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 A e conomi a r i be i r inha e os te m pos da natureza Ana R i e pe r 1  A história das atividades produtivas no baixo São Francisco é um espelho das formas de relação entre sociedade e natureza ao longo do tempo – não um espelho simétrico, objetivo, mas um espelho de impressões, em que as imagens se formam de maneira difusa,  podendo ser reinterpretadas repetidas vezes. A agricultura e a pesca, fundamentais para a economia da região e para a sobrevivência da  população, têm características que não chegam a constituir uma exceção dentro do contexto brasileiro das populações ribeirinhas tradicionais. No entanto, possuem especificidades ligadas ao regime de cheias do rio São Francisco e à própria história de sua ocupação. As formas particulares como a agricultura, a pesca e o transporte fluvial se estruturaram na região, atuam na construção de um conjunto de valores em que o rio tem um papel fundamental na elaboração da cultura ribeirinha. A existência da tradição naval característica do baixo São Francisco influenciou  profundamente as for mas de convivência com o rio e o modo de vida às suas margens. Os mestres carpinteiros da região e seus ajudantes construíram, ao longo de mais de um século, barcos absolutamente característicos desta região – as canoas de tolda e chatas – não existindo embarcações deste tipo em nenhum outro lugar do Brasil 2 . 1  Ana Rieper é geógrafa, mestr e em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema – UFS) e coordenadora do Projeto Memória do Baixo São Francisco. 2  Carlos Eduardo Ribeiro, projetista naval e coordenador do Projeto Canoa de Tolda, da Sociedade Sócio-  Ambiental do Baixo São Francisco Canoa de Tolda , é um profundo conhecedor das embarcações tradicionais do Brasil, tendo navegado todo o litoral do país por diversas vezes. Realiza, atualment e, pesquisa sobre as embarcações tradicionais do baixo São Francisco, apontando o caráter absolutamente original destes  barcos na his tória da naveg ação no Brasil, em especial, na n avegação fluv ial.

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A economia ribeirinha e os tempos da

natureza

Ana Rieper1 

A história das atividades produtivas no baixo São Francisco é um espelho das formas de

relação entre sociedade e natureza ao longo do tempo – não um espelho simétrico,

objetivo, mas um espelho de impressões, em que as imagens se formam de maneira difusa,

podendo ser reinterpretadas repetidas vezes.

A agricultura e a pesca, fundamentais para a economia da região e para a sobrevivência da

população, têm características que não chegam a constituir uma exceção dentro do

contexto brasileiro das populações ribeirinhas tradicionais. No entanto, possuem

especificidades ligadas ao regime de cheias do rio São Francisco e à própria história de sua

ocupação. As formas particulares como a agricultura, a pesca e o transporte fluvial se

estruturaram na região, atuam na construção de um conjunto de valores em que o rio tem

um papel fundamental na elaboração da cultura ribeirinha.

A existência da tradição naval característica do baixo São Francisco influenciou

profundamente as formas de convivência com o rio e o modo de vida às suas margens. Os

mestres carpinteiros da região e seus ajudantes construíram, ao longo de mais de um

século, barcos absolutamente característicos desta região – as canoas de tolda e chatas –

não existindo embarcações deste tipo em nenhum outro lugar do Brasil2.

1 Ana Rieper é geógrafa, mestre em Desenvolvimento e Meio Ambiente (Prodema – UFS) e coordenadora doProjeto Memória do Baixo São Francisco.2 Carlos Eduardo Ribeiro, projetista naval e coordenador do Projeto Canoa de Tolda, da Sociedade Sócio-

  Ambiental do Baixo São Francisco – Canoa de Tolda, é um profundo conhecedor das embarcaçõestradicionais do Brasil, tendo navegado todo o litoral do país por diversas vezes. Realiza, atualmente, pesquisasobre as embarcações tradicionais do baixo São Francisco, apontando o caráter absolutamente original destesbarcos na história da navegação no Brasil, em especial, na navegação fluvial.

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A rotina das viagens pelo rio marcou a história de vida tanto dos pilotos de canoa e seus

ajudantes, que viviam seu dia-a-dia literalmente “na veia do rio”, quanto da população que

via nestes barcos uma marca de sua paisagem de valores e afetos, um pedaço de sua

história.

Desta forma, a análise do desenvolvimento do cultivo de arroz, da pesca e do trabalho nas

embarcações de transporte no baixo São Francisco busca compreender as bases materiais

em que se construíram e se constróem permanentemente as formas de relação com a

natureza criadas pela população e a importância destas atividades na elaboração de sua

identidade.

2.1 . Rizicultura de vazantes

O cultivo de arroz nas lagoas marginais do baixo São Francisco representa um marco na

reprodução sócio-econômica e cultural dos moradores do lugar. Manoel Correia de

Andrade, em seu livro “A Terra e o Homem no Nordeste”, afirma que “  No baixo São

Francisco, na jusante de Propriá, a principal cultura, aquela que dava maior renda e mais

interessava aos proprietários era o arroz.” (Andrade, 1998, p.128), chamando a atenção

para a alta produtividade das terras ribeirinhas do São Francisco. Apesar de o autor

especificar sua análise na região a jusante de Propriá, o plantio de arroz de vazante teve

grande importância nas margens de todo o baixo São Francisco, sendo este o cultivo

predominante desde o início do século passado, pelo menos.

A cultura do arroz no baixo vale era associada ao regime de cheias do rio, baseando seu

calendário no ciclo de vazantes e enchentes do São Francisco. Esta atividade representavaum vínculo estreito do ribeirinho com o tempo da natureza, condicionando o calendário da

produção (e com isso da sobrevivência, pois as atividades produtivas da população

ribeirinha, em geral, estiveram sempre muito mais ligadas à subsistência que à

acumulação) ao ciclo do rio.

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Segundo Seu Romão, “mês de outubro ele enchia. Outubro, novembro, dezembro e

  janeiro, aí cabou as cheia. Quando o rio começava a secar, aí a gente metia o pau a

 plantar ”. Em janeiro o rio começava a baixar, era o fim da época da cheia. Conforme seu

curso atingia cotas de vazão mais baixas, formavam-se as praias, ou lameirão – faixas que

acompanham as margens do rio, com depósito de sedimentos argilosos deixados pelo rio

na cheia, onde era feito o plantio. Dona Cabocla comenta em seu depoimento este sistema

de cultivo:

A vazante é o seguinte: ali pra baixo daquela garoba, o rio vazava direto, ficava aquele lamerão,aquela lama. A gente ia e plantava arroz era com a lama por aqui (aponta a altura dos joelhos). Agente semeava o arroz, fazia aquele canteiro, quando acabava ia mudar (refere-se à muda, onde oarroz é arrancado e transplantado). Aquele arroz cacheava, e a gente cortava, ia bater, botava numsaco, botava dentro de casa. (D. Cabocla).

Esta argila servia de adubo e irrigação para a agricultura, pois possuía nutrientes naturais,

matéria orgânica trazida pelas águas do rio, que lavavam as margens nas enchentes, além

da umidade que se conservava na lama.

A época do plantio acontecia quando as lagoas marginais estavam cheias, os lameirões

prontos para a semeadura, e as terras mais altas não mais alagadas. No depoimento de uma

antiga agricultora, “Começava a plantar no mês de abril pra maio, aí de outubro pra

novembro era os cortes...” (D. Estela, Bom Jardim, Traipu-AL).

Observa-se uma coincidência entre as épocas de plantio (fim das cheias, entre fevereiro e

abril) e colheita do arroz (fim da época de vazantes do rio, entre setembro e dezembro),

tanto no sertão, no depoimento de Seu Romão, quanto na região de Traipu/Gararu,

conforme a fala de D. Estela e também a montante da cidade de Penedo, mais próximo à

foz, no relato do geógrafo Manoel Correia de Andrade, que observou que “ Entre Penedo e

Propriá a semeadura se procede em maio e o transplante vai sendo feito à proporção queas águas do rio vão baixando. A colheita estende-se de setembro a dezembro.” (Andrade,

op cit., p. 130).

