paisagens locais, romancear tragdias do meio, poetar sentimentos do povo.12 A Sorte dos Personagens Mitolgicos da Culinria Brasileira Deixando de lado Dona Benta, a porta de entrada para a nossa cozinha , obrigatoriamente, enfrentar os personagens da sua mitologia: o negro, o ndio e o branco, e suas respectivas contribuies, como procuraremos fazer a seguir. Inicialmente, vale a referncia a uma cena memorvel de macunama (1928), de Mrio de Andrade: a feijoada na casa do fazendeiro Venceslau Pietro Pietra. Ela uma alegoria da cozinha nacional e dos seres que esta colocou em contato.12 Monteiro Lobato, conforme Vladimir Sachetta, mesa com monteiro Lobato. So Paulo: Senac, 2008; p. 16.

interessante que o festim se realiza sob o domnio de um ser hbrido como Venceslau (peruano, italiano, Piaim), um demnio devorador de gente. Pietro Pietra um comedor de identidades que transforma a pedra muiraquit em mero objeto de coleo. Essa feijoada, to bem carnavalizada no filme macunama (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, Cmara Cascudo no encontrou antes do sculo 19 como um prato real; mesmo assim, tornou-se o cone da cozinha brasileira no sculo 20. Muitos autores antroplogos, socilogos e historiadores que estudaram a feijoada no vacilam em defender o seu carter de resumo da formao social brasileira dentro das panelas. Mas o mito da feijoada, tomado de perto, nos fala tambm da opresso. Lembra que aos escravos eram reservados os piores pedaos do porco o rabo, as orelhas, os ps para que fizessem o cozido nutritivo com o feijo preto. Piores pedaos? Bem entendido: numa viso aristocrtica, um ponto de vista que valoriza o lombo e o pernil de porco; porque na cultura chinesa, por exemplo, os melhores pedaos de um animal so aqueles que se mexem, como os reunidos na feijoada... Ento, dependendo do ponto de vista que o sistema alimentar oferece, o que o pior pode ser o melhor. Compreender isso fundamental para quem se dedica gastronomia no Brasil: at31

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que ponto os pratos escolhidos para celebrao no funcionam como um biombo a esconder uma outra culinria brasileira? Os partidrios da feijoada como prato nacional devem enfrentar ainda uma outra questo. Qualquer levantamento estatstico sobre os hbitos alimentares do brasileiro indica que a feijoada no um prato cotidiano. Poderia ser um prato cerimonial? Sim, mas nem isso parece certo, se contemplarmos o seu uso em diferentes regies vis--vis os outros pratos com os quais concorre. A pizza ou a macarronada de domingo, o churrasco e os vrios cozidos regionais parecem reunir maior preferncia e constncia, sendo igualmente revestidos de ritualidade. Ento, por que ainda se fala na feijoada? Por que nos botecos das grandes cidades ainda um prato forte, presente no calendrio (quartas e sbados)? Esta uma questo difcil de se responder. Seguramente se trata de um prato que possui carter popular, sendo marginal nos hbitos alimentares das elites. Talvez seja mesmo identitrio, como gostam de falar historiadores e outros cientistas sociais, mas o que h de relevante em torno dele a propriedade mgica de reter o passado de escravido subvertendo o seu sentido dramtico. A herana Metropolitana Cabe aos portugueses a primazia no tratamento das influncias formadoras da nossa culinria, visto que foram eles a32

colocar em contato as vrias tradies e a fixar boa parte daquelas que viajaram atravs do tempo. Portadores de uma tradio tipicamente rural, muito semelhante espanhola e aparentada com outras cozinhas europeias, distinguiam-se no pela cozinha mas pela modernidade do empreendimento colonial ultramarino. Foram eles que, a partir do sculo 16, colocaram em contato todos os continentes, atravs do amplo comrcio de especiarias, acar e escravos. Por trs desse movimento de globalizao econmica, de ir e vir, as espcies vegetais e animais do mundo todo puderam deixar seus habitats primitivos e se adaptar a outros espaos. Centenas de espcies vegetais (como a manga, a jaca, a fruta-po etc.) e dezenas de espcies animais (ovinos, caprinos, sunos, bubalinos) vieram a constituir, com o tempo, o grosso da biodiversidade que fundamenta a cozinha moderna. Do ponto de vista dos modos de fazer, o primeiro testemunho til encontra-se no Livro de Cozinha da Infanta D. maria, manuscrito que teria pertencido a uma infanta de cultura notvel: dona Maria, neta do rei dom Manuel e sobrinha de dom Joo III. Moa letrada, versada em grego e latim, foi morar na Itlia ao se casar com Alexandre Farnesio, duque de Parma. O seu compndio de receitas considerado o primeiro livro sobre o assunto em lngua portuguesa.33

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A obra dividida em vrios cadernos: o primeiro o dos manjares de carne, com 26 receitas; o segundo, dos manjares de ovos, com 4 receitas; em seguida, encontra-se o dos manjares de leite, com 7 receitas, e, finalmente, o das cousas de conserva, com 24 receitas. O que hoje impressiona a simplicidade de tudo o que ali est. As tcnicas culinrias so as comuns assar, cozer, fritar, estofar ou refogar exigindo pouca variedade de utenslios. poca, o consumo de condimentos j era bastante amplo, embora mais moderado do que nos sculos vindouros. A comida, bastante condimentada, era quase sempre polvilhada de canela e sumos cidos (de limo, laranja, agraco etc.), visando equilibrar os humores dos alimentos. As ervas de cheiro eram indispensveis: coentros, salsa e hortel, cebola, pimenta, alho, mostarda, organos, cominhos ou gengibre. No livro da infanta, so citados 35 condimentos. Alm dos j enunciados, registrava o aafro, acar, guas de cheiro, gua de flor, amndoas, azeites, almscar, marmelos, canela, cravo, manteiga, mel, noz, pinhes, sal.13 Seguramente13 Celina Mrcia de Souza Abbade, Notcia sobre o Lxico Relativo a Trs Campos Lexicais do Primeiro Manuscrito da Cozinha Portuguesa: Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, em: http://www.filologia.org.br; ver tambm Maria Jos Palla, Literatura, Arte e Comida em Portugal. Em: http://www2.fcsh.unl. pt/deps/estportugueses/escritos/A_volta_mesa.pdf consultados em 8 de dezembro de 2008.

essa foi a influncia europeia que nos chegou no primeiro sculo de colonizao. A culinria da pennsula ibrica, com suas carnes de porco, borregos e carneiros em geral, cabritos e galinhas, cozidos, refogados, assados, ou empanados em pasteles (o que hoje chamamos tortas), foi a nossa herana primordial. Mas traar essa influncia e a sua evoluo nos primeiros tempos ficou na dependncia das raras fontes escritas, o que favoreceu o conhecimento da alimentao das elites e da alimentao conventual, como atesta a farta histria da doaria, em detrimento do comer popular. Num sentido diverso, ao se embrenhar nos sertes, os colonizadores necessitaram ajustar a dieta ao que a terra oferecia, substituindo ingredientes por similitude e adicionando-os ao pouco que se importava. O resultado foi uma culinria em que avultam os caldos e cozidos, aos quais se acrescentava o po ou o seu substituto a mandioca ou po da terra , que deu origem aos pires e vataps, estes numa clara adaptao das aordas e migas;14 ou os ensopados e guisados, que origina14 Interessante notar que, no ltimo quartel do sculo 19, num quadro intitulado Cozinha Caipira (1895), Almeida Jr. apresenta o forno romano j plenamente institudo como equipamento dessa cozinha simples dos nossos caipiras. Em Minas Gerais, ainda hoje possvel encontrar fornos romanos construdos de modo tosco com o barro retirado dos cupinzeiros.

