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A FÁBRICA DOS SONHOS: A INVENÇÃO DA FESTA JUNINA NO ESPAÇO URBANO Ah! A festa da primavera! Nenhum habitante do Bosque quereria faltar! (. ..) Faltar a uma festa destas? Nem pensar! (. ..) Caro Texugo, todos os dias são bons para fazer festa! (. . .) Grá digo e grá repito, grá/ Estasfestas são tolices', res- mungava o corvo. (...) no livro A Fábrica dos So- nhos: a invenção da festa junina no espaço urbano, originado em sua tese de doutorado em Sociologia da UFC e publicado pela Editora Idéia, em João Pes- soa, em 2002. Sua pesquisa vai nos mostrar como uma festa considerada tradicional no Nordeste brasileiro, o São João, se transformou, em Campina Gran- de (PB), no Maior São João do Mundo, um acon- tecimento incorporado ideologicamente pela esfera do lazer, como atividade-negócio, com amplas repercussões nos aspectos econômico, social, político, eleitoral e turístico. De festa fa- miliar e comunitária o São João de Campina Grande transformou-se, no espaço de duas dé- cadas, numa festa universal, global, regida por providências técnicas, comerciais, mercado- lógicas, administrativas e políticas, adotadas por profissionais envolvidos no planejamento, mon- tagem, organização e prática da festa. A festa é ocasião de encontro/confronta- ção entre os campinenses e os turistas nacionais e estrangeiros e também entre o São João de antigamente presente na lembrança e nas falas dos que testemunharam as notórias transforma- ções dos folguedos juninos em Campina Grande e o modelo atual, massificado e concentrador. E, se, a festa, por esses encontros que proporcio- na, remete à noção de uma unidade sociocultural, esta deve ser interpretada como contribuição da festa para manter a estrutura social. Interpretando os sentidos da festa junina e do festejar, a autora, recusa a versão dos DE EUZABETH CHISTINA DE ANDRADE LIMA A Fábrica dos Sonhos: a invenção da festa junina no espaço urbano, Editora Idéia, João Pessoa, 2002. POR VANDA LUCIA DE SOUZA BORGES· Professora Assistente da UNIFOR e do CEFET-CE, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. E quando a festa acabava e todos, alegres e contentes, mortos pelo cansaço, estavam dor- mindo em seus ninhos e nas tocas, eis que ele se entregava ao trabalho de limpeza, a fim de levar todas as sobras. E limpando ele dizia para si mesmo: Ab, que delícia, a festa da primavera! É uma felicidade imensa! Mas, grá digo e grâ repito, grá! A manhã o Bosque deve estar limpo como sempre!! Do contrário o que diriam as flores? (Tony WOLF, 1997, p.6) . Interessante notar que um livro infantil, como este que circula em minha casa quando ocupu-me desta resenha, com quase uma cen- tena de estórias, inicie justamente contando uma festa, da qual todos os habitantes do Bosque participam divertindo-se, senão, resmungando e queixando-se, mas ninguém fica de fora. Sendo uma situação de aparente exceção, em meio ao concerto cotidiano de labuta e ne- gociação, qual o significado da festa, este even- to aparentemente gratuito e dispensável? Esta é uma das principais questões colo- cadas por Elizabeth Chistina de Andrade Lima, 138 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v. 33 N. 2 2002

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A FÁBRICA DOS SONHOS:A INVENÇÃO DA FESTA JUNINA NO ESPAÇO URBANO

Ah! A festa da primavera!Nenhum habitante doBosque quereria faltar!(. ..) Faltar a uma festadestas? Nem pensar! (. ..)Caro Texugo, todos os diassão bons para fazer festa!(. . .)Grá digo egrá repito, grá/Estasfestas são tolices', res-mungava o corvo. (. ..)

no livro A Fábrica dos So-nhos: a invenção da festajunina no espaço urbano,originado em sua tese dedoutorado em Sociologiada UFC e publicado pelaEditora Idéia, em João Pes-soa, em 2002.

