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Mãe de gato? Reflexões sobre o parentesco entre humanos e animais de estimação. Andréa Osório 1 RESUMO A reflexão priorizará pesquisa realizada entre um grupo de interessados em proteção de gatos de rua, a qual indicou que os animais parecem ser humanizados e dotados de certas características que consideramos humanas, sobretudo na forma de relações de parentesco. Ao invés de um objeto, o animal de estimação é descrito, frequentemente, como um bebê. Não se o percebe como independente de sua mãe ou pai humanos. Ser mãe ou pai de alguém é, certamente, diferente de ser mãe ou pai de alguma coisa. O presente trabalho focaliza a visão do grupo analisado, que pode ser compartilhada ou não com donos/pais de animais de estimação em geral. Cães e gatos têm sido tratados, muitas vezes, como membros das famílias, sobretudo em meio urbano ocidental moderno, mas a literatura da área tem apontado que seu status nas famílias é distinto do das crianças e a presença destas parece estar relacionada à daqueles tanto quanto o emprego de termos de parentesco para se referir às relações com o animal. O uso da terminologia de parentesco é uma analogia. Embora os animais de estimação sejam vistos como uma parentela fictícia, não somos pais e mães de gatos ou cachorros, mas de nossos animais de estimação individuais. O afeto e a infantilização destes permitem 1 Profa. Adjunta, Universidade Federal Fluminense.

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Page 1: Web viewPalavras-chave: Animais de estimação, gatos, emoções, parentesco. ... Ao campo corresponde a caça e ao remoto os animais selvagens. Os animais de estimação,

Mãe de gato? Reflexões sobre o parentesco entre humanos e animais de estimação.

Andréa Osório1

RESUMO

A reflexão priorizará pesquisa realizada entre um grupo de interessados em proteção de

gatos de rua, a qual indicou que os animais parecem ser humanizados e dotados de

certas características que consideramos humanas, sobretudo na forma de relações de

parentesco. Ao invés de um objeto, o animal de estimação é descrito, frequentemente,

como um bebê. Não se o percebe como independente de sua mãe ou pai humanos. Ser

mãe ou pai de alguém é, certamente, diferente de ser mãe ou pai de alguma coisa. O

presente trabalho focaliza a visão do grupo analisado, que pode ser compartilhada ou

não com donos/pais de animais de estimação em geral. Cães e gatos têm sido tratados,

muitas vezes, como membros das famílias, sobretudo em meio urbano ocidental

moderno, mas a literatura da área tem apontado que seu status nas famílias é distinto do

das crianças e a presença destas parece estar relacionada à daqueles tanto quanto o

emprego de termos de parentesco para se referir às relações com o animal. O uso da

terminologia de parentesco é uma analogia. Embora os animais de estimação sejam

vistos como uma parentela fictícia, não somos pais e mães de gatos ou cachorros, mas

de nossos animais de estimação individuais. O afeto e a infantilização destes permitem

vê-los como bebês ou filhos. Há, nessa infantilização, uma hierarquia também.

Palavras-chave: Animais de estimação, gatos, emoções, parentesco.

Introdução

Em abril de 2012, um aluno enviou-me por e-mail um artigo publicado no

Jornal de Santa Catarina no qual a autora, Martha Medeiros (2012), respondia às

críticas recebidas em artigo anterior pelo uso da expressão “gato morto”.

Aparentemente, os amigos dos gatos se sentiram ofendidos. A autora, por sua vez,

também. Em resposta, ela narra sua dificuldade em classificar seu status na relação com

seu gato, chamado Nero. Oscilando entre a propriedade e o parentesco, faz uma

digressão dos prós e contras de ser dona ou de ser mãe de gato e termina sem tomar uma

posição fixa, ao mesmo tempo afirmando-se “mãe do Nero”. Ser mãe de alguém é,

certamente, diferente de ser mãe de alguma coisa. Essa história é apenas o mote para

1 Profa. Adjunta, Universidade Federal Fluminense.

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uma reflexão sobre um tipo de relação que tem chamado a atenção dos pesquisadores

nas últimas décadas (Albert & Bulcroft, 1987; Belk, 1996; Oliveira, 2006; Charles &

Davies, 2008; Kulick, 2009; Duarte, 2011).

Tal reflexão priorizará pesquisa realizada entre um grupo de interessados em

proteção de gatos de rua, a qual indicou que os animais parecem ser humanizados e

dotados de características humanas, sobretudo na forma de relações de parentesco. Ao

invés de um objeto, o animal de estimação é descrito, frequentemente, como um bebêi.