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ram a culinria dos nossos molhos e moquecas, bem distintas da tradio dos molhos franceses. As empadas ou pasteles, as tortas, estiveram na dependncia da difuso do forno romano, o que se restringiu inicialmente aos ajuntamentos urbanos e disponibilidade da farinha de trigo.15 No mais, o assar se aproximou do modelo indgena, do moqum e das fogueiras simples sobre as quais se fazia o que hoje chamamos de churrasco, alm de coisas assadas envoltas em folhas de bananeira ou de milho, como a pamonha. No tocante aos ingredientes, notvel como a cozinha praticada em territrio brasileiro incorporou, nos seus estratos populares, o amplo consumo de vsceras e o consumo predominante dos pequenos animais (em vez da carne bovina), como no Portugal rural, transplantando, inclusive, rituais completos e complexos, como a forma cooperada da matana do porco. Alm disso, a caa e a pesca forneceram as protenas animas em larga escala, dando o colorido local de uma dieta que, nos traos gerais, se apresentava como extenso da culinria simples do mundo campons ibrico. No tocante grande contribuio que resultou da inten15 Para uma anlise erudita da dualidade trigo/mandioca no Brasil colnia ver Evaldo Cabral de Mello, Nas Fronteiras do Paladar. Em: Folha de S.paulo, Mais!, 28/5/ 2000.

sa transao de espcies, especialmente botnicas, destaca-se o papel do mdico Garcia dOrta, cristo-novo que se estabeleceu em Goa no sculo 16 e que l constituiu um grande pomar, sendo pioneiro na domesticao da manga e de outras espcies. Desse modo chegaram ao Brasil infinitas espcies teis, vindas de diversos lugares conquistados, das quais damos poucos exemplos, com datas de sua possvel introduo na colnia:Quadro 1: Espcies Exticas Aclimatadas Espciearroz (oryza sativa) abric do Par (Mammea americana) banana (Musa spp) carambola (Averrhoa carambola) chuchu (Sechium edule) coco (Cocus nucifera) coentro (Coriandrum sativum) couve (Brassica oleracea) dend (Elaecis guineensis)

origemChina Antilhas sia sia Amrica Central ndia Europa Meridional Europa frica

pocasculo 17 (Iguape, So Paulo) sculo 18 (Maranho) sculo 18 sculo 19

sculo 17 sculo 17 sculo 16

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Espciefigo (Ficus carica) fruta do conde (Annona squamosa) fruta-po (Artocarpus incisa) gergelim (Sesamum indicum) graviola (Annona muricata) inhame (Colocasia sculenta) jaca (Artocarpus integrifolia) jatob (hymenaea courbaril) macadamia (Macadamia integrifoglia) manga (Mangifera indica) melancia (Citrullus lantus) quiabo (hibiscus esculentus) soja (Glycine max) trigo (Triticum aestivum)

origemoriente Mdio Antilhas Malsia sia Amrica Central sia ndia Antilhas Austrlia sia frica frica China sia

pocasculo 16 sculo 19 sculo 16

sculo 19 sculo 20 sculo 16 sculo 16 sculo 16 sculo 19 sculo 16

Fontes: Cmara Cascudo, Histria da Alimentao no Brasil. So Paulo/Belo Horizonte: Itatiaia/ Usp, 1983; Paulo B. Cavalcante, Frutas Comestveis da Amaznia. Belm: Museu Paraense Emilio Goeldi, 1996; Gil Felippe, Gros e Sementes. So Paulo: Senac, 2007.

o Que os Colonizadores Fizeram das Culinrias Indgenas As formas de subordinao cultural que se impem atravs do contato entre povos com nveis tecnolgicos distintos faz com que a integrao dos modos de vida, das tcnicas, das matrias-primas e dos produtos ideolgicos se dem sob a dire38

o dos dominadores. Embora isso seja verdadeiro como diretriz geral da histria do Brasil, mais til atentar para as suas sutilezas quando o assunto culinria. Embora os portugueses tenham se servido largamente das culturas indgenas em estgio de nomadismo ou de agricultura elementar, inclusive incorporando tcnicas de cultivo como a coivara, hoje em dia o argumento bsico comea a ser relativizado a partir de evidncias arqueolgicas e etnogrficas que do conta de uma razovel complexidade social do modo de vida dos ndios brasileiros antes da conquista.16 Desde a dcada de 1970 processa-se uma reviso da histria pr-colombiana da Amrica do Sul, e novas teorias explicativas a respeito das sociedades indgenas comeam a se firmar. Sabemos hoje, por exemplo, que o homem americano ocupou a Amrica do Sul se difundindo a partir da Amaznia em direo bacia do Prata por vrias rotas. Uma delas teria sido percorrida pelos proto-tupis-guaranis, atravs do Brasil meridional, ao passo que, a partir da mesma origem, pelo leste, teriam se disseminado os povos tupinambs. Esse modelo analtico nos indica que a presso populacional nas reas ribeirinhas da Amaznia16 Marcos Piveta, A Luz Que o Branco Apagou (pesquisa fapesp, edio impressa 92, 2008). Ver tambm, a respeito, Carlos Fausto, Os ndios Antes do Brasil (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005).

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central, possvel centro mais antigo de desenvolvimento de agricultura e sedentarismo, originou um xodo populacional centrfugo atravs da colonizao das bacias dos principais afluentes do Amazonas, do Solimes e do baixo Amazonas. De importante para ns que, segundo esta hiptese, os tupi-guaranis que chegaram at a bacia do Prata, se estendendo at as imediaes de So Paulo, adotaram o uso do milho, enquanto os tupinambs faziam uso da mandioca. Assim, um duplo padro de carboidratos esteve presente na dieta dos nativos brasileiros desde os tempos at onde se pode recuar com as pesquisas arqueolgicas. Alm disso, estudos recentssimos indicam uma sociedade bastante complexa nas cabeceiras do rio Xingu, desenvolvida pelos ancestrais dos atuais ndios kuikuro, alm de outras igualmente complexas nas proximidades de Manaus.17 No Alto Xingu, foram encontrados traos do que foram praas, pontes, represas e canais, alm de reas de cultivo diversificado; tudo17 Conforme o projeto Complexidade Social na Pr-Histria Tardia da Amaznia (Alto Xingu), coordenado por Michael Heckenberger, da Universidade da Flrida; e Levantamento Arqueolgico da rea de Confluncia dos Rios Negro e Solimes: Continuidade das Escavaes, Anlise da Composio Qumica e Montagem de um Sistema de Informaes Geogrficas, coordenado por Eduardo Ges Neves, do mae/usp. Ver maiores detalhes em http://www.revistapesquisa.fapesp. br/?art=2281&bd=1&pg=1&lg.

em uma extenso de 400 km2, sugerindo uma sociedade constituda por uma rede de aldeias cercadas, unidas por largas estradas, sendo que, entre elas, havia pomares ou plantaes de mandioca e pequi, alm de lagos de criao de tartarugas tudo indicando uma cultura sedentria bastante sofisticada. Nesse complexo urbano, viviam de 2.500 a 5 mil pessoas. Nada dessa complexidade chegou aos nossos dias como coisa viva, nem consta dos relatos dos cronistas coloniais. Ao contrrio, o que os nossos cronistas registraram foi bastante filtrado pela perspectiva europeia sobre o Novo Mundo, constituindo um processo de apropriao seletiva da riqueza e da diversidade originais, de usufruto mesmo dos povos que acabaram dizimados. Mas bastante interessante ler, hoje, os documentos que nos chegam dos primeiros sculos, especialmente a partir do sculo 18. Um desses documentos a enorme memria escrita pelo padre Joo Daniel (Tesouro Descoberto no mximo Rio Amazonas),18 em que o autor, descrevendo fartamente a flora e a fauna teis para os colonizadores, tem o cuidado de distinguir aquilo que era de uso dos reinis do que era costume dos ndios bravos e mansos. No relato objetivo avultam a importncia de vrias espcies da flora nacional ou extica j aclimatada e da18 Pe. Joo Daniel, Tesouro Descoberto no mximo Rio Amazonas, em 2 volumes. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004.

