a educação operária no final do século xix e início do xx em … · 2018-09-02 · resumo o...

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI A educação operária no final do século XIX e início do XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o silenciado Campinas 2017

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  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAÇÃO

    ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI

    A educação operária no final do século XIX e início do

    XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o

    silenciado

    Campinas 2017

  • ISABEL CRISTINA CAETANO DESSOTTI

    A educação operária no final do XIX e início do XX em Sorocaba sob o

    olhar da imprensa: o escrito e o silenciado

    Tese de Doutorado apresentada ao

    Programa de Pós-Graduação em Educação

    da Faculdade de Educação da Universidade

    Estadual de Campinas para obtenção do

    título de Doutora em Educação, na área de

    concentração de Filosofia e História da

    Educação.

    Supervisor/Orientador: Prof. Dr. José Luis Sanfelice

    O ARQUIVO DIGITAL CORRESPONDE À VERSÃO FINAL

    DA TESE DEFENDIDA PELA ALUNA ISABEL CRISTINA

    CAETANO DESSOTTI E ORIENTADA PELO PROF. DR.

    JOSÉ LUIS SANFELICE

    Campinas/SP

    2017

  • UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

    FACULDADE DE EDUCAÇÃO

    TESE DE DOUTORADO

    A educação operária no final do século XIX e início do

    XX em Sorocaba sob o olhar da imprensa: o escrito e o

    silenciado

    Autor: Isabel Cristina Caetano Dessotti

    COMISSÃO JULGADORA:

    Prof. Dr.José Luis Sanfelice

    Profª Dra. Fabiana de Cássia Rodrigues

    Prof. Dr. Paulo Gomes de Lima

    Profª Dra. Sônia Aparecida Siquelli

    Prof. Dra. Vânia Regina Boschetti

    A Ata da Defesa assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida acadêmica do aluno.

    2017

  • DEDICATÓRIA

    À minha mãe, que viveu muito do relatado nestas páginas, mas não viveu para ver a

    conclusão deste trabalho.

  • AGRADECIMENTOS

    Conclui a escrita deste trabalho em 31 de dezembro de 2016, com quase um ano de

    atraso, já ouvindo o espocar de rojões anunciando o ano novo que se aproxima, por isso

    agradeço a Deus por ter-me permitido conclui-lo.

    No caminhar da construção deste trabalho, tenho muito a agradecer a inúmeras pessoas

    que contribuíram de diferentes formas. Algumas, só com palavras de alento, mas tão bem-

    vindas.

    Agradeço aos amigos do doutorado, pela amizade e compartilhamento das angústias

    acadêmicas.

    Sou imensamente grata aos professores por todo o aprendizado que tive.

    Agradeço aos funcionários da secretaria da UNICAMP Lígia, Tassiane que tanto me

    ajudaram e orientaram em várias situações difíceis, especialmente Nadir, que tem a palavra

    certa na hora certa.

    Agradeço a atenção da bibliotecária da UNICAMP Rosemary.

    Ao meu amigo Edemir Morais, que mais uma vez me ajudou, disponibilizando seu

    material de pesquisa e seu conhecimento, o meu muito obrigada.

    Agradeço aos funcionários do Gabinete de Leitura pela atenção a mim dispensada nas

    muitas horas de pesquisa. Aos amigos antigos e novos do Gabinete de Leitura, agradeço pelas

    sugestões, conversas e interesse pelo meu trabalho.

    À amiga professora Renata, por dominar a Língua Portuguesa e por ter me socorrido

    com a revisão do texto.

    Aos amigos Virgínia e Rodrigo pela ajuda nas finalizações.

    Aos professores da banca Paulo Lima, Fabiana Rodrigues e Sonia Siquelli pela gentileza

    da leitura atenta do meu texto, pelas valiosas contribuições oferecidas para o mesmo. Em

    especial à professora Vânia, por participar mais uma vez de uma etapa importante da minha

    vida acadêmica.

    Ao meu marido Onivaldo, meus filhos Vinícius, Elise, Lucas e Mariana, obrigada por

    tudo.

  • A minha irmã Lúcia que despertou em mim o gosto pela leitura desde sempre.

    Ao professor José Luis Sanfelice pela orientação, compreensão e por não ter desistido

    de mim, meus sinceros agradecimentos sempre.

  • EPÍGRAFE

    “Há homens que lutam um dia e são bons,

    há outros que lutam um ano e são melhores,

    há os que lutam muitos anos e são muito bons, mas

    há os que lutam toda a vida e estes são imprescindíveis”

    (Bertolt Brecht)

  • RESUMO

    O presente estudo buscou analisar de forma recorrente o papel ocupado pela educação dentro

    da história do movimento operário em Sorocaba no final do século XIX e início do século XX

    a partir do olhar da imprensa. Destacou-se a presença do imigrante europeu, que chegou

    imbuído de esperanças de vida melhor e se deparou com uma vida de muito trabalho e

    sofrimento, tanto na lavoura como nas fábricas. Em Sorocaba, os imigrantes, principalmente

    italianos e espanhóis, foram aproveitados mais intensamente nas fábricas de tecidos,

    consideradas por muitos como uma das que mais tem explorado o proletariado no mundo. Além

    das esperanças, os imigrantes trouxeram, na bagagem, novas ideias, que foram as ideias

    embrionárias da organização operária. Diante das condições de existência do operariado

    brasileiro, sintetizaram sua luta numa certeza: “queremos, quando o povo estiver educado, a

    revolução social”. Estudou-se a trajetória da educação em Sorocaba, desde a educação precária

    e quase inexistente dos tempos do Império até a escola dos primeiros tempos da República. Na

    primeira república, a Escola tinha a função regeneradora da nação e os Grupos Escolares

    tiveram a incumbência de propagar a imagem do novo ensino, voltado para todos. O primeiro

    grupo escolar público foi criado em Sorocaba, em 1896. Mas nem mesmo a criação dos demais

    grupos escolares foi suficiente para atender a toda demanda. Assim, a escola pública atendeu,

    principalmente, os filhos da elite, uma vez que os filhos dos operários trabalhavam nas fábricas

    e quase não conseguiam estudar. Trata-se de pesquisa documental e bibliográfica, cujo quadro

    de análise se assenta no materialismo histórico, tendo como fonte primária mais significativa a

    imprensa, especialmente o jornal O Operario, incansável na luta pela educação do operariado

    e outros. As principais referências teóricas de apoio foram baseadas nas reflexões formuladas

    por Engels (2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues

    (1969), Ferrer y Guardia (2014). A análise da documentação e da bibliografia disponíveis

    permite considerar que a educação, esperança do operário, não foi compartilhada da mesma

    forma nem pelo governo e nem pelos patrões. A escola republicana, incapaz de promover a

    educação popular, tentou promover o silenciamento do operário, mas não pôde apagar o registro

    de seu movimento. Palavras-chave: Trabalho – Educação – Movimento Operário – Imprensa – Imigrantes

  • ABSTRACT

    The present study aimed to reconstruct the education role in the history of the worker movement

    in Sorocaba in the end of the 19th century and the beginning of the 20th century from the press

    view. It is highlighted the presence of the european immigrant, that came here full with hope of

    a better life and found a life of hard word and suffering, in the farming as well the factories. In

    Sorocaba, the immigrants were put upon more intensively in the textile factories, considered by

    many as one of the most scrounge of the working class factory. Besides the hopes, the

    immigrants brought, in their luggage, new ideias, the ones were the embryonic ideias of the

    worker organization. Facing the conditions of the existence of the brazilian workers, they

    summarized their fight into a certain: “We want, when the people are educated, the social

    revolution.” It studied the trajectory of Sorocaba´s education, since the precarious and the

    almost non-existed education in the empire times to the school from the first times of the

    republic. In the first republic, the school had the regenerative nation role and the school groups

    had to spread the image of the new teaching, to all. The first school group created in Sorocaba

    in 1896 and the others weren´t enough for the demand and the public school turned out to attend

    especially the elite children, since the workers children worken in the factories and couldn´t go

    to school. It was used, for the purpose of this study, primary and secondary sources, such as:

    the press, especially the “O Operario” paper, tireless in the fight for education of the workers

    and others.

    The main theoretical references were based in the reflexions of Engels (2010), Thompson

    (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer y Guardia (2014).

    The analysis of the documentation and the bibliography available allow to consider that the

    education, the worker´s hope, wasn´t shared in the same way neither by the government nor by

    the bosses. The republic school, incapable to promove the public education, promoved

    competently the silencing of the worker but it couldn´t erase the register of the movement.

    Key-words: Work – Education – Worker movement – Press - Immigrants

  • RESUMEN

    Este estudio buscó recrear el papel que se ocupó la educación en la historia del movimiento

    obrero en Sorocaba al final del siglo XIX y a partir del siglo XX por la mirada de la prensa. Se

    destacó la presencia del inmigrante europeo, que llegaba acá lleno de esperanzas de una vida

    mejor y se enfrentó a una vida de mucho trabajo e sufrimiento, tanto en la labranza cuanto en

    las fábricas. Los inmigrantes en Sorocaba fueron aprovechados más intensamente en las

    tejedurías, tenídas por muchos como una das fábricas que más ha explorado el proletariado en

    el mundo. Además las esperanzas, los inmigrantes trajeron, en su equipaje, nuevas ideas, que

    fueron las ideas embrión de la organización laboral. Delante de las condiciones de existencia

    de la clase obrera brasileña, han sintetizado su lucha en una certeza: “deseamos, cuando el

    pueblo quedarse educado, la revolución social”. Se estudió el camino de la educación en

    Sorocaba, de la educación precario y casi ausente de los tiempos del imperio hasta la escuela

    de los primeros días de la República. En la primer república, la Escuela tenía la función de

    regenerar la nación y los Grupos Escolares tuvieron comisión de propagar la imagen del nuevo

    enseño, enfocado en todos. El primer grupo escolar creado en Sorocaba, en 1896, y los demás

    no consiguieron cumplir la demanda y la escuela público he satisfecho los hijos de la élite, ya

    que los hijos de los trabajadores estaban en las fábricas y no podrían asistir las escuelas. Se

    utilizó, para esta búsqueda, fuentes primarias y secundarios, tales como: la prensa,

    especialmente el periódico O Operario, incansable en la lucha por la educación de los

    trabajadores. Las referencias teóricas principales se basaban en las reflexiones de Engels

    (2010), Thompson (1987), Ferreira (1978), Dean (s/d), Carone (1989), Rodrigues (1969), Ferrer

    y Guardia (2014). La análisis de la documentación y de la bibliografía ha permitido creer que

    la educación, esperanza de los trabajadores, no se fue considerado de la misma manera ni por

    el gobierno y tampoco por los jefes. La escuela republicana, incapaz de desarrollar la educación

    popular, promocionó hábilmente el silenciamiento de los trabajadores... no pude eliminar lo

    registro de su movimento.