Não se percebe o animal como independente de sua mãe ou pai humanos. O presente

capítulo focaliza a visão do grupo analisado, que pode ser compartilhada ou não com

donos/pais de animais de estimação em geral.

Leach (1983), em estudo sobre abuso verbal e categorias animais, indica como

este tipo de abuso verbal está subsumido ao campo do sacrifício animal e do totemismo.

O totemismo é um aspecto de relações simbólicas entre humanos e animais que envolve,

segundo Lévi-Strauss (1986), relações de parentesco e comestibilidade. Ocorre que os

animais aos quais nos sentimos parentes são, em geral, animais que não comemos ou

que não queremos/podemos comer (Leach, 1983).

Cães e gatos têm sido tratados, muitas vezes, como membros das famílias,

sobretudo em meio urbano ocidental moderno. Chamamo-los, no Brasil, de animais de

estimação. Sua carne não é comida e a relação que mantém com humanos pode ser de

afeto, de companhia, mas também de trabalho, como no caso de cães de guarda. O que

chamo de animal de estimação aqui, como Ritvo (1987), é aquele que não precisa

trabalhar, mas vive apenas para ser sujeito de afeto humano. Para Thomas (1988), o

nome, a habitação junto aos humanos e a não comestibilidade são os traços marcantes

do animal de estimação.

Um grupo de proteção a gatos de rua

A pesquisa que suscitou uma reflexão sobre o tema do parentesco (com o)

animal teve início em 2009 e deu-se em ambiente de Internet. Acompanhei a troca de

postsii de membros de uma comunidade do Orkut que congregava interessados no

resgateiii de gatos de uma praça arborizada de um bairro de classe média da Zona Norte

da cidade do Rio de Janeiro onde, segundo os membros da comunidade, são

constantemente abandonados gatos. A partir de 2012, porém, a comunidade se esvazia

no Orkut e se reúne, simultaneamente, no Facebook, rede social análoga. Contudo, o

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material coletado aqui proveio da primeira fonte, que não é fundamentalmente diferente

da segunda em termos de valores, narrativas e imaginário do grupo em questão.

Os dados do grupo devem ser lidos a partir do viés metodológico da

“netnografia” (Hine, 2000). Este tipo de pesquisa antropológica foi formulada para ser

utilizada em ambientes de Internet. Consiste em uma etnografia das relações sociais

estabelecidas no ambiente de rede virtual. Não cabe, nesse sentido, como salienta Hine

(2000), uma comparação estrita entre o universo virtual e aquele não virtual, como se

um fosse mais real do que o outro, mas uma compreensão do que ocorre no ambiente

virtual per se, a fim de se compreender a dinâmica das relações sociais ali. Para o

presente trabalho, uma exploração metodológica mais profunda sobre o funcionamento

do Orkut e da comunidade analisada não é necessário. Basta indicar que os dados

levantados são narrativas, discursos escritos sobre si e sobre os outros, embora

obedeçam a uma dinâmica específica do Orkut como ferramenta de comunicação.

A comunidade foi criada em 7 de agosto de 2009 com a intenção de congregar

pessoas interessadas em efetuar o manejo dos animais, e contava, em maio de 2012,

com cerca de 560 membros. Por manejo entendo o conjunto das atividades exercidas

por alguns dos membros da comunidade, sobretudo a sua fundadora. Consistem em

arrecadar dinheiro para a alimentação dos animais no parque, consultas com veterinário

para os que estão doentes, exames clínicos, medicação, vacinação, castraçõesiv de

machos e fêmeas, cuidados gerais com filhotes e encaminhamento de filhotes e adultos

para adoção.

O esquema do manejo é complexo: o animal tem que ser capturado in loco,

levado para lar temporáriov, despugnizado, vermifugado, vacinado e castrado antes de

encaminhado para adoção. Esse processo é efetuado tanto com filhotes quanto com

adultosvi. A escassez de lares temporários e de vaga nos mesmos impossibilita que

todos os animais sejam retirados da praça ao mesmo tempo. Em novembro de 2009, a

fundadora da comunidade indicava que havia uma colôniavii de 70 gatos quando do

início dos resgates, que chegaram a 269 animais segundo um post de 17 de dezembro

de 2012. Observa-se claramente, portanto, que o trabalho de retirada dos gatos não

extingue seu contingente. Ao mesmo tempo em que uns são retirados, outros são

abandonados e os gatos não retirados do local continuam se reproduzindo.