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fauna (aves, mamferos, rpteis, insetos etc.), ficando claro que a ele, ocidental, repugnavam os vermes, insetos e alguns rpteis algo que para ns, da perspectiva de hoje, desenha uma riqueza insuspeitada de fontes alimentares, simplesmente cadas em desuso apesar de apreciadas pelos primeiros colonizadores. *** Esse enorme hiato alimentar que o tempo criou necessita, ainda, ser historiado. S os seus aspectos mais discrepantes mereceram algum registro histrico. Ainda hoje, as populaes indgenas da Amaznia apreciam formigas is, que comem in natura ou fritas em farofas e que, apesar da repulsa do padre Joo Daniel, a crnica registra o marcado apetite dos antigos paulistanos por essas formigas torradas. Na So Paulo antiga, a tanajura era vendida em tabuleiros pelas ruas, sendo iguaria apreciada tanto pelas camadas mais pobres quanto pelas melhores famlias. Mais tarde, estas ltimas s a comiam s escondidas [...] e isso depois que o poeta estudante Jlio Amando de Castro, em pleno teatro de gala, pois era um 7 de setembro, bateu palmas e, no meio de pasmo geral, seguido de gargalhadas dos estudantes, da resultando formidvel rolo, comeou a recitar um soneto que principiava assim:Comendo i, comendo cambuquira Vive a afamada gente paulistana 42

E aquelas a que chamam caipira Que parecem no ser da raa humana.19

Em termos muito sintticos, pode-se dizer que o longo perodo colonial foi de integrao mundial dos ingredientes culinrios, graas s dimenses globalizadas do sistema econmico montado pelos portugueses. Foi tambm o perodo de assimilao das tcnicas culinrias europeias no mundo extraeuropeu, deixando em segundo plano as tcnicas indgenas. Das culturas indgenas assimilou-se a enorme quantidade de frutas20 e drogas do serto; as formas de transformao do milho e da mandioca (mais ricas no passado do que hoje, no tocante produo do tucupi)21 e muito pouco alm disso.

19 Conforme Dante Martins Teixeira, Nelson Papavero, Miguel Angel Monn, Insetos em Prespios e as Formigas Vestidas de Jules Martin (1832-1906): Uma Curiosa Manufatura Paulistana do Final do Sculo19. Em: Anais do museu paulista. Nova srie, v. 16., n 2., So Paulo, jul/dez 2008); p. 101-23, nota 15. 20 S da Amaznia, levantamentos recentes indicam mais de 170 espcies comestveis. 21 Ermano Stradelli, Vocabulrio da Lngua Geral Portuguesa-Nhengat e Nhengat-Portuguesa, Precedido de um Esboo De Gramtica Nhengat-Sau Mirim e Seguido De Contos em Lngua Geral Nhengat Poramduba, Pelo Conde... Revista do Instituto Histrico e Geographico Brasileiro, tomo 104, vol. 159 (Rio de Janeiro, 1929).

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As farinhas de mandioca e milho mantiveram participao destacada na dieta do brasileiro. Ainda hoje so aspectos determinantes do nosso modo de comer. Alm dos vrios usos do po da terra em substituio ao po de trigo, conforme j referido, merece registro a ampla difuso do cuscuz pelo Brasil interior, a partir de So Paulo, onde comerciantes portugueses, vindos do norte da frica, encontraram condies de adaptar esse prato l feito de smola de trigo. Depois, coube aos bandeirantes e tropeiros dissemin-lo por todo o serto, onde ainda hoje item destacado da dieta cotidiana, apesar das transformaes sofridas. Por Que os Escravos Negros no Contriburam Para a Cozinha Brasileira Dentre os personagens mitolgicos da nossa cozinha, se aos ndios atribui-se um papel essencialmente passivo, como fornecedores das matrias-primas da terra, especialmente a mandioca, aos negros atribui-se, ao contrrio, um papel ativo. Eles figuram como os grandes cozinheiros, exercendo uma influncia silenciosa atravs da cozinha das casas-grandes, emprestando aos alimentos preparados um toque que no se consegue traduzir em procedimentos objetivos, mas responsvel pelo lado inzoneiro do que restou da longa trajetria histrica. De fato, se deixarmos de lado obras isoladas como A Arte44

Culinria na Bahia, do negro Manoel Querino,22 Gilberto Freyre dir, em Casa Grande & Senzala, que:na formao do brasileiro [...] a influncia mais salutar tem sido a do africano: quer atravs dos valiosos alimentos, principalmente vegetais, que por seu intermdio vieram-nos da frica, quer atravs do seu regime alimentar, melhor equilibrado do que o do branco pelo menos aqui, durante a escravido.23

Em contraposio a esta tese, sem neg-la no essencial, Josu de Castro dir na sua Geografia da Fome que:com a abolio da escravatura, os negros e os mestios sados das senzalas, ficando com a alimentao a cargo dos seus salrios miserveis, comearam por diminuir as quantidades de alimentos de sua dieta, e j no dispunham nem de combustvel suficiente para produzir o trabalho que antes realizavam.24

22 Para uma anlise desta obra ver Carlos Alberto Dria, Estrelas no Cu da Boca. So Paulo: Senac, 2006. 23 Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala. Rio de Janeiro: Record, 1998; p. 32 24 Josu de Castro, Geografia da Fome O Dilema Brasileiro: po ou Ao. Rio de Janeiro: Achiam, 1980; p. 75.

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O que parece estar em questo, portanto, a ideia de que o negro era melhor alimentado do que os homens livres e pobres, segundo uma dieta superior do prprio senhor branco. A tese de deteriorao do seu padro alimentar esteve associada abolio, no escravido. Ora, como j referimos, um componente necessrio para o desenvolvimento de uma culinria a liberdade: a produo ampla de ingredientes, a escolha, a experimentao, a formao do gosto. Ela est ligada abundncia, no fome. incompatvel com a condio de coisa a que foram reduzidos os negros pela escravido, sendo discutvel que a presena de negras escravas nas cozinhas das casas-grandes fosse condio suficiente para impregnarem de inzonice o comer nacional. Vatap, abar, acaraj, bob, xinxim, aca... eis a pluralidade de palavras, sabores, aromas e cores que atribumos contribuio africana para a cozinha brasileira. Mas essa atribuio no algo simples: no foi transplantada da frica e s se constituiu depois da abolio. Sob a escravido os negros no cozinhavam para si. Tollenare, um francs que foi senhor de engenho no Recncavo baiano, atesta como era tosca a dieta dos negros: Uma libra de farinha de mandioca e sete onas de carne; distribuem-na aqui j cozida. So poucas as propriedades em que se permite aos escravos cultivar alguma coisa por conta46