    Palabras llave: Trabajo – Educación – Movimiento obrero – Prensa – Inmigrantes

  • SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 14

    1 OS OPERÁRIOS ................................................................................................................ 27

    1.1 Os operários: nova força de trabalho .................................................................................... 34

    1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas ............................................. 35

    1.3 A imigração ............................................................................................................................. 44

    1.4 Os imigrantes no Brasil .......................................................................................................... 55

    1.5 Colônia Cecília – Um sonho de liberdade ............................................................................ 59

    1.6 Os imigrantes chegam a Sorocaba ..................................................................................... 63

    1.7 O apito da fábrica controlando o tempo e a vida ................................................................ 65

    1.8 Dentro da fábrica, o tear silencia a todos ............................................................................ 73

    1.9 As histórias de vida se repetem nas vilas operárias ............................................................ 83

    1.10 Os imigrantes se unem, os operários se organizam ........................................................... 87

    2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA OPERÁRIA EM SOROCABA ........... 106

    2.1 A grande imprensa em Sorocaba ....................................................................................... 107

    2.2 A imprensa operária .......................................................................................................... 121

    2.2.1 O jornal O Operario de Sorocaba ................................................................................ 126

    2.2.2 A presença da mulher nas colunas do jornal O Operário .......................................... 136

    2.2.3 A ideologia do jornal O operário ................................................................................... 144

    2.2.3.1 Ideias anarquistas em Sorocaba: os libertários ........................................................ 150

    2.3 As primeiras tentativas de greve sob o olhar da imprensa ............................................ 154

    2.4 O olhar da imprensa sobre a primeira greve operária bem-sucedida ............................ 158

    2.5 Embates ideológicos entre os jornais Cruzeiro do Sul e O Operario .............................. 170

    2.6 O fim do jornal O Operario ................................................................................................. 174

    3. A EDUCAÇÃO E AS ESCOLAS PARA OPERÁRIOS .......................................... 179

    3.1 A educação em Sorocaba nos tempos do Império ........................................................... 179

    3.1.1 A Escola Popular ........................................................................................................... 190

    3.2 A educação em Sorocaba após a República ..................................................................... 192

    3.3 Uma escola para operários: escola da Loja Maçônica Perseverança III........................... 211

    3.4 Uma escola para as moças operárias ............................................................................... 216

    3.5 A instrução para o operário: o verdadeiro pão do espírito ........................................... 218

    3.6 A educação operária sob as lentes dos jornais Cruzeiro do Sul e O Operário ............. 222

  • 3.7 Escola Moderna ou Racionalista: educação para a emancipação .................................... 228

    3.7.1. A pedagogia de Francisco Ferrer y Guardia .............................................................. 231

    3.7.2 Escola Moderna em Sorocaba ...................................................................................... 234

    REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 252

    MEMORIAL (APÊNDICE) ................................................................................................ 260

  • 14

    INTRODUÇÃO

    “Se dividirmos os retratos existentes de cidades em dois grupos, conforme o lugar de

    nascimento do autor, perceberemos que os escritos por autóctones são minoria. O

    motivo superficial, o exótico, o pitoresco só atrai os de fora. Para o autóctone obter

    a imagem de sua cidade, são necessárias motivações diferentes, mais profundas.

    Motivações de quem, em vez de viajar para longe, viaja para o passado. Sempre o

    retrato urbano do autóctone terá afinidade com o livro de memórias, não é à toa que

    o escritor passou sua infância nesse lugar” (Walter Benjamin).

    Tomo emprestadas as palavras de Walter Benjamin (1985) para justificar a escolha do

    meu tema de pesquisa, a educação dentro do movimento operário sob o olhar da imprensa,

    resultado de uma conjugação de elementos como a memória afetiva, as histórias de vida, os

    lugares familiares e mais a minha própria formação em História.

    Nasci numa vila operária e, desde muito pequena, caminhava de madrugada, até a

    fábrica de tecidos Votorantim e permanecia na creche da fábrica enquanto minha mãe

    trabalhava. Quando da realização da minha dissertação de mestrado, a simpatia por esse tema

    falou mais alto e o resultado da pesquisa foi: “História da educação de Votorantim: do apito da

    fábrica à sineta da escola”. Por se tratar de um mestrado em Educação, o estudo central foi a

    escola, entretanto, no caso de Votorantim, cidade onde nasci, não havia como falar da escola

    sem apresentar a fábrica de tecidos, uma vez que a cidade se formou a partir dessa fábrica, que

    passou a exercer forte dominação, não só na vida das pessoas como em tudo o que acontecia no

    lugar. Na busca de fontes, foi a imprensa da época que mais atendeu aos objetivos dessa

    pesquisa.

    O recorte definido nesse estudo foi a história da educação na vila operária de Votorantim

    que, no período estudado – final do século XIX e início do XX – pertencia ao município de

    Sorocaba. Entretanto, quanto mais pesquisamos, mais nos deparamos com espaços que

    precisavam ser preenchidos para elucidar o passado.

    Assim, pela necessidade de escolha de um tema para a tese de doutorado, decidi-me por

    retomar a história da educação operária, uma vez que essa história não se esgotou,

    principalmente no que diz respeito à imprensa enquanto fonte de pesquisa.

    É bem verdade que a história de Sorocaba se viu enriquecida nas últimas décadas com

    trabalhos acadêmicos e outras produções historiográficas, que a inseriram num campo

    relativamente novo da historiografia, qual seja a História das Cidades. Apesar do avanço da

    produção, determinados assuntos necessitavam de aprofundamentos a cada trabalho produzido,

    tal qual uma colcha de retalhos, onde cada retalho tem uma estampa, um colorido, uma textura

    e unidos, posteriormente, são costurados, formando a colcha. Assim se deu também com a

  • 15

    produção historiográfica: cada olhar do historiador correspondia a um retalho, que alinhavado

    e costurado aos de outros, foi capaz de resgatar a história, dando-lhe sentido e significado e,

    principalmente, dando a palavra aos esquecidos da história.

    O resgate histórico tornou-se importante à medida que novas interpretações foram

    surgindo, novos olhares e novas possibilidades foram dando voz aos esquecidos e silenciados

    pela história. A história deve esclarecer a memória e ajudá-la a retificar os seus erros (LE GOFF,

    1990). É um complemento para os tempos posteriores. Entretanto, o que se verifica é que

    mesmo conhecendo os erros do passado, alguns acabam por se repetir no presente.

    Este trabalho busca contribuir para a valorização de um período ainda pouco estudado

    na história de Sorocaba, como mais um retalho a ser costurado no que já foi produzido sobre a

    história de patrões e operários em suas relações de trabalho e de poder e qual o valor atribuído

    por patrões e operários à educação.

    Certamente, a crítica esbarrou nos conceitos de verdade e poder. Mas qual verdade? A

    verdade estava com as classes dominantes, no caso os patrões, ou com os operários, os

    explorados? Eis o combate histórico estabelecido, conforme alerta Michel Foucault (1979, p.

    13):

    Há um combate “pela verdade” ou, ao menos, “em torno da verdade” entendendo-se,

    mais uma vez, que por verdade não quero dizer “o conjunto das coisas verdadeiras a

    descobrir ou fazer aceitar”, mas o “conjunto das regras segundo as quais se distingue

    o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro efeitos específicos de poder”;

    entendendo-se também que não se trata de um combate “em favor” da verdade, mas

    em torno do estatuto da verdade e do papel econômico-político que ela desempenha

    (FOUCAULT, 1979, p. 13).

    As verdades estabelecidas pelas versões dominantes, especialmente aquelas ligadas ao

    mundo capitalista, prendem-se a alguns aspectos e não identificam os diferentes grupos, ainda

    mais se esses forem vistos como opositores. Valorizam-se apenas concepções desejadas

    relacionadas ao progresso como obra de grandes homens empreendedores, desqualificando os

    homens comuns, os trabalhadores em geral, suas culturas, seus saberes e sua presença em todo

    o processo de industrialização. O homem comum nada tem de herói, talvez por isso

    historiadores locais tenham se dedicado à história do bandeirantismo e do tropeirismo, pelas

    suas qualidades incomuns. (PINTO JR, 2003, p.19)

    Por muito tempo, os historiadores de Sorocaba se mantiveram alinhados ao pensamento

    de Aluísio de Almeida, considerado o mais fidedigno pesquisador da História de Sorocaba, o

    cronista da cidade, até os dias de hoje. Aluisio de Almeida foi o pseudônimo de Monsenhor

    Castanho, nascido em Guareí no ano de 1904, que, depois de ordenado padre, em 1927, veio

  • 16

    para a Diocese de Sorocaba. Após algum tempo de sacerdócio, por volta de 1933, adoentado,

    viu-se impedido de exercer suas atividades eclesiásticas e passou a se dedicar à pesquisa sobre

    a história de Sorocaba. Assim o fez até bem próximo de sua morte, em 1981. Tendo livre

    trânsito pelos arquivos municipais, do Estado e dos documentos pertencentes à Igreja, escreveu

    livros e artigos para jornais sobre a história de Sorocaba, tornando-se uma referência para os

    futuros historiadores que, por certo tempo, praticamente deram continuidade ao trabalho de

    pesquisa e análise histórica iniciados por ele.