Além do cultivo nas praias, havia também o plantio de arroz nas lagoas marginais, ou

lagoas de arroz, onde a produção era mais significativa. Quando o rio enchia, formava

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lagoas não só nas diversas depressões existentes às margens do baixo São Francisco, como

também pelo afogamento da foz de pequenos tributários. O cultivo era feito no sistema de

vazantes, da mesma forma que nas “praias”, com a construção de pequenas barragens na

foz das lagoas para controlar a saída da água para o rio, conforme o relato de Seu Romão:

“as praias que a gente diz é aqui onde a gente plantava... Quando ele (o rio) vazava muito

aí ficava aquelas praionas. Aí a gente enchia de legume. Plantava feijão, arroz.”

O depoimento de Dona Maria José, moradora de Bom Jardim, descreve detalhadamente o

sistema utilizado tradicionalmente na rizicultura no baixo São Francisco:

Primeiro fazia o canteiro. Sacudia o arroz e uma porção de gente fazia o canteiro. Bom, aí uns iamsacudindo o arroz e os outros lameando o arroz, porque é na lama, né.

(Esta era a primeira etapa da produção, com o plantio. Uns jogavam a semente manualmente e outrosiam atrás cobrindo com lama.)

Depois que aquele arroz crescia, tava grandinho, aí vai aquelas mulheres arrancar aquele arroz, aquelebatalhão de mulher arrancar o arroz. O batalhão era só de mulher, quando era pra arrancar a planta, né,aí elas iam, arrancavam a planta, botavam na lagoa e iam plantar. Agora, quando era pra plantar arrozlachado quem arrancava eram os homens, porque era muito pesado, porque as mulheres não podiamarrancar, os homens é que iam arrancar. A gente chamava arroz lachado porque era umatouceirazinha assim. Então daquela touceira fazia três, quatro, cinco covas, aí aumentava a plantação.Daí ele ia crescendo, depois botava o cacho, cacheava, depois quando ficava maduro, depois vamoscortar.

A colheita é denominada de corte, ou fechamento. O sistema manual de produção ebeneficiamento de arroz perdurou até a década de sessenta do século XX, quando foram

introduzidas as trilhadeiras ou batedeiras para tirar a casca do arroz, substituindo o processo

de batida a pau (Vargas 1999). Daí a denominação de bater  o arroz, significando tirar a

casca, ou a palha.

A produção de arroz no baixo São Francisco baseou-se na meação e no arrendamento de

terras. Vários estudiosos3 apontam para a exploração dos trabalhadores meeiros e

arrendatários de terras na região, com condições precárias de vida, sobretudo na cultura do

arroz, em que eram, muitas vezes, obrigados a vender a metade que lhes cabia ao dono da

terra por preços muito abaixo dos praticados no mercado.

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Araújo (1961) comenta o processo perverso de endividamento eterno de trabalhadores

arrendatários nos barracões das fazendas da região de Piaçabuçu. Estes fatos não podem

deixar de ser considerados, tendo sido inclusive relatados por informantes que viveram na

região há tempos atrás.

Um dos entrevistados declarou não ter sido bom o tempo que passou, quando era

empregado nas terras de um grande proprietário na região de Propriá, pois não havia

facilidade de crédito nem vendas à prestação, ele e a família andavam rotos e não iam às

festas por vergonha de não terem uma roupa decente, denunciando o estado de miséria em

que viviam.

No entanto, encontram-se associadas à “época do arroz” as idéias de fartura e solidariedade,expressas na maioria dos depoimentos cedidos nas entrevistas, filme e histórias de vida

trabalhados nesta pesquisa.

O sistema de meação dava oportunidade de trabalho para um grande número de pessoas,

mesmo aqueles que não possuíam terras. Nas famílias dos pequenos proprietários, a terra

era dividida até um limite inferior ao da subsistência familiar, permitindo, no entanto, que

mais pessoas pudessem usufruir da mesma. Isto era possível com a complementação de

renda advinda da pesca na entresafra.

A fala de Heleno, índio Xocó da Ilha de São Pedro, indica a existência do regime de

meação, onde não eram proprietários e, ainda assim, garantiam o sustento de toda a família

com peixe e arroz o ano todo. “O pessoal plantava o arroz, aí dividia com os donos das

lagoas, os patrões, os donos dos terrenos, aí fazia um paiol muito grande dentro de casa,

com as paredes de taipa, enchia, e passava o verão todinho comendo aquele arroz, e o

 peixe.”

Heleno relativiza a questão do plantio de arroz no sistema de vazantes no baixo São

Francisco, ponderando as dificuldades que enfrentavam e também a tranqüilidade com que

3 Andrade (1998), Barros (1983, 1985), Vargas (1999).

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a vida corria, por outro lado. Depois de refletir sobre a forma injusta com que era feita a

divisão do arroz com os patrões e os peixes capturados nas lagoas de arroz4, em que o dono

sempre tirava mais que o devido, conclui se perguntando por que eram mais felizes naquela

época.

Alguns trechos de depoimentos deixam clara a forma como os moradores da região, antigos

rizicultores, percebem as relações de produção empreendidas na cultura de arroz no baixo

São Francisco.

Dona Cabocla, do povoado de Mato da Onça, recorda-se: “  De um tempo atrás, a gente

  plantava arroz, nas vazante aqui até... Por todo canto era tudo cheio de arroz nessas

vazantes, era uma maravilha.”

5

 

Seu Romão afirma que plantavam arroz para comer, indicando que o excedente não existia

para o meeiro ou arrendatário. Segundo ele, “Todo mundo plantava e todo mundo tinha.

 Era cheio de arroz, feijão de corda, milho que ninguém ligava. A vida era mais fácil, nesse

tempo lá, ave Maria. A gente vivia mais tranqüilo, né ”. A alimentação era baseada no arroz,

no feijão, no peixe e na farinha de mandioca, cuja obtenção não dependia de dinheiro.

O fato de precisarem comprar peixe, arroz e feijão é hoje motivo de indignação entre a

população do baixo São Francisco, pois associam a tranqüilidade e a fartura à certeza que

tinham de que a natureza proveria os recursos necessários à sobrevivência e à reprodução

familiar. A força de trabalho era suficiente para a satisfação das necessidades de comer,

beber, locomover-se.

Dona Zezé, índia Xocó da Ilha de São Pedro, município de Porto da Folha6, acredita que no

tempo passado a vida era mais fácil porque não faltava o que comer. É interessante notar

4 O arroz era dividido em meação e o peixe em terça, ou seja, duas partes para o dono e uma para o agricultor-pescador, segundo Heleno.5 A idealização do passado, que nem sempre foi tão fácil e farto quanto o relato dos depoimentos, é umacaracterística que pode ser notada em algumas passagens. No entanto, a veracidade comprovada dos fatosobjetivos, não representa uma meta neste trabalho, e sim entender de que forma o espaço preenche aafetividade e a intimidade destas pessoas, através de suas memórias.

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que a situação dos índios Xocó atualmente é mais confortável que há vinte anos, quando

brigavam por suas terras e tinham que viver acampados sob a mira dos fazendeiros. Ainda

assim, muitos índios recordam-se do tempo das cheias como uma época “mais fácil” de

suas vidas, quando dependiam do rio para a sobrevivência e “viviam libertos”, nas palavras

de um integrante do grupo Xocó.

O modo de vida associado às cheias do rio é constantemente representado pelos ribeirinhos

através da noção de fartura. Esta palavra surge diversas vezes nos depoimentos da maioria

dos entrevistados. Segundo Seu Hamilton do povoado de Bom Jardim, “daqueles milhos lá

no fundo, até aí, ó, isso era uma lagoa. Isso aí enchia, dava o peixe, o pessoal plantava o

arroz, aqui todo mundo tinha a barriga cheia.”