prpria. Os senhores que determinavam o que comiam esses animais de carga.25 Nos centros urbanos, alguma coisa das culturas recalcadas podia aparecer, desde que em atividades de ganho para os proprietrios. A escravido constitui uma dissoluo dramtica dos modos alimentares dos povos africanos submetidos que, provenientes de sociedades tribais, no podiam conceber a alimentao em termos ocidentais sem profunda imbricao nas instituies que lhe eram prprias. As linhas de ligao parentais entre os que comem juntos foram simplesmente esfaceladas,26 e a razo de comer resumida a aplacar a fome. O negro na Amrica, reduzido condio de coisa, antes de ser artfice de um estilo de comer, ser alimentado segundo a diretriz do custo da sua alimentao e de ideias sobre a sua fora e longevidade. O que marca a dinmica alimentar colonial a fome, no o cenrio idlico, paradisaco, da oferta ilimitada, fundada numa natureza prdiga. A legislao rgia de final do sculo 17 determinava que os senhores plantassem mandioca para a alimentao dos escravos, o que raramente acontecia e estendia a carestia de gneros popu25 L. F. de Tollenare, Notas Dominicais. Salvador: Livraria Progresso, 1956; p. 85. 26 Claude Meillassoux, The Anthropology of Slavery. The Womb of Iron And Gold. Londres: The Athalone Press, 1991; pp. 224 e 278.

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lares at Salvador. Em 1785, um celeiro pblico foi estabelecido na cidade. Ao norte de Salvador, o interior de Sergipe foi vedado produo de cana, com o intuito de assegurar suprimentos adequados de farinha para a capitania. Registra-se que o abandono da mandioca e da agricultura de gneros alimentcios [...] acarretaram uma alta nos preos de produtos bsicos e, muito provavelmente, uma deteriorao nas condies materiais dos trabalhadores cativos.27 Nessas circunstncias, no raro os senhores de engenho estimulavam os escravos a realizarem saques e roubos em propriedades vizinhas, cuidando de se alimentar por conta prpria. Mesmo assim, na tradio da sociologia da cozinha brasileira possuem destaque, associadas ao negro, a abundante doaria e a comida baiana, ou cozinha de santo. Mas impossvel dissociar sua anlise do elogio da mquina mercante produtora de acar que, como apontou o antroplogo cubano Fernando Ortiz, correspondia, sob todos os aspectos, inclusive simblicos, submisso colonial.28

27 Stuart B. Schwartz, Segredos Internos. Engenhos e Escravos na Sociedade Colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 2005; p. 353. 28 Fernando Ortiz, Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azucar. Barcelona: Ariel, 1973.

J a chamada culinria africana que se desenvolveu na cidade de Salvador teve um surgimento bastante tardio, no constituindo herana colonial. Ela s aconteceu no final do sculo 19, aps a abolio, quando cessou a belicosidade contra os africanos no Recncavo o que marca o fim do longo perodo iniciado com o massacre dos islamizados negros mals, rebelados em 1835 e que chegaram a governar a cidade por alguns dias. Com o relaxamento do controle policial sobre os negros, o candombl e sua culinria puderam emergir luz do dia. O candombl foi fruto da unificao de vrios cultos africanos, representando um produto sincrtico original dos ex-escravos. Sobre as razes africanas da culinria, Manoel Querino atribua a comida de santo especialmente aos grupos bantos, angolanos e jejes, ao passo que para Nina Rodrigues, os nags haviam deixado mais marcas na cozinha. So questes histricas e antropolgicas no plenamente esclarecidas. Seja como for, dois fatos ainda precisam ser considerados na avaliao da herana africana: a) os negros no trouxeram para o Brasil as espcies nativas da frica; elas s aportaram aqui porque foram teis ao comrcio mundial do colonialismo, isto , sob a diretriz dos dominadores, no como contrabandos tnicos; b) uma anlise comparativa dos vrios livros atravs dos quais as receitas da cozinha de santo chegaram ao final do sculo 20 deixa transparecer um49

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processo de progressivo empobrecimento, seja pela diminuio da sua quantidade, seja pela simplificao de ingredientes. Serto: um Brasil Que No Senta Mesa Serto palavra que vai se diferenciando ao longo da histria do Brasil. Inicialmente, aparece nos documentos coloniais como sinnimo de terras no conquistadas ao ndio, terras ignotas ou distantes. Depois, ganha contornos geogrficos e humanos mais precisos, at se identificar claramente com o Nordeste, a partir de Os Sertes (1902), de Euclides da Cunha. Novamente, com Guimares Rosa recupera o sentido amplo, impreciso, geral lugar que carece de cercas. Seu trao principal foi a forte presena da agricultura de subsistncia, independente da localizao regional. Vrios economistas escreveram ensaios alentados sobre a formao econmica do Brasil destacando os ciclos da cana-de-acar, da minerao, do caf, da borracha e assim por diante, articulando, sua volta, de modo complementar, uma ampla rea de agricultura de subsistncia cujo papel primordial foi fornecer meios de vida para a atividade principal. Este , historicamente, o serto, absorvendo a mo de obra excedente de homens livres e pobres, pois, com o encerramento de um ciclo como o da cana-de-acar ou o do ouro , restava, margem de tudo, essa populao50

cujo estilo de vida resumia-se ao mnimo necessrio, quando no perecia pela fome. Na conquista dos sertes do Nordeste tem-se, como atividade central, a pecuria. em torno do boi que se forma o que o historiador Capistrano de Abreu chamou de civilizao do couro. O homem que se embrenhava no serto era, mais do que o escravo, o homem livre e pobre procura de sustento e distncia da autoridade colonial no raro como fugitivo da lei. Ao longo dos sculos, abriram currais, estabeleceram ranchos e instalaes mnimas para a lida com o gado, espraiando-se silenciosamente em torno do curso dos rios, avanando at paragens distantes, integrando-as a alguma forma de comrcio, ainda que muito tnue. Longe de civilizar os sertes, nos tempos que os reinis civilizavam o litoral, foram civilizados pelos ndios que l havia. Registra um autor annimo: Obscurecendo-se as ideias que tinham principiado, familiarizaram-se com as dos ndios, adotaram os seus costumes, e reduziram-se a viver quase maneira dos mesmos ndios.29 Tratava-se, claro, de uma sociedade muito merc das intempries, o que marcou seu modo de vida e alimentao.29 Annimo, Roteiro do Maranho a Goiaz pela Capitania do Piauhi, Revista do Instituto Histrico e Geographico Brasileiro, Tomo LXII, parte I. Rio de Janeiro, 1900; p. 145.