    Os escritos de Aluísio de Almeida foram garimpados em fontes primárias tais como:

    jornais publicados no período de 1842 a 1930, livros da paróquia de Nossa Senhora da Ponte,

    a partir de 1679, atas da Câmara desde 1805, inventários no cartório do 1º ofício de 1800 a

    1842, livros de notas de 1723 a 1734, papéis avulsos de 1720 a 1863 do Arquivo Público de

    São Paulo entre outros, além das histórias de vida e da cidade contadas pelas pessoas do lugar.

    Aluísio de Almeida dividiu a história de Sorocaba em três “ciclos econômicos”: o

    bandeirantismo, o tropeirismo e a industrialização. Essa divisão por ciclos econômicos proposta

    por ele influenciou autores e pesquisadores locais, como Adolfo Frioli (2005), Vera Ravagnani

    Job (1983), Rogich Vieira (1988), Geraldo Bonadio (2004) e outros, tanto nas análises como

    na ênfase dada ao estudo de determinados “ciclos”, como o bandeirantismo e o tropeirismo, que

    chegam a atribuir ao tropeiro, legítimo representante de nossa gente, a promoção da unidade

    nacional, por meio de suas viagens com as tropas por todos os cantos do país. Sorocaba sediava

    um entreposto de mercadorias, os muares, que atraía para cidade não apenas brasileiros de todas

    as regiões, mas também estrangeiros. Tais autores defendem a ideia de que o tropeiro forjou a

    identidade histórica de Sorocaba e do sorocabanoOportuno dizer que as atuais pesquisas,

    acadêmicas ou não, têm se distanciado do que já foi feito em termos de produção

    historiográfica, trazendo novos olhares, novas abordagens, permitindo outras formas de se

    contar e interpretar o passado. Elas propõem a reconstituição do passado, com outras

    indagações do vivido, apresentando novos personagens, reconstituindo o passado ao dar voz

    aos esquecidos. Há, atualmente, certo consenso entre pesquisadores de que a historiografia de

    Sorocaba dá importância a um passado distante, dos tempos dos bandeirantes e tropeiros, e

    pouco reflete sobre um passado mais recente, ou seja, o tempo da industrialização. Quais seriam

    as motivações para esse desinteresse ou esquecimento?

    Esta pesquisa ora apresentada se alinha a essa nova proposta de abordagem, buscando

    as razões que levaram a esse esquecimento – ou seria silenciamento? Pretende, assim, abordar

    a educação operária, desde a sua gênese na cidade de Sorocaba, no período que compreende as

  • 17

    últimas décadas do século XIX até as primeiras décadas do século XX, com o advento da

    industrialização.

    Nas últimas décadas do século XIX, mais especificamente a partir da década de 1880, a

    concepção de cidade foi se modificando à medida que emergia a industrialização e redefinia-se

    o espaço urbano. A cidade passou a representar o lugar da modernidade, com novas

    configurações apoiadas numa sociedade industrial e no fortalecimento de uma cultura burguesa.

    Nesse período de implantação da indústria, a cidade viveu expressivo aumento populacional

    com a vinda de imigrantes estrangeiros e ex-escravos.

    O crescimento populacional que a cidade conhece, intensifica-se, a partir de 1872,

    com uma taxa anual em torno de 1,6% e ganha contornos de explosão demográfica

    entre 1890 e 1920, com taxa em torno de 4,0% ao ano. Nesses mesmos períodos, a

    cidade de São Paulo cresce em 4,1% e 5,1%, respectivamente. Tal crescimento está

    intimamente relacionado à dinâmica urbana, que, já no início do século XX vai

    ganhando feições de modernidade: a água e o esgoto surgem, em 1902; o cinema, em

    1906; o telefone, em 1907; o bonde, em 1915; o calçamento, em 1921. Além desses

    benefícios, a cidade já contava com jardins, teatros, hospital, fábricas, casas

    comerciais, escolas, igrejas, palacetes, vilas operárias, cortiços, estalagens (MENON,

    2000, p.35).

    O período delimitado para o estudo, final do século XIX e início do XX, corresponde

    ao período no qual o movimento operário em Sorocaba se iniciou, consolidou-se e, depois,

    enfraqueceu e, paralelamente, é nesse tempo que a educação passou a ter relevância no cenário

    nacional. Assim, este trabalho pretende valorizar tal período tão pleno de significações na

    história do movimento operário em Sorocaba, procurando encontrar, nas dobras do local, o

    universal.

    A questão central desta pesquisa assenta-se na concepção de educação produzida pelo

    movimento operário em Sorocaba, num cenário de interesses antagônicos entre a burguesia e o

    proletariado, a partir do olhar da imprensa da época, tanto a chamada grande imprensa quanto

    a imprensa operária.

    A escolha da imprensa se deu a partir da experiência da elaboração da dissertação de

    mestrado, momento em que o estudo das condições de vida dos operários, das relações

    conflituosas entre patrões e operários se revelou como uma temática de investigação em

    potencial, e os jornais configuravam um material rico nessa direção. A imprensa local

    apresentava uma questão relevante e recorrente nos editoriais e notícias publicados: a educação.

    Assim, revelou-se uma fonte profícua de conhecimento de uma época, no sentido que nos

    apresenta Dermeval Saviani (2004): fontes como os lugares de onde brota o nosso

    conhecimento da História, e a sua inesgotabilidade, pois sempre que a ela retornamos, tendemos

  • 18

    a descobrir novos elementos, novos significados, novas informações que nos tinham escapado

    por ocasião das incursões anteriores. Esse tipo de fonte vem contribuindo sobremaneira para a

    ampliação de pesquisas histórico-educacionais de caráter regional e local e os próprios

    historiadores da educação, já há algum tempo, se deram conta desse processo de significativa

    valorização da imprensa.

    Para a historiadora Maria Helena Capelato (1988), a imprensa é um manancial dos mais

    férteis para o conhecimento do passado, pois possibilita ao historiador acompanhar o percurso

    dos homens através dos tempos. O período delimitado para este estudo – final do século XIX e

    início do século XX – foi justamente o período em que a imprensa teve grande profusão, não

    só em Sorocaba, mas em todo país, motivada por novas técnicas de impressão e edição, que

    favoreceram o barateamento dos jornais e das revistas. Estas últimas, enquanto produto mais

    refinado, ganharam a preferência da burguesia urbana. Em Sorocaba, no período de 1870 a

    1920, foram editados mais de 150 periódicos, entre jornais e revistas (MENON, 2000, p.34). A

    esse respeito, Michel de Certeau (1974, p.30) alerta que:

    Em história, tudo começa com o gesto de selecionar, de reunir, de, dessa forma, transformar

    em “documentos” determinados objetos distribuídos de outra forma. Essa nova repartição

    cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo fato

    de recopiar, transcrever ou fotografar esses objetos, mudando, ao mesmo tempo, seu lugar e seu

    estatuto.

    Portanto, ao se trabalhar com a imprensa, é preciso estar atento às intenções de quem

    produziu os jornais, à sua posição na sociedade, a seus interesses e a pontos de vistas explícitos

    ou implícitos em seus argumentos.

    Identificado o tema e delimitado o período pretendido para o estudo, iniciou-se o

    trabalho de busca das fontes, não sem dificuldades – diga-se de passagem –, que consistiu na

    leitura e análise da produção sobre o processo de industrialização e sobre imigração a partir das

    reflexões de Dean (s/d), Fausto (2003), Ianni (1972). Promoveu-se uma incursão na legislação

    trabalhista em nível macro a fim de inserir, nesse universo, as contribuições de Sorocaba.

    Também com essa intencionalidade, realizou-se o mesmo procedimento para investigar a

    produção historiográfica educacional. Buscando estabelecer um diálogo entre o local e o

    universal, efetuou-se levantamento da produção historiográfica local, não se atendo apenas aos

    textos acadêmicos, privilegiando as produções mais recentes, com predominância das

    dissertações de mestrado e teses de doutorado produzidas na UNISO e na UNICAMP. A etapa

    mais demorada e trabalhosa consistiu na localização dos jornais, leitura, seleção e transcrição

    das publicações mais relevantes, procurando estabelecer a interlocução entre os jornais a partir

    de seus posicionamentos ideológicos e de seus interesses, quase sempre antagônicos.

  • 19

    Ao transcrever as notícias dos jornais da época, O Operario, Cruzeiro do Sul e outros,

    optou-se por fazê-lo de acordo com o texto original, mantendo-se os nomes citados nas

    publicações, sem a utilização de recursos para preservar a identidade da pessoa citada. Dessa

    forma, optou-se por não fazer a omissão dos nomes, nem usar nomes fictícios ou apenas as

    iniciais, mesmo sabendo que a verdade dos fatos nem sempre se encerrava nas notícias, escritas

    a partir da visão e dos interesses de seus escritores e do lugar que ocupavam na sociedade.

    Entende-se que se trata de um procedimento arriscado, considerando que descendentes das

    pessoas citadas no decorrer do trabalho ainda vivem.

    Para trabalhar com a imprensa local, mais uma vez, recorri ao Gabinete de Leitura

    Sorocabano. Essa instituição, fundada em 1867, dispõe de um acervo riquíssimo que muito tem

    colaborado com os pesquisadores locais. Por se tratar de instituição particular, apesar de ter

    utilidade pública, sobrevive sem a ajuda do poder público, praticamente apenas das

    mensalidades pagas por seus sócios e do aluguel de algumas salas de seu prédio, por isso parte

    do acervo se encontra em estado lastimável de conservação, pela ação do tempo, fazendo-se

    necessária a urgente digitalização dos exemplares. Alguns jornais já não são disponibilizados

    para consulta, por apresentarem fragilidades como rasgos, falta de páginas e desgaste da tinta,

    apesar dos cuidados exigidos, como o uso de luvas e máscaras para o manuseio do papel, que

    muitas vezes pelo leve toque já se rompe.

    O Gabinete de Leitura Sorocabano possui uma hemeroteca bem montada, além de

    almanaques, livros, revistas, documentos como cartas de alforria, publicações diversas, livro de

    visitas com registro de passagens do Imperador D. Pedro II, do Conde D’Eu, da Princesa Isabel

    e de viajantes ilustres etc. Outro aspecto interessante do Gabinete de Leitura diz respeito ao seu

    ambiente, que permite o contato com outros pesquisadores, rendendo boas conversas, troca de

    material, indicações bibliográficas e, principalmente, a amizade que se faz. A digitalização

    vem sendo feita, no entanto, de maneira lenta.