Na cidade de Propriá pude conversar informalmente com alguns agricultores que trabalham

nos perímetros irrigados da Codevasf os quais também se reportaram à fartura e ao “tempo

bom”, quando havia arroz de vazante.

Hoje nestes projetos os agricultores são pequenos proprietários – antes eram meeiros ou

arrendatários –, dispõem de linhas de crédito e insumos para produzir, ainda que seja

discutível a eficácia deste sistema. A noção de que viviam mais felizes e com mais fartura

no passado reporta à importância da tradição para esta população. A técnica avançada não

trouxe “tranqüilidade” para os produtores, nem o conforto de uma vida farta de “classe

média rural”, mas desestruturou as condições materiais que eram a base das representações

de seu universo simbólico.

O batalhão do arroz era uma prática ligada àquele tipo de cultivo de arroz que sintetizava

uma série de pressupostos culturais. A colheita do arroz, em que se formavam os batalhões,

era um ritual de afirmação do espírito de comunidade, em que a solidariedade entre os

6 Sobre a integração dos índios Xocó e Kariri-Xocó na sociedade “branca” do baixo São Francisco, ver Mata(1989).

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agricultores era celebrada com trabalho em mutirão, divisão da colheita e festas. O batalhão

do arroz existia em todo o baixo São Francisco.

Dona Estela explica como funcionava o batalhão:

Juntava aquela ruma de gente, né, e passava o dia todinho cortando o arroz. Na terra de uma pessoa,pro dono da terra. Batia, depois dividia para a comunidade toda. Por exemplo, hoje é o fechamento, aí ia, ajudar o dela, aí ia, terminava de cortar, aí amanhã era na sua terra, aí ia, no outro dia era a minha.Era divertido. (D. Estela, povoado de Bom Jardim).

Na colheita, quem houvesse perdido sua safra ou deixado de produzir por algum motivo

participava do batalhão e recebia dos demais uma parcela de arroz suficiente para a

alimentação da família.

Esta festa de comunhão e solidariedade é viva na memória de muitas pessoas, mesmo que

não exista mais há cerca de trinta anos. Seu Hamilton descreve o evento, enfatizando o

aspecto ritual, festivo e de celebração.

Aí ficava aqui os homens, arrancando o arroz, que era duro e as mulher não podia. Aí colocava aquelasrouponas que fazia de saco, né, saco de açúcar, aquelas saionas pra poder se abaixar, e os chapelões depalha, enfeitava tipo reisado, aí começava a cantar, a falar verso lá. Tinha verso de Lampião, verso dotamanho da peste que eles inventavam. Só quando tava no meio d’água, com água assim no peito,enquanto tava bom, né. Quando não agüentava trazia pra fora. Aí cantava aquela ruma de gente assim,ei ei ei ei ei ei ei. Vinha embora, daqui a pouco era gente bebo era mulher era moço era menino eravelho era a peste. E daqui ia pras casas, com a roupa cheia de lama mesmo, molhado, metia a sanfona edançava até nove, dez horas da noite, tudo molhado, tudo sujo assim mesmo. (Seu Hamilton).

O significado do plantio de arroz para estas comunidades vai muito além da esfera

econômica. O arroz de vazantes referenciava, a partir do ciclo anual do rio, o calendário da

região – as épocas de construir, de pescar, de trabalhar na roça, estabelecendo também

formas próprias de relacionamento com a natureza.

Esta forma de produzir tem um valor simbólico importante na história de vida dosribeirinhos, pois fazia parte da estruturação de um modo de vida em que o sentido de

comunidade e a solidariedade eram fundamentais.

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2.2. Pesca artesanal

A sobrevivência dos beiradeiros do baixo São Francisco baseia-se na interatividade com o

meio natural. A pesca, sendo uma atividade que influencia as relações entre o homem e a

natureza, tem grande representatividade, não só como fonte de alimento mas também como

atividade profundamente envolvida nas formas da população criar seu sistema de valores a

partir da convivência com o rio.

No baixo São Francisco esta atividade é caracterizada pelo aspecto artesanal e tradicional

das formas de captura. O pescado é destinado, em maior parte, para o consumo próprio,

sendo vendido o excedente nas cidades e povoados próximos ao local de moradia do

pescador, ou para as cidades ribeirinhas que têm função de capitais regionais.

A venda do excedente varia de acordo com a quantidade pescada e com a ocupação

principal do pescador. A atividade da pesca é algumas vezes combinada com a agricultura

e/ou pecuária extensiva no baixo São Francisco, podendo também o ribeirinho dedicar-seexclusivamente à pesca. Encontra-se na região pescadores-lavradores7, que combinam a

pesca artesanal em botes a vela e a remo à pequena agricultura familiar e também

pescadores que consorciam a atividade da pesca com a criação de gado. Nesse sentido, o

baixo São Francisco não é uma exceção no contexto brasileiro, em que a combinação entre

agricultura e pesca é freqüente entre as populações ribeirinhas (Diegues, 1983). A grande

maioria dos homens do baixo São Francisco pescava, independente de qual fossem suas

atividades principais.7 Diegues (1983) aponta a existência de três grupos de pescadores do mar no litoral norte de São Paulo,também encontrados na maior parte da costa brasileira: pescadores-lavradores, que associam a pesca àatividade agrícola em pequenos lotes de terra, geralmente pescadores de praia; pescadores artesanais, quedispõem de maior autonomia por possuírem embarcações a motor próprias e pescadores embarcados earmadores que atuam na pesca comercial de maior escala. No caso dos ribeirinhos do baixo São Francisco,aplica-se a classificação de pescadores-lavradores por exercerem ambas atividades consorciadas. No entanto,

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Até a década de setenta, quando as águas do rio foram definitivamente regularizadas no

baixo São Francisco pela represa de Sobradinho8, o cultivo de arroz era a mais vultosa,

senão a mais importante, atividade produtiva da região. Conforme foi exposto

anteriormente, todo o calendário baseava-se nas épocas de plantio, transplante, colheita e

processamento do cereal.

Nas entressafras, quando a mão de obra era liberada, praticamente inexistindo fonte de

renda para estes trabalhadores, dedicavam-se à pesca, com o objetivo inicial de garantir o

alimento para a família e, por vezes, vender o excedente. A pesca realizava-se durante todo

o ano para o consumo próprio, mas nas entressafras a atividade se intensificava pela

necessidade maior de obtenção de renda. O peixe representa, para a população ribeirinha dobaixo São Francisco, a fonte de proteínas mais constante e segura, na medida em que o

pescado sempre foi abundante (hoje não é mais) e as técnicas artesanais de captura

acessíveis a todos.

Havia duas modalidades de pesca – nas lagoas de arroz, onde o peixe ficava preso quando

se fechavam suas comportas para a retenção da água, e no leito do rio, em pequenos botes.

Com a extinção das lagoas marginais pela alteração no regime hidrológico do rio São

Francisco, a pesca nestas lagoas deixou de existir.