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Dizia o mesmo autor annimo que o serto entre o rio So Francisco e o Piau serto quase todo ainda inculto, to rido nos meses de agosto, setembro, outubro, novembro e dezembro, quando no chove (o que frequentemente acontece) [...] e chega a faltar at a necessria para saciar a sede dos viandantes; tendo j alguns acabado, e outros sustentado a vida com o suco, que extraem de umas grandes batatas criadas debaixo da terra nas razes dos ambuzuros.30 Na medida em que o gado vai ocupando novos espaos, a centralidade do leite e da carne torna-se indubitvel na sociedade que se forma. Isso tambm porque foi difcil, inicialmente, a cultura do milho e da mandioca. A farinha, nico alimento em que o povo tem confiana, faltou-lhes a princpio por julgarem imprpria a terra plantao da mandioca [...]. O milho, a no ser verde, afugentava pelo penoso do preparo naqueles distritos estranhos ao uso do monjolo. As frutas mais silvestres, as qualidades de mel menos saborosas eram devoradas com avidez.31 Mas o valor relativo do gado que determinava sua participao na dieta local. Perto da Bahia e Pernambuco, era quase30 Idem, p. 80. 31 Capistrano de Abreu, Captulos da Histria Colonial & Os Caminhos Antigos e o povoamento do Brasil. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 1963; p. 147.

todo consumido pelo engenho de acar; depois, na proximidade de Minas Gerais, quando do ciclo da minerao. Desse modo, o gado vacum s se tornava alimento local nos perodos de baixa do preo do acar, ou com a decadncia das minas e, por isso, outros animais, alm das caas, acabaram por lhe tomar o lugar. Tambm foi a sociedade sertaneja se abrindo para os legumes da terra: Introduziu-se o feijo, o milho, a mandioca e at a cana. So ainda hoje trs pocas alegres do ano sertanejo: a do milho verde, a da farinha e a da moagem. Do milho seco, quase exclusivamente reservado para os cavalos, s se utilizavam torrado ou feito pipoca, transformado no raro cuscuz ou no inspido alu. O milho verde, cozido ou assado, feito pamonha ou canjica, durante semanas tirava o gosto das outras comidas. A farinhada com a farinha mole, os beijus de coco ou de folha, as tapiocas, os grudes etc., as cenas joviais da rapagem de mandioca representavam dias de convivncia e cordialidade. A moagem da cana [...], a garapa, o alfenim, a rapadura, o mel de engenho.32 Na lida do gado, o vaqueiro carregava o seu farnel: a paoca de carne pilada e a farinha, pedaos de rapadura, o

32 Idem, p. 211.

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camboeiro (carne cortada e misturada com farinha) tudo preparado com antecedncia.33 O mais importante aspecto da pecuria nordestina para a culinria brasileira a absoro e a hierarquizao das demais carnes, alm da carne bovina, na dieta popular. Est claro que o boi, o cavalo e a condio de vaqueiro eram expresses de status e poder nessa sociedade, pois eram propriedades do senhor e estavam ligados atividade principal. Para os homens livres e pobres, abria-se na alimentao o espao exclusivo das miunas: ovinos, caprinos, sunos e aves, como a galinha e a galinha-dangola. Desde sua introduo no serto, o leite de cabra tornou-se a principal alimentao das crianas, substituindo o leite de vaca. Era dedicado tambm ao fabrico de queijo e coalhada, ou consumido misturado a batata, jerimum, farinha ou rapadura. Da mesma forma, a carne de bode, embora considerada inferior carne bovina, ocupou papel de destaque. Seu consumo no se fazia apenas em ocasies festivas, como acontece com a carne suna, mas concorria com a carne de galinha como fonte de suprimento protico. Alm disso, seu couro, de valor relativamente elevado, era uma das poucas mercadorias que o sertanejo33 Jos Alpio Goulart, Brasil do Boi e do Couro, vol. 1. Rio de Janeiro: Edies grd, 1965; pg. 151.

podia produzir para um mercado situado nas cidades e feiras, onde podia se abastecer de sal e outras mercadorias bsicas.34 Dono de uma culinria surpreendentemente delicada, com sua profuso de refogados e ensopados de frango, carneiro, cabrito, galinha-dangola (capote, dizem) , pires, alm do arroz, do cuscuz de milho e da mandioca, tudo com o uso moderado da pimenta que vemos em profuso no litoral, o serto nunca mereceu tratamento sistemtico do ponto de vista da nossa sociologia alimentar. Trata-se de coisa de gente pobre, de vida simples, portadora de uma tradio que, ainda hoje, mantm referncias fortes do mundo Ibrico; longe do exotismo africano e da fartura que se construiu como imagem sedutora da alimentao litornea. No sentido culinrio, a histria plasmou esse modelo sertanejo desde os pampas gachos at as franjas da floresta Amaznica, nas terras do Maranho e do Piau; em outras palavras, h enormes convergncias no modo de comer desse Brasil meridional que o distingue de maneira inequvoca das culinrias urbanas litorneas. Na longa histria nacional, este gosto sertanejo s adquiriu cidadania nos grandes centros urbanos, onde marcante a populao de migrantes nordestinos. Pratos como a panelada34 Carlos Alberto Dria, Ensaios Enveredados. So Paulo: Siciliano, 1991; p.144-147.

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(cozido que leva mocot, midos de boi, toucinho e legumes), servido com piro escaldado, feito do prprio caldo; o sarapatel (guisado de sangue, tripas e midos de porco ou carneiro, bem condimentado, originado no Alto Alentejo, em Portugal); a buchada (cozido de bucho, midos, tripas, sangue e cabea de cabrito, carneiro, ovelha ou bode); o sarabulho (iguaria tpica portuguesa, com origem no Minho, que se prepara com sangue, midos, gordura e pedaos de carne de porco condimentado e ensopado); o meninico (guisado preparado com vsceras de carneiro); assim como o milho torrado e pisado no pilo; as tripas de porco torradas no espeto, para caf da manh; o amendoim cozido em paneladas; o ouricuri cozido ou seco; a coalhada escorrida com mel de abelha preta tudo isso nos pe mesa um Brasil em torno do qual a sociedade culta e letrada jamais se props sentar e celebrar. Por Que a Cozinha de Ingredientes Aponta Para o Futuro Dissemos no incio que, na formao das naes modernas, o estado fez uso, indistintamente, de uma suposta unidade lingustica, territorial, tnica ou de tradies histricas. Vimos tambm que, no caso do Brasil, o modernismo frisou o aspecto tnico, projetando-o sobre os demais, de tal sorte que, no sculo 20, passamos a nos representar crescentemente como fruto da56

miscigenao de ndios, negros e brancos. Dessa matriz cultural derivou a representao da nossa culinria. O carter arbitrrio dessa escolha evidente: um prato tpico brasileiro, como o popular e difundido bife alla parmegiana (sic), que simplesmente no existe em Parma (Itlia) no reconhecido como coisa nossa35 porque no se encaixa na matriz da convergncia tnica, em que o branco representado apenas pelos portugueses. Seja como for, no traado de uma viso moderna sobre essa culinria sempre poderemos eleger outros pontos de vista, procurando atender s necessidades do presente e representar de modo mais conveniente essa histria que nos formou. O ponto de vista moderno dado pela constatao de que um novo paradigma culinrio foi traado pelo chef espanhol Ferran Adri, do restaurante El Bulli (em Cala Montjoi, prximo a Barcelona) e, mais recentemente, confirmado pelo ingls Heston Blumenthal, do Fat Duck (em Bray, no condado de Berkshire, Inglaterra). Os dois impuseram ao mundo gourmet a ideia de transgresso: a cozinha moderna se faz de coisas surpreendentes, mal conhecidas, resgatadas da indstria ou descobertas no repertrio popular tradicional, pouco importa.35 Segundo o historiador Ricardo Maranho, tal prato criao de cozinheiros argentinos que estiveram em So Paulo nas primeiras dcadas do sculo 20.

