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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM TEREZINHA DELLA JUSTINA A FONÉTICA E A FONOLOGIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO: POSIÇÕES DISCURSIVAS EM JOGO CUIABÁ-MT 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO INSTITUTO DE LINGUAGENS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM

TEREZINHA DELLA JUSTINA

A FONÉTICA E A FONOLOGIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO

ENSINO MÉDIO: POSIÇÕES DISCURSIVAS EM JOGO

CUIABÁ-MT

2011

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TEREZINHA DELLA JUSTINA

A FONÉTICA E FONOLOGIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO: POSIÇÕES DISCURSIVAS EM JOGO

CUIABÁ-MT

2011

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TEREZINHA DELLA JUSTINA

A FONÉTICA E FONOLOGIA EM LIVROS DIDÁTICOS DO ENSINO MÉDIO: POSIÇÕES DISCURSIVAS EM JOGO

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Inês Pagliarini Cox.

CUIABÁ-MT

2011

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FICHA CATALOGRÁFICA

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho àqueles que, de uma maneira ou de outra, têm sido os

motivadores das minhas conquistas, principalmente aos queridos esposo e filhos:

Jair, Fábio, Jáder e Gabriela, sempre por perto e razões a mais para gostar da

vida, e àqueles que, mesmo muito longe ou nem tanto, estão sempre na torcida por

mim: meus pais Bernardo e Leonila (in memorian) e meus irmãos: Cecília, Inês,

Francisco, Madalena, Pedro, Albertina e Olandina.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus e a minha orientadora Maria Inês, àquele pela presença em

minha vida, pelo que me tem destinado de bom, incluindo aí a orientadora, e a

esta pelo constante (re)direcionamento deste estudo, o que tornou o caminho bem

mais fácil de ser trilhado. Agradeço ainda aos professores Elias Alves de

Andrade e Joyce Elaine de Almeida Baronas pela leitura criteriosa e pelas

sugestões dadas no momento do Exame de Qualificação, ajudando-me a ver

aspectos a mim invisíveis e a completar da melhor forma possível o trabalho.

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RESUMO

DELLA JUSTINA, Terezinha. A fonética e a fonologia em livros didáticos do ensino médio: posições discursivas em jogo.

O estudo buscou investigar os discursos que dizem a fonética e a fonologia no livro didático de ensino médio; perscrutar as posições discursivas assumidas pelos enunciadores/autores; compreender como enunciados de livros didáticos de português se posicionam em relação à tese do primado da oralidade sobre a escrita, afirmada pela lingüística, desde seu advento, em contraposição ao grafocentrismo da gramática tradicional; captar possíveis deslizamentos entre a fonologia e a ortografia no conjunto de enunciados; compreender como enunciados de livros didáticos de português respondem aos parâmetros e orientações curriculares, bem como aos critérios do Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLEM), quanto ao postulado da inclusão do tema diversidade lingüística observável no nível fonológico; contribuir para a promoção de uma educação lingüística que forme cidadãos livres de quaisquer preconceitos linguísticos. Para realizar o estudo, foram investigados sete livros didáticos incluídos no Catálogo do PNLEM/2009, focalizando as seções e/ou capítulos que tratam do tema. Foram recortadas seqüências lingüísticas significativas para uma leitura discursiva na perspectiva da escola francesa de análise de discurso. O conjunto dos recortes do corpus estudado visava a capturar instantes privilegiados de enredamento interdiscursivo entre o discurso gramatical (DG) e o discurso lingüístico (DL), cada um deles se revezando nos papeis de discurso agente e paciente. Subsumiu-se que os discursos são historicamente constituídos e que há uma memória discursiva que os mantêm vivos, retomando-os, repetindo-os, mas, por serem sempre constitutivamente heterogêneos, eles também aninham forças de mudança. Porém, quando muito longevos e arraigados, os discursos são muito resistentes e difíceis de serem abalados e silenciados no campo discursivo em que circulam. O DG é um desses discursos vetustos: por séculos reinou sozinho, atravessando fronteiras, tempos e espaços, forjando leituras dos fenômenos linguísticos e sendo repetido por especialistas das Letras, mas também pela praça pública. A presente pesquisa revelou que o DG, apesar da presença ruidosa do DL no campo do ensino de línguas há quase quatro décadas, ainda domina o espaço do livro didático, pois, dentre as sete obras analisadas, apenas duas delas posicionam-se com a lingüística na enunciação do tema fonética e fonologia. Palavras-chave: análise de discurso; livro didático do ensino médio; fonética e fonologia

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ABSTRACT

DELLA JUSTINA, Terezinha. Phonetics and Phonology in Teaching Books used for High School: discursive positions at stake This research investigated the discourses of phonetics and phonology showed in teaching books of Portuguese Language that are used for high school levels; tried to investigate the discourse position took by utterers/authors; understand how those discourses present in teaching books of Portuguese Language are drawn in relation to the thesis of the oral importance instead of the writing one stood by Linguistics from its beginning, different from the graphocentrism of traditional grammar; catch possible contradictions between phonology and orthography in the set of utterances; understand how the discourses in teaching books of Portuguese Language respond to the PNLEM( National Brazilian Program of Teaching Books Addressed to High School) see the matter of linguistics variation inclusion observable in the phonological level; contribute to the linguistics education promotion in order to educate citizens free from any linguistic bias. To do this study seven teaching books were researched including the PNLEM/2009 Catalog, laying emphasis on sections or chapters in which the theme in question was considered. Meaningful sequences were cut to develop a discursive reading under the view of the French School Discourse Analysis. The set of corpus cut that were studied aimed to catch important points of intradiscourse entanglement facing the grammatical discourse and the linguistics discourse, each one them relaying and performing the roles of agent and patient discourses. It is accepted the discourses are constructed historically and there is a discursive memory that keep them alive, always bring them back and repeat them, but because they are always constitutively heterogeneous, they also join changing forces. However, when there are long-lasting and deep-rooted discourses, they are very resistant and hard of be muted into the discursive field they are. The linguistic discourse carries out these characteristics: along many centuries was sovereign, crossing borders, time and spaces, coining readings of linguistic phenomena that was repeated by language experts and also by non-experts. This research revealed that grammatical discourse in spite of the noisy presence of linguistics discourse in the area of language teaching for almost four decades, still overcome the teaching book sections because among the seven books under analysis only two of them take the discourse from the linguistics in the enunciation about phonetics and phonology. Keywords: Discourse Analysis; teaching books of Portuguese Language for High School levels; Phonetics and Phonology

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 01

CAPÍTULO 1

ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA: CONCEITOS E PROCEDIMENTOS

METODOLÓGICOS 10

1.1 O conceito de condições de produção 11

1.2 Os conceitos de discurso & formação discursiva. 14

1.3 Os conceitos de interdiscurso & heterogeneidade discursiva 18

1.4 A polêmica como interincompreensão 23

1.5 Procedimentos metodológicos 27

CAPÍTULO 2

A FONÉTICA E A FONOLOGIA NO CAMPO DA LINGUÍSTICA 34

2.1 O Alfabeto Fonético Internacional – AFI 34

2.2 A independência e a constituição da fonologia como ciência 37

2.3 Os fonemas do português 39

2.4 Variação fonético-fonológica 41

2.5 O caso das vogais nasais 44

CAPÍTULO 3

A FONOLOGIA E A FONÉTICA NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS DO ENSINO

MÉDIO: UMA DESCRIÇÃO 47

3.1 O conteúdo fonologia e fonética no livro “Português: Linguagens” de Wiliam Roberto Cereja e Thereza Anália Cochar Magalhães (L1)

48

3.2 O conteúdo fonologia e fonética no livro “Português” de João Domingues Maia (L2)

52

3.3 O conteúdo fonética e fonologia no livro “Português – Projetos” de Carlos Emílio de Faraco e Francisco Marto de Moura (L3)

56

3.4 O conteúdo fonética e fonologia no livro “Novas Palavras” de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio (L4)

59

3.5 O conteúdo fonética e fonologia no livro “Português – de olho no mundo do trabalho”, de Ernani Terra e José de Nicola (L5)

66

3.6 O Conteúdo fonética e fonologia no livro “Português” de José de Nicola (L6) 73

3.7 O conteúdo fonética e fonologia no livro “Português: Língua, Literatura e Produção Textual”, de Maria Luiza Abaurre, Marcela Nogueira Pontara e Tatiana Fadel (L7)

84

3.8 Sintetizando 94

CAPÍTULO 4

A FONÉTICA E A FONOLOGIA NO LIVRO DIDÁTICO DE ENSINO MÉDIO: 97

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POSIÇÕES DISCURSIVAS 4.1 Fonética e/ou fonologia: como os livros didáticos as significam? 99

4.2 As vogais nasais: como os livros didáticos as significam? 105

4.3 A variação fonética: como os livros didáticos a significam? 109

4.4 O domínio do grafocentrismo 119

CONCLUSÃO 125

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 133

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INTRODUÇÃO

Começamos por nos perguntar qual é o espaço que a linguística1

ocupa no discurso do ensino de língua portuguesa no Brasil do século XXI.

Afinal, desde a década de 1970, o discurso da tradição gramatical vem sendo

alvo de críticas balizadas pelas teorias e disciplinas da macrolinguística

(WEEDWOOD, 2002, p. 11), incluindo a sociolinguística, a linguística textual, a

análise de discurso, a pragmática, a psicolinguística, a linguística aplicada, que

expandiram o estreito domínio da linguística imanente.

O discurso da tradição gramatical, erigido e sedimentado no terreno da

tradição lógica greco-romana, caracteriza-se pela concepção da linguagem

verbal como expressão do pensamento; pela redução da língua à norma

padrão de que decorre a polarização linguística categórica certo versus errado;

pela primazia da modalidade escrita; pela confusão entre língua, escrita, norma

padrão e gramática; pelo postulado de que a reflexão sobre unidades

linguísticas descontextualizadas não-superiores à frase, amparada na

metalinguagem da gramática tradicional, resulta em bom uso da língua. Sob

esses imperativos, o ensino de português se faz prescritivo e purista, excluindo

todos os usos linguísticos que não se conformam ao esquadro da norma

padrão, numa atitude de recusa radical da pluralidade inerente a todas as

línguas vivas (NAZZARI e COX, 2007).

Nas primeiras décadas do século XX, a linguística inicia as rupturas

com os postulados da milenar tradição gramatical, postulando que a linguagem

verbal é por vocação, e não por acidente, um instrumento de comunicação; que

a língua não é sinônimo de norma padrão, mas sim um sistema de normas

variáveis a que se chega por meio de procedimentos indutivos e descritivos de

pesquisa e que a língua é primordialmente oral. Contudo, o sistema

1 Neste texto, quando aludimos à linguística, estamos nos referindo à chamada linguística sincrônica, linguística stricto sensu, vinculada ao nome de Ferdinand Saussure e constituída ao longo do século XX. Não incluímos nessa rubrica a linguística diacrônica do século XIX, embora ela faça parte da linguística lato sensu.

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homogêneo oposto à fala heterogênea, na consagrada dicotomia saussureana

langue/parole, não chega a representar uma ameaça ao império da norma

padrão e a desestabilizar o paradigma de ensino gramaticalmente orientado.

Como a gramática tradicional, a linguística da língua, predominante na primeira

metade do século XX, não transcendeu o nível da frase e não superou a prática

de isolar a “forma” do “uso” e do “sentido” e de privilegiar a “forma”, na

suposição de que a língua é primeiro “forma” e depois “uso”. À margem dos

conhecimentos produzidos pela linguística do núcleo duro da língua, o ensino

de língua materna não se desviou de sua velha fórmula: ensino prescritivo da

norma padrão mais ensino da metalinguagem da gramática tradicional.

(NAZZARI e COX, 2007).

A influência da linguística no discurso do ensino de língua materna é

contemporânea da revisão que ela experimenta a partir da década de 1960.

Se, para se fundar como ciência, a linguística insistiu na sua imanência e

autonomia, depois de 50 anos, era chegada a hora de retomar aqueles

componentes da linguagem que haviam sido descartados, dentre eles os

componentes sociais, dando origem à sociolinguística, para a qual todas as

línguas naturais são um sistema heterogêneo e variável. A língua se apresenta,

dessa forma, como um conjunto de subsistemas e de normas linguísticas

correlativas a fatores extralinguísticos. Essa concepção abala o reinado

absoluto do princípio categórico de avaliação dos usos linguísticos em certos e

errados, dando lugar a um princípio relativista que os avalia em adequados e

inadequados em função do contexto.

A sociolinguística nos ensina que todo falante é polilíngue em sua

própria língua. E para sistematizar a capacidade que todo falante tem de variar

a língua de acordo com a situação, o sociolinguista norte-americano Hymes

(1972) propôs o conceito de “competência comunicativa” paralelamente ao

conceito de “competência linguística”, postulado por Chomsky na década de

1960. Enquanto o conceito de competência linguística responde apenas pela

boa formação gramatical das sentenças, gerando a categoria avaliativa

gramatical/agramatical (que não equivale à categoria certo/errado), o conceito

de competência comunicativa inclui, além das regras sintáticas de formação de

sentenças, as habilidades de uso da língua. Interpretando Hymes, Bortoni-

Ricardo (2004, p. 73) afirma que “[...] o falante não só aplica as regras para

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obter sentenças bem formadas, mas também faz uso de normas de adequação

definidas em sua cultura. São essas normas que lhe dizem quando e como

monitorar o seu estilo". O ensino de língua materna, pelo viés sociolinguístico,

não deve, pois, visar à correção da suposta língua errada do aluno, mas à

ampliação de sua competência comunicativa pela aquisição de registros e

recursos linguísticos que ele ainda não domina.

Apesar de a sociolinguística admitir que a heterogeneidade linguística é

inerente ao sistema, ela continua a privilegiar a forma. O sistema e a forma,

opostos ao uso e ao sentido, só viriam a ser destronados pela análise de

discurso, que também emerge no campo da linguística na década de 1960, não

nos Estados Unidos, mas na França, ligada ao nome de Pêcheux (1969).

Subsumindo a concepção de linguagem como prática sócio-histórico-

ideológica, a análise de discurso2 inverte a direção dos estudos linguísticos e

desloca a ênfase da língua como sistema abstrato para a língua em

funcionamento e da forma para o sentido. As unidades da língua em

funcionamento não são frases, palavras, morfemas ou fonemas isolados e

descontextualizados, mas textos que atualizam gêneros discursivos próprios

das esferas de atividades de uma dada formação social. Pêcheux não vincula o

sentido diretamente à ideologia como o faz Bakhtin (1929/1979), mas sim ao

discurso que, por sua vez, se remete ao complexo de formações ideológicas

em relações contraditórias.

Tal como a sociolinguística e a AD, a linguística textual também

influencia o ensino de língua materna, sobretudo os trabalhos de Halliday e

Hasan (1976) acerca da textualidade. Tais autores definem o texto com base

no conceito de textura. Todo texto apresenta textura, quer dizer, funciona como

uma unidade semântica em relação à situação em que é produzido. Dentro do

texto, o aspecto responsável pela textura é a coesão. A coesão faz do texto um

todo de significação. Pode-se dizer que há coesão quando a interpretação de

alguma parte do texto pressupõe a retomada de outra. Além da coesão, outro

aspecto da textura diz respeito à relação entre o texto e o contexto de situação.

Esse aspecto da textura é comumente referido como coerência e envolve uma

competência enciclopédica acerca dos scripts que desempenhamos em nossa

2 Ao longo do texto, o termo “análise de discurso” se alternará com a sua forma abreviada AD.

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vida cotidiana. Os scripts nos ajudam a buscar sentidos que não estão

explícitos e a preencher os vazios do texto.

Fomentado por essas novas disciplinas linguísticas, um discurso sobre o

ensino de língua materna começa a se constituir, propondo que o ensino de

língua materna inverta o eixo reflexão=>uso para o eixo uso=>reflexão=>uso.

O uso é elevado à condição de princípio e fim do ensino de língua materna; a

reflexão, apenas um ingrediente auxiliar no domínio do uso. Esse novo

discurso atribui à escola a função de potencializar a competência comunicativa

dos alunos e não de curá-los dos maus hábitos linguísticos adquiridos no

ambiente familiar. Assim, as aulas de gramática devem ceder seu lugar a aulas

de usos da língua oral (escuta e produção de textos orais) e usos da língua

escrita (leitura e produção de textos escritos). O objeto de ensino não são as

frases e seus constituintes e nem a metalinguagem usada para descrevê-las,

mas sim os gêneros discursivos e os textos que os atualizam, tomados como

unidades de trabalho. Com Maingueneau (2001, p. 43), poderíamos dizer que o

ensino de língua materna visa a expandir a competência genérica dos alunos,

ou seja, a capacidade de se comportarem “[...] como convém nos múltiplos

gêneros discursivos”.

Essa nova forma de olhar o ensino da língua foi absorvida pelos

documentos oficiais editados nas décadas de 1990 e 2000, dentre eles aqueles

relativos ao ensino médio: Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (2000),

Parâmetros Curriculares do Ensino Médio + (2002) e Orientações Curriculares

para o Ensino Médio (2006)3. Os PCNEM renegam o ensino da língua

assentado no estudo da nomenclatura gramatical e da língua morta,

fragmentada em frases, palavras, morfemas, sílabas etc., isolada da

enunciação. Vislumbram um trabalho com as práticas textuais inerentes às

diversas esferas sociais. No deslocamento da forma para os usos da língua, o

texto torna-se o ponto de partida e de chegada de todos os procedimentos

pedagógicos que devem ultrapassar a perspectiva puramente técnica de leitura

e escrita, para a compreensão do texto como exemplar de um gênero

3 Neste texto, PCNEM será usado para abreviar Parâmetros Curriculares do Ensino Médio (2000), PCNEM+ para abreviar Parâmetros Curriculares do Ensino Médio + (2002), OCEM para abreviar Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), PNLEM para abreviar Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio e DCNEM para abreviar Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio.

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discursivo inerente a um determinado espaço de atividade comunicativa. Cada

época e cada sociedade têm seus gêneros que são marcados pela

historicidade. Alguns duram tanto tempo que parecem se eternizar, enquanto

outros desaparecem sem deixar rastros. Assim, o trabalho escolar com a língua

avulta como uma possibilidade de potencializar o repertório de gêneros que

integra a competência comunicativa dos alunos, de modo a criar as condições

para uma participação ativa e cidadã em todas as instâncias da vida pública.

A proposta apresentada pelos PCNEM é corroborada pela publicação,

em 2006, das OCEM, que reforçam os princípios relativos ao ensino de língua

portuguesa, insistindo, contudo, na sua articulação com as demais linguagens,

por meio da proposta de letramento multimodal ou letramento multissemiótico

que amplia o sentido de letramento para outras práticas linguageiras que

extrapolam o espaço da escrita stricto sensu. Assim, o documento faz

referência às diversas narrativas e aos espaços de onde elas emergem sob a

forma de gêneros discursivos, constituídos por múltiplas linguagens com

diferentes dimensões implicadas na produção de sentidos, refletindo também o

propósito de “possibilitar múltiplos letramentos” (BRASIL, 2006, p. 28).

Complementando as propostas oficiais publicadas e postas em

circulação pelos PCNEM e OCEM, o PNLEM, instituído em 2004 pelo

Ministério da Educação, por intermédio da Secretaria de Educação Básica –

SEB e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, tem por

função avaliar e selecionar as obras didáticas destinadas aos alunos do Ensino

Médio, a serem incluídas num catálogo endereçado aos professores para

nortear-lhes a escolha do material a ser adotado. As obras didáticas incluídas

no Catálogo do PNLEM devem mostrar-se coerentes com as diretrizes,

objetivos, parâmetros e orientações relativos ao trabalho com a língua

portuguesa nesse nível.

Assim, tendo em vista as propostas oficiais vigentes, a expectativa era

de que PNLEM privilegiasse livros didáticos que realçassem o trabalho com os

usos da língua oral e da língua escrita (práticas de leitura e produção de

textos). Porém, não é o que parece ocorrer. Muitos dos livros didáticos que

constam do Catálogo estão repletos de exposições e atividades sobre a língua

e de conhecimento metalinguístico. Paradoxalmente, é o próprio PNLEM que

acaba retardando uma transformação mais radical do livro didático, na medida

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em que inclui na ficha de avaliação um critério como o que segue: “As

atividades propostas consideram os componentes linguísticos fonético-

fonológico, morfossintático, sintático e semântico-pragmático?” (PNLEM/2007).

O que é sugerido como aspecto a ser trabalhado de modo articulado com as

práticas de leitura e escrita acaba roubando a cena, emergindo como conteúdo

de destaque. Isso faz do livro didático um recurso pedagógico um tanto

contraditório e, por vezes, inconsistente, uma vez que seus autores ora

praticam um ensino de língua interpelados pelo discurso linguístico, ora pelo

discurso gramatical. Rodrigues (2010, p. 12)4, estudando livros didáticos do

ensino médio, investigou “[...] os gestos de interpretação lançados sobre usos

outros do português que não o padrão”. No espaço discursivo construído e no

corpus estudado, observou o discurso linguístico completamente enredado com

o discurso gramatical, ainda que na forma do antagonismo e do simulacro, e o

discurso gramatical tendo de admitir, mesmo a contragosto, a presença

incômoda do discurso linguístico.

Nosso estudo focaliza o lugar destinado ao tema fonética e fonologia em

livros didáticos de ensino médio. Por que escolhemos focalizar o tratamento

dado à fonética e à fonologia e não à morfologia, à sintaxe e à semântica? Em

primeiro lugar, por ser a fonologia a disciplina piloto da linguística moderna, o

que faz dela uma área de conhecimento já consolidada, o que, em tese,

facilitaria o trabalho de transposição didática dos conteúdos do campo da

ciência linguística para o campo do ensino da língua. E, em segundo, por a

fonologia ser um objeto de amor e ódio: ela é amada por aqueles que a têm

como objeto de estudo/pesquisa e odiada por aqueles que a têm como mero

objeto de ensino. A aridez da fonologia gera muita aversão entre aqueles que

com ela entretêm uma relação periférica.

Pretendemos apreender as posições de sujeito assumidas pelos

enunciadores que falam nas seções e/ou capítulos que tratam de fonética e

fonologia. Não vamos discutir aqui a pertinência desse conteúdo no currículo

do ensino médio e, por extensão, no livro didático (se os alunos do ensino

4 O presente trabalho, tanto quanto o de Rodrigues (2010), integra o projeto “Enunciados da linguística em enunciados sobre/do ensino de português: batalhas de sentidos”, coordenado pela professora Dra. Maria Inês Pagliarini Cox. O projeto tem como meta investigar as relações interdiscursivas entre enunciados sobre/do ensino de português e enunciados da linguística.

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médio precisam ou não saber fonética e fonologia), mas, se ele aí está, não

pode veicular equívocos conceituais. Aliás, a própria Ficha de avaliação –

PNLEM/2007 traz a seguinte questão: “A obra apresenta problemas conceituais

graves quanto aos conteúdos linguísticos?” Os livros que vamos analisar foram

avaliados e aprovados por uma comissão de especialistas em ensino de língua

portuguesa e constam do Catálogo do PNLEM/2009. A nosso ver,

considerando o desenvolvimento das ciências linguísticas no século XX,

principalmente o desenvolvimento da fonética e da fonologia, é hoje

impensável abordar esse objeto apenas pelo viés do discurso gramatical.

Diante disso, fomos movidas pelo desejo de: investigar os discursos que

dizem a fonética e a fonologia nas seções e/ou capítulos a elas destinados no

espaço do livro didático de ensino médio constantes do Catálogo-2009;

perscrutar as posições discursivas assumidas pelos enunciadores/autores;

compreender como enunciados de livros didáticos de português se posicionam

em relação à tese do primado da oralidade sobre a escrita, afirmada pela

linguística, desde seu advento, em contraposição ao grafocentrismo da

gramática tradicional; captar possíveis deslizamentos entre a fonologia e a

ortografia no conjunto de enunciados extraídos dos livros didáticos;

compreender como enunciados de livros didáticos de português respondem

aos parâmetros e orientações curriculares, bem como aos critérios do PNLEM,

quanto ao postulado da inclusão do tema diversidade linguística observável no

nível fonológico; contribuir para a promoção de uma educação linguística que

forme cidadãos livres de quaisquer preconceitos linguísticos.

Para realizar este estudo, investigamos sete livros didáticos incluídos no

Catálogo do PNLEM/2009, mais precisamente, focalizamos as seções e/ou

capítulos que tratam de fonética e fonologia e recortamos sequências que nos

pareciam significativas para uma leitura discursiva na perspectiva da escola

francesa. Conforme Orlandi (1984, p. 14), “O recorte é uma unidade discursiva.

Por unidade discursiva entendemos fragmentos correlacionados de linguagem

e situação. Assim, um recorte é um fragmento da situação discursiva”. Uma

unidade discursiva a ser recortada não está pronta à espera do analista; é o

olhar teórico que a constrói. Recortar não é segmentar uma sequência linear,

mas capturar, por meio de fragmentos de discurso, o processo que lhe deu

existência material. Assim, a relação da unidade discursiva com o processo é

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vertical. No caso deste estudo, os recortes visam a capturar instantes

privilegiados de enredamento interdiscursivo entre o discurso gramatical (DG) e

o discurso linguístico (DL), cada um deles se revezando nos papeis de discurso

agente e paciente.

O trabalho estrutura-se em quatro capítulos, além da introdução e

conclusão.

No primeiro capítulo, evocamos rapidamente a constituição da análise

de discurso francesa e retomamos conceitos que balizam as leituras realizadas

no terceiro capítulo. Dentre o vasto acervo de conceitos da AD, revemos

aqueles de condições de produção, discurso, formação discursiva,

interdiscurso, heterogeneidade discursiva, a polêmica como

interincompreensão. Neste capítulo, também apontamos os caminhos

metodológicos pelos quais seguiremos em nosso estudo.

No segundo capítulo, revisitamos a fonética e a fonologia, focalizando a

constituição da fonologia como ciência linguística. Não nos preocupamos em

realizar uma apresentação exaustiva da fonologia em sua multifacetada

configuração atual, tarefa irrealizável no espaço tempo de uma dissertação

tendo em vista a dimensão e a complexidade desse campo de conhecimento.

Restringimo-nos a relembrar conceitos, cunhados no escopo do modelo

estruturalista, que julgamos fundamentais para a descrição dos livros didáticos

no terceiro capítulo e para a análise discursiva no quarto capítulo. Ademais,

reproduzimos o Alfabeto Fonético Internacional, apresentamos os fonemas

consonantais e vocálicos do português, abordamos a questão da variação

fonológica e o caso das vogais nasais.

No terceiro capítulo, apresentamos uma descrição dos capítulos ou

seções que tratam de conteúdos relacionados à fonologia e à fonética nos sete

livros didáticos que constituíram corpus discursivo deste estudo, de acordo com

o seguinte roteiro: O tema é tratado em capítulo ou seção? Como é designado

o capítulo ou seção? Que conteúdos fazem parte do capítulo ou seção? Há

distinção entre fonética e fonologia? O que é atribuído à fonologia e à fonética,

se o(s) autor(es) as distingue(m)? Há distinção entre fonema e variante fonética

(alofone)? O(s) autor(es) usam símbolos fonéticos? O(s) autor(es) fazem

transcrição fonética e fonológica, usam colchetes e barras? Há distinção

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precisa entre fonemas e letras? As vogais nasais são tratadas como fonemas

ou como alofones? As semivogais são tratadas como fonemas ou como

alofones? Os fonemas vocálicos e consonantais são descritos por meio de

traços distintivos ou não? Cada livro é descrito à luz desse conjunto de

questões. Esse trabalho de descrição nos ajuda a visualizar e a recortar as

sequências discursivas que são objeto de análise no terceiro capítulo.

No quarto capítulo, procuramos realizar uma análise que desenrede as

posições discursivas em jogo nos enunciados de livros didáticos. Perscrutamos

os diálogos e/ou confrontos, explícitos ou implícitos, estabelecidos entre o DG,

discurso primeiro, o DL, discurso segundo, em sequências discursivas (SD)

reunidas em seções de acordo com o trajeto temático: a confusão entre a

fonética e a fonologia; a leitura categórica das vogais nasais, a variação

fonética e domínio do grafocentrismo. Consideramos, com Maingueneau

(2005), que um discurso, ainda que não faça menção alguma a seu

concorrente, a seu Outro, tem-no presente.

Na conclusão, retomamos nossos objetivos e discutimos as

descobertas da pesquisa, a transposição dos conhecimentos científicos da

linguística para a esfera do ensino de língua e as razões da ainda hegemonia

do DG.

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CAPÍTULO 1

ANÁLISE DE DISCURSO FRANCESA: CONCEITOS E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Neste trabalho, temos como referencial teórico a análise de discurso de

orientação francesa, uma disciplina em constituição desde o final da década de

1960 e ligada aos nomes de Michel Pêcheux (um filósofo) e Jean Dubois (um

lexicólogo), intelectuais que, na época, compartiam o interesse pelo marxismo

e o posicionamento político em relação à luta de classes, à história e ao

movimento social. Por essa época, Louis Althusser vislumbrava na linguística

estruturalista, então vigente, um instrumental para ler Marx. Porém, essa

linguística não poderia ser nem a linguística da língua, entendida como um

sistema extraído do mundo social, e nem a linguística da enunciação tal como

a praticada por Emile Benveniste, que pressupunha a autonomia e a liberdade

do sujeito em relação aos constrangimentos sociais. Conforme Althusser

(1985), às formações sociais liga-se um complexo de ideologias que garantem

a sua reprodução. As ideologias, na opinião do autor, não são apenas idéias

falsas sobre a realidade social; as ideologias têm uma existência material,

incorporam-se em práticas, dentre elas, as práticas discursivas. É, pois,

motivada por essa tese althusseriana que a análise de discurso avulta como

uma teoria de interpretação. Além da teoria da ideologia, também a teoria

psicanalítica lacaniana, postulando a divisão do sujeito e a estruturação do

inconsciente como linguagem, conta entre as bases da AD.

Para a chamada escola francesa da análise do discurso, a língua não é

um sistema abstrato, significando por si só, nem tão pouco é individual,

significando de acordo com a vontade e intenção de cada falante; ela é, sim,

histórica e social. Para Orlandi (1998, p. 25), a língua “[...] trabalha no

entremeio, fazendo uma ligação, mostrando que não há separação estanque

entre linguagem e sua exterioridade constitutiva.” A AD busca compreender a

língua como trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do

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homem e da sua história. Mantém a língua ligada ao mundo exterior, refletindo

sobre a maneira como a ideologia nela se manifesta. Assim, partindo da idéia

de que uma das formas de materialidade da ideologia é o discurso e a

materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-

discurso-ideologia. Segundo Brandão (1991), a AD propõe-se a realizar

leituras críticas e reflexivas que não reduzam o discurso a análises de

aspectos puramente linguísticos nem o dissolvam num trabalho histórico sobre

a ideologia. A AD

[...] opera com o conceito de ideologia que envolve o princípio da contradição que está na base das relações de grupos sociais, cujas idéias entram em confronto, numa correlação de forças; considera também as noções de interpelação-assujeitamento e de Aparelhos Ideológicos de Estado que governam, regulam essas relações. Ela busca não eliminar essas contradições, mas, ao contrário, fazê-las aflorar na materialidade linguística do discurso, apreendê-las nas formas de organização discursiva, possibilitando captar as relações de antagonismo, de aliança, de dissimulação, de absorção que se processam entre diferentes formações discursivas. (BRANDÃO, 1991, p. 83)

Ao longo desses 40 anos, a AD não se cessou de redefinir seus objetos,

sua vocação, seus métodos e seu quadro conceitual, gerando uma farta

produção bibliográfica, o que nos obriga a sermos drasticamente seletivas no

que abordar neste capítulo. Não vamos aqui relembrar as etapas da história da

AD, nem tratar exaustivamente de seu universo conceitual. Situamo-nos, pois,

no presente da disciplina e focalizamos apenas alguns conceitos, aqueles de

condições de produção, discurso, formação discursiva e formação ideológica,

heterogeneidade discursiva, interdiscurso e polêmica como

interincompreensão, que nos servirão de lentes para a leitura de nosso corpus

discursivo formado por enunciados recortados de livros didáticos do ensino

médio.

1. 1 O CONCEITO DE CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO No início da AD, o conceito de condições de produção mantinha-se

atrelado às teorias enunciativas, para a qual o significado só podia ser

estudado na relação do enunciado com a enunciação. Nessas teorias, o

contexto de enunciação era entendido como situação empírica e restringia-se

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ao eu-aqui-agora. Para dizer de outro modo, o contexto vinculava-se ao

instante da enunciação, que tinha no centro um sujeito enunciador imaginado

livre, autônomo, uno e consciente de seu dizer. Apesar de o conceito de

condições de produção na AD pautar-se pelo contexto empírico da enunciação,

ele, desde o princípio, se afastava do presenteísmo e do sujeito consciente

fundador que timbravam as teorias da enunciação.

No escopo da Análise do Discurso, o sentido de um enunciado é

determinado não apenas pelas circunstâncias imediatas, pelo eu-aqui-agora,

mas pelo contexto sócio-histórico-ideológico que transcende o espaço-tempo

da enunciação. Assim, quando interpreta um enunciado, a Análise do Discurso

pergunta: que condições históricas permitiram que aquele sentido fosse

produzido por um sujeito, atravessado pelas instituições e pelas vozes de

outros discursos?

As condições de produção culminam com a proposta das formações

imaginárias, postuladas não em torno de um sujeito suposto possuir uma

identidade essencial, mas em torno de um sujeito chamado a ocupar lugares

sociais e a representar papeis. No universo das formações imaginárias, a

identidade essencialista dá lugar a processos de identificação. Para Pêcheux

(1969, p.18), “[...] as condições de produção remetem a lugares determinados

na estrutura de uma formação social”. São indivíduos investidos de papéis

sociais que põem a língua em funcionamento. As formações imaginárias são

jogos projetivos que envolvem os sujeitos do discurso num processo de ante-

visão que é constitutivo da enunciação: Que imagem faço do destinatário e que

imagem penso que ele faz de mim para lhe falar dessa forma? Que imagem

faço do objeto do discurso e que imagem penso que o destinatário faz dele

para lhe falar dessa forma? Pêcheux (1969) assim sistematiza as formações

imaginárias:

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Fonte: Pêcheux, 1969/1993, p. 83 e 84.

Nessa primeira formulação das formações imaginárias, ecoa,

certamente, a teoria dos papeis postulada pela sociologia funcionalista e pela

psicologia social, principalmente pelas correntes interacionistas e

etnometodológicas que estudam a conversação cotidiana. Essa compreensão,

nos termos de Brandão (1991, p. 37), faz com que o plano psicossociológico

domine o plano histórico. As determinações históricas do discurso são

transformadas em meras circunstâncias. A partir da segunda fase da AD, a

noção de condições de produção é ressignificada mediante a incorporação da

noção de formação discursiva e interdiscurso.

Por essa razão, Orlandi (2000, p. 31) inclui nas condições de produção,

além dos sujeitos e da situação, a memória entendida como “[...] o saber

discursivo que torna possível todo dizer e que retoma sob a forma do pré-

construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da

palavra”. Conforme a autora, memória e interdiscurso se recobrem:

O interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já

esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras. No interdiscurso, diz Courtine, fala uma voz anônima (ORLANDI, 2000, p. 33 e 34)

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1.2 OS CONCEITOS DE DISCURSO & FORMAÇÃO DISCURSIVA. O termo “discurso” é polissêmico e, mesmo como conceito da AD, é

instável, utilizado em diferentes acepções. A acepção que vamos retomar aqui

é aquela proposta por Foucault (1986) e adaptada por Pêcheux, com base na

teoria da ideologia de Althusser. Foucault concebe o discurso como “[...]

conjunto de enunciados que se apóia num mesmo sistema de formação

discursiva” (1986, p. 124). E a análise de uma formação discursiva, doravante

FD, consistirá na descrição dos enunciados que a compõem. A noção de

enunciado em Foucault não se confunde nem com a noção de proposição e

nem com a de frase.

Segundo o autor (1986, p. 91), “[...] o enunciado não é uma proposição”

(submetida às leis da lógica). Os períodos “Ninguém ouviu” e “É verdade que

ninguém ouviu” se equivalem do ponto de vista da lógica, do valor de verdade,

mas do ponto de vista do enunciado não. “Ninguém ouviu” (na primeira linha

de um romance) significa a constatação do autor, feita em voz alta ou sob a

forma de monólogo interior; já “É verdade que ninguém ouviu” (no mesmo

lugar) significa outra coisa – um debate interno, uma discussão muda.