Uma das razões por trás do trabalho de manejo é a ideia de que não sobrevivem

sem intervenção humana. Combate-se a noção de que animais de rua existam. Toma-se,

na maior parte das vezes, a posição de que todos os animais do parque são

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abandonados, muitas vezes indicando-se diretamente que todos tiveram uma família um

dia, referindo-se a uma unidade doméstica humana. O abandono, segundo o grupo, tem

como efeito a multiplicação de animais sem condições de sobrevivência, dado que sem

família, o que implica em mortes por acidente, doença, maus tratos e desnutrição. Essa

situação é vista como moralmente incorreta: deve-se atuar contra ela, intervindo na

realidade, educando, resgatando, disponibilizando para adoção e, sobretudo, castrando

os animais. A castração é uma das principais preocupações do grupo, na medida em que

percebem empiricamente um abandono de filhotes que, fossem os gatos “da casa”viii

castrados, não existiria.

O grupo limita-se de forma praticamente exclusiva a falar sobre gatos. O

abandono de cachorros, por exemplo, não é um tema de atuação ou discussão do grupo

pesquisado. Nesse sentido, não se trata de um grupo que se apresenta como de defesa

dos direitos dos animais ou do meio ambiente, mas um grupo de ajuda mútua, suporte e

apoio àqueles que efetuam ações de resgate de gatos na praça em questão, embora nem

todos os membros residam no Rio de Janeiro e alguns deles efetuem resgates nas suas

cidades.

Um dado que chama a atenção é a quantidade majoritária de mulheres. Num

levantamento quantitativo de 523 membros da comunidade, 75 declaravam-se homens

(14%) e 448 (85%) mulheres. Não foi possível desenvolver um perfil de todos os

membros, visto que essas informações são disponibilizadas pelo usuário do Orkut de

forma não compulsória. Assim, apenas 9% dos membros da comunidade

disponibilizaram sua idade, o que não contribui para a construção de faixas etárias

representativas do total de membros. O baixo percentual de informações pessoais

também foi observado quanto a categorias como relacionamento (21% responderam),

filhos (45%), etnia (36%), religião (39%), orientação sexual (19%) e pessoas com quem

reside (33%). O percentual se refere ao total dos 523 perfis consultados e as categorias

são campos de resposta simples ou múltipla existentes na própria plataforma Orkut.

Ainda que os percentuais sejam baixos, creio que é interessante perceber, de

forma sintética, que: apenas 50 (45%) entre 111 membros declaram-se casados; 126

(53%) em 235 declaram não ter filhos; 113 (59%) em 189 declaram-se brancos; 100

(48%) em 207 se declaram cristãos, subsumidas ai todas as categorias identificadas

(católicos, anglicanos, protestantes, Santos dos Últimos Dias, outros); 84 (95%) em 88

se declaram heterossexuais. As demais categorias apresentaram respostas difusas não

permitindo uma junção representativa. Embora os números aqui apresentados não sejam

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amostrais nem tampouco permitam inferir que esta seja a realidade preponderante em

termos de um perfil dos membros da comunidade, fornece um retrato daqueles que

disponibilizaram tais informações.

O que precisa ser ressaltado é a maioria feminina na comunidade. Outros estudos

sobre protetores de animais (Zasloff & Hart, 1998; Herzog, 2007; Neumann, 2010) têm

indicado que essa é uma atividade feminina. A consequência dessa maioria é que todas

as citações de posts da comunidade utilizadas aqui são de mulheres. Falar em uma “mãe

de gato” não exclui a existência de um “pai de gato” e, nesse sentido, a terminologia de

parentesco é utilizada para ambos os sexos. Porém, com uma maioria feminina, o

discurso das mulheres é majoritário e os homens da comunidade pouco se manifestam,

com exceção de um único deles. Assim, não se deve concluir que as mulheres utilizem

mais a terminologia do parentesco para definirem sua relação com seus animais de

estimação, mas sim que seu discurso é mais visível na comunidade e, por isso, foi

priorizado nesta reflexão.

Oliveira (2006) indica que observou, numa clínica veterinária carioca, que a

alguns cães era dado o sobrenome da família de seu dono, em contraposição aos cães-

objeto de criadores cujo sobrenome é o nome do canil. No Orkut, a autora observou que

os cães eram descritos como parentes: filhos e irmãos. Muitos dormiam na cama com

seus donos, casados ou solteiros. Na pet shop em que efetuou observação de campo,

falava-se com eles da mesma forma que se costuma falar com os bebês humanos.