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A esses ingredientes so aplicados tcnicas novas e conhecimentos qumicos, naquele que tem sido o caminho de renovao que se ope a vrias verses nativas ou afrancesadas dos modos tradicionais de comer. Cozinha de ingredientes expresso desse esforo por inovar sem pagar tributo aos receiturios tradicionais, isto , aos usos comuns dos mesmos. As tcnicas culinrias, todos sabemos, tendem a se difundir pelo mundo, perdendo a capacidade de, sozinhas, diferenciarem uma culinria das demais. A sua vulgarizao e a sua estabilizao no bojo das vrias culinrias questo de tempo, produzindo uma homogeneidade que tende monotonia. Da decorre que, como muitos chefes percebem, a capacidade de inovao (de transgresso) depende, de fato, do repertrio de ingredientes e produtos utilizados na experimentao gastronmica. Mas a palavra ingrediente no unvoca. No uso comum, significa tudo o que entra na preparao de uma receita. Uma farinha, por exemplo, entra na lista de ingredientes de um bolo, embora seja um produto industrial. Restrita a um produto ou a uma matria-prima in natura, a palavra pode nos levar a erro, confundindo-se com a biodiversidade. Mais correto seria dizer que os chefes buscam desenvolver uma culinria de ingredientes e produtos que, no caso que nos interessa, seriam expresses de um pas ou territrio.58

A rigor, a condio de produto ou ingrediente (entendido como matria-prima) depende da posio que este ocupa no processo de produo: no seu incio ou em fases intermedirias, seria mais apropriadamente um ingrediente. Exemplificando: o leite cru ingrediente do queijo minas artesanal, que um produto, mas este mesmo produto ingrediente do po de queijo mineiro. As receitas, nesse sentido, plasmam produtos. Correspondem a modos rgidos de apropriao da biodiversidade, atravs de matrias-primas culturalmente produzidas a partir da seleo dos componentes da biodiversidade. Libertos das receitas em que so aplicados de modo tradicional, ingredientes e produtos brasileiros parecem descomprometidos com a histria, provocando reaes dos conservadores contra as propostas renovadoras dos chefes que investigam e buscam explor-los de novas maneiras. Contudo esta uma falsa oposio, pois no possvel pensar qualquer ingrediente como algo desprovido de histria, um pedao da natureza em estado puro. O trabalho humano, que conforma a natureza para o consumo alimentar, principia na identificao do que til. Espcies vegetais so nocivas ou benficas, saborosas ou no, segundo uma experincia que, antes de ser individual, grupal s vezes tributria de mil59

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nios de experincias. Formigas so saborosas para quem no est submetido aos tabus que vedam insetos. A prpria histria da mandioca e de como os indgenas conseguiram eliminar sua toxidade, tornando-a apta ao consumo, um excelente exemplo do que dizemos. Nesse sentido preciso, a mandioca, mesmo in natura, sendo cultivada, um produto cultural milenar. Em termos esquemticos, podemos ilustrar o que estamos dizendo da seguinte maneira:Biodiversidade Ingredientes culturalmente selecionados Produto Receita Produto Produto

Assim, a passagem da biodiversidade condio de ingrediente um processo cultural que jamais ser eliminado por qualquer forma culinria, mesmo que se abandonem as receitas tradicionais. Elas so maneiras determinadas de se chegar a produtos, que sempre limitam a criatividade e o uso dos potenciais que o ingrediente encerra.60

Se nos ativermos, por exemplo, s maneiras tradicionais de utilizao do dend, nunca poderemos explorar convenientemente o potencial de usos que ele encerra, alm de integrar moquecas e servir de meio de fritura para acarajs. Desse ponto de vista, colecionar receitas, decalc-las na histria, ver a rvore e no enxergar a floresta. Significa no perceber, por exemplo, que tudo e qualquer coisa que venha a se fazer derivado do pequi (Caryocar brasiliense) sempre ter enraizamento brasileiro pois este um fruto exclusivamente nacional, domesticado h mais de mil anos pelos indgenas. Ora, a viso hierrquica do trabalho culinrio essencial para que a cozinha de ingredientes no se perca em discusses estreis que s limitam o impulso criativo e renovador dos chefes de cozinha atuais. Ao mesmo tempo, ela exige que observemos nossa prpria histria culinria sob nova tica como histria de ingredientes plasmados pela cultura brasileira, sejam eles nativos, sejam exticos. Se houve alguma virtude duradoura no perodo colonial ela se deve mundializao da economia alimentar: uma enorme e ininterrupta transao de espcies, especialmente botnicas, envolveu, num s movimento, a sia, a frica, a Europa e as Amricas. Esse processo, por sua vez, sucedeu as transaes pr-colombianas, como aquelas exemplificadas pela61

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difuso da mandioca e do milho em territrio brasileiro, num longo processo que durou de 500 a.C. at 1000 d.C. Ele nos d um mapa que contrape, originalmente, a Amaznia e o litoral, at a altura do Rio de Janeiro, devotados mandioca, e o Brasil meridional que vem das cabeceiras da bacia Amaznica at o pampa riograndense, avanando pelo planalto central em direo ao litoral paulista, onde o milho foi estratgico para os colonizadores. Desse modo, perfeitamente possvel (e desejvel) abandonar a diviso sociopoltica da nossa culinria, que s serve indstria do turismo, redesenhando o territrio segundo a tipicidade de ingredientes ou produtos. Nesse novo mapa a continuidade territorial artificial (as regies do ibge) substituda por manchas culinrias descontnuas e mais teis ao conhecimento da diversidade alimentar. De maneira sinttica, e apenas a ttulo de exemplo, teramos: - a culinria amaznica: caracterizada pelo uso amplo da mandioca e seus derivados (farinhas variadas e tucupi), alm das frutas, peixes de rio e outros produtos da floresta; - a culinria da costa: que se estende do Cear ao Esprito Santo, marcada pelo uso de peixes, frutos do mar e do leite de coco;62

- a culinria do Recncavo Baiano: tipificada pelo uso do leo de dend a partir da laicizao da cozinha de santos; - a culinria do Brasil meridional: onde notvel a difuso do cuscuz e outros pratos base de milho, alm da utilizao farta das carnes, especialmente de pequenos animais, e preparaes a partir de vsceras. Essa culinria apresenta manchas especficas a partir de outros ingredientes, tais como: o pequi: especialmente no Centro-Oeste, estendendo-se at as franjas da Amaznia; o mate: em toda a rea de influncia dos guaranis, compreendendo a regio Sul, do Paran ao Rio Grande do Sul e, no Centro-Oeste, o estado de Mato Grosso, alongando-se alm da fronteira brasileira, por Paraguai, Uruguai e Argentina; o pinho: a rea da floresta original de araucria, onde ocorre o pinho, constitui um ecossistema destacado do Brasil meridional, com culinria de traos originais; - a culinria caipira: compreendendo especialmente os estado de So Paulo e Minas Gerais e franjas do Centro-Oeste, calcada no milho, no porco e no frango, alm dos vegetais e legumes de horta, com grande assimilao de tcnicas portuguesas de preparo.63

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O detalhamento dessas manchas culinrias descontnuas fica na dependncia do conhecimento etnogrfico de cada territrio. A riqueza de ingredientes de cada uma delas que deve constituir o objeto de estudo de quantos se preocupem em traar um quadro moderno da nossa culinria, assim como a proposio de outros recortes que faam sentido como tratamento alimentar ou do gosto. Podem-se tambm classificar ingredientes a partir de outros critrios, como a sua adoo e a sua difuso pela culinria brasileira ou mundial. Tal enfoque pressupe o reconhecimento de que, desde o perodo colonial, na intensa transao de espcies em escala global, o Brasil foi fundamental na formao do repertrio alimentar moderno de boa parcela do mundo. No conjunto, chegamos ao sculo 19 com a flora brasileira incorporada, de modo seletivo, nossa culinria.36 Para ilustrar esse trabalho secular de seleo, com espcies que ganharam destaque e notoriedade alm-mar, apresentamos o quadro a seguir:36 Para um simples inventrio de parte da flora (frutas comestveis), consultese Paulo B. Cavalcante, Frutas Comestveis da Amaznia. Belm: Museu Paraense Emilio Goeldi, 1996. Consulte-se ainda Huascar Pereira, pequena Contribuio para um Diccionrio das plantas teis do Estado de So paulo (Indgenas e Aclimatadas). So Paulo: Typographia Brasil de Rothschild, 1929.