“O enunciado não é uma frase [...]”, submetida às leis da língua,

governada pela sintaxe. Muitos enunciados sequer correspondem à estrutura

da frase. Por exemplo, o paradigma da conjugação verbal

Amo/Amas/Ama/Amamos/Amais/Amam é um enunciado, mas não é uma

frase. Um quadro taxonômico das espécies botânicas, uma árvore

genealógica, um livro contábil, uma equação ou fórmula algébrica, um gráfico,

uma curva de crescimento, uma pirâmide de idades etc. são enunciados sem

serem frases. As frases que podem acompanhá-los são uma interpretação ou

um comentário e não seus equivalentes (FOUCAULT, 1986, p. 92 e 93).

“O enunciado é uma função de existência dos signos[...]”, a partir de que

se pode decidir se eles fazem sentido ou não. O limiar do enunciado seria,

pois, o limiar de existência dos signos. Descrever um enunciado não significa

isolar e caracterizar um segmento horizontal, mas definir as condições nas

quais se realizou a função que deu a uma série de signos uma existência

específica. Analisar enunciados não significa identificar se são ou não

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aceitáveis ou gramaticais, nem também se são verdadeiros ou falsos, nem que

atos realizam, mas descobrir que são uma função que se apoia em um

conjunto de signos que requer um referencial, um sujeito, um campo associado

e uma materialidade (FOUCAULT, 1986, p. 99).

“O enunciado está ligado a um referencial [...]”, que forma o lugar, a

condição, o campo de emergência, a instância de diferenciação dos objetos,

dos estados de coisas e das relações que são postas em jogo pelo próprio

enunciado. “O enunciado está ligado a um sujeito [...]”, que não deve ser

entendido como uma consciência que fala, ou como o autor de uma

formulação, mas como uma posição que pode ser ocupada, sob certas

condições, por indivíduos indiferentes. “O enunciado está ligado a um campo

associado [...]”, ou seja, tem as margens povoadas por outros enunciados. “O

enunciado está ligado a uma materialidade[...]”. O enunciado apresenta-se por

meio de uma espessura material que lhe é constitutiva. O enunciado precisa

ter uma substância, um suporte, um lugar e uma data. Quando esses

requisitos se modificam, ele próprio muda de identidade. Por exemplo, dizer a

“A terra é redonda” não constitui o mesmo enunciado antes e depois de

Copérnico (FOUCAULT, 1986, p. 133). Assim, de acordo com o autor, analisar

enunciados e analisar formações discursivas são operações correlatas:

Um enunciado pertence a uma FD, como uma frase pertence a um texto e uma proposição a um conjunto dedutivo. Mas enquanto a regularidade de uma frase é definida pelas leis de uma língua, e a da proposição pelas leis da lógica, a regularidade dos enunciados é definida pela própria FD. A lei dos enunciados e o fato de pertencerem à FD constituem uma única e mesma coisa; o que não é paradoxal, já que a FD se caracteriza não por princípios de construção mas por uma dispersão de fato, já que ela é para os enunciados não uma condição de possibilidade, mas uma lei de coexistência [...] (FOUCAULT, 1986, p.135)

Uma formação discursiva, segundo Foucault (1986), faz

proliferar/dispersar-se um conjunto limitado de enunciados (efeito de raridade),

ligados não por princípios de unidade, mas por regras que estabelecem/regem

a formação dos discursos, determinando o que pertence e o que não pertence

a uma FD. São essas regras, chamadas por ele de “regras de formação”, que

possibilitam a passagem da dispersão para a regularidade. Elas são as

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condições a que estão submetidos os elementos em uma dada repartição

discursiva: objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas

etc. E a regularidade só é evidenciada pela análise dos enunciados que

constituem a formação discursiva. A análise busca, em meio à pletora de

significantes, apreender os significados (raros) que caracterizam uma época,

pois é a esses significados, a essas “verdades”, por assim dizer, que todos se

remetem. Assim, Foucault (1986, p. 139) afirma que “[...] analisar uma

formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza, é medi-la e determinar-

lhe a forma específica”.

Pêcheux incorpora a noção de formação discursiva, elaborada por

Foucault, à análise do discurso, reinterpretando-a, contudo, pela ótica do

marxismo althusseriano, no que se refere à questão da ideologia e da luta de

classes. No universo da AD, a formação discursiva passa a designar o lugar

onde se articulam discurso e ideologia. Posteriormente, Pêcheux, tendo em

vista a tese da heterogeneidade constitutiva do discurso, passa a articular o

conceito de FD àquele de interdiscurso. As FDs são consideradas como

componentes das formações ideológicas (FI) ligadas a uma formação social

dada. Pêcheux (1993, p. 166) assim define a FI:

Falaremos de formação ideológica para caracterizar um elemento (este aspecto da luta de aparelhos) suscetível de intervir como uma força em confronto com outras forças na conjuntura ideológica característica de uma formação social em dado momento; desse modo, cada formação ideológica constitui um conjunto complexo de atitudes e de representações que não são nem individuais e nem universais mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes em conflito umas com as outras (grifos do próprio autor).

A formação discursiva é caracterizada como aquilo que, numa formação

ideológica, a partir de uma posição, em uma conjuntura sócio-histórica,

determina o que pode e o que deve ser dito. Assim concebida, a noção de FD

leva a afirmar que os sentidos estão relacionados a um exterior demarcado

pelas formações ideológicas. Os sentidos, desse modo, não são da ordem da

língua e sim das formações discursivas, determinados pelas posições

ideológicas postas em jogo no processo sócio-histórico em que as

palavras/enunciados são produzidos, já que mudam de sentido segundo a

posição daqueles que as utilizam/enunciam.

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Refletindo sobre o caráter contraditório e desigual em que se

desenvolvem os processos discursivos, visto que ocorrem sobre uma base

linguística, mas ao mesmo tempo se inscrevem em uma relação de classe

fundada pela contradição, Pêcheux retoma o conceito e acrescenta a

discussão sobre a materialidade interdiscursiva. Isso redireciona o trabalho de

análise, tornando-o mais complexo, pois as formações discursivas passam a

ser vistas como instáveis e heterogêneas e os sentidos, no interior das

formações discursivas, ficam na dependência do interdiscurso, das

articulações entre discursos.

Dessa maneira, as formações discursivas, mesmo que possam ser

descritas por algumas regras de formação que evidenciem suas regularidades,

se apresentam constitutivamente divididas, heterogêneas, pelo fato de que

coabitam num espaço de vozes dissonantes que se cruzam, entrecruzam,

dialogam, aproximam-se, divergem, opõem-se. Nesse caso, o papel do

analista de discurso seria descrever as relações que os discursos estabelecem

entre si, as particularidades dessas relações, os efeitos de sentido gerados

pelas apropriações/reelaborações de discursos. Levando-se em consideração

que as fronteiras das formações discursivas não são fixas, cabe estudá-las

não de modo independente e isoladas e sim apreendê-las na sua interação,

nas suas alianças, nos seus embates, por meio dos dispositivos teóricos que

orientam o acesso a elas.

Segundo Gregolin, Pêcheux construiu um novo objeto – o discurso –

que não é o dado empírico, que é diferente de texto e que coloca o linguístico

em articulação com a história.

[...] desde a sua fundação, na análise do discurso derivada de Pêcheux, o discurso é entendido como um conceito que não se confunde com o discurso empírico de um sujeito (parole saussureana), nem com um texto (o discurso não está na manifestação de seus encaixamentos; sendo um processo, é preciso desconstruir a discursividade para enxergá-lo), nem com a função comunicacional (contra a vulgata da “teoria da comunicação” jakobsoniana, que pensa o emissor e o receptor como sujeito empíricos). A análise visa apreender o novo objeto (discurso como processo), indagando sobre as condições de sua produção, a partir do pressuposto de que o discurso é determinado pelo tecido histórico-social que o constitui. (GREGOLIN, 2003, p. 7)

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Para Maingueneau, o discurso não é uma realidade nem só linguística

e nem só histórica, mas sim a junção dessas duas dimensões. Na AD,

descarta-se, pois, a possibilidade de se pensar o discurso em termos de uma

mera arquitetura que se manifestaria na superfície linguística, assim como se

descarta a possibilidade de se focalizar apenas o contexto social. Língua e

história apresentam-se inextricavelmente ligadas:

As unidades do discurso constituem, com efeito, sistemas, sistemas significantes, enunciados e, nesse sentido, têm a ver com uma semiótica textual; mas eles também têm a ver com a história que fornece a razão para essas estruturas de sentidos que elas manifestam (MAINGUENEAU, 2005, p. 16).

Orlandi (2002), em suas leituras de Pêcheux, afirma que os discursos

são duplamente determinados: de um lado pelas formações ideológicas que

relacionam os discursos a formações discursivas definidas e, de outro, pela

autonomia relativa da língua. Para o linguista, a língua pode ser indiferente ao

discurso uma vez que tem sua autonomia relativa regida por leis internas, mas,

para o analista de discurso, o discurso não é indiferente à língua. O discurso,

como diz Orlandi (2002, p. 22), inspirada em Courtine (1982), “[...] materializa o

contato entre o linguístico e o ideológico”, representando e manifestando

linguisticamente as contradições ideológicas. Segundo Orlandi (1998, p. 12),

não há uma relação direta do homem com o pensamento, a linguagem e o

mundo. A relação se dá por meio do discurso na medida em que ele é “[...]

uma das instâncias materiais (concretas) dessa relação”. Em resumo, o

discurso é o lugar do surgimento das significações.

1.3 OS CONCEITOS DE INTERDISCURSO & HETEROGENEIDADE DISCURSIVA

A primeira prefiguração do conceito de interdiscurso emerge ainda na

Análise Automática do Discurso, em 1969, sob a designação de não dito.

Todavia, nessa fase, a AD mantinha a concepção de uma máquina discursiva

estrutural fechada, em que os discursos menos estabilizados, conflitantes,

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marcados pela presença do Outro5 eram preteridos aos discursos mais

homogêneos. A partir da segunda fase, Pêcheux (1988) passa a afirmar que

“[...] toda formação discursiva dissimula, pela transparência de sentido que nela se constitui, sua dependência com relação ao ‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas, intricado no complexo das formações ideológicas”. (PÊCHEUX, 1988, p. 162)

A expressão “todo complexo com dominante” antecipa o conceito de

interdiscurso, já que o “todo” engloba as formações discursivas que estão

submetidas à “lei de desigualdade-contradição-subordinação” que rege o

complexo das formações ideológicas.

Segundo Brandão (1991, p.72), a análise de discurso, em vez de um

trabalho de homogeneização, deve realizar um trabalho que traga à tona as

contradições, o outro do discurso focalizado, que assuma a “[...]

heterogeneidade como elemento constitutivo de práticas discursivas que se

dominam, se aliam ou se afrontam em um certo estado de luta ideológica e

política, no seio de uma formação social em uma conjuntura histórica

determinada”. Citando Courtine e Marandin (1981), diz a autora:

O interdiscurso consiste em um processo de reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é conduzida [...] a incorporar elementos pré-construídos produzidos no exterior dela própria; a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar igualmente a lembrança de seus próprios elementos, a organizar sua repetição, mas também a provocar eventualmente seu apagamento, o esquecimento ou mesmo denegação. (COURTINE e MARANDIN, 1981, apud BRANDÃO, 1991, p.74)

Maingueneau (1997a, p. 17), em sua (re)elaboração do conceito de

discurso e de interdiscurso, procura torná-lo mais operacional à análise de

discurso propriamente falando. Para ele, o discurso é entendido como

interação/espaço de trocas entre vários discursos, adquirindo sentido somente

no interior do universo em que habitam muitos outros discursos, aí traçando o

seu percurso, constituindo/definindo sua identidade nessa relação com o seu

Outro. Por isso, o discurso não pode ser apreendido diretamente, a menos que

5 Nesse texto, o termo Outro refere-se ao conjunto de discursos que emergem/atravessam, de forma explícita ou não, uma dada FD.

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os analistas se limitassem a generalidades filosóficas. A AD parte de “um

entrelaçamento irrepresentável de textos no qual apenas hipóteses heurísticas

e pressupostos de ordens diversas permitem recortar unidades consistentes”

(1997a, p. 17).

Assim, Maingueneau (1997a e 2005) proclama o primado do

interdiscurso sobre o discurso. A unidade de análise não é, então, o discurso,

mas o espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos.

Um discurso teria a sua identidade estruturada a partir da relação

interdiscursiva e não antes e independentemente dos outros com os quais está

em interação.

Essa tese torna a análise mais complexa, dada a heterogeneidade

fundadora de todo discurso. A análise deixa de buscar fronteiras discursivas

palpáveis prévias à interação entre os discursos e passa a supor a

impossibilidade de fechamento das fronteiras, vistas como instáveis, abertas,

inconscientes, heterogêneas a elas próprias. Por outros termos, um discurso

se constitui na relação com discursos outros, na interdiscursividade, no

dialogismo, usando a terminologia de Bakhtin (1988).

Metodologicamente, a tese do primado do interdiscurso, leva à

constatação de que, “[...] a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas

um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos”

(MAINGUENEAU, 2005, p. 21). E, para chegar a esse espaço de troca de

vários discursos, o autor busca precisar o conceito de interdiscurso por meio do

tripé: universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo:

[...] universo discursivo (é) o conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada. Este universo é necessariamente finito, mesmo que não possa ser apreendido em sua globalidade. É de pouca utilidade para o analista e define apenas uma extensão máxima, o horizonte a partir do qual serão construídos domínios suscetíveis de ser estudados, os “campos discursivos”. (MAINGUENEAU, 2005, p. 35) [...] campo discursivo é [...] um conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo. ‘Concorrência’ deve ser entendida da maneira mais ampla; inclui tanto o confronto aberto quanto a aliança, a neutralidade aparente etc. entre discursos que possuem a mesma função social e divergem sobre o modo pelo qual ela deve ser preenchida. Pode se tratar do campo político, filosófico,

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dramatúrgico, gramatical etc. Esse recorte em ‘campos’ não define zonas insulares; é apenas uma abstração necessária, que deve permitir múltiplas redes de trocas. (...) Não é possível, pois, determinar a priori as modalidades das relações entre as diversas formações discursivas de um campo. É-se então conduzido a isolar, no campo, “espaços discursivos” (MAINGUENEAU, 2005, p. 35-37) [...] espaço discursivo delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando pelo menos duas formações discursivas que, supõe-se, mantêm relações privilegiadas, cruciais para a compreensão dos discursos considerados. Este é, pois, definido a partir de uma decisão do analista, em função de seus objetivos de pesquisa (MAINGUENEAU, 1997a, p. 117).

Na proposição de Maingueneau (2005), passa-se do universo

discursivo, que é inapreensível pela sua abertura e amplitude, para o campo

discursivo, onde os discursos se encontram em relação uns com os outros, e

desse para o espaço discursivo. E para passar do ‘campo’ ao ‘espaço’

discursivo, subsumindo o princípio de que o interdiscurso é absolutamente

inalienável do intradiscurso, o analista ensaia hipóteses, lastreadas num

conhecimento de textos e num saber histórico sobre as prováveis trocas, sobre

o provável enredamento dos discursos na constituição de um discurso. Enfim, a

definição dos componentes dos espaços discursivos é variável e resulta das

hipóteses e recortes efetuados pelo analista. Mais precisamente, um espaço

discursivo não se encontra posto à disposição de quem queira estudá-lo, mas é

construído pelo olhar do analista. No caso de nossa pesquisa, o ponto de

ancoragem é o campo discursivo da língua e o espaço delimitado para análise

enreda os discursos gramatical e linguístico, a propósito do tema “fonologia”,

notadamente, “variação fonológica”.

Para examinar a natureza das relações interdiscursivas, a relação que

os discursos mantêm entre si, Maingueneau (2005) recorreu aos conceitos de

heterogeneidade constitutiva e heterogeneidade mostrada propostos por

Authier-Revuz (2004) com base no conceito de dialogismo de Bakhtin (1988),

que pressupõe, como lei constitutiva do discurso, que “o lugar do ‘outro

discurso’ não é ao lado, mas no discurso” (Authier-Revuz, 2004, p. 37). A

heterogeneidade mostrada pode ser marcada, percebida na superfície

linguística de um texto, ou não-marcada, apresentada de forma velada, diluída

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no “novo” texto. A autora indica algumas dessas formas de heterogeneidade

mostrada, que acusam a presença explícita ou implícita do outro:

a. o discurso relatado (discurso direto e indireto), com as quais o locutor cita de modo direto, tal e qual, o discurso do outro, recortando as palavras do outro e citando-as, pondo-se, assim, enquanto “porta-voz” desse outro; ou, de maneira indireta, pessoaliza o modo de dizer o discurso do outro, interferindo no dito, relatando-o à sua maneira, pondo-se enquanto tradutor do outro.

b. as formas marcadas de conotação autonímica em que o locutor

inscreve o seu discurso, não interrompendo o fio discursivo, mas demarca as palavras do outro por intermédio de aspas, itálicos, entonações diferenciadas.

c. formas mais complexas em que a presença do outro se apresenta

em um espaço não transparente e sim implícito, semidesvelado, sugerido, é o caso do discurso indireto livre, da ironia, da antífrase, da alusão, da imitação, da reminiscência. Não há uma fronteira nítida entre a fala do locutor e a do outro, as vozes se imiscuem nos limites de uma única construção linguística. (AUTHIER-REVUZ, 2004, p.13-18)

Para Authier-Revuz (2004), os dois níveis de heterogeneidade

mostrada: a marcada e a não-marcada, são, na verdade, formas linguísticas

de representação de diferentes modos de negociação do sujeito falante com a

heterogeneidade constitutiva, sendo a mostrada não-marcada uma forma mais

arriscada de negociação porque, ao jogar com a diluição, é mais dificilmente

controlada pelo sujeito. Já heterogeneidade constitutiva não pode ser

apreendida por uma abordagem que busque vestígios linguísticos

denunciadores da presença do outro e, por isso mesmo, Maingueneau a vê

como o cerne do interdiscurso:

[...] quando os linguistas precisam encarar a heterogeneidade enunciativa, são levados a distinguir duas formas de presença do “Outro” no discurso: a heterogeneidade “mostrada” e a heterogeneidade “constitutiva”. Só a primeira é acessível aos aparelhos linguísticos, na medida em que permite apreender sequências delimitadas que mostram claramente sua alteridade (discurso citado, auto-correções, palavras entre aspas, etc..). A segunda, ao contrário, não deixa marcas visíveis: as palavras, os enunciados de outrem estão intimamente ligados ao texto que não podem ser apreendidos por uma abordagem linguística stricto sensu. Nossa hipótese do primado do interdiscurso, inscreve-se nessa perspectiva de uma heterogeneidade constitutiva que amarra, em

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uma relação inextricável, o Mesmo do discurso e seu Outro (MAINGUENEAU, 2005, p. 33) (Grifo nosso)

Enfatiza Maingueneau (2005, p. 35) que esse Outro do discurso, em um

espaço discursivo, não é um fragmento que possa ser apontado, nem é

necessário que isso se dê por uma ruptura visível, pois o Outro encontra-se na

raiz do Mesmo e já descentrado com relação a si próprio, sem autonomia

plena. O Outro é “aquela parte do sentido que foi necessário que o discurso

sacrificasse para constituir sua identidade – e cujos elementos nunca são

tomados ou retomados, a não ser como simulacros”.

1.4 A POLÊMICA COMO INTERINCOMPREENSÃO

Maingueneau (1997a e 2005), partindo da tese do primado do

interdiscurso sobre o discurso, afirma que o caráter constitutivo da relação

entre os discursos se dá por interações polêmicas entre eles. Para ele (1997a),

mesmo na ausência de qualquer vestígio do Outro, de alguma forma de

heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido está inscrita em sua

relação essencial com outra(s), aquela(s) do ou dos discursos em relação

ao(s) qual/quais o discurso de que ela deriva define sua identidade. A

identidade discursiva, desse modo, é, de ponta a ponta, construída na relação

com o Outro – “[...] um discurso não nasce de um retorno às próprias coisas,

ao bom senso etc., mas de um trabalho sobre outros discursos” (Maingueneau,

1997a, p. 120).

Contudo, o trabalho de Maingueneau (2005, p. 103) sobre o caráter

polêmico do interdiscurso desenvolve-se de forma mais específica sobre

discursos que dividem o mesmo espaço discursivo, já que aí os discursos

polemizam não só constitutivamente, mas também apresentam isso através de

uma heterogeneidade mostrada, pelas marcas ou índices que podem ser

detectados na superfície linguística dos enunciados através dos simulacros

construídos pelo discurso agente (aquele que se encontra na posição de

discurso tradutor) em relação ao discurso paciente (aquele que se encontra na

posição de discurso traduzido). Alguns discursos se constituem por meio de

uma rede dialógica polêmica, no confronto com outras formações discursivas.

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Trazem-nas para o seu interior discursivo, mas sob a forma de

denegação/rejeição. Diz o autor:

Um enunciado de uma formação discursiva pode, pois, ser lido em seu “direito” e em seu “avesso”: em uma face, significa que pertence ao próprio discurso, na outra, marca a distância constitutiva que o separa de um ou de vários discursos. Nesta perspectiva, as eternas polêmicas em que as formações discursivas estão envolvidas não surgem de forma contingente do exterior, mas são a atualização de um processo de delimitação recíproca, localizado na própria raiz dos discursos considerados. (MAINGUENEAU, 1997a, p. 120)

Aquele que se coloca na posição de discurso agente (tradutor) para

constituir sua identidade inserirá/traduzirá o discurso do Outro - discurso

paciente (traduzido) - em seu recinto, pelas suas próprias categorias

semânticas (as categorias semânticas do Mesmo). Consoante Maingueneau

(2005, p. 103), “[...] não há dissociação entre o fato de enunciar em

conformidade com as regras de sua própria formação discursiva e de “não

compreender” o sentido dos enunciados do Outro; são duas facetas do mesmo

fenômeno” que ocorrem porque cada discurso é delimitado por sua grade

semântica que, em um mesmo movimento, funda um desentendimento

recíproco. Quer dizer, traduzir o Outro do discurso significa projetar sobre ele

as categorias negativas da grade semântica do Mesmo, significa, pois, fazer

dele um simulacro:

Cada discurso repousa, de fato, sobre um conjunto de semas repartidos em dois registros: de um lado, os semas “positivos” reivindicados; de outro os semas “negativos”, rejeitados. A cada posição discursiva se associa um dispositivo que a faz interpretar os enunciados de seu Outro traduzindo-os nas categorias do registro negativo de seu próprio sistema. Em outras palavras, esses enunciados do Outro só são “compreendidos” no interior do fechamento semântico do intérprete; para constituir e preservar sua identidade no espaço discursivo, o discurso não pode haver-se com o Outro como tal, mas somente como simulacro que constrói dele. (MAINGUENEAU, 2005, p.103)

Assim, a relação entre dois discursos em posição de delimitação pode

ser compreendida como um processo de “tradução” generalizada, ligada a

uma interincompreensão. Não podemos confundir “tradução” aqui como

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tradução de uma língua para outra, mas sim como tradução de uma FD por

outra FD, no interior de uma mesma língua. A interincompreensão (processo

de dupla tradução) permite-nos aprofundar o mecanismo polêmico. Segundo

Maingueneau, a polêmica pode, assim, ser caracterizada como a interpelação,

a resposta do adversário de maneira que possa anular o seu discurso ou

rebaixá-lo. Isso se dá em forma de enfrentamento, com a inserção e ao

mesmo tempo expulsão do Outro de seu recinto. A polêmica figura “[...] como

uma espécie de homeopatia pervertida: ela introduz o outro em seu recinto

para melhor conjurar a ameaça, mas esse outro só entra anulado enquanto tal,

simulacro (MAINGUENEAU, 2005, p. 113)”.

Todavia, essa relação entre formações discursivas, regrada pelas

condições de possibilidade das diversas posições enunciativas, não gera

discursos, como se poderia pensar, com sentidos estáveis, relacionados a

posições absolutas, nascidos somente de um retorno às próprias coisas, mas

sim de um trabalho de reconstrução/construção sobre outros discursos o que

gera sentidos instáveis, uma vez que são construídos no intervalo entre

posições enunciativas diversificadas.

Essa representação da polêmica não pressupõe que a própria noção de oposição entre duas formações discursivas seja unívoca. Ao contrário, ela pode recobrir relações diversas, pois, em um discurso, não existe relação com um Outro que seja independente de sua própria organização semântica. Não existe, pois, polêmica “em si” que possa ser abstraída dos discursos considerados: o discurso constrói, em um mesmo movimento, sua identidade e sua relação com os discursos, os quais lhes permitem estabelecê-la. (MAINGUENEAU, 1997a, p. 122)

Maingueneau afirma que o conceito de polêmica como

interincompreensão mantém-se no mesmo patamar de um sistema global, ou

seja, apesar de ser comumente entendido como uma forma de conflito

“perceptível” na superfície linguística, marcado por controvérsias explícitas, a

polêmica presentifica-se na forma de um dialogismo constitutivo.

Destarte, Maingueneau em suas observações teóricas procura não

dissociar o “superficial” do “profundo”. Os discursos relacionam-se

constantemente, imbricam-se sem que haja necessidade de uma forma de

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citação aparente/mostrada na superfície linguística. Nesse nível, então, tanto

uma citação ruidosa/polêmica que um discurso faz do seu Outro, quanto o

silêncio “calculado”, a denegação, que um pode manter em relação ao Outro,

são fenômenos de uma mesma face dialógica.

No nível de uma heterogeneidade mostrada, a polêmica assume uma

forma mais usual, visível na superfície linguística: a forma de controvérsia,

manifestada em variados graus de oposição. Um discurso envolvido em uma

polêmica poderá referir-se ao seu Outro de forma clara, usando expressões

variadas: diretas, agressivas, mal intencionadas, irônicas, intrigantes,

ameaçadoras etc., mas todas essas expressões serão desferidas pelo Mesmo

a partir de um simulacro do Outro. Este, em um caso de “forte polêmica”,

jamais compreenderá ou aceitará o que vem da oposição, pois, se o fizer,

juntar-se-á ao opositor, perdendo sua identidade, diluindo-se em uma ideologia

alheia.

Ao ponderar sobre os níveis nos quais se pode investigar o fenômeno da

“polêmica”, Maingueneau (2005) declara que:

Para evitar reduzir a especificidade desse nível propriamente polêmico, distinguiremos um nível dialógico, o da interação constitutiva, e um nível polêmico, que, como se esclareceu no parágrafo anterior, se responsabiliza pela heterogeneidade “mostrada”, a citação, no sentido mais amplo. (MAINGUENEAU, 2005, p. 112)

Disso se conclui que o estudo do dialogismo/polêmica pode ser de

grande interesse para AD, não apenas por dar conta das controvérsias

explícitas, mas por revelar o próprio processo de constituição dos discursos.

No caso de nosso estudo, o espaço discursivo é um continente ocupado por

aqueles que se dizem afiliados/defensores da gramática tradicional

contraposto ou não ao discurso dos afiliados/defensores da linguística

moderna. Buscamos, pois, capturar em livros didáticos do ensino médio

marcas das controvérsias sabidamente existentes no campo das Letras entre o

discurso gramatical e o discurso linguístico ou apagamento/silenciamento de

um deles pelo Outro ou ainda o entrelaçamento amistoso/produtivo entre eles,

demandado pelos órgãos oficiais.

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1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Consoante Maingueneau (1997b, p. 16), dificilmente um analista abarca

a totalidade de um campo discursivo em sua pesquisa, tendo em vista a

pluralidade de relações entre os discursos que o constituem. Não podemos nos

esquecer de que um campo discursivo é dinâmico, uma arena onde se

enredam diferentes posições discursivas, perfilando diferentes configurações e,

portanto, diferentes possibilidades de espaços discursivos, conforme os

propósitos do pesquisador. Geralmente, o espaço discursivo recortado é

“constituído, no mínimo, por dois posicionamentos discursivos que mantenham

relações particularmente fortes”.

O campo dos discursos sobre a língua é um dos mais prolíferos, afinal o

fato de o homem se diferenciar dos outros animais por ter uma linguagem

articulada foi motivo de reflexão desde a aurora do pensamento grego, que é o

esteio do pensamento ocidental. Assim, considerando estar num campo em

constituição desde a antiguidade clássica, um campo farto e complexo de

enunciados sobre a língua, o analista recorta subconjuntos de discursos

mediante conjeturas historicamente motivadas acerca das relações que travam

entre si não apenas em seu próprio campo, mas também com discursos de

outros campos. Nesse estudo, isolamos do campo da língua o espaço formado

pelo(s) discurso(s) do/sobre o ensino de língua portuguesa na sua relação com

o(s) discurso(s) da linguística moderna, mais exatamente, com o discurso da

fonética e fonologia. Não podemos ignorar que nesse espaço é inevitável a

presença ostensiva do discurso da tradição gramatical, já que ele foi/é o

tentáculo do discurso do/sobre o ensino de língua.

Circunscrito o espaço, o estudioso do discurso tem de enfrentar a tarefa

de constituição do corpus. Pêcheux nomeia duas vias de construção do corpus:

a via arquivista e a via experimental. Segundo Revel (2005, p.18), em Foucault,

o arquivo designa “o conjunto dos discursos efetivamente pronunciados numa

época dada e que continuam a existir através da história”. Trata-se, pois, de

uma massa documentária pronta a ser perscrutada por uma pesquisa

arqueológica que deslinde “as suas regras, suas práticas, suas condições e

seu funcionamento”. Nas palavras de Revel, a arqueologia foucaultiana

consiste em realizar:

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[...] um trabalho de recuperação do arquivo geral da época escolhida, isto é, de todos os traços discursivos suscetíveis de permitir a reconstituição do conjunto das regras que, num momento dado, definem ao mesmo tempo os limites e as formas da dizibilidade, da conservação, da memória, da reativação e da apropriação. (REVEL, 2005, p. 18 e 19).

O arquivo é, destarte, formado por documentos pertinentes, conservados

e disponíveis sobre uma questão (PÊCHEUX, 1994). Pela via experimental, os

dados que constituem o corpus são obtidos por meio de uma cenografia que

põe os locutores em situação de teste. No presente estudo, o corpus será

montado com enunciados extraídos do arquivo de textos sobre/do ensino de

língua portuguesa, mais precisamente, de livros didáticos de ensino médio. O

recorte dos enunciados levará em conta o trajeto temático “fonética e

fonologia”. Os dados não são imediatamente disponíveis para o analista, mas

existem em potencial e precisam ser selecionados e organizados por ele. De

acordo com Possenti (2006, p. 96), o analista do discurso "necessariamente

privilegiará determinados aspectos, o que dependerá de seu projeto de

análise”. Isso o levará a delimitar, organizar e pôr em correspondência os

enunciados que compõem o corpus. Enfatiza, ainda, o autor:

Um corpus não se dá ao analista, evidentemente, mas também não é verdade que o analista o cria: ele apenas o organiza, o que exige um certo trabalho (até mesmo braçal): reunir material, classificar e reclassificar, destacar aspectos relevantes, anotar, buscar outros textos etc. Ou seja: tomar a sério o acontecimento discursivo de que se trata, verificar sua natureza, sua eventual heterogeneidade (POSSENTI, 2006, p. 96 e 97)

Em análise de discurso, como assinala Orlandi (2000, p. 72), “não se

toma o texto como ponto de partida absoluto nem de chegada. Um texto é só

uma peça de linguagem de um processo discursivo bem mais abrangente. Ele

é um exemplar do discurso”. Os textos, melhor dizendo, os livros didáticos

serão, pois, a fonte de onde se extrairão os enunciados que formarão as

famílias parafrásticas a serem remetidas aos discursos, às formações

discursivas e, por último, às formações ideológicas. A relevância do texto para

a AD reside no fato de ele ser visto como parte de uma cadeia. Pouco importa

se ele é ou não é uma unidade de sentido, o que conta é o fato de ele ser “uma

superfície discursiva, uma manifestação aqui e agora de um processo

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discursivo específico” (POSSENTI, 2004, p. 364). De acordo com a AD, o

discurso é “uma prática”, “um processo em curso”, uma “dispersão de textos” e

não um “conjunto fechado de textos”. Isso implica dizer que “O texto é a

unidade que o analista tem diante de si e da qual ele parte” (ORLANDI, 2000,

p. 63). Contudo, como procedimento analítico, o pesquisador deve

[...] procurar remeter os textos ao discurso e esclarecer as relações deste com as formações discursivas pensando, por sua vez, as relações desta com a ideologia. Este é o percurso que constitui as diferentes etapas da análise, passando-se da superfície linguística ao processo discursivo (ORLANDI, 2000, p. 71).

Em uma primeira etapa, deparamo-nos com uma materialidade

linguística de natureza textual. Posteriormente reenviamos os enunciados do

corpus a formações discursivas, mais e melhor dizendo, ao interdiscurso. O

jogo paradoxal entre estabilidade e mudança, entre o mesmo e o diferente, é

condicionado pelas relações interdiscursivas que ocorrem incessantemente no

interior das formações discursivas, por meio de processos parafrásticos e

polissêmicos6.

A constituição do corpus não visa à exaustividade horizontal. Aliás, essa

é uma exigência impossível de ser cumprida, uma vez que “todo discurso se

estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro”

(ORLANDI, 2000, p. 62), numa cadeia que não cessa de se expandir e que, por

isso mesmo, dificilmente se deixa capturar inteiramente pela análise. A

exaustividade almejada é a vertical, aquela que faz do dado linguístico um fato

de linguagem, “com sua memória, sua espessura semântica, sua materialidade

linguístico-discursiva” (ORLANDI, 2000, p. 63).

Construir/organizar um corpus é já uma operação em grande parte

teórica – há um ir e vir entre a construção e a análise do corpus e não

sequencialidade. Consoante Pêcheux e Fuchs (1975/1993, p. 180 e 181), a

análise envolve três níveis:

6 Conforme Orlandi (2000, p. 36), “Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços do dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco”.

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superfície linguística

______objeto discursivo

_____processo discursivo

No primeiro nível, a superfície linguística deve ser entendida como

sequência oral ou escrita de dimensão variável, em geral superior à frase.

Trata-se aí de um “discurso” concreto, isto é, do objeto empírico afetado pelos

esquecimentos 1e 27, na medida em que é o lugar de sua realização, sob a

forma, coerente e subjetivamente vivida como necessária, de uma dupla

ilusão. Consoante Orlandi,

Nesse momento da análise é fundamental o trabalho com as paráfrases, sinonímia, relação do dizer e não-dizer etc. Esta etapa prepara o analista para que ele comece a vislumbrar a configuração das formações discursivas que estão dominando a prática discursiva em questão. O que ele faz é tornar visível o fato de que ao longo do dizer se formam famílias parafrásticas relacionando o que foi dito com o que não foi dito, com o que poderia ser dito etc. Estes outros dizeres aí observados dão as delimitações das formações discursivas que intervêm, fazendo as palavras significarem de maneira x ou y (ORLANDI, 2000, p.78).

No segundo, o objeto discursivo deve ser entendido como resultado da

transformação da superfície linguística de um discurso concreto em objeto

teórico, isto é, em um objeto linguisticamente de-superficializado, produzido

por uma análise linguística que visa anular a ilusão-esquecimento n° 2, a

ilusão da realidade do pensamento. Nessa etapa, o analista busca relacionar

as formações discursivas delineadas a partir da paráfrase e da sinonímia à

formação ideológica que as rege, atingindo o processo discursivo.

7 O esquecimento 1 reflete o sonho adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem, ser o primeiro homem, dizendo as primeiras palavras que significariam apenas e exatamente o que queremos. Na realidade, embora se realizem em nós, os sentidos apenas se representam como originando-se em nós: eles são determinados pela maneira como nos inscrevemos na língua e na história e é por isto que significam e não pela nossa vontade. O esquecimento 2 produz em nós a impressão de realidade do pensamento. Essa impressão, que é denominada de referencial, nos faz crer que há uma relação direta entre o pensamento, a linguagem e o mundo [...]. Ela estabelece uma relação natural entre palavra e coisa. É um esquecimento semi-consciente e muitas vezes voltamos sobre ele, recorremos a esta margem de famílias parafrásticas, para melhor especificar o que dizemos. É o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o modo de dizer não é indiferente aos sentidos (ORLANDI, 2000, p. 35).

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No terceiro, o processo discursivo deve ser entendido como resultado

da relação regulada de objetos discursivos correspondentes a superfícies

linguísticas que derivam elas mesmas de condições de produção estáveis e

homogêneas. Este acesso ao processo discursivo é obtido por uma de-

sintagmatização que incide na zona de ilusão-esquecimento n° 1. Atingida aí a

constituição dos processos discursivos responsáveis pelos efeitos de sentido

produzidos pelo material simbólico, o analista chega à discursividade,

desprendendo-se dos textos como objetos acabados.

Com base nesses movimentos de leitura, podemos dizer que a

consideração dos textos do/sobre o ensino de língua portuguesa, ou seja, dos

livros didáticos, é indispensável no nível 1, mas absolutamente dispensável no

nível 3. Atingido o nível 3, a compreensão dos sentidos deve levar em conta o

processo discursivo.

