a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

42
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS CURSO DE PSICOLOGIA UNIDADE SÃO GABRIEL A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES DAS CAMADAS MÉDIAS DE BELO HORIZONTE Luciana Viana Bossi e Lima Belo Horizonte Novembro/2006

Upload: duongnhi

Post on 30-Dec-2016

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

CURSO DE PSICOLOGIA

UNIDADE SÃO GABRIEL

A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES DAS CAMADAS

MÉDIAS DE BELO HORIZONTE

Luciana Viana Bossi e Lima

Belo Horizonte

Novembro/2006

Page 2: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

Luciana Viana Bossi E Lima

A FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DE ADOLESCENTES DAS CAMADAS

MÉDIAS DE BELO HORIZONTE

Monografia apresentada ao Departamento de

Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, unidade São Gabriel, como

requisito parcial para obtenção do título de

Psicólogo.

Orientadora: Márcia Stengel.

Belo Horizonte

Novembro/2006

Page 3: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, à minha extensa família, a todos

amigos, pois o apoio destes é que me fez

continuar e me deu força para conseguir alcançar

o objetivo final.

À minha orientadora, profa. Márcia Stengel, pela

oportunidade de participar deste projeto e pelo

crescimento acadêmico.

Page 4: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

“... Se dar e às vezes se jogar a um desconhecido

qualquer, num gosto antídoto, intenso. Gostar do

atrevimento e do profundo irrompendo. Fazendo-

se viver realmente em dobro. Perceber o que não

se fazia perceber. É um cisco provisório demais.

Não ser radical e inteiro ao que pode o bem. O

bom mesmo é viver a generosidade da entrega”.

Vanessa da Mata

Page 5: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

RESUMO

Este trabalho pretende discutir a significação construída por adolescentes sobre a família

contemporânea. É preciso conhecer tal realidade a fim de re-pensar e projetar os novos

arranjos familiares. O pressuposto teórico no qual pauta esta pesquisa é a psicologia social.

Realizou-se entrevistas semi-estruturadas com quatro adolescentes de camadas médias de

Belo Horizonte que, posteriormente, foram analisadas através da análise de conteúdo. A

adolescência se apresenta como uma fase de mudanças fisiológicas e biológicas, tal como

também ocorrem transformações que são construções humanas. Estas se caracterizam por

conceitos que são produções sociais construídas ao longo das formações familiares, culturais,

históricas, econômicas, políticas, entre outros atravessamentos. A família representa um

mecanismo primordial de difusão da cultura, sendo que os primeiros contatos com o mundo

social do ser humano se devem a ela, tal como aquisição de linguagem. Nesse sentido,

entende-se como necessária a investigação da percepção do adolescente sobre sua família de

origem e da família pensada futuramente. Percebeu-se neste trabalho que a visão do

adolescente da camada média tende a reproduzir os valores específicos desta parcela da

sociedade, sendo o amor romântico e a estabilidade financeira os que mais apareceram.

Portanto, o intuito é o de acrescentar mais visões sobre este universo da adolescência, da

família brasileira e da camada média na atualidade.

Palavras-chave: Família, adolescência, camada média, amor romântico, casamento.

Page 6: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

SUMÁRIO

1- INTRODUÇÃO............................................................................................................07

2- ARRANJOS FAMILIARES: Uma perspectiva a partir do cenário brasileiro.........10

3- O QUE É A ADOLESCÊNCIA: Uma discussão teórica...........................................18

4- ANÁLISE DE DADOS: O ideal da família de origem e da futura família...............28

5- CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................39

6- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................................41

Page 7: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

7

INTRODUÇÃO

A adolescência se apresenta por conceitos que são produções sociais

construídas ao longo das formações familiares, culturais, históricas, econômicas, políticas,

entre outros atravessamentos. Caracteriza-se como uma fase de mudanças fisiológicas e

biológicas, mas também ocorrem transformações que são construções humanas. Por a

adolescência ser uma criação humana, está intimamente ligada às diferenças culturais

existentes.

Aparecem intensas questões sobre o que é não ser mais criança e ao mesmo

tempo não ser um adulto, ou seja, ‘o que é ser adolescente?’. “O tempo da adolescência é

mais do que um tempo cronológico, ele é o momento da realização das tarefas psíquicas

que levam os adolescentes à elaboração de nova identidade: a identidade de adulto”

(STENGEL, 2004, p. 46).

Essa vivência da adolescência além de passar por questões psíquicas é também

marcada pelas questões sociais. O que estes adolescentes experienciam no âmbito social

se correlaciona com as experiências do meio familiar, juntamente com as transformações

biológicas e psíquicas. Todos estes atravessamentos interagem de uma forma que produz

variados modos de viver e ser adolescente.

Nesse sentido, pode-se pensar que a reprodução dos modelos sociais e

familiares, tal como os conflitos que perpassam a adolescência dizem de uma busca por

afirmações, questionamentos e mudanças por parte dos adolescentes. Isso pode ser visto

pela ótica de que estes adolescentes saem da infância e se deparam com exigências e

problemas antes só direcionados aos adultos. Junto às mudanças psíquicas e sociais,

aparece também a sexualidade que é aflorada não por se tratar somente de uma questão

Page 8: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

8

biofisiológica, mas igualmente pela interação de todos estes mecanismos que compõe a

adolescência.

O âmbito familiar pode tornar-se um gerador de conflitos ou de reprodução do

modelo proposto pela família na adolescência, sendo que novas dinâmicas familiares

acabam por surgir, pois os filhos não são mais crianças e suas cobranças, desejos e

comportamentos atingem diretamente aos pais de uma forma diferente do que acontecia

na infância. Os pais, tal como os adolescentes que vivem lutos nessa fase transitória,

vivenciam também o luto pela função parental infantil, do corpo do adulto que está

envelhecendo e pela sua identidade (Knobel, 1992). Portanto, a maneira como os pais

passaram por suas próprias adolescências remete ao modo como imaginam as

experiências que seus filhos irão ter e, conseqüentemente, na maneira como agirão como

pais destes adolescentes.

Nessa perspectiva, a família que é entendida aqui como uma formação variante,

uma vez que pensa-se não existir um modelo único de família. Na verdade a família

poderia ser vista como uma linha entre as famílias hierárquicas e as igualitárias, nessa

linha teriam variadas formas de constituições familiares. A família, nesse sentido, aparece

como a mola propulsora para as construções da identidade dos adolescentes, uma vez

que cada modelo de família comunga de hábitos que se diferem. No entanto, estas

variações familiares podem também se encontrar em algum ponto de convergência.

Essas possibilidades são igualmente um meio de troca do âmbito social com o familiar,

entende-se que há uma contínua relação entre ambos e estes atravessamentos que dão

caráter diferente à família, a sociedade e a própria construção da adolescência.

Portanto, diante destes vários modelos familiares, como o adolescente percebe

as construções familiares? Qual o papel deste adolescente frente às mudanças ao longo

dos tempos nas formações familiares? E como estes adolescentes pensam a família de

origem e a futura família? Entende-se, então, que essas questões orientam esta pesquisa

Page 9: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

9

e serão respondidas ao longo deste trabalho baseado nos referenciais teóricos

juntamente com as entrevistas realizadas com os adolescentes.

Optou-se por dividir os capítulos começando por uma historização da família

brasileira (capítulo 1). Em seguida foram abordadas as características da adolescência

(capítulo 2). Ao final será apresentada uma análise de dados baseada nas entrevistas na

tentativa de correlacionar a temática da família pela ótica dos adolescentes (capítulo 3).

Page 10: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

10

CAPÍTULO 1 - ARRANJOS FAMILIARES: UMA PERSPECTIVA A

PARTIR DO CENÁRIO BRASILEIRO

Tal como demonstra Cerveny (2000), os conceitos de família apresentados no

dicionário Aurélio (FERREIRA, 1986, p. 287) são os de “pessoas aparentadas, que vivem

em geral na mesma casa, particularmente o pai, a mãe e os filhos; pessoas do mesmo

sangue; ascendência, linhagem, estirpe”. São estes conceitos que embasam o construto

inicial do entendimento de família. A partir destas formas conceituais, pode-se pensar nas

construções familiares que seguem este padrão e/ou as que fogem dele, uma vez que a

família brasileira passou por construções e reconstruções na sua forma.

Existem variados modos de formações familiares, tal como a família a nuclear, as

monoparentais femininas, as monoparentais masculinas, as reconstruídas, entre outras

tantas formas que intercalam entre as dinâmicas hierárquicas e as igualitárias. No

entanto, pode-se perceber modelos que correspondem ao formato mais comum

considerado como ideal, tal como as nucleares, onde a tríade – pai, mãe, filho – se

constitui como a base do modo que as famílias são compreendidas. Neste modelo, os

papéis são definidos a partir de relações embasadas nas diferenças de hierarquia, gênero

e idade. Em contrapartida, as famílias podem também aparecer como nucleares, mas

com os conceitos não de uma família hierárquica, mas nos moldes igualitários. Neste

ponto, pode-se criar diversas formas que conseqüentemente dão um lugar e uma

possibilidade de construção identitária a seus membros, a partir de regras estabelecidas

nessas relações.

A família brasileira, que teve sua construção herdada de um modelo colonial

português, incorporou os métodos e modos destas famílias portuguesas. Estas, por sua

Page 11: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

11

vez, estavam embasadas em modelos patriarcais, que buscavam preservar tradições e

acima de tudo procuravam conservar a propriedade e consolidar as posses. A partir daí é

que se começa a estruturação da conjuntura familiar brasileira (SAMARA, 1998).

De acordo com a literatura, a família brasileira seria o resultado da transplantação e adaptação da família portuguesa ao nosso ambiente colonial, tendo gerado um modelo com características patriarcais e tendências conservadoras em sua essência (SAMARA, 1998, p. 7).

Diante disso, percebe-se que as formações familiares brasileiras se confundem

com a colonização portuguesa e os modelos trazidos por ela no período colonial. As

casas-grandes abrigavam não só a família nuclear, mas também parentes sanguíneos

mais distantes, afilhados, empregados e escravos. E estas eram consideradas como

famílias patriarcais e extensas. Essa conjuntura se deu bastante devido ao status que era

empreendido aos patriarcas pela idéia de conservação da família, pelo grande número de

pessoas dependentes de seus mandos e pela possibilidade de ascensão política.

A anexação desses elementos e a manutenção de relações entre seus diversos componentes estavam basicamente relacionadas com laços de sangue, parentesco fictício e um complexo sistema de direitos e deveres. Dada a sua importância, a vinculação a esses agrupamentos permitia uma maior participação política, social e econômica na ordem paternalista (SAMARA, 1998, p. 14).

Juntamente a este modelo estava a idéia de que o papel da mulher neste

contexto era a de aceitar e realizar os deveres referentes a cuidados da casa e dos filhos.

“As mulheres depois de casadas passavam da tutela do pai para a do marido, cuidando

dos filhos e da casa no desempenho da função doméstica que lhe estava reservada”

(SAMARA, 1998, p. 14). Esse modelo de família foi repassado e reproduzido de tal forma

até o século XIX que as mulheres passaram a ser vistas como subordinadas e os homens

como soberanos na hierarquia familiar.

Page 12: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

12

Ao passar da história nota-se que as relações sociais, econômicas, políticas,

entre outras, serviram como propulsoras de mudanças para novas constituições

familiares. Tal como mostra Samara (1998), as famílias extensas e patriarcais do começo

da colonização brasileira não eram modelos únicos, existindo também famílias nucleares,

que eram em sua maioria constituídas por filhos ilegítimos de concubinas ou filhos de pais

solteiros.

Na sociedade brasileira, especialmente no século XIX, os matrimônios se realizavam num círculo limitado e estavam sujeitos a certos padrões e normas que agrupavam os indivíduos socialmente em função da origem e da posição sócio-econômica ocupada. Tal fato, entretanto, não chegou a eliminar a fusão dos grupos sociais e raciais, que ocorreu paralelamente através das uniões esporádicas e da concubinagem (SAMARA, 1998, p. 42).

Isso trouxe outra faceta da sociedade brasileira, a de que a mulher não era tão

submissa, tendo um lugar ainda restrito, porém com alguma autonomia, já que eram mães

solteiras e/ou viviam em concubinagem. Houve como conseqüência mulheres sendo

chefes de família, uma vez que era referência para seus filhos e que os pais pouco ou

nunca participavam da criação e do provento econômico dos filhos. “[...] a própria

natureza do sistema patriarcal e a divisão de incumbências, no casamento, criaram

condições para a afirmação da personalidade feminina, dada a sua influência direta junta

à família” (SAMARA, 1998, p. 57).

A autora usa dados históricos da cidade de São Paulo para demonstrar que o

que ocorria nos modelos familiares das áreas rurais do nordeste não acontecia da mesma

forma na sociedade paulista, uma vez que apareciam formatos diferentes das famílias

extensas e patriarcais. Em São Paulo mostravam-se características que fugiam desta

noção de família, pois se começava a configurar modelos de família nucleares,

monoparentais femininas e/ou masculinas. Diante disso, o que se pode perceber é que as

famílias brasileiras que têm o conceito de ser predominantemente patriarcais foram

Page 13: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

13

também estruturadas de forma tal que se esquivavam destes padrões e que trouxeram

consigo novos modelos e maneiras de construção familiar.

Atualmente esta constituição patriarcal é possivelmente percebida como uma

instituição familiar que também sofre mudanças na sua organização e no modo como as

relações ocorrem e igualmente como são estabelecidas, já que são vistas formações que

fogem ao modelo patriarcal, tal como também ocorreu na época da colonização brasileira.

Nos dias atuais pode-se citar famílias em que o sustento provém da mulher, casais

homossexuais que constroem famílias, pais e mães solteiros ou separados que criam

seus filhos sozinhos, entre outros tantos modelos de família que vão se configurando no

cenário da sociedade brasileira.

A despeito da aprovação do divórcio em 1977, as relações conjugais não formalizadas legalmente generalizaram-se. As separações e os novos casamentos aumentaram o número de pessoas que viviam com parceiros que não eram os pais ou as mães dos próprios filhos. [...] Além dos casais homossexuais, conquistaram seu espaço as pessoas que viviam sós, livres de estigma de solteirões, as mães solteiras e os descasados de ambos os sexos que, juntamente com o exercício simultâneo de alguma atividade remunerada, assumiram a criação dos filhos sem a presença cotidiana de um parceiro (VAITSMAN, 1994, p. 13).

Estes valores que vêm sendo reorganizados nas constituições familiares

aparecem devido às possibilidades de escolha de como formar uma família, ou até

mesmo pela probabilidade de não se constituir uma família nos moldes vistos como

ideais. A família é um lugar onde os construtos sociais perpassam e com estes surgem

novos arranjos familiares a partir das possibilidades de escolha, mesmo que estas

famílias estejam carregadas de tradições e conceitos arcaicos.

Também na modernidade as famílias foram se modificando e o conceito de

indivíduo foi prevalecendo sobre o entendimento de família, sociedade e coletivismo. As

relações passam a ser marcadas por construções que priorizam o individual, fazendo com

Page 14: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

14

que a família também sofra modificações. Como demonstra DaMatta (1987), a família por

ser mais um meio de correlação com a sociedade traz consigo não só a capacidade de

individualização, mas também e principalmente de construção de valores. E estes que

também se configuram nos aspectos da individualidade e liberdade de escolha.

O desenvolvimento da individualidade vincula-se ao da sociedade moderna, com a eliminação de barreiras de status, religiosas, o declínio da autoridade paterna e a liberdade de mobilidade, seja social ou geográfica. Ampliou-se o círculo de pessoas que se tornaram passíveis de escolha como parceiros no casamento, ampliando também a liberdade de escolha (VAITSMAN, 1994, p. 34).

Essa possibilidade de escolha faz com que os modos de se pensar e se fazer o

casamento se transformem, podendo ser vistos a partir do amor e da vontade de cada

indivíduo de querer ou não se casar. A probabilidade dos casamentos acontecerem e

igualmente se desfazerem a partir da vontade de querer formar uma família é o que vai se

configurar nesse cenário da sociedade moderna.

Diante disso, houve uma crise na base da formação de família, uma vez que a

probabilidade desse ‘ser feito um para o outro’ poderia não dar certo, conseqüência de

uma instabilidade causada por ideais de liberdade, individualidade e igualdade que se

configuraram na modernidade. Ou seja, diante destes conceitos estabelecidos na

sociedade moderna, a instabilidade do ideal de amor e conseqüentemente da noção de

casamento tornam-se fatos, uma vez que os sujeitos já não tinham a certeza de que havia

um outro que correspondesse a seus desejos à altura dos ideais ditados pela

modernidade. Outros norteadores dessa crise do ideal de amor são citados por Vaitsman

(1994, p. 35): “O tipo moderno de família e casamento entrou em crise porque foram

abalados seus fundamentos: a divisão sexual do trabalho e a dicotomia entre público e

privado atribuída segundo o gênero”.

Page 15: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

15

A camada média sentiu com as transformações ocorridas não só no âmbito

familiar, mas no contexto social, político, econômico, cultural entre outros uma mudança

no modo como as concepções já estabelecidas estavam sendo reconstruídas e

reformuladas. Essa pesquisa se baseia no recorte da camada média urbana belo

horizontina, que se encaixa nos modelos que vivenciam essas mudanças. Nesse aspecto,

Vaitsman (1994, p. 13) pontua que

Estas transformações difundiram-se entre homens e mulheres urbanos, portadores de valores individualistas, antiautoritários e igualitários, que geralmente cursaram a universidade, comparte um certo discurso e fazem parte de segmentos sociais com uma certa identidade sócio-cultural.

Nota-se que a camada média urbana vive estas transformações justamente por

estas características sócio-econômicas-culturais que a cercam e que a diferenciam de

outras camadas da sociedade brasileira, uma vez que o modo como se vivenciam essas

mudanças estão intimamente ligadas aos valores de individualidade. Existe neste

entendimento uma divisão entre o que é público Χ privado e o que é social Χ subjetivo.

DaMatta (1997) faz uma analogia que exemplifica essa dicotomia entre o público e o

privado, o social e o subjetivo quando traz a noção de rua e casa. Para DaMatta (1997), a

rua é a amostra da dinamização e de novas criações da sociedade, já a casa tem o

caráter de reprodutor de modelos e padrões.

De fato, a categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão em seus devidos lugares. Por outro lado, a rua implica movimento, novidade, ação, ao passo que a casa subentende harmonia e calma: local de calor (como revela a palavra de origem latina lar, utilizada em português para casa) e afeto. E mais, na rua se trabalha, em casa se descansa [...] Na casa, temos associações regidas e formadas pelo parentesco e relações de sangue; na rua, as relações têm um caráter indelével de escolha, ou implicam essa possibilidade (DAMATTA, 1997, p. 90-91, grifos do autor).

Page 16: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

16

Frente a essa formulação sobre o público e o privado de DaMatta (1997),

formam-se famílias baseadas nessas dicotomias que, por sua vez, geram valores e

modelos considerados modernos e que buscam igualdade entre os gêneros em todos

âmbitos. Ocorre, então, uma busca por divisões igualitárias não só no contexto familiar (a

casa), mas também no âmbito social (a rua), mercado de trabalho, nas escolas, entre

outros. A sociedade oferece um modelo de família a ser seguido e reproduzido, ao

mesmo tempo em que gera transformações vindas do vai e vem das ruas. Da mesma

forma, as famílias vêm também se reconfigurando e modificando a partir da convivência

no cotidiano dentro da própria casa e de seus entrelaços com as construções sociais.

Acontecem, portanto, várias concepções de família, mas que, contudo, estão

embasadas nas mudanças ocorridas desde a época colonial brasileira. Pois, não se pode

pensar em modelos familiares substituindo uns aos outros, mas sim em interpretações

diferentes ao modo de se relacionar enquanto família. “[...] nas condições de vida atuais

não existe mais um modelo dominante de famílias, pois nenhuma estrutura ou ideologia

surgiu para substituir a família moderna” (STACEY apud VAITSMAN, 1994, p. 52).

Portanto, pode-se perceber que a família, na sociedade brasileira, é como

pontua DaMatta (1997) o local do aconchego, “minha casa é o local da minha família, da

‘minha gente’ ou ‘dos meus’, como falamos coloquialmente no Brasil” (DAMATTA, 1997,

p. 93), mas é da mesma forma o local onde “[...] a casa, como uma totalidade, revela um

conjunto de espaços onde uma maior ou menor intimidade é permitida, possível ou

abolida” (DAMATTA, 1997, p. 91). Isso deixa clara a relação entre a influência das

transformações sociais e as mudanças nos modelos familiares. No entrelace ocorrem

novos arranjos e possibilidades para um entendimento e vivência de família.

Nesse aspecto a adolescência é vista como uma produção deste âmbito familiar

e das relações ocorridas nas interações com a sociedade e a cultura. Desta forma,

entende-se como necessária um estudo sobre a adolescência e a influência que esta

Page 17: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

17

família de origem tem na constituição deste adolescente e igualmente na extensão que

pode acarretar na idealização de uma futura família.

Page 18: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

18

CAPÍTULO 2 - O QUE É A ADOLESCÊNCIA: UMA DISCUSSÃO

TEÓRICA

Na modernidade a idéia de adolescência se transformou, uma vez que com ela

veio o ideal de independência, de individualidade e conseqüentemente de uma busca por

uma identidade do adolescente. Essas características dos adolescentes são compatíveis

aos ideais que perpassam na família e na sociedade, já que em ambas, na modernidade,

estes ideais estão presentes. Para Calligaris (2000), “instigar os jovens a se tornarem

indivíduos independentes é uma peça-chave da educação moderna”. A interação entre a

subjetividade dos adolescentes com as construções sociais faz com que cada experiência

vivenciada por estes tenha um significado diferente, uma vez que os contextos culturais,

sociais, econômicos e políticos têm uma importância nos valores, na moral e na ética

construídos. Há também variações em aspectos que tangem a classe, o gênero, a

raça/etnia, a construção do âmbito familiar, entre outras questões que perpassam a

subjetividade dos adolescentes.

No entanto, como essa adolescência criada na modernidade é vista pela

sociedade? Como se estabelece o que é a adolescência? Onde ela inicia e como acaba?

Existem vários autores que priorizam uma visão generalista e universalista que categoriza

a adolescência como uma fase necessária para uma passagem entre a infância e a fase

adulta. Porém, podemos pensar a adolescência

[...] como efeito de uma relação/ação e não como uma substância dada a priori, com características internas e psicológicas dadas, mas construídas a partir de um olhar adultocêntrico sobre ele e das respostas dadas pelos jovens a esse tipo de olhar (MAYORGA, 2005, p.23).

Page 19: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

19

A partir deste olhar, pode-se entender a adolescência como algo construído

socialmente, ou seja, este conceito veio ao longo da história se modificando de acordo

com as construções ocorridas no meio social, cultural, familiar, político e econômico.

Diante disso, tem-se uma idéia dessa fase que entende que são nas interações sociais

que são construídos os modos de ser adolescente. A adolescência, por sua vez, é uma

atitude cultural, é uma postura do ser humano durante uma fase de seu desenvolvimento,

que deve refletir as expectativas da sociedade sobre as características deste grupo. A

adolescência, portanto, é um papel social. E esse papel social de adolescente pode ser

ou não simultâneo à puberdade.

Erikson (1987), para explicar o momento de incerteza quanto às mudanças que

se fazem presentes na adolescência, postula o conceito de crise de identidade, que é

reconhecida como um momento característico do desenvolvimento humano. Apesar de

identificar oito estágios psicossociais de desenvolvimento, onde a aquisição de novas

habilidades e atitudes são vividas como crises de aprendizagem e de interação social, é

na adolescência que ocorre a integração da identidade psicossocial. Essa integração faz

com que haja uma repetição das quatro crises vivenciadas na infância, assim como dá

base para as três crises que ocorrerão na idade adulta. Diante disso, Erikson (1987)

formula o conceito de moratória, que é o período onde o adolescente pode aguardar a

liberação dos adultos enquanto se prepara para exercer outros papéis na idade adulta.

Nesse sentido Erikson (1987) postula que os adolescentes buscam por uma

continuação do que já havia aprendido, contudo existe agora uma maturidade sexual. Isso

pode acarretar em um retorno as crises da infância para que estes adolescentes possam

incluir novos ídolos e ideais de uma identidade que pretendem que seja a que finalize as

crises. Diante disso Erikson (1987) diz que os adolescentes necessitam da experiência da

moratória como uma forma de integrar estes elementos da identidade que se

embaralharam na transição da infância para a adolescência. Erikson (1987) entende que

Page 20: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

20

a moratória seria uma forma de elaborar as exigências que vêm dos âmbitos familiares e

sociais. No estado de moratória, os comprometimentos são postergados e os

adolescentes debatem-se com temas profissionais ou ideológicos, pois estão passando

por uma crise de identidade e não definiram suas escolhas.

Eles precisam, sobretudo, de uma moratória para a integração dos elementos de identidade atribuídos nas páginas precedentes às fases da infância; só que, agora, uma unidade mais vasta, indefinida em seus contornos e, no entanto, imediata em suas exigências, substitui o meio infantil: a “sociedade”. Uma recapitulação desses elementos é também uma lista de problemas adolescentes (ERIKSON,1987, p. 129).

Segundo Erikson (1987), o jovem da modernidade se depara com uma

permanência mais prolongada na adolescência, uma vez que a sociedade impõe um

maior tempo de escolaridade e preparação profissional. Isso acarreta em uma mudança

de vivência das fases, pois – de acordo com a abordagem eriksoniana – os jovens

passam a reviver os conflitos do início da adolescência num momento em que se deveria

viver o final desta. Isto porque há uma intensificação e conscientização dos seus conflitos

juntamente com as mudanças fisiológicas e hormonais. Para uns adolescentes, esta

passagem, os acontecimentos de crescimento e esquecimento passam a ser tão difíceis

de aceitar que alguns deles continuam agarrados ao ideal de “uma juventude eterna,

aquela da criança todo-poderosa e triunfante” (HUERRE, 1998, p.17). Segundo Erikson

(1987) os adolescentes buscam estabelecer suas vontades livremente, decidir sobre os

caminhos a serem tomados, uma vez que não pretendem ser forçados a ir por um rumo

que possa fazer com que eles passem por experiências que os envergonhem ou que os

coloque em situações desagradáveis.

Calligaris (2000) pontua que a adolescência teria um começo bem enfatizado se

pensássemos somente na puberdade, que é uma mudança fisiológica, como o início da

adolescência. Na puberdade, ocorrem transformações no corpo do adolescente, há um

Page 21: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

21

amadurecimento dos órgãos sexuais e também mudanças hormonais. Já na

adolescência, podem acontecer estas mudanças fisiológicas, contudo é também

caracterizada por mudanças psicossociais.

De fato, a transformação trazida pela puberdade é considerável. Tanto do ponto de vista fisiológico quanto da imagem de si que deve se adaptar a essa mudança. Basta lembrar a chegada dos desejos sexuais (que já existiam, mas que são agora reconhecidos como tais pelos próprios sujeitos) e, aos poucos, a descoberta de uma competição possível com os adultos, tanto na sedução quanto no enfrentamento (CALLIGARIS, 2000, p. 20).

No entanto, a adolescência não tem um tempo definido para seu fim, se

caracteriza por um tempo de transformações que não se sabe ao certo quando irão

acabar; a única certeza presente na adolescência é a de que estes adolescentes perdem

a segurança que tinham quando criança e já não têm a garantia do amor e do

reconhecimento dos seus pais. A partir disso, formulam novas formas de ser, procurando

se encaixar nos referenciais da sua infância e do desejo de seus pais. Essa insegurança

pode acarretar em comportamentos que busquem este reconhecimento que tinham

quando criança na tentativa de ter um papel bem delimitado em sua família.

As exigências da sociedade de uma ruptura dos jovens com as experiências da

adolescência/infância e para a passagem definitiva para a fase adulta geram, do mesmo

modo, uma revivência pelos conflitos da infância para a adolescência. Esses conflitos são

gerados por uma moratória imposta pelos adultos aos adolescentes, uma vez que na

infância prepara-se este sujeito para tarefas que só poderão ser realizadas (sem ser

marginalizadas) depois da adolescência. Diante disso, ocorre uma embaraçosa noção de

que há um dilema entre o que os adultos idealizam sobre a adolescência e o que os

próprios adolescentes pensam para suas vidas. Este dilema aparece no sentido do que é

ser um sujeito com possibilidades de amar, trabalhar e produzir, porém a moratória

imposta faz com que essas possibilidades advindas da maturação corporal do

Page 22: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

22

adolescente sejam barradas e freadas. Isto leva os adolescentes aos conflitos nesse

tempo de moratória.

Enfim, esse aprendizado mínimo está solidamente assimilado. Seus corpos, que se tornaram desejantes e desejáveis, poderiam lhes permitir amar, copular, e gozar, assim como se reproduzir. Suas forças poderiam assumir qualquer tarefa de trabalho e começar a levá-los na direção de invejáveis sucessos sociais. Ora, logo nesse instante, lhes é comunicado que não está bem na hora ainda (CALLIGARIS, 2000, p. 15).

A adolescência, tal como entende Calligaris (2000), é um tempo de moratória,

pois os adolescentes ficam entre realizar o que a sociedade moderna prega como ideal –

que é a liberdade de expressão, independência e individualidade – e ao mesmo tempo,

esperar pelo tempo que a mesma sociedade moderna entende como certo, pois há o

entendimento de que existe a maturação do corpo, mas não se percebe que há

maturidade nos adolescentes.

Por entender a adolescência como um tempo de moratória, pode-se pensar num

momento em que há uma transição entre o que é ser criança e o que é ser adulto.

Entretanto, a adolescência é carregada por idealizações por parte de uma sociedade

moderna que prega valores que às vezes se tornam inacessíveis aos jovens. Desta

forma, cria-se uma idéia de que a adolescência seria uma fase passageira e de que os

conflitos e dilemas tidos nela não passariam ou atingiriam a fase adulta. No entanto, esta

idéia da adolescência formou-se cheia de incertezas e arbitrariedade.

Em outras palavras, há um sujeito capaz, instruído e treinado por mil caminhos – pela escola, pelos pais, pela mídia – para adotar os ideais da comunidade. Ele se torna um adolescente quando, apesar de seu corpo e seu espírito estarem prontos para a competição, não é reconhecido como adulto. Aprende que, por volta de mais dez anos, ficará sob a tutela dos adultos, preparando-se para o sexo, o amor e o trabalho, sem produzir, ganhar ou amar: ou então produzindo, ganhando, amando, só que marginalmente (CALLIGARIS, 2000, p. 15 - 16).

Page 23: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

23

Essa moratória imposta aos adolescentes gera sentimentos por parte destes que

podem ser considerados como rebeldia, revolta, entre outros adjetivos pejorativos. No

entanto, para Calligaris (2000, p. 24), a insegurança é gerada por uma falta demarcada de

um lugar e um papel na família e na sociedade, pois “por conseqüência, ele não é mais

nada, nem criança amada, nem adulto reconhecido”. Diante disso, grande parte das

dificuldades percebidas entre adolescentes e adultos vem dessa insegurança. Essa

contradição dos adultos em relação à adolescência gera uma confusão para os próprios

adolescentes, pois estes não sabem mais quais referenciais devem seguir para

corresponder aos adultos e até mesmo para sair dessa moratória. Huerre (1998, p. 42)

retoma Winnicott que dizia: “Se a criança deve tornar-se adulta, essa passagem se

realizará sobre corpo de um adulto morto”. Essa passagem contraditória para um

adolescente que tem o corpo preparado para as várias possibilidades de experiências

iguais às vivenciadas pelos adultos, torna-o dessa forma um jovem com corpo de adulto,

mas um adulto que não pode realizar o que lhe é oferecido.

Uma explicação para a contradição presente nos adultos é a tentativa de cercar

o que foi reprimido por eles em suas próprias adolescências, pois a possível rivalidade

existente entre os adolescentes com seus pais pode fazer com que estes últimos tenham

que relembrar e repensar suas próprias experiências e vivências adolescentes. A partir da

falta de respostas por parte dos adultos para os adolescentes, estes começam a

interpretar o que de fato os adultos querem deles e, no entanto, acabam por descobrir

conteúdos reprimidos que, muitas vezes, os adultos não querem ou não estão preparados

para saber. Daí, a repressão e a moratória impostas na tentativa de que nada disso venha

à tona. Em suma, o adolescente é levado inevitavelmente a descobrir a nostalgia adulta

de transgressão, ou melhor, de resistência às exigências antilibertárias do mundo. Ele

ouve, atrás dos pedidos dos adultos, uma realização de seus desejos, em conseqüência

disso, o adolescente atua (CALLIGARIS, 2000).

Page 24: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

24

Huerre (1998) entende que as imposições dos adultos sobre os adolescentes

servem como uma maneira de colocar o jovem como o causador do retorno de questões

deixadas no passado. No entanto, este não é um processo definido na vivência da

adolescência, pois as experiências de uma geração a outra sofrem mutações, ou seja,

são vividas de modos diferenciados. Pontua que mesmo havendo as relações e

atravessamentos da sociedade e da família, ambas muitas vezes articulam ou validam as

repetições. Porém, mesmo com as influências recebidas por todos estes atravessadores

na vivência da adolescência, tem que se pensar que há um sujeito ativo neste entrelace e

que este tem a possibilidade e capacidade de mudar, reformular e até mesmo reproduzir

tudo que lhe é repassado. Isso demonstra que o jovem vive essa moratória e é visto como

um sujeito em desenvolvimento, ou seja, ainda está na inércia, vivendo em constantes

transformações. Para Mayorga (2005), estes jovens são vistos como um “estranho”

O adolescente é, em nossa sociedade, o não adulto, aquele que não goza ainda de determinadas qualidades e habilidades e, portanto, privilégios: racionalidade, centramento, maturidade, capacidade, maturação sexual. A relação de poder que se estabelece entre adolescentes e adultos é clara e tem conseqüências [...] de exploração, dominação e deslegitimação desses sujeitos. Para ser tratado como igual esse jovem deve assumir e internalizar os valores e práticas do mundo adulto (MAYORGA, 2005, p. 22, grifos da autora).

Tal como demonstra Huerre (1998), o adolescente quer ao mesmo tempo ser

reconhecido como adulto, podendo, dessa forma, concretizar o que é aceito para os

adultos, tal como a vivência da sexualidade e o trabalho. Por outro lado, quer continuar

tendo a segurança que os pais davam a ele quando era criança. Para Huerre (1998, p.

24), o adolescente “nunca teve tanta necessidade de estar perto deles e nunca teve tanta

necessidade de estar distante”. Então, da mesma forma, as interpretações dos

adolescentes em relação ao que os adultos querem ou não deles são facilitadas a partir

do momento que a sociedade reproduz estes desejos reprimidos dos adultos. A

Page 25: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

25

adolescência não é marcada apenas por dificuldades, crises, mal-estares, angústias. Ao

se abandonar a atitude infantil e ingressar no mundo adulto, há uma série de acréscimos

no rendimento psíquico. Pode ocorrer confronto de maneira saudável, o adolescente

internalizará o valor desta experiência de forma positiva, o qual passará a fazer parte de

sua identidade.

Uma sociedade moderna que cultua valores tais como a individualização e a

independência acarretam na adolescência um sentido ambíguo, pois ao mesmo tempo

em que esses ideais são repassados aos adolescentes, estes mesmos são negados a

eles. Essa contradição gera percepções de que diante do que a sociedade oferece aos

adolescentes, este deveria passar por esta fase como um sujeito feliz, uma vez que essa

mesma sociedade proporciona formas infindáveis de consumo. “Uma cultura em que a

autonomia e a independência são os valores centrais e mais exaltados só pode se

transmitir por um duplo vínculo, ou seja, por uma consignação paradoxal e contraditória”

(CALLIGARIS, 2000, p. 28). E sendo o consumo, na sociedade contemporânea, o meio

de realização de muitas frustrações, o adolescente deveria então viver esse momento em

plena felicidade.

Diante disso, Calligaris (2000, p. 18) demonstra que “tal contradição torna-se

ainda mais enigmática para o adolescente na medida em que essa cultura parece

idealizar a adolescência como se fosse um tempo particularmente feliz”. Isso faz parecer

que os adultos requerem dos adolescentes uma autonomia – porém esta lhes é recusada

na moratória – e essa autonomia e independência que não estão à altura dos

adolescentes é o que traria a felicidade nessa fase. Nesse sentido, “o adolescente é

levado a concluir que o adulto quer dele revolta. E a repressão só confirma nele essa

crença, apenas acrescentando a constatação de que o adulto repressor é hipócrita”

(CALLIGARIS, 2000, p. 30). Desta forma, alguns conflitos podem aparecer durante a

construção da identidade do adolescente. O rumo que ele dá para sua vida acaba tendo

Page 26: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

26

influências da família e da sociedade, as quais cobram de cada pessoa um papel social,

preferentemente definido e o mais definitivo possível. Numa fase onde a identidade do

adolescente ainda não se completou fica difícil falar em papel social definitivo.

Para o adolescente se constituir como um adulto e, conseqüentemente, tentar ter

a noção do que pode ser e fazer de suas vivências e experiências, este necessita de uma

estrutura familiar que dê embasamento de apoio. Tal como demonstra Huerre (1998),

estes adolescentes são atravessados por desejos e projetos que suas famílias fazem para

eles desde a infância, ou até mesmo anteriormente ainda no patamar da idealização.

Portanto, na adolescência este sujeito terá que distinguir o que é de sua vontade em

busca da sua própria identidade. Os adolescentes tendem também nesse momento da

vida a se rebelar e podem elaborar um conjunto de valores inusitados e, quase

propositadamente, contrário a valores até então tidos como corretos. Pois, quando o

adolescente se depara com forças contrárias, ocorrerá a inevitável disputa para ver quem

pode vencer.

A adolescência, portanto, deve ser compreendida como um processo de

transição biopsicossocial da infância para a idade adulta, onde estão presentes

influências históricas e culturais na constituição do sujeito. As modificações subjetivas dos

adolescentes ocorrem através da reformulação de fatores psicológicos internalizados,

mas com uma forte influência dos aspectos culturais e sociais referentes aos hábitos

urbanos difundidos na sociedade. Sendo assim, parece errôneo falar-se de uma única

fase adolescente, uma vez que a adolescência é antes um processo formulador da

identidade corporal, social, sexual e afetiva, do que apenas um momento de crises e

revoltas.

Desta maneira, a forma como os adolescentes e seus pais se relacionam nessa

fase pode direcionar os adolescentes no que concerne a sua futura constituição familiar,

pois a família moderna reproduz os conceitos de autonomia e independência que são

Page 27: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

27

comungados na sociedade. Portanto, os aprendizados experienciados, tanto no âmbito

familiar como na sociedade, dão embasamento às características destes adolescentes.

Uma vez que a família “é a grande porta-voz do duplo vínculo moderno” (CALLIGARIS,

2000, p. 64), o papel que os adolescentes têm na família é construído a partir dessas

relações atravessadas por estes conteúdos sociais, familiares e individuais.

Page 28: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

28

CAPÍTULO 3 - ANÁLISE DE DADOS: O IDEAL DA FAMÍLIA DE

ORIGEM E DA FUTURA FAMÍLIA

Este trabalho pretende discutir a significação construída por adolescentes sobre

a família contemporânea, entendendo que é preciso conhecer tal realidade a fim de re-

pensar e projetar os variados arranjos familiares. O objetivo geral é o de identificar e

interpretar como os adolescentes das camadas médias de Belo Horizonte significam a

família contemporânea. Tem como objetivos específicos estudar as transformações da

família contemporânea, compreender a significação atribuída pelos adolescentes a sua

família de origem, investigar a família que os adolescentes pensam para si próprios,

identificar e compreender os pontos de convergência e de divergência entre a família de

origem dos adolescentes e a família que pensam para si mesmos.

Para a realização deste, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com

quatro adolescentes com idade entre 14 e 19 anos das camadas médias de Belo

Horizonte, de ambos os sexos, buscando entender a perspectiva dos adolescentes sobre

a questão da família. Os entrevistados caracterizam-se por estudar em escolas

particulares ou públicas, estarem regulares, e também por comungarem de hábitos

correspondentes aos direcionados ao público jovem urbano. São em sua maioria

pertencentes a famílias nucleares (mãe, pai e filhos) e famílias monoparentais femininas.

Na análise de dados foram usados nomes fictícios para todos os adolescentes, buscando

manter o sigilo e preservar sua identidade. Há, da mesma forma, uma caracterização dos

adolescentes com o intuito de melhor localização das falas.

Dos quatro adolescentes entrevistados, Laura, de dezessete anos, cursa o

segundo ano do ensino médio em escola particular, os pais são casados, mas o pai viaja

Page 29: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

29

a trabalho e vem quinzenalmente aos finais de semana, tem dois irmãos mais novos. O

segundo entrevistado é Carlos, de dezesseis anos, cursando o segundo ano do ensino

médio em escola particular, a mãe é solteira, mas vivem na casa onde ela trabalha com

doméstica, foi criado junto com essa família – que é nuclear – desde seu nascimento, não

conhece o pai biológico. Na casa em que ele mora a família é composta pelo pai, a mãe e

dois filhos mais velhos que Carlos. A terceira é Raquel, de dezesseis anos, cursa a oitava

série do ensino fundamental em escola pública, tem uma irmã mais nova, os pais são

casados, porém o pai mora em outra cidade por conta do trabalho e vem a Belo Horizonte

de uma a duas vezes por mês. O quarto é Bruno, de quinze anos, cursa o primeiro ano do

ensino médio em escola particular, tem uma irmã gêmea, seus pais são casados e moram

juntos, há também uma funcionária doméstica que reside na casa.

As entrevistas foram analisadas através do método de análise de conteúdo, que

é entendido como “um método de tratamento e análise de informações, colhidas por meio

de técnicas de coleta de dados, consubstanciadas em um documento. A técnica se aplica

à análise de textos escritos ou de qualquer comunicação (oral, visual, gestual) reduzida a

um texto ou documento” (CHIZZOTTI, 1991, p.98). Além desse entendimento, Bardin

(1997) postula que o método de análise de conteúdo pode ser compreendido não só

como um método uniforme, uma vez que se trata igualmente de um conjunto de técnicas

de análise das variadas formas de comunicação. Diante disso, diz também que a análise

de conteúdo deve não ser vista somente como um instrumento, e sim como “um leque de

apetrechos; ou, com maior rigor, será um único instrumento, mas marcado por uma

grande disparidade de formas e adaptável a um campo de aplicação muito vasto: as

comunicações” (BARDIN, 1997, p.31).

Percebeu-se através das entrevistas a perspectiva dos adolescentes sobre suas

famílias e da mesma forma como estes jovens entendem essa travessia da infância à fase

adulta. Para Huerre (1998), tudo o que foi vivido e experienciado na adolescência faz com

Page 30: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

30

que o jovem se perca em partes sobre a sua origem e sobre o que é seu e da sua família.

O adolescente então “é como um órfão, em luto pelas imagens dos adultos tais como ele

os via antes, da imagem que ele tinha de si mesmo como criança, e do mundo tal como

ele representava até então” (HUERRE, 1998, p. 60).

Essa passagem acaba acarretando em ideais construídos sobre o ponto de vista

que estes adolescentes têm de suas famílias de origem e também da que pretendem

formar futuramente. Estes ideais perpassam pela noção de família nuclear composta

pelos pais e filhos somente, sendo estes pais os responsáveis pela educação e pelos

possíveis caminhos que estes adolescentes poderão traçar. Laura, quando diz de seu

entendimento sobre família, retoma esse ideal:

Ah! Família assim, o básico assim é pai, mãe, irmãos e uai, consciência, os pais ensinando os filhos, os filhos crescendo, os pais ensinando sobre a vida, né. O que eles passaram pra gente ter uma noção, assim de como começar a viver. Ah! Acho que é isso.

Esta fala demonstra alguns traços da família patriarcal hierárquica, que tal como

mostra Figueira (1987), até por volta da década de 1950 teria prevalecido em nossa

sociedade o ideal de família tradicional, descendente direto da família patriarcal; nela a

identidade dos membros é posicional, ou seja, é determinada pelas suas características

intrínsecas (homem e mulher, pai e filho), que os apresentam como naturalmente

diferentes, o que determina uma rígida delimitação de papéis. As regras de conduta são

definidas externamente por valores dicotômicos, em que certo e errado são muito bem

delimitados.

Page 31: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

31

No entanto, esta mesma fala aponta para uma possível amizade entre pais e

filhos, sendo essa característica presente em famílias igualitárias, nas quais os pais têm o

papel de passar conhecimento aos seus filhos, mas em um processo em que os papéis

podem ser modificados, tendo então um espaço para diálogos e conhecimentos vindos de

ambas partes. Outra fala que apresenta esse referencial é a de Bruno quando este diz:

Assim... A gente brinca, a gente conversa também, antes assim, quando a gente era menor não sei se eles conversavam menos ou se resolveram tentar de outra forma, né? Aí eles começaram aos erros que a gente, a gente eu e a minha irmã aí eles começaram a conversar assim... Aí eles começaram assim a conversar, a gente senta aqui na sala e conversa.

Outros adolescentes corroboram da mesma afirmativa e neste aspecto, Carlos

pontua que família é: “Todo mundo é bem junto assim, todo mundo almoça junto, pelo

menos tenta almoçar junto”. Para Raquel a família idealizada vem como um suporte:

“família pra gente é tudo, né! Eu acho que se você perder alguma parte da família, você

se perde totalmente, né! Eu acho que família pra gente é tudo”. Em outro momento, Bruno

diz o que entende por família: “Eu acho que é um ambiente onde se tem os pais, filhos,

avós, avôs que... Onde tem amor, comprometimento, carinho, onde um pensa no outro,

sempre junto, onde fica junto e ajuda nas horas difíceis e comparece nos momentos

bons”.

Estas definições, conforme apareceram nas entrevistas, também correspondem

a como estes adolescentes vêem sua família de origem e como eles correlacionam o que

pretendem como futura família. Nesse sentido, Laura diz: “Eu acho que se for do jeito que

eu quero, eu acho que vai ficar igual minha família de hoje”. Nessa acepção de família

pode-se perceber que estes adolescentes se balizam nas vivências familiares, uma vez

Page 32: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

32

que reportam a suas famílias de origem como ideais a seguir. Buscam através destas

relações formar o que futuramente poderia se configurar como a futura família. Diante

disso, percebe-se que essa idealização está baseada no que estes adolescentes

presenciam em suas famílias de origem. Huerre (1998, p. 51) pontua então que

Na adolescência, trata-se justamente de estabelecer ligações novas entre si e os outros, entre suas representações do mundo de ontem e aquelas das quais se tem necessidade para o amanhã. Essas questões encontraram outrora, ou encontram ainda hoje em algumas partes do mundo, modalidades de resolução graças a rituais estabelecidos que balizavam o caminho a percorrer.

Por outro lado, os conflitos também são abordados ora como corriqueiros no

cotidiano familiar, ora como acontecimentos que desestabilizam o convívio familiar. Isso

pode ocorrer pelo fato de que na adolescência acontecem mudanças na estrutura familiar

e no próprio adolescente, fazendo com que a dinâmica mude. As opiniões começam a se

confrontar, os adolescentes agora já conseguem se colocar como agentes de suas vidas

e isso pode gerar conflitos, uma vez que estes adolescentes tendem a modificar suas

visões sobre seus próprios pais e sobre o papel de cada um no âmbito familiar. Carlos diz

que:

Sempre felizes não, isso é meio difícil. Ah... ah de vez em quando eu brigo muito com a [irmã] porque ela é muito nervosa. De vez em quando é até melhor cê ficar quieto quando cê tá falando alguma coisa com ela e cê não concorda. Com o [irmão] eu que acho que assim, a gente não implica muito com o outro, então... Minha mãe, minha mãe é igual toda mãe. Ela sei lá, fica me dando uns conselhos de vez em quando, fala comigo. A [tia] também é tipo uma mãe, sempre preocupada assim... Fala assim o quê que a gente tem que fazer.

Laura fala que o seu modo de ser se diferencia muito dos seus pais e que por

conta disso ocorrem os conflitos.

Page 33: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

33

E muito porque igual procê ter noção, meu pai vai ao cinema, ele senta perto da porta porque se tiver um incêndio ele pode sair mais rápido, entendeu? Umas coisas assim. Ele é muito estranho. E eu já quero é pular de body jump, é ir em tourada, uns trem assim, sabe e meu pai ele não gosta.

Nesse aspecto, Calligaris (2000, p. 29) postula que “é normal que ninguém esteja

satisfeito com sua situação e que cada um tente melhorá-la. O adulto moderno transmite

ao adolescente não um estado onde ele poderia se instalar como se herdasse uma

moradia, mas uma aspiração”. Já para Raquel, os desentendimentos são gerados pela

falta de comprometimento de sua mãe com as promessas que faz. Nesse sentido diz que:

Ela promete muita coisa. Ela me promete coisas e não cumpre. Acho que é isso que é o problema. Esse que é o problema, porque ela chega pra mim e fala ‘Ó Raquel, ela tá assim, porque ah, eu vou te dar isso’ e fica, e fica, aí na hora que eu vou cobrar ela não gosta. Ela fecha a cara pra mim e começa a me xingar. Aí eu to assim: é, né, mãe, até arranjei um apelido pra ela, Maria das ilusões, porque ela só me ilude. Ela não cumpre nada. Então é isso, por causa disso. O desentendimento também que eu tenho é por causa de, eu também sou muito respondona e isso, qualquer coisinha que ela fala eu respondo. Qualquer coisinha que ela vem falar comigo, eu falo ‘iii, ó, mãe, não me enche o saco não’. É isso. Mas eu acho que é um pouco disso, porque ela me promete as coisas e porque eu sou muito respondona também. Ela vem me chamar atenção e eu não aceito. É isso.

Neste aspecto, Calligaris (2000, p. 24) pontua que “o adolescente perde (ou,

para crescer, renuncia) a segurança do amor que era garantido à criança, sem ganhar em

troca outra forma de reconhecimento que lhe pareceria nessa altura, devido”.

Então, o que é dito pelo adulto ao adolescente é tido como verdade, como um

contrato. E quando há a quebra deste acordo, o adolescente sente ao mesmo tempo a

desilusão sobre o que havia depositado nesse adulto – e no caso de Raquel era a palavra

dada de sua mãe. Em outros momentos, sente-se livre para designar seus próprios

caminhos, uma vez que o adulto que ele tanto confiava não correspondeu, pensa que foi

abandonado e, portanto, deve seguir sozinho. Para Huerre (1998) essa posição tomada

Page 34: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

34

pelos pais reflete em uma forma de não ter de lidar com essa passagem dos filhos da

infância para a idade adulta, pois nesse momento estes adultos tenderiam a reviver seus

próprios conflitos adolescentes. Então para estes adultos

o objetivo é não ter de suportar a inquietação que essa tempestade provoca. Inquietação sentida na época da adolescência pelo próprio adulto na sua relação com seus pais. O adolescente não pode mais contar com o adulto. Ele não tem ninguém mais em quem se apoiar ou com quem se confrontar. Alguém que fosse firme e assim servisse de ponto de referência (HUERRE, 1998, 31).

Outro aspecto recorrente nas entrevistas é a idealização do amor romântico

como sendo um caminho para o casamento e conseqüentemente para a formação de

uma família. Segundo Giddens (1993, p. 56), “O outro, seja quem for, preenche um vazio

que o indivíduo sequer necessariamente reconhece – até que a relação de amor seja

iniciada. E este vazio tem diretamente a ver com a auto-identidade: em certo sentido, o

indivíduo fragmentado torna-se inteiro”.

Na entrevista de Raquel há uma passagem que retrata isso quando esta diz do

casamento que pretende ter: “Eu pretendo só ter um né? Entrevistador: Só um? Raquel:

Só um. Mais não. Entrevistador: Por que não Raquel? Raquel: Ah! Eu acredito nesse

negócio de alma gêmea. Entrevistador: Acredita? Raquel: Acho que eu pretendo achar a

minha. Acho que se eu achar a minha eu vou ser a pessoa mais feliz do mundo. Acho que

é muito bom a pessoa encontrar a sua alma gêmea. Entrevistador: E aí com a alma

gêmea fica até morrer? Raquel: Fica”. Neste sentido, Johnson (1987, p. 79) postula que

“no amor romântico, queremos ser possuídos pelo amor, queremos pairar nas alturas e

encontrar o máximo de significado e de realização na pessoa que amamos. O que

buscamos é a sensação de plenitude”.

Em outro momento Raquel diz que a pessoa que imagina como seu futuro

marido seria sua alma gêmea e para isso ele deveria ter as seguintes características:

Page 35: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

35

Não precisa ser bonita não, mas precisa ser meu amigo e ter uma cabeça boa e um papo legal. Acho que é só isso que precisa. Não vou casar por causa de dinheiro, tenho certeza, porque cê tem que casar com uma pessoa que cê ama pro seu coração bater forte, acho que é isso que importa. Enfim, eu quero casar com uma pessoa, se for bonito bom demais, também muito bom, se for feio, não posso fazer nada, né. A pessoa que eu escolhi. Uma pessoa que goste de mim do jeito que eu sou e uma pessoa que eu vou gostar dela do jeito que ela é. É isso que importa.

Nesse sentido, para Giddens (1993), o amor romântico aparece como esse

interlocutor das relações amorosas, onde o sujeito desprende toda sua vontade de

completude no outro. “Desde suas primeiras origens, o amor romântico suscita a questão

da intimidade [...] porque presume uma comunicação psíquica, um encontro de almas que

tem um caráter reparador” (GIDDENS, 1993, p. 56). Outro adolescente que retrata isso é

Carlos: “Eu acho que o meu... Eu queria. Eu queria, né? Sei lá. Eu queria, quero um

casamento pra sempre. Eu não sei se... como é que é ficar com uma pessoa pro resto da

vida. Oh, eu espero que eu tenha só, só uma mulher pro resto da vida assim. Fazer

bodas”.

Para Johnson (1987) o amor romântico aparece como uma forma de significação

dos sentimentos que se quer experienciar e de ideais feitos sobre o desejo de saciar a

completude.

O amor romântico não é amor, mas um conjunto de atitudes que dizem respeito ao amor – sentimentos involuntários, reações e idéias. Como Tristão, bebemos da poção e caímos em seu poder: tornamo-nos presas de reações involuntárias e de ardentes sentimentos, em um estado quase visionário (JOHNSON, 1987, 70)

Nesse sentido, o amor romântico aparece como a fantasia e idealização do par

perfeito, do outro que vem como um complemento da essência de si, como se existisse

um sujeito único que viria para preencher tudo aquilo que falta em si. Mesmo na

Page 36: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

36

modernidade, com a tendência da sexualização dos relacionamentos, que junto com a

noção de igualdade e individualidade produz outros sentidos para o amor e para as

relações afetivas, pode-se perceber que talvez ainda haja uma procura por este ideal do

amor romântico (JOHNSON, 1987). Esta idealização leva a uma busca por emoções que

trazem outras formas de significações, modos de relações que fomentem o ideal que um

sujeito constrói sobre o outro. O par igualitário enfatiza a importância do companheirismo

e da amizade na relação.

Por tudo isso, a seleção individual é muito mais rígida, um fato e um direito que envolve uma inclinação totalmente pessoal. A convicção de que de toda a humanidade, duas e somente duas pessoas são ‘feitas’ uma para a outra atingiu agora um estágio de desenvolvimento de que a burguesia do século XVIII ainda não ouvira falar (SIMMEL apud VAITSMAN, 1994, p. 34).

Porém, pode-se pensar que estes adolescentes ao idealizarem o amor

romântico ainda experienciam o estágio da fantasia, uma vez que todos os entrevistados

ou estão em sua primeira relação de namoro – e todas com tempos curtos – ou ainda

nem tiveram a experiência de uma relação afetiva-sexual, ou seja, não passaram pelo

conhecimento do furor e do desapontamento das relações amorosas. Segundo Johnson

(1987, p. 74), “este descontentamento lança nuvens sombrias sobre todos os

relacionamentos modernos, pois, frente a um ideal inatingível, ficamos cegos para a

beleza e as delícias do mundo presente”.

Outra análise possível tange ao entendimento dos adolescentes entrevistados

sobre a questão do bem estar financeiro como requisito para formar uma futura família.

Isso pode se dar devido ao fato de pertencerem à camada média e reproduzirem os

mecanismos que formam esta parcela da sociedade. Nesse sentido, a camada média

pode se caracterizar pela individualidade, reciprocidade, hierarquia, valorização da

escolha e liberdade para direcionar suas escolhas (VAITSMAN, 1994). Diante disso, estes

Page 37: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

37

adolescentes apontam para uma reprodução destes valores na família pensada, pois se

entende que desejar uma estabilidade financeira antes de constituir uma família é

responder aos valores estipulados e idealizados da camada média brasileira. Carlos

exemplifica isso quando diz: “eu espero que eu tenha uma família depois de eu ter

começado uma boa vida profissional assim, sabe, um trabalho garantido, um salário bom.

Não quero casar e ficar... sei lá...”. Para Bruno esse sucesso profissional também é

requisito para casamento e família: “Uma mulher. É... Uma casa. Pretendo ter condições

financeiras pra isso. Ser bem sucedido profissionalmente, ter também, talvez, não, com

certeza ter empregada”.

Para Laura formar uma família tem como pré-requisito a estabilidade financeira,

e entende que esta só será possível depois que fizer um curso de graduação e tiver

estável em um emprego:

Eu quero casar sim, mas depois que eu já tiver formado. Um trabalho assim. Porque quando tiver casada eu pretendo já ter formado, já tá trabalhando e tal, porque aí dá pra mim saber se eu vou ter condições. Por questão, tipo assim, se eu for casada eu vou querer ter meus filhos, eu vou querer, agora se eu for casada e ainda tiver que fazer faculdade e tal, eu ainda vou ter que ir pra faculdade, arranjar um emprego, vou ter que cuidar da casa, vou ter que ficar cuidando deles, então é muita coisa e querendo estabilizar ainda, entendeu? Vou querer muita coisa e não vou conseguir nada,então mais fácil uma coisa assim de cada vez, ai primeiro estuda, ai arruma emprego, se tiver condição eu sei quantos filhos eu vou poder ter e é melhor assim do que ter tudo de uma vez e não conseguir fazer nada.

Isso também aparece na entrevista de Raquel:

Eu acho que o quê te dá dinheiro é o que você conquista. Agora se eu fosse uma fisioterapeuta, o quê, que eu tô fazendo com prazer, cada vez mais eu ia me dedicar à minha profissão e isso vai aumentar clientes, lucros também, então eu acho que o futuro... vai ficar com nome bom, acho que isso que importa. Fazer faculdade, depois uns 24, 25 anos, casar, se a gente achar uma pessoa assim que vale a pena.

Page 38: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

38

Este ideal de formação no terceiro grau e estabilidade no emprego é também

referencial comungado na camada média, pois significa a busca do sujeito por continuar a

reprodução dos moldes desta parcela da sociedade, e igualmente de uma noção de que

sem esses requisitos o sujeito provavelmente estaria fadado ao fracasso diante do

modelo esperado para a camada média. Há que considerar que esta preza pelo

individualismo que privilegia, entre vários outros aspectos, também a estabilidade

financeira.

Portanto, pode-se analisar que estes adolescentes tendem ao mesmo a tempo

reproduzir e combater o que já está posto, uma vez que, se apresentam em alguns

momentos confortáveis com o modelo e a dinâmica familiar de origem e em outros estes

mesmos modelo e dinâmica já não lhes interessam. Ora se mostram como sujeitos

desejantes de mudanças, ora permanecem na reprodução dos ideais que circulam na

camada média brasileira.

É possível igualmente perceber que estas famílias podem estar da mesma forma

nessas articulações, sendo em um momento uma família com uma dinâmica igualitária e

em outros corresponderem a uma dinâmica hierárquica. Pois, através das entrevistas

pode-se notar que em alguns momentos os pais destes adolescentes agem no sentido de

estipular o lugar fixo de pais e filhos. E em outros momentos aparecem como amigos

destes adolescentes, fazendo com que estes papéis bem estipulados e demarcados de

pais e filhos possam ser repensados e reformulados. Desta forma, as dinâmicas das

famílias podem variar, ficando isso a cargo da forma das relações e interações entre os

componentes destas famílias.

Page 39: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

39

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da pesquisa realizada foi possível perceber como as mudanças ocorridas

na família brasileira podem acarretar diferentes formas de adolescências, modificações

estas que perpassam pela lógica da divisão de camadas, pelos ideais formulados e

repassados, pela idealização do adulto e da adolescência, pela fantasia do amor

romântico, entre outros tantos aspectos que não foram abordados neste trabalho.

Deste modo, entende-se que a família – que está como mais um dos

atravessadores e reprodutores das idéias construídas socialmente – é o primeiro lugar

onde ocorre uma socialização e conhecimento de normas, leis, tradições e valores para

as crianças e os adolescentes. As características da família, dessa forma, têm uma

influência inicial nas características e ideais dos adolescentes e diante disso é que se

pode pensar sobre como essas influências têm sido vistas pelos próprios adolescentes

nos dias atuais. Portanto, se a família da camada média reproduz os modelos colocados

por esta parcela da sociedade, pensa-se que os adolescentes criados nesse meio irão

provavelmente corroborar estes moldes e ideais.

Nesse referencial, o adolescente tem o aspecto familiar como um exemplo a ser

seguido. Se esta família de origem comunga dos ideais da camada média a probabilidade

de que estes adolescentes os reproduzam também é possível. Vaitsman (1994) postula

que as famílias brasileiras estão nesta intercalação entre as formas igualitárias e as

hierárquicas, uma vez que podemos encontrar famílias que estejam em uma formação

nuclear e hierárquica, ou nuclear e igualitária. Estas várias possibilidades podem interferir

no modo como estes adolescentes entendem sua família de origem e de como idealizam

a futura família.

Page 40: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

40

Nesse sentido, o que foi colhido nas entrevistas é adolescentes que do mesmo

modo que vivenciam modelos familiares que ora reproduzem os valores da camada média

– tal como a estabilidade financeira como pré-requisito para uma formação familiar – ora

vão em contramão a estes ideais. Uma hipótese para estas reproduções e idealizações é

a de que a totalidade destes adolescentes entrevistados ainda não experimentou a

vivência, seja positiva ou negativa, das relações afetivo-sexuais e por extensão, do

casamento. E a partir, disso pensamos que estes adolescentes reproduzem de forma tão

fidedigna o ideal do amor romântico. Outra suposição possível está na questão do bem

estar financeiro e da formação acadêmica como obrigações necessárias antes do

casamento. Pode-se pensar que são valores impregnados na camada média urbana

brasileira, e por os adolescentes pertencerem a esta parcela da sociedade, estariam

somente reproduzindo valores anteriormente estipulados. Essas duas proposições são

algumas das possíveis a se fazer em relação à temática da perspectiva dos adolescentes

sobre a família, porém estas não esgotam este tema e podem ser discutidas com maior

profundidade.

Portanto, o que este trabalho pôde registrar foi essa dinâmica adolescente, que

em alguns momentos idealizava o futuro incerto e em outros estipulava caminhos certos e

definidos para este futuro. Da mesma forma, pode-se pensar que estas famílias das

camadas médias igualmente vivenciam reformulações tanto no âmbito privado quanto no

que permeia o entendimento público. Pode-se entender que a formação familiar e a

adolescência são atravessadas por valores que vêm da própria família, mas que também

vêm da sociedade e da camada social a que pertencem, agregando, dessa forma, valores

que poderiam não estar presentes, ou se destituindo de ideais já estabelecidos. Assim

sendo, entende-se que os entrelaces entre as famílias, a sociedade e a própria

adolescência geram inúmeras formas de ser e de vivenciar estas instâncias.

Page 41: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

41

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABERASTURY, Arminda & KNOBEL, Maurício. Adolescência normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1981.

BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1989.

CALLIGARIS, Contardo. A adolescência. São Paulo: Publifolha, 2000.

CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo: Cortez, 1991.

DAMATTA, Roberto. A família como valor: considerações não-familiares sobre a família brasileira. In: Pensando a família no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo / Editora da UFRJ, 1987.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.

ERIKSON, Erik. Infância e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1976.

ERIKSON, Erik H. Identidade, Juventude e Crise. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda; SILVEIRA, Alzira Malaquias da. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

FIGUEIRA, S. A. (1987). O "moderno" e o "arcaico" na nova família brasileira: notas sobre a dimensão invisível da mudança social. In I. Ribeiro (Org.), Uma nova família? O moderno e o arcaico na família de classe média brasileira (pp.11-30). Rio de Janeiro: Imago.

GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, (1993).

Page 42: a família na perspectiva de adolescentes das camadas médias de

42

HUERRE, Patrice. A adolescência como herança: de uma geração a outra. Tradução Maria Celeste Marcondes. Campinas – SP: Editora Papirus, 1998.

JOHNSON, Robert A. We: a chave da psicologia do amor romântico. Tradução de Maria Helena de Oliveira Tricca. São Paulo: Editora Mercuryo, 1987.

KNOBEL, Maurício. Síndrome da adolescência normal. In: ABERASTURY, Arminda & KNOBEL, Maurício. Adolescência normal: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1981.

MAYORGA, Cláudia. Identidades; Adolescências. Belo Horizonte: 2005 (mimeo).

REICH, Wilhelm. A revolução sexual. Tradução de Ary Blaustein. São Paulo: Editora Zahar, 1966.

RUSSO, J. A. (1987). A difusão da psicanálise nos anos 70: indicações para uma análise. In I. Ribeiro, I. (Org.), Família e valores (pp. 189-204). São Paulo: Loyola.

STENGEL, Márcia. Tradições, contradições, transformações: A família na ótica de pais de adolescentes. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, UERJ, Rio de Janeiro, 2004.

SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1998. (Coleção tudo é história; 71).

VAITSMAN, Jeni. Flexíveis e plurais – Identidade, casamento e família em circunstâncias pós-modernas. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1994.