Segundo ela, o cão é comparado a uma criança humana de até dois anos e se afirma

reconhecer no cão emoções e sentimentos, como o “amor verdadeiro”. Não obstante,

indica também que a explicitação de afeto do dono pelo cão era mais comum entre as

mulheres do que entre os homens e debita tal assimetria às relações de gênero brasileiras

que demandam dos homens uma contenção maior na expressão das emoções. Desta

forma, o cuidado com os cães seria uma tarefa mais comumente desempenhada pelas

mulheres do que pelos homens, na medida em que o cão é uma criança e o cuidado das

crianças ainda é visto como tarefa feminina.

Na comunidade que analiso aqui, os homens quase não participam, com exceção

de um deles, bastante ativo na escrita. Contudo, ele utiliza mais raramente categorias

emocionais, embora utilize igualmente a ideia de que os gatos são bebês, especialmente

os filhotes, o que demonstra que a expressão de emoções é um fator que não se

confunde com o que chamo aqui, um pouco ironicamente, de parentesco animal, ou

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parentesco com o animal. Esse parentesco, como pretendo demonstrar, apresenta

contornos específicos.

Mãe de gato

Ao iniciar esta reflexão, havia chamado a atenção para as relações de parentesco

estabelecidas entre humanos e gatos. As donas de gatos são mães (na comunidade

pesquisada são mami/mamis), eles são seus bebês (ou filho/ filhogato). A ambivalência

entre sujeito e objeto, mãe e dona, apresentada por Medeiros (2012), se reproduz aqui

também, pois os gatos não se tornam humanos, embora se tornem sujeitos e filhos.

Uma pesquisa a partir dos nomes de comunidades no próprio Orkut indicou, em

novembro de 2009, oito comunidades com as palavras-chave “dono” e “mamãe”

referindo-se, todas elas, a que não se chame de dono o proprietárioix de animal de

estimação, mas de mãe. A busca cruzada com as palavras “dono” e “mãe” indicou sete

comunidades, seis delas referindo-se a que não se chamasse de dono o proprietário de

animal de estimação, mas sim de mãe/pai. Quando a busca foi efetuada a partir das

palavras “dono” e “pai”, o número de comunidades subiu para 150, poucas delas

relacionadas a animais de estimação, a maioria se referindo à propriedade de empresa

(madeireira, perfumaria, montadoras de carro, empresa aérea, restaurante, posto de

gasolina, etc.), o que ocorreu também com a busca cruzada das palavras “dono” e

“papai”, cujas duas respostas indicam posse de empresa. Interessante observar que as

mulheres não são donas de empresas e a única propriedade cruzada com a palavra

“mãe” é a de um animal. Mantém-se no imaginário, portanto, a ideia de que empresários

são homens e de que a propriedade privada é uma característica masculina,

permanecendo as mulheres imaginariamente desprovidas de propriedade. Este

imaginário coaduna-se à invisibilidade do papel das mulheres nas atividades produtivas,

seja no campo, seja na cidade.

Conforme Strathern (2006), o pensamento ocidental tende a raciocinar em

termos de propriedade e não, por exemplo, em termos de trocas, como na Melanésia,

foco de análise da autora. Assim também o fazem os sujeitos desta pesquisa: embora

não se pretenda dizer “dono de gato”, diz-se “meu gato” como se diz “meu bebê”,

referindo-se ao gato. É a mesma forma de propriedade que se usa quando se fala em

relações de parentesco: minha mãe, meu pai, meus filhos, etc. Ao substituir a ideia de

dono pela de mãe/pai, o grupo não necessariamente exclui as relações de propriedade,

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pois nossas relações de parentesco são baseadas também em ideias de propriedade

características do mundo ocidental.

Seguem abaixo alguns excertos da comunidade:

“Mais uma ganhou um novo lar. Levei agora p/ sua nova dona” [11 de agosto de 2009, G.

S.]

“Esse papi e essa mami vão ter que repartir o Floquinho com a gente, rsrsrs” [11 de agosto

de 2009, F. E.]

“Ele foi muito arisco, mas a fome foi maior e ele confiou na mãezinha aqui. É o meu

‘gordão’. Meio angorá e laranjinha. Tudo que a mamãe aqui queria!!!” [12 de agosto de

2009, F. E.]

“Nossa mascotinha foi adotada. Segunda a levarei p/ a nova família e tirarei fotos” [22 de

agosto de 2009, G. S.]

“toda feliz levando sua filhogata na saída da clínica” [22 de agosto de 2009, G. S.]

“Parabéns pelas atitudes de voces, e que apareçam outras mamis aqui dispostas a levar

esses amores pra casa.” [25 de agosto de 2009, J.]