A pesca é praticada de maneira artesanal, em pequena escala, com uso de técnicas

tradicionais9. No caso dos pescadores dedicados exclusivamente a esta atividade é mais

comum que haja excedente e que este seja comercializado.

a categoria de pescadores artesanais também se aplica devido à utilização de embarcações próprias e,

portanto, maior grau de autonomia.8 A regularização do rio São Francisco inicia-se no final dos anos 50 e início dos 60 do século XX. Seusefeitos no baixo São Francisco ocorrem na década de 70, com a construção de Sobradinho. A regularizaçãofoi planejada na década de 50 com a proposta de construção de uma série de barragens e alcançada nos anos70 do séc. XX.9 Silva et al. (1990) fazem um inventário dos tipos de pesca praticados na Várzea da Marituba, região dePiaçabuçu – AL: rede de travessia, bóia, manjuba de piau ou pescaria de manjuba, groseira, batim, pescaria delanço, pescaria de baque, manjuba de cará, facho, roncaria, jereré redondo, cuvu, covos, linha de vara, linhade mão, tarrafas e redes de arrasto. Ramos (1999) considera os níveis tecnológicos utilizados pelos pescadoresdo baixo São Francisco, como sendo adaptados às condições hidrológicas do rio e à piscosidade, não sendo

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Seu Hamilton, do povoado de Bom Jardim, mostra em seu depoimento a segurança que

representava saber que o alimento não faltaria em hipótese alguma, desde que se dispusesse

de artefatos mínimos para a pesca. 

Porque o cara que é pescador, ele ia pescar, agora... Por exemplo, ele dizia – olha, mulher, põe o arrozno fogo, que ele tinha o arroz, né, o rio enchia, eu vou ali. Quando vinha trazia peixe pra comer, pravender que dava pra comprar o açúcar, o café, o sabão, o remédio e a roupa dos filhos.

Também no universo da pesca a fartura é destacada como uma noção ligada ao passado. A

facilidade de se pescar, pela abundância de peixes no rio, é ressaltada por Seu Joviano, 82

anos, pescador, que viveu a vida toda na cidade ribeirinha de Traipu – AL:

A gente ia pescar, era peixe que era uma beleza, nesse rio... Chegava até ali, voltava que já tinha peixe

que dava pra uns dez ou doze comer. Vinha nos covo, chegava vinha cheio, às vezes vinha dois, três,cinco, seis peixes, dizia tire aí, tire aí, leve. Era assim.

A dádiva é ainda hoje uma característica que chama a atenção na convivência da beira do

rio. Seja o peixe, a macaxeira, o feijão, a acerola, o umbu ou o milho, o prazer de presentear

um amigo ou visitante exprime fortemente a solidariedade que perpassa as relações entre as

pessoas. O presente cria um vínculo entre que doa e quem recebe.10 

Outra noção fundamental para a compreensão do valor da pesca na organização da vida

social e afetiva dos homens ribeirinhos é a de autonomia. A autonomia caracteriza a

maneira como a pesca se realiza no baixo São Francisco, sempre em pequenos botes

próprios ou pertencentes a um compadre ou companheiro de pesca. O fácil acesso às canoas

(nem todos possuem uma, mas é comum tomar emprestado o bote de um amigo ou parente,

ou então sair acompanhando um companheiro que seja dono de uma pequena embarcação)

e a ausência ou flexibilidade de relações hierárquicas que os obrigue a transações

comerciais pré-estabelecidas, permite que os pescadores saiam para a pesca em função de

sua necessidade e disponibilidade. Isto não significa dizer que a vida de pescador seja umavida “descansada” – eles saem para pescar todos os dias e o trabalho é muito duro,

passando noites a fio sem dormir. No inverno ficam molhados de chuva e com frio.

rudimentares ou primitivos. Preenchem as normas das autoridades constituídas para tal e, portanto, não são osresponsáveis pelo decréscimo de peixes.10 Sobre a dádiva como um sistema de trocas nas sociedades arcaicas, ver Mauss (1974).

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A vida de pescador é considerada por eles como “uma vida liberta, vai e volta a hora que

quer. Deu fome, pega o bote, pega um peixe pra comer e volta, sem dever nada a

ninguém.” A autonomia e a liberdade são faces da vida pelas quais os ribeirinhos justificam

o prazer de viver na beira do rio, dentro deste modo de vida.

Por estarem em contato diário com as águas do rio com a fauna aquática, observando seu

comportamento nas diferentes estações, convivendo e interagindo intensamente com o

ambiente natural, o ribeirinho pescador desenvolve um grande conhecimento do

ecossistema do rio.11 

Seu João, morador de Propriá, ex-pescador, descreve o sistema de reprodução do peixe,associando este ciclo às épocas do ano em que as águas do rio estavam barrentas – nas

cheias do rio – ou claras, sem sedimentos em suspensão.

O peixe tem duas classes, sabe, tem aquele tempo que as Canastra soberba, a soberba na Canastra(época de chuvas abundantes nas nascentes do rio, na Serra da Canastra), que aí o peixe adivinha. Nomês de abril, maio, no mês de São João pra Santana, é, agosto, é a soberba lá, aí o peixe choqueia, ficachoco. Aí vai pras pedras, aí desova. Os cardume de peixe vai pras pedra tudo esperar a água barrentaaté ele ficar cego. Quando ele cega, aí ele fica choco. Fica uma pelezinha amarela na menina do olhodele, aí ele fica cego, pra quando a água barrenta chegar. Aí ela solta a ova, quando é assim ela gostadaquela água, quando a água pega a clarear, ele clareia a vista, começa a ver, aí o peixe já tá desse

tamanho. Aí é aquela safra esquisita. É peixe que não tem como nunca se acabar. É peixe, peixe.” (SeuJoão, Propriá).

É interessante notar no depoimento deste antigo pescador o profundo conhecimento das

relações ecológicas em que estão inseridas as fases de reprodução do peixe nas diversas

estações do ano. Sua explicação envolve interações entre aspectos físicos do meio

ambiente, como a composição das águas, e biológicos, como o comportamento das

“peixas” nas diferentes fases, descritos por ele detalhadamente.

11 José Geraldo Marques aponta o conhecimento profundo que os brejeiros da Várzea da Marituba, próxima àfoz do rio, têm do ecossistema complexo em que vivem e de que vivem. “  Além de inserir-se

comportamentalmente na complexa rede de um ecossistema dulciaquático influenciável pelas marés, o

brejeiro aí insere-se também cognitivamente; classificando seres e eventos, distribuindo-os no tempo e no

espaço e até descrevendo os intrincados caminhos pelos quais a energia flui através de cadeias tróficas.”

(Marques, 1995, p.51) 

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As vontades e gostos dos peixes são considerados por Seu João como elementos definitivos

para sua existência e reprodução, atribuindo aos animais características humanas. Este fato

diz muito sobre o patamar de igualdade em que o homem ribeirinho se coloca diante da

natureza.

Quanto à venda do pescado, existem atualmente comerciantes que compram o peixe

diretamente nos barcos de pesca, os atravessadores. Mas deve-se notar que em grande parte

das localidades inexistem atravessadores e o pescado destina-se ao consumo próprio, com

pequenos excedentes. A mudança ocorrida com a introdução desta figura na organização

social da pesca é relatada por um pescador:

A gente ia pescar, juntava dois ou três, vambora, vambora, que naquele tempo não tinha cambista, não

tinha ninguém. A gente salgava o peixe, quando o povo vinha do centro aí vendia. Aí passava um dia,dois, vambora, vamo sembora, não tinha a quem vender... (risos) Naquele tempo na minha idade devinte anos não tinha a quem vender peixe, não tinha cambista. A banca era ali naquela casa ali ondetem os meninos encostado nela. Ia lá e vendia. (Seu Joviano, Traipu).

A entrada em cena dos atravessadores não foi, infelizmente, a única transformação no

universo da pesca no baixo São Francisco nas últimas décadas.

O fim do regime de cheias trouxe um quadro de desequilíbrio ecológico que se agrava cada

vez mais com o passar dos anos. As barragens impedem a passagem dos nutrientes

presentes nos sedimentos em suspensão, alterando o ciclo de reprodução dos peixes. As

lagoas marginais, consideradas “berçários naturais” da fauna aquática por representarem o

local natural de desova dos peixes (ou “peixas”, como são chamadas as fêmeas), não se

formam mais, contribuindo também para a extinção de algumas espécies de peixes e

escassez do pescado em geral. A importância das cheias é analisada por um pescador:

O rio não enche mais. A água criou um mato que a gente chama de golfo, que não deixa o chumbo dastarrafas chegar no chão, fica por cima, e o peixe fica sempre por baixo da água. E a água fica muito

limpa, o rio enchia, a água ficava suja, aí todo mundo era pescador. Mas hoje tá bem difícil. (Heleno,Ilha de São Pedro).

A pesca já foi considerada na região como uma atividade relativamente bem remunerada,

fazendo com que gerações de pescadores se sucedessem com a transmissão de um

conhecimento oral. Isto lhes permitia entender a natureza e atuar junto com seu ritmo de

reprodução, exercendo a pesca de forma adaptada e não-predatória ao longo de séculos.

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Segundo Veralúcia Ramos, a pesca no baixo São Francisco,

... de atividade principal passa a secundária, exigindo a busca de outras alternativas de subsistência.Assim, representa um fracasso pessoal, por não conseguir manter o papel do provedor familiar, apesarde dominar os segredos da profissão. O passado do pescador aparece como um momento de

saudosismo, uma época em que havia esperança e segurança no seu papel enquanto patriarca da prole.(Ramos, 1999).

A pesca entra na vida dos homens do baixo São Francisco como uma atividade familiar e

constitui-se em um saber oral, passado de pai para filho. Este aprendizado “... é parte do

  patrimônio cultural herdado das gerações passadas e transmitido pela oralidade e pela

experiência do cotidiano.” (Silva, 1998, p.48). Gilberto, 43 anos, do povoado de Mato da

Onça fala da forma pela qual aprendeu a pescar junto com seus familiares:

Aí a gente foi trabalhar por conta da gente, cada um usa sua canoinha, pegou sua tarrafa, sua rede. Meupai realmente me criou pescando. E eu aprendi já posso dizer com ele, pescando, andando com ele emuma canoa, ele e mais outro parceiro. Tanto eu como meus irmãos, não sabia pescar, aprendemo aremar, andamo com eles, ele pescava.

Os pescadores iniciavam-se na pesca ainda crianças. Bastinho, presidente da Colônia de

Pesca de Traipu, 45 anos, conta que começou a pescar com 8 anos de idade. Hoje, como

grande parte dos pescadores do baixo São Francisco, não quer ver seus filhos na vida da

pesca,

porque o rio, a gente que tá aqui sabe que de pesca tá acabado. Se fosse como era há alguns anos atrás,aí dava. Não tinha emprego igual. Que todo o dia você vivia liberto, que todo dia você saía e pegava.Aí dava pra você vestir, pra comer, pra calçar, pra farrear, pra tudo. E hoje não dá pra nada.

Seu Joviano vê a desestruturação da atividade da pesca no rio como a desintegração de

todas as coisas boas pertencentes a seu universo:

Naquele tempo se pegava niquim, não era dois três, não. Era dez, doze niquins... Olha, que tempobom... E aí os niquins na rede só... Não tinha quem comesse, não ia comer sapo, porque o bicho é do jeito de um sapo. Hoje não consegue comprar niquim na banca, é difícil, quando aparece um já tem aspessoas certas pra vender né, quando tem um já tá encomendado. Mas antes sobrava, que tinha muito

peixe demais, né, hoje não existe mais peixe no São Francisco. Hoje só existe peixe de viveiro. Aquilosim era coisa boa, comadre, acabou-se as coisa boa todinha. Não tem mais coisa boa no mundo não.

Muitos ribeirinhos dizem que para comer peixe hoje no baixo São Francisco tem que

comprar. Esta é, inquestionavelmente, uma triste realidade para grande parte de uma

população ribeirinha em que “todo mundo era pescador”. Entretanto, em menor escala, a

pesca tradicional ainda subsiste.

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Ramos (1999), em seu estudo sobre os pescadores de Amparo do São Francisco, discute a

rotina da pesca no lugar, apontando a desilusão dos pescadores pela degradação ambiental

que está acabando com o peixe. Mas ainda pescam. Em toda a região a montante de Pão de

Açúcar, a pesca ainda é uma atividade que garante a subsistência de grande número de

pessoas, seja para o consumo próprio, seja para a comercialização em pequena escala. Na

banca de peixe de Pão de Açúcar todos os peixes vendidos são pescados na região (esta

constatação que se faz hoje como uma comemoração, pareceria óbvia e redundante em

tempos passados).12 

Os trabalhadores do rio geralmente saem para a pesca nas pequenas canoas no fim da tarde,

pescam a noite toda e retornam no dia seguinte pela manhã ou à tarde. As modalidadesmais comuns são a pesca com a rede, que deixam no fundo do rio durante a noite para

recolher no dia seguinte; e a pesca com o covo, uma espécie de armadilha confeccionada na

região13. A manutenção de redes e botes, é feita pelos pescadores durante o dia. Os recursos

para aquisição e manutenção dos equipamentos de trabalho muitas vezes não vem da pesca,

mas da agricultura, onde é maior a circulação de dinheiro.

A participação das mulheres na pesca se dá de forma indireta, sendo elas que confeccionam

as redes. Quando havia fartura de peixe no rio, algumas pescavam na beira do rio para a

alimentação da família. Dona Elina, moradora do povoado de Bom Jardim, tem a

lembrança de uma pesca que não existe mais. “  Eu fui pescar uma vez, pesquei só um

 peixezinho de 24 quilos, um surubim. Uma redinha velha, rasgada, e o peixe, o surubim

veio, 24 quilos.”

Seu Hamilton, 45 anos, fala da participação das mulheres na pesca e da abundância de

peixes que existia:

12 Nas bancas de peixe de cidades com tradição de pesca, como Traipu e Propriá, vende-se peixe congeladoimportado da Argentina.13 Os covos são artefatos de pesca feitos de cipó, de forma cilíndrica, confeccionados manualmente.Apresentam uma estrutura cônica em seu interior, com uma abertura na parte mais estreita, por onde o peixeentra e não consegue mais sair. Existem diferentes tipos de covo, para capturar peixes de tamanhos diversos,pitus ou camarões do rio. Ele é depositado no leito do rio e recolhido dias depois.

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 Na minha época de moleque a minha mãe, (...) a mãe de família pra dar de comer moqueca 14 aosmeninos, pegava com uma panela de barro. Botava a farinha dentro, a piaba entrava, era ou não era?Tô mentindo? Era! Tampava e botava pra fora. Era só botar no fogo. E hoje a senhora não vê nenhumapiaba no beiço d’água.

Esta mudança representa o desaparecimento de um saber oral tradicional que acompanha osribeirinhos do baixo São Francisco há, pelo menos, dois séculos. Representa também uma

ruptura da relação de convivência com a natureza, com a água, com o rio.

2.3. “As canoas são a tradição do São Francisco”

É comum encontrar nos trabalhos, estudos e relatos que tratam do baixo São Franciscoanálises da economia e do modo de vida da população ribeirinha a partir das atividades da

rizicultura, da pesca e da policultura de alimentos. São estas, de fato, questões de grande

relevância para a compreensão da forma como se estruturou, historicamente, a vida no

lugar.

A pesca sempre foi uma das mais importantes fontes de alimentos e atuou profundamente

nas formas de estruturação da relação sociedade/natureza. O arroz foi a atividade

econômica mais intensa, que empregava a maior parte da mão de obra, tendo participado de

forma fundamental no impulsionamento da economia regional até a década de setenta. A

policultura de alimentos completava a alimentação da população local e movimentava as

feiras livres da região.

É raro encontrar, no entanto, menção ao trabalho nas embarcações de transporte de carga e

passageiros. Esta atividade ocupou um grande número de pessoas no baixo São Francisco,

sendo presença constante na memória da população ribeirinha.