    Atualmente, numa iniciativa particular, o jornal Cruzeiro do Sul, fundado em 1903, tem

    todo o seu acervo digitalizado, como forma de concretizar, seu Projeto Memória.

    Mergulhar nas páginas dos jornais antigos é como voltar para um tempo em que não se

    viveu. A leitura diária e seguida de muitos jornais nos transporta para um tempo vivido que

    parece ser o tempo em que aqueles fatos noticiados ocorreram. Por mais de uma vez me peguei

    sentindo a morte de alguém cuja vida acompanhei pelas páginas de um jornal, tal é o vínculo

    que o pesquisador estabelece com suas fontes.

  • 20

    O Museu Histórico Sorocabano também foi visitado diversas vezes, sendo que lá foram

    encontrados os livros de registros e matrículas das escolas públicas e particulares de Sorocaba

    e fotos referentes ao período estudado.

    Elegeram-se alguns jornais que poderiam contribuir mais com a pesquisa, selecionando

    aqueles que circularam por mais tempo e aqueles que mantiveram posicionamentos ideológicos

    mais definidos e, muitas vezes, antagônicos entre si. Os principais jornais consultados foram:

    O Sorocabano. Fundado em 13 de fevereiro de 1870. Vendido ao preço de “8$000 ao

    anno na cidade e 9$000 fora”, tinha por princípio “pugnar pelo bem público, com especialidade

    pelos interesses do município. Dar voz a todas as reclamações justas e comedidas. Reproduzir

    os clamores da lavoura e do comércio. Abrir espaços a discussões de interesse geral” (O

    SOROCABANO, 13 fev 1870, p.1). Em 01 de setembro de 1872, transformou-se em O

    Sorocaba e teve Júlio Ribeiro como redator-chefe, combatendo a dominação da igreja católica

    e defendendo com veemência a industrialização de Sorocaba. Esse jornal deixou de circular

    em 1883.

    Ypanema. Com assinatura no valor de “8$000 por anno em Sorocaba e 9$000 fora”, foi

    editado pela primeira vez em 25 de abril de 1872. Publicado “6 vezez por mez”, o jornal se

    propunha a defender os “interesses morais e materiais do município e do Sul da província”. E

    procurava “dar na parte litterária alguns bons artigos e vulgarisar os melhores escriptos de

    auctores nacionais” (YPANEMA, 25 abr 1872, p.1) Seu editor e proprietário foi Manoel

    Januário de Vasconcellos, sorocabano de nascimento e coronel da guarda nacional. Em 1880,

    passou a ser diário, alterando seu nome para Diário de Sorocaba, circulando até 1893.

    O 15 de Novembro. João José da Silva editou pela primeira vez, em 22 de fevereiro de

    1891, O Alfinete, o qual, a partir da proclamação da república, e em homenagem ao evento,

    passou a chamar-se O 15 de Novembro. “Semanário político, noticioso, humorístico e

    literário”, (O 15 DE NOVEMBRO, 15 nov 1892, p.1) transformou-se em bissemanário e,

    depois, em 1895, passou a ser diário. Sua assinatura anual era de “8$000 para Sorocaba e

    10$000 fora”. O jornal defendia o governo republicano e, principalmente, a escola pública,

    fruto benéfico da república.

    Cruzeiro do Sul. O primeiro número do Cruzeiro do Sul foi publicado em 12 de junho

    de 1903, pelo maçon Joaquim Firmino de Camargo Pires. Foi bissemanário, trissemanário,

    diário matutino, diário vespertino e, novamente, diário matutino. Favorável à escola pública,

    esse jornal lançou-se em várias campanhas, não só pela criação de novas escolas e novos cursos,

    mas também em benefício do professor. Esse jornal defendia a educação primária para

    atendimento das classes populares, especialmente os operários das fábricas, reproduzindo o

  • 21

    pensamento de seu chefe político, Luis Pereira de Campos Vergueiro, que considerava a

    educação primária e os cursos profissionalizantes suficientes para atender uma população

    majoritariamente formada por operários.

    O Operário. “Orgam de Defesa da Classe Operária” e com publicação quinzenal, O

    Operário circulou pela primeira vez em 18 de julho de 1909. Antes mesmo do seu

    aparecimento, já lhe atribuíam “origem mesquinha”, antevendo-se a sua atuação, que “visava

    um desideratum muito legítimo qual o de conseguir a união ou a solidariedade da família

    operária de Sorocaba”. O jornal, em sua apresentação, alertava que não pretendia ter nenhuma

    ligação partidária no município. Seu maior intento era o “de lançar a público uma série de

    verdades orientadoras de conduta do operariado”, em defesa da classe operária. Inicialmente, a

    pesquisa no jornal O Operario foi feita nos exemplares originais pertencentes ao acervo do

    Gabinete de Leitura Sorocabano, entretanto, após um tempo, devido ao estado precário de

    alguns exemplares, o que dificultava a leitura, passou-se a utilizar a edição fac-similar

    organizada por Rogério Lopes Pinheiro de Carvalho (2007).

    O confronto ideológico maior se deu entre os jornais Cruzeiro do Sul e o O Operario, o

    primeiro notadamente representante da burguesia local e o último declaradamente órgão de

    defesa da classe operária, uma vez que no período de veiculação do jornal O Operário vários

    outros já haviam cessado a circulação.

    É importante salientar que a imprensa operária foi um dos recursos mais utilizados pelos

    militantes anarquistas que atuavam no movimento operário. A utilização do jornal como veículo

    de comunicação foi de grande proveito para a organização da classe trabalhadora brasileira.

    Basta averiguar a intensa rede de jornais que surgiu com a fundação das ligas e uniões e a grande

    tiragem que esses jornais atingiram nos períodos que antecederam aos movimentos grevistas

    (FERREIRA, 1978). Essa afirmação torna-se verdadeira a partir da constatação de que, em

    Sorocaba, a primeira greve dos operários das fábricas de tecidos bem-sucedida, em 1911,

    ocorreu após intensa campanha feita pelo jornal O Operário para a redução da jornada de

    trabalho. Com essa greve, os operários conseguiram reduzir a jornada para 10 horas diárias, o

    que foi motivo de grande contentamento, tendo em vista que havia fábricas onde a jornada de

    trabalho se estendia por 14 horas diárias, inclusive para as crianças. Da produção historiográfica

    mais recente de autores sorocabanos, servimo-nos de trabalhos que buscam valorizar os sujeitos

    que até então se mantinham silenciados pela História reconhecida como oficial. São eles:

    Sorocaba no Império. Comércio de animais e desenvolvimento urbano (2002) de Cássia

    Maria Baddini. Apesar de esse trabalho não tratar do meu objeto específico de pesquisa,

    analisa, de forma minuciosa, todo o período anterior à industrialização em Sorocaba,

  • 22

    apresentando uma abordagem diferente sobre o desenvolvimento econômico de Sorocaba,

    especialmente no tocante à feira de muares. A autora rompe com a ideia de que Sorocaba

    dependia exclusivamente da feira de animais que ocorria anualmente.

    Memória Operária (2009), de Carlos Carvalho Cavalheiro, trabalho não acadêmico que

    procura contribuir com a história social e com a memória coletiva sorocabana. Enfatiza as

    principais manifestações de emancipação, desde a luta pela liberdade dos escravos sorocabanos,

    em 1884, até as lutas de classes e ideológicas, na década de 1930.

    Sorocaba Operária (2005), de Adalberto Coutinho de Araujo Neto, aborda a questão

    operária em Sorocaba, especialmente a sua gênese, sob o prisma político e ideológico,

    motivação maior dos sujeitos que aderiram aos movimentos sociais.

    Os autores Carlos Cavalheiro e Araujo Neto recorreram à imprensa para recuperar a

    memória do movimento operário em Sorocaba e contextualizá-lo historicamente, procurando

    dar-lhe significado.

    Este estudo privilegia o papel desempenhado pela educação no seio do movimento

    operário. O movimento operário incipiente, que buscava significação social diante dos abusos

    dos patrões e de uma legislação de dificil classificação: inexistente ou omissa? Entre as

    principais reivindicações dos operários estava o direito à instrução. Surgiram indagações. Como

    era vista a educação para os operários? Somente a educação formal era suficiente para a

    formação do operário? Que tipo de educação desejavam? Quais foram as propostas da política

    local para a escola? A elite também compartilhava o desejo da instrução para os operários? A

    educação teria contribuído para a supressão ou para a manutenção das desigualdades e injustiças

    sociais? Afinal, a educação oferecida aprisionava ou emancipava o operário?

    Os idealistas dos movimentos operários se viram diante de um impasse de difícil

    resolução. Sem educação, os operários teriam condições de conquistar os direitos trabalhistas?

    Mas como conscientizar um operário de seus direitos sem a devida instrução? A

    industrialização em Sorocaba se estabeleceu em bases capitalistas, com elementos bem

    marcantes: mão de obra abundante, especialmente formada por grande número de imigrantes,

    trabalhadores locais disciplinados e, também, lavoura de algodão bem desenvolvida, capaz de

    fornecer a matéria-prima necessária para as fábricas de tecido. Os operários das fábricas

    sorocabanas, assim como os operários de outras fábricas de São Paulo e do Brasil, enfrentavam

    longas jornadas de trabalho, exploração da mão de obra de mulheres e de crianças, cobrança de

    multas por danos nos tecidos e por atrasos. Além disso, não tinham nenhum tipo de indenização

    em casos de doença ou acidentes de trabalho, além de receberem tratamento desumano por parte

    dos mestres e contra-mestres. Em suma, a questão operária pouco significava para o governo

  • 23

    brasileiro. E era justamente uma significação social que os operários buscavam. Sem uma

    legislação que regulasse o trabalho nas fábricas, o operariado vivia a mercê dos mandos e

    desmandos dos grandes capitalistas.