“que emoção ver a foto da minha filhota assim no quentinho....Nossa...como amo minha

filhota.....não sei mais viver sem ela!” [06 de setembro de 2009, I.]

“vai ser filho unico cheio de mimos” [12 de setembro de 2009, G. S.]

“parabens a todos os adotantes pela atitude e para os bebes, mta [muita] sorte nesta nova

vida” [22 de novembro de 2009, P.]x

Os gatos resgatados são encaminhados para a adoção por uma família. Aquele

que cuida do animal é sua mãe/pai. Aquele que cuida do animal de rua, mas não o

adotou, é protetor/a. Às vezes utiliza-se mãe, mamãe e filho entre aspas. Parece-me que

o uso das aspas como um estado de exceção, bem como o uso de corruptelas como

mami, mamis, mamy ou papi e a junção filhogato são formas ortográficas de criar uma

classificação diferenciada entre humanos e animais. Os gatos são adotados por

humanos, tornam-se como se filhos, mas, como nem humanos se tornam gatos nem

gatos se tornam humanos, as categorias criadas diferem ligeiramente na escrita quando

são utilizadas para relações humano-animal e quando são utilizadas para relações entre

humanos. Assim, o grupo diferencia animais de estimação de humanos, embora indique

que ambas as relações são análogas, ou seja, metafóricas, como no totemismo (Lévi-

Strauss, 1986).

A transposição do universo doméstico que os gatos habitam é feita à imagem e

semelhança das relações humanas. A unidade doméstica é o espaço da família e das

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relações de parentesco, pensadas como relações de afeto. Humaniza-se o animal que

habita a casa e se o inclui na família: ele é uma criança, um filho, um bebê, demanda

cuidados, precisa de mãe, precisa de família, não pode andar na rua, deve permanecer

seguro dentro de casa. O cuidado e a proteção parecem, neste universo, caminhar juntos.

Proteger um animal de rua é retirá-lo da mesma, resgatá-lo, dar a ele um lar e uma

família. Cuidar de um animal adotado, ou adotando-o, é protegê-lo. De fato, nem todo

proprietário cuida de seu animal e, do ponto de vista do grupo, o abandono é a maior

prova disto. Na rua, o gato sofre:

“Se cada pessoa adotasse um gatinho daquele parque acabaria aquele sofrimento” [10 de

agosto de 2009, G. S.]

“Será que quando uma pessoa joga um animal ao relento não se dá conta que ele sente, frio,

fome, medo e horror ao se sentir desprotegido???” [06 de setembro de 2009, K.]

“como é bom saber que um animal que tinha um destino tão incerto, não conhecia uma casa

e nunca teve a oportunidade de viver uma vida digna hoje está feliz e adaptado num lar

cheio de amor.” [16 de setembro de 2009, G. S.]

“Existem muitos gatinhos abandonados em toda parte, e nós não podemos deixar esses

seres tão meigos ao relento.” [11 de outubro de 2009, J.]

“foi uma adoção esperada, ele segue agora sua vidinha c/ uma família que o abraçou c/

muito amor. lar responsável, não terá acesso a rua e todo seu sofrimento ficou p/ trás” [06

de março de 2010, G. S.]

“dona nilce se compadeceu e a levou p/ seu apartamento que é telado. acabou o abandono

graças a deus” [15 de março de 2010, G. S.]

“que seriam deles se estivessem no parque até hoje? aliás não estariam, pq [porque] depois

das enchentes coitados dos bbs [bebês] abandonados por aí , morreram todos. estão num lar

seguro cobertos de atenção e muito longe da fome e tudo de ruim que um animal passa na

rua” [19 de abril de 2010, G. S.]

O acesso à rua é um dos principais pontos de debate na chamada posse

responsável, protocolo de manejo requerido dos proprietários de gatos pelo grupo

pesquisadoxi. O acesso à rua é visto como prejudicial ao animal em vários aspectos: ele

pode ser roubado, atropelado, morto intencionalmente por humano, morto por cachorro,

contrair doenças, perder-se, emprenhar. A rua não é o espaço dos gatos, mas sim a casa.

Neste ponto, inevitável recordar um dos clássicos de Roberto DaMatta, A Casa e a Rua

(1991). Segundo o autor, a rua no Brasil é espaço público, espaço de ninguém, onde as

regras podem não ser cumpridas, perigoso e masculino. A casa, ao contrário, é espaço

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feminino, protegido e resguardado, privado, regrado e ordenado. Como os humanos,

sobretudo os do sexo feminino, os gatos devem permanecer em casas e apartamentos.