Outro aspecto metodológico da análise de discurso que deve ser

lembrado é a simultaneidade entre a descrição e a interpretação, decorrente da

natureza heterogênea de seu objeto – o interdiscurso. Entre a descrição e a

interpretação há não sucessão, mas dobra de uma sobre a outra. Evitando

praticar assepsia da significação, como fez a semântica estruturalista, a análise

de discurso, confrontada com a deriva do sentido, com a possibilidade do

equívoco, em vista do enredamento com o sentido-outro, funciona como uma

disciplina interpretativa.

De acordo com a orientação teórica da AD, um mesmo enunciado pode

ser interpretado de formas diferentes dependendo do posicionamento

discursivo de quem enuncia, uma vez que os sentidos não são da ordem da

língua, mas das formações discursivas. Nosso dispositivo de análise confere à

relação interdiscursiva o estatuto principal na constituição da discursividade.

Um espaço interdiscursivo é marcado por relações constantes de referências,

incorporações, citações diretas ou indiretas, rejeições entre seus discursos, ou

seja, formas várias e incessantes de heterogeneidade enunciativa, mostrada e

constitutiva. A heterogeneidade mostrada surge/é verificável em um nível

superficial/linguístico, como formas discerníveis de citação, que evidenciam a

alteridade discursiva. A heterogeneidade constitutiva não é verificável na

superfície discursiva, sua evidência só pode ser constatada pela dinâmica do

interdiscurso, que “amarra, em uma relação inextricável, o Mesmo do discurso

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e seu Outro” (MAINGUENEAU, 2005, p. 31). A heterogeneidade constitutiva só

é apreendida no nível da discursividade, do processo discursivo.

No processo de análise, para a busca da constituição dos sentidos

delineados pelos processos discursivos, há que se considerar também o não

textualizado como relevante ao processo da compreensão, pois é parte da

significação a ser considerada pelo fato de que a língua/os textos tratada(os)

enquanto discurso não se fecham como unidades de sentido, mas se

relacionam com sentidos não diretamente apontáveis no material linguístico

(texto), porém significativos: o não-dito, o silenciado. Para Pêcheux e Fuchs,

[...] os processos de enunciação consistem em uma série de determinações sucessivas pelas quais o enunciado se constitui pouco a pouco e que têm por características colocar o “dito” e em consequência rejeitar o não dito. A enunciação equivale a colocar fronteiras entre o que é “selecionado” e tornado preciso aos poucos (através do que se constitui o “universo do discurso”, e o que é rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de “tudo o que teria sido possível ao sujeito dizer (mas não diz)” ou ao campo de ‘tudo o que a que se opõe o que o sujeito disse” (PÊCHEUX e FUCHS, 1975/1993, p.175 e 176).

Orlandi expande os estudos semânticos sobre o não-dito, abordando a

questão do silêncio (2002, p. 23), “[...] se a linguagem implica silêncio, este,

por sua vez, é o não-dito visto do interior da linguagem. Não é o nada, não é o

vazio sem história”. É o silêncio significante que dá abertura às possibilidades

de interpretação. Não se pode compreender o funcionamento da linguagem

sem compreender o estatuto particular do silêncio nos processos de

significação. Orlandi vislumbra diferentes tipos de silêncio e assim os

denomina:

a) fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito e que dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar e b) a política do silêncio que se subdivide em b1) silêncio constitutivo, o que indica que para dizer é preciso não-dizer (uma palavra apaga necessariamente as “outras palavras”) e b2) o silêncio local, que se refere à censura propriamente (aquilo que é proibido dizer em uma certa conjuntura). Isso tudo nos faz compreender que estar no sentido com palavras e estar no sentido em silêncio são modos absolutamente diferentes entre si. E isto faz parte da nossa forma de significar, de nos relacionarmos com o mundo, com as coisas e com as pessoas. (ORLANDI, 2002, p.23-24)

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Há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude

da linguagem. Ele é um dos modos de compreendê-la, já que todo dizer tem

uma relação fundamental com o não-dizer, com discursos outros, porque se

movimentam, circulando em espaços diferenciados, o que nos leva a dizer que

a interpretação trabalha com essa possibilidade: de não alcançar a completude

dos sentidos no material de análise, de deixá-los abertos, vendo-os enquanto

qualidade e não defeito. Essa falta é também lugar das outras possibilidades

na/para a linguagem, é a abertura do simbólico, o não fechamento dos

sentidos.

Esta dimensão nos leva a apreciar a errância dos sentidos (a sua migração), a vontade do “um” (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non sense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível), não como meros acidentes da linguagem, mas como o cerne mesmo de seu funcionamento (ORLANDI, 2002, p12).

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CAPÍTULO 2

A FONÉTICA E A FONOLOGIA NO CAMPO DA LINGUÍSTICA

A “fonética” é muito anterior à “fonologia”. Desde a antiguidade

clássica, há registros de estudos fonéticos, mas eles atingem seu ápice e

conquistam o status de ciência apenas no final do século XIX com a

descoberta dos trabalhos dos foneticistas indianos, com os estudos

comparatistas e com os progressos feitos no campo instrumental. Até então

a fonética se confundia com o estudo da pronúncia correta das letras e das

palavras e era, portanto, uma disciplina normativa. Conforme Callou e Leite

(1990, p. 47), é nesse século que a fonética, desvencilhada da escrita,

passa a ser entendida como “[...] a ciência dos sons e sua classificação”.

Para tanto, a criação do Alfabeto Fonético Internacional (AFI), em 1888,

colabora sobremaneira, representando “[...] o coroamento de um esforço de

se distinguir letra de som e de representar por símbolos distintos sons

diferentes” (CALLOU & LEITE, 1990, p. 49).

2.1 O ALFABETO FONÉTICO INTERNACIONAL – AFI

O AFI foi criado pela Association Phonétique Internationale, um

grupo de professores de idiomas franceses e britânicos, liderado por Paul

Passy. O objetivo da associação era criar um sistema de transcrição dos

sons independente de qualquer língua e, por isso mesmo, aplicável a todas

as línguas. Em princípio, o uso do AFI estava associado quase que

exclusivamente ao ensino de língua estrangeira e à produção de dicionários

para esse fim. Porém, com a constituição da linguística moderna, no início

do século XX, ele avulta como um imprescindível instrumento para o

registro e posterior descrição de línguas apenas orais, além de constituir a

base para a proposição de sistemas de escrita para tais línguas. O AFI

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também torna possível a transcrição dos sons de línguas cujos sistemas de

escritas não são alfabéticos, como o chinês, por exemplo. Desde a sua

criação, o AFI passou por diversas revisões, a última delas ocorreu em

maio de 2005. Reproduzimos, a seguir, dois quadros atualizados do AFI,

relativos, respectivamente, às consoantes pulmonares (já que o português

não possui consoantes não pulmonares) e às vogais.

Fonte: http://www.omniglot.com/writing/ipa.htm

Fonte: http://www.omniglot.com/writing/ipa.htm

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Os símbolos usados no AFI, em sua maioria, originam-se do alfabeto

latino e do grego ou de modificações de ambos. Porém, há símbolos que

não pertencem a nenhuma desses alfabetos, a exemplo do símbolo que

indica a oclusiva glotal, [Ȥ], que tem a forma de um ponto de interrogação e

era originalmente um apóstrofo. Os valores sonoros de muitas das

consoantes e vogais retiradas do alfabeto latino correspondem ao seu "uso

internacional". Por exemplo, as consoantes <b>, <d>, <f>, <k>, <l>, <m>,

<n>, <p>, <t>, <v> e <z> e as vogais <a>, <e>, <i>, <o>, <u> do alfabeto

latino assumem, no AFI, os mesmos valores sonoros que têm no português.

Outras letras representam valores diferentes do português, que lhes são

atribuídos em outras línguas, como <j>, que representa a semivogal

anterior, grafada geralmente com <i>, às vezes <e>, em nosso sistema de

escrita, e não a consoante fricativa palatal sonora [Z], grafada com <j> ou

com <g> em nosso sistema de escrita. O princípio geral do AFI é fornecer

um símbolo para cada som ou segmento de fala distinto. Isto significa que o

AFI não se utiliza de combinações de letras para representar sons únicos,

ou de letras únicas para representar mais de um som (como o <x> pode

representar [ks] no português). No AFI não existem letras que têm valores

sonoros diferentes de acordo com o contexto (como o <c> que possui o

som de [s] antes de <e> e <i> e de [k] antes de <a>, <o> e <u> no

português).

Usando o AFI, podemos fazer tanto a transcrição fonética quanto a

transcrição fonológica. Na transcrição fonética, os sons são analisados com

base nas suas características articulatórias e auditivas, sem levar em conta

seu funcionamento na língua que está sendo transcrita.

Convencionalmente, indicamos a transcrição fonética por meio de

colchetes, como, por exemplo, a palavra <tia> pronunciada como [‘tSiå] ou

[‘tiå]. Por mais próxima da pronúncia real que seja uma transcrição fonética,

ela nunca lhe será completamente fiel, pois a fala é contínua e a transcrição

a representa de modo segmentado. Há que diga que apenas as

transcrições feitas mediante instrumentos (espectogramas e palatogramas)

é que são de fato fieis à fala. Já nas transcrições fonológicas, as unidades

simbolizadas são os fonemas, definidos pela função linguística que

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exercem no interior do sistema. Assim, o número de símbolos empregados

numa transcrição fonológica é incomparavelmente menor do que numa

transcrição fonética. Convencionalmente, indicamos a transcrição

fonológica por meio de barras inclinadas, como por exemplo a palavra <tia>

/tia/. Salientamos, ademais, que uma transcrição fonológica sempre reflete

um determinado ponto de vista teórico. Por exemplo, se consideramos que

não há vogais nasais no português como fonema, nossa transcrição

fonológica da palavra <lã> será /laN/, porém, se considerarmos que há,

nossa transcrição será /lã/.

2.2 A INDEPENDÊNCIA E A CONSTITUIÇÃO DA FONOLOGIA COMO CIÊNCIA

O termo “fonologia” foi cunhado no final do século XVIII, mas era

entendido como ciência dos sons da fala, recobrindo, numa relação

sinonímica, o termo “fonética”. A primeira tentativa de desenredar o estudo

fonológico do som daquele fonético ocorreu no final do século XIX, com o

trabalho do polonês Baudouin de Courtenay (1845-1929). Seu trabalho

antecipou os princípios da linguística sincrônica estruturalista do século XX,

ao propor que o estudo das línguas contemporâneas distinguisse a

dimensão estática (um grupo de elementos abstratos ligados à significação)

da dimensão dinâmica (a implementação individual da língua por meio da

fala). Com ele prefigurou-se o sentido que o conceito de fonema assumiria

com o Círculo Linguístico de Praga. A distinção entre a dimensão estática

e a dinâmica o levou a separar a psicofonética, que estudaria os elementos

(fonemas) com função na significação, da fisiofonética, que estudaria os

sons como realizações individuais (COURTENAY, apud CALLOU e LEITE,

1990, p. 12).

No começo do século XX, Saussure ([1916], 1975) dá um passo a

mais na constituição da fonologia como ciência linguística independente da

fonética. Com um pé no século XIX (tempo de estudos diacrônicos das

línguas) e outro no século XX (tempo de estudos sincrônicos das línguas),

Saussure (1975, p. 43) define a fonética como uma ciência histórica que

“[...] analisa acontecimentos, transformações e se move no tempo” e a

fonologia como uma ciência que “[...] se coloca fora do tempo, já que o

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mecanismo da articulação permanece sempre igual a si mesmo”. Em

Saussure vemos se esboçar, em paralelo com a distinção

fonética/fonologia, uma definição de fonema análoga à de Courtenay, pois o

autor se refere às unidades in abstrato, fora do tempo, em comparação com

as unidades concretas realizadas na cadeia falada que tem um

desenvolvimento temporal. Para a definição das unidades abstratas, o

parâmetro é o “caráter distintivo”, como podemos ler no seguinte excerto:

Os elementos obtidos primeiramente pela análise da cadeia falada são como elos dessa cadeia, momentos irredutíveis que não se podem considerar fora do tempo que ocupam. Assim, um conjunto como ta será sempre um momento mais outro momento, um fragmento de certa extensão mais outro fragmento. Em compensação, o fragmento irredutível t, tomado à parte, pode ser considerado in abstrato, fora do tempo. Pode-se falar do t em geral, como da espécie T (designaremos as espécies por maiúsculas), do i como da espécie I, levando-se em conta apenas o caráter distintivo e deixando de parte aquilo que depende da sucessão no tempo (SAUSSURE, [1916]1975, p. 51).

Além de propor a separação entre a fonética e a fonologia, a

primeira como sendo um estudo diacrônico dos sons e a segunda como

sendo um estudo sincrônico, Saussure, ao postular que a linguagem verbal

compreendia dois aspectos – a língua (langue) e a fala (parole) – preparou

o terreno para que o estabelecimento das fronteiras entre elas se

completasse.

Os trabalhos de Nicolai Trubetzkoy, Roman Jakobson e outros

componentes do Círculo Linguístico de Praga, no 1º Congresso

Internacional de Linguística, realizado em Haia, em 1928, foram decisivos

para a constituição da fonologia como um campo distinto da fonética, tendo

um objeto de estudo próprio. Segundo Mori (2003, p. 149), esses autores

sentiram a necessidade de estabelecer a diferença entre uma ciência que

se ocupasse dos sons da fala – a fonética – e outra ligada aos sons da

língua – a fonologia. Essa diferenciação das duas ciências dos sons na

base das dicotomias saussureanas língua/fala, sincronia/diacronia e

sintagma/paradigma guardava, em estado de latência, a possibilidade de

uma definição do fonema como entidade relativa, opositiva e negativa.

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Tendo por referência tais dicotomias, os fonemas, no interior de um sistema

linguístico sincrônico, se definem não por propriedades particulares

positivas, mas por um ter o que o(s) outro(s) não têm. Dessa forma, na

esteira do pensamento saussureano, entre as décadas de 1920 e 1930, o

fonema patenteia-se, nos estudos do Círculo Linguístico de Praga, como

uma unidade abstrata, funcional e distintiva no interior do sistema de sons

de uma dada língua.

Também o conceito de signo como união de um significado e um

significante, proposto por Saussure, foi decisivo na definição de fonema e,

por conseguinte, na constituição da fonologia como ciência apartada da

fonética. Dizer que o fonema tem um valor distintivo significa dizer que ele

diferencia significados entre dois vocábulos, como, por exemplo, no par

mínimo /pata/ e /bata/, a comutação de /p/ por /b/ faz-se acompanhar de

mudança de significado. Trubetzkoy (1939, p.3) consagra a distinção entre

a fonética (ciência dos sons da fala) e a fonologia (ciência dos sons da

língua). A fonologia nasce, dessa forma, no universo das teorias

estruturalistas do Círculo Linguístico de Praga e em estreita dependência

da dicotomia saussureana língua/fala.

Assim, a fonologia terá por objeto o levantamento dos sons que se

opõem dentro de uma dada língua, o que culminará com o estabelecimento

de seu sistema fonológico. Já a fonética vai cuidar das infinitas realizações

fônicas dos fonemas que ocorrem na fala. Entre os linguistas há consenso

de que a fonologia é um dos ramos da chamada linguística do núcleo duro

da língua, contudo, sobre a fonética paira desconfiança quanto à sua

pertença à linguística; alguns a vêem como um campo da física acústica, da

fisiologia, da biologia etc.

2.3 OS FONEMAS DO PORTUGUÊS

Para depreender os fonemas de uma língua em meio ao conjunto

de fones inventariados, Cagliari (2002, p. 24) recorre aos princípios de

“oposição” e “variação”. Os fonemas são unidades sonoras que “[...]

estabelecem uma relação de oposição entre si” ou que “[...] têm um valor

distintivo no sistema da língua”. Para saber se sons diferentes estão em

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oposição, o linguista lança mão do teste de comutação. Se a mudança de

som for acompanhada de mudança de significado, podemos dizer que

estamos diante de fonemas distintos. Por exemplo, trocando a consoante

/v/ na palavra /vala/ por /t m p b f k g s/ teremos as palavras /tala mala pala

bala fala kala gala sala/. Podemos dizer que essas consoantes constituem

fonemas do português, pois, quando trocadas entre si na mesma posição

da palavra, produzem mudança de significado.

Quando a troca de um som pelo outro na mesma posição não altera

o significado da palavra, o teste de comutação revela não fonemas

distintos, mas variantes de um mesmo fonema. Por exemplo, trocando a

consoante [t] por [tS] em /tia/, teremos [tSia] que não apresenta significado

diferente de [tia]. Portanto, temos apenas um fonema com duas variantes

fonológicas denominadas alofones. Um fonema é, pois, uma entidade

abstrata em relação às realizações físicas dos sons. Ele se realiza por meio

de um fone ou, se comportar variantes, por meio de alofones. Assim, os

fones são as realizações físicas dos fonemas e os alofones são as suas

variantes. Em qualquer língua, o número de fones/alofones é sempre maior

do que o número de fonemas. No português, temos 19 (dezenove)

consoantes e 07 (sete) vogais, totalizando 26 (vinte e seis) fonemas.

Fonemas consonantais do português Modo de articulação

Oclusiva Fricativa Lateral vibrante

Oralidade/ nasalidade

Oral Nasal Oral Oral Oral

SONORO Vozeamento S U R D O

SONO R O

S O N O R O

S URDO

SONORO

S O N O R O

Sim ples

Múlti-pla

Bilabial

p b m

Labio-dental

f v

Linguo-dental

t d n

Alveolar

s z l r R

Palatal

¯ S Z ¥

P. D E A R T I C U L A Ç Ã O

Velar k g

Fonte: Cox, 2010, p. 83

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Fonemas vocálicos do português Posição horizontal

da língua

Anterior Central Posterior

Posição dos lábios

-arredondada -arredondada +arredondada

Alta/fechada

i u

Média-alta/fechada

e o

Média-baixa/aberta

E ç

Baixa/aberta

a

Fonte: Cox, 2010, p. 83

O número dos fones/alofones que realizam tais fonemas é

incomparavelmente maior, já que a língua está sujeita a variações de toda

ordem.

2.4 VARIAÇÃO FONÉTICO-FONOLÓGICA

Como vimos anteriormente, os sons que concorrem num mesmo

espaço, mas não provocam mudança de significados quando trocados um

pelo outro, entretêm uma relação de variação e não de oposição. As

variantes de um fonema são chamadas de alofones. O prefixo <alo->

designa variações formais de uma unidade linguística que não afetam sua

identidade funcional na língua. Quer dizer, os alofones de um fonema não

são linguisticamente distintivos na medida em que não produzem mudança

de sentido na palavra onde se alternam. Conforme Crystal (1988, p. 22), “A

relação entre os fonemas e os alofones é de realização: um fonema é

‘realizado’ através de seus alofones”.

Em princípio, a fonologia estruturalista classificava os casos de

variação em dois grandes grupos: variação condicionada e variação livre. A

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variação condicionada se refere aos casos de variação do fonema

dependentes do contexto linguístico, ao passo que a livre independe de

restrições contextuais. Como exemplo de variação condicionada, podemos

mencionar a realização do fonema /t/ como [t] e [tS]. O fonema /t/ se realiza

como uma consoante oclusiva linguodental [t] antes das vogais [a, �, e, �, o,

u] e como consoante africada palatal antes da vogal [i] em várias

comunidades de falantes de língua portuguesa. Trata-se, pois, de um

processo de assimilação de propriedades articulatórias de [i] pela

consoante [t]. Já como exemplo de variação livre, podemos citar as muitas

pronúncias da vibrante /r/ entre os falantes de português: [maR] (paulista),

[max] (carioca), [mah] (belo-horizontino), [ma�] (caipira), [mar] (gaúcho) etc.

O que os fonólogos designavam como variação livre logo atraiu a

atenção dos sociolinguistas a quem o termo parecia impróprio e infeliz, uma

vez que levava a pensar que a variação ocorria a bel prazer entre os

falantes de uma dada língua e que era assistemática e indescritível. Com

muita ênfase, os sociolinguistas passam a defender a tese de que as

variações podem não ser linguisticamente condicionadas, mas são

determinadas regularmente por fatores extralinguísticos como: gênero,

idade, classe social, profissão, região, nível econômico, escolaridade, grau

de formalidade, rede social, etnia etc. Enquanto a fonologia, como disciplina

do núcleo duro da linguística, separa a língua das estruturas sociais, a

sociolinguística a religa a elas, postulando o vínculo inalienável entre

linguagem e sociedade. Se as sociedades são heterogêneas, as línguas

faladas por elas também o são. Contudo, a heterogeneidade linguística

apresenta-se ordenada; não é sinônimo de caos e casuísmo. Em termos

sociolinguísticos, dizer que há ordem no aparente caos da variação significa

dizer que a variação liga-se probabilisticamente a fatores sociais. Dessa

forma, a variação é vista como um princípio universal das línguas naturais,

passível de descrição e análise, uma vez que não é aleatória, mas

motivada por fatores linguísticos e extralinguísticos.

Com o aporte da sociolinguística, somos, pois, levados a pensar no

sistema fonológico do português não como um sistema de realização

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categórica, invariável, entre os falantes de português, mas como um

sistema de realização variável. Para descrever o fenômeno da variação, os

sociolinguistas dispõem dos conceitos de variável e variante. O termo

variante designa “[...] as diversas maneiras de dizer a mesma coisa em um

mesmo contexto linguístico e com o mesmo valor de verdade” (TARALLO,

1985, p. 8) ou “[...] formas diversas entendidas como equivalentes

semanticamente que concorrem num dado estado da língua” (MOLLICA e

BRAGA, 2003, p. 2). Já o termo variável designa o conjunto das variantes

linguísticas vinculadas a uma unidade da língua. Usando os conceitos de

variante e variável, podemos pensar no fonema /r/ do português como a

variável <r> que comportaria as variantes [R r � h x], cada uma delas com

probabilidade de ocorrência em determinado grupo de falantes do

português. Por exemplo, a variante [�], conhecida como retroflexa, é

bastante frequente entre os falantes cuja variedade materna de português

seja o dialeto caipira, ligado à entrada e colonização do interior do Brasil

pelos bandeirantes paulistas. Onde quer que os bandeirantes tenham se

estabelecido, o chamado dialeto caipira está presente. As demais variantes

da variável <r> estão inextricavelmente atreladas a outros fatores

extralinguísticos também passíveis de descrição.

Como propõe Faraco (2008), uma língua é sempre muitas línguas e

a variação se estende a todos os níveis – fonológico, morfológico, sintático

e lexical.

[...] é fundamental lembrar que não existe nenhuma língua homogênea. [...]. Nós damos às línguas um nome. E este nome é sempre singular (o português, o francês, o japonês etc.). [...] A língua, no entanto, é sempre plural, diversificada e heterogênea. Por isso é que dizemos que ela é, de fato, um conjunto de variedades. Não existe a língua de um lado e as variedades de outro – a língua é o próprio conjunto das variedades. Poderíamos, então, dizer que uma língua é, no fundo, muitas línguas. Ou, em outras palavras, o nome singular (português) recobre um balaio de variedades (o português são muitos portugueses) (FARACO, 2008, p. 5).

No que diz respeito ao nível fonológico, a presença da variação é

abundante. Assim, se quisermos pensar nos fonemas do português como

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formando um sistema temos de pensá-lo como um sistema heterogêneo

que comporta muitas variáveis.

2.5 O CASO DAS VOGAIS NASAIS

A nasalidade das vogais é um dos pontos mais controversos dos

estudos fonológicos da língua portuguesa. Alguns fonólogos defendem a

tese de que não há fonemas vocálicos nasais, o que existem são variantes

– alofones – dos orais; outros optam por classificar as vogais nasais como

fonemas. Cavaliere (2005, p. 84) observa que, no contexto da língua

portuguesa, essa controvérsia é mais antiga do que o próprio

estruturalismo, existindo desde o início do século XIX, como comprova o

seguinte excerto da gramática de Antônio de Moraes da Silva, por ele

citado: “[...] não se pode admitir a presença de consoantes nasais em

sequências como am, om, etc., senão verdadeiras vogais nasais, uma vez

que a nasalidade, nesses casos, se ouve sobre as vogais.” Conforme Couto

(1997, p.74), no campo da chamada linguística moderna, a discussão,

iniciada no seio do estruturalismo, continuou entre os gerativistas. Trata-se,

portanto, de uma polêmica que atravessou escolas e teorias. Segundo

Silva,

[...] a questão que se coloca na análise das vogais nasais – em oposição as vogais orais – é se temos doze fonemas vocálicos distintivos (sete orais e cinco nasais) ou se as vogais nasais consistem da combinação de uma vogal oral com o arquifonema /N/ (SILVA, 2002, 165).

Entre os autores que defendem a tese de que as vogais nasais são

fonemas, estão Lüdtke (1952), Head (1964), Pontes (1972) e Back (1973).

Para eles, pares mínimos como [»la] “lá” e [»lã] “lã” ou [»mito] “mito” e

[»mĩto] “minto” caracterizam perfeitamente a oposição fonêmica entre as

vogais orais e nasais no português. Essa tese é a que mais agrada os

estruturalistas concretistas que optam por expandir o quadro de sete

fonemas vocálicos para doze (sete orais + cinco nasais). Para essa

corrente,

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[...] cada uma das cinco vogais nasais constitui um fonema distinto da vogal oral correspondente, desprezando-se o elemento consonântico nasal que pode – ou não – ocorrer, mas que seria condicionado pela nasalidade da própria vogal” (CALLOU e LEITE, 1990, p. 87).

Nesse caso, o segmento consonântico nasal, percebido após a

vogal nasal, seria um desenvolvimento dessa. Esse segmento assumiria

diferentes características fonéticas em função da consoante seguinte, o que

conhecemos como consoantes nasais homorgânicas.

Couto (1997, p. 72), lembrando-nos de que “as vogais nasais

constituem uma das facetas mais complicadas da fonologia do português”,

também julga “mais sensato interpretarmos as vogais nasais como fonemas

autônomos, independentes dos orais correspondentes”, com base no

argumento de que pares como [sã] e [sa] são percebidos pelos falantes

como pares mínimos em que a troca de [ã] por [a] ou vice e versa é

acompanhada de mudança de significado. Argumenta o autor que os

falantes não interpretam a vogal nasal como uma vogal oral seguida de

uma consoante nasal, mas como um único segmento.

No contexto brasileiro, o maior defensor da tese de que as vogais

nasais são variantes das orais é Mattoso Camara Júnior (1970/1977). Para

ele, as vogais nasais do português consistem em uma combinação de vogal

oral com um arquifonema nasal /N/. Uma vogal foneticamente nasal, no

nível fonológico, desdobrar-se-ia em vogal + N. O que, numa transcrição

fonética, se escreve como [»mĩto], numa transcrição fonológica seria

/miNto/. Essa tese afirma que, no português, só as vogais orais constituem

fonemas. De acordo com Mattoso Câmara Júnior , ainda é preciso distinguir

a nasalidade transmitida por uma consoante nasal (o arquifonema N) na

mesma sílaba, como em <canto>, daquela resultante do contato com uma

nasal da sílaba seguinte, como <cano>. Porém, tanto num caso como no

outro, a nasalidade da vogal resulta de um processo de assimilação da

nasalidade da consoante que a segue imediatamente. As vogais nasais

são, portanto, variantes condicionadas das vogais orais.

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Essa tese também é encampada pela fonologia gerativa que,

visando à simplicidade do léxico, postula, assumindo um ponto de vista

mais abstrato, que formas como “sã”, “sanidade”, “sanatório”, “saneamento”

etc. derivam de uma representação subjacente morfofonológica única

/sana/, a partir qual são geradas as representações fonéticas por meio de

regras fonológicas, incluindo a regra de nasalização, como no exemplo a

seguir:

/sana/ Forma subjacente (representação fonológica) sãna Processo de nasalização da vogal sãa Supressão da nasal intervocálica sã Crase das vogais (representação fonética)

A tradição gramatical, por não se preocupar em distinguir o plano

fonológico do plano fonético, subsume, segundo Cavaliere (2005), a

existência de vogais orais e nasais. Essa tendência pode ser confirmada

em gramáticas normativas publicadas recentemente, a exemplo de Cegalla

(1991), Cunha & Cintra (2008), Bechara (2009), Cipro Neto & Infante

(2009), dentre outros e também nos livros didáticos contemporâneos, uma

vez que esses tendem a se alinhar com a tradição gramatical.

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CAPÍTULO 3

A FONOLOGIA E A FONÉTICA NO LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS DO ENSINO MÉDIO: UMA DESCRIÇÃO

Neste capítulo faremos uma descrição dos capítulos ou seções que

tratam de conteúdos relacionados à fonologia e à fonética nos sete (07) livros

didáticos de língua portuguesa do ensino médio (a seguir) que são fontes do

corpus discursivo deste estudo.

OBRAS E AUTORES

CAPÍTULOS DESIGNAÇÃO DOS CAPÍTULOS

PORTUGUÊS: LINGUAGENS Wiliam Roberto Cereja e Thereza Anália Cochar Magalhães (L1) São Paulo: Atual, 2005

Capítulo 19 Sons e letras

PORTUGUÊS João Domingues Maia (L2) São Paulo: Ática, 2004

Seção Fonética

PORTUGUÊS - PROJETOS Carlos Emílio Faraco e Francisco Marto de Moura (L3) São Paulo: Ática, 2005/2008

Seção (Apêndice gramatical)

Fonética

NOVAS PALAVRAS (1ª. série) Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio (L4) São Paulo: FTD, 2005

Capítulo 4 Fonologia

PORTUGUÊS – DE OLHO NO MUNDO DO TRABALHO Ernani Terra e José de Nicola (L5) São Paulo: Scipione, 2004/2008

Capítulo 1 Fonologia

PORTUGUÊS José de Nicola (L6) São Paulo: Scipione, 2005/2008

Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3

Os sons e suas representações gráficas As palavras e suas grafias As palavras e suas entonações

PORTUGUÊS: LÍNGUA, LITERATURA E PRODUÇÃO TEXTUAL (volume único) Maria Luiza Abaurre, Marcela Nogueira Pontara e Tatiana Fadel (L7) São Paulo: Moderna, 2000/2002

Capítulo 2 A escrita

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Numa primeira aproximação, vamos examinar os sete livros mediante o

seguinte roteiro de perguntas: O tema é tratado em capítulo ou seção? Como é

designado o capítulo ou seção? Que conteúdos fazem parte do capítulo ou

seção? Há distinção entre fonética e fonologia? O que é atribuído à fonologia e à

fonética, se o(s) autor(es) as distingue(m)? Há distinção entre fonema e variante

fonética (alofone)? O(s) autor(es) usam símbolos fonéticos? O(s) autor(es) fazem

transcrição fonética e fonológica, usam colchetes e barras? Há distinção precisa

entre fonemas e letras? As vogais nasais são tratadas como fonemas ou como

alofones? As semivogais são tratadas como fonemas ou como alofones? Os

fonemas vocálicos e consonantais são descritos por meio de traços distintivos ou

não? Outros aspectos julgados relevantes, mas não contemplados por esse

roteiro inicial, poderão ser observados nesta descrição.

3.1 O CONTEÚDO FONOLOGIA E FONÉTICA NO LIVRO “PORTUGUÊS: LINGUAGENS” DE WILIAM ROBERTO CEREJA E THEREZA ANÁLIA COCHAR MAGALHÃES (L1) Em L1, os autores destinam o capítulo 19, denominado “Sons e letras”,

ao conteúdo de fonologia e fonética. Começam definindo a fonologia, mas não

fazem nenhuma referência à fonética. Tratam de fonema e letra; dígrafo e dífono;

classificação dos fonemas; sílaba; posição da sílaba tônica; encontros vocálicos

e encontro consonantal; ortoepia e prosódia; sons e letras na construção de um

texto e semântica e interação.

Os autores definem a fonologia como:

[...] parte da gramática que estuda os sons da língua quanto à sua função no sistema de comunicação linguística, quanto à sua organização e classificação. Também cuida de aspectos relacionados à divisão silábica, à ortografia e à acentuação das palavras, bem como indica a forma adequada de pronunciar certas palavras, de acordo com o padrão culto da língua” (2005, p. 178).

Após definirem fonologia, os autores buscam distinguir fonema “menor

unidade sonora das palavras” de letra “representação gráfica dos fonemas da

fala”.

Para conceituar fonema, recorrem a uma quadrinha de Edgar Vasques em

que o cartunista parodia a brincadeira do telefone sem fio, produzindo humor a

partir do mal entendido, do equívoco. São duas personagens: uma diz “Que

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legal! O marulho do mar!” e a outra replica “Uau! O barulho do bar!”. Essa

quadrinha fornece aos autores dois pares mínimos: mar/bar e marulho/barulho,

um recurso de que os fonólogos se servem para identificar os fonemas de uma

dada língua. Por meio dos dois pares mínimos, os autores exploram as duas

funções do fonema – constituir e distinguir palavras – introduzindo a noção de

oposição:

Você deve ter observado que as palavras mar e bar são constituídas de três fonemas e que marulho e barulho são constituídas de seis fonemas. Entretanto, há uma diferença de significado entre elas, determinada pela oposição dos fonemas iniciais /m/ e /b/. (2005, p. 179)

Para explorar a correlação entre sons e letras, os autores partem de duas

palavras: /komesu/ - começo e /esitãti/ - excitante. Em relação à primeira palavra,

há uma coincidência entre o número de fonemas e letras, porém, em relação à

segunda, não – há mais letras do que fonemas. Focalizando essa discrepância

entre o número de fonemas e letras, os autores introduzem os termos dígrafo e

dífono. Apenas o termo dígrafo é definido: “combinação de duas letras que

representam um único fonema” (p. 180). Uma lista de dígrafos da língua

portuguesa é fornecida. O termo dífono não é retomado em outro momento do

capítulo. Ao abordarem as correspondências entre sons e letras, os autores

contrastam a palavra em transcrição fonológica com a palavra em escrita

ortográfica. Usam símbolos fonéticos do Alfabeto Fonético Internacional (AFI),

mas não para todos os fonemas. Por exemplo, a semivogal anterior é transcrita,

de acordo com o AFI, com /j/ e não com /y/, como fazem os autores. As

transcrições fonológicas, seguindo as convenções da fonologia, são sinalizadas

pelo uso de barras inclinadas.

Os sons são classificados apenas mediante os traços de classes

principais: vogais, semivogais e consoantes. Internamente às classes não são

apresentados os traços que distinguem os fonemas entre si. As vogais são

definidas como fonemas que “passam livremente pela boca” e “funcionam como

base da sílaba” (p. 180). Já as semivogais /y/ e /w/, também interpretadas como

fonemas, distinguem-se das vogais /i/ e /u/ por serem pronunciadas de modo

“mais fraco, com baixa intensidade” e por “nunca constituírem sílabas sozinhas e

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sempre acompanharem uma vogal” (p. 180). As consoantes são fonemas cuja

“corrente de ar vinda dos pulmões encontra obstáculos (língua, dentes, lábios)”

(p. 190).

Os autores apresentam doze (12) vogais: sete (07) orais /a/, /�/, /e/, /i/, /�/

/o/ /u/ e cinco (05) nasais /ã/, /e/, /i/, /o/, /u/. Para eles, as vogais nasais são

consideradas fonemas e não variantes das vogais orais. Ao estabelecerem as

correspondências entre os fonemas vocálicos e semivocálicos e as letras, os

autores não o fazem com precisão. No excerto seguintes alguns equívocos

podem ser observados:

Fonemas vocálicos orais Letras correspondentes /a/, /�/, /e/, /i/, /�/, /o/, /u/ a, é, e, i, ó, o, u Fonemas vocálicos nasais Letras correspondentes /ã/, /e/, /i/, /o/, /u/. ã, e, i, o, u, am, an, em, en, im, in,

om, on, um, un Fonemas semivocálicos Letras correspondentes /y/ /w/ i, e, o, u (2005, p. 180 e 181)

Essa apresentação nos sugere que todo /�/ se escreve em português com

<é> e que todo /�/ se escreve com <ó>, o que não corresponde ao que de fato

ocorre em nosso sistema ortográfico. Inúmeras vezes /�/ e /�/ são escritos com

<e> e <o>, sem o uso do diacrítico. Além disso, há casos de /i/ e /u/ escritos

com <e> e <o> respectivamente e não com <i> e <u>. Do mesmo modo, de

acordo com nosso sistema ortográfico, não usamos o til sobre as vogais <e>, <i>

e <u>, para escrever as vogais nasais /e/, /i/, /u/. Elas são escritas por meio de

dígrafos <em, en>, <im, in> e <um, un>. Em alguns contextos fonéticos são

usadas as vogais <e, i, u> mais o <m> e, em outros, <e, i, u> mais o <n>.