Quadro 2: Espcies Nativas domesticadasEspcie amendoim (Arachis hypogaea) araruta (Maranta arundinacea) babau (orbignya spp) cacau (Theobroma cacao) caju (Anacordium occidentale) car (dioscorea alata) castanha-do-Par (Bertolletia excelsa) cupuau (Theobroma grandiflorum) erva-mate (Ilex paraguariensis) feijo (Phaseolus vulgaris) goiaba (Psidium guajava) guaran (Paullinia cupona) jabuticaba (Myrciaria cauliflora) jenipapo (Genipa americana) jil (Solanum gilo) juara (Euterpe edulis) mamo (Carica papaya) mandioca (Manihot esculenta) mangaba (hancornia speciosa) maxixe (Cucumis anguria) pimenta (Capsicum) pitanga (Eugenia uniflora) pupunha (Gulielma speciosa)Fonte: Gil Felippe, Gros e Sementes. So Paulo: Senac, 2007.

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Apesar dessa diversidade, hoje vivemos uma autntica regresso: frutos exticos como o abric (mammea americana) ou a fruta-po (Artocarpus altilis), de uso corrente em outras pocas, deixaram de ser consumidos na escala em que foram no passado. Seja como for, esses produtos carregaram, atravs do tempo, diferentes cargas de brasilidade: o amendoim, pouca gente lembra que brasileiro, ao passo que o caju, o guaran, a mandioca, a jabuticaba e, mais recentemente, a pupunha (na forma de palmito) so fortemente reivindicados como nacionais, assim como a jaca, que no nacional. Essas nfases em ingredientes esto na dependncia de verdadeiras modas culinrias ou gastronmicas. Coerente com essa demanda, muitos pesquisadores tm se debruado de modo til sobre o repertrio da nossa biodiversidade.37 Dentre os vrios interesses que orientam essas pesquisas, h aquela de investigao de plantas aromticas da nossa flora; ela tem posto em destaque vrias espcies, como o cumaru (Dipteryx odorata), a priprioca (Cyperus articulatus), a iquiriba ou embiriba (Xylopia sericea) e a canela (Otonia otonia), esta encontrvel na Bahia, na costa do Saupe. Assim, plantas nacionais ou exticas aclimatadas vo tendo seu lugar redefinido na culinria brasileira.37 Ver especialmente o blog de Neide Rigo: http://come-se.blogspot.com

O exemplo do cumaru o mais ilustrativo. De uso corrente no exterior h vrias dcadas, especialmente pela indstria de alimentos e de charutos, tem sido revalorizado como se fosse uma descoberta original de agora. A exemplo do cumaru, muitos leos capazes de aromatizar as frituras eram usados no passado: o de castanha-do-par (Bertholletia excelsa); de sapucaia (Lecythis pisonis); de indai-au ou catul (Attalea oleifera), da regio de Gois; o batiput (Ouratea parviflora), da Paraba e do Rio Grande do Norte; o de umirium (Humiria floribunda), comum no Amazonas e no Par, e o j citado cumaru. Com o desenvolvimento da indstria, prevaleceram os leos mais neutros, e os leos regionais caram em desuso, s restando ativo o de dend. Desse modo, v-se que a diversidade culinariamente til no depende tanto da sua ocorrncia, mas de modas relacionadas com o estgio de desenvolvimento geral da sociedade, de ideologias nutricionais etc. No que tange fauna, o problema bastante diverso. Todos sabemos que tatus, pres, antas, capivara, pacas, porcosdo-mato, nhambus, perdizes, codornas, jacus, macucos, vrias espcies de pombos, e assim por diante, so animais que sempre fizeram parte da dieta dos brasileiros. No entanto, como integraram a dieta popular, com pouca penetrao nas grandes cidades ou na alimentao cotidiana das elites, acabaram proibi67

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dos quando, na dcada de 1970, deu-se o avano do movimento preservacionista. Ao contrrio da Europa, onde a caa sempre foi elemento de distino aristocrtica (e por isso defendida), entre ns restringiu-se s camadas populares e s populaes distantes dos mecanismos de controle do estado, de modo que a sua proibio no encontrou resistncia. Hoje, o pouco que se consome da fauna nativa feito de modo clandestino, especialmente nos rinces distantes da Amaznia. Outro aspecto que tem sido menosprezado relativo s raas de animais domsticos desenvolvidas em territrio nacional ao longo da histria. Segundo estudos especializados, a variabilidade gentica mundial atual compreende aproximadamente 6.300 raas ou populaes de animais domsticos. A participao do Brasil nesse patrimnio da humanidade modesta, razo pela qual as suas raas tm importncia enorme, sendo fundamental preserv-las e a principal forma de preservar uma raa ampliar a sua utilizao na alimentao. Uma raa um patrimnio gentico, isto , um conjunto de caracteres de uma populao que no se confunde com aqueles caracteres que o animal adquire atravs da sua alimentao. No caso de animais domsticos, ela fruto de um longo perodo de seleo artificial feita pelos homens que escolhem, para reproduo, os exemplares que possuem caractersticas julgadas mais68

teis sob vrios pontos de vista: porte, rusticidade, produtividade, aspectos organolpticos, beleza fsica etc. O nosso frango caipira o melhor exemplo disso, sendo totalmente distinto de qualquer raa criada industrialmente, mantendo a gentica de animais trazidos da ndia. Os ndios jamais domesticaram espcies, isto , limitavamse a colher indivduos da fauna, criando-os para consumo ou como animais de companhia, sem utiliz-los para reproduo. Assim, s aos brancos coube o desenvolvimento das raas domsticas, num testemunho vivo da transao mundial de espcies que o colonialismo inaugurou. Se nos ativermos apenas s espcies de mamferos utilizados na alimentao, temos o seguinte quadro:

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Quadro 3: Raas Nacionais de Animais domsticos nome principal bovinosmocho nacional mocho de Arax e mocho de Gois, Tabapu tucura p-duro Piau, Nova odessa (SP) e Gois Pantanal mato-grossense Serto do Brasil Rio Grande do Sul Bahia So Paulo Sul de Minas vrias raas ao longo do tempo raa asturiana (Espanha) alentejano e galego (ou minhoto) bovinos hamticos do sul da Espanha; raa Andaluz zebunos raa Algrvia minhota e transtagana Assam (ndia) bfalos da China, Filipinas, Tailndia; cruzado com animais da raa Mediterrnea gurgueia Piau Paraba, Cear, Piau, Bahia e Pernambuco cura

sinnimos

territrio

raa(s) formadora(s) caprinosGrissone negra (Sua), Pointevine (Frana), Bristish Alpine (Inglaterra) animais do tronco alpino raas de Portugal e Espanha alpina branca alpina francesa Rio Grande do Sul Bahia

canind

Piau e Bahia

pantaneiro curraleiro

crioulo lageano sindi patu caracu

mertolenga china

moxot marota repartida

ovinoscrioulo lanado santa Ins morada nova rabo largo Bahia Churra espanhola Bergamcia, crioula e morada nova raas deslanadas de origem africana raas sul-africanas

bubalinosbaio Amaznia Amaznia, So Paulo

carabao

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suinosmoura pereira Planalto de Sta. Catarina Pantanal ba, macau Centro-oeste e sul do Brasil Minas Gerais Canastro, Canastra e duroc-Jersey. porco ibrico e espcies selvagens brasileiras raa chinesa Mule foot raas ibricas

monteiro tatu casco de Mula canastra caruncho piau

Sul de Gois e Tringulo Mineiro Minas Gerais (Zona da Mata), Esprito Santo raa alentejana ou Preto

pirapitinga

niloFonte bsica: embrapa, Animais do Descobrimento. Braslia, 2006.