Sua pesquisa vai nosmostrar como uma festa

considerada tradicional no Nordeste brasileiro,o São João, se transformou, em Campina Gran-de (PB), no Maior São João do Mundo, um acon-tecimento incorporado ideologicamente pelaesfera do lazer, como atividade-negócio, comamplas repercussões nos aspectos econômico,social, político, eleitoral e turístico. De festa fa-miliar e comunitária o São João de CampinaGrande transformou-se, no espaço de duas dé-cadas, numa festa universal, global, regida porprovidências técnicas, comerciais, mercado-lógicas, administrativas e políticas, adotadas porprofissionais envolvidos no planejamento, mon-tagem, organização e prática da festa.

A festa é ocasião de encontro/confronta-ção entre os campinenses e os turistas nacionaise estrangeiros e também entre o São João deantigamente presente na lembrança e nas falasdos que testemunharam as notórias transforma-ções dos folguedos juninos em Campina Grandee o modelo atual, massificado e concentrador.E, se, a festa, por esses encontros que proporcio-na, remete à noção de uma unidade sociocultural,esta deve ser interpretada como contribuição dafesta para manter a estrutura social.

Interpretando os sentidos da festa juninae do festejar, a autora, recusa a versão dos

DE EUZABETH CHISTINA DE ANDRADE LIMA

A Fábrica dos Sonhos: a invenção da festa junina noespaço urbano, Editora Idéia, João Pessoa, 2002.

POR VANDA LUCIA DE SOUZA BORGES·

Professora Assistente da UNIFOR e do CEFET-CE,mestre pelo Programa de Pós-Graduação em

Sociologia da UFC.

E quando a festa acabava e todos, alegres econtentes, mortos pelo cansaço, estavam dor-mindo em seus ninhos e nas tocas, eis que

ele se entregava ao trabalho de limpeza, a fimde levar todas as sobras. E limpando ele diziapara si mesmo:

Ab, que delícia, a festa da primavera! É umafelicidade imensa! Mas, grá digo e grâ repito,grá! Amanhã o Bosque deve estar limpo comosempre!! Do contrário o que diriam as flores?(Tony WOLF, 1997, p.6) .

Interessante notar que um livro infantil,como este que circula em minha casa quandoocupu-me desta resenha, com quase uma cen-tena de estórias, inicie justamente contando umafesta, da qual todos os habitantes do Bosqueparticipam divertindo-se, senão, resmungandoe queixando-se, mas ninguém fica de fora.

Sendo uma situação de aparente exceção,em meio ao concerto cotidiano de labuta e ne-gociação, qual o significado da festa, este even-to aparentemente gratuito e dispensável?

Esta é uma das principais questões colo-cadas por Elizabeth Chistina de Andrade Lima,

138 REVISTA DE CI~NCIAS SOCIAIS v. 33 N. 2 2002

folcloristas por considerá-Ia romântica, ao res-saltarem os aspectos estáticos, homogêneos eunitários do fenômeno junino.

Deslocado do espaço rural onde se origi-nou, inserido no contexto urbano, o São Joãotem aí, símbolos, rituais e intenções particula-res. Na cidade, a festa junina é comercializada,e transformada em elemento de marketing turís-tico, econômico, social, cultural e político.

No âmbito das Ciências Sociais a autoraaponta a escassez de estudos sobre o São João,e a dominância nas análises dos festejos religio-sos, destes como produtores de significação sim-bólica, bem como de construções de processosidentitários.

Outra interpretação é a de Da Matta quesegundo Lima até poderia ser válida no caso dafesta junina, que seria vista como uma passa-gem da seriedade à transgressão, do cotidianoao extraordinário, e que apesar de "correta", lheparece incompleta para pensar a festa urbanado São João. Contudo, Lima propõe um "novo'olhar'" que capta o festejo junino como uma tra-dição inventada, um espetáculo, passando aexistir com uma festa comercializada,"(. ..) comouma produção prática e discursiva, imagética ecênica, a qual toma a idéia de tradição comoprincipal e fundamental enunciado e elementodefinidor do evento junino." Cp.23)

Sem maior aprofundamento sobre as con-seqüências desse modo de ver o fenômeno emapreço, a autora apresenta ao longo dos quatrocapítulos do livro, uma descrição circunstancia-da dos personagens, espaços e relações que seestabelecem em tomo do Maior São João doMundo. No primeiro capítulo é feita uma descri-ção etnográfica sobre os festejos juninos na ci-dade de Campina Grande, que permiteconfrontar as práticas sociais desde o início doséculo XX até o momento da pesquisa, conclu-ída em 1999. De festa rural, familiar, passandopara os bailes organizados em diversas ruas dacidade, e para os quais se cobrava ingresso,depois foram os clubes sociais a oferecer bailes,e o surgimento de inúmeras quadrilhas organi-

zadas em associações as mais diversas que con-tribuíram para a instituição da tradição juninana cidade. No ano de 1976 a Prefeitura Munici-pal tem a iniciativa de organizar, centralizandoos festejos e normatizando-os nos mais variadosaspectos e inaugura uma nova estratégia de con-dução das atividades de recreação e da culturalocais que culmina na fabricação da festa comoum espetáculo turístico.

No segundo capítulo é feita uma descri-ção da festa na qual esta emerge como produtode consumo, um serviço de entretenimento, quelhe confere uma relevância social, de reconhe-cimento público, exaltado pelas autoridades ereproduzido ao nível das massas com o eloqüen-te apoio dos MEDIA, conquistando proporçõesgigantescas. Estes dados reforçam a pertinêncíado título da obra "A Fábrica dos Sonhos", queremete à idéia de que o lazer, na sociedade pós-industrial apresenta-se como a realização profa-na do paraíso.

O capítulo três descreve os usos dos fes-tejos juninos como capital político. Tendo sidoa iniciativa governamental a ponta de lança doprocesso que conduziu à constituição do MaiorSão João do Mundo este é sobejamente usadocomo palco de práticas políticas que habilmen-te mesclam o recurso à tradição com as vanta-gens da modernidade que a transformam emelemento de consumo, cujo reconhecimento eprestígio são auferidos mediante sua perpetua-ção no poder.

No quarto e último capítulo avalia as re-percussões do Maior São João do Mundo nosMEDIA, no cordel e na música. Os meios decomunicação se constituem como articuladoresdos interesses particulares de artistas, empresá-rios, comerciantes, políticos, consumidores,festeiros e citadinos que se comunicam recipro-camente' mediante as notícias, propagandas,informes e demais formas de comunicação. Éde grande destaque o papel dos veículos denotícia, pois o que é notícia conquista maiorcredibilidade do que propriamente uma peçapublicitária e a dimensão da cobertura jornalística

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dada ao evento amplia as expectativas que ospersonagens individuais têm sobre a festa. Aautora ressalta o papel privilegiado dos meiosde comunicação em fabricar a festa, logo o pa-pel central que eles desempenham na "socieda-de espetáculo".

Sendo sucesso de público garantido, oMaior São João do Mundo não deixa de ser tematambém de artistas populares, cordelistas, músi-cos, compositores que utilizam o tema em todasua amplitude temporal, de passado, presente efuturo, em suas variações espaciais, no campo,na roça e na cidade, e variações motivacionais,por ser ocasião de encontros e desencontrosamorosos, de confraternização, de sobrevivên-cia, etc. A presença da festa junina nos MEDIAena obra dos artistas populares é um indicativodo enraizamento do evento no imaginário social

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e cuja riqueza de significados a autora tentou aomáximo ilustrar.

Enfim, o estudo do Maior São João doMundo nos instiga a ver a importância de umtema como o lazer, do qual muitas vezes subes-timamos a dimensão e os significados, mas quese mostra capaz de transmutar a economia tipi-camente rural de uma cidade nordestina comoCampina Grande, numa economia de serviços,com características e problemas comuns aos cen-tros das economias pós-industrial.

Por tudo isso, vale a leitura.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

WOLF, Tony. O Bosque das Maravilhas.São Paulo: Editora Paulus, 1997.

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