14 O prato conhecido por moqueca no baixo São Francisco é uma peixada feita com diversos tipos de peixespequenos cozidos na mesma panela. Na divisão dos peixes das lagoas marginais entre os parceiros e ospatrões, geralmente estes últimos pressionavam os trabalhadores para trocar os peixes grandes e mais nobrespor uma quantidade maior de peixes menores, menos valiosos.

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O intenso tráfego de canoas, carregadas de mercadorias produzidas na região significava

que havia muita gente trabalhando em sua produção e também consumindo aquilo que

estava sendo transportado. A absorção de mão de obra para o trabalho nos barcos era

significativa; encontra-se em grande parte das famílias ribeirinhas pessoas que trabalharam

embarcadas no baixo São Francisco.

Em cada barco trabalhavam seu dono, que, em geral, não embarcava nas viagens,

desempenhando mais a tarefa de fiscalizar o trabalho, receber o dinheiro e manter a canoa;

o piloto, que era o comandante da embarcação, tendo grande autonomia inclusive na

negociação de cargas e preços; um ou dois ajudantes, ou até mais, dependendo do porte da

embarcação. Havia, também, nos principais portos a estiva, onde recebiam por saco

embarcado ou desembarcado, sendo que o piloto e os ajudantes ganhavam por viagem.

Não existem informações sistematizadas sobre o tipo de construção destes barcos, pois

constituía um saber transmitido oralmente pelos mestres carpinteiros. As canoas de tolda

desapareceram do baixo São Francisco, pois se tornaram obsoletas frente às modernas

estradas e caminhões, e, além disso, a madeira para sua construção ou não existe mais ou é

encontrada a preços que inviabilizam a obra – braúna para as cavernas, pau d’arco para os

mastros e cedro para o costado. As pessoas que confeccionavam as velas, as ferragens, a

cordoaria e a parte de carpintaria – todas atividades especializadas e artesanais – estão

muito velhas ou já morreram.

Cada mestre carpinteiro tinha a sua nuance, o seu estilo. Os ribeirinhos sabem facilmente

identificar quem foi o mestre que fez uma embarcação pelas formas da proa, desenho da

popa, formato do casco. Este saber tradicional existente unicamente na memória dos

mestres carpinteiros, e guardado a sete chaves como um segredo de família, é um grande

patrimônio da região e do Brasil, e está prestes a se perder.

Grande parte dos carpinteiros navais em atividade hoje no baixo São Francisco, mais

novos, não dispensam a energia elétrica em suas atividades profissionais. Quando utiliza-se

plainas e lixadeiras elétricas na confecção dos barcos perde-se o traço característico de cada

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um e as peças ficam retas e “perfeitas”. É importante observar que esta mudança não

implica apenas em questões de ordem visual, mas também na qualidade dos barcos, uma

vez que certas curvas e certas distorções da madeira só podem ser realizadas com o

machado.

Os mestres iam aonde o trabalho estava, não havia estaleiros fixos. Os barcos eram e ainda

são construídos embaixo de palhoças feitas especialmente para cada construção, nos portos

onde ficariam as futuras canoas. No povoado de Ilha do Ferro existe até hoje uma craibeira

cuja sombra tem sido um dos estaleiros mais tradicionais da região. Por ela passaram

diversos carpinteiros que construíram muitos dos mais conhecidos barcos do baixo São

Francisco. A lancha Oriente, antiga canoa de tolda e, atualmente, última lancha de

passageiros a fazer linha de longo curso entre Propriá e Pão de Açúcar, foi reformada nacraibeira da Ilha do Ferro. Atualmente mestre Nivaldo está construindo uma lancha no

lugar.

O tamanho dos barcos era medido por sua capacidade, ou seja, pela quantidade de carga

que era capaz de transportar. O número de sacos de carvão, madeira, arroz, milho, feijão,

peixe seco, cal, etc., que podiam ser levados por cada canoa definia seu porte. Cada saco

pesava sessenta quilos. Assim, existiam canoas menores de 150, 200, 300 sacos, até as

grandes canoas de tolda de 600, 800, 1000 sacos. A maior canoa de tolda que já existiu no

baixo São Francisco foi a Igarité, de 1200 sacos.

O baixo São Francisco destaca-se dentro do Brasil pela existência de navegação fluvial a

vela com barcos de grande porte percorrendo longas distâncias. Este trecho do rio tem

muito vento, ao contrário da maioria dos rios brasileiros, e tem a tradição de construção e

navegação em barcos tradicionais em toda a região, não se limitando a algumas cidades.

Pode-se dizer que esta é uma tradição de todo o baixo São Francisco – que está se

perdendo. Construía-se e andava-se em canoas de tolda em Piaçabuçu, na foz, e em

Piranhas, no alto sertão. Era um fator muito forte de integração do baixo São Francisco,

cobria uma área grande. Antes as canoas eram o único meio de transporte coletivo do lugar.

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O percurso das canoas era de Piaçabuçu até Piranhas, distantes uma da outra cerca de 300

quilômetros pelo rio. Havia o dia certo da passagem das canoas em cada localidade,

provavelmente em função dos dias de feira. Na quarta-feira saíam de Piranhas, carregadas

principalmente de lenha para as fábricas de arroz e tecido de Penedo, Neópolis, Propriá.

Este tipo de lenha é chamado de tonelada e constitui-se de galhos de árvores diversas em

estado bruto, sem o corte em algum formato específico. Na viagem rio abaixo, contra o

vento, a correnteza ajudava a empurrar o barco. Saíam sexta-feira de Piaçabuçu,

majoritariamente carregadas de arroz, no sábado chegavam a Propriá, domingo em Pão de

Açúcar e na segunda-feira descansavam para voltar a Piranhas na terça para a viagem do

dia seguinte. Havia também as canoas que transportavam apenas passageiros.

Nem sempre esta rotina podia ser seguida à risca, pois dependiam do vento: tinham queencostar na margem quando o vento parava ou quando era época de “trevoada”, com ventos

fortes e chuva, que tornavam a viagem perigosa. Segundo Seu Abel, um dos mais

experientes pilotos de canoa de tolda do baixo São Francisco, o piloto tinha que ter

sabedoria para parar na hora certa, pois senão poderia até quebrar o mastro da canoa, um

terrível acidente.

Vera Lúcia Calheiros Mata, em estudo que realizou sobre a reconquista da terra e da

identidade dos índios Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio, analisa a importância das

relações temporais nas populações ribeirinhas do baixo São Francisco, estabelecidas a partir

do movimento do rio.

Era em torno das enchentes e vazantes do rio, da chuva e do estio que a sociedade local estruturavaseu calendário. Este organizava não apenas o ciclo agrícola, mas a noção de tempo e a distribuição doespaço social. A própria concepção de estabilidade estava circunstanciada à percepção do tempo,marcada pelo modo como o rio era visto e entendido. O futuro (...) era percebido como umareprodução do passado, pois nele também haveria o rio e suas diversas faces significativas, a chuva, overão... Desta forma de apreender o fluxo das estações decorriam as estruturas simbólicas que

caracterizavam este tempo e ordenavam as relações interpessoais. O tempo não era, pois, meramente ociclo anual que se repete, mas, antes de mais nada, a forma como a sociedade estruturava a contagemdo mesmo, tendo como referência o ciclo sazonal do rio São Francisco. (Mata, 1989, p.218)

Uma moradora da cidade ribeirinha de Belomonte – AL, comentava sobre a sazonalidade

das atividades produtivas, em função do tipo de carga que as embarcações transportavam

pelo rio:

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 Há um tempo para cada coisa. O tempo de carregar cal é depois da safra, quando o povo tá com umdinheirinho a mais. No inverno tava (referindo-se ao passado, quando havia cheia no rio) todo mundotrabalhando na sua roça. Não dá pra querer fazer uma coisa quando não é o tempo certo15.

Neste depoimento observa-se o processo de valorização de um evento, o transporte de cal,

por exemplo, dentro de uma ordem social em função do tempo. Milton Santos (1996)

teoriza sobre o tempo como intérprete da realidade dos objetos, afirmando que seu valor

(dos objetos) enquanto dado social vem de sua existência relacional que, por sua vez, é

definida por sua temporalidade.16 

No baixo São Francisco o tempo do relógio não governa o momento em que as coisas

acontecem, ou melhor, não é cobrado pelas pessoas que vivem no lugar que sejam seguidos

os horários previamente estabelecidos. Por exemplo, a saída das lanchas de transporte depassageiros tem horário marcado. No entanto, pode-se esperar por horas seguidas após a

hora marcada, por uma razão julgada justa, importante, sem que isto seja considerado

anormal, ou passível de provocar insatisfação. Se falta alguém, a lancha não sai. Se o dono

ou algum passageiro tem que resolver algum problema na cidade antes de viajar, todos

esperam. Há uma cumplicidade entre os que esperam (na lancha ou na canoa) e os

esperados, pois os papéis podem ser invertidos nas próximas viagens.

Possivelmente esta é uma herança do tempo em que o transporte na região era feito por

barcos a vela, em que tinham que esperar pelo vento para seguir viagem. Às vezes o barco

tinha que encostar na margem para esperar o vento ficar mais forte, ou então, em época de

trovoada, que são as chuvas de verão, esperar pelo tempo bom para viajar. A espera pela

permissão das forças da natureza era considerada normal e até mesmo prazerosa. “ Ai

quando as canoas paravam, botava aquele feijão no fogo, era bom demais. Você não sabe

como era gostoso aquele feijão de canoa”, diz uma professora de Belomonte – AL, que

15 A cal era utilizada na região para a construção e reforma de casas, geralmente realizadas nas épocas emque circulava mais dinheiro ou mercadorias, após a safra.16 “A idéia de tempo é inseparável da idéia dos objetos e de seu valor. (...) É o instante que valorizadiferentemente os objetos. A cada momento muda o valor da totalidade (quantidade, qualidade,funcionalidade) isto é, mudam os processos que asseguram a incidência do acontecer, e muda a função dascoisas, isto é, seu valor específico.” (Santos, 1996, pp.125-126).

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andou em canoas de tolda desde criança com o pai e o irmão. Diz que a mãe a mandava

para “vigiar” o pai em suas viagens.

Luís Carlos diz que não faltava nada nas viagens e o povo gostava. Segundo Seu Romão,

Tinha feijão, tinha onde dormir, então não precisava de mais nada. Teve uma vez que nós passemo láde fofoca quinze dias amarrado no porto do Curralinho, pra ir pra Piranhas, em tempo de trevoada, né.Dava aquele mormaço, e a gente só esperando pra ir pra Piranhas, sem vento.

A história das embarcações do rio nos conta que a mudança que mexe com a memória e as

referências dos ribeirinhos é recente, ou melhor, ainda que tenha se iniciado há décadas, é

um processo ainda em curso. O que existia não acabou de vez – mas está acabando. É um

momento de transição e de ruptura muito decisivo.

As canoas de tolda citadas nos depoimentos são Marialva, Vai Andando, Aviadora, Júpiter,

Mantiqueira, Luzitânia, Paladina, Ouro Branco, Pirapora, Seresta, Filha da Floresta,

Oriente, Adeus Olinda, Canindé, Baianinha, Buenos Aires, Nova Iorque, Igarité,

Amaralina, Paraíba, Rio Solimões, Cruzeiro do Sul, Candelária, Rio Claro, Itabajara,

Vanderlita, Nova Brasília, Sumatra, Jamaica e Maravilhosa. Os nomes das canoas dizem

muito sobre o imaginário das pessoas que tinham suas vidas ligadas a estes barcos. Os

nomes reportam a lugares distantes, como se os barcos carregassem a possibilidade deconhecer realidades exóticas; a atitudes heróicas grandiosas, como Paladina que é a

defensora dos oprimidos, que luta por justiça; a planetas distantes – Júpiter; a entes da

natureza – Filha da Floresta.

O lirismo dos nomes das grandes canoas de tolda e chatas foi desaparecendo do imaginário

da beira do rio, dando lugar a idéias modernas e “tecnológicas”, ligadas ao mundo da

televisão e do computador, nos nomes dos botes de pesca mais recentemente construídos.

São embarcações mais efêmeras – como o universo que passa a ser associado aos desejos

dos pescadores e beiradeiros -, com a vida útil muito mais curta que a de uma antiga canoa

de tolda. Alguns exemplos de nomes de botes: SBT, CNT, Excel, Tempra 16V de Luxo,

Diplomata, Romário, Bebeto, Elias Júnior, Laços de Família, Vasp.

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As embarcações do baixo São Francisco dividem-se em quatro tipos. Além das canoas de

tolda, encontram-se os botes de pesca, as lanchas a motor, e as chatas. Os botes são,

inquestionavelmente, os mais numerosos dentre os quatro tipos. São mais acessíveis por

terem o custo de construção muito mais baixo – um bote usado pode ser adquirido por cerca

de R$ 300,00, podendo chegar a R$ 600,00, se for recém construído. Podem ser utilizados

para deslocamentos curtos, para a pesca e para as corridas de canoas, que acontecem nas

festas locais. Uma canoa de corrida tem uma forma específica, mais fina e alongada, o que

faz com que seja mais veloz e também menos estável – vira com maior facilidade.

Existem pequenas variações dentro do baixo São Francisco, quanto ao formato e às cores

das velas destes barcos. Mais próximo à foz são mais quadradas e mais coloridas, enquanto

que no sertão é freqüente encontrar panos de canoas feitos de sacos de náilon (foto 10).Para subir o rio, a favor do vento e contra a correnteza, arma-se o pano e o remo vira leme.

No sentido inverso, a favor da correnteza e contra o vento, a propulsão é a remo. Na foto 10

pode-se constatar a forma como velejam rio acima.

As chatas são canoas de médio porte, menores que as canoas de tolda, sem a tolda – a cabine de

proa – e com formatos de vela triangulares, diferentemente das grandes canoas (as velas das canoas

de tolda possuem uma espécie de retranca situada no alto do mastro, denominada carangueja). Em

geral, são destinadas ao transporte de carga, principalmente lenha, carvão e gado. Existem cerca de

6 chatas navegando atualmente neste trecho do rio. As lanchas servem basicamente para transporte

coletivo de passageiros, sendo muitas das quais antigas canoas de tolda reformadas e transformadas

em lancha.

Durante a década de noventa ocorreram importantes mudanças no transporte fluvial do

baixo São Francisco. O movimento nas lanchas de transporte, as herdeiras motorizadas das

canoas de tolda, guardadas as devidas proporções, caiu de forma radical. Muitos donos de

lancha deixaram de “andar no rio” para procurar outras ocupações, como Seu Tonho da

Lancha, dono da Oriente, que vendeu a outra embarcação que possuía para comprar um

ônibus que faz, agora por terra, o mesmo trajeto que fazia pelo rio.

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A própria Oriente, último grande barco do baixo São Francisco que lembra toda semana,

quando passa, o que representava para a população olhar para o rio e vê-lo vivo, cheio de

movimento, está prestes a parar.

As últimas canoas de tolda navegando no baixo São Francisco foram a Luzitânia e a

Paladina. A Paladina teve o mesmo destino de diversas outras canoas – “se acabou” no

fundo do Velho Chico no ano de 1997, em péssimo estado de conservação. O preço da

madeira e a concorrência com os caminhões tornaram inviável a reforma. A Luzitânia foi

adquirida por uma Organização Não-Governamental do baixo São Francisco e está sendo

restaurada17 no povoado de Mato da Onça – AL. Nota-se na foto 7, o precário estado de

conservação da embarcação, que só não teve o mesmo destino das demais canoas de tolda

do baixo São Francisco – o fundo do rio – devido à dedicação de seu piloto. Espera-se quea Luzitânia possa, de alguma forma, reforçar e participar da comunhão existente entre

ribeirinhos e rio, em que os barcos têm um papel fundamental.

2.4 . Da economia regional à integração nacional

A integração do baixo São Francisco às demais regiões do Nordeste e do país fez parte do

projeto governamental que tinha como slogan a construção do “Brasil Grande”, elevando o

país à condição de potência mundial. Este programa teve diversas e profundas

conseqüências para o baixo São Francisco. A região, progressivamente, deixava de ser

autônoma.

Os anos setenta são um marco histórico na relação entre sociedade e natureza no baixo São

Francisco. Com o fechamento da barragem de Sobradinho, em 1972, regulariza-se o fluxodo rio, modificando as formas de convivência do ribeirinho com o rio e, com isto, a

importância material, simbólica e afetiva do São Francisco na história íntima e coletiva dos

moradores de sua “beirada”.

17 Não é mais um trabalho de reforma, mas de restauro pelo valor histórico da última canoa de tolda domundo em atividade, que carrega um imenso valor simbólico para a população ribeirinha.

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O rio São Francisco agora deve atender aos objetivos de gerar energia através da

construção de usinas hidrelétricas e modernizar as relações de produção na agricultura,

com a expansão do capitalismo a partir de um sucessivo rol de projetos, entre os quais

destacam-se os perímetros irrigados da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento do

Vale do São Francisco). 

Antes da intervenção estatal na região no sentido de garantir a expansão capitalista, esta

era integrada pelo rio. Não se sabe com precisão a quantidade de canoas de tolda e chatas

que existiram no baixo São Francisco, mas já foram contabilizadas mais de uma centena,

com capacidade de carga de até 12 toneladas. Estes barcos eram os elos que ligavam todos

os moradores da beira do rio. O movimento de carga e passageiros dava mobilidade aquem vivia na margem e a segurança de reconhecer na paisagem a continuidade de uma

vida farta.

Avistar as “canoonas”, como são chamadas as maiores embarcações, carregadas de arroz,

milho, feijão, algodão, tonelada, arroz, gado, peixe seco, tijolos, telhas, ladrilhos, artefatos

domésticos de cerâmica, umbu, tamancos, era a confirmação de que a colheita estava

sendo feita, casas estavam sendo construídas, as fábricas de tecido funcionando, comida

sendo cozinhada.

As mercadorias transportadas pelas canoas eram a base do comércio da região e do

consumo da população. Existe referência à feira de Propriá, no início do século XIX, como

sendo um promissor centro de comércio do baixo São Francisco, “ por ser o mercado de

todo comércio interior do São Francisco” (D. Marcos A. de Souza, apud  Mott, 1986,

p.75). Considerando a inexistência de vias terrestres de acesso que ligassem o interior

sertanejo do São Francisco às demais localidades, como a cidade de Propriá, pode-se

constatar que o transporte das mercadorias daquela região era realizado nos barcos a vela,

revelando a ancestralidade deste tipo de atividade.

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Arroz, milho, feijão, farinha e peixe eram a base da alimentação. Com os tijolos, telhas e

ladrilhos de barro produzidos nas inúmeras pequenas olarias concentradas, sobretudo, na

região do sertão, construía-se as casas, que eram pintadas com a cal também produzida no

baixo São Francisco. As panelas e potes de cerâmica serviam para guardar água e cozinhar.

Com a lenha e o carvão se cozinhava e funcionavam as fábricas de processamento de arroz

e as de tecido, estas abastecidas com o algodão também plantado no lugar.

Os tecidos produzidos no baixo São Francisco serviam para vestimenta da população, para

o ensacamento do arroz e para a confecção das grandes velas das canoas de tolda e chatas.

Observa-se, dessa forma, o elevado grau de autonomia18 do baixo São Francisco e a

integração e complementação entre os diversos setores produtivos.

Estava praticamente assegurada, no interior da própria região, a satisfação das

necessidades básicas, como comer, beber, morar, cozinhar, vestir-se, mover-se, viver entre

pessoas com quem se tem laços afetivos. A continuidade da vida dava segurança aos

ribeirinhos, pois a tradição se mantinha.

O processo de integração nacional, intensificado nos anos setenta, trouxe a competição

com os produtos vindos das demais regiões do Brasil, o acesso a bens de consumo vindos

do Sul ou das capitais nordestinas que começavam então seu processo de metropolização,

como Recife, Salvador e Fortaleza. É a partir desta época que se começa a trocar as panelas

de barro por alumínio, o fogão a lenha por gás, as indústrias locais (arroz e tecidos) passam

a mecanizar cada vez mais a produção. As mudanças começaram a ocorrer e a subverter a

ordem das coisas, quase que tida como uma “ordem natural”.

A construção de estradas facilitou o acesso às capitais e ao resto do país, encurtou as

distâncias, colocando a mensuração do tempo em outra perspectiva. Posteriormente, a

comunicação por terra entre as cidades e povoados da beira do rio fez com que o transporte

fluvial perdesse espaço cada vez mais para o transporte terrestre. O tempo do barco foi

18 Não se pretende, com isso, afirmar que o baixo São Francisco era uma região completamente autônoma,independente e fechada. No entanto, sem sombra de dúvida, o grau de autonomia no passado era muito maiordo que atualmente.

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ficando para trás, sendo substituído pelo tempo do caminhão. No barco chegava limpo,

mas demorava. A escala de valores e de referências foi, aos poucos, mudando.

As pessoas mais novas que vivem hoje no baixo São Francisco não conhecem quem mora

em outras regiões deste trecho do rio, não conhecem sequer outras cidades e povoados

ribeirinhos um pouco distantes de seus locais de moradia. Porém conhecem, sem sair de

onde vivem, lugares distantes, modos de vida exógenos que incorporam no seu dia-a-dia

no vestir, no falar, nos gostos e paladares. Através de novos padrões de consumo –

mortadela Sadia e iogurte  Danone nas vendas das pequenas cidades ribeirinhas – e da

difusão da circulação de informações pela televisão e mesmo pela escola, os jovens vão

incorporando novos hábitos e valores. Teria o advento do carro e das estradas,

estranhamente, feito as pessoas pararem de viajar?

A história da Oriente, antiga canoa de tolda transformada em lancha de transporte de

passageiros, a última que faz a linha de longo curso no baixo São Francisco entre Pão de

Açúcar e Propriá, mostra que este processo de mudança de modo de vida e escala de

valores é ainda vivo e, de certa forma, recente.

Andava cheia até, mais ou menos, 1997, segundo seu dono. Na foto 24, de junho de 1998,

observa-se que de fato a lancha movimentava um número de pessoas bastante grande.

Desde então viaja cada vez mais vazia. Passou sua freqüência para uma viagem semanal,

ao invés de duas, chegando a deixar o porto de Propriá sem carregar passageiro algum.

A integração nacional desintegrou o baixo São Francisco, fragmentando seu espaço. O

peixe é congelado – vem de longe, o arroz muitas vezes é importado de outros países ou

regiões brasileiras, a produção de panelas de barro é irrisória, tijolos, telhas, cimento,

ladrilhos, vêm de fora, o transporte fluvial se limita ao curto trajeto de travessia em alguns

locais, ou às localidades que ainda não contam com o acesso por terra.

Ao passo que a região foi sendo inserida nas redes nacionais e internacionais de produção e

circulação de mercadorias e informações, gradativamente perdia espaço seu

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desenvolvimento em bases de recursos locais, visando atender às demandas regionais. Foi,

desta forma, cada vez mais perdendo sua autonomia e aumentando a dependência em

relação aos mercados externos, cujas necessidades e metas passaram a comandar o

desenvolvimento regional do baixo São Francisco.

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