O imaginário do grupo aponta o animal de estimação como aquele que deve,

necessariamente, habitar o ambiente doméstico. Este ambiente, por sua vez, é o da

família, o do cuidado, o do amor, o da proteção. A rua é sua antítese. Nesta perspectiva,

o animal é tomado como um ser extremamente frágil, que depende de humanos para

sobreviver e cujo habitat é essencialmente humano, posto que uma casa humana. Não

são criaturas da natureza, por assim dizer, mas da cultura, se tomarmos o universo

humano como estritamente cultural. Nesse sentido, ganham uma posição dentro deste

universo, não apenas como animais de estimação, o que os diferencia de outros animais,

mas como membros de uma família humana, seu habitat necessário.

Relações metafóricas

Se o grupo analisado não entende a relação de parentesco como transformando o

animal em um ser humano, então essa relação é metafórica. O uso da terminologia de

parentesco para descrever a relação com o animal de estimação ou o próprio animal em

termos de relações sociais humanas é apenas uma analogia. Charles & Davies (2008)

indicam que, embora os animais de estimação sejam vistos como uma parentela fictícia,

podemos nos apresentar como mães, pais ou avós destes animais.

Belk (1996) efetuou uma análise de alguns fatores implicados nessas relações

metafóricas. Em primeiro lugar, elas pressupõem uma humanização dos animais. Ser

um humano ou quase humano é pré-condição para ser considerado um membro da

família. Contudo, tal humanização, ou antropomorfização, é encontrada em outras

situações, como na literatura e no audiovisual televisivo ou cinematográfico. A

tendência a ver os animais de estimação como parentes apresentar-se-ia de duas formas:

pelo antropomorfismo e pela inclusão do animal nos rituais familiares (Belk, 1996).

Segundo o autor, existem limites para essa inclusão e nem todos os proprietários de

animais de estimação comportam-se ou pensam desta forma. Há muitas maneiras de se

relacionar com animais.

Nesse processo de humanização, ter um nome, segundo Belk (1996), é

fundamentalxii. Alguns proprietários podem conversar com seus animais, afirma ele,

inclusive utilizando uma forma de conversa característica de interações com bebês

humanos, o que evidencia uma tendência a infantilizar os animais de estimação. Assim,

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tais animais podem ser explicitamente vistos como filhos ou netos, às vezes mesmo

como substitutos de filhos e netos humanos. O adestramento do animal se torna então,

diz o autor, um processo de adaptação de um novo membro da família, que deve adotar

certas condutas da rotina doméstica e passa a ser incluído nesta. Não obstante, essa

inclusão não iguala humanos e não humanos em termos de direitos e responsabilidades.

Não se espera que os animais tenham a mesma conduta dos humanos. Ao contrário de

crianças humanas, indica Belk (1996), cães e gatos nunca ultrapassam sua dependência

para com adultos humanos e são, para sempre, bebês. Por outro lado, aponta ele,

também são constantemente usados como brinquedos, vestidos como bonecas,

comprados, colecionados e circulados como mercadorias, controlados e comandados

como se fossem objetos inanimados. Em todas as situações de controle, afirma, fica

explícito que o status do animal de estimação é, em geral, inferior ao de um membro da

família, embora nem sempre.

É interessante notar, ainda, as formas como tais criaturas são desanimalizadas

para serem humanizadas: a castração controla impulsos sexuais incompatíveis com a

visão ocidental de infância, ao mesmo tempo em que, em tese, controla impulsos

agressivos e traços de comportamento do animal; roupas e acessórios são

confeccionados imitando vestimentas humanas; produtos de higiene e beleza também;

as excreções são reguladas para serem depositadas fora de casa ou em ambiente criado

para isso (caixas de areia, tapetes higiênicos); a ração industrializada é nutricionalmente

balanceada para que fezes e urina tenham determinado odor e consistência (Segata,

2012).

Digard (1999) os apresenta como seres antropizados, antropomorfizados,

adoçados, assépticos, quase abióticos e quase pelúcias, tornados assim por seus próprios

donos. Para ele, contudo, a ação domesticatória (proteger, nutrir e controlar a

reprodução) marca as relações entre animais de estimação e seus donos. A domesticação

envolveria, ainda, o hábito de estar com humanos e a submissão do animal à sua

vontade.