    Compreenderam os operários que uma das formas de conseguir ocupar uma posição

    digna na sociedade, com melhores condições de vida, seria através da educação. Mas ela não

    poderia ficar restrita à educação oferecida pelas escolas públicas, pois necessitavam de uma

    formação integral, que lhes desse entendimento suficiente para ler o mundo que os rodeava.

    Apenas aprender a ler e escrever seria insuficiente. O operário necessitava ter visão de mundo

    em sua totalidade. “Companheiros, deveis mandar os vossos filhos a escola para que eles vejam

    a luz da verdade e da razão” (O OPERARIO, 13 maio de 1911, p.2)

    Delimitado o período de estudo e identificado o tema de pesquisa, buscou-se

    embasamento teórico em autores, listados nos parágrafos a seguir, que aprofundaram suas

    reflexões sobre a questão operária, a ideologia subjacente aos movimentos operários e a

    educação operária.

    Warren Dean, em A industrialização de São Paulo (s/d), ocupa-se do estudo da

    formação industrial de São Paulo, do surgimento do capitalismo, destacando as figuras mais

    representativas dessa fase de desenvolvimento industrial, destacando, inclusive, industriais

    importantes de Sorocaba. O estudo vai além de uma coleta de dados e informações do período,

    uma vez que o autor faz uma análise acurada, levantando, muitas vezes, hipóteses explicativas

    sobre os fatos ocorridos.

    Edgar Rodrigues, em Socialismo e sindicalismo no Brasil (1969), ao apresentar os

    objetivos do seu trabalho, elenca várias obras de diferentes autores que se debruçaram sobre

    esse tema. Entretanto, para o autor, o conjunto fica aquém do desejado. A sua obra, segundo

    ele próprio, pretendeu reunir o maior número possível de documentos, válidos e escritos por

    militantes da época, salientando as greves, o teatro social operário, as escolas livres,

    publicações, congressos, protestos, etc.

    Maria Nazareth Ferreira, em A imprensa operária no Brasil (1978), resgata a

    importância da imprensa operária, muitas vezes relegada a um segundo plano, como fonte de

    pesquisa. Para a autora, os jornais oferecem generosas informações sobre a sociedade da época,

    as condições de vida ou de sobrevivência da classe trabalhadora, permitindo a reconstrução da

    dimensão política da história social.

    Edgard Leuenroth, em Anarquismo, roteiro da libertação social (2007), reúne textos

    variados de diferentes autores, tanto pensadores anarquistas do passado quanto mais atuais,

  • 24

    sobre aspectos ideológicos da doutrina anarquista, com a pretensão de emancipar o indivíduo

    das “atrofiantes formas sociais”.

    E. P. Thompson, em A formação da classe operária inglesa (2012, p. 18), afiança que

    [...] a formação da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto

    da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril. Nem devemos

    imaginar alguma força exterior – a “Revolução Industrial” – atuando sobre algum

    material bruto, indiferenciado, e indefinível de humanidade, transformando-o em seu

    outro extremo, uma “vigorosa raça de seres”. As mutáveis relações de produção e as

    condições de trabalho mutável da Revolução Industrial não foram impostas sobre um

    material bruto, mas sobre ingleses livres.

    Friedrich Engels parece ter percorrido as fábricas e vilas operárias de Sorocaba para

    escrever A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (2010), tamanha a semelhança entre

    as condições de vida dos operários ingleses e sorocabanos. Nas palavras de Eric Hobsbawm

    (1961, p. 8), esse livro é um marco na história do capitalismo e da moderna sociedade industrial.

    “Simultaneamente erudito e apaixonado, articulando a denúncia e a análise, ele é, para dizer

    numa só palavra, uma obra-prima”.

    Francisco Ferrer y Guardia, em A Escola Moderna (2014) traça uma proposta

    educacional abraçada com entusiasmo pelos operários anarquistas, que viam nessa concepção

    de educação o contraponto da escola até então posta e que não lhes servia, ou seja, uma escola

    que não formava, não educava, apenas moldava os estudantes segundo aquilo que um Estado

    autoritário desejava para manter um sistema de exploração. Essa não era a educação pretendida

    pelos operários. Eles pretendiam, sim, uma educação para a liberdade, para uma nova sociedade

    construída por homens livres.

    Outras fontes pesquisadas contribuíram para o avanço do trabalho, como a l/egislação

    educacional pertinente ao período estudado que, nos diferentes níveis – fosse federal, estadual

    ou municipal – contemplou, com maior ou menor ênfase, o entendimento da educação

    abrangida neste estudo.

    Também foram utilizadas as memórias de vários autores que atendiam ao tempo vivido

    deste estudo e reforçaram o pensamento de que as histórias de vida se assemelham. Foi o caso

    das memórias narradas por Zélia Gattai, em seus livros Anarquistas, graças a Deus (1994) e

    Città di Roma (2000), por meio dos quais ela, filha de imigrantes, reviveu o cotidiano das

    famílias imigrantes no início do século XX em São Paulo; de Jacob Penteado, em seu livro

    Belènzinho, 1910 (retrato de uma época) (2003), em que narra o cotidiano difícil vivido por

    seus pais em Sorocaba no início do século passado, enquanto operários da fábrica Santa Rosália

    e moradores da vila pertencente a essa fábrica; e de Francisco Antonio Gaspar, nascido em

  • 25

    Sorocaba, filho de imigrantes portugueses, que narra, em Minhas Memórias (1967), o cotidiano

    da cidade, nos seus tempos de menino.

    Assim, para esmiuçar esse conjunto de fatores que permitem perceber a problemática

    da educação operária e das condições de existência dos operários de então, este trabalho

    estruturou-se em três capítulos.

    O primeiro capítulo, Os Operários, aborda as origens de Sorocaba, desde sua formação,

    por volta do século XVII, até o início da industrialização, nas décadas finais do século XIX.

    Em quase todo esse tempo, a atividade econômica principal de Sorocaba fora a feira de muares,

    que a tornou conhecida em muitas partes do país. No final do século XIX, a feira de muares,

    dando sinais de decadência, cedeu lugar a novas atividades econômicas, especialmente a

    industrialização, que marca o ingresso de Sorocaba na modernidade.

    Esse capítulo apresenta um novo sujeito nas relações de trabalho em Sorocaba: o

    operário da fábrica. Aborda as alterações verificadas na cidade a partir da instalação das

    primeiras fábricas têxteis, com a chegada dos imigrantes europeus, que significavam mão de

    obra abundante e barata para as fábricas. Trata das transformações do espaço urbano, onde o

    cantar do carro de boi foi substituído pelo apito das fábricas, das relações de trabalho, da

    dominação dos capitalistas. Enfim, refere-se ao período em que o apito da fábrica passou a

    controlar o tempo e a vida das pessoas, consolidando as práticas capitalistas. Em decorrência

    das péssimas condições de trabalho e de existência, os operários foram se unindo e se

    organizando em Associações, Uniões e Ligas Operárias, assinalando a inegável contribuição

    dos imigrantes na organização do movimento operário.

    O segundo capítulo, A grande imprensa e a imprensa operária em Sorocaba, aborda a

    imprensa enquanto objeto de estudo, e os principais jornais que circularam em Sorocaba no

    período demilitado, destacando o posicionamento político de alguns jornais tanto em relação à

    questão operária como à educação. Dá ênfase à imprensa operária, especialmente ao papel do

    jornal O Operário, que circulou de 1909 a 1913 em Sorocaba, enquanto órgão de defesa da

    classe operária, apresentando suas convicções e contradições ideológicas. Aborda a presença

    da mulher escrevendo sobre a questão operária nas colunas desse jornal, fato revestido de

    ineditismo para uma época cuja sociedade era marcadamente machista. Trata das ideologias

    que permearam o jornal, notadamente as ideias anarquistas. Apresenta, ainda, as primeiras

    tentativas de greve e a primeira greve bem-sucedida sob o olhar da imprensa e os embates

    ideológicos advindos do posicionamento dos diferentes jornais, com confronto existente entre

    o jornal Cruzeiro do Sul, representante dos capitalistas, e o jornal O Operario, defensor da

  • 26

    classe trabalhadora. Trata ainda dos motivos pelos quais este último jornal chegou ao fim em

    1913.

    O terceiro capítulo, A educação e as escolas para operários, ponto fulcral desta tese,

    aborda a escolarização em Sorocaba apresentando as poucas iniciativas escolares ocorridas no

    tempo do Império e a precariedade das escolas nesse tempo. Com o advento da República,

    especialmente no estado de São Paulo, com as reformas do ensino e a criação dos grupos

    escolares, a escola passou a ter uma missão salvacionista da nação, com a incumbência de

    deixar para trás um passado de trevas e ignorância. Mas os grupos escolares não foram

    suficientes para atender toda a demanda, pois no início só atendiam os moradores dos centros

    urbanos e as crianças pobres que moravam afastadas dessas áreas e, como precisavam trabalhar,

    ficavam excluídas da escola. Assim, a escola passou a ser usufruída apenas pelos membros já

    pertencentes à elite. Apresenta, ainda, esparsas iniciativas públicas ou particulares para atender

    aos operários, como as escolas noturnas, que atendiam somente operários do sexo masculino.

    Esse capítulo destaca, ainda, o olhar da imprensa sobre a importância em educar-se o operário.

    Como a população era predominantemente operária, o jornal Cruzeiro do Sul acreditava que

    somente a educação primária e cursos profissionalizantes seriam suficientes para atender às

    necessidades das fábricas e dos próprios trabalhadores. Já o jornal O Operario defendia uma

    educação para os operários nos moldes das Escolas Modernas ou racionalistas, conforme a

    concepção pedagógica do educador espanhol Francisco Ferrer y Guardia, ou seja, defendia a

    educação para a liberdade e emancipação da pessoa. Apresenta, ainda, fragmentos sobre o

    desenvolvimento de uma escola moderna em Sorocaba por volta de 1912.

    Este trabalho não tem a pretensão de ser o arremate da história da educação operária em

    Sorocaba, pois procurou fazer uma leitura do passado, portanto está aberto a outras indagações,

    revisões, interpretações enfim novos olhares. Tem como pretensão dar voz a homens, mulheres

    e crianças que foram silenciados pela história e talvez aí resida o seu mérito, através de um

    outro olhar e de outras interpretações, que são decorrência das minhas possibilidades de

    construção enquanto pesquisadora.

  • 27

    1 OS OPERÁRIOS

    Este primeiro capítulo trata da formação de Sorocaba desde os primórdios, enfocando

    os aspectos econômicos e sociais, até o início do processo de industrialização. Focaliza a

    trajetória bandeirante, por volta do século XVII, o chamado tropeirismo, graças à localização

    geográfica presente no caminho das tropas, que saíam do Sul em direção ao Centro-Oeste, em

    busca de ouro.

    Num ponto de descanso de tropas, foi nascendo um entreposto, transformado numa

    grande feira de comércio de muares, que teve vida longa e permitiu o crescimento do lugar.

    Com a decadência da feira de muares, em fins do século XIX, apareceu o plantio de algodão

    com períodos de altos e baixos na plantação e, consequentemente, surgiram as fábricas de

    tecidos, que absorviam essa matéria-prima. A sociedade se transformou com o surgimento de

    novas relações de produção, de trabalho e novas classes sociais repesentadas pela classe

    operária – formada em sua maioria por imigrantes estrangeiros, italianos e espanhóis – e a

    burguesia – os donos dos meios de produção, ou seja, das fábricas.

    A historiografia de Sorocaba registra seu início em 1654, quando da chegada de Baltazar

    Fernandes, sua família numerosa e aproximadamente 500 índios escravizados, vindos da região

    de Santana de Parnaíba, que se instalaram às margens do rio Sorocaba, próximo ao riacho

    Lageado, com a intenção de formar um povoado. Esclarece Almeida (1969) que, naquele

    tempo, não havia a denominação município ou cidade, mas sim o termo vila, já que, nas

    capitanias, os donatários podiam somente criar vilas. Baltazar Fernandes construiu, numa parte

    mais alta do local, uma igreja que dedicou a Nossa Senhora da Ponte. Em 1661, “a 21 de abril,

    o capm Balthasar Fernandes fez doação da Igreja de N. S. da Ponte, hoje Mosteiro de São Bento,

    aos frades Beneditinos, existentes na Villa de Parnahiba com terras e mais pertences

    (ALMANACH ILLUSTRADO DE SOROCABA, 1914, p. 145).

    O novo núcleo acabou por absorver parte de um povoado próximo, a chamada vila de

    São Felipe, e prosperou. A população era composta, basicamente, por pessoas livres pobres e

    escravos índios, que cultivavam gêneros de subsistência. As famílias mais ricas e poderosas,

    geralmente aparentadas de Baltazar Fernandes, investiam nas expedições de caça ao gentio em

    direção aos sertões do Centro-Sul do Brasil (BADDINI, 2002, p. 44).

    Nem todos iam para o sertão à caça de índios, porém todos viviam sob o ciclo econômico

    das bandeiras, porque sem os índios capturados e seus descendentes não havia fazendas e sítios

    maiores que deram vida aos pequenos comerciantes e artesãos da cidade e agregados da roça,

  • 28

    nem entrava algum dinheiro amoedado para a circulação, pois, infelizmente, o escravo era

    também vendido para fora. Custava vinte mil réis por cabeça (ALMEIDA, 1969, p. 46).

    Segundo esse pesquisador, a intensificação do bandeirantismo sorocabano deu-se a

    partir de 1680, quando diversas expedições foram organizadas exclusivamente em busca de

    metais preciosos, animadas pela descoberta do primeiro ouro de Goiás, por alguns sertanistas

    sorocabanos, como Paschoal Moreira Cabral, André de Zuñega, João Antunes Maciel e Braz

    Mendes.

    Toda as gente fora para Cuiabá em 1721. O próprio juiz ordinário não venceu o

    impacto. Largou a vara a um canto. O governador Rodrigo Cesar escrevia à Câmara

    ninguém respondia. Por fim Braz Mendes, antigo vereador assumiu a vara e

    respondeu: não ia a palácio porque não montava à cavalo, estava obeso. Não estivesse,

    teria ido à Cuiabá (ALMEIDA, 1969, p. 53).

    A Coroa portuguesa sempre conviveu com as ameaças de penetração do território

    brasileiro pela Espanha. Para garantir o domínio português, fazia-se necessário criar frentes de

    ocupação. No entanto, as regiões de exploração de ouro, mais precisamente Mato Grosso e

    Minas Gerais, careciam de tropas de muares. No Sul, elas existiam. Explica Cassia Maria

    Baddini (2002) que, dadas as condições – clima ameno, relevo suave e vegetação de pastagem

    – e a abundância de animais era relativamente fácil estabelecer uma fazenda de criação:

    instalações modestas - cercos de campos, galpões, cochos – e pouca gente para tratar do gado.

    A conjugação dos elementos: oferta de gado, necessidade da ocupação territorial e

    demanda de gado e muares nas regiões mineradoras permitiram que Sorocaba passasse a ser

    um ponto de descanso dos tropeiros que vinham do Sul em direção a região das minas, e que

    gradativamente foi se transformando em ponto de comércio. A localização de Sorocaba

    favoreceu principalmente a instalação de um Registro de Animais, em 1750, num ponto por

    onde as tropas iam se afunilando para poder atravessar a ponte existente no rio Sorocaba. Essa

    parada obrigatória dos tropeiros permitiu a realização de um comércio que, progressivamente,

    foi se consolidando numa Feira de Muares. Sorocaba se tornou bem conhecida na província de

    São Paulo por essa atividade e por ser centro arrecadador de impostos provinciais sobre o

    trânsito de tropas. Essa feira teve vida longa mesmo após o esgotamento das minas de ouro e

    delineou as mudanças urbanas em Sorocaba, bem como transformações da sociedade

    sorocabana.

    [...] os tropeiros e as tropas desempenharam, no Brasil e na América, um papel dos

    mais relevantes, quer como realizadores do progresso econômico, quer como

    incentivadores da unidade nacional. [...] Se, em meados do século XVIII, quando teve

    início este significativo ciclo histórico, coube a nós sorocabanos o privilégio de servir

    de entreposto de mercadoria altamente desejada e de local de encontro não só de

    brasileiros de todas as regiões, como de estrangeiros, cabe-nos agora, a

  • 29

    responsabilidade de divulgar junto às novas gerações, a grandiosidade de sua obra, a

    pujança de sua figura intimorata, para que todos juntos possamos reverenciar o

    Tropeiro, o lídimo representante de nossa gente, o homem simples que de modo

    efetivo, consolidou a tarefa do Bandeirante, refazendo a conquista e a posse da terra

    em cada viagem, e promoveu, com o entrecruzar de mercadorias e notícias, a unidade

    nacional” (JOB, 1983, p.5).

    O pensamento da pesquisadora Vera Job sintetiza a visão dos historiadores que

    comungam das ideias e interpretações propostas por Aluisio de Almeida quanto a identidade

    cultural do sorocabano. Para Baddini (2002) a interpretação de Job (1983) ao conceito de

    “tropeirismo” induz à identificação do “tropeiro” como categoria representativa de uma

    condição econômica, política, cultural da sociedade paulista, evidenciando a contribuição de

    Sorocaba no processo de consolidação da nação.

    A produção historiográfica de Sorocaba procura atribuir ao sorocabano características

    vindas desde há muito tempo, que foram se consolidando e formando a sua identidade, qual

    seja, a bravura do bandeirante, que não se deixava abater pelo desconhecimento das terras e

    agruras que por ventura pudesse vir a sofrer em suas incursões pelo sertão desconhecido

    brasileiro, e o tropeiro intrépido, “que ligou e manteve vivo os núcleos urbanos isolados,

    representando efetivamente o consolidador das fronteiras nacionais” (BADDINI, 2002).

    Baddini (2002), num primoroso trabalho de pesquisa sobre o comércio de animais e o

    desenvolvimento de Sorocaba no tempo do Império, apresenta, a partir do estudo da

    documentação da época, uma nova interpretação do efetivo papel da feira de muares na

    sociedade sorocabana, chegando mesmo a romper, de forma contundente, com a produção

    historiográfica que até então depositava, na realização da feira de muares, todo o

    desenvolvimento econômico, social e político da cidade de Sorocaba, ou seja, acreditava que

    Sorocaba dependia exclusivamente da feira de muares. A autora reconhece, sim, a importância

    da feira, porém ressalta que não era o único motor do desenvolvimento local. Afirma a autora

    que, nos textos de época, a feira emergiu como um evento singular de Sorocaba, favorecido

    pela afluência periódica de pessoas para o comércio de animais da região, mas não

    condicionado exclusivamente a essa prática. Isso explica sua sobrevivência como evento

    comercial importante da cidade, apesar da decadência da venda de tropas a partir de meados da

    década de 1870. Diversas práticas urbanas continuaram a ser realizadas na cidade nos períodos

    de menor comercialização na região e mesmo após a extinção do registro de Sorocaba em 1891

    (BADDINI, 2002).

    Entretanto, nesse tempo, para a pobre província de São Paulo, a feira de muares de

    Sorocaba, além de propiciar o desenvolvimento das comunicações entre São Paulo e o sul do

  • 30

    país, também pôde ser entendida como um dos negócios mais rentáveis da província por conta

    dos registros de animais. Havia a cobrança de impostos em dois registros, um localizado em

    Curitiba (que pertencia a São Paulo) e outro em Sorocaba.

    A cidade de Sorocaba sobrevivia além da feira de muares e, especialmente nos últimos

    tempos de sua realização, havia uma crescente atividade agrícola.

    A agricultura sorocabana era, em sua maior parte, dominada pela pequena lavoura,

    tocada em escala familiar e visando à produção de gêneros de primeira necessidade.

    O milho era, sem dúvida, o carro-chefe dessa agricultura, destinado ao autoconsumo

    e à venda dentro dos limites do município, voltada para viajantes e tropeiros. [...] coisa

    semelhante ocorria com a lavoura de algodão, por volta de 1800 cuja importância não

    se devia à exportação do produto em rama, mas sim à confecção dos rústicos tecidos

    que compunham a base do vestuário da maior parte da população (BACELAR, 2001

    apud BONADIO, 2004, p. 96).

    Ainda durante o tempo de realização das feiras de muares, cogitou-se a instalação de

    uma indústria têxtil em Sorocaba, incentivada por Luiz Mateus Maylasky, por meio de uma

    sociedade, conforme publicação do jornal O Araçoiaba

    Consta-nos que os srs. tenente-coronel Francisco Gonçalves d’Oliveira e Luiz

    Matheos Maylasky pretendem organizar nesta cidade por meio de acções uma

    sociedade para fabrica de tecido de algodão, para cujo fim dezejão fazer uma reunião

    dos habitantes desta cidade. Julgamos de utilidade a ideia, e fazemos votos para que

    se leve isto a efeito (O ARÁÇOIABA, 17 fev 1867, p.4).

    Essa tentativa de construção de uma fábrica de tecidos não vingou, pois, nesse momento,

    prosperava o cultivo do algodão. Conta Almeida (1969) que, em 1866, a safra de algodão foi

    de 27.291 arrobas. Entrava mais dinheiro que por meio das feiras, e elas foram se acabando.

    Era melhor plantar algodão do que viajar e sofrer por esses mundos. Normalmente o capital

    acumulado pelos negociantes de muares era reinvestido nessa mesma atividade, entretanto, a

    partir da segunda metade do século XIX outras possibilidades de investimentos passaram a ser

    consideradas por esses negociantes de tropas, que começam a aplicar seus dividendos também

    na lavoura do algodão.

    Um grande incentivador da cultura do algodão foi Luis Matheus Maylasky, estrangeiro

    que chegou a Sorocaba por volta 1865, personagem de importância na história de Sorocaba, e

    que tem causado polêmica entre os historiadores locais dada a sua origem nebulosa e rápida

    prosperidade aqui conseguida. Foi negociante de tropas, plantador de algodão e idealizador da

    construção da Estrada de Ferro Sorocabana, fundador de sociedades culturais, como o Clube

    Germânia e o Gabinete de Leitura Sorocabano em atividade até os dias de hoje.

  • 31

    A pertinácia de Maylasky não foi em vão: entre os anos de 1861 a 1875, Sorocaba

    tornou-se o mais importante centro de exportação de algodão da província de São Paulo. “Sua

    atividade como município produtor de sementes foi mais duradoura que a dos demais, e seu

    campo de influências nesse sentido fez-se sentir em outras províncias do Império ao raiar da

    década dos 70 do século XIX” (CANABRAVA, 1984, p. 123). O aumento das exportações de

    algodão ocorreu devido à Guerra da Secessão nos Estados Unidos (1861-1865), país que sempre

    foi o principal fornecedor desse produto para a Inglaterra, o maior consumidor de algodão na

    época. Com a interrupção das exportações norte-americanas, a Inglaterra necessitou de outros

    exportadores, o Brasil entrou como fornecedor e a região de Sorocaba passou a ter destaque no

    fornecimento do algodão. Essa situação ainda foi favorecida pelo fato de Sorocaba já realizar

    o cultivo de algodão herbáceo de melhor qualidade para a indústria têxtil.

    Em 1871, juntamente com um grupo de capitalistas sorocabanos, Maylasky aventou a

    possibilidade de construção de uma estrada de ferro ligando Sorocaba a São Paulo, num

    percurso de 111 km. Em julho de 1875, essa possibilidade tornou-se realidade: inaugurava-se

    a Estrada de Ferro Sorocabana. Aberta ao tráfego, a Estrada de Ferro Sorocabana visava

    principalmente o escoamento da produção de algodão, mas teve a funesta sorte de ficar pronta

    num momento de queda dos preços do algodão e de sua produção e, já em seu primeiro ano,

    estar bastante endividada com os gastos de sua construção (ARAUJO NETO, 2005). Com o

    fim da guerra civil nos Estados Unidos, após algum tempo, esse país recuperou a produção

    algodoeira, retomando o fornecimento desse material à Inglaterra. A própria Câmara de

    Sorocaba reconheceu, em 1874, que “ [...] durante o anno de 1875 será a cultura de algodão

    feita exclusivamente pelo braço escravo, pois que o baixo preço porque está sendo cotado na

    praça é tão diminuto que mais vale ao agricultor abandonal-a para plantar cereaes para o

    consummo da cidade” (CANABRAVA, 1984 p. 243).

    A queda na produção de algodão afetou mais intensamente os pequenos produtores e

    corria-se o risco de eles abandonarem o plantio de algodão. Entretanto, a cultura se manteve,

    graças, sobretudo, à ampla perspectiva de negócios de Luiz Matheus Maylasky, um dos

    fundadores da Estrada de Ferro Sorocabana. Esta, em construção, dependia basicamente do

    transporte do algodão, o principal produto agrícola. Para impedir que os pequenos lavradores

    abandonassem a cultura do algodoeiro, como estava acontecendo em outras partes da província,

    incapazes de suportar a depreciação do produto, os mais importantes comerciantes de algodão

    de Sorocaba, à frente dos quais estava Maylasky, mantiveram um sistema de adiantamento

    àqueles plantadores e se esforçaram por pagar-lhes um preço satisfatório (CANABRAVA,

    1984, p.243).

  • 32

    Se, pelas contingências do momento, a Estrada de Ferro Sorocabana não atendeu ao que

    fora proposto de início, ou seja, o escoamento da produção algodoeira, ela contribuiu para a

    chegada de pessoas, a entrada de produtos e a instalação de casas comerciais não ligadas à feira

    de muares, como: confeitarias, charutarias, armazém de secos e molhados, gráficas entre

    outros. Assim, as distâncias diminuíram e melhorou a comunicação entre as cidades da região

    e a capital.

    A Estrada de Ferro representava, pois, a modernidade, símbolo do progresso urbano,

    porém convivia com a feira de muares, expressão do rústico e do rural. Sobre a ferrovia como

    grande inovação do século XIX e suas dimensões assumidas mundialmente Eric Hobsbawm

    (2010, p. 85) compara:

    A estrada de ferro, arrastando sua enorme serpente emplumada de fumaça, à

    velocidade do vento, através de países e continentes, com suas obras de engenharia,

    estações e pontes formando um conjunto de construções que fazia as pirâmides do

    Egito e os aquedutos romanos e até mesmo a Grande Muralha da China empalidecer

    de provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo do homem pela tecnologia.

    No entanto, em Sorocaba, até 1870, o comércio de animais não era visto como atividade

    decadente ou em vias de superação pelo progresso representado pela expansão do transporte

    ferroviário.

    Já no final do Império, ao mesmo tempo que diminuía o trânsito e decaía o comércio de

    animais, questionava-se a validade da feira como condição de progresso urbano. Até então, ela

    nunca havia sido pensada como fator de degradação da cidade. As melhorias implementadas na

    cidade garantiam as áreas utilizadas pelos condutores para a passagem das tropas no centro

    urbano. No entanto, algumas medidas de saneamento, como o cercamento dos terrenos

    particulares, a conservação dos muros fronteiros às ruas e a confecção de “testadas” das

    propriedades – calçada fronteira – eram incompatíveis com a sujeira e o mau cheiro dos pastos

    de aluguel e das ruas usadas para a passagem de tropas (BADDINI, 2002, p. 213).

    Em 1897, um fator externo alertou para as necessárias mudanças sanitárias que deveriam

    ocorrer em Sorocaba: a febre amarela.

    Sorocaba foi flagelada. Todos sofreram. Centenas de sorocabanos morreram. O

    comércio fechou. A vida da cidade decaiu. [...] Era uma calamidade incomparável.

    Médicos, farmacêuticos, eclesiásticos, enfermeiros e inúmeras pessoas do povo

    ajudavam a socorrer os doentes atacados daquela infausta febre. Pelas ruas da cidade

    de Sorocaba, os carretões andavam com seus homens [...] Muitas famílias fugiram de

    Sorocaba para cidades vizinhas ou procuravam sítios nos arredores da cidade

    flagelada (GASPAR, 1967, p. 13).

  • 33

    O aparecimento da doença fora atribuído a dois “camaradas de tropas” que a trouxeram

    por ocasião da feira. Entretanto, a cidade sempre padecera com os problemas sanitários, como

    é possível observar a partir de crítica presente no jornal Cruzeiro do Sul, em seu primeiro

    número, num tempo posterior a ocorrência da epidemia de febre amarela.

    Um visitante em Sorocaba, estando comnosco, censurou a Municipalidade em relação

    á limpeza publica, salientando os montões de lixo que se encontram no largo da

    Independencia, donde exhala mau cheiro, e tambem os pés de couve que se acham, ha

    uma semana, em pleno largo do Rosario. [...] É de necessidade urgente que a Camara

    colloque um mictorio no largo da Matriz, afim de acabar de vez, com o fètido que

    exala das paredes lateraes da egreja (CRUZEIRO DO SUL, 12 jun 1903, p. 2).

    Ao fim da epidemia de 1897, a cidade foi retomando suas atividades e retornaram

    também aqueles que a tinham deixado. Como pairava o medo de uma nova epidemia, por

    medida preventiva, o trânsito das tropas foi desviado da área urbana. Entretanto, essa medida

    não foi suficiente para impedir novo surto da doença dois anos depois. Sorocaba adentrou o

    século XX assolada, novamente, pela febre amarela.

    É importante assinalar que o declínio das exportações de algodão e da feira de muares

    gradativamente foi dando abertura para uma nova possibilidade de investimentos

    aparentemente menos instável. Os donos de fortuna que, paralelamente ao comércio de tropas,

    também investiam no algodão, conseguiram superar esses períodos de crise. Os grandes

    investidores viam, na indústria, o caminho para a prosperidade, que seria fruto da reunião de

    fatores significativos, ou seja, a oferta empresarial somada à produção da matéria-prima, o

    algodão, tendo ainda uma mão de obra disponível, fosse ela formada por imigrantes ou até

    mesmo por escravos. Esses elementos, aliados a uma tecnologia para a produção do tecido,

    despontavam como promissores para o desenvolvimento da indústria têxtil. E essa indústria,

    posteriormente, consolidou-se tão fortemente que Sorocaba, por muito tempo, ficou conhecida

    como a Manchester Paulista, em alusão à cidade inglesa industrial de Manchester.

    Para a consecução desse intento, o mesmo grupo de investidores que instalou a

    Companhia Sorocabana, em 1870, no ano seguinte, criou uma sociedade anônima denominada

    “Indústria Sorocabana”, com a pretensão de criar uma fábrica de tecidos. Essa iniciativa recebeu

    o apoio da imprensa local, mas não conseguiu se estabelecer nessa época. Somente em 1882,

    instalou-se a primeira grande fábrica têxtil de Sorocaba, a Nossa Senhora da Ponte, pertencente

    a Manoel José da Fonseca, um dos homens mais ricos de Sorocaba na época, comerciante e

    exportador de algodão.

  • 34

    1.1 Os operários: nova força de trabalho “Ah, homens de pensamento

    Não sabereis nunca o quanto

    Aquele humilde operário

    Soube naquele momento!

    Naquela casa vazia

    Que ele mesmo levantara

    Um mundo novo nascia

    De que sequer suspeitava.

    O operário emocionado

    Olhou sua própria mão

    Sua rude mão de operário

    De operário em construção

    E olhando bem para ela

    Teve um segundo a impressão

    De que não havia no mundo

    Coisa que fosse mais bela.

    Foi dentro da compreensão

    Desse instante solitário

    Que, tal sua construção

    Cresceu também o operário.

    Cresceu em alto e profundo

    Em largo e no coração

    E como tudo que cresce

    Ele não cresceu em vão

    Pois além do que sabia

    - Exercer a profissão -

    O operário adquiriu

    Uma nova dimensão:

    A dimensão da poesia.”

    (Vinicius de Moraes)

    O operário imigrante estrangeiro tornou-se o elemento novo não só na sociedade

    sorocabana como de todo o país. Essa nova força de trabalho passou a compor o quadro social

    brasileiro, desempenhando funções específicas e podendo ser dividida em categorias. Segundo

    Ferreira (1978, p.49), houve o imigrante de origem urbana, que acumulava conhecimentos de

    técnicas comerciais e funanceiras e trazia consigo algum pecúlio. Esse imigrante se instalou

    nos centros urbanos e, inicialmente, dedicou-se a atividades de importação de produtos,

    transformando-se, mais tarde, em industrial.

    Outra categoria seria o colono típico, emigrado para trabalhar nas plantações de café,

    pois em seu país de origem já trabalhava na lavoura e trazia consigo família numerosa, que

    conseguiu firmar-se como colono e, mais tarde, como pequeno agricultor, possuidor de alguma

    terra.

    Houve uma outra categoria constituída de imigrantes de origem urbana, pobre, que aqui

    vieram para trabalhar na lavoura de café, porém não se adaptaram a um regime de

    semiescravidão. Abandonaram a terra e passaram a constituir um contingente de trabalhadores

  • 35

    de baixo nível ou desqualificados para o trabalho industrial, que, juntamente com os

    trabalhadores brasileiros, nas mesmas condições, compuseram uma grande massa de

    subempregados.

    Outra categoria existente, porém não numerosa, era a formada pelos operários

    qualificados, desejados pelos industriais brasileiros que os contratavam rapidamente. A

    existência de uma categoria formada por operários qualificados reafirma o baixo nível de

    qualificação da categoria anterior mencionada.

    E uma última categoria era aquela formada pelos refugiados e deportados devido a

    problemas políticos em sua terra de origem. Foram os imigrantes idealistas, cuja contribuição

    ao processo de politização dos trabalhadores brasileiros foi fundamental.

    1.2 A paisagem e tudo o mais se transforma: surgem as fábricas

    Antes de adentrar ao período de industrialização de Sorocaba, cabe registrar uma

    iniciativa de instalação de uma fiação em Sorocaba, anterior à Fábrica Nossa Senhora da Ponte.

    Por volta de 1851, começou a ser montada, por Manoel Lopes de Oliveira, um dos pioneiros da

    cultura do algodão, uma pequena fábrica com teares mecânicos, a primeira da província de São

    Paulo, com a finalidade de descaroçar, cardar, fiar e tecer algodão. Destinava-se à fiação e à

    tecelagem de algodão grosso, utilizado para confecção de roupas para escravos e pobres.

    A matéria-prima utilizada era o algodão arbóreo, abundante em Sorocaba, porém de

    qualidade inferior. A mão de obra utilizada nesse empreendimento foi a escrava: contava com

    quatro escravos e, conforme Almeida (1969, p. 237) os “escravos fizeram emperrar a máquina”

    por inabilidade técnica. Outros fatores concorreram para o insucesso dessa fábrica, como a

    inexperiência do seu proprietário no ramo têxtil, a dificuldade na obtenção da matéria-prima

    etc. Na década de 1860, essa fábrica estava com suas atividades praticamente paralisadas e não

    resistiu por muito mais tempo. Segundo o depoimento do próprio Manoel Lopes d’Oliveira,

    enviado ao Ministro da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, em 1864, o seu

    estabelecimento só havia fabricado fio de algodão, pois dava mais lucro do que se fosse tecido.

    No tempo em que trabalhava, chegou a produzir 300 onças de fio por dia, (cerca de 8 quilos),

    mas sua capacidade era de 800 onças. Referia-se à necessidade de “uma pessoa com a necessaria

    practica” para dirigir o estabelecimento, mas no momento, com o preço alto do algodão, não se

    encontrava, na verdade, interessado na fabricação de tecidos (CANABRAVA, 1984, p.280).

  • 36

    Em 1864, havia quatro fábricas no município: uma de chapéus, duas de velas de cera e

    uma de tecidos. Em 1887, eram 18: três de cerveja, quatro de chapéus, duas de licores, duas de

    redes, uma de tecidos, uma de velas de cera, quatro de vinho e uma de vinagre (BADDINI,

    2002). Segundo a autora, nessa relação ainda faltam duas fábricas de massas, uma de café em

    pó e uma de louças, organizadas entre 1885-87, e outras duas fábricas de vinho, que, como as

    outras, utilizavam matéria-prima produzida na região. Somavam-se, assim, 24 estabelecimentos

    industriais no final do Império. Mesmo podendo dispor de escravos, nem todas as fábricas de

    pequeno e médio porte o faziam, pois pertenciam, em sua maioria, a estrangeiros

    desacostumados com esse tipo de mão de obra.

    Figura 1 - Operários da fábrica de chapéus de Raszl e Rogick – Século XIX.

    Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

    Os estrangeiros traziam técnicas e experiência, o que faltava nos moradores da cidade,

    além de capital disponível para novos empreendimentos. Nos jornais da época, multiplicam-se

    os anúncios de estabelecimentos comerciais dominados por imigrantes estrangeiros,

    notadamente os italianos.

    A partir da década de 1880, a maior parte das manufaturas e fábricas organizadas em

    Sorocaba pertenciam a imigrantes italianos, como a Fábrica de Calçados de Alfredo Malzone e

    a Fábrica de Banha de Francisco Matarazzo, (1883), a Fábrica de Macarrão de Antonio Fazano

    e a Fábrica de Café em pó de Mathias Baddini, (1885), a Fábrica de Cerveja e Licores, que

    utilizava matéria-prima da região de Salvador Argento, e a Fábrica de Calçados de Giuseppi

    Argento.

  • 37

    O empreendimento de maior projeção dessa década ocorreu em 1882, com a instalação

    da Fábrica de Tecidos Nossa Senhora da Ponte, pertencente a Manoel José da Fonseca. Esse

    industrial trilhou um caminho totalmente diferente daquele assumido por Manoel Lopes de

    Oliveira. Suas máquinas foram compradas de fornecedores de Manchester na Inglaterra. O

    diretor da fábrica era Alexandre Marchisio, inglês com experiência na indústria têxtil, a matéria-

    prima passou a ser o algodão herbáceo, que favorecia a produção de um tecido menos rústico e

    a mão de obra empregada era a assalariada e livre, constituída em sua maioria por mulheres e

    crianças.

    Sorocaba vae tambem possuir uma machina de fiar e tecer. Já foram compradas nas

    acreditadas officinas dos srs. Curtis, Sons & C. de Manchester, o machinismo preciso

    pelo sr. A. Marchisio, enviado expressamente para esse fim pelo sr. Manuel José da

    Fonseca, a quem vamos dever esse melhoramento. O local escolhido para o

    assentamento das machinas é a margem do Supiriry, em terreno da exma. sra. D. Maria

    Prestes, onde foi feita a inauguração dos trabalhos da linha ferrea sorocabana. Breve

    deve aqui chegar o machinismo (DIÁRIO DE SOROCABA, 28 dez 1880, p.2)

    A instalação dessa fábrica trouxe um elemento novo, até então pouco visto na sociedade

    sorocabana: a mão de obra de mulheres e crianças, já que o seu proprietário, declaradamente

    abolicionista, recusava-se a empregar escravos em sua fábrica. O Almanach de 1884 referiu-se

    a esse estabelecimento fabril da seguinte forma:

    A importante fábrica de tecidos denominada – Nossa Senhora da Ponte, pertencente

    ao sr. Manoel José da Fonseca; [que] tece exclusivamente riscados, conhecidos no

    mercado como brins sorocabanos; trabalha com 44 teares e suas machinas

    correspondentes, tendo tambem a sua tinturaria, occupando para esses misteres um

    numero de cento e vinte pessoas, na sua maior parte mulheres e crianças (MOURA,

    1884 apud BADDINI, 2002, p. 270).

    Figura 2 - Fábrica Nossa Senhora da Ponte.

    Fonte: Museu Histórico Sorocabano.

  • 38

    Esse estabelecimento fabril, seguindo a lógica capitalista, totalmente incompatível com

    o trabalho escravo, introduziu o trabalho de mulheres e crianças, tornando-se frequente, nos

    jornais, anúncios como o que segue: “Precisa-se contractar rapazes de 12 a 15 annos e mulheres

    para o serviço da machina de tecidos do sr. M. J. da Fonseca. Para tractar na mesma machina

    (sic) com o sr. Alexandre Marchisio” (DIÁRIO DE SOROCABA, 23 fev 1882, p.2).

    Apesar de ter iniciado suas atividades no começo de 1882, foi no mês