Diferentemente do procedimento adotado em relação aos fonemas

vocálicos orais e nasais e semivocálicos, Cereja e Magalhães não apresentam o

elenco completo dos fonemas consonantais. Restringem-se apenas às

consoantes /b/, /d/, /f/, /l/, seguidas de “etc”. Dessa forma, não nos é possível

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saber quantas e quais são as consoantes do português, segundo os autores, e

nem que símbolos utilizariam para transcrevê-las.

O item seguinte à classificação dos fonemas é a sílaba, definida como:

“um grupo de fonemas pronunciados numa só emissão de voz. A base da sílaba

é a vogal: sem ela não há sílaba”. (p. 181). Também encontra-se incluída no

capítulo a classificação das palavras de acordo com o número de sílabas

(monossílaba, dissílaba, trissílaba e polissílaba) e com a posição da sílaba tônica

(oxítona, paroxítona e proparoxítona). Depois da sílaba, os autores tratam dos

encontros vocálicos (hiato, ditongo e tritongo) e consonantais. A demonstração

desses itens e dos seguintes é feita por meio de exemplos de palavras escritas.

Não se observam mais exemplos na forma de transcrição da oralidade.

Os temas ortoepia e prosódia também são contemplados, a ortoepia

dedicada ao estudo da “pronúncia adequada dos fonemas e das palavras” e a

prosódia ao estudo da “acentuação e da entoação dos fonemas”, ambas de

acordo com a variedade padrão da língua (2005, p. 184). Embora os autores

afirmem textualmente que “a pronúncia das palavras é bastante variável”, essa

variação não é considerada normal na língua, na medida em que abalizam os

conceitos de ortoepia e prosódia. Por exemplo, entre [‘ovus] e [�vus] apenas a

segunda forma é considerada adequada (leia-se “correta”), apesar de as duas

formas serem ouvidas entre falantes de português; entre [gra’tujtu] e [gratu’itu],

apenas a primeira forma é considerada correta, apesar de a segunda,

estatisticamente, suplantar a primeira. Não abordando a fonética, os autores

também não fazem referência ao fenômeno natural da variação linguística, muito

comum na produção real dos fonemas pelos diversos falantes de português. O

termo alofone não figura no capítulo.

No que se refere à fonologia e aos conteúdos afins, nas partes

explicativas bem como na proposição das atividades, vigora uma apresentação

da língua portuguesa, oral e escrita, como homogênea. Apesar de os autores

usarem o termo “variedade padrão da língua”, efetivamente, o que observamos é

o funcionamento da aludida “variedade” como “norma única”. No exercício

seguinte, o enunciado “Quais dos pares de palavras não admitem dupla

pronúncia?” é a materialização dessa visão de língua. A alternativa assinalada

como errada é a c). A norma padrão “pode não admitir dupla pronúncia” para o

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par questão-qüestão, mas essa variação é real, talvez mais real do que aquelas

admitidas como possíveis. Observemos o exercício:

Quais dos pares de palavras abaixo não admitem dupla pronúncia? a) antiquíssimo – antiqüíssimo b) sanguinário – sangüinário c) questão – qüestão d) projétil – projetil e) réptil –reptil f) liquidação – liqüidação g) acróbata – acrobata (p. 185)

Em síntese, L1 evidencia diálogo com a linguística para a construção do

capítulo, porém trata-se de um diálogo bastante superficial e enviesado pela

gramática tradicional, na medida em que se assenta numa concepção

homogênea de língua pautada pela norma padrão escrita.

3.2 O CONTEÚDO FONOLOGIA E FONÉTICA NO LIVRO “PORTUGUÊS” DE JOÃO DOMINGUES MAIA (L2)

Em L2, o conteúdo fonologia e fonética é abordado não num capítulo

exclusivo, mas numa seção dividida em três subseções, situada no interior da

Unidade 4, nomeada “As palavras no texto.” A seção é designada como

“Fonética” e as subseções como “Fonema”, “Letra e fonema” e “Classificação

dos fonemas”.

Apesar de o autor designar a seção pelo termo fonética, não a define. O

termo fonologia sequer é mencionado. Contudo, estranhamente, a seção é

aberta pela subseção fonema, que é um conceito cunhado no universo da

fonologia e não da fonética. Para introduzir o conceito de fonema, o autor

recomenda que o leitor observe duas palavras, com as consoantes iniciais

negritadas: trama e drama, mas nada diz a respeito das letras/fonemas

destacados. Não faz qualquer alusão ao fato de as palavras trama/drama

constituírem um par mínimo, cuja única diferença é a troca de /t/ por /d/ no

mesmo ambiente. Essa explicação deveria anteceder a apresentação do

conceito de fonema como “o nome que se dá ao som da fala que estabelece

distinção de significado entre as palavras de uma língua” (2004, p. 27).

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Na primeira subseção, o autor também nos lembra de que “Os fonemas

são geralmente representados entre barras: /p/, /b/, /c/, /a/, /i/, /u/.” (2004, p. 27).

De acordo com as convenções da fonologia, as transcrições fonológicas são

delimitadas por barra / / e as fonéticas por colchetes [ ], mas essa distinção não é

feita. Ao listar, a título de exemplo, alguns fonemas, o autor inclui o /c/ que,

embora possa ser um fonema (oclusivo, palatal, surdo) em algumas línguas, não

o é no português. No português, a letra <c> pode representar o fonema /k/

(oclusivo velar) ou o fonema /s/ (fricativa alveolar). Assim, a inclusão de /c/ entre

os fonemas do português pode ser um equívoco decorrente do viés

grafocêntrico, já que esse símbolo constitui uma letra do sistema de escrita do

português.

A segunda subseção ocupa-se em distinguir letra e fonema. Maia afirma

que “fonema é o som; letra é a representação gráfica do som” (2004, p.27).

Embora não seja linguisticamente preciso afirmar que o fonema é o som, pois o

fonema é uma abstração dos fones (esses, sim, sons), podemos admitir essa

definição como uma simplificação admissível em vista do público alvo. O autor

aborda os descompassos na correspondência entre letras e sons. Apesar de não

explicitar essa intenção no início da exposição, os exemplos mostram isso:

• escrevemos a palavra fixo com quatro letras, mas pronunciamos cinco fonemas: /fiksu/ • escrevemos casa e cego, mas pronunciamos /kaza/ e /segu/. • Escrevemos nata e anta, mas o /n/ é um fonema apenas no

primeiro exemplo. Em anta, o n não é um fonema; o fonema é /ã/, representado na escrita pelas letras a e n. (2004, p. 28)

Não são esgotadas todas as possibilidades de correspondências entre

fonemas e letras no português. Numa perspectiva indutiva, fecha a subseção

com o seguinte comentário alusivo aos exemplos: “Como se vê, nem sempre o

número de letras coincide com o número de fonemas. Além disso, muitas

vezes o mesmo fonema pode ser representado na escrita por mais de uma

letra do alfabeto.” (2004, p.28).

A terceira subseção trata da classificação dos fonemas. Como os

autores de L1, o autor de L2 também apresenta uma distinção do conjunto dos

fonemas baseada apenas nos traços de classes principais (vogais, semivogais

e consoantes).

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As vogais são fonemas produzidos “livremente, sem que o ar encontre

na cavidade bucal, qualquer obstáculo à sua passagem” (2004, p. 28). São

subdivididas em orais e nasais e, esdruxulamente, em átonas e tônicas. Nada é

dito quanto ao timbre (aberto, fechado), à altura da língua (alta, média-alta,

média-baixa e baixa), às regiões articulatórias (anterior, central, posterior) e à

labialização (arredondadas e não-arredondadas). Assim são classificadas:

a) orais – quando o ar sai pela boca: /a/,/e/,/i/,/o/,/u/. b) nasais – quando o ar sai pela boca e pelas fossas nasais: /ã/

lã, planta, amplo; /ẽ/ lente, sempre; /ĩ/ indo, mim; /õ/ onda, ombro; /ũ/ mundo.

c) átonas – pronunciadas com menor intensidade. d) tônicas – pronunciadas com maior intensidade. (2004, p. 28) Destarte, a julgar pela forma como organiza o item 1 (Vogal), o autor

subsume que o português possui cinco vogais orais e cinco nasais, já que ambas

aparecem entre barras inclinadas, convenção usada para identificar o fonema. O

número de cinco vogais orais discrepa de praticamente todas as descrições

linguísticas do português que propõem um sistema de sete vogais: /a/, /�/, /e/, /i/,

/�/, /o/, /u/, com o contraste entre /�/, /e/ e /�/, /o/.

Em relação à correspondência entre os fonemas vocálicos nasais e as

letras usadas para representá-los, o autor apresenta todas as possibilidades de

grafia para /ã, ẽ, ĩ/, mas não para /õ/ e o /ũ/. Os exemplos sugerem

equivocadamente que a escrita de /õ/ se faz somente como on e om e não como

õ (Ex: põe) e do /ũ/ somente pelo un e não como um (Ex: chumbo).

Ademais, como fonemas, as vogais não são nem átonas e nem tônicas.

O traço de tonicidade relaciona-se com o emprego das vogais e não com os

fonemas em estado de sistema. Essa classificação espelha a confusão reinante

em L2 entre a fonética e a fonologia. Foneticamente as vogais podem ser átonas

e tônicas, mas fonologicamente não.

As semivogais – “os /i/ e /u/ quando formam sílaba com uma vogal”

(2004, p. 28) – também são categorizadas como “fonemas”. São representadas

primeiramente como /i/ e /u/ e exemplificadas por meio das palavras pai e são

(escritas ortograficamente). A seguir, em forma de observação, o autor diz que

os fonemas /i/ e /u/ podem aparecer representados na escrita por e, o, m (mas

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não menciona n e l como grafias também possíveis para as semivogais). Só

então afirma que as semivogais são representadas “foneticamente” (e não

fonologicamente) pelo /y/ e pelo /w/. Exemplifica isso com palavras em que

ocorrem as semivogais referidas: pai [pay]; também [tãbẽy]; mamão [mamãw];

mamãe [mãmãy]. Põe-nas entre colchetes, mas não faz nenhum comentário a

respeito dessa convenção que delimita a transcrição fonética.

A consoante é definida como “o fonema produzido quando a corrente de

ar encontra, na cavidade bucal, obstáculos à sua passagem” (2004, p. 28). São

elencadas entre barras em um número de dezoito assim: /p/, /b/, /t/, /d/, /k/, /g/,

/f/, /v/, /s/, /ȓ/ (acha; enxame), /ʒ/ (haja), /m/, /n/, /N / (ninho), /l/, /Ȟ/(lhama), /r/,

/R/. Entre as 18 consoantes não figura o fonema /z/, talvez por um mero lapso.

Muito comumente, as descrições fonológicas propõem para o português um

sistema com 19 consoantes. Assim como procede em relação ao fonema /ȓ/,

indicando as grafias alternativas <ch> e <x>, deveria o autor proceder em

relação ao fonema /ʒ/, indicando também as duas possibilidades de

representação na escrita, com <j> ou com <g> antes de <e> e <i>. Como no

caso das vogais, não são apresentados os traços que diferenciam as consoantes

entre si, traços relativos ao papel das cavidades bucal e nasal, ao modo e ponto

de articulação e ao papel das cordas vocais.

O autor emprega parcialmente o AFI. Foram observadas discrepâncias em

relação à representação da semivogal anterior como /y/ e não como /j/ e também

em relação à nasal palatal, representada como /N/ (que é símbolo da nasal velar)

e não como /¯/.

Vale notar ainda que, apesar de a seção ser nomeada “Fonética”, ela não

faz qualquer referência ao fenômeno da variação linguística em nível de sons.

Não trata das variantes fonéticas (alofones) que fazem parte do português.

A seção é encerrada com exercícios que exploram a correlação entre

letras e fonemas, as sílabas tônicas e átonas, a identificação do /i/ como vogal

ou semivogal e a comutação de fonemas em uma palavra dada (bela) para

produzir novas palavras.

Todo o conteúdo referente ao tema é apresentado de forma reduzida – a

seção toda, incluindo ilustração, explicações, exemplificações e exercícios,

ocupa menos de uma página e meia da Unidade 4.

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3.3 O CONTEÚDO FONÉTICA E FONOLOGIA NO LIVRO “PORTUGUÊS – PROJETOS” DE CARLOS EMÍLIO DE FARACO E FRANCISCO MARTO DE MOURA (L3)

Esse manual está organizado em quatro unidades, subdivididas em três

ou quatro capítulos cada, e mais um apêndice gramatical, onde se situa o

conteúdo fonética e fonologia. Aliás, a seção destinada ao tratamento desse

conteúdo é intitulada tão somente como “Fonética”. A seção inclui definição de

fonética e fonema, classificação dos fonemas, encontros vocálicos, encontro

consonantal, dígrafo e acentuação gráfica.

Os autores apresentam a definição de fonética de maneira geral e

imprecisa como “a ciência que estuda os sons da fala.” (2005, p. 440), já que a

fonologia também estuda os sons da fala, diferenciando-se da fonética pelo

ponto de vista. Sobre a fonologia nada dizem, mas, curiosamente, os poucos

fonemas que representam transcritos aparecem sempre entre barras.

Em seguida, definem fonema e palavra: “Fonema é todo som da língua

capaz de estabelecer distinção de significado entre palavras: f/a/t/o, g/a/t/o. Por

palavra entende-se uma unidade linguística de som e significado que entra na

composição dos enunciados da língua.” (2005, p. 440). Embora os autores

apresentem um par mínimo para exemplificar a definição de fonema, não o

exploram devidamente, uma vez que deixam de apontar/destacar que a troca

do /f/ pelo /g/ no mesmo ambiente fonético [ _ato] acarreta mudança de

significado, sendo, portanto, duas palavras distintas.

A definição de letra é fornecida em seguida: “Os sons da fala são

representados graficamente por letras.” (2005, p.440). A partir dela, por meio

de exemplos, os autores passam a mostrar que nem sempre a

correspondência entre sons e letras é biunívoca. Primeiro, exploram a palavra

<viola> em que há cinco fonemas e cinco letras e, depois, a palavra <choros>

em que há cinco fonemas e seis letras.

Como em L1 e L2, os fonemas são classificados apenas pelos

traços de classes principais: vogal, semivogal e consoante. Os traços

distintivos que distinguem os fonemas internamente às classes não são

referidos.

As vogais são definidas quanto à não obstrução da passagem do ar:

“som que se produz quando o fluxo de ar não é obstruído por nenhum órgão do

aparelho fonador: /a/, /ã/, /é/, /ẽ/, /ê/, /i/, /ĩ/, /ó/, /ô/, /õ/, /u/, /ũ/.” (2005, p.440).

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Essa apresentação dos fonemas vocálicos em número de doze não é

acompanhada de nenhum comentário. Assim, podemos deduzir que as nasais

são consideradas fonemas.

A semivogal é assim definida: “nome dado aos fonemas /i/ e /u/ quando

são pronunciadas junto com outra vogal.” (2005, p. 440) e exemplificada por

meio das palavras <noites> e <vou>, com a sequência vogal-semivogal

negritada. Neste item, observa ainda que “Os fonemas /i/ e /u/ podem aparecer

representados na escrita por ‘e’, ‘o’, ‘m’” (2005, p. 440), fornecendo o seguinte

contraste entre formas da língua escrita e formas da língua falada:

Língua escrita Língua falada

violões /violõis/ vão /vãu/ além /alẽi/ (2005, p. 440)

Essa observação e exemplificação realizam uma representação

simplificada e imprecisa das correspondências entre letras e fonemas, já que a

semivogal anterior /j/ pode também ser grafada também com <n> como em

<hífen> e a posterior /w/ pode se grafada com as letras <m, n, l, o>, como em

<falam, cânon, mal, caos>.

A consoante é simplificadamente definida como “fonema produzido com

obstáculo à passagem do ar” (2005, p. 440). Diferentemente do que ocorre em

relação às vogais e semivogais, o autor não apresenta a lista completa dos

fonemas consonantais do português. Fornece três exemplos de transcrição de

fonemas, indicando a forma como devem ser pronunciados, já que nem sempre

o nome da letra coincide com o som que ele representa, como é o caso da letra

<g>, lida <ge> e o fonema /g/, lido <gue>:

/b/ - pronuncie bê /d/ - pronuncie dê /g/ - pronuncie guê

(2005, p. 440)

O autor não usa o AFI para representar os fonemas. As vogais orais

abertas e fechadas são representadas como /ê/-/é/ e /ô/-/ó/ e não como /e/-/�/

e /o/-/�/. As semivogais também são representadas como /i/ e /u/ e não como

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/j/, /w/, segundo o AFI. Em relação às consoantes, embora as três citadas como

exemplos estejam em conformidade com o AFI, quando aborda a correlação

fonema-letra por meio da palavra <choros> apresenta o fonema palatal como

/ch/ e não como /S/.

Depois da classificação dos fonemas, os autores tratam dos encontros

vocálicos: ditongo, tritongo e hiato. Os ditongos são caracterizados como

crescente e decrescente e oral e nasal. Apesar de os definir por meio do

conceito de fonema, os exemplos dados figuram em língua escrita. Apenas

para o ditongo nasal, fornecem exemplos em ortografia com a transcrição

fonética (ou fonológica) correspondente: solidão /solidãu/ e tremem /tremei/.

Para distinguir ditongos orais de nasais, os autores fazem referência ao traço

da nasalidade que não aparece na classificação dos fonemas.

Em seguida, Faraco e Moura definem encontro consonantal:

“Agrupamento numa mesma palavra de duas ou mais consoantes, em que

cada uma representa um fonema distinto” (2005, p. 441). Quanto a esse tópico,

observamos a discrepância entre a definição, assentada no conceito de

fonema, e os exemplos fornecidos (plangentes, sombras, tremem) em

ortografia. Todos os exemplos dados são de encontro consonantal

tautossilábico (encontro consonantal na mesma sílaba); não são

exemplificados encontros consonantais heterossilábicos (encontro em que as

consoantes contíguas pertencem a sílabas diferentes).

O item dígrafo vem imediatamente após o encontro consonantal, sendo

definido como: “Duas letras que representam um único fonema” (2005, p. 442).

Contudo, os exemplos não estabelecem a correspondência entre os dígrafos e

os fonemas, apenas a forma ortográfica é apresentada. As normas de

separação de sílabas na escrita, incluindo os dígrafos, mas também ditongos,

tritongos, hiatos e consoantes mudas, são incluídas nesse item.

A seção “fonética” é encerrada com as regras de acentuação gráfica em

conformidade com as convenções vigentes antes do Acordo Ortográfico de

1990, pactuado entre os países de língua portuguesa, e em vigor desde janeiro

de 2009. Não é feita qualquer correlação entre o padrão de acentuação tônica

do português e as regras de acentuação gráfica que marcam formas

desviantes desse padrão de tonicidade.

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Em resumo, os autores recorrem o tempo todo à definição de fonema

típica da fonologia estruturalista, mas não fazem nenhuma referência explícita

a ela. É como se o estruturalismo não existisse. O longo processo histórico que

fermentou a distinção entre a fonética e a fonologia, tendo como apogeu o

Círculo Linguístico de Praga8, que fez da fonologia uma ciência linguística com

objeto, método e idioma próprio, é silenciado. Dessa forma, a transposição

didática dos conhecimentos produzidos no campo da “ciência fonologia” para o

campo do “ensino da língua” é, em L3, drasticamente redutor e simplificador, a

ponto de resultar em imprecisões.

3.4 O CONTEÚDO FONÉTICA E FONOLOGIA NO LIVRO “NOVAS PALAVRAS” DE EMÍLIA

AMARAL, MAURO FERREIRA, RICARDO LEITE E SEVERINO ANTÔNIO (L4)

Nesse manual didático, os autores destinam o quarto capítulo ao tema,

intitulando-o como “Fonologia” e subdividindo-o em quatro seções: Fonema,

Dígrafo, Encontros vocálicos e A palavra e suas sílabas. Iniciam a exposição

dos conteúdos sem conceituar a fonologia, a ciência que nomeia o capítulo, e

sem fazer qualquer referência à fonética.

A primeira seção – “Fonema” – inclui os seguintes itens: Conceito,

Fonema e letra, Número de letras e número de fonemas. Os fonemas da

língua. Para conceituar fonema, os autores partem de um sintagma frasal e o

decompõem em unidades cada vez menores, até chegar ao fonema. Assim:

• Frase: Se procurar bem, você acaba encontrando não a explicação (duvidosa) da vida, mas a poesia (inexplicável) da vida. (Carlos Drummond de Andrade) • Palavra: vida

8 O Círculo Linguístico de Praga foi fundado em Outubro de 1926 e se desenvolveu ao final da década de 20, inspirado na corrente estruturalista iniciada por F. de Saussure. Dentre os fundadores e principais expoentes do círculo, estão: Trubetzkoi, Mathesius, Trnka, Jakobson, Benveniste e Martinet. De acordo com a teoria do Círculo de Praga, o fonema é a menor unidade fonológica da língua. Ele é caracterizado como um feixe de traços distintivos, capaz de opor significados no interior de um sistema linguístico. As línguas possuem sistemas fonológicos diferentes. O que é distintivo num determinado sistema pode não ser em outro. Por exemplo, no inglês /S/ e /tS/ são fonemas distintos (/Sip/ x /tSip/), mas no português são

variantes dialetais de um mesmo fonema ([‘Suva]~[‘tSuva]), fenômeno observado no falar cuiabano.

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• Sílabas: vi-da • Fonemas: /v//i//d//a/ [considerando-se o som] • Letras: v-i-d-a [considerando-se a grafia] (2005, p. 178)

Sobre essa segmentação em unidades cada vez menores, tecem o

seguinte comentário: “Não é possível segmentar, ou seja, separar os sons da

palavra vida em unidades menores que os fonemas” (2005, p.178), para em

seguida definirem fonema: “Fonema é a menor unidade que participa da

constituição sonora da palavra” (2005, p.178). Essa definição de fonema é

duplamente imprecisa: primeiro porque é possível decompor os fonemas em

traços distintivos e segundo porque ela não permite separar um fonema de um

alofone na constituição sonora da palavra.

O segundo aspecto é parcialmente contornado pela informação adicional

de que “O fonema caracteriza-se por seu valor opositivo, isto é, de contraste. A

troca, acréscimo ou eliminação de um fonema pode estabelecer a diferença de

significado entre duas ou mais palavras.” (2005, p178). Apresentam um poema

de Oswald de Andrade e outro de Ferreira Gullar para explorarem o valor de

oposição dos fonemas. No poema de Oswald de Andrade: América do Sul/

América do Sol/ América do Sal”, destacam com letras coloridas (aqui

apresentadas negritadas), nos pares mínimos, os fonemas com valores

opositivos /u/, /�/, /a/. Já no poema de Ferreira Gullar: “Mar azul/ mar azul

marco azul/ mar azul marco azul barco azul/ mar azul marco azul barco azul

arco azul/ mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul”, só destacam a

letra <m> do primeiro “mar” citado no poema. Os fonemas que têm valor

opositivo nas palavras <barco>, <marco>, ou a ausência opositiva no início de

<__arco> e do começo e final para <__ar__> não são destacados, nem

comentados.

Uma nova subseção – “Fonema e letra” – é aberta. Nela os autores

convidam o leitor a observar alguns símbolos visuais (alfabeto latino, código

morse e alfabeto dos surdos-mudos) para o fonema <a>. São apresentados

com o intuito de demonstrar que há diferentes formas de representar, por

convenção, o mesmo som: o fonema /a/, e que há diferenças entre fonema e

letra. Voltam à definição de fonema, contrapondo-a, então, à definição de

letras: “Fonema –elemento que faz parte da constituição sonora da palavra; só

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é percebido pela audição.” e “Letra – símbolo que representa graficamente

(visualmente) o fonema; é percebido pela visão.” (2005, p. 179). Dadas as

definições, apresentam a palavra <mesas> como exemplo para auxiliar o

entendimento sobre a distinção entre letra e fonema:

m → letra m [“eme”]; fonema /m/ [“me”] e → letra e [‘ê”]; fonema /e/ [“ê”] s → letra s [“ésse”]; fonema /z/ [“zê”] a → letra a [“a”]; fonema /a/ [“a”] s → letra s [“ésse”]; fonema /s/ [“sê”] (2005, p.179)

Esse exemplo é acompanhado de duas observações acerca da não

correspondência entre fonema e letra: assim como uma letra pode representar

diferentes fonemas (a letra <s> pode representar os fonemas /s/ e /z/ no

português), um fonema pode ser representado por diferentes letras (o fonema

/s/ pode ser representado pelas letras <ss>, <ç> e <s>)

Na margem direita da página em que apresentam a definição/distinção

entre fonema e letra, citam um pequeno texto extraído do Dicionário de

Linguagem e Linguística, anunciado pela chamada “O que dizem os linguistas”.

Toda língua falada [...] possui um pequeno conjunto de unidades sonoras básicas – consoantes e vogais – e toda palavra nessa língua precisa ser o resultado de uma sequência válida dessas unidades básicas, que são chamadas fonemas. O número de fonemas de cada língua varia muito. Existe, por exemplo, uma língua indígena brasileira, chamada Pirahã, que tem apenas dez fonemas; por outro lado, a língua africana !Xũ tem 141 fonemas. Em português, dependendo do critério de classificação adotado, o número de fonemas varia entre 26 e 35. (2005, p. 179) – (retirado do Dicionário de Linguagem e Linguística. R.L. Trask, Tradução de Rodolfo Ilari. São Paulo: Contexto, 2004))

Esse texto, abordando a variação da quantidade de fonemas nas

línguas, prepara o terreno para a subseção “Número de letras e número de

fonemas”. Nessa seção, os autores apresentam três palavras (vida, qualquer e

táxi) para identificar o número de letras e de fonemas que fazem parte da sua

constituição. Por meio da palavra “vida” mostram a correspondência entre

fonemas e letras (4 fonemas e 4 letras). Por meio da palavra “qualquer”,

mostram que pode haver menos fonemas do que letras (7 fonemas e 8 letras),

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esclarecendo que “o primeiro u é fonema (porque é pronunciado), mas o

segundo não; ele se junta à letra q, formando um grupo que representa, na

escrita, o fonema /k/” (2005, p.180). Já por meio da palavra “táxi” mostram que

pode haver mais fonemas do que letras (5 fonemas e 4 letras), convidando o

leitor a pronunciar a palavra e perceber que “a letra x tem som de ks: ‘taksi’”

(2005, p. 180)

Percebemos haver falta de uniformidade na transcrição do fonema /k/ na

palavra <qualquer>, pois ele aparece duas vezes na mesma palavra e cada

vez é transcrito de modo diferente /q//u//a//l//k//e//r/: com /q/, na primeira

ocorrência, e, com /k/, na segunda. Também falta uniformidade no uso das

barras, conforme determinam as convenções da fonologia. Quando os autores

comentam sobre a sequência de fonemas /ks/ na palavra <táxi> não usam

barras (“a letra x tem som de ks: ‘taksi’”), diferentemente do que fazem em

relação ao fonema /k/ de <qualquer>. A subseção termina com mais exemplos

da mesma natureza dos anteriores e sem nenhuma sistematização sobre o

número de fonemas e de letras do português.

A subseção seguinte – “Os fonemas da língua portuguesa” – tem por

tema a classificação dos fonemas em vogais, semivogais e consoantes e é

introduzida pela pergunta em destaque “Para que saber?”, seguida da

resposta: “A classificação dos fonemas é um pré-requisito para o estudo dos

encontros vocálicos (ditongo, tritongo e hiato)” (2005, p. 180). Assim, é a

distinção entre ditongo, tritongo e hiato que parece justificar a classificação dos

fonemas e não o domínio consciente de conceitos que nos acompanham na

carreira escolar desde o período da alfabetização. Novamente a classificação é

apresentada em termos apenas dos traços de classes principais.

As vogais são definidas primeiramente quanto ao modo de articulação:

“sons que, após se formarem nas cordas vocais, passam pela boca e chegam

ao meio exterior sem sofrer nenhum tipo de interrupção em sua trajetória.”

(2005, p. 180). Depois, as vogais são definidas em relação à sua função na

sílaba: “é sempre a base da sílaba; não existe sílaba sem vogal; nunca há mais

de uma vogal em cada sílaba” (2005, p. 180). São apresentadas em número

de cinco: a, e, i, o, u; as demais (ã, ẽ, é, ĩ, õ, ó, ũ) são consideradas variações.

Não nos é possível avaliar se os autores estão falando de variação conforme

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os postulados da fonologia e da fonética ou não, pois essa é uma afirmação

isolada. De qualquer maneira, soa um contra-senso dizer que o português

possui 05 vogais e não 07 como é consensual entre os fonólogos e foneticistas

que estudam o português. A apresentação de <é> -/�/ e <ó> - /�/ como variação

contraria a tese comprovada de que o português possui 07 vogais orais como

fonemas (/a/, /�/, /e/, /i/, /�/, /o/, /u/). As vogais nasais constituem matéria

controversa no escopo da fonologia: alguns linguistas consideram que elas são

alofones (variações) das vogais orais, outros que elas são fonemas. Portanto, a

junção de vogais nasais com orais (ã, ẽ, é, ĩ, õ, ó, ũ) que os autores de L4

fazem é imprópria, pois se as vogais nasais podem ser consideradas

variações/alofones das vogais orais, o mesmo não se pode dizer de /�/ e /�/

que são fonemas e não alofones. Não há nenhuma afirmação explícita sobre o

número de vogais do português. Essa teria sido uma boa oportunidade para

discutirem a seguinte afirmação: “Em português, dependendo do critério de

classificação adotado, o número de fonemas varia entre 26 e 35” (2005, p.

179).

As semivogais são definidas como “os fonemas /i/ e /u/ quando

aparecem ligados a uma vogal, formando sílabas com ela” (2005, p. 181) e

exemplificadas por meio das palavras <ameixa> e <tesouro>. A essa definição

e exemplificação seguem duas observações: “A semivogal é pronunciada mais

fracamente do que a vogal” e “Em determinadas palavras, e e o, por serem

pronunciadas respectivamente como /i/ e /u/, funcionam como semivogais”,

como em mãe /mãi/ e irmão /ir-mãu/. Nada é dito das demais possibilidades de

letras que podem representar a semivogal /i/ (<m> e <n> como em <pensem>

e <abdômen>) e /u/ (<l>, <m> e <n> como em <sal>, <amam> e <elétron>). Os

autores não empregam os símbolos do AFI, /j/ e /w/, para representar as

semivogais, usando /i/ e /u/ tanto para as vogais como para as semivogais.

As consoantes são definidas também de modo abrangente e impreciso:

“são sons que se produzem quando a corrente de ar, vinda dos pulmões, é

momentaneamente interrompida pela língua, dentes ou lábios. As consoantes

são: b, c, d, f etc.” (2005, p.181). Essa definição nos leva a pensar que a

interrupção da corrente de ar na produção das consoantes é sempre total e que

há exclusão dos articuladores na formação do obstáculo: ou é interrompida

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pela língua, ou pelos dentes, ou pelos lábios. A formação do obstáculo pela

junção de lábio com lábio, da língua com os dentes e do lábio com os dentes

parece excluída das possibilidades de modos e pontos de articulação. Os

autores não apresentam a lista dos fonemas consonantais do português e não

utilizam o AFI para a transcrição das quatro consoantes que mencionam. Aliás,

elas são citadas pela ordem do alfabeto. Encerram a apresentação com o

exemplo da palavra “i-nex-pli-cá-vel”, escrita ortograficamente e com as

consoantes destacadas em vermelho, mas sem qualquer comentário.

Como nos livros anteriores, a abordagem das vogais, semivogais e

principalmente das consoantes em L4 é lacunar. Em resumo, o leitor sai da

primeira seção sem saber ao menos quantos e quais são os fonemas do

português e o que os diferencia, para além dos traços de classe principais.

A segunda seção – “Dígrafo” – é introduzida por uma explicação: “em

certas palavras o número de letras é maior que o de fonemas. Esse fato ocorre

sempre que, para representar um determinado fonema, são necessárias duas

letras.” (2005, p.181), seguida, à guisa de exemplo, pelas palavras:

<arremessar> e <exceção>, com os dígrafos destacados. Após essa primeira

conceituação, os autores, numa caixa de destaque, decompõem a palavra,

fornecendo uma definição geral de dígrafo: “(di = dois; grafos = letras) é o

conjunto de dois sinais gráficos (duas letras) que representam um único

fonema.” (2005, p. 181). Abaixo da caixa, listam/classificam os dígrafos da

língua portuguesa em separáveis e inseparáveis na divisão silábica, segundo

as convenções ortográficas. E, em forma de observação, apresentam os

grupos am/an (=ã); em/en (=ẽ); im/in (=ĩ); om/on (=õ); um/um (=ũ) também

como dígrafos, acompanhados de exemplos. Ainda como observação, mostram

quando os grupos <gu> e <qu> são dígrafos e quando não o são, distinguindo,

na sequência, dígrafo de encontro consonantal. Vale destacar que todos os

exemplos são apresentados em escrita ortográfica, procedimento repetido nas

seções seguintes.

Apresentam em seguida uma seção de atividades com cinco exercícios:

três sobre quantidade de letras e fonemas, um em que exploram a sonoridade

de um poema: aliteração e assonância (recorrendo a propriedades não

mencionadas na seção “Fonema”, como sons abertos e fechados, sons

oclusivos e fricativos etc) e o último que trata das palavras homófonas (cacei e

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cassei) para explorar também a questão do número de letras e número de

fonemas.

A terceira seção – “Encontros vocálicos” – trata dos ditongos (crescentes

e decrescentes), tritongos e hiatos. É iniciado com um exemplo: “O ministério

da Alegria adverte: Mau humor é prejudicial à saúde.”, e uma pergunta disposta

ao lado do slogan: “Para que serve saber (subentende-se – a classificação dos

encontros vocálicos)? – A classificação dos encontros vocálicos é um pré-

requisito para o estudo de divisão silábica e acentuação gráfica” (2005, p. 183).

Nesse caso, o estudo dos encontros vocálicos é justificado pela sua função no

estudo das convenções ortográficas no que diz respeito à divisão silábica e

acentuação gráfica. As palavras presentes no cartaz (ministério – alegria – mau

– prejudicial – saúde) têm seus encontros vocálicos destacados. Também

explicam a tipologia dos encontros vocálicos por intermédio de palavras já

separadas silabicamente (ditongo: a-rei-a, pa-trão, e-vo-lui; tritongo: i-guais,

sa-guão, a-ve-ri-guei; hiato: a-rei-a, e-vo-lu-ir, Sa-a-ra).

A quarta seção – “A palavra e suas sílabas” – inclui a classificação das

palavras quanto ao número de sílabas, a divisão silábica e a sílaba tônica. O

primeiro item apresenta e exemplifica a classificação das palavras quanto ao

número de sílabas: monossílaba, dissílaba, trissílaba e polissílaba. No segundo

item, lemos que “A divisão silábica de uma palavra escrita baseia-se na

pronúncia” (2005, p. 185). Os autores retomam, então, os conceitos de ditongo,

tritongo, hiatos e dígrafo, vistos nas seções anteriores, para apresentar as

regras de separação silábica na escrita. Eles nem se dão conta de que, no

caso dos dígrafos separáveis (rr, ss, sc, sc, xc), o princípio de que é a

pronúncia que orienta a separação silábica é contrariado, pois se assim fosse a

separação de uma palavra como <carrosel> deveria ser <ca-rro-ssel> e não

<car-ros-sel> como ordenam as convenções ortográficas. No terceiro item,

explicam e demonstram por meio de exemplos o que é a sílaba tônica das

palavras, sem mencionar e exemplificar, contudo, as sílabas átonas.

Apresentam a classificação das palavras em oxítonas, paroxítonas e

proparoxítonas e observam que, algumas vezes, a sílaba tônica é acentuada

graficamente, mas não explicitam quais vezes (remetem para o capitulo V).

O capítulo V, nomeado “Fonologia”, é encerrado com quatro páginas de

atividades diversificadas, que buscam aplicar os conceitos estudados na

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interpretação de textos variados como: provérbios, textos informativos,

poemas, quadrinhas, contos, em que os exercícios demandam mais

informações/conhecimentos do que os fornecidos na exposição. Por exemplo,

muitos exercícios exploram a aliteração e a assonância, tópicos não

contemplados na exposição. Tais atividades poderiam receber respostas mais

precisas, se os alunos tivessem aprendido o que é uma consoante oclusiva,

fricativa, vibrante e o que é uma vogal aberta ou fechada. Por exemplo, ao

explorarem a sonoridade do haicai Cigarra/ Diamante. Vidraça./ Arisca, áspera

asa risca/ o ar. E brilha. E passa. (Guilherme de Almeida), os autores se

referem ao efeito de fricção produzido pelo uso abundante de <r> e <s> que

lembra “o raspar das asas da cigarra no vidro”. Se os alunos conhecessem os

modos e pontos de articulação das consoantes, isso faria mais sentido para

eles, pois teriam mais elementos para perceber/explorar a sonoridade da

linguagem poética.

Embora L4 destine um capítulo inteiro para a fonologia, a abordagem é

incompleta, superficial e inconsistente, subjugada à modalidade escrita e

voltada para a apresentação de convenções ortográficas no que tange à

separação silábica e acentuação gráfica. A concepção de língua que vige nas

páginas do capítulo é a de que a língua é uniforme e homogênea, sendo as

variações de pronúncia do português completamente ignoradas.

3.5 O CONTEÚDO FONÉTICA E FONOLOGIA NO LIVRO “PORTUGUÊS – DE OLHO NO MUNDO DO TRABALHO”, DE ERNANI TERRA E JOSÉ DE NICOLA (L5)

Os autores tratam do conteúdo fonética e fonologia na unidade 1,

subdividida em três capítulos. O primeiro capítulo, designado “Fonologia”,

inclui: A gramática no texto, Os sons da língua, A representação gráfica dos

fonemas, Letras e dígrafos, Classificação dos fonemas, Sílaba, Encontros

vocálicos e Divisão silábica. O segundo, designado “Ortografia”, trata do

emprego de certos grafemas (h,s, z, g, j, x, ch, s,c,ç,sc,ss), homônimos e

parônimos, hífen e de certas palavras e expressões (porquês, onde/aonde,

mau/mal, há/a, mas/mais, senão/se não, ao encontro de/de encontro a). O

terceiro, designado “Acentuação gráfica”, aborda Acentos gráficos, Acentuação

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gráfica, Regras gerais, Regras especiais, Acento grave, Acento diferencial,

Ortoépia e Prosódia.

Na primeira seção, “A gramática no texto”, o conceito de fonologia, que

dá nome ao capítulo um, é introduzido por meio de uma tirinha de Dick Browne,

intitulada “Hagar”, com os seguintes dizeres: Hagar: “Estou de volta da

Inglaterra, Helga”; Helga: “Ótimo! Trouxe as facas que pedi?”; Hagar:

“Facas??”. E do lado de fora da casa se encontram as cinco vacas trazidas

por Hagar. Das três perguntas elaboradas duas (1 e 3) exploram o assunto: “1.

Em que aspecto linguístico está centrado o humor da tira?”. É uma pergunta

que explora a confluência de dois fonemas /f/, /v/ que se identificam pelo ponto

e modo de articulação, só diferindo quanto ao estado da glote que define os

traços sonoro (ou vozeado) ou surdo (ou desvozeado), distintivos na língua

portuguesa, mas não no alemão em algumas posições da palavra e do

enunciado. O excerto a seguir faz parte da questão de número 3, apresentando

o conceito de fonologia estendido e o de fonética bem sintetizado:

A palavra fonologia é formada por dois elementos de composição: fono (‘som,voz”) = logia (“estudo, ciência”). No dicionário de linguística (organizado por Jean Dubois e editado pela Cultrix), encontramos a seguinte definição: A fonologia estuda elementos fônicos que distinguem, numa mesma língua duas mensagens de sentido diferente (a diferença fônica no início das palavras do português bala e mala, a diferença de posição do acento no português sábia, sabia e sabiá, etc.). Nisto [a fonologia] se diferencia da fonética, que estuda os elementos fônicos independentemente de sua função na comunicação. (2004, p.188)

Depois de decompor morfologicamente a palavra fonologia, defini-la e

diferenciá-la de fonética, os autores introduzem a pergunta 3: “[...] procure

definir, de forma simples e objetiva, o que é fonologia?” (2004, p. 189). Sobre

a fonética nada perguntam na questão e também nada mais dizem sobre ela

no capítulo. O trecho de Dubois, citado na pergunta, introduz a distinção entre

a fonologia e a fonética, destacando que a primeira se aplica ao estudo dos

sons do ponto de vista de sua função na comunicação (ou seja, a fonologia é

uma ciência linguística), ao passo que a segunda estuda os sons da fala sem

levar em conta a sua função na comunicação (ou seja, a fonética é uma ciência

não linguística). Contudo, essa distinção não merece nenhum comentário dos

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autores. Embora a tira seja bastante adequada para explorar o conceito de

fonologia, ela é subutilizada pelos autores que não exploram o contraste entre

facas/vacas, recorrendo a outros exemplos.

Na segunda seção – “Os sons da língua” – os autores optam por uma

estratégia indutiva para definir fonema. Apresentam, primeiro, uma série de

pares mínimos de palavras: faca/fada, faca/vaca, faca/fica, tecendo o seguinte

comentário: “Observe que, em cada um desses pares, a distinção entre as

palavra se dá por meio de um único elemento sonoro, representado

graficamente por um símbolo denominado letra (no primeiro par: c/d; no

segundo par: f/v; no terceiro par: a/i.”( 2004, p.189). Só então fornecem a

definição de fonema: “À unidade sonora que possui propriedade de estabelecer

distinção entre vocábulos de uma língua, damos o nome de fonema. Fonemas

são unidades sonoras mínimas capazes de estabelecer distinção entre

vocábulos de uma língua” (2004, p.189).

Na terceira seção – “A representação gráfica dos fonemas” – é

introduzido um conceito para letra: “[...] para representar graficamente os

fonemas, contamos com uma série de sinais gráficos denominados letras.

Além das letras contamos com uma série de notações léxicas (acentos

gráficos, cedilha, til, trema)” (2004, p.189). Os autores, então, estabelecem a

distinção entre fonemas e letras: “Os fonemas são fenômenos acústicos, isto é,

sonoros, enquanto as letras são representações gráficas dos fonemas” (2004,

p. 189). Assinalam que “[...] para facilitar a distinção entre letra e fonema, estes

são transcritos entre barras oblíquas (/ /)” (2004, p. 189), mas não falam dos

símbolos usados na transcrição dos sons. Chamando a atenção para a não

equivalência estrita entre o número de letras e fonemas, apresentam a

transcrição fonética de quatro palavras <caneta>, <fixo>, <canta> e <carro>,

aliás, a única ocasião em que contrastam a escrita ortográfica com a

transcrição fonológica:

caneta: 6 letras (c-a-n-e-t-a) e 6 fonemas (/k/a/n/e/ta/); fixo: 4 letras (f-i-x-o) e 5 fonemas ( /f/i/k/s/o); canta: 5 letras ( c-a-n-t-a) e 4 fonemas (/k/ã/t/a/); carro: 5 letras (c-a-r-r-o) e 4 fonemas (/k/a/R/o/). (2004, p. 189)

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Na quarta seção – “Letras e dígrafos” – os autores apresentam as 23

letras que constituem o alfabeto/abecedário da língua portuguesa, em

maiúsculas e minúsculas. As letras <k>, <w> e o <y>, por ser um livro editado

antes da última reforma ortográfica, são apartadas do alfabeto e

acompanhadas da seguinte observação: “devem ser utilizados apenas em

casos especiais – nas grafias de abreviaturas, símbolos e estrangeirismos”

(2004, p. 190). Essa seção inclui a subseção Dígrafo onde o referido termo é

definido como: “[...] o conjunto de duas letras que representa um único fonema.

Em português, temos dois tipos de dígrafos: o consonantal e o vocálico” (2004,

p. 190). São listados todos os dígrafos consonantais e vocálicos da língua

portuguesa, mediante a observação de que não se deve confundir dígrafo com

encontro consonantal: “No encontro consonantal pronunciamos mais de um

som; no dígrafo, pronunciamos um único som” (2004, p. 190).

Na quinta seção – “Classificação dos fonemas” – classificam os fonemas

do português em vogais, semivogais e consoantes. Definem as vogais somente

quanto ao modo de articulação: “Sons que resultam da livre passagem de ar

pela boca.” (2004, p.190). Não dizem quantas são as vogais do português e

nem recorrem ao AFI para transcrevê-las. Também nada dizem acerca das

vogais nasais. Observam que “Os fonemas vocálicos são representados pelas

letras a, e, i, o, u, modificadas ou não por notações léxicas (ã, é, ê, õ, ô, ó) e

pelos dígrafos vocálicos (am, an, em, em, im, in, om, on, um, un).”( 2004,

p.190). Tal observação corresponde à representação das vogais na escrita e

não na oralidade. Exemplificam por meio de palavras escritas ortograficamente,

assinalando as vogais em negrito: cama, janela, amigo, bambu, pele, Pelé.

Essa forma de apresentação é problemática, pois não permite visualizar a

diferença entre /�/ e /e/ e /�/ e /o/.

As consoantes também são definidas de modo abrangente apenas pela

referência genérica à presença de um obstáculo durante a articulação: “[...]

fonemas que, em sua articulação, resultam de algum obstáculo encontrado

pela corrente de ar.” (2004, p.190). Como não especificam a natureza do

obstáculo, os leitores são levados a concluir equivocadamente que todas têm

as mesmas características, já que nada mais de suas especificidades, dos

seus traços distintivos quanto ao modo de articulação, é referido. Também

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sobre o que as distingue quanto ponto de articulação e/ou o estado da glote

nada é mencionado. Com relação às consoantes, observam ainda que “Os

fonemas consonantais só conseguem formar sílaba quando acompanhados de

vogal” (2004, p. 190). E, tal como no caso das vogais, afirmam que “Esses

fonemas são representados pelas consoantes e pelos dígrafos consonantais”

(2004, p.190), sem relacionar explicitamente essa forma de representação com

a língua escrita. E, para encerrarem a abordagem das consoantes,

apresentam, sem nenhum comentário extra, sete palavras em que destacam as

consoantes em negrito (dedo, gato, jiló, rato, chapéu, carro, massagem).

Como no caso das vogais, por essa representação alfabético-ortográfica, os

alunos não têm oportunidade de aprender que o <j> de “jiló” e o <g> de

“massagem” representam um mesmo fonema /Z/. À semelhança de outros

livros, também L5 não informa quantos e quais são os fonemas consonantais

do português.

As semivogais são definidas como “fonemas cuja articulação se

assemelha à das vogais, mas não funcionam como base da sílaba,

apoiando-se sempre numa vogal para com ela formar sílaba” (2004, p. 190).

Lembram que as semivogais são comumente representadas pelas letras i e u,

mas que em alguns casos podem ser representados pelas letras e e o. Citam

exemplos de palavras em que as semivogais formam ditongos com as vogais,

destacando-as em negrito: lei, cárie, coisa, lousa, mãe, pão. Uma observação

distingue o funcionamento das semivogais i e u das vogais i e u, mas o uso da

escrita alfabético-ortográfica nas duas situações uma vez mais embaralha os

fonemas. No tratamento das semivogais, repetem-se as mesmas imprecisões

no tratamento das correspondências entre letras e fonemas observadas nos

livros anteriormente analisados, uma vez que letras como <m> e <n> que

podem representar a semivogal /j/, a exemplo das palavras <tem> e <hífen>, e

<m>, <n> e <l> que podem representar /w/, a exemplo de <com>, <cânon> e

<sal> não são mencionadas.

Na sexta seção, os autores definem a “sílaba” como: “[...] o grupo sonoro

formado por um ou mais fonemas, pronunciado em uma única expiração.

Lembre-se que toda sílaba tem por base uma vogal; portanto, não há sílaba

sem vogal.” (2004, p.191). Em seguida, apresentam as classificações das

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palavras quanto ao número de sílabas (monossílabas, dissílabas, trissílabas e

polissílabas); distinguem monossílabo átono de tônico e, com relação às

palavras com mais de uma sílaba, definem as sílabas tônica e átona e

classificam-nas quanto à posição do acento (oxítonas, paroxítonas e

proparoxítonas).

A sétima e oitava seção são destinadas à definição e exemplificação dos

encontros vocálicos e consonantais (perfeitos e imperfeitos). A nona seção

aborda a divisão silábica que á assim concebida: “A divisão das sílabas é feita

com base na soletração.” Porém, nem sempre a soletração orienta a divisão

silábica. É o caso dos dígrafos <rr> e <ss>, pronunciados juntos, mas

separados na divisão silábica da escrita, de acordo com as convenções

ortográficas, e dos dígrafos xc, sc e sç para os quais a pronúncia/soletração

não condiz com a separação na escrita, uma vez que uma das letras não é

ouvida na pronúncia de palavras que os contêm.

No segundo capítulo, intitulado “Ortografia”, os autores apresentam as

normas que regem a escrita, chamando a atenção para o fato de um mesmo

fonema poder ser representado por letras diferentes, o que gera dúvidas com

relação à grafia. Apresentam algumas orientações ortográficas quanto ao

emprego de certas letras, dos parônimos e homônimos, do hífen, emprego de

algumas palavras e expressões.

No terceiro capítulo, intitulado “Acentuação gráfica”, apresentam as

regras vigentes de acentuação gráfica para as proparoxítonas, paroxítonas,

oxítonas, monossílabos e as regras especiais de acentuação (ditongos abertos,

hiatos, e outros). Tratam também do acento grave e do diferencial. Desse

capítulo, interessa-nos comentar as seções “Ortoépia” e “Prosódia”.

A ortoépia (ou ortoepia) “[...] trata da pronúncia correta das palavras.

Pronunciar incorretamente uma palavra é cometer cacoépia” (2004, p. 203).

Em seguida, os autores apresentam a etimologia das palavras ortoépia e

cacoépia: “[...] são palavras formadas por radicais gregos: orto = “correto”,

“certo”; caco = ‘feio”, “mau”; épos = “palavra”. Também podemos falar em

ortofonia e cacofonia.”(2004, p.203). À guisa de exemplificação, mencionam

como “erros de ortoépia”:

• “abóboda” em vez de abóbada

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• “alejar” em vez de aleijar • “adevogado” em vez da advogado • “estrupo” em vez de estupro • “guspe” em vez de cuspe (2004, p.203)

Não há comentários sobre essas palavras poderem ser consideradas

variantes, dada a sua constância na fala de muitos brasileiros. O que causa

maior estranheza aqui é a apresentação da palavra <advogado>, pronunciada

com /d/ mudo. Essa pronúncia, efetivamente, não ocorre na fala da quase

totalidade dos brasileiros que inserem um /i/ ou um /e/ após a letra <d>, já que

sílabas terminadas em consoantes oclusivas não são mais produtivas no

português. Porém, abstêm-se de fazer comentário sobre isso e apresentam

como erro a variante utilizada por uma considerável parcela de brasileiros –

forma com a intercalação do /e/ após a letra <d>. Tanto a forma com /e/ quanto

com /i/ são variantes aceitas pelas comunidades de fala que as têm como

pronúncias características.

A prosódia “trata da correta acentuação tônica das palavras. Assim,

cometer um erro de prosódia é, por exemplo, transformar uma palavra oxítona

em paroxítona, ou proparoxítona em paroxítona. Os erros de prosódia recebem

o nome de silabada” (2004, p. 204). Eis os exemplos de silabadas listados:

Pronunciar em vez de sútil sutil côndor condor ávaro avaro rúbrica rubrica interim ínterim leucocito leucócito (2004, p. 204)

Apresentam também palavras que admitem duas pronúncias (acrobata e

acróbata, liquidação e liqüidação, réptil e reptil etc.). É impossível não nos

perguntarmos o porquê de se admitirem tais variantes como possíveis e não a

forma <rúbrica> como variante de <rubrica>, já que a primeira pronúncia é

muito mais constante do que a segunda. Encerram a seção sem mais

comentários. Os exercícios não oportunizam a reflexão sobre os usos da

língua, sobre as variantes linguísticas, focalizando os usos da norma padrão

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regidos pela gramática normativa, centrados na (orto)grafia. A oralidade

também é completamente ignorada nesse manual.

O que dissemos sobre L4 aplica-se inteiramente a L5 que destina um

capítulo inteiro para a fonologia, mas cuja abordagem é incompleta, superficial

e inconsistente, subjugada à modalidade escrita e voltada para a apresentação

de convenções ortográficas. Na perspectiva dos autores, a língua portuguesa é

uniforme e homogênea, as variações de pronúncia do português são

completamente ignoradas, ou melhor, são consideradas “erros de ortoépia” e

“erros de prosódia”.

3.6 O CONTEÚDO FONÉTICA E FONOLOGIA NO LIVRO “PORTUGUÊS” DE JOSÉ DE NICOLA

(L6) Em L6, os conteúdos fonética e fonologia são apresentados em três

capítulos. O capítulo 1, denominado “Os sons e suas representações gráficas”,

subdivide-se nas seções: Os fonemas e suas representações, Fonemas, Letras

e Dígrafos, Alfabeto fonético, Classificação dos fonemas (Vogal, Consoante e

Semivogal), Sílaba, encontros vocálicos e consonantais.

O capítulo 2, denominado “As palavras e suas grafias”, inclui as

seguintes seções: Ortografia, Homônimos, Homógrafos e Homófonos,

Parônimos, Orientações ortográficas, essa última com as seguintes subseções:

O fonema /∫/ pode ser representado pelas letras x ou pelo dígrafo ch; O fonema

/Z/ pode ser representado pelas letras g ou j; O fonema /z/ pode ser

representado pelas letras s, z, x; Emprego do dígrafo ss; Cê-cedilha; A letra h;

Emprego do hífen; Hífen com prefixos; E como fica a grafia dos

estrangeirismos?.

O capítulo 3, denominado “As palavras e suas entonações”, é

constituído pelas seções: A tonicidade (Sílaba tônica), Acento tônico e acento

gráfico, Acentuação, ortoépia e prosódia, Regras de acentuação gráfica

(Acentuação dos proparoxítonos, oxítonos, paroxítonas, monossílabos,

ditongos, hiatos, Acento diferencial, Trema, Acentuação de algumas formas

verbais).

O capítulo 1 é aberto com o poema “Serenata Sintética” (Rua torta/Lua

morta/Tua porta) de Cassiano Ricardo, poema apropriado para introduzir o

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assunto, porque é construído por apenas seis palavras, formando dois

paradigmas no interior dos quais as palavras diferem de sentido pela troca de

um único som (rua/lua/tua e torta/morta/porta). O poema é seguido de um

comentário sobre a musicalidade do texto, culminando com a introdução da

noção de fonema: “unidades sonoras elementares simples, capazes de

estabelecer diferenças de significado” (2005, p. 10).

Depois disso, o autor retoma a tese, afirmada insistentemente pela

linguística, de que “As línguas são sistemas de signos vocais”, destacando que,

primeiro, aprendemos a falar e, só depois, a escrever e, que a escrita é um

capítulo recente na história da humanidade (tem cerca de 4.000 anos). Lembra-

nos ainda de que a leitura em voz alta ou silenciosa restitui a oralidade dos

textos escritos e de que “a parte da gramática que se dedica aos sons da

língua chama-se Fonologia” (2005, p. 11), definida, em contraste com a

fonética, por meio de uma citação extraída do Dicionário de Linguística de

Dubois (1986, p. 184 e 185):

Fonologia é “a ciência que estuda os sons da língua do ponto de vista de sua função no sistema de comunicação linguística. Ela estuda os elementos fônicos que distinguem, numa mesma língua duas mensagens de sentido diferente (a diferença fônica no início das palavras do português bala e mala, a diferença de posição do acento no português sábia, sabia e sabiá, etc.) e aqueles que permitem reconhecer uma mensagem igual através de realizações individuais diferentes (voz diferente, pronúncia diferente, etc.) Nisto se diferencia da fonética, que estuda os elementos fônicos independentemente de sua função na comunicação”. (2005, p.188)

O excerto, citado mas não comentado pelo autor, distingue a fonologia

da fonética, a primeira estudando os sons do ponto de vista de sua função num

sistema linguístico e a segunda estudando-os apenas em sua fisicalidade,

independentemente de sua função na comunicação. A citação também traz à

tona o funcionamento fonológico da posição da sílaba tônica no português, ou

seja, a possibilidade de ocorrência do fonema suprassegmental ao lado do

segmental. Além disso, a questão das variações é aventada, como a troca de

sons que não interfere no significado.

Segundo o autor, a fonologia abrange o estudo dos fonemas, sílabas,

ortoépia, prosódia e ortografia. De forma destacada na página, apresenta a

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definição de Fonema: “Fonema é a menor unidade sonora de caráter distintivo

de uma língua (essa é sua característica mais marcante). [...] entre as palavras

morta e porta, a diferença de significado é estabelecida pela troca do fonema

/m/ pelo fonema /p/”.(2005, p.11). Também informa, em destaque, que “Por

convenção, escrevem-se os fonemas sempre entre barras” (2005, p. 11).

Após definir fonema, o autor passa a tratar de sua representação na

escrita por meio de letras (acompanhadas ou não de notações léxicas como

acentos gráficos, cedilha, til, trema). Observa que “[...] nem sempre a cada

fonema corresponde uma letra.” (2005, p.11) e, para mostrar a não

correspondência entre o número de fonemas e letras, ilustra com quatro

palavras:

• o vocábulo lua é formado por três fonemas (/l/ /u/ /a/) e representados graficamente por três letras (ele – u - á).

• o vocábulo canto é formado por quatro fonemas (/k/ /ã/ /t/ /o/) e representado graficamente por cinco letras (cê – á – ene – tê - ó).

• o vocábulo táxi é formado por cinco fonemas (/t/ /a/ /k/ /s/ /i/) e representado graficamente por quatro letras (tê - á – xis – i).

• o vocábulo massa é formado por quatro fonemas (/m/ /a/ /s/ /a/) e representado graficamente por cinco letras (eme – á – esse – esse – á). (2005, p.11)

Na seção “Letras e dígrafos”, apresenta a definição etimológica de

alfabeto e de dígrafo. “A palavra alfabeto é formada pelas primeiras letras do

alfabeto grego: alfa e beta. A palavra correspondente, em português, oriunda

do latim, é abecedário (formada pelo nome das quatro primeiras letras do

nosso alfabeto mais o sufixo –ario).”( 2005, p. 12). São apresentadas em tipo

minúsculo as 23 letras do alfabeto da língua portuguesa (a, b, c, d, e, f, g, h, i, j,

l, m, n, o, p. q, r, s, t, u, v, x, z). As letras <k>, < w> e <y> são apresentadas

fora do alfabeto, uma vez que o livro foi editado antes de o acordo para a nova

ortografia estar em vigência. São apresentadas como letras presentes em

nosso cotidiano em nomes próprios, placas de automóveis, marketing,

abreviaturas, símbolos, palavras estrangeiras de uso internacional.

O dígrafo é assim definido: “Ocorre dígrafo (ou digrama) quando duas

letras representam um único fonema”. “Dígrafo (do grego di, “dois”, + graphein,

“escrever”): mais livremente, “duas grafias”. Também do grego vem digrama

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(di, “dois”, + gramma, “letra”); esta segunda forma nos parece mais próxima da

realidade, pois um dígrafo é um fonema representado graficamente por duas

letras.”( 2005, p.12). Em seguida, são listados e exemplificados os dígrafos

consonantais (ch, nh, rr, ss, sc, sc, xc, gu, qu, lh) e vocálicos (am, an, em, em,

im, in, om, on, um, un) da língua portuguesa. A interpretação da sequência

vogal + cons. nasal como dígrafos vocálico nos leva a concluir que o autor

subsume as vogais nasais como fonemas e não como alofones das vogais

orais.

Na seção “Alfabeto fonético”, o autor apresenta o conjunto de fonemas

do português: 12 vogais, uma vez que inclui entre elas as vogais nasais, 2

semivogais (classificadas por ele como fonemas) e 19 consoantes, totalizando

33 fonemas. Embora haja discordância em relação a esse número, ele é

apresentado como categórico. Nicola usa nos quadros abaixo os símbolos do

Alfabeto Fonético Internacional para representar os fonemas, obedecendo ao

seguinte princípio: “apenas um signo para cada som, apenas um som para

cada signo” (2005, p.13).

SIGNOS QUE REPRESENTAM OS FONEMAS VOCÁLICOS Signos Exemplos Transcrição fonética /a/ cá, lá /ka/, /la/ /ã/ lã, canto, campo /lã/, /kãto/, /kãpo/ /ε/ pé, quero /pε/, /kεro/ /e/ pêlo, pêssego /pelo/, /pesego/ /ẽ/ lente, quente /lẽte/, /kẽte/ /i/ mico, caqui /miko/, /kaki/ /ĩ/ lindo, fim /lĩdo/, /fĩ/ /ç/ bola, cipó /bçla/, /sipç/

/o/ bolo, colo /bolo/, /kçlo/

/õ/ tonto, batom /tõto/, /batõ/ /u/ gula, tatu /gula/, /tatu/

/ũ/ assunto, atum /asũto/, /atũ/ Fonte: Nicola, 2005, p. 13 SIGNOS QUE REPRESENTAM OS FONEMAS SEMIVOCÁLICOS

Signos Exemplos transcrição fonética /j/ boi, pai, feio /boj/, /paj/, fejo/ /w/ pau, meu, cacau /paw/, /mew/, /kakaw/

Fonte: Nicola, 2005, p. 13 SIGNOS QUE REPRESENTAM OS FONEMAS CONSONANTAIS

Signos Exemplos transcrição fonética /p/ pomba /põba/

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/b/ bomba /bõba/ /t/ tatu /tatu/ /d/ dado /dado/ /k/ casa, quilo /kasa/, /kilo/ /g/ gato, sangue /gato/, /sãge/ /f/ facão /fakãw/ /v/ vaca /vaka/ /s/ saci, passa, maço,

nasci, trouxe /sasi/, /pasa/, /maso/, /nasi/, /trowse/

/z/ zebra, casa, cozer, exame

/zebra/, /kaza/, /kozer/, /ezame/

/S/ chave, xeque /Save/, /Seke/

/Z/ hoje, gelo /oZe/, /Zelo/ /m/ mala /mala/ /n/ nata /nata/ /¯/ rainha, nhoque /Raj¯a/, /¯çke/

/l/ leite /lejte/ /λ/ pilha /piλa/ /r/ arara /arara/ /R/ rei, carro /Rej/, /kaRo/

Fonte: Nicola, 2005, p. 13 e 14

Após a apresentação dos fonemas, são enumeradas as relações que

podem ocorrer entre fonema/letra: um fonema pode ser representado por uma

letra; um mesmo fonema pode ser representado por letras diferentes; uma

mesma letra pode representar diferentes fonemas; duas letras (dígrafos)

podem representar um único fonema; uma única letra pode representar dois

fonemas.

Na seção “Classificação dos fonemas”, o autor aborda primeiro as

vogais, levando em conta o traço de classe principal bem como a atuação ou

não da cavidade nasal, responsável pela diferença entre vogais orais e nasais:

Vogal é o fonema produzido pela passagem do ar pelas cordas vocais, que vibram, fazendo vibrar o próprio ar. Esse ar vibrante pode passar livremente pela boca (temos então vogais orais) ou pode passar simultaneamente pela boca e pelas cavidades nasais (temos então as vogais nasais) O que se modifica é a posição da língua e a abertura dos lábios. (2005, p.14-15)

Elenca, em sequência, os 12 fonemas vocálicos, estranhamente

representando as vogais abertas /�/ e /�/ não como determina o AFI, mas como

/é/ e /ó/, recorrendo aos recursos de nosso sistema de escrita. Essa forma de

representação é imprecisa, pois nem sempre os fonemas abertos /�/ e /�/ são

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escritos com acento o que pode levar ao equívoco. Além disso, o autor já havia

usado o símbolo do AFI (/�/ e /�/) no quadro das vogais, não se justificando,

portanto, a sua representação como /é/ e /ó/.

a ã e é ẽ i ĩ o ó õ u ũ

Diferentemente do que ocorre nos livros descritos anteriormente, L6

apresenta uma classificação das vogais, considerando a posição horizontal da

língua e a abertura dos lábios:

• Vogal central: é produzida com a língua em posição de repouso e os lábios abertos. É o caso de /a/ e /ã/;

• Vogais anteriores: a ponta da língua se eleva gradativamente em direção à região palatal anterior; os lábios se fecham, diminuindo a abertura da boca. É o caso de /e/, /εεεε/, /ẽ/, /i/, /ĩ/;

• Vogais posteriores: a parte posterior da língua se eleva em direção ao véu palatino; os lábios se projetam, arredondando a abertura da boca. É o caso de /o/, /çççç/, /õ/, /u/, /ũ/. (2005, p.15)

Embora mais completa do que as classificações das vogais descritas

anteriormente, essa classificação deixa de considerar o movimento vertical da

língua em relação aos alvéolos, palato duro e véu palatino, que resulta na

distinção: baixa /a/, média-baixa /�/ /�/, média-alta /e/ /o/ e alta /i/ /u/, traço

distintivo que separa as vogais média-altas /e/, /o/ das vogais média-baixas /�/

/�/. Se o autor explicita o movimento horizontal da língua, não há justificativa

plausível para não explicitar também o movimento vertical, pois sem esse traço

articulatório não é possível distinguir internamente as série /� o u/ e /� e i/,

configurando-se como uma classificação incompleta. A classificação menciona

o arredondamento dos lábios na pronúncia de determinadas vogais (/o/, /çççç/, /õ/,

/u/, /ũ/), mas sobre a posição distendida dos lábios nas vogais não-arredondas

(/a/, /ã/, /e/, /�/, /ẽ/, /i/, /ĩ/) nada é dito. Não há um quadro-síntese da

classificação das vogais. A abordagem das vogais culmina com a reafirmação

de seu caráter silábico: “a vogal é a base da sílaba”, “não há sílaba sem vogal”

e “Em cada sílaba há apenas uma vogal” (2005, p, 15).

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As consoantes são definidas como: “um fonema em cuja articulação a

corrente de ar enfrenta obstáculos ao passar pela cavidade bucal. Esses

obstáculos podem ser totais ou parciais, dependendo da posição da língua e

dos lábios. Como o seu próprio nome indica, a consoante “[...] soa junto com

uma vogal.” (2005, p.15). Em seguida, enumera os critérios articulatórios de

classificação das consoantes – a natureza do obstáculo (se as consoantes são

oclusivas ou constritivas, mas não distingue os tipos de constritivas), o papel

das cordas vocais (se as consoantes são surdas ou sonoras), o papel da

cavidade nasal (se as consoantes são orais ou nasais) e o ponto de articulação

(os vários pontos aparecem no quadro-síntese, mas não são explicados)

CONSOANTES DA LÍNGUA PORTUGUESA cavidade bucal e

nasal Orais Nasais

Constritivas modo de

articulação Oclusivas

fricativas laterais vibrantes

cordas vocais

surdas sonoras surdas sonoras sonoras sonoras sonoras

bilabiais /p/ /b/ /m/

labiodentais /f/ /v/

linguodentais /t/ /d/ /n/

alveolares /s/ /z/ /l/ /r/

palatais /S/ /Z/ /λ/ /¯/

Pon

to d

e ar

ticul

ação

velares /k/ /g/ /R/

Fonte: Nicola, 2005, p. 15

As semivogais são assim definidas: “Semivogal é a denominação dada

aos fonemas /j/ e /w/, que se assemelham aos fonemas vocálicos /i/ e /u/. A

principal característica da semivogal é não ser base da sílaba; [...] sempre se

apoia numa vogal para formar sílaba” (p. 16). Na escrita, a semivogal /j/ é

comumente representada pela letra <i>, mas também pela letra <e>, já a

semivogal /w/ é comumente representada pela letra <u>, mas também pela

letra <o>, como nos exemplos seguintes: <sai> /saj/, <mãe> /mãj/, <degrau>

/degraw/ e <não> /nãw/ (2005, p. 16).

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A exemplo dos demais livros aqui analisados, L6 não menciona as

outras letras que podem representar na escrita fonemas semivocálicos: <m> e

<n> para /j/ e <m>, <n> e <l> para /w/.

Na seção “Sílaba, encontros vocálicos e consonantais”, o autor define

sílaba e classifica as palavras quanto ao número de sílabas em monossílabas,

dissílabas, trissílabas e polissílabas; trata dos encontros vocálicos (ditongo,

tritongo e hiato), conceituando-os e exemplificando-os. Entretanto, os

exemplos, exceto na observação seguinte acerca dos ditongos nasais, são

apresentados na forma escrita convencional.

Os ditongos nasais podem apresentar as seguintes grafias: mãe /ãj/, pão /ãw/, cãibra /ãj/, muito /ũj/, repõe /õj/, amam /ãw/, também /ẽj/. Não podemos confundir os dígrafos vocálicos am/an e em/en com os ditongos nasais: os ditongos sempre aparecem no final da palavra. Leia em voz alta os fonemas de lâmpada, antes, embora, envelhecer (dígrafos representando uma vogal nasal) e casaram, ninguém (ditongos em que se percebe a presença das semivogais). (2005, p.17)

Nessa observação sobre os ditongos nasais, o autor inclui a letra <m>,

como passível de se realizar foneticamente como as semivogais /j/ e/w/, mas

do <n> novamente nada diz.

Nessa seção ainda, interpelando o leitor pela interjeição “OPS!”, o autor

abre espaço para uma reflexão por meio da pergunta – “DITONGO OU

MONOTONGO?” – acerca de palavras que, na oralidade, não apresentam

ditongo, mas, na escrita, sim, como: beijo→ /beZo/; cheiro→/Sero/;

peixe→/peSe/; pouco→ /poko/; roupa→ /Ropa/; couro→/koro/, recorrendo à

explicação dada por Bagno (1997): a monotongação de /ow/, argumenta o

autor, ocorre em todos os ambientes fonéticos, já a de /ej/ é condicionada à

presença das consoantes /Z S r/ na sílaba imediatamente seguinte (caso a

consoante seguinte seja outra, a monotongação não ocorre, como por

exemplo: peito, meigo, leilão).

Em seguida trata dos encontros consonantais, da divisão silábica que,

segundo o autor, “[...] deve ser feita normalmente a partir da soletração” (2005,

p.18). Essa orientação não corresponde ao que ocorre na separação dos

dígrafos <ss>, <sc>, <sç>, <xc> e <rr>, cujas letras devem ser separadas na

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escrita, mas que são pronunciadas junto na oralidade. Ignorando as

especificidades da modalidade oral, apresenta as convenções de separação

silábica dos encontros vocálicos (tritongos, ditongos e hiatos), dígrafos, grupos

e encontros consonantais.

Uma vez mais interpela o leitor pela interjeição “OPS!” e por meio da

pergunta ‘ENCONTRO CONSONANTAL OU SILABAÇÃO?”, levando-o a

refletir sobre a regularidade da silabação na pronúncia de palavras como: pneu

- /penẽw/ ou /pinẽw/; psicanálise - /pisikanalize/; adjetivo - /adiZetivo/; subjetivo

- /subiZetivo/; advogado - /adivogado/; abdicar - /abidikar/; subsolo - /subisçlo/;

admitir - /adimitir/; obturar - /obiturar/; gnóstico - /ginçstiko/; mnemônico -

/menemoniko/ ou /minemoniko/. As gramáticas normativas tratam desses casos

como encontros consonantais, mas se essa classificação é válida em relação à

forma escrita de tais palavras não o em relação à forma oral.

As atividades são apresentadas em cinco páginas com uma diversidade

bem grande. Diferentemente dos livros anteriores, L6 traz exercícios de

transcrição fonética e de identificação de fonemas em pares mínimos. Ao

menos uma das atividades explora as variações do português na oralidade,

citando o trecho de um relato do antropólogo Darcy Ribeiro sobre uma

conversa com o cacique Juruna em que este teria pronunciado a palavra

<papel> como [papε]. A questão pinça a palavra <papel>, apresentando para

ela duas variantes: [papéw] e [papé] (Vale notar que o AFI não foi totalmente

usado nessas transcrições). Contudo, chama de variante fonológica apenas a

forma como o cacique a pronuncia, ou seja, [papé]. A forma padrão não é dita

uma variante. Também não há nenhuma referência sobre as outras duas

variantes possíveis para essa palavra no português brasileiro [papε…] e [papεr].

O capítulo 2 aborda as relações entre os fonemas e as letras de acordo

com as convenções ortográficas aprovadas pela Academia Brasileira de Letras

em 1943 e modificadas em 1971, observando que a grafia de uma palavra

pode estar ligada à etimologia ou à sua sonoridade. Trata dos homônimos,

homógrafos, homófonos e parônimos e de algumas regras (com suas

exceções) que orientam a escritura das palavras que apresentam o fonema /S/,

representado pela letra <x> e pelo dígrafo <ch>; o fonema /Z/, representado

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pelas letras <g> ou <j>; o fonema /z/, representado pelas letras <s>, <z>, <x>.

Apresenta ainda regras de emprego do dígrafo <ss>; do Cê-cedilha, da letra h,

do hífen com prefixos. Também menciona o caso dos estrangeirismos (alguns

são aportuguesados e outros incorporados ao léxico na forma original, esses,

segundo o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, devem ser

escritos com aspas ou itálico).

As atividades referentes a esse capítulo são centradas especificamente

na escrita ortográfica, à exceção de um exercício em que trata da pronúncia e

escrita de estrangeirismos <cowboy>, <boutique>, <jeans>, <chantilly>,

apresentados segundo o autor de acordo com os padrões fonéticos e gráficos

da língua portuguesa como “caubói”, “butique”, “jins”, “chantili”.

O capítulo 3 destina-se ao estudo da tonicidade, compreendendo a

diferenciação entre sílabas átonas e tônicas, bem como a classificação dos

vocábulos, segundo a posição da sílaba tônica, em proparoxítonas, paroxítonas

e oxítonas. O autor também trata dos monossílabos tônicos e átonos,

explicando e exemplificando a característica fonética de cada um deles: os

monossílabos tônicos têm acento próprio (Ex. Seja solidário e dê uma ajuda ao

seu amigo), já os átonos ligam-se à tonicidade das palavras próximas (Ex. Ele

entrou de gaiato na história). A distinção e a relação entre acento tônico

(prosódico) e acento gráfico são consistentemente tratadas. Não podemos

deixar de destacar que L6 apresenta a lógica do acento tônico que preside as

regras de acentuação gráfica. Estatisticamente, a maioria das palavras do

português termina em <a>, <e> e <o> e são paroxítonas. Dessa regularidade

decorrem as regras que determinam a acentuação gráfica de todas as

proparoxítonas e das oxítonas terminadas <a>, <e> e <o> (p. 40).

O capítulo 3 inclui ainda uma seção nomeada como “Acentuação,

ortoepia, prosódia” onde podemos ler a justificativa de que “[...] pronunciar

corretamente as palavras, preocupando-se com a acentuação, é condição

essencial para uma comunicação perfeita” (2005, p.39). O autor, com o auxilio

da etimologia, assim define a ortoepia ou ortoépia:

A ortoepia ou ortoépia ( do Gr. orthós, “reto”, “direto” = épos, “palavra”) trata da correta articulação e pronúncia das palavras. Certos desvios de ortoépia caracterizam a linguagem coloquial que, ao articular uma palavra, normalmente obedece à lei do menor

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esforço. Dessa forma, são comuns casos como: “róba” em vez de rouba, “alejar” em vez de aleijar, “adivogado” em vez de advogado (2005, p 39).

Podemos notar que autor chega a relacionar o que chama de “desvios

de ortoepia” à linguagem coloquial, mas não tece qualquer comentário sobre a

possibilidade de ver isso como “formas variantes” e não como “desvios” da

“correta articulação e pronúncia das palavras”.

Se a ortoépia se incumbe da parte segmental da pronúncia, a prosódia

trata da correta acentuação tônica das palavras, ou seja, da parte

suprassegmental. Os desvios de prosódia referem-se à transformação de uma

palavra paroxítona em proparoxítona ou de uma paroxítona em oxítona etc.

(Esse fenômeno é conhecido como silabada). Nesse caso, o autor não

apresenta os desvios como próprios da linguagem coloquial, mas como desvios

da língua, tomada como invariável.

Tonicidade correta Desvio de prosódia

ruBRIca rúbrica

filanTROpo filântropo

misanTROpo misântropo

aVAro ávaro

iBEro íbero

NoBEL Nóbel

aziAgo azíago

ruIM rúim

ÌNterim interim

reCORde récorde

(2005, p. 39)

Nessa seção, o autor trata também do caráter distintivo do acento tônico

no português, um tema que aparecera na definição de fonologia no capítulo 1.

Aliás, o exemplo é o mesmo presente no trecho citado: sabia – do verbo saber,

sabiá – pássaro e sábia – quem sabe muito. (2005, p. 39)

As atividades desse capítulo são direcionadas predominantemente para

a escrita ortográfica (atividades de acentuar, justificar a acentuação/ou não-

acentuação, de verificar os erros de acentuação).

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L6 destoa dos anteriores tanto na quantidade quanto na qualidade de

informações sobre o tema fonética e fonologia. É o primeiro a elencar todos os

fonemas do português usando símbolos do AFI; a definir precisamente o

fonema, lançando mão do contraste de sons nos pares mínimos com diferença

de significado; a fornecer uma classificação das vogais e consoantes usando

outros traços que não os de classe principal; a não confundir, à exceção de

alguns momentos, oralidade e escrita; a explicar a lógica das regras de

acentuação gráfica; a notar que há variações de pronúncia na linguagem

coloquial, embora não discuta a questão consistentemente e as nomeie como

“desvios” ao tratar da ortoépia e prosódia. Nicola é um dos autores de L5. Aí,

os autores não se referem, eufemicamente, aos “desvios de ortoépia” e aos

“desvios de prosódia”, mas sim aos “erros de ortoépia” e aos “erros de

prosódia”. Em L6, Nicola está muito mais próximo da fonologia como uma

ciência linguística.

3.7 O CONTEÚDO FONÉTICA E FONOLOGIA NO LIVRO “PORTUGUÊS: LÍNGUA, LITERATURA E PRODUÇÃO TEXTUAL”, DE MARIA LUIZA ABAURRE, MARCELA

NOGUEIRA PONTARA E TATIANA FADEL (L7) Nesse manual, o conteúdo fonologia e fonética é apresentado como

capítulo 2, intitulado “A escrita”, subdividido em três seções: 1. A escrita e a

leitura (na vida e na escola); 2. A relação entre a fala e a escrita (Princípios de

análise fonológica, Os fonemas do português); 3. A convenção ortográfica

(Representação da escrita e dos fonemas /s/, /z/, /S/, /Z/ e da sequência /ks/,

Acentuação gráfica e exercícios complementares).

Na primeira seção – “A escrita e a leitura (na vida e na escola)” – as

autoras abordam as dificuldades enfrentadas nas escolas para a formação de

leitores e escritores e sobre a importância dessa formação para a vida e para a

escola. Dentre os aspectos salientados na seção estão: o desprazer que os

alunos sentem em relação às atividades escolares de leitura e escrita; a

dificuldade para descobrir a lógica do sistema alfabético e, mais ainda, para

passar dessa lógica às convenções ortográficas; a necessidade de a escola,

desde o início da alfabetização, persuadir os alunos da importância de saber ler

e escrever competentemente, já que vivemos numa sociedade letrada,

locupletada de escrita; a compreensão da alfabetização, para além da mera

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decifração, como formadora de leitores capazes de entender um texto e de se

posicionar criticamente em relação às posições nele defendidas; a

compreensão de que “a leitura e a escrita são duas faces de uma mesma

atividade” (p. 16).

A segunda seção – “A relação entre a fala e a escrita” – é aberta com

uma tira de Edgar Vasques, denominada “O melhor do Rango”, também

presente em L1. Nessa tira, um personagem diz “Que legal! O marulho do

mar!” e o personagem do outro lado entende equivocadamente “Uau! O barulho

do bar!”. Em princípio, o texto vale apenas como uma ilustração, mas, na

subseção “Os fonemas do português”, as autoras comentam que bar/mar e

barulho/marulho constituem pares mínimos cujas palavras têm seus

significados mudados pela simples troca de /b/ por /m/. Analogamente à

brincadeira do telefone sem fio ou das piadas de “surdos”, o efeito de humor é

garantido pelo jogo dos traços distintivos oral e nasal, já que /b/ e /m/ são

“consoantes oclusivas, sonoras, bilabiais”.

Logo abaixo da tira, as autoras tecem considerações sobre a

necessidade de nos desvencilharmos da visão grafocêntrica para podermos

estudar a fonologia de uma língua, dizendo:

Existe, é óbvio, uma relação natural entre a fala e a escrita, em um sistema alfabético. No entanto, para estudarmos a fonologia da língua, é necessário que nos esqueçamos momentaneamente da escrita e que nos concentremos nos sons da língua e na maneira como eles se organizam em um sistema fonológico, a partir do qual se torna possível estabelecer uma rede de oposições significativas que possibilita estabelecer distinções semânticas (de significado) entre as palavras. (2002, p.17)

Em seguida, na subseção “Princípios de análise fonológica”, dirigem-se

aos leitores, chamando-lhes a atenção para o fato de que as línguas

compartilham determinados sons e divergem em relação a outros: “Cada língua

faz uso de um número limitado de sons, dentre aqueles que o aparelho fonador

humano é capaz de produzir. Desses sons, alguns são sempre escolhidos por

todas as línguas, outros representam escolhas específicas.” (2002, p.17)

Assumindo esse postulado, quem se propõe a estudar o sistema

fonológico de uma língua deve começar pelo levantamento de todos os sons

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que ocorrem nessa língua. Depois deve descrever a organização desses sons

no sistema fonológico. Só então chegará aos fonemas dessa língua. A

observação da variação fonética no interior de uma mesma variedade de língua

é fundamental para avaliar o valor fonológico dos sons. À guisa de

exemplificação, citam as palavras “tia”, “dia”, “típico”, “tinha”, “direto” em que

ocorrem variações fonéticas – os fonemas /t/ e /d/ tornam-se africados [tS] e [dZ]

(sons que apresentam um início oclusivo e um final fricativo) diante do fonema

/i/, ao lado de palavras em que esses fonemas /t/e /d/ não sofrem variações,

como “tela”, “dela”, “telha”, “deriva”, “todo”, “dor”, “topa”, “dose”, “tudo”,

“dúvida”. Esse traço está presente na fala da maioria dos brasileiros, mas as

autoras o apresentam como característica da Região Sudeste do Brasil. Apesar

da considerável diferença fonética em relação às oclusivas [t] e [d], as variantes

[tS] e [dZ] são tão naturalizadas entre aqueles falantes que as têm como

características, que lhes passam desapercebidas, tornando-se audíveis

somente quando contrastam com a fala de alguém que não as têm como traço.

As palavras acima referidas são transcritas, primeiro, foneticamente

(entre colchetes), com as consoantes [tS] e [dZ] e [t] e [d] em negrito, a modo de

destacar a ocorrência das africadas e das oclusivas: [tSSSSia], [dSSSSia], [»tSSSSipikU],

[tSSSSiNa], [dZZZZiretU], [tεla], [dεla], [te¥a], [deriva], [todU], [dox], [tçpa], [dçzi], [tudU],

[duvida]. Essas palavras são, em seguida, transcritas fonologicamente (entre

barras): /tía/, /día/ /típiko/, /tíNa/, /dirεt èo/, /tεlèa/, /dεlèa/, [té¥a/, /deriva/, /tódo/,

/dór/, /tçpèa/, /dóze/, /túdo/, /dúvida/.”(2002, p.17). Da transcrição fonética para a

fonológica desaparece a variação entre [tS] e [t] e [dZ] e [d]. Assim procedendo,

as autoras objetivam que os leitores concluam que diferenças fonéticas nem

sempre correspondem a diferenças fonológicas. Por exemplo, os sons [tS] e [t]

foneticamente diferentes “valem” apenas um fonema. Dizem as autoras:

Agora, vamos tirar uma conclusão muito importante, a partir dessas ocorrências fonéticas, para os estudos de fonologia: apesar da diferença fonética observada, os sons [t] e [tS] “valem” uma unidade fonológica apenas, ou seja, são realizações de um único fonema, /t/, na Língua Portuguesa. O mesmo é verdade com relação a [d] e [dZ], que também “valem” apenas uma unidade fonológica na língua: o fonema /d/. (2002, p.17)

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A partir desse procedimento metodológico, o leitor é levado a concluir

que diferenças fonéticas que não importam em mudança de sentido não

“valem” fonologicamente. Então, o fonema é definido como “[...] a unidade

fonológica cuja ocorrência, nas diversas posições silábicas, contribui para o

estabelecimento de diferenças de significado entre palavras.” (2002, p.17).

Na subseção “Os fonemas do Português”, as autoras trabalham as

noções de contraste e par mínimo, como recurso para a identificação dos

fonemas da língua:

[...] /fáka/ e /váka/ constituem o que em análise fonológica se denomina par mínimo. Os pares mínimos são pares de palavras que diferem na escolha de um fonema, apenas. Quando são encontrados servem de forte evidência para a identificação de fonemas. A tira que abre este capítulo provoca um efeito de humor a partir, exatamente, de dois pares mínimos; /barú¥o/ : /marú¥o/ (”barulho”, “marulho”) e /bár/: /már/ (“bar” e “mar”).(2002, p.18)

Em seguida, são listados pares mínimos (todos transcritos de acordo

com o AFI) que permitem identificar fonemas consonantais e vocálicos do

português:

Transcrição Ortografia

/pála/ : /bála/ pala, bala

/káta/: /káda/ cata, cada

/kála/ : /gála/ cala, gala

/firo/ : /viro/ firo, viro

/asa/ : /aza/ assa, asa

/áSa/ : /áZa/ acha e haja

/mata/ : /nata/ mata, nata

/tina/ : /tíNa/ tina, tinha

/kála/ : /ká¥a/ cala, calha

/lata/ : /Rata/ lata, rata

/káRo/ : /káro/ carro, caro

/sála/ : /s�la/ sala, sela

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/gçla/ : /gula/ gola, gula

/préza/ : /prεzèa/ presa, preza

/mó¥o/ : /mç¥o/ molho (substantivo), molho (verbo)

/píra/ : /péra/ pira, pera

/káta/ : /kãta/ cata, canta

/Zúta/ : /Zũta/ juta, junta

/téta/ : /tẽta/ teta, tenta

/fíta/ : /fĩta/ fita, finta

/bóba/ : /bõba/ boba, bomba

Fonte: Abaurre et alii (2002, p. 18)

Em seguida, as autoras trazem os parâmetros articulatórios usados na

classificação das consoantes: modo de articulação, ponto de articulação, papel

das cordas vocais e papel das cavidades bucal e nasal. Os fonemas

consonantais

[...] são classificados de acordo com os seguintes parâmetros articulatórios: modo de articulação (diz respeito à maneira como se produz o impedimento à passagem da corrente do ar na boca); ponto de articulação (diz respeito ao lugar onde se dá o impedimento à passagem do ar, pela ação dos articuladores); papel das cordas vocais (diz respeito ao estado da glote no momento da produção do som, ou seja, ao fato de as pregas vocais estarem ou não em vibração); e papel das cavidades bucal e nasal (diz respeito à abertura ou não da passagem de ar pela cavidade nasal). Essa classificação é explicada no quadro abaixo. (Tabela 1) (2002, p.18)

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FONEMAS CONSONANTAIS

Quanto ao papel das cavidades bucal e nasal

Orais Nasais

Constritivas Quanto ao modo de

articulação Oclusivas

fricativas laterais vibrantes

Quanto ao papel das cordas vocais

surdas sonoras surdas sonoras sonoras sonoras Sonoras

Bilabiais /p/ /b/ /m/

Labiodentais /f/ /v/

Linguodentais /t/ /d/ /n/

Alveolares /s/ /z/ /l/ /r/

Palatais /S/ /Z/ /¥/ /N/9

Quanto ao ponto de articulação

Velares /k/ /g/ /R/

Fonte: Abaurre et alii (2002, p.18).

Também são apresentados os traços articulatórios usados na

classificação dos fonemas vocálicos: zona de articulação, altura, timbre e papel

das cavidades bucal e nasal. Não há menção à posição dos lábios. Os

fonemas vocálicos

[...] são classificados segundo os seguintes parâmetros articulatórios: a zona de articulação (diz respeito à região da cavidade bucal onde é modificada, pela ação dos articuladores, a corrente de ar vinda dos pulmões); a altura (diz respeito à altura da parte anterior10 da língua no momento de produção da vogal); o timbre (diz respeito ao grau relativo de abertura da cavidade bucal durante a produção das vogais); o papel das cavidades bucal e nasal (diz respeito à abertura ou não da passagem de ar pela cavidade nasal). A tabela 2, na página seguinte, explicita essa classificação.(2002, p.18)

9 O uso do símbolo /N/ para a transcrição da consoante nasal palatal não é comum. Usa-se comumente /¯/. O símbolo /N/ é usado para a transcrição da nasal velar que só existe no português como variação de /n/, antes de /k/ e /g/, como por exemplo, [ãNka] (anca) e [zãNga] (zanga). 10 Fala-se em altura também para a parte posterior da língua, traço que distingue as vogais /� o u/ entre si.

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FONEMAS VOCÁLICOS

Quanto à zona de articulação

Anteriores Mediais Posteriores

Quanto ao papel das cavidades

bucal e nasal

Orais

nasais

orais

Nasais

orais

Nasais

Quanto ao timbre

aberta Fechada fechada aberta fechada fechada aberta Fecha-

da Fecha-

da

/ε/

e/

/ẽ/

/a/

/ã/ /ç/ /o/

/õ/

/i/

/ĩ/

/u/

/ũ/

Fonte: Abaurre et alii (2002, p.19). Embora as autoras tenham mencionado o traço altura (alta, média,

baixa) entre os critérios de classificação das vogais, ele não é levado em conta

no quadro, o que acarreta a indistinção entre /e i/ e /o u/. Destaque-se também

a postulação das vogais nasais como fonemas, sem que a hipótese da

variação condicionada (alofonia) sequer tenha sido mencionada. Não há

menção às semivogais nem como fonemas e nem como variantes dos

fonemas.

Após a apresentação dos fonemas consonantais e vocálicos, as autoras

lembram que, apesar de nosso sistema de escrita representar os fonemas, não

há correspondência exata entre o número de letras e o de fonemas na palavra,

conforme exemplos:

casa � /káza/: 4 letras e 4 fonemas palhaço � /pa¥áso/: 7 letras e 6 fonemas

queijo � /kéiZo/: 6 letras e 5 fonemas

fim � /fĩ/: 3 letras e 2 fonemas

maxilar � /maksilár/: 7 letras e 8 fonemas forquilha � /forkí¥a/: 9 letras e 7 fonemas (2002, p. 19)

Para o estabelecimento da relação entre letras e fonemas na língua

portuguesa, as autoras dizem que quem “descobre” a possibilidade de escrever

alfabeticamente pode sucumbir à tentação de usar as letras do alfabeto para

representar, da maneira mais direta possível, os sons que reconhecem nas

palavras da língua, e que isso decorre, de certa forma, do próprio princípio

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alfabético de escrita, que relaciona os símbolos às consoantes e vogais da

língua. Contudo, um sistema alfabético

[...] prevê a representação dos fonemas e não de todos os sons que ocorrem na língua. É exatamente por esse motivo que não se propõe, na escrita do português, que haja símbolos diferentes para representar o som da consoante inicial de palavras como “todo”, “tudo”, “tempo”, “tela”, “tapa”, “todo”, “toca” e “tipo”. Usamos em todos os casos a letra T, pois já vimos que a realização fonética de uma consoante africada palato-alveolar [tS] antes da vogal /i/ (como em “tipo”), em algumas variedades do português, é uma variante fonética condicionada pelo ambiente dessa vogal específica, sendo, portanto, uma realização do mesmo fonema /t/ que se encontra no início das demais palavras aqui citadas como exemplo. (2002, p.19)

Em síntese, nosso sistema de escrita é um sistema mais fonêmico do

que fonético. Não é totalmente fonêmico porque a cada fonema deveria

corresponder apenas e tão somente uma letra, o que não ocorre na maioria

dos casos. As variações condicionadas pelo ambiente fonético ou por fatores

sociolinguísticos são neutralizadas pelas convenções ortográficas, mas

considerações de ordem morfológica e etimológica vetam a atuação do

princípio fonêmico em numerosos casos.

No português escrito, diferentes letras podem representar um mesmo

fonema e uma mesma letra pode representar diferentes fonemas. Por exemplo,

em “casa” e “zebra”, o fonema /z/ é representado através das letras <s> e <z>.

Já a letra <x> pode representar o fonema /z/ em EXAME, o fonema /s/ em

SINTAXE), o fonema /S/ em TAXA e ainda a sequência /ks/ em SEXO.(2002,

p.19). Explicações sincrônicas para essas discrepâncias não são plausíveis.

Apenas a diacronia pode explicá-las.

A seção dois é fechada pela seguinte observação: “O uso de um sistema

alfabético de escrita costuma ser regulado por uma ortografia, que estabelece

as normas para utilização das letras na representação dos fonemas das

diversas palavras da língua” (2002, p.19), observação que abre a seção

seguinte.

A terceira seção – “Convenção ortográfica” – apresenta em maiúscula as

23 letras (A B C D E F G H I J L M N O P Q R S T U V X Z) que fazem parte do

alfabeto da língua portuguesa. As letras K, W e Y são apresentadas

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separadamente, pois o livro foi editado em 2002 antes, portanto, de o novo

acordo ortográfico estar em vigência. As autoras afirmam ainda que

Para representar os fonemas da nossa língua precisamos também usar, além das letras, o “cê cedilha” (Ç que representa na escrita de determinadas palavras, o fonema /s/, antes das letras A, O e U). Usamos também o til (~) sobre as vogais para indicar os fonemas vocálicos nasais” (2002, p.20).

Essa última colocação, generalizando o emprego do til sobre as vogais,

não corresponde ao que de fato ocorre com as chamadas vogais nasais na

língua portuguesa, uma vez que o til só é utilizado sobre as vogais <a> e <o>.

A nasalidade das demais vogais e mesmo de <a> e <o> pode ser resultante de

uma consoante nasal que as segue imediatamente, sendo, portanto, a

descrição do uso do til imprecisa.

As autoras reafirmam, de modo consistente, a tese de que a ortografia é

“[...] um sistema convencional de representações das palavras para permitir

que elas sejam reconhecidas pelos leitores, nos textos escritos” (2002, p. 20).

Destarte, não podemos pensar o sistema ortográfico como um sistema de

representação dos sons stricto sensu. Ele passa a funcionar como um sistema

ideográfico, uma vez que nos faz pensar na palavra como um todo. Observam

também que a aquisição da ortografia é um processo que nunca se encerra.

Assim, é muito normal que as crianças que apenas aprenderam a lógica do

sistema alfabético não compreendam de pronto a lógica da ortografia. A

ortografia lhes soa ilógica, até que descubram que a escrita, para ser funcional,

sem fronteiras no tempo e no espaço, precisa ser unificada, por mais que a

oralidade varie.

Discutidas as razões da ortografia, as autoras abrem a subseção

“Representação, na escrita, dos fonemas /s/, /z/, /S/, /Z/ e da sequência /ks/”,

onde buscam sistematizar as complicadas relações entre tais fonemas e os

grafemas concorrentes convencionados para escrevê-los, segundo a ortografia

do português. Para todas as ocorrências são dadas explicações e exemplos.

Fecham a subseção chamando a atenção para o fato de que o aprendizado da

ortografia implica “[...] o reconhecimento de que se está diante de um sistema

de convenções, o que pressupõe uma atitude de disponibilidade, por parte dos

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usuários, para a busca da forma correta de se escrever as palavras” (2002,

p.23).

A acentuação gráfica é o último item da terceira seção. As autoras

explicam que a acentuação gráfica tem por objetivo: “[...] registrar o timbre

aberto ou fechado de determinadas vogais, a posição do acento tônico em

algumas palavras, a presença de crase vocálica envolvendo a preposição a e o

artigo a e a vogal inicial de alguns pronomes.” (2002, p.23). Soa-nos estranho

que a primeira função atribuída ao acento gráfico seja a de diferenciar o timbre

das vogais, já que desde a reforma ortográfica de 1971 esse acento foi abolido,

excetuando-se o caso dos ditongos abertos <éi, éu, ói>, esses também

abolidos pela reforma de 2009. Apenas cumulativamente o acento gráfico

indica o timbre, ou seja, usamos o acento para indicar a sílaba tônica (acento

circunflexo para indicar <a, e, o> fechados, como em <pântano, bêbado e

fôlego>, e acento agudo para indicar <a, e, o> abertos, como em <chácara,

tépido, trópico>). Em Portugal, usa-se sempre o acento agudo,

independentemente do timbre da vogal, indicando que o acento gráfico tem a

função de assinalar qual é a sílaba tônica, quando ela não é previsível pela

estrutura da sílaba final. Por exemplo, no Brasil escrevemos <tônica>, em

Portugal, escrevem <tónica>.

Enumeram os diacríticos usados na escrita: apóstrofo, cedilha, hífen, til,

trema, sinais de pontuação, acentos, advertindo que tratarão apenas dos

acentos gráficos. A motivação fonético-fonológica das regras de acentuação

gráfica não é apresentada e, por isso, as regras de emprego do acento gráfico

são apresentadas como se fossem arbitrárias.

Os exercícios concentram-se na escrita, mas oportunizam o contato com

textos antigos e atuais que apresentam grafias bem diferentes das

normatizadas pelas convenções ortográficas. São atividades que levam à

reflexão e desautomatizam a relação dos escritores com a ortografia.

L7 destoa dos demais por lidar conscientemente com o viés

grafocêntrico que atravessa os estudos de fonética e fonologia; por tentar

manter-se no escopo da oralidade para abordar o tema; por tratar dos

princípios de análise fonológica (pares mínimos, contraste em ambiente

idêntico, variação foneticamente condicionada etc); por usar criteriosamente o

alfabeto fonético internacional (AFI); por diferenciar transcrição fonética de

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transcrição fonológica; por evidenciar que um fonema pode ter mais de uma

realização; por apresentar uma classificação para os fonemas (vogais e

consoantes), envolvendo traços específicos e não apenas os traços de classes

principais; por considerar, embora muito rapidamente, que o português varia;

por discutir as razões da ortografia. Como os demais livros, trata

categoricamente as vogais nasais como fonemas. Não define e nem distingue

explicitamente fonética e fonologia, apesar de o fazer implicitamente. Vale

destacar que o L7 não inclui entre os temas abordados sob a rubrica da

fonética e fonologia a “ortoépia” e a “prosódia”, posição afinada com a

orientação linguística assumida pelas autoras. As autoras de L7, mais do que o

de L6, aproximam-se da fonologia como uma ciência linguística, conforme

teoria estruturalista explicitada no capítulo II.

3.8 SINTETIZANDO

Para efetuar a descrição dos sete livros didáticos, orientamo-nos por

algumas questões.

Em relação à primeira questão – Os autores apresentam distinção entre

fonética e fonologia? – podemos dizer que não há uniformidade no tratamento

dado ao conteúdo: L1 define somente a fonologia; L2 e L4 não apresentam

definição nem de uma nem de outra; L3 define somente a fonética; L5 e L6

definem e distinguem a fonética e a fonologia, privilegiando, contudo, a

primeira; já L7 não as define explicitamente, mas inclui procedimentos

metodológicos que vão da fonética à fonologia.

Em relação à segunda questão – O que atribuem à fonética e à

fonologia? – também não há uniformidade entre os livros. Os autores de L1

atribuem à fonologia a função de estudar os sons da língua no sistema de

comunicação linguística referente à organização e à classificação, incluindo,

inadvertidamente, a ortografia e a acentuação das palavras. Em L3, a fonética

é definida somente como ciência que estuda os sons da fala. L5 e L6

apresentam conceitos retirados do Dicionário de Linguística (organizado por

Jean Dubois), atribuindo à fonologia o estudo dos elementos fônicos que

distinguem em uma mesma língua duas mensagens de sentido diferente e à

fonética o estudo dos elementos fônicos independentemente de sua função na

comunicação. L7, destoante dos demais, orienta o leitor, principalmente por

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intermédio de procedimentos metodológicos da fonêmica, a apreender dos

dados fonéticos o que é fonologicamente relevante e construir conceitos sobre

as duas disciplinas.

Em relação à terceira questão – Distinguem fonema de alofone? –

podemos afirmar que a maioria deles (L1, L2, L3, L4, L5, L6) nada menciona

sobre os alofones. Somente L7 faz referência a alofones, nomeados como

“variação”, e ensina como se procede para identificar os fonemas de uma

língua em meio ao inventário de sons que ocorrem nessa língua.

Em relação à quarta e à quinta questão – Utilizam símbolos fonéticos?

Fazem transcrições fonéticas e fonológicas usando colchetes e barras

respectivamente? –observamos que os manuais utilizam símbolos fonéticos,

mas nem todos utilizam o AFI (L3, L4 e L5) e entre aqueles que o utilizam nem

todos o fazem consistentemente (L1 e L2). Apenas L6 e L7 empregam

adequadamente os símbolos do AFI. Contudo, somente L7 distingue a

transcrição fonética, convencionalmente delimitada por colchetes, da

transcrição fonológica, delimitada por barras inclinadas à direita, além de

demonstrar como se vai de uma transcrição fonética a uma transcrição

fonológica.

Em relação à sexta questão – Apresentam distinção precisa entre

fonemas e letras? – notamos que quase todos eles (L1, L4, L5, L6 e L7) se

preocupam em distinguir letras e de fonemas, contrastando a palavra escrita

com a palavra oral, com maior precisão em L1, L6 e L7 e com algumas

imprecisões em L4 e L5. Já L2 e L3 definem mais rapidamente e também com

imprecisões principalmente na apresentação de alguns exemplos. Apenas L7

discute as razões pelas quais não há equivalência entre os fonemas e as

letras.

Em relação à sétima questão – Tratam as vogais nasais e as semivogais

como fonemas ou alofones? – observamos que, apesar de as vogais nasais

serem matéria controversa no campo da fonologia, uma vez que alguns

linguistas brasileiros (PONTES, 1972) as classificam como fonemas e outros

(MATTOSO CÂMARA JR., 1977) como alofones, os autores dos livros,

excetuando o de L4 que as aborda inconsistentemente como variação, ao lado

de /�/ e /�/, consideram-nas fonemas. Também todos eles, à exceção de L7

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que não faz menção alguma, são unânimes na consideração das semivogais

como fonemas.

Em relação à oitava questão – Os fonemas vocálicos e consonantais

aparecem descritos por meio de traços distintivos? – constatamos que L1, L2,

L3, L4, L5 utilizam apenas os traços de classes principais para distinguir os

sons. A distinção oral/nasal também é considerada em dois manuais (L1 e L2).

Somente L6 e L7 incluem os demais traços distintivos que caracterizam cada

fonema no interior das grandes classes (vogais e consoantes).

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CAPÍTULO 4

A FONÉTICA E A FONOLOGIA NO LIVRO DIDÁTICO DE ENSINO MÉDIO: POSIÇÕES DISCURSIVAS

Os discursos são historicamente constituídos. Há uma memória

discursiva que os mantêm vivos, retomando-os, repetindo-os, mas, por serem

sempre constitutivamente heterogêneos, eles também aninham forças de

mudança. Por isso, podem sofrer rupturas em suas bases, ser desconstruídos,

reconstruídos, ressignificados. Porém, quando muito arraigados e longevos,

são também muito resistentes e difíceis de serem abalados e silenciados no

campo discursivo em que circulam. O discurso da Gramática Tradicional é um

desses discursos vetustos: por séculos reinou sozinho, atravessando fronteiras,

tempos e espaços, forjando leituras dos fenômenos linguísticos e sendo

repetido por especialistas das Letras, mas também pela praça pública. A

hegemonia do discurso gramatical (DG) só começou a ser abalada no início do

século XX, com a irrupção do discurso da linguística (DL). Então, o DG teve de

dividir com o DL a competência e o direito de enunciar sobre a língua, cada um

elegendo o outro como seu adversário. Assim, no espaço que eles compartem

grassa a polêmica e a interincompreensão, já que os dois veem/abordam os

fatos da língua pelo seu viés interpretativo, mal-entendendo o ponto de vista do

outro.

Para o DG, há somente uma forma de validar os usos da língua, vistos

como homogêneos, invariáveis e imutáveis. Vem dela a concepção de língua

“certa” e língua “errada”. Já o DL porta-se diferentemente perante os fatos

linguísticos, vistos como heterogêneos, variáveis e dinâmicos, não

considerados como absolutamente “certos” ou “errados”, mas “adequados” ou

“inadequados” relativamente aos contextos de uso.

No âmbito da educação escolar brasileira e, mais precisamente, do

ensino-aprendizagem de língua portuguesa, o DL começa a avultar como uma

possível referência no final da década de 1970, primeiro, em debates

acadêmicos no interior das universidades e, depois, em palestras, encontros,

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publicações destinados a quem de fato ensinava português no ensino

fundamental, médio ou universitário etc. Os ventos do DL, que, durante a

década de 1980 circulou oficiosamente pelos quatro cantos do país, chegam

aos órgãos governamentais incumbidos de produzir as diretrizes e os

parâmetros curriculares “em sintonia com as novas demandas de uma

economia aberta e de uma sociedade democrática” (DCNEM, p. 112). Em

1998, com a homologação e publicação das DCNEM e dos PCNEM de Língua

Portuguesa, o DL é oficialmente incorporado às bases legais que passam a

pautar o ensino médio no país. A apropriação do DL é recorrente em

documentos ministeriais publicados posteriormente (PCNEM+/2000 e

OCEM/2006), à guisa de maior explicitação da proposta governamental.

Esses documentos oficiais, alinhados com o DL, recomendam o trabalho

com as práticas linguísticas e propõem que o ensino de língua materna inverta

o eixo reflexão=>uso para o eixo uso=>reflexão=>uso. O uso é elevado à

condição de princípio e fim do ensino de língua materna; a reflexão, apenas um

ingrediente auxiliar no domínio do uso. A língua deve ser abordada numa

perspectiva descritiva e explicativa e não prescritiva, sem perder de vista que

não existe língua melhor nem língua pior, o que existe são modalidades

diferentes (oral e escrita) e variantes de uma mesma língua, nem melhores

nem piores. Dessa forma, a escola, adotando a concepção de que “o português

é plural”, deve descrever, caracterizar, confrontar as variedades, mostrando, de

maneira crítica e reflexiva, as determinações e avaliações sociais impingidas

aos diferentes usos da língua.

Completando o propósito de orientar e sustentar coerentemente as

mudanças iniciadas pela LDB 9394/96, deslanchadas pelas DCNEM, pelos

PCNEM e PCNEM+ e pelas OCEM, o PNLEM foi criado com o objetivo de

avaliar e selecionar as obras a serem incluídas num catálogo endereçado aos

professores para nortear-lhes a escolha do livro a ser adotado. O processo de

escolha das obras é deflagrado por um edital que detalha minuciosamente os

critérios de análise, ou seja, as exigências para que o livro possa constar do

catálogo. As obras didáticas incluídas no Catálogo do PNLEM devem

evidenciar estreita sintonia com os objetivos gerais do Ensino Médio, conforme

documentos acima mencionados.

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Assim, autores de livros didáticos que tenham a pretensão de ver suas

obras incluídas no Catálogo do PNLEM – Língua Portuguesa não podem mais

ignorar os critérios sinalizados pelo edital. Por exemplo, a Ficha 3 do Catálogo,

destinada à avaliação dos Conhecimentos Linguísticos, traz as seguintes

perguntas: As atividades propostas consideram os componentes linguísticos

fonético-fonológico, morfossintático, sintático e semântico-pragmático?

(questão c, item 3.2). Entre outras questões, essa sinaliza para os autores que

eles não podem banir a fonética e a fonologia do livro didático de língua

portuguesa para o ensino médio; que eles devem assumir uma concepção

plural de língua e buscar a correção conceitual. Como esperávamos, em

virtude dos constrangimentos legais, um capítulo ou uma seção destinada à

fonética e/ou fonologia está presente em cada um dos sete livros resenhados

no capítulo anterior. Considerando o estado de desenvolvimento da fonologia

no campo da linguística moderna, partimos da hipótese de que os autores de

livro didático não podem mais ignorá-la no espaço que lhe destinam.

4.1 A FONÉTICA E/OU FONOLOGIA: COMO OS LIVROS DIDÁTICOS AS SIGNIFICAM?

No campo da linguística, hoje é consensual que a fonética e a

fonologia são ciências autônomas, como objetos e métodos próprios. Porém,

isso não encerra as controvérsias acerca de sua interdependência. Há quem

defenda uma separação forte entre a fonética e a fonologia, a ponto de a

fonética ser considerada uma ciência experimental não linguística. Porém, no

campo da linguística, elas são como ciências inalienavelmente ligadas11.

Controvérsias à parte, interessa-nos agora perscrutar como esses

saberes produzidos no campo da linguística são apropriados pelos autores de

livros didáticos do ensino médio, já que o edital e o guia de avaliação de obras

do PNLEM postulam a inclusão do “componente fonético-fonológico” entre os

conhecimentos linguísticos a serem trabalhados no ensino médio. Em relação a

esse componente, o que podemos esperar – um balizamento pelo DL, que não

mais confunde a fonética com a fonologia ou um balizamento pelo DG, que ou

ignora completamente os conhecimentos produzidos pela linguística,

11 Entre os autores que veem a interdependência dos dois campos está Ladefoged (1971) e Cagliari (2002).

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restringindo-se à fonética, ou deles se aproxima apenas tangencialmente?

Examinemos, pois, a SD1:

SD1. Fonologia é a parte da gramática que estuda os sons da língua quanto à sua função no sistema de comunicação linguística, quanto à sua organização e classificação. Também cuida de aspectos relacionados à divisão silábica, à ortografia e à acentuação das palavras, bem como indica a forma adequada de pronunciar certas palavras, de acordo com o padrão culto da língua” (2005, L1, p. 178).

Se esse enunciado terminasse no primeiro período, poderíamos ver nele

uma posição de aliança com DL, pois a menção à fonologia como um estudo

“funcional” dos sons nos remete para um enunciado produzido na formação

discursiva da linguística. Porém, o segundo período, iniciado pelo operador

argumentativo “também”, desloca a interpretação do DL para o DG e a

fonologia deixa de ser vista como um estudo descritivo dos sons do português

para ser um estudo normativo relativo à escrita, envolvendo separação de

sílabas, acentuação gráfica, convenções ortográficas e oralização adequada

das palavras conforme ao padrão culto da língua. O enunciador desliza para

uma posição anterior ao final do século XIX, o que não nos surpreende, afinal,

a fonética como a ciência incumbida da pronúncia correta das letras e das

palavras, herdada da tradição greco-latina, é a referência do DG. É evidente,

pois, nesse enunciado, a heterogeneidade discursiva entre o DG, discurso

primeiro, e o DL, discurso segundo.

Além da referência à “função no sistema”, outro índice de diálogo com a

linguística é o uso do termo “adequada”, ao invés de “correta” ou “certa”. Um

dos enunciados de base do DL é aquele que afirma que toda língua viva é

plural e que os usos diferentes da norma padrão podem ser adequados ou

inadequados relativamente à situação, mas não absolutamente certos ou

errados. E, hoje, esse enunciado circula abundantemente na esfera do ensino

de língua materna. Assim, mesmo os sujeitos posicionados à direita do DG

sentem-se compelidos a evitar o uso dos critérios certo/errado. Se não tivesse

ocorrido a proliferação dos critérios adequado/inadequado, certamente o

enunciador que fala em L1 teria dito “[...] a forma correta de pronunciar certas

palavras, de acordo com o padrão culto da língua” sem se acautelar do estigma

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que envolve os critérios certo/errado, mesmo porque ele não diz pronúncia

adequada às variedades da língua, mas pronúncia adequada ao padrão culto

da língua e tão somente. Diante dessa articulação inesperada de um critério de

avaliação relativizante com uma norma absolutizada, vemos a tentativa de

aproximação com o DL esvair-se porque, embora o termo “adequada” faça

ressoar no Mesmo o discurso do Outro, dialogando aparentemente sem

embates, ele entra numa relação de sinonímia com “correta”, da qual é apenas

um eufemismo.

Essa tradução do Outro pelas categorias semânticas do Mesmo constrói,

conforme Maingueneau (2005), um simulacro do Outro pelo Mesmo. Esse

simulacro do Outro aqui pode ser considerado não como uma adesão ao DL,

mas sim como uma jogada para agradar/satisfazer o Outro – os documentos

oficiais, os avaliadores de livros didáticos, que, supostamente, exigem a

postura politicamente correta diante da diversidade: “[...] não se deve externar

preconceitos de espécie nenhuma”, isso valendo também para os usos da

língua. E determinar alguns usos como “certos” remete, em contraponto, aos

“errados”, caracterizando uma postura de preconceito linguístico de que o

enunciador de L1 estrategicamente se safa mediante a apropriação do termo

“adequado” investido, pelo processo de tradução, do sentido de “correto”.

Já em L5 e L6, com pouquíssimas diferenças entre os dois12, numa

aparente demonstração de que dialogam com DL, os enunciadores definem a

fonética e a fonologia, mediante citação explícita de um dicionário de

linguística, caracterizando, assim, uma das formas de heterogeneidade

discursiva tratada por Authier-Revuz (2004) – a heterogeneidade mostrada

marcada:

SD2. A palavra fonologia é formada por dois elementos de composição: fono (‘som,voz”) = logia (“estudo, ciência”). No Dicionário de linguística (organizado por Jean Dubois e editado pela Cultrix), encontramos a seguinte definição: “A fonologia estuda elementos fônicos que distinguem, numa mesma língua, duas mensagens de sentido diferente (a diferença fônica no início das palavras do português bala e mala, a diferença de posição do acento no português sábia, sabia e sabiá, etc.). Nisto [a fonologia] se diferencia

12 A semelhança é justificável, pois um dos autores, José de Nicola, assina sozinho L6, mas é parceiro de Ernani Terra em L5.

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da fonética, que estuda os elementos fônicos independentemente de sua função na comunicação”. (2004, L5, p.188)

SD3. Fonologia é “a ciência que estuda os sons da língua do ponto de vista de sua função no sistema de comunicação linguística. Ela estuda os elementos fônicos que distinguem, numa mesma língua, duas mensagens de sentido diferente (a diferença fônica no início das palavras do português bala e mala, a diferença de posição do acento no português sábia, sabia e sabiá, etc.) e aqueles que permitem reconhecer uma mensagem igual através de realizações individuais diferentes (voz diferente, pronúncia diferente, etc.) Nisto se diferencia da fonética, que estuda os elementos fônicos independentemente de sua função na comunicação”. (DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de linguística. São Paulo: Cultrix, 1986. p. 184-5) (2005, L6, p.11)

Nesses dois enunciados, os enunciadores se alinham com o DL,

distinguindo claramente a fonologia da fonética e definindo-as segundo a

semântica dessa formação discursiva. O recurso à citação explícita aspeada é

uma estratégia que pode ser encarada de diferentes modos. Para Authier-

Revuz (2004, p. 37), “o lugar do ‘outro discurso’ não é ao lado, mas no

discurso”, aquele que o cita se põe no papel de “porta-voz” desse outro e o traz

para si. Já para Maingueneau (1997a), o fenômeno da citação pode ser

encarado

[...] como distanciamento muito variável, que o discurso, ao citar, introduz com relação ao discurso citado. Nesse sentido, sublinhamos a ambiguidade fundamental do fenômeno da citação, caso seja considerado o grau de adesão do locutor ao que está dizendo. Assim, na opinião de A. Berrendonner (1981), se um locutor ‘contenta-se em relatar as alocuções assertivas de um terceiro, em lugar de garantir pessoalmente, através de uma simples afirmação, a verdade de p, isso permite concluir que ele não pode, por si só subscrever p, não acreditando muito, por conseguinte, em sua verdade’; em compensação, para C. Kerbrat-Orecchioni (1978), ocultar-se por trás de um terceiro ‘é frequentemente uma maneira hábil por ser indireta” de sugerir o que se pensa, sem necessitar se responsabilizar por isto. Aí reside a ambiguidade do distanciamento: o locutor citado aparece, ao mesmo tempo, como o não-eu, em relação ao qual o locutor se delimita, e como a “autoridade” que protege a asserção. Pode-se tanto dizer que ‘o que enuncio é verdade porque não sou eu quem o digo’, quanto o contrário. (MAINGUENEAU, 1997a, p. 85 e 86)

Assim, se os enunciadores de L5 e L6 optam por definir a fonética e a

fonologia na companhia de enunciadores autorizados do DL, eles o fazem

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movidos pelo peso de um argumento de autoridade em relação a um domínio

linguístico que lhes é pouco familiar, haja vista o desdobramento das duas

ciências no escopo de cada manual. Atribuindo a palavra a um outro

identificado com o DL, os enunciadores de L5 e L6 mantêm seu

posicionamento ambíguo em relação ao DL e DG. Podem ficar lá e cá. Em L5,

depois desse “feliz” começo, à direita do DL, por assim dizer, há uma

derrapagem em direção à fonética, compreendida pelo viés do DG, nucleado

por uma perspectiva grafocêntrica e homogeneizante da língua e devotado ao

domínio de convenções ortográficas, regras de acentuação gráfica e divisão

silábica e pronúncia correta de determinadas palavras. Já L6, embora credite

espaços mais generosos à linguística no tratamento dispensado à fonologia,

não deixa de deslizar para o DG, ao tratar das variações de pronúncia como

“desvios” de ortoépia e prosódia, como se o oral derivasse da escrita e não o

inverso.

Apenas L7 mantém-se fiel aos postulados teórico-metodológicos do DL,

lidando conscientemente com o risco da derrapagem em direção à escrita,

atitude indesejável no estudo da fonologia, como mostra o trecho italicizado

no interior de SD4. A adesão ao DL é plena, mas na forma da

heterogeneidade não marcada, pois apenas o leitor que tem muita intimidade

com o DL é capaz de reconhecer, na SD5, o diálogo com os princípios e

procedimentos analíticos da fonêmica e com a teoria do “valor” de Saussure

(1975, p. 137) que afirma que “O que importa na palavra não é o som em si,

mas as diferenças fônicas que permitem distinguir essa palavra de todas as

outras, pois são elas que levam à significação.” e, mais, que “Os fonemas

são, antes de tudo, entidades opositivas, relativas e negativas” (p. 138). Na

SD5, o diálogo com o DL, mais precisamente, com a fonêmica, se faz através

de uma incisa discursiva13, recurso que silencia a presença do Outro no

Mesmo. Contudo, na SD5, o itálico na palavra valor e, na SD6, as aspas em

“valem”, constituem casos de modalização autonímica14, conforme Authier-

13 As incisas discursivas são formas não marcadas de heterogeneidade discursiva e consistem em sequências ou fragmentos de sequências discursivas oriundos de outros discursos que, ao serem interiorizados, não deixam marcas de sua procedência externa, nem de seu processo de apropriação” (INDURSKY, 1992, p. 345). 14 Authier-Revuz (2004) se dedicou ao estudo da modalização autonímica, que ela distingue da pura autonímia, como uma outra estratégia de o enunciador mostrar que está duplicando suas palavras – como uso pelo seu “próprio” discurso e como menção a um discurso outro. A

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Revuz (2004). As enunciadoras não apenas usam os termos “valor” e “valer”,

mas indicam que o empregam no sentido linguístico, mais exatamente, no

sentido saussureano, e não no sentido habitual. Todavia, o itálico e as aspas

são marcas da presença do Outro apenas para leitores bem iniciados na

formação discursiva da linguística. Leitores leigos não são capazes de

perceber nelas uma remissão à teoria do valor.

SD4. Existe, é óbvio, uma relação natural entre a fala e a escrita, em um sistema alfabético. No entanto, para estudarmos a fonologia da língua, é necessário que nos esqueçamos momentaneamente da escrita e que nos concentremos nos sons da língua e na maneira como eles se organizam em um sistema fonológico, a partir do qual se torna possível estabelecer uma rede de oposições significativas que possibilita estabelecer distinções semânticas (de significado) entre as palavras. (2002, L7, p.17)

SD5. A primeira tarefa de quem se propõe estudar o sistema

fonológico de uma língua qualquer é fazer um levantamento dos sons que ocorrem nessa língua. Somente a partir desse levantamento inicial podem ser feitas as perguntas verdadeiramente relevantes para a fonologia, ou seja, como se organizam esses sons em um sistema fonológico? Quais são os fonemas da língua?

Vamos observar alguns exemplos de variação fonética no interior de uma mesma variedade da língua e, em seguida, avaliar o valor fonológico dessa variação. (2002, L7, p. 17)

SD6. Agora, vamos tirar uma conclusão muito importante, a partir

dessas ocorrências fonéticas, para os estudos de fonologia: apesar da diferença fonética observada, os sons [t] e [tS] “valem” uma unidade fonológica apenas, ou seja, são realizações de um único fonema, /t/, na Língua Portuguesa. O mesmo é verdade com relação a [d] e [dZ], que também “valem” apenas uma unidade fonológica na língua: o fonema /d/ (p.17).

[...] Fonema é a unidade fonológica cuja ocorrência, nas diversas

posições silábicas, contribui para o estabelecimento de diferenças de significado entre as palavras. (2002, L7, p. 17)

L2 e L3 nomeiam o tema/conteúdo simplesmente como fonética, não

fazendo referência à fonologia, o que denota a dominância do DG. Porém,

modalização autonímica pode marcar-se no fio do discurso por meio de formas gráficas, como as aspas, o itálico, a caixa alta e a entonação, por meio de construções metaenunciativas integradas etc. As aspas constituem “a arquiforma” da modalização autonímica, indiciando, como sinal gráfico, uma auto-representação do dizer. Uma das propriedades das aspas é o vazio interpretativo que resulta no que Authier-Revuz (2004) chama de “apelo de glosa”. As aspas da modalização autonímica são, pois, um convite à interpretação.

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trazem, logo no início da primeira seção, o conceito de fonema que é do

escopo da fonologia e, portanto, do DL. L2 não define fonética, mas L3, sim, e

o faz nos seguintes termos:

SD7. Fonética é a ciência que estuda os sons da fala. Fonema é todo som da língua capaz de estabelecer distinção entre palavras: f/a/t/o, g/a/t/o. (2005, L3, p.440)

Vemos, nesse enunciado, o emparelhamento de duas formações

discursivas, embora não haja marcas explícitas dessa junção. Apenas o leitor

bem iniciado no DL é capaz de ver nela contradição entre perspectivas

discursivas: a perspectiva gramatical aludindo á “fonética como ciência que

estuda os sons da fala” e a perspectiva linguística aludindo ao conceito de

fonema que é nuclear à fonologia. Certamente, os leitores a quem os livros

são destinados não vão estranhar essa combinação. Provavelmente nem os

enunciadores de L2 e L3 se percebem deslizando inadvertidamente de um

discurso para outro, dada a relação superficial que mantêm com o DL.

4.2 AS VOGAIS NASAIS: COMO OS LIVROS DIDÁTICOS AS SIGNIFICAM?

Como observamos no capítulo 2, os sete livros didáticos que fazem

parte do corpus silenciam completamente a polêmica que há acerca do

estatuto das vogais nasais no escopo da fonologia. Nenhum deles nomeia o

dilema enfrentado pelos linguistas: as vogais nasais são fonemas ou alofones

foneticamente condicionados? O que significa silenciar essa polêmica?

Significa que os enunciadores que falam nas SD8, SD9 e SD10, recortadas

dos sete livros didáticos, enunciam interpelados pelo DG, ou que, se enunciam

interpelados pelo DL, o fazem como os estruturalistas concretistas que

defendem a tese de que as vogais nasais são fonemas? Embora seja mais

fácil responder que eles reproduzem o DG, não podemos fechar os olhos para

os indícios da presença do DL no discurso do livro didático, como o uso do

termo “fonema” e das barras inclinadas / / antes e depois de cada vogal, uma

convenção da fonologia para indicar que se trata de um fonema (entidade da

língua) e não de um fone (entidade da fala), esse representado entre colchetes

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[ ]15. Na medida em que a posição estruturalista concretista corrobora a

interpretação do DG, podemos pensar numa relação de aliança entre elas e de

alheamento da posição abstracionista que defende a tese de que o português

possui apenas fonemas vocálicos orais.

SD8. fonemas vocálicos orais /a/ /�/ /e/ /i/ /�/ /o/ /u/ fonemas vocálicos nasais /ã/ /ẽ/ /ĩ/ /õ/ /ũ/ (2005, L1, p.180)

SD9. As vogais podem ser: a) orais – quando o ar sai apenas pela boca: /a/, /e/, /i/, /o/, /u/ b) nasais – quando o ar sai pela boca e pelas fossas nasais: /ã/ lã, planta, amplo; /ẽ/ lente, sempre; /ĩ/ indo, mim; /õ/ onda, ombro; /ũ/ mundo. (2004, L2, p. 28)

SD10. Vogal: som que se produz quando o fluxo de ar não é obstruído por nenhum órgão do aparelho fonador: /a/, /ã/, /é/, /ê/, /ẽ/, /i/, /ĩ/, /ó/, /ô/, /õ/,/u/, /ũ/ (2005, L3, p. 440)

Nem mesmo L7, que se mostrou bastante afinado com o DL, aventa a

hipótese de que as vogais nasais possam ser interpretadas como fonemas ou

como alofones. Como podemos ler na SD11, o papel das cavidades bucal e

nasal é considerado como um dos parâmetros articulatórios para a

classificação dos fonemas vocálicos, categoricamente classificados como

“orais” e “nasais”, conforme Tabela 2./SD11. A interpretação das vogais nasais

como fonemas, dispondo cada uma das doze vogais no seu quadradinho,

ganha um ar de verdade inquestionável, livre de qualquer polêmica.

SD11. Os fonemas vocálicos são classificados segundo os seguintes parâmetros articulatórios: a zona de articulação (diz respeito à região da cavidade bucal onde é modificada, pela ação dos articuladores, a corrente de ar vinda dos pulmões); a altura (diz respeito à altura da parte anterior16 da língua no momento de produção da vogal); o timbre (diz respeito ao grau relativo de abertura da cavidade bucal durante a

15 Apenas L7 faz a distinção entre transcrição fonológica e fonética.

16 Fala-se em altura também para a parte posterior da língua, traço que distingue as vogais /� o u/ entre si.

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produção das vogais); o papel das cavidades bucal e nasal (diz respeito à abertura ou não da passagem de ar pela cavidade nasal). A tabela 2, na página seguinte, explicita essa classificação. (2002, L7, p.18)

FONEMAS VOCÁLICOS Quanto à zona de

articulação anteriores Mediais Posteriores

Quanto ao papel das cavidades

bucal e nasal

Orais

nasais

orais

Nasais

orais

Nasais

Quanto ao timbre

aberta Fechada fechada aberta fechada fechada aberta fechada Fechada

/ε/

/e/

/ẽ/

/a/

/ã/ /ç/ /o/

/õ/

/i/

/ĩ/

/u/

/ũ/

Fonte: Abaurre et alii ( 2002, L7, p.19).

Passando da modalidade oral para a modalidade escrita, a interpretação

categórica das vogais nasais como fonemas e não como uma sequência de

vogal oral + arquifonema nasal17 leva os enunciadores a lerem, também

categoricamente, os grupos de letras como am/an, em/em, im/in, om/on,

um/um como dígrafos (SD12, SD13 e SD14). Considerando a vogal nasal

como um fonema solitário, a leitura de tais grupos não poderia ser outra que a

de dígrafo, que é o uso de duas letras am/an para representar um único

fonema /ã/, como em /kãta/ <canta>. Porém, se considerássemos a vogal nasal

como alofone foneticamente condicionado, veríamos nas duas letras am/an a

representação de dois fonemas /aN/, como em /kaNta/ <canta>.

SD12. Também são considerados dígrafos os grupos am/an (=ã); em/en (=ẽ); im/in (=ĩ); om/on (=õ); um/un (=ũ).

Exemplos: canta (cãta); tempo (tẽpo); tombo (tõbo); limpa (lĩpa); mundo (mũdo). (2005, L4, p. 182)

SD13. Os fonemas vocálicos são representados por letras a, e, i, o, u modificadas ou não por notações léxicas (ã, ê, é, õ, ô, ó) e pelos dígrafos vocálicos (am, an, em ,en, im, in, om, on, um,un). (2004, L5, p. 190).

17 Arquifonema designa a unidade fonológica que aparece em posições da palavra onde determinados traços deixam de ser distintivos.

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SD14. Não podemos confundir os dígrafos vocálicos am/an e em/en com os ditongos nasais: os ditongos sempre aparecem no final da palavra; os dígrafos no meio da palavra. Leia em voz alta e perceba os fonemas de lâmpada, antes, embora, envelhecer (dígrafos representando uma vogal nasal) e casaram, ninguém (ditongos em que se percebe a presença das semivogais) (2005, L6, p.17)

Em resumo, se o livro didático de ensino médio, ao tratar das vogais

nasais, dialoga com o DL, como vimos pelos indícios acima comentados, ele o

faz silenciando a polêmica reinante em torno delas no campo da linguística e

assumindo o ethos18 categórico que caracteriza o enunciador do discurso

pedagógico. No discurso pedagógico não há lugar para múltiplas versões de

um mesmo fenômeno, ele tem por princípio o postulado de que a verdade é

única. Assim, as controvérsias em relação ao estatuto das vogais nasais são

silenciadas no processo de apropriação do DL, em prol de uma interpretação

definida e indiscutível. Essa atitude nos remete ao que diz Orlandi (1992, p. 75)

sobre a política do silêncio que “[...] se define pelo fato de que, ao dizer algo,

apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em

uma situação discursiva dada”. Tudo o que contraria o princípio de que “a

verdade é única” é indesejável e, portanto, silenciado no livro didático. Não é

apenas o silenciamento da polêmica em torno do estatuto da vogal nasal que

faz com que o diálogo com o DL seja quase inapreensível nos recortes das

SDs do livro didático, mas também o fato de que ele se faz preferencialmente

por meio da incisa discursiva, uma forma de heterogeneidade não-marcada

que não deixa sinais explícitos da presença do Outro. Apenas leitores que

circulam/circularam pelo campo da linguística do núcleo duro da língua são

capazes de perceber esse diálogo.

18 Ethos, em análise de discurso, refere-se às modalidades verbais (oral ou escrita) da apresentação de si na interação verbal. O enunciador deve legitimar seu dizer: em seu discurso, ele se atribui uma posição institucional e marca sua relação a um saber. (CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2004, p.220)

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4.3 A VARIAÇÃO FONÉTICA: COMO OS LIVROS DIDÁTICOS A SIGNIFICAM?

Embora as variações do português no plano sonoro tenham sido

amplamente investigadas pela fonética, fonologia, sociolinguística, dialetologia

etc., constituindo um dos domínios mais conhecidos da língua, os livros

didáticos analisados, com exceção de L7, sequer fazem referência a esses

estudos. Nenhum outro tema gramatical seria tão propício à abordagem das

variações linguísticas do português quanto a fonética e a fonologia, já que

nesse plano as variações são abundantes e reconhecíveis até mesmo por

quem não é especialista no assunto. Quando ouvimos falantes de português

conversando sobre as diferenças dialetais da língua que compartilham, é

principalmente às variações fonéticas que se referem – a alteridade da voz do

outro é o que é primeiro percebido pelos ouvidos. Ademais, a Ficha 3 do

PNLEM/2007, destinada à avaliação do tratamento dado aos “conhecimentos

linguísticos” no livro didático, inclui as seguintes questões:

A concepção de língua contempla as dimensões estrutural e sociocomunicativa da linguagem? (questão a), item 3.1); A concepção de língua contempla sua natureza dinâmica e variável, como um sistema adaptável ao contexto sociocultural? (questão b), item 3.1); A gramática é considerada um sistema de regras de funcionamento da língua que toma forma nas diversas situações de uso? É considerada um conjunto de regras normativas a serem seguidas incondicionalmente, em qualquer situação? (questão c), item 3.1); A noção de norma contempla a concepção de variedade concretizada socialmente – padrão de uso? Ou se refere exclusivamente à variedade idealizada socialmente – padrão normativo? (questão d), item 3.1); A variação linguística é vista como um fenômeno próprio das línguas? É avaliada negativamente? (questão e), item 3.1); As atividades propostas contemplam a pluralidade de normas/usos quanto a modalidades, registros e variedades? (questão d), item 3.2). A obra apresenta problemas conceituais graves quanto aos conteúdos linguísticos? (questão f), item 3.1) (PNLEM/2007)

Todos esses aspectos, relativos a uma concepção plural da língua

portuguesa, poderiam ser fácil e naturalmente contemplados na abordagem da

“fonética e fonologia”. Vejamos, pois, como os enunciadores que falam nos

livros didáticos se comportam em relação a essa concepção de língua, urdida

no escopo do DL.

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Os enunciadores de L7 são os únicos, como já dissemos, a

mencionarem o fenômeno da variação linguística e, portanto, a dialogarem

minimamente com o DL no que tange a esse tópico. A variação figura como

um tema secundário, mas inevitável na seção que aborda os “Princípios de

análise fonológica”. Tais princípios consistem em inventariar todos os fones

ouvidos numa comunidade social que se reconhece como falante de uma

mesma língua e, uma vez inventariados, em avaliar o valor fonológico dos

fones, separando o que vale como fonema do que é mera variante de um

fonema. Novamente, na forma de incisa discursiva, deparamo-nos com a

noção saussureana de “valor” linguístico, por meio de que os enunciadores

abstraem os fonemas do conjunto das variantes fonéticas inventariadas. Na

SD15, uma diferença dialetal do português é descrita:

SD15. Na variedade de português falada em muitas partes da Região Sudeste, observa-se que o som inicial de palavras como “tia”, “dia”, “típico”, “tinha”, “direto” (e outros em que às consoantes /t/ e /d/ segue-se a vogal /i/) é bastante diferente do som que se ouve em palavras como “tela”, “dela”, “telha”, “deriva”, “todo”, “dor”, “topa”, “dose”, “tudo”, “dúvida” (e outros em que às consoantes /t/ e /d/ seguem-se outras vogais diferente de /i/). No entanto, apesar de a diferença fonética ser considerável, nós nem a ouvimos mais. Pronunciando essas palavras como na Região Sudeste, percebemos que, antes da vogal /i/, o /t/ e o /d/ pronunciam-se com africados, ou seja, com sons que apresentam um início oclusivo e um final fricativo. Daí a característica de “explosão acompanhada de um forte chiado” que apresentam o /t/ e o /d/ antes da vogal /i/.

Assim, para representar o som incial que identificamos como africada antes da vogal /i/, a transcrição fonética seria, para os exemplos dados, a seguinte (indicamos em negrito só os trechos das transcrições fonéticas que você deve comparar): [‘tSSSSia], [‘dZZZZia],

[»tSSSSipikU], [‘tSSSSiNa], [dZZZZ’iretU], [‘tεla], [‘dεla], [‘te¥a], [de’riva], [‘todU],

[‘dox], [‘tçpa], [‘dçzi], [‘tudU], [‘duvida]. Já a transcrição dos

fonemas, nas mesmas palavras, seria: /tía/, /día/ /típiko/, /tíNa/,

/dirεtèo/, /tεlèa/, /dεlèa/, [té¥a/, /deriva/, /tódo/, /dór/, /tçpèa/, /dóze/,

/túdo/, /dúvida/.”

Agora, vamos tirar uma conclusão muito importante a partir dessas ocorrências fonéticas, para os estudos de fonologia: apesar da diferença fonética observada, os sons [t] e [tS] “valem” uma unidade fonológica apenas, são realizações de um único fonema, /t/, na Língua Portuguesa. O mesmo é verdade em relação a [d] e [dZ], que também “valem” apenas uma unidade fonológica na língua: o fonema /d/. (2002, L7, p.17).

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Nessa sequência discursiva, os enunciadores nomeiam um caso de

variação fonética do português de larga amplitude na comunidade de falantes

dessa língua – a africação dos fonemas /t/ e /d/ antes da vogal /i/, ou seja,

nesse contexto linguístico, ouvimos com frequência [tS] d [dZ] e não [t] e [d]

como ocorre antes das outras vogais. Não lhes interessa aí tratar da variação

fonética do português em si, mas sim explorar o conceito de fonema como um

conjunto de sons que vale um único fonema. Quer dizer, no plano fonológico,

um fonema não necessariamente representa um único fone ouvido no plano

fonético, ele pode representar um conjunto de fones – a relação entre fonemas

e fones não é de um para um. Embora o caso da africação tenha sido usado

apenas para ilustrar a aplicação dos princípios de análise fonológica, ele deixa

entrever a postura descritiva dos enunciadores diante do fenômeno variação,

interpretado por eles como um fenômeno natural do português. Ademais, a

postura descritiva ante à variação linguística, em L7, contrasta gritantemente

com a postura normativa adotada nos demais livros didáticos que interpretam

a variação de pronúncia como “erro”, “desvio”, exclusivamente nas seções de

ortoépia e prosódia, num diálogo evidente com o DG que assim as conceitua:

Ortoépia é a parte da gramática que trata da correta pronúncia dos fonemas.

Preocupa-se não apenas com o conhecimento exato dos valores fonéticos dos fonemas que entram na estrutura dos vocábulos, considerados isoladamente ou ligados na enunciação da oração, mas ainda com o ritmo, a entoação e expressão convenientes à boa elocução. (BECHARA, 2009, p.76)

Prosódia é a parte da fonética que trata da correta acentuação e entoação dos fonemas. (BECHARA, 2009, p.84)

Nessas definições de Bechara (2009), a qualificação de “pronúncia”,

“acentuação” e “entoação” dos fonemas como “correta” e de “elocução” como

“boa” se faz a partir de uma ideologia purista de língua que categoriza os fatos

linguísticos em corretos/incorretos, bons/ruins e justifica e autoriza a prática

normativa, com o intuito de sanear a fala dos vícios da plebe ignara. Vale ressaltar

ainda a perspectiva grafocêntrica, uma vez que toma como parâmetro para a

avaliação do que é pronúncia correta ou incorreta a forma escrita, sem considerar

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que o falante pode não conhecer a forma escrita. É como se a língua falada

derivasse da escrita e não o inverso. O padrão normativo da escrita é eleito como

a lei a que os falantes devem se submeter. Em estreita aliança com o DG, os

enunciadores de L5 assim lêem variações muito frequentes de pronúncia de

palavras do português:

SD16. Ortoépia (ou ortoepia) trata da pronúncia correta das palavras. Pronunciar incorretamente uma palavra é cometer cacoépia. Ortoépia e cacoépia são palavras formadas por radicais gregos: orto = ”correto”, “certo”; caco = “feio”, “mau”; épos = “palavra”. Também podemos falar em ortofonia e cacofonia. Como exemplos de erros de ortoépia, podemos citar: “abóboda” em vez de abóbada “alejar” em vez de aleijar “adevogado” em vez de advogado “estrupo” em vez de estupro “guspe” em vez de cuspe A prosódia trata da correta acentuação tônica das palavras. Assim, cometer um erro de prosódia é, por exemplo, transformar uma palavra oxítona em paroxítona, ou uma proparoxítona em paroxítona. Os erros de prosódia recebem o nome de silabada. Observe alguns exemplos de silabada: Pronunciar em vez de sútil sutil côndor condor ávaro avaro rúbrica rubrica interim ínterim leucocito leucócito Algumas palavras admitem dupla pronúncia, ambas consideradas corretas, é o caso de ortoépia ou ortoepia e também de: acróbata ou acrobata hieróglifo ou hieroglifo liquidação ou liquidação projétil ou projetil réptil ou reptil sóror ou soror xérox ou xerox zângão ou zangão (2004, L5, p. 203 e 204)

Na SD16, a variação de pronúncia é nomeada como “erro” de

ortoépia ou de prosódia. E na interpretação de tais enunciadores, quem erra a

ortoépia “comete” uma cacoépia e quem erra a prosódia “comete” uma

silabada. O uso do verbo “cometer”, investido de um sentido negativo

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relacionado à infração de uma norma/lei, nos remete a uma ordem jurídica que

classifica os comportamentos linguísticos desviantes da lei gramatical como

criminosos, exceto nos casos que admitem a dupla pronúncia como possível.

Quem diz [ale’Zar] é um criminoso da língua. Mas que falante de português

brasileiro, numa situação de uso vernacular da língua, diz [alej’Zar]? Nenhum.

Portanto, somos todos criminosos. Incorremos no crime de lesa-língua. Nosso

crime é nomeado pelo códice gramatical como cacoépia. Que falante de

português diz [advo’gadu] sem introduzir uma vogal [e] ou [i] depois de [d]?

Nenhum. Quem, como falante de português brasileiro, não ouve com

frequência formas como [es’trupu] ao invés de [es’tupru], [‘guspi] ao invés de

[‘kuspi]? Se o critério para decidir a pronúncia padrão fosse a frequência

estatística e não o que os gramáticos dizem, certamente, em muitas

comunidades sociais, a forma padrão seria [es’trupu] e [‘guspi], já que muito

mais frequentes do que [es’tupru] e [‘kuspi]. Se “acrobata” e “acrobata”,

“hieróglifo” e “hieroglifo”, “liquidação” e “liquidação”, “projétil” e “projetil”,

“réptil” e “reptil”, “sóror” e “soror”, “xérox” e “xerox”, “zangão” e “zangão”

são admitidas como formas com dupla prosódia, porque não admitir que

palavras como “rubrica” e “rubrica”, “interim” e “ínterim” também são

passíveis de dupla pronúncia? Os enunciadores da SD16 copiam cegamente o

disposto pelos gramáticos quanto às variações de pronúncia e prosódia: o que

pode nas gramáticas normativas pode no livro didático; o que não pode lá, não

pode cá. Trata-se, pois, de um mimetismo completamente subserviente ao

DG, que nem se pergunta pelos critérios que balizam a decisão quanto ao que

pode e o que não pode. Se o gramático – a suposta autoridade no assunto –

diz que pode, então pode.

O enunciador de SD17 é também um dos enunciadores de SD16,

porém, seu posicionamento como sujeito aí evidencia um certo mal estar em

relação ao DG:

SD17. Pronunciar corretamente as palavras, preocupando-se com a acentuação, é condição essencial para uma comunicação perfeita. (p.39) A ortoepia ou ortoépia ( do Gr. orthós, “reto”, “direto” = épos, “palavra”) trata da correta articulação e pronúncia das palavras. Certos desvios de ortoépia caracterizam a linguagem coloquial que,

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ao articular uma palavra, normalmente obedece à lei do menor esforço. Dessa forma, são comuns casos como: “róba” em vez de rouba “alejar” em vez de aleijar “adivogado” em vez de advogado A prosódia trata da correta acentuação tônica das palavras. [...] Um desvio de prosódia é, por exemplo, transformar uma palavra paroxítona em proparoxítona (o que configura uma silabada). Veja alguns exemplos: tonicidade correta desvio de prosódia ruBRIca rúbrica filanTROpo filântropo aVAro ávaro iBEro íbero aziAgo azíago noBEL nóbel ruIM rúim ÍNterim interim reCORde récorde (2005, L6, p.39)

Embora o enunciador de SD17 se refira à “pronúncia correta das

palavras”, à “articulação correta”, à “comunicação perfeita”, silencia os termos

“erro” e “errado” e “incorreto”, recorrendo ao termo “equívoco”, um sinônimo

com valor eufêmico que oblitera a aura negativa que envolve a noção de

“erro”, desde que o DL ressignificou a língua como sendo centralmente

heterogênea e passou a interpretar a imensa maioria dos supostos “erros” de

pronúncia e prosódia como “variação linguística” natural e normal nos idiomas

vivos. O termo “desvio” pode ser menos marcado como léxico do DG, porém

ainda carreia a significação de que existe UMA norma – um padrão normativo

– em relação à qual se classificam as formas outras como desvios. É o que se

patenteia no contraste entre a coluna de palavras com “tonicidade correta” e a

coluna de palavras correspondentes com “desvios de prosódia”. Além de levar

o enunciador a substituir o termo “erro” pelo termo “desvio”, o fantasma dos

sentidos produzidos pelo DL o faz articular “desvios de ortoépia” com

“linguagem coloquial”. Contudo, no universo semântico do DL, a linguagem

coloquial, um registro distenso, se distingue da linguagem formal não por

desviar-se da norma padrão, mas por possuir normas próprias, uma gramática

singular. Com a sociolinguística, a língua passou a ser compreendida como

um sistema dinâmico e variável. Os exemplos mencionados pelo enunciador

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da SD17 – róba, alejar e adivogado – são absolutamente normais na

linguagem coloquial. Enfim, essa sequência nos coloca diante de um sujeito

não mais à vontade com o DG, incomodado com a presença do DL no campo

das Letras. Porém, embora testemunhe a interdiscursividade entre o DG e DL

na forma da heterogeneidade e do dialogismo constitutivo, não o faz sob a

forma da heterogeneidade mostrada e da polêmica, conforme a distinção feita

por Maingueneau (2005, p. 112), pois não há menção explícita, melhor

dizendo, dissensão mostrada em relação ao Outro no fio do discurso. Também

na SD18, abaixo, deparamo-nos com a clivagem do sujeito enunciador:

SD18. A pronúncia das palavras é bastante variável. Como se pronuncia a vogal das palavras ossos e ovos? Com som aberto (ó) ou com som fechado (ô)? Como se pronúncia a palavra Nobel? Dando mais intensidade à sílaba no ou à sílaba bel? Para ajudar a esclarecer essas dúvidas, a fonologia desenvolve estudos sobre a pronúncia adequada das palavras, segundo a variedade padrão da língua portuguesa. Esses estudos chamam-se ortoepia e prosódia.

A ortoépia trata da pronúncia adequada dos fonemas e das palavras, de acordo com a variedade padrão da língua.

A prosódia trata da acentuação e da entoação adequadas dos fonemas, de acordo com a variedade padrão da língua. (2005, L1, p.184)

O primeiro enunciado da SD18, sem dúvida, pode ser identificado como

sendo gerado pela formação discursiva da linguística, embora não haja

referência explícita a ela. Contudo, o alinhamento do sujeito enunciador com o

DL começa a oscilar a partir daí. As perguntas que vêm depois dele – “Como

se pronuncia a vogal das palavras ossos e ovos? Com som aberto (ó) ou com

som fechado (ô)? Como se pronúncia a palavra Nobel? Dando mais

intensidade à sílaba no ou à sílaba bel?” –, inserindo uma conjunção alternativa

“ou” entre as variantes de uma palavra e não a conjunção aditiva “e”, nos

remetem para o DG e para a concepção de língua como sendo una e

invariável. Essa derrapagem em direção ao DG continua a ocorrer no

enunciado imediatamente após as perguntas – “Para ajudar a esclarecer essas

dúvidas, a fonologia desenvolve estudos sobre a pronúncia adequada das

palavras, segundo a variedade padrão da língua portuguesa”. A fonologia, no

sentido que lhe dá o DL, não se incumbe do estudo da “pronúncia adequada

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das palavras, segundo a variedade padrão”, muito menos abaliza a “ortoépia” e

a “prosódia”; a ela interessa descrever-explicar o que ocorre no plano fonético-

fonológico em todas as variedades de uma língua e não normatizar-corrigir a

suposta pronúncia inadequada pelo metro da variedade padrão. Apenas em

relação ao caleidoscópio de variedades linguísticas é que faz sentido usar o

termo “adequado/inadequado”.

O conceito de “adequação”, que gerou a categoria avaliativa

adequado/inadequado, foi proposto pelo sociolinguista americano Hymes na

década de 1960. Hymes (1972) cunhou esse termo simultaneamente à

proposição do conceito de competência comunicativa, complementar ao

conceito de competência linguística proposto por Chomsky. O conceito de

competência comunicativa pressupõe a articulação entre as normas

gramaticais e formais de uma língua e a situação de uso, o interlocutor e o

assunto. No escopo do conceito de competência comunicativa, a “adequação”

é, pois, a sintonia entre normas linguísticas e normas sócio-culturais de uso, ao

passo que a “inadequação” é a dissonância entre essas duas instâncias.

Assim, deixar de falar em certo/errado e passar a falar em

adequado/inadequado é já um índice da interação semântica entre o DG e o

DL. Entretanto, essa mudança de nome pode ser apenas uma mudança de

rótulo e não, efetivamente, uma mudança no modo de significar os usos outros

da língua.

É o que parece ocorrer na SD18, já que a “adequação” é apresentada

não relativamente a todas as variedades do português, não como padrão de

uso, mas exclusivamente em relação à “variedade padrão”. O enunciador não

adere efetivamente ao DL; recorre ao termo “adequado” para substituir o termo

“certo”, mas, pelo processo de interincompreensão (MAINGUENEAU, 2005), o

traduz pela grade semântica do DG. Não é porque se sente convencido de que

em matéria de língua não existe nada certo e nada errado, de que tudo é

relativo, que o enunciador da SD18 usa o termo “adequado”, mas sim porque

deseja evitar o termo “certo” investido de uma carga semântica altamente

negativa no espaço dos estudos linguísticos e do ensino de línguas

contemporaneamente. Em resumo, novamente vemos um termo do léxico do

DL repor um termo do léxico do DG como mero eufemismo.

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No entanto, para a Análise de Discurso, os sentidos não estão nas

palavras em si mesmas; elas adquirem sentido nas formações discursivas e

ideológicas em que se inscrevem. Como afirma Orlandi, o sentido

[...] não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas. As palavras mudam de sentido segundo as posições daqueles que as empregam. Elas ‘tiram’ seu sentido dessas posições, isto é em relação às formações ideológicas nas quais essas posições se inscrevem. (ORLANDI, 2000, p. 42),

No caso da SD18, os enunciadores podem até ter trocado os termos

“certo/errado” por “adequado/inadequado”, constrangidos pelos documentos

oficiais que hoje pautam o ensino de língua materna e não podem mais ser

ignorados pelos autores/editores de livros didáticos que desejam ver suas

obras recomendadas e incluídas no PNLEM, mas não mudaram de posição.

Não podem fazer ouvidos moucos ao PCNEM + (2000, p.75) que recomenda

que “o aluno participe de diversas situações de discurso, na fala ou na escrita,

para que tenha oportunidade de avaliar a adequação das variedades

linguísticas às circunstâncias comunicativas”. Não podem fazer vista grossa às

questões da ficha 3 (3.1 e 3.2) do Catálogo do PNLEM/2007, mencionadas no

início desta seção. Diante desse alinhamento do discurso oficial com o DL, os

enunciadores que falam em L1 têm de exibir marcas de que estão em sintonia

com os princípios e postulados que regem a proposta de ensino de língua

materna em vigor e circulam nos documentos citados. É, pois, nessa

conjuntura que vemos os enunciadores da SD18, que falam interpelados pelo

DG, usarem o léxico do DL, que lhes é estrangeiro, e o traduzirem segundo seu

próprio idioma: certo = adequado, errado = inadequado, variedade padrão =

língua portuguesa. O alinhamento com o DG fica patente nas atividades

propostas na SD19:

SD19. Quais dos pares de palavras abaixo não admitem dupla pronúncia?

a) antiquíssimo – antiqüíssimo b) sanguinário – sangüinário c) questão – qüestão d) projétil – projetil

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e) réptil –reptil f) liquidação – liqüidação g) acróbata – acrobata (2005, L1, p. 185)

Na SD19, na pergunta “Quais dos pares de palavras não admitem dupla

pronúncia?”, o predicado grifado não se coaduna com uma concepção de língua

como sendo dinâmica, plural e variável. O enunciador do DG “pode não admitir

dupla pronúncia” para o par c) questão-questão, mas essa variação é real, talvez

mesmo mais real do que aquelas admitidas como possíveis. Apenas o DG pode

afirmar que “Não se intercala e ou i nos encontros consonantais nas palavras

pseudônimo, pneu, absoluto, absurdo, admissão” (2005, L1, p. 184), pois o DL

leria como normal a introdução dessas vogais entre as duas consoantes

desfazendo o encontro. Aliás, a pronúncia com a vogal é estatisticamente mais

significativa do que a pronúncia sem a vogal, uma vez que, sem a vogal, os

grupos consonantais mencionados constituem combinações de fonemas

completamente esdrúxulas em relação às estruturas silábicas produtivas na

língua portuguesa. Apenas o enunciador interpelado pelo DG pode afirmar que

“São pronunciadas de acordo com a grafia as palavras beneficência, mortadela,

gratuito (ui é ditongo), ruim (ui é hiato), irrequieto, salsicha, caderneta” (L1, p.

184), tomando, na contramão de tudo o que se enunciou conforme o DL, a

escrita como modelo para a fala.

Vemos os enunciadores de L1 divididos entre ter de atender aos

mandamentos dos novos tempos do ensino de língua portuguesa, mas sem

desejar deixar o conforto, a segurança da casa materna, o DG. Também não

podemos subestimar o não domínio e a falta de experiência com o DL, como

óbice para a mudança de paradigma. A resistência é previsível, afinal, os

discursos se esforçam para preservar suas identidades. Seria insensato pensar

que um discurso com tão longa tradição desapareceria da noite para o dia ou

aceitaria a derrota facilmente.

Excetuando-se pelo L7, se fôssemos responder às questões da Ficha de

Avaliação do PNLEM/2007 acima relembradas, uma vez realizada a presente

análise, a situação seria a seguinte:

A concepção de língua contempla as dimensões estrutural e

sociocomunicativa da linguagem? NÃO.

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A concepção de língua contempla sua natureza dinâmica e variável, como

um sistema adaptável ao contexto sociocultural? NÃO.

A gramática é considerada um sistema de regras de funcionamento da

língua que toma forma nas diversas situações de uso? NÃO. É considerada um

conjunto de regras normativas a serem seguidas incondicionalmente, em

qualquer situação? SIM.

A noção de norma contempla a concepção de variedade concretizada

socialmente – padrão de uso? NÃO. Ou se refere exclusivamente à variedade

idealizada socialmente – padrão normativo? SIM.

A variação linguística é vista como um fenômeno próprio das línguas?

NÃO. É avaliada negativamente? SIM.

As atividades propostas contemplam a pluralidade de normas/usos quanto

a modalidades, registros e variedades? NÃO.

No que diz respeito aos fenômenos do nível fonético-fonológico, a posição

dominante, identificada entre os enunciadores que falam nos livros didáticos (L1,

L2, L3, L4, L5 e L6), remete-se ao DG, com a reafirmação da concepção de

língua como um sistema de regras categóricas imutáveis e da postura normativa

e corretiva diante da alteridade linguística. É impossível não nos perguntarmos

como tais livros foram aprovados pelos avaliadores, se apresentam tantos

equívocos conceituais sob o ponto de vista do DL, que embasa a nova proposta

de ensino de língua materna?

4.4 O DOMÍNIO DO GRAFOCENTRISMO

Na maioria dos livros didáticos, observamos o viés grafocêntrico

permeando subrepticiamente o tratamento dispensado à fonética e à fonologia,

embora esses componentes sejam próprios da modalidade oral da língua. Com

poucas exceções, a fonética e a fonologia não são trampolim para o ensino da

ortografia, da acentuação gráfica e da separação de sílabas. L1, por exemplo,

atribui essas competências à fonologia na própria definição que dá da ciência

em questão:

SD20. Fonologia é a parte da gramática que estuda os sons da língua quanto à sua função no sistema de comunicação linguística, quanto à

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sua organização e classificação. Também cuida de aspectos relacionados à divisão silábica, à ortografia e à acentuação das palavras, bem como indica a forma adequada de pronunciar certas palavras, de acordo com o padrão culto da língua (2005, L1, p. 178).

A obliteração do oral pelo escrito não se resume à invasão do espaço

dedicado à fonética e à fonologia pelas convenções ortográficas, pelas regras

de acentuação gráfica e de separação de sílaba na escrita, mas se reflete em

todos os domínios, até mesmo na contagem do número de fonemas da língua.

Por exemplo, o enunciador de L2 enumera apenas cinco fonemas vocálicos

orais para o português (/a/ /e/ /i/ /o/ /u/), na contramão de todas as descrições

fonológicas da língua que enumeram sete (/a/ /�/ /e/ /i/ /�/ /o/ /u/). Também L4

apresenta um quadro de cinco vogais, informando que elas podem ter

variações como: ã, e, é, i, õ, ó, u�. Porém, o estatuto dessa variação que junta,

aleatoriamente, as vogais orais abertas (/�/ /�/) e as nasais não é explicitado.

Parece-nos haver nessa interpretação uma confusão entre o número de letras

usadas para escrever os fonemas vocálicos que são, de fato, cinco <a e i o u>

e o número de fonemas. Contudo, desde a gramática de Fernão de Oliveira

(1536), a primeira gramática da língua portuguesa, a discrepância entre o

número de letras e o número de sons vocálicos já havia sido notada, tornando-

se injustificável tal dobra do escrito sobre o oral no século XXI.

Outro aspecto que demonstra a perspectiva grafocêntrica é a forma de

escrever os fonemas. Poucos enunciadores lançam mão de um alfabeto

fonético, independente das convenções ortográficas para escrever os sons. As

semivogais geralmente são representadas por /i/ e /u/, como as vogais, e não

por /j/ e /w/, conforme o AFI, ou mesmo /y/ e /w/ (L3, L4, L5), conforme outros

alfabetos fonéticos. O uso de um mesmo símbolo para escrever sons diferentes

– vogais e semivogais – contraria o princípio da biunivocidade que deve

orientar as transcrições fonéticas e fonológicas. Além disso, observamos

também misturas inadvertidas de letras e símbolos fonéticos na transcrição de

uma mesma palavra: a palavra <qualquer>, em L4, representa o primeiro

fonema /k/ com a letra <q>, usada em nosso sistema de escrita, e o segundo

com o símbolo /k/, conforme o AFI: /q/ /u/ /a/ /l/ /k/ /e/ /r/. Em L2, é apresentada

a letra <c> entre barras /c/ como se fosse um fonema do português. Embora /c/

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conste do AFI como símbolo para a transcrição da consoante oclusiva palatal

surda, no português a letra <c> é usada em nosso sistema de escrita para a

grafia de uma consoante fricativa alveolar surda /s/, como em <cedo> /sedO/ e

<cita>/sita/, ou para a grafia de uma oclusiva velar surda /k/, como em <casa>

/kaza/, <coca> /k�ka/ e <cuca> /kuka/. Dessa forma, <c> não é uma boa letra

para ser usada como símbolo fonético, pois está associada a mais de um

fonema na língua portuguesa. Até mesmo em L6, um LD mais alinhado com a

linguística, os doze fonemas vocálicos aparecem representados ora por

símbolos fonéticos (a ã e ���� ẽ i ĩ o ���� õ u ũ) (p. 13), ora por letras (a ã e é ẽ i ĩ o ó

õ u ũ) (p. 15). Em síntese, no que diz respeito à representação dos fonemas

por símbolos gráficos, os enunciadores de LD, em sua maioria, oscilam/vacilam

entre a escrita convencional e a escrita dos sons por meio do AFI.

Outra questão que revela a visão embaçada pelo grafocentrismo é a que

envolve a separação silábica, um tema que está presente em L1, L3, L4, L5 e

L6. Em todos esses livros, a preocupação maior das seções que tratam do

tema é apresentar as regras de separação de sílabas convencionadas por

nosso sistema de escrita e não discutir a estrutura da sílaba na oralidade do

português. Mesmo quando as regras de separação de sílaba convencionadas

para a escrita colidem com a percepção da sílaba oral, as discrepâncias são

silenciadas.

SD21. A divisão silábica de uma palavra escrita baseia-se na pronúncia. A palavra linguagem, por exemplo, é pronunciada em três segmentos sonoros (três sílabas), por isso, na escrita, é segmentada assim: lin-gua-gem. Existem, no entanto, algumas particularidades que podem gerar dúvidas. O quadro a seguir apresenta esses casos e as respectivas orientações:

OCORRÊNCIA ORIENTAÇÃO EXEMPLOS

Ditongo e

tritongo

Não separar deixou → dei-xou

saguão → sa-guão

Hiato Separar aéreo → a-é-reo

Dígrafos rr, ss, sc, sç, xc

Separar carrossel → car-ros-sel

exceder → ex-ce-der

Consoantes não seguidas de vogal

Manter na sílaba da esquerda

adepto → a-dep-to mogno → mog-no

Prefixos (des-, in-, sub- Separar normalmente desigual → de-si-gual

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etc.) + vogal [e não: “des-i-gual”]

subentender→su-ben-tender

[e não: “sub-en-ten-der”]

(2005, L4, p. 185)

SD22. A divisão de sílabas é feita com base na soletração. Usa-se o hífen para marcar a separação silábica. [...] Convém, no entanto, observar as seguintes regras para uma correta separação de sílabas:

• Não se separam os ditongos e os tritongos

• Não se separam os dígrafos ch, lh, nh, gu, qu

• Separam-se as vogais que formam os hiatos

• Sempre se separam as vogais idênticas e os dígrafos rr, ss, sc, xc, sç.

• Não se separam os encontros consonantais perfeitos (consoante + l ou consoante + r).

• Os demais encontros consonantais devem ser separados. (2004, L5, p.192)

SD23. A divisão silábica deve ser feita normalmente a partir da soletração. [...] As principais normas para a correta separação silábica são:

• não se separam os ditongos e os tritongos: U-ru-guai, i-guais, Má-rio, au-rora.

• separam-se as vogais dos hiatos: du-e-lo, mi-ú-do, ca-a-tin-ga, co-o-pe-rar.

• não se separam os dígrafos ch, lh, nh, gu, e qu: cho-can-te, fi-lho, a-ma-nhã, quei-ra, qui-lo.

• separam-se as letras que formam os dígrafos: ss, rr, sc, sç, xc,: as-sa-nha-do, ar-ra-nha, a-do-les-cen-te, nas-ço, ex-ce-der.

• separam-se os grupos consonantais cc e cç: oc-ci-pi-tal, in-ter-lec-ção.

• separam-se os grupos consonantais quando ocorrerem em sílabas internas diferentes: nos-tal-gia, car-ga.

IMPORTANTE!

Não se separam os encontros consonantais que iniciam palavras: pneu-má-ti-co, psi-co-se. (2005, L6, p.18)

Nas três sequências discursivas anteriores (SD21, SD22 e SD23), os

enunciadores afirmam que a divisão silábica se pauta pela “pronúncia” ou

“soletração”, termos que remetem à oralização da sílaba escrita, como se a

escrita fosse o modelo para a fala. Embora tal orientação valha para vários tipos

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de sílabas escritas, ela não vale para todos os tipos. Em alguns casos, a

contradição entre a regra de separação da sílaba na escrita e realização da

sílaba na oralidade é evidente. Por exemplo, nos itens realçados nas SDs, a

regra que normatiza a separação dos dígrafos <ss, rr, sc, xc, sc> contradiz a

percepção que o falante de português tem da sílaba quando pronuncia palavras

como <carro> e <passa>. Guiando-se pela oralidade [‘kaRu] e [‘paså], o falante

separaria as sílabas de tais palavras como <ca-rro> e <pa-ssa> e não como

determina a regra <car-ro> e <pas-sa>. Também percebemos contradição entre

a regra da escrita e a ocorrência oral no caso das chamadas consoantes

“mudas” <p, b, t, d, c, g, f etc.> no travamento da sílaba. Efetivamente, elas são

mudas apenas na escrita, pois na oralidade sempre inserimos uma vogal [e] ou

[i] depois delas, o que resulta na formação de uma sílaba independente, como

em <mogno> e <adepto> que, de acordo com as regras de separação da

escrita, seriam <mog-no> e <a-dep-to> e, de acordo com a percepção do oral,

seriam [‘m�ginu] <mo-g-no> e [a’d�pitu] <a-de-p-to>. Esse fenômeno de

ressilabação na fala ocorre também nos encontros consonantais imperfeitos no

início de palavras, tais como pneu-má-ti-co, psi-co-se. De acordo com a

percepção da fala, a separação de tais palavras seria [pinew’mátiku] <p-neu-má-

ti-co>, [pisi’k�zi] <p-si-co-se>. Não pretendemos com essa reflexão mudar as

convenções de separação de sílaba na escrita, pois a escrita é um território

independente do oral, normatizado por decretos. Todavia, num capítulo e/ou

seção que trata de fonética e fonologia, não podemos deixar de apontar as

diferenças que existem entre as estruturas das sílabas no português oral e no

português escrito, subsumindo que elas são idênticas. Diante da dominância do

viés grafocêntrico inerente ao DG, somos levados a repetir, com Saussure

(1975, p. 40), que “[...] a escrita obscurece a visão da língua; não é um traje,

mas um disfarce”. Apenas L7 lida conscientemente com o risco do

grafocentrismo, ao tratar da fonética e da fonologia.

Considerando a presença insidiosa do grafocentrismo no tratamento

dispensado à fonética e à fonologia, somos levados a nos perguntar se tais

obras preenchem o seguinte requisito do PNLEM/2007 quanto à correção e

adequação conceituais e à correção das informações básicas:

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Respeitando as conquistas e o modo próprio de construção do conhecimento de cada uma das ciências de referência, assim como as demandas próprias da escola, a obra didática deve mostrar-se atualizada em suas informações básicas, e, respeitadas as condições da transposição didática, em conformidade conceitual com essas mesmas ciências. Em decorrência, sob pena de descaracterizar o objeto de ensino-aprendizagem e, portanto, descumprir sua função didático-pedagógica, será excluída a obra que:

• formular erroneamente os conceitos que veicule; • fornecer informações básicas erradas e/ou desatualizadas; • mobilizar de forma inadequada esses conceitos e

informações, levando o aluno a construir erroneamente conceitos e procedimentos (PNLEM, p.35 e 36).

Diante de tal requisito, só nos cabe repetir a pergunta que fizemos no

final da seção 4.3 Como tais livros foram aprovados pelos avaliadores, se

apresentam tantos equívocos conceituais sob o ponto de vista do DL, que

embasa a nova proposta de ensino de língua materna?

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CONCLUSÃO

Chegamos ao momento da síntese dos achados da pesquisa. Um dos

nossos objetivos era investigar os discursos que dizem a fonética e a fonologia

nas seções e/ou capítulos a elas destinados no espaço do livro didático de

ensino médio, perscrutando as posições discursivas assumidas pelos

autores/enunciadores. Desde o início de nosso estudo conjeturamos a hipótese

de que, lendo as páginas dos LDs, nos depararíamos com um espaço

discursivo formado pelo enredamento de dois discursos – o DG e o DL.

Podemos dizer que, em maior ou menor escala, nossa hipótese se confirmou.

Depois de um século de ciência linguística, depois de quatro décadas de

fermentação do novo paradigma de ensino de língua materna e depois de uma

década de PCNEM, nenhum autor de LD ousa ignorar o DL. Minimamente

todos os LDs analisados dialogam com o DL. Em relação ao tema analisado, o

índice desse diálogo pode estar na menção e definição do termo fonema, bem

como no uso das barras inclinadas para demarcá-lo, conforme recomendam as

normas de transcrição fonológica. Porém, a indistinção entre a fonética e a

fonologia na maioria dos livros patenteia a dominância do DG. Em L1, L2, L3,

L4 e L5, o diálogo com o DL é tangencial e inconsistente, uma espécie de meia

volta antes de entrar na seara das convenções ortográficas, com suas regras

de acentuação gráfica e de separação de sílabas.

L6 concede um espaço mais generoso à fonologia, apresentando todos

os fonemas vocálicos, semivocálicos e consonantais transcritos conforme o AFI

e descritos por meio de traços articulatórios, para além da separação entre

vogais e consoantes, traços de classe principal. Contudo, após essa concessão

à fonologia, também ele entra no reino da ortografia, ocupando-se em

rememorar as regras de separação de sílaba e de acentuação gráfica, bem

como os casos de letras concorrentes para a escrita de um mesmo fonema (/S/

/Z/ /s/ /z/ etc). Apenas L7 mantém-se consistentemente alinhado com o DL,

destoando dos demais, pois é o único a promover um diálogo mais estreito com

a fonologia, abordando os princípios de análise fonológica a partir de dados

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fonéticos, definindo fonema a partir da teoria saussureana de valor,

apresentando uma classificação completa dos fonemas do português de base

articulatória, utilizando criteriosamente o AFI, diferenciando transcrição

fonológica de transcrição fonética, mantendo-se deliberadamente no escopo da

oralidade para tratar do tema.

Outro objetivo era compreender como enunciados de livros didáticos de

português se posicionam em relação à tese do primado da oralidade sobre a

escrita, afirmada pela linguística, desde seu advento, em contraposição ao

grafocentrismo da gramática tradicional, captando possíveis deslizamentos

entre a fonologia e a ortografia no conjunto de enunciados extraídos dos livros

didáticos. Sem dúvida, um dos pressupostos da gramática normativa mais

combatidos pela linguística moderna é o de tomar a escrita como se ela fosse

primeira em relação à fala e também modelo para ela. Os linguistas são

insistentes quando se trata de lembrar que as línguas são orais antes de se

tornarem escritas, que muitas línguas faladas hoje ainda são apenas orais, que

muitas línguas desapareceram da Terra sem deixar vestígios por serem

apenas orais, que, entre os povos com línguas com escrita, nem todos a

dominam, diferentemente oralidade que é compartilhada por todos os falantes.

Apesar do ethos combativo dos linguistas em direção a esse pressuposto do

DG e apesar de a fonética e a fonologia estarem inseparavelmente

relacionadas com a oralidade, apenas L7 lida conscientemente com o risco do

grafocentrismo que ronda o estudo de línguas com sistema de escrita

fonográfico-alfabético. As enunciadoras de L7 reconhecem a relação natural

entre a fala e a escrita nos sistemas de escrita alfabéticos, mas advertem que

“[...] para estudarmos a fonologia da língua, é necessário que nos esqueçamos

momentaneamente da escrita e que nos concentremos nos sons da língua e na

maneira como eles se organizam em um sistema fonológico” (p. 17). E a

melhor forma de domar o risco do grafocentrismo é nomeá-lo e não deixar que

ele aja subrepticiamente. Talvez seja por essa razão que as enunciadoras

designam o capítulo como “A escrita” e começam a exposição tratando dela

consciente e explicitamente. Entretanto, a derrapagem do oral para o escrito,

conforme seção 4.4, é evidente em L1, L2, L3, L4, L5 e L6.

As atividades práticas (os chamados exercícios) apensadas aos

capítulos/seções em todos os LDs (inclusive em L7 que, na parte expositiva,

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alinha-se com DL) são direcionadas para os usos da norma padrão escrita,

explorando principalmente as convenções ortográficas, a separação de sílabas

na escrita e a acentuação gráfica. Assim, supomos poder estender as

seguintes considerações de Marcuschi (2005), sobre o livro didático de Língua

Portuguesa, à maioria dos LDs que analisamos:

Observando-se os LDP [...] constata-se que eles, de uma maneira

geral, tomam a língua como um simples instrumento de comunicação não problemático capaz de funcionar com transparência e homogeneidade. A dar crédito aos livros didáticos, a língua é clara, uniforme, desvinculada da realidade, semanticamente autônoma e a-histórica. Difícil, pois, achar um lugar e um papel para a oralidade num contexto histórico destes. (MARCUSCHI, 2005, p.23)

Tínhamos ainda por objetivo compreender como enunciados de livros

didáticos de português respondem aos parâmetros e orientações curriculares,

bem como aos critérios do PNLEM, quanto ao postulado da inclusão do tema

diversidade linguística observável no nível fonológico, contribuindo para a

promoção de uma educação linguística que forme cidadãos livres de quaisquer

preconceitos linguísticos. Excetuando-se por L7, que mais se aproxima do DL,

os demais parecem fazer ouvidos moucos ao principal eixo norteador do

PCNEM – o respeito à diversidade (p. 123). No caso da área Linguagens,

Códigos e suas Tecnologias, esse eixo encontra-se respaldado pelo seguinte

princípio: “Respeitar e preservar as diferentes manifestações da linguagem

utilizadas por diferentes grupos sociais, em suas esferas de socialização”

(PCNEM, p.130). No tocante à linguagem verbal, esse princípio leva a

destronar a norma padrão como a única expressão correta da língua e a adotar

uma concepção de língua como sendo heterogênea em todos os seus níveis.

Em termos operacionais, isso significa que a língua deve ser tomada como

plural em todas as páginas do LD e não apenas num capítulo à parte dedicado

à variação linguística. Textualmente, o PCNEM (p. 130) sugere que “A variante

padrão pode ser comparada com outras variantes em seus aspetos

fonológicos, sintáticos, semânticos”.

Em vista desses parâmetros e com base na leitura dos capítulos/seções

destinados à fonética e à fonologia, responderíamos a Ficha 3 do PNLEM/2007

(conforme seção 4.3), afirmando que, nos LDs analisados, a concepção de

língua não contempla “as dimensões estrutural e sociocomunicativa da

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linguagem” e “sua natureza dinâmica e variável, como um sistema adaptável ao

contexto sociocultural”; que a gramática não é considerada um sistema de

regras variáveis que toma forma nas diversas situações de uso, mas sim como

“um conjunto de regras normativas a serem seguidas incondicionalmente, em

qualquer situação”; que a norma não equivale a “padrão de uso” concretizado

socialmente, mas sim a “padrão normativo” idealizado pelos gramáticos; que a

variação linguística não é avaliada positivamente como “um fenômeno próprio

das línguas” e que as atividades propostas não “contemplam a pluralidade de

normas/usos quanto a modalidades, registros e variedades”. A pista mais

evidente desse alinhamento com o DG é o tratamento de casos de variação

muito comuns na linguagem oral sob a rubrica da ortoépia e da prosódia que

enquadram a pronúncia destoante da norma padrão como crime de lesa-língua

– podemos cometer uma cacoépia (se dizemos alejar ao invés de aleijar) ou

uma silabada (se dizemos interim ao invés de ínterim). Os enunciadores

costumam até evitar as categorias de avaliação certo/errado, pela aura

negativa que as envolve contemporaneamente, recorrendo a termos do DL,

como “adequada” (L1), ou a termos mais brandos, como “desvio” (L6), porém

tendo como referência a grade semântica do DG.

Assim, pelo que vimos desenrolar-se nas páginas dedicadas à fonética e

à fonologia pelos LDs, estamos longe de construir uma sociedade democrática

e plural em que as diferenças linguísticas, quando contrapostas à norma

padrão, não sejam alvo de avaliação negativa, preconceituosa e

discriminatória. Apenas os saberes produzidos no campo da linguística podem

nos ajudar a tirar o manto sagrado que envolve a norma padrão, revelando a

história de lutas classificatórias que a legitimou como “a” língua. Sem isso,

nossos alunos continuarão a crer que há apenas uma forma correta de usar a

língua, desconhecendo o fato de que o valor atribuído à norma padrão não é

linguístico, mas político, ou seja, relativo ao “[...] poder econômico e simbólico

de certos grupos sociais que autorizam sua legitimidade” (PCNEM, p. 127). Se

a educação formal persistir nessa trilha, nossos alunos serão cidadãos que,

inocentemente, vão continuar a praticar as mais sórdidas manifestações de

preconceito linguístico.

Quando escolhemos examinar o tratamento destinado à fonética e à

fonologia no LD, não tínhamos a intenção de discutir a pertinência da inclusão

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desse tema entre os demais conteúdos linguísticos aí abordados. Poderíamos

ter escolhido a morfologia, a sintaxe, o léxico, a semântica etc, porém,

escolhemos a fonologia e a fonética por serem disciplinas já consolidadas no

campo da linguística do núcleo duro da língua, situação que, a nosso ver,

facilitaria o trabalho de transposição didática dos conhecimentos científicos

para o ensino de língua materna. Pensamos que a presença ou não da fonética

e da fonologia no livro didático é uma questão que merece ser discutida. Elas

não devem estar lá por uma mera mimese da tradição gramatical que sempre

contemplou os três níveis gramaticais – fonética, morfologia e sintaxe. Porém,

se elas estiverem lá, elas devem ser tratadas com precisão científica, não

podem veicular equívocos conceituais, como, por exemplo, confundir fonética e

fonologia, fonologia e ortografia, letra e fonema etc. Não estamos defendendo

que a transposição didática dos conhecimentos científicos para a esfera do

ensino tenha por princípio a exaustividade, aliás nem à graduação em Letras

cabe explorar a fonética e a fonologia em sua inteireza, apenas os cursos de

pós-graduação lato e stricto sensu que as incluam como linhas de pesquisa é

que teriam obrigação e espaço-tempo para fazê-lo. Porém, a seleção do que

excluir e do que incluir deve ser coerente e lógica. Por exemplo, os

enunciadores podem optar por simplificar, não especificando todos os traços de

classificação dos fonemas do português, ficando apenas nos traços de classe

principal que os separam em vogal/semivogal/consoante. Todavia, se incluírem

outros traços, não podem os escolher aleatoriamente, como faz L6 que

classifica as vogais segundo o movimento horizontal da língua

(central/anterior/posterior), mas não faz referência alguma ao movimento

vertical (baixa/média/alta) que é fundamental para a distinção entre si da série

de vogais anteriores e posteriores. Esse tipo de “simplificação” destrói a

logicidade da classificação.

Outro aspecto que nos preocupa no processo de transposição didática

dos conteúdos de fonética e fonologia é o silenciamento de polêmicas que

possam existir no campo da ciência, em prol da apresentação de verdades

categóricas, como é o caso do estatuto das vogais nasais. Todos os LDs

enquadram, sem qualquer comentário, as vogais nasais como fonemas. Ao

apagar a polêmica, a escola perde uma oportunidade ímpar de formar cidadãos

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menos rígidos e inflexíveis diante de quaisquer formas de alteridade, postura

fundamental para viver no mundo contemporâneo vertiginosamente cambiante.

Nessa etapa de nosso estudo, somos levados a nos perguntar sobre o

porquê da dominância do DG sobre o DL no livro didático, após um século de

linguística. São muitas as conjeturas. No Brasil, geralmente, quem investiga a

língua e quem escreve LDs não são as mesmas pessoas. Quem escreve LDs

normalmente passa a compartilhar dos conhecimentos produzidos no campo

da linguística e literatura a partir de uma formação em Letras, hoje bastante

problemática em virtude da imensidão da área. Todos sabemos que, no campo

das ciências humanas e sociais, novos conhecimentos não suplantam velhos

conhecimentos, como ocorre no campo das ciências naturais e exatas. Assim,

quando vamos propor os currículos de cursos de Letras, deparamo-nos com

uma difícil decisão: privilegiar os conhecimentos produzidos pela linguística

moderna ou relotear a grade curricular em territórios cada vez menores para

que ela comporte o passado e o presente das Letras. Geralmente, para não

descontentar nem os clássicos e nem os modernos, acabamos optando pela

segunda via, cujo resultado é uma pulverização de disciplinas e, por

conseguinte, uma formação fragmentada, sem densidade em quaisquer dos

conteúdos estudados. Em cursos de Letras que tais, o tempo-espaço dedicado

à fonética e à fonologia não permite uma formação sólida. Aliás, poucos alunos

chegam a desenvolver uma atitude positiva em relação a tal

conteúdo/disciplina, favorável à compreensão de suas peculiaridades em

relação a outros conteúdos da área. O sentimento mais forte em relação à

fonética e à fonologia costuma ser o de rejeição, desistência e recusa em

compreendê-las.

Além disso, é toda a linguística do núcleo duro da língua que é

rechaçada não só pelos alunos, mas também pela maioria dos professores de

Letras que passa a ver na chamada linguística do discurso (linguística textual,

teoria da enunciação, sociolinguística interacional, análise de discurso,

pragmática etc.) mais serventia para o ensino de línguas. Não sem razão, a

linguística do discurso se torna a base do novo paradigma de ensino,

oficializado pelos PCNEM. Nessa conjuntura, o que fazer com os

conhecimentos produzidos pelas disciplinas da chamada microlinguística se

torna uma questão incômoda, principalmente quando essas disciplinas são a

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fonética e a fonologia. Nos estudos e publicações sobre o ensino de língua

materna, reina o silêncio em torno do assunto, de tal forma que, na falta de

orientações vindas de linguistas, os autores de livros didáticos recorram aos

gramáticos.

Nossa pesquisa busca revelar a fragilidade do diálogo entre os

enunciadores de LD e a linguística e, embora, não seja nosso propósito

apontar soluções para esse problema, ocorre-nos retomar dois autores que têm

refletido sobre a questão: Neves (2002 e 2004) e Marcuschi (2005). Para

Neves (2002), a deficiência deve começar a ser reparada na universidade, pois

os professores ou futuros professores não sabem transpor para o ensino de

línguas o que aprenderam em aulas de linguística, competência necessária

para equacionar o problema do ensino de gramática. A crítica feita por ela pode

ser estendida aos autores de livros didáticos, que também precisam lidar com a

transposição didática dos conhecimentos da linguística. A autora recomenda

que se parta dos usos diretamente observáveis da língua em funcionamento,

compreendendo que existe um amálgama, desde o pragmático até o

fonológico. Neves (2004) aponta que está faltando nas escolas, inclusive nas

universidades, colocar a linguagem em funcionamento, saber avaliar as

relações entre a atividade de falar, ler e escrever.

Já Marcuschi (2005, p. 24) aponta que a maioria dos autores dos LDs

não sabe onde e como situar o estudo da fala: “A visão monolítica da língua

leva a postular um dialeto de fala padrão calcado na escrita, sem maior

atenção para as relações mútuas entre a fala e a escrita.” Afirma que será de

grande valia mostrar que a língua falada é variada e que a noção de um dialeto

padrão é uma noção teórica e não tem um equivalente empírico que a justifique

com base em critérios linguísticos, mas apenas com base em decisões de

natureza política. Assinala, enfaticamente, que o ensino de língua na escola

básica:

[...] não visa a formar linguistas ou gramáticos e muito menos analistas da fala, analistas de textos de conversação. Tudo se resume a este objetivo: ensinar os alunos a perceberem a riqueza que envolve o uso efetivo da língua como um patrimônio maior do qual não podemos abrir mão. ( MARCUSCHI, 2005, p, 32)

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Caberia perguntar-nos: se os autores dos LDs encontram tantas

dificuldades em transpor didaticamente o que afirmam os linguistas, tudo não

estaria resolvido se as editoras contratassem esses estudiosos para

elaborarem os materiais didáticos? Ao que parece a equação não é simples

assim, pois entre a pesquisa/teoria/transposição didática/aplicação, ainda há

um vácuo que precisa ser melhor investigado/preenchido, envolvendo a

participação conjunta de todos os segmentos (linguistas, professores, autores

dos livros didáticos), tendo em mente que teorizar pode ser bem menos

complicado do que pôr em prática. Mas há que haver testagens com a

participação de todos os segmentos, pois só assim sair-se-á do teórico e saber-

se-á o que e como melhor funciona.

O que fizemos, de ponta a ponta, nesse trabalho foi um exercício de

interpretação. Lembramos que a AD trabalha com a possibilidade de as

interpretações não poderem ser fechadas. Afinal, “[...] o espaço da

interpretação é o espaço do possível, da falhas, do efeito metafórico, do

equívoco, em suma: do trabalho da história e do significante, em outras

palavras do trabalho do sujeito” (ORLANDI,1998, p.22).

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