Albert & Bulcroft (1987) dispõem separadamente as noções de que o animal de

estimação é uma companhia ou um membro da família. Em um survey telefônico com

320 proprietários de animais de estimação e 116 não proprietários em Providence,

Rhode Island, EUA, os autores concluíram, entre outras coisas, que pessoas que

residiam sozinhas estavam mais inclinadas a ver seus animais de estimação como

companhias, enquanto aqueles que residiam com outras pessoas tendiam a ver tais

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animais como membros da família. Na amostra, os cães estariam mais propensos a

serem vistos como membros da família e os gatos como companhia. Os animais foram

adquiridos por prazer ou para companhia e a maioria dos entrevistados adquiriu seu(s)

animal(is) quando era recém-casado (24%), quando os filhos estavam nos primeiros

anos escolares (30%) ou quando já eram adolescentes (28%), ao passo que viúvos e

casais sem filhos seriam menos propensos a terem animais de estimação.

Embora os autores não tenham analisado profundamente os dados, eu sugeriria

que, na amostra, os animais de estimação se tornam uma complementação da família e

não uma substituição de um membro da família. Nesse sentido, muitos animais já

ingressariam nas famílias humanas com o status de membros dessas famílias. Não

existindo família na residência, ou seja, entre os que moram sozinhos, o animal não é

família porque esta não existe na unidade residencial. Na qualidade de companhia, ele é

um sujeito que coabita com o residente solitário. Essa sugestão se contrapõe a análises

que apontam os animais de estimação como substitutos para filhos (Strathern,1992 apud

Charles & Davies, 2008), mas corrobora pesquisas que apontam que animais de

estimação são mais encontrados entre casais, famílias com crianças e em famílias

numerosas do que entre solteiros e idosos (Serpell, 1996 apud Charles & Davies, 2008).

Digard (1999) também afirma que a taxa de propriedade de animais de

estimação cresce quando se passa de pessoas sozinhas a casais sem filhos e destes às

famílias numerosas. Não obstante, o autor indica que animais de estimação substituem

crianças. Segundo ele, na França, 52% dos proprietários de cães consideram-nos como

um membro da família, 20% como uma criança, 15% como um amigo e 13% somente

como um animal. Entre os proprietários de gatos, as respostas às mesmas questões são

38% (família), 9% (criança), 36% (amigo) e 17% (animal). Entre os franceses, portanto,

os cães estão mais propensos a serem humanizados, tornados parentes e infantilizados

do que os gatos, considerados como animais ou amigos em maior proporção do que os

cães, porém, considerados também membros da família. Aparentemente, o melhor

amigo do homem é o gato, e seu novo parente é o cão.

Na França, afirma ainda Digard (1999), os animais de estimação são por vezes

tratados maternalmente e chamados de bebês. O tratamento maternal é visto por ele

como uma forma de adestramento pelo afeto, característico das mulheres, que se orienta

a uma supernutrição do animal e a um cuidado que podem ser prejudiciais a estexiii. Sua

definição de um animal de estimação é a de um animal de companhia, inteiramente

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disponível ao seu dono. O estatuto familial desse animal seria uma característica do

sistema domesticatório atual.

Observe-se que a humanização, a desanimalização e a inclusão do animal como

membro da família muitas vezes se confundem nas análises aqui apresentadas com o

afeto. Não apenas as relações de parentesco na família nuclear estão sendo subsumidas a

relações afetivas, mas a própria descrição, em português, de um animal “de estimação”

chama a atenção para o afeto como elemento fundamental dessa relação. Não obstante,

variadas definições do que seja um animal de estimação podem não priorizar o aspecto

afetivo, como a de Thomas (1988) ou a de Digard (1999). O parentesco, por sua vez,

mesmo quando metaforicamente estendido ao animal, não é sinônimo de afeto, como

acredito que Leach (1983) possa demonstrar. A emergência do afeto no imaginário,

discurso e prática concreta das relações com animais de estimação parece um elemento

que tem ganhado força recentemente.

Comestibilidade e parentesco

Para Leach (1983), os animais de estimação são uma categoria ambígua na

interseção entre o humano e o animal. Na verdade, seriam ambos ao mesmo tempo. A

regra que restringe o consumo de sua carne, ou, dito de outra forma, a regra que permite

tomar como animal de estimação aquele que não será comido (espécie, sobretudo, mas

também indivíduo) é decorrente, segundo o autor, de uma sobreposição estrutural entre

o animal de estimação e a relação de parentesco mais próxima – a de irmão/ã –

guardada pelo tabu do incesto. Assim, pela analogia entre sexo e comida, o autor afirma

que o animal de estimação é parte da família e, portanto, não pode ser comido.

Tomando-se o modelo de Leach (1983), os animais em posição ambígua seriam

caracteristicamente animais tabus, isto é, sagrados e sobrenaturais. Para Leach (1983), o

tabu envolve, ainda, as questões alimentares. Assim, o animal de estimação, tomado

como uma extensão da humanidade, não pode ser consumido na medida em que isto

seria canibalismo. Este é claramente o caso do cão no mundo Ocidental.

Leach (1983) estrutura séries de correspondências entre comestibilidade animal

e relações de parentesco/afinidade. Empreendendo uma tipologia do grau de

sacralidade/tabu e comestibilidade do animal, o autor aponta para três possibilidades: a)

comestíveis e consumidos normalmente; b) comestíveis e consumidos em situações

especiais (conscientemente tabu); ou c) comestíveis, porém não reconhecidas como

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comida (inconscientemente tabu). Está claro que, para o autor, a comestibilidade em

questão é material (venenoso/não venenoso), mas o reconhecimento como comida é

simbólico. O exemplo dado por ele é a proibição do consumo de carne suína na religião

judaica: o porco é comestível, mas não é comida para os judeus. Também recaem nesta

divisão os animais que, sendo tão próximos ao homem que se tornam do mesmo tipo,

não podem ser ingeridos sob o perigo do canibalismo, como seria o caso do cachorro.

Da série de comestibilidade, Leach (1983) depreende uma associação entre

incesto/canibalismo e sexo/alimentação. Decorrem daí as seguintes séries: a) eu, irmã,

primo(a), vizinho(a), estranho(a); b) eu, casa, fazenda, campo, longínquo (remoto); c)

eu, animal de estimação, gado (animais de criação), caça, animais selvagens. As três

séries devem ser lidas também na vertical: por exemplo, a relação com as pessoas de

dentro da casa e com quem não posso me casar (irmã) fornece o padrão de relação que

mantenho com meus animais de estimação. O objetivo central do exercício é depreender

uma regra que diz que o tabu se aplica a categorias anômalas, quando em relação a

categorias bem delimitadas, numa conclusão similar à de Douglas (1976) e a de Hubert

& Mauss (2001: 143) sobre “o caráter ambíguo das coisas sagradas”. Em outra série,

Leach (1983) indica que homem: animais domesticados / não homem: animais

selvagens e, na interseção destes dois conjuntos, ou seja, em posição anômala, estão

animais de estimação: caça.

A análise leachiana recai mais sobre os aspectos simbólicos do que sobre as

relações concretas que humanos e animais mantém. Nas séries acima, a comestibilidade

é análoga às relações sexuais e matrimoniais, seguindo de perto a sugestão levi-

straussiana (Lévi-Strauss, 2011) sobre o tema do parentesco. Para Leach (1983), o

animal de estimação equivale à casa e à irmã nas séries estruturais. A irmã é o centro da

argumentação de Lévi-Strauss (2011) acerca da troca de mulheres que embasaria o

sistema de aliança que é, na verdade, o sistema de parentesco, visto como troca de

mulheres entre diferentes grupos. O tabu do incesto não permite o casamento com a

irmã, então ela é trocada, de forma indireta, por uma mulher matrimoniável.

No caso do parentesco animal aqui analisado, especialmente a constituição de

relação mãe/filho entre humano e animal de estimação, conforme o grupo de proteção

pesquisado, poder-se-ia, sem ônus, trocar a categoria irmã utilizada por Leach (1983)

pela categoria filho(a). Como a característica de aliança não está em foco aqui, a troca

não distorce a série e mantém as características de membro da família, membro da casa

e não comestibilidade que os animais de estimação apresentam.

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Com relação especificamente aos animais resgatados, vistos como

abandonados, creio que a série é ilustrativa também. Não há a categoria espacial rua em

Leach (1983), nem mesmo cidade, mas apenas casa, fazenda, campo e o remoto, que

pode ser considerado uma natureza menos humanizada do que o campo, como a selva

ou a savana. Ao campo corresponde a caça e ao remoto os animais selvagens. Os

animais de estimação, portanto, correspondem à casa, pertencem a ela como o gado à

fazenda. Não há espaço pensado para os animais no meio urbano propriamente dito. Em

que pese a progressiva retirada desses animais dos meios urbanos (Aprobato Filho,

2006), eles são vistos como animais de fazenda (cavalos, mulas, burros, bois, porcos,

galinhas, bodes, ovelhas, etc.), ou seja, do meio rural. Similarmente, cada vez que a

televisão ou os jornais anunciam o resgate de jacarés, onças ou cobras encontrados no

meio urbano, o significado subjacente é o de que seu lugar não é ali. Para os protetores

pesquisados, o lugar dos animais da casa, ou seja, os animais de estimação, também não

é a rua e aquele que é de casa, dependente e sