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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X
A FIGURA JURÍDICA DO ESTUPRO: UMA ANÁLISE DAS SENTENÇAS JUDICIAIS E
DA PRODUÇÃO DE SENTIDOS
Fernanda Moreira de Menezes1
Hebe Signorini Gonçalves2
Resumo: A invisibilidade e as interdições que cercam a discussão sobre o estupro devem ser
enfrentadas, sobretudo levando em conta sua reconhecida e inquietante subnotificação. Essa
invisibilidade pode estar relacionada ao não reconhecimento da violência por parte da vítima.
Embora o estupro não seja uma prática específica dos homens, inúmeras pesquisas demonstram a
maior incidência de mulheres vítimas e homens agressores. A discussão teórica de fato demonstra
que o gênero e a opressão da mulher são determinantes na produção do estupro e por isso a noção
de estupro se fundamenta na noção de gênero, pois é a partir dele que o estupro é caracterizado. A
tipificação penal do estupro é uma das principais vias para identificar práticas dessa forma de
violência, inclusive fora dos espaços criminais. Este trabalho investiga os sentidos que norteiam e
produzem o estupro como figura jurídica, através da análise de sentenças judiciais exaradas em
processos posteriores à mudança do artigo 213 do Código Penal brasileiro (lei nº 12.015/09).
Consideramos a pesquisa relevante para a Psicologia uma vez que o engendramento da noção
jurídica do estupro, e sua legitimidade, são fundamentais para a compreensão do sujeito em
contextos de violência, e impactam o modo como o sujeito reconhece a violência.
Palavras-chave: estupro, gênero, justiça criminal.
O presente trabalho apresenta os dados preliminares da pesquisa de mestrado da autora
principal, orientada pela segunda. A pesquisa, em andamento, examina processos judiciais que
tenham como crime a ser processado o artigo 213 do Código Penal. Analisamos a dinâmica
particular do desenrolar dos processos através dos documentos produzidos, especialmente a
sentença, na tentativa de evidenciar as implicações discursivas e a produção de práticas que
excedem a esfera jurídica. As decisões judiciais engendram sentidos que tendem a nortear a
compreensão e o reconhecimento dessa forma de violência. Acreditamos que estes sentidos possam
ser entendidos como efeitos da busca obstinada dos operadores do Direito para alcançar a verdade.
Tomamos para análise a figura jurídica do estupro tal como definida pela lei nº 12.015/09,
que realizou diversas alterações nos crimes sexuais. A noção de estupro como figura jurídica é
trabalhada por Vigarello (1998) a partir da análise de casos ocorridos na França do século XVI até o
século XX. Para o autor, a construção do conceito é “paralela à história da sensibilidade, que tolera
ou rejeita o ato brutal” (1998, p. 13). A violação do corpo alcançava significação como tal a partir
da receptividade de juízes, opinião pública e população em geral na análise do ato. Os
1 Psicóloga e mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Brasil. 2 Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Públicas em Direitos Humanos do NEPP-DH/UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
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desdobramentos dos casos de estupro ainda hoje apontam para a captura dos envolvidos, e seu
repúdio ou consentimento são elementos para a compreensão do ato, seja do ponto de vista social
seja do ponto de vista jurídico.
Trabalhamos com a hipótese de que essa captura decorra da aceitação ou da condenação
social do perfil do réu e da vítima; a “boa vítima” é aquela cuja conduta é socialmente aprovada, e
tem por isso o discurso acolhido no processo; o inverso ocorre com a “má vítima”. A naturalização
e/ou reprovação de certos comportamentos são posicionamentos frequentes nos processos
pesquisados, independente do tipo de violência perpetrada, do estupro ocorrido nas relações de
intimidade ou no anonimato das ruas. Entendemos que essas particularidades devam ser analisadas,
embora respeitando as especificidades do ato objeto de julgamento. Assim, examinamos as
ocorrências restringindo o escopo da pesquisa a partir (a) do recorte temporal e geográfico,
abrangendo os casos ocorridos entre 2009 (ano da promulgação da lei 12.015) a 2015 (já que a
pesquisa teve início em 2016) no estado do Rio de Janeiro; e (b) do recorte etário, trabalhando com
processos em que as vítimas sejam mulheres maiores de 18 anos, pois a violência sexual contra
criança e adolescente é uma temática distinta da violência de gênero.
Para acessar os processos buscamos inicialmente a relação dos números de processos de
estupro através da ferramenta “jurisprudência” no site do Poder Judiciário. Em seguida, esses
processos foram acessados no Arquivo Permanente do Tribunal de Justiça. Da relação original,
foram excluídos os processos (a) que se encontram sob segredo de justiça; (b) os que constam como
arquivados, mas não se encontram na caixa arquivada, possivelmente por haverem retornado ao
Juízo competente para outros provimentos; (c) os que tratam de estupro de vulnerável, ou datam de
antes de 2009, fugindo ao escopo da pesquisa. Dessa forma, dispomos até o momento de 34
processos. Faremos uma breve análise destes, com o resultado em arquivamento, condenação ou
absolvição.
Reforma dos crimes sexuais: a lei nº 12.015/09
Haja vista a centralidade da lei nº 12.015/09 para a pesquisa, avaliamos como fundamental a
apresentação das principais alterações promovidas pela reforma e que comparecem nas sentenças
dos processos pesquisados. A mudança no título “Dos Crimes contra os Costumes” para “Dos
Crimes contra a Dignidade Sexual” foi uma importante conquista feminista, pois substituiu a noção
de moralidade coletiva e honra familiar pela dignidade sexual como fundamento principal da tutela
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jurídica. A alteração alude, também, à dignidade da pessoa humana, valor fundamental contido na
Constituição Federal de 1988, passando a lei a estar em consonância com os princípios
constitucionais.
Há críticas à lei, contudo. A saber, a nova redação do artigo 213 do Código Penal absorveu a
conduta do crime de atentado violento ao pudor (o revogado artigo 214) neste novo tipo penal.
Processos cujas sentenças continham críticas dos magistrados foram encontrados, especialmente
aqueles com datas próximas ao início da vigência da nova lei.
Uma delas afirma que a lei é “mais benéfica aos predadores sexuais pela conjugação de duas
figuras em um único tipo penal” (processo número 1), pois ao incorporar o atentado violento ao
pudor ao crime de estupro, ou seja, duas condutas em um único tipo penal, as penas deixaram de ser
cumulativas. Assim, a pena será a mesma para o sujeito que constranger a vítima à conjunção carnal
e também praticar atos libidinosos diversos de conjunção carnal, ou apenas a prática da conjunção
carnal. Lígia Nazar assinala:
Apesar de algumas alterações confeccionadas pela Lei nº 12.015/09 terem sido muito
positivas e representarem um avanço e atualização da legislação brasileira, como a
mudança da rubrica do Título VI do Código Penal e a ampliação do polo passivo do crime
sexual, poderia realmente o legislador ter reestruturado por inteiro o conjunto dos delitos
sexuais em uma versão de sistematização mais moderna e de superior técnica,
diferenciando condutas mais graves de menos graves, inclusive com a cominação de penas
distintas (NAZAR, 2011, p. 114)
Outra crítica pertinente, diz respeito às lacunas produzidas pela reforma quanto aos limites
semânticos do que seriam atos libidinosos diversos da conjunção carnal. A jurisprudência
consolidada nos Tribunais Superiores considera somente os denominados "sexo oral" e "sexo anal"
como atos libidinosos que se adequam ao tipo penal de estupro. Porém, quanto aos demais atos
(beijo forçado, passar a mão em alguma parte do corpo, despir-se para o réu), a jurisprudência
entende ora como atos preparatórios impuníveis do delito de estupro, por serem qualificados como
"meras preliminares" ao ato sexual; ora como condutas autônomas, ou seja, merecendo reprimenda
penal específica, como o crime de estupro. Tal ponto de divergência é tratado em algumas
sentenças, como no processo número 13:
Isso porque o legislador ao equiparar atos libidinosos à conjunção carnal apenas o fez em
relação a atos, que tenham por objetivo auferir prazer sexual, lesivamente proporcionada à
conjunção carnal (...) no Brasil, diante da imprecisão do significante "ato libidinoso diverso
de conjunção carnal", a jurisprudência registra consenso apenas na equiparação dos
chamados "sexo anal" e "sexo oral" à conjunção carnal.
Além disso, no caso acima, o magistrado desclassificou o tipo penal, entendendo que a
conduta, apesar de reprovável, não poderia ser considerada estupro e, sim, a ação prevista no artigo
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65 da Lei de Contravenções Penais: "molestar alguém ou perturbar-lhe a tranquilidade". Por outro
lado, algumas sentenças condenatórias em que a conduta do agente consistiu em passar a mão em
partes do corpo da vítima ou um beijo forçado foram tipificadas como estupro.
O artigo 225 do Código Penal, alterado pela lei nº 12.015/09, indica que a ação penal deverá
ser pública condicionada à representação, exceto se a vítima for menor ou pessoa vulnerável. No
processo número 7, o magistrado decidiu que a vítima deveria ser intimada pessoalmente para
manifestar seu interesse na ação penal, embora esta já estivesse em fase de sentença. A ratificação
da vontade da vítima no prosseguimento da persecução penal foi exigida pelo Juízo uma vez que há
a obrigatoriedade de adotar a norma mais favorável ao réu. Essa alteração pode, portanto, em tese,
reduzir o número de eventos levados aos tribunais.
As decisões do julgador: entre arquivamentos, absolvições e condenações
Por ser o primeiro momento da análise da pesquisa, realizamos a reflexão inicial tendo como
enfoque os resultados das decisões judiciais e a força das suas ocorrências: são 13 condenações, 4
absolvições e 17 arquivamentos. O grupo da condenação conta com 13 casos. Dentre estes,
destacamos: uma mulher foi acusada de estupro, presa em flagrante e encarcerada por 9 meses; no
entanto, durante a sentença, o magistrado desclassificou o crime, mudando a tipificação, com isso a
pena cominada foi de apenas 15 dias; a ocorrência da desclassificação do tipo penal; alguns casos
em que o acusado é ex-companheiro da vítima; as muitas condenações que tiveram a pena reduzida
pelo fato do crime ser na forma tentada; os argumentos da defesa baseando-se na desqualificação da
palavra da vítima e/ou na sugestão de que vítima e réu já se conheciam e mantinham
relacionamento, com isso, supondo consensualidade no intercurso sexual. A esse respeito, Joana
Vargas (2000) escreve:
A carência de provas e de testemunhos confere à palavra da vítima o caráter de prova,
reconhecida por lei. Pode-se imaginar que decorrente desse fato, haja uma preocupação
constante dos operadores com a verossimilhança do depoimento dado pela vítima e com
sua contaminação pelo caráter relacional (VARGAS, 2000, p. 21).
A categoria do arquivamento chama atenção pela multiplicidade de acontecimentos:
ausência de autoria e/ou materialidade; desistência da representação por parte da vítima – seja por
sentir-se ameaçada, envergonhada ou mesmo porque a lembrança do fato provoca sofrimento;
versões conflitantes apresentadas pela vítima e pelo réu, sem qualquer outro elemento que afira
peso a uma das versões. Assim como nas sentenças condenatórias, o argumento de que vítima e réu
possuíam um caso/aventura/romance foi usado pelo pleito defensivo. Nesses casos, a mera
insinuação de que a vítima registrou falsa denúncia por motivos de vingança, ciúme ou dinheiro põe
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sob suspeição seu depoimento. Desse modo, há uma relativização, às vezes indireta, da palavra da
vítima e da credibilidade do seu testemunho. Os padrões performados pelo acusado e pela vítima
são determinantes para o desfecho da sentença.
Conforme apontado por Daniella Coulouris (2004), que analisou processos de uma cidade
no interior de São Paulo, as condenações não ocorrem com tanta frequência pela ausência de provas
materiais que “certifiquem os depoimentos das vítimas, muitas vezes descritas como não-confiáveis
por seu comportamento social” (p. 11). Tal argumento é importante no segundo grupo, da
absolvição. São 4 casos em que os supostos autores foram identificados, sem que, no entanto,
fossem encontradas provas suficientes para sustentar a tipificação penal ou para conduzir à
condenação.
Ainda no grupo da absolvição, um caso se destaca por ser uma “absolvição imprópria”, isto
é, o réu foi encaminhado para o cumprimento de medida de segurança frente sua inimputabilidade.
Foucault (2002) examina as circunstâncias em que a psiquiatria e o aparelho judiciário produziram
um saber-poder que dá início ao desenvolvimento e organização de classificações a respeito da
personalidade e previsão do comportamento do criminoso. Vigarello assinala que foi o saber psi o
responsável pela elaboração da figura do estuprador:
O projeto de “penetrar na obscuridade da personalidade criminosa” tende a
identificar desordens de consciência, para melhor avaliar os procedimentos
transgressivos. É uma nova maneira de se interessar pelo indivíduo, o nascimento de
uma psicologia, da qual veio o próprio nome de estuprador, uma atitude inédita de
pensar o destino individual ainda largamente enraizado na biologia (VIGARELLO,
1998, p. 185).
O autor ainda afirma que são casos muitos específicos que ganham destaque, isto é, “só os
casos mais graves, mais alarmantes, se não mais atrozes, conseguem provocar algumas indagações
sobre o ‘anormal’” (VIGARELLO, 1998, p.130). O movimento destacado pelo autor foi
encontrado em alguns processos dos quais as sentenças apresentam os termos “predadores sexuais”
ou “abusadores seriais”. Nas decisões condenatórias, estes termos foram empregados como forma
de enfatizar a periculosidade, monstruosidade e falta de humanidade dos acusados.
A patologização e desumanização do acusado têm sido objeto de estudos críticos, como
Menachem Amir, que em 1971, realizou uma pesquisa estatística sobre as ocorrências de estupro na
Filadélfia. Sobre este estudo, Rita Segato escreve que “a atribuição de psicopatologias individuais
aos estupradores não procede, já que o estuprador é simplesmente um membro a mais entre outros,
dentro de determinado grupo social, com valores e com normas de comportamentos
compartilhados” (1999, p. 406).
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Ao utilizar o argumento do estado de anormalidade dos estupradores, a discussão é
direcionada para uma explicação de ordem biológica, obscurecendo o fenômeno da violência de
gênero, a hierarquia entre opressor e oprimido e a objetificação do corpo feminino. Exercer controle
sobre o corpo do outro, abusando e dominando-o é uma forma de aniquilar a vontade e objetificar o
espaço-corpo da vítima. Para Segato, o estupro não é um efeito de um desvio individual do sujeito e
a disponibilização de um perfil psicológico deve ser contornada para um deslocamento de outra
ordem.
Essa normalidade do estuprador será ampliada na formulação de uma tese feminista (...)
evitam-se, também, assim, os riscos de uma teoria da “subcultura” violenta na qual o
estupro seria previsível, já que deslocaríamos a suspeita de um “tipo” psicológico para um
“tipo” social, sem enquadrar nessa suspeita as sociedades como um todo e os valores
amplamente compartilhados e difundidos (SEGATO, 1999, p. 407).
Os valores que circulam pela sociedade e constituem os sujeitos estão disponíveis, também,
nos modos como o órgão julgador encaminha suas decisões, às vezes de maneira velada, outras nem
tanto. A seguir, apresentaremos três tópicos comuns aos três resultados de sentença: o exame de
corpo de delito, a perpetração do estupro na relação de intimidade e o trauma como efeito do
estupro.
O exame de corpo de delito
O auto de exame de corpo delito (AECD) é uma das principais modalidades de prova e a
forma como é utilizado deve ser colocada em relevo. Nas sentenças de condenação em que os
laudos eram conclusivos, o argumento principal era de que a clandestinidade comum aos crimes
sexuais impossibilita que outras testemunhas sejam convocadas, por isso a palavra da vítima deve
ser considerada como prova. Curioso notar que tais sentenças tinham o resultado conclusivo no
AECD para confirmar o estupro, ainda que a palavra da vítima seja apontada como possível “única
prova”.
Por outro lado, nas condenações em que o AECD era inconclusivo, as declarações de
testemunhas a respeito dos momentos anteriores ou posteriores ao crime ajudaram a corroborar e
legitimar o relato da vítima. Interessante ressaltar trecho retirado do relatório do desembargador
devido à apelação da defesa em 2ª instância: “(...) mesmo nos crimes de violência sexual, como já é
salientado, é possível sua comprovação a partir do conjunto probatório produzido, não se exigindo,
para tanto, seja a evidência material comprovada exclusivamente por exame pericial, já que nem
todos os crimes contra a dignidade sexual deixam marcas físicas" (processo número 8).
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Certamente, nem todas as agressões sexuais deixam marcas físicas no corpo, do mesmo
modo que o próprio exame tem suas limitações. Um AECD pode ser inconclusivo, por exemplo, se
realizado dias após a violência ou mesmo se a vítima não é virgem:
Em regra, o exame nada comprova. Principalmente, quando a vítima é adulta e não-virgem.
A insuficiência do exame não ocorre somente porque a maioria das vítimas registra a
violência após as quarenta e oito horas necessárias para a análise. Ou, porque as vítimas
reagem automaticamente ao estupro procurando apagar da memória, através de um ritual de
limpeza e expurgação, qualquer contato com o agressor logo após a violação. Os resultados
da perícia geralmente não costumam ser concludentes pelo fato de que as marcas de
agressões físicas são dissociadas – pelos peritos e pelos agentes jurídicos – dos indícios de
violência sexual. Ou seja, mesmo quando as lesões são confirmadas pelos peritos e
enquadradas na categoria de lesões corporais graves, o acusado pode ser condenado por
lesão corporal, mas absolvido do crime de estupro, afinal são crimes distintos. Além disso,
a maioria das vítimas de estupro não apresenta lesões ou apresenta apenas lesões leves
(COULOURIS, 2010, p. 19).
Nos processos em que os crimes ocorreram na forma tentada, há uma compreensão de que o
AECD seria irrelevante uma vez que a conjunção carnal não foi consumada por circunstâncias
alheias à vontade do acusado (chegada da polícia ou fuga da vítima). Em alguns casos, a palavra da
vítima foi considerada e utilizada como prova. Em contrapartida, em situações similares de estupro
na forma tentada em que o AECD não foi realizado – e não havia testemunha ou o depoimento da
vítima foi considerado discrepante – a situação é invertida e, de alguma forma, são produzidas
exigências endereçadas a ela.
Alguns questionamentos giram em torno de detalhes durante o ato, por exemplo, a respeito
da ereção do acusado. Além disso, as roupas da vítima e/ou as escolhas dos locais de lazer
frequentados por ela foram utilizados por alguns acusados como forma de justificar a sua conduta;
nestes discursos as escolhas das vítimas as equiparam a prostitutas e, com isso, os acusados
apresentam sua própria conduta como “natural”. O argumento é praticamente um retorno ao
discurso de juristas do início do século XX que discutiam quais mulheres deveriam ser protegidas
pelo sistema de justiça criminal. As denominadas “mulheres livres” – prostitutas ou mulheres que
escaparam dos padrões direcionados às “moças honradas” – eram alvos de um sistema de controle e
vigilância por oferecem perigo à ordem social e aos costumes da época (CAULFIED, 2000).
Estupro nas relações de intimidade
Dentre os processos pesquisados, temos alguns casos de estupro nas relações de intimidade,
em sua maioria ex-companheiros. Em comparação aos estupros perpetrados por desconhecidos, os
casos de violência sexual nas relações de intimidade são menos frequentes. Pensamos, como Segato
(2003), que isso possa se dever ao fato das mulheres entenderem a conjunção carnal como parte
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necessária e compulsória da relação de intimidade, e o sexo como obrigação conjugal, o que
mascara o próprio sentido de estupro nas relações de intimidade:
Eso muestra claramente el carácter digerible del fenómeno, percibido y asimilado
como parte de la “normalidad” o, lo que sería peor, como um fenómeno
“normativo”, es decir, que participaría del conjunto de las reglas que crean y recrean
esa normalidad (p.3).
Destacamos um processo que teve como resultado o arquivamento, não apenas dele, como
dos demais processos apensados (quatro) referentes às medidas protetivas solicitadas pela vítima. O
acusado, que já havia sido preso pelos crimes de estupro e lesão corporal contra essa mesma vítima,
a agrediu física e sexualmente, além de ameaçá-la com arma de fogo. Todas as medidas protetivas
solicitadas e conferidas foram desrespeitadas. Apesar da prisão em flagrante, o juiz relaxou a prisão
entendendo que não haveria estado flagrancial, nem seria hipótese de prisão preventiva. Alguns
meses depois, a vítima mudou-se da comarca e não foi encontrada. No entanto, o argumento para o
arquivamento coloca a vítima como uma mera desinteressada: “a vítima mudou-se desta Comarca,
sem que prestasse informação ao Juízo, demonstrando dessa forma, o evidente desinteresse pelo
prosseguimento do feito com relação ao autor do fato" (processo número 20).
Não obstante, o que foi definido pelo magistrado como falta de interesse, podemos presumir
como ceticismo no poder judiciário, sensação de impunidade ou mesmo desistência da via jurídica
na busca por proteção, cessação das violências e reconhecimento da situação vivenciada há anos por
essa mulher. Afinal, mesmo com o histórico de violência e o encarceramento anterior, o magistrado
afirma não ter prova da materialidade do crime e considera apenas a afirmativa de relação
consensual narrada pela acusado.
O indiciado apesar de confessar ter mantido relação sexual com a vítima, nega qualquer ato
de violência, afirmando que a relação teria sido consentida. Com isso, outra conclusão não
resta de que a prisão em flagrante deve ser relaxada. Quanto à possibilidade de decreto de
prisão preventiva, verifica-se efetivamente que não há prova da materialidade delitiva
apesar de haver indícios suficientes de autoria do crime de estupro, não havendo como ser
decretada a prisão preventiva neste momento (processo número 20).
O trauma decorrente do estupro
Em algumas sentenças, o trauma aparece como uma consequência do crime e potencializa o
discurso produzido na decisão judicial. O magistrado recorre à ideia de danos morais como uma
forma de reparação civil, além da condenação penal do réu. Nos casos analisados, o pagamento de
um valor em dinheiro ou mesmo o agravamento da pena base foram meios de reparação
encontrados pelo juízo. Na sentença de um processo julgado no Juizado de Violência Doméstica e
Familiar contra a Mulher, o magistrado escreve: "ainda verifico que o réu gerou as vítimas grande
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sofrimento, seja em razão das agressões físicas, agressões morais decorrentes de ameaças, ou
agressões sexuais. Os danos materiais sofridos não tenho como calcular" (processo número 2).
Fassin e Rechtman (2009) trabalham com a noção de trauma e vítima afirmando que a
universalização da condição de vítima sucedeu-se a partir das situações de guerra, desastres da
natureza e estupro. A categoria moral é incorporada à noção de trauma especialmente por convocar
um “movimento de compaixão”, conforme apontado pelos autores. A localização do trauma opera
disputas importantes, principalmente àquelas que envolvem relações de poder. A moralidade
evocada para a composição do conceito de trauma demonstrou ser um meio importante para as
políticas da atualidade, pois a atuação moral é uma engrenagem crucial para fazer funcionar a
máquina coletiva que produz as noções de vitimização e compaixão. Nesse sentido, o trauma é
muito mais do que o efeito de uma experiência de sofrimento e/ou violenta na qual se torna
praticamente insustentável o enfrentamento direto, ele também é um instrumento para assegurar
direitos.
A condição moral do trauma produz uma noção qualificada de vítima, ou seja, o status de
vítima é (re)inventado, onde a narrativa dos fatos é secundarizada. Assim, a subjetividade da vítima
é avaliada através do trauma apresentado e a ambivalência da condição traumática pode orientar a
decisão no que tange à “verdade” sobre o estupro. Uma vez que o trauma é compreendido na
contemporaneidade como uma prova da violência praticada no corpo, sua apresentação garante a
legitimidade do status de vítima. A convocação da noção de danos morais e a compreensão sobre
formas de reparação estão diretamente relacionadas às reações da vítima diante do magistrado e/ou
do promotor público que indicaram seu estado traumatizado.
As formas de enfrentamento e superação de uma experiência traumática são as mais
diversas, diferindo para cada sujeito em razão do seu próprio tempo e dos meios distintos de lidar
com episódios geradores de sofrimento. As reações de desequilíbrio emocional mais exacerbadas,
como choro excessivo, não são comuns a todas as vítimas, o que não representa uma ausência do
sofrimento vivenciado. Há uma regularidade nas narrativas de vítimas de estupro que internalizam
as questões e buscam apagar a lembrança, particularmente, pela vergonha e humilhação
experienciadas (MATTAR et al, 2007; MACHADO, 1999).
Considerações Finais
Larissa Nadai (2016) analisa as convenções narrativas produzidas por policiais nos
documentos da Delegacia da Defesa da Mulher de Campinas. Para a autora, o exercício da escrita
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“era o modo pelo qual os dilemas da escuta eram domesticados e deglutidos no tempo e através do
tempo” (p. 69). Uma vez que o registro da primeira informação sobre o crime e a codificação da
fala dos envolvidos (vítima, acusado, testemunhas) para o papel são feitos na unidade policial,
entendemos que verdades já estão sendo construídas, isto é, “o poder de registrar, de escrever, é o
poder de fixar no papel, portanto, o poder de inscrever verdades” (EILBAUM, 2011, p.168 apud
NADAI, 2016, 69).
Compreendemos que a “verdade” sobre vítima e acusado tende a ser construída no decorrer
do processo penal. As informações sobre a conduta social das partes, a coerência e harmonia das
suas declarações ou suas contradições, os depoimentos das testemunhas começam a ser organizados
nos relatórios produzidos pela autoridade policial. Os caminhos adotados durante a investigação
conduzida na unidade policial são determinantes para o desenrolar do processo. O oferecimento da
denúncia por parte do Ministério Público depende das informações averiguadas pela polícia.
A reconstituição dos fatos, a disposição dos corpos, a reação dos envolvidos, os sentimentos
provocados durante e após a ocorrência do crime precisam emergir com a maior nitidez e coerência
possível. O exercício de “fazer falar”, diz Foucault, “é combinar a confissão com o exame, a
narração de si mesmo com o desenrolar de um conjunto de sinais e de sintomas decifráveis; o
interrogatório cerrado” (1988, p. 64). Não obstante, ao “fazer falar”, os operadores do Direito
decifram e escrevem esse testemunho oral e, como efeito, esse intermediário direciona o enquadre e
promove certas exclusões dos discursos. Nadai nomeia esse processo de convenções narrativas:
[os policiais] relacionam aquilo que se pode ouvir, aquilo que se escuta e, finalmente,
aquilo que se pode escrever e aquilo que de fato fica e é preenchido nesses papéis. Dentre
uma sobrecarga de escutas, algumas informações serão escritas, protocoladas, remetidas e
enviadas. (...) Ou seja, certas coisas ditas por vítimas, testemunhas, autores, averiguados e
indiciados no correr do inquérito não foram contadas, pois nem sequer puderam ser
escutadas. (...) Não se trata de ocultamento, mas de informações que carecem de
legibilidade em si (2016, p. 90).
As lacunas deixadas pela investigação policial atravessam a persecução processual,
principalmente porque aquilo que é registrado, preenchido e investigado durante todo o processo
criminal parece estar condicionado à captura dos operadores do Direito. As práticas discursivas
produzidas inclinam-se mais sobre os perfis sociais das partes envolvidas e suas adequações ou
inadequações comportamentais. Desse modo, entendemos que a mobilização ou a desmobilização
dos agentes do judiciário e as “verdades” construídas nesse período ainda são compostas por uma
condição moral, resquício dos antigos valores que circundavam os crimes sexuais. O número
significativo de processos arquivados oferece pistas para compreensão desse sistema que parece
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operar, ainda, com elementos históricos estigmatizantes, mesmo com as transformações promovidas
pela lei nº 12.015/09.
Referências
CAULFIELD, S. Em defesa da honra. Moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
COULOURIS, D. A desconfiança em relação à palavra da vítima e o sentido da punição em
processos judiciais de estupro. 2010. 242f. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, São
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The legal figure of rape: an analysis of judicial sentences and the production of meanings
Abstract: The invisibility and prohibitions surrounding the discussion of rape must be coped,
especially considering its acknowledged and disturbing underreporting. This invisibility may be
related to the victim’s non-recognition of violence. Although rape is not a specific men practice,
numerous surveys have shown the highest incidence of female victims and male offenders. The
theoretical discussion in fact demonstrates that the gender and the oppression of women are
determinants in the production of the rape and for that reason the notion of rape is based on the
notion of gender, because rape is characterized from him. Rape as a criminal offense is one of the
main ways to identify practices of this form of violence, including outside criminal spaces. This
work investigates the meanings that guide and produce rape as a juridical figure, through the
analysis of judicial sentences drawn up in processes after the change of article 213 of the Brazilian
Penal Code (law nº 12.015/09). We consider research relevant to psychology since the engendering
of the legal notion of rape, and its legitimacy, are fundamental to the subject's understanding in
contexts of violence, and impact the way the subject recognizes violence.
Keywords: rape, gender, criminal justice