hoje elas no foram objeto de tratamento sistemtico, de anlise organolptica. Por um costume pouco nacionalista, entendese, por exemplo, que as raas de ovinos uruguaios, argentinos ou australianos sejam superiores s brasileiras sendo que no se conhece nenhum tratamento comparativo sistemtico. Por isso, muito provavelmente, verdadeiros valores sequer so percebidos. o caso do porco da raa nilo, que tem a mesma origem gentica do porco negro ibrico, to valorizado na produo do presunto pata negra, a partir de alimentao especfica com bolotas de carvalho. Muitas das raas brasileiras de porco encontram-se em extino, graas tendncia moderna que valoriza a carne em detrimento da gordura. Desse modo possvel dizer, sem medo de errar, que uma culinria brasileira que deixe momentaneamente de lado as receitas e seus contornos tnicos para se concentrar nos ingredientes obra ainda por se fazer, seja partindo de manchas de ingredientes disseminados pelo territrio em vrios ecossistemas, seja partindo de espcies vegetais ou animais domesticados, cujo processo de raciao foi desenvolvido no Brasil. Estilizaes Paulistanas da Cozinha Brasileira Em vrias partes do pas, vrios restaurantes trabalham sobre as percepes da culinria brasileira, mas dificilmente73

A este repertrio de raas histricas soma-se outro, bastante extenso, de raas modernas (bovinas, como nelore, gir leiteiro etc). O importante, culinariamente falando, que at72

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conseguem se afastar do mito modernista razo pela qual, quando o conseguem, a experincia de grande valor. Para a inovao, enfrentam dificuldades com o gosto do prprio pblico. Um bom exemplo disso o restaurante O Navegador, de Tereza Coro, no Rio de Janeiro: seu trabalho consistente com a mandioca e seus derivados, a cargo de uma ong que fundou, o Instituto Maniva, no diminuiu a dificuldade em implantar um cardpio exclusivo com essa orientao. A culinria brasileira que ela chama Brasil de origem38 obrigada a dividir com a cozinha internacional a preferncia do seu pblico. Mas vrios chefes realizam experincias interessantes, mesmo quando essas no conquistam o corao dos seus cardpios.39 Parece que a internacionalizao do gosto precisa ser levada s ltimas consequncias para empreender o caminho de volta. Assim, um lugar bastante prprio para se estudar as tendncias modernas da culinria brasileira a capital paulista. Talvez a razo disso seja a dimenso cosmopolita que a sua culinria acabou por adquirir, por obra e graa do gigantismo metropolitano e da origem mltipla dos seus habitantes. Nesse processo, seu38 http://www.onavegador.com.br 39 Uma coletnea de exemplos interessantes pode ser consultada em Roberto Smeraldi, Alquimistas na Floresta. So Paulo: Amigos da Terra, 2005.

desenvolvimento cortou os vnculos com qualquer cozinha regional prpria (caipira ou caiara) e passou a dar livre curso aos vrios estilos de comer. Houve, de maneira involuntria, uma perda do enraizamento tnico da culinria brasileira, na medida em que a cidade oferece, de modo nivelado, vrias opes tnicas banalizadas, distantes dos sentimentos que a ancoragem numa culinria nossa pode suscitar. Assim, come-se italiana, francesa, japonesa, chinesa ou tailandesa e mesmo brasileira com um sentido ldico forte, mas livre do compromisso cultural profundo com a origem dessas dietas. Os socilogos chamam a este fenmeno desencantamento do mundo, isto , a perda da magia, do encanto ou sentido inerente s coisas; uma conduta que desvaloriza as emoes e a transcendncia, tambm um processo que caminha no sentido de conferir racionalidade a um mundo antes irracional e mgico. Em termos simples, esse processo permite que as pessoas hoje se debrucem sobre os modos brasileiros de comer com interesse equivalente ao que devotam s cozinhas de outros pases. A rigor, o grande desafio dos cozinheiros que queiram trabalhar com ingredientes brasileiros mesmo que em receitas tradicionais, apelando inclusive para aspectos extraculinrios dessas receitas (a origem de candombl da cozinha baiana, por75

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exemplo) ser disputar o gosto do pblico no confronto com inmeras alternativas que no possuem enraizamentos em nossa cultura. Se o enraizamento brasileiro dos ingredientes pode ser convertido numa vantagem competitiva preciso ver em que sentido esse confronto se processar. Para tanto, a ateno deve se voltar para as vrias estilizaes a que o conceito de cozinha brasileira vem sendo submetido. Em outras palavras, o reencantamento do mundo depende de um dilogo intenso entre cincias, tcnicas, tradies e culturas que ponham em destaque aquilo que possa ser ressignificado. Esse reencantamento do mundo, contudo, no se restringe hoje culinria. Uma moda brasileira, uma arquitetura brasileira, um design brasileiro so todos programas de trabalho de um nmero enorme de profissionais que, reconhecendo a diluio de qualquer aspecto mais distintivo do seu trabalho na grande onda da globalizao, procuram retomar as rdeas do processo criativo. Desse modo, recuperam tambm a competitividade, ao disputar coraes e mentes com um apelo nacionalista. No tocante culinria, e com todos os riscos implicados no esforo de sistematizao especialmente o de simplificao , parece possvel identificar ao menos cinco diferentes tendncias76

de estilizao, nessa cidade que se mostra pronta para a tarefa de reencantamento. O importante que as aproximaes com a culinria e com os ingredientes brasileiros se do de uma perspectiva multiclassista, isto , no se limitam ao movimento em direo s formas populares ou histricas de comer e incluem a reinterpretao moderna, conferindo-lhe uma universalidade que antes no apresentavam. Do mesmo modo, importante registrar que a transformao no se limita s panelas. Quase sempre est associada ao desenvolvimento de uma linguagem arquitetnica e decorativa que tambm faz referncias brasilidade; ou seja, comida e dcor andam juntas na reaproximao com um certo Brasil. Eis os cinco estilos referidos: - estilo naf: apresentao de uma concepo espontnea da alimentao, sob a diretriz de que sempre foi assim que se comeu no Brasil. de grande importncia aqui a seleo do cardpio segundo preferncias populares indiscutveis. H vrios restaurantes desse tipo na cidade, predominando aqueles de inspirao nas dietas nordestinas sertanejas. exemplo dessa tendncia o recm-celebrado restaurante Mocot,40 sob direo do jovem Rodrigo Oliveira, h apenas cinco anos no comando da casa, que tem 35 de existncia. Sua40 http://www.mocoto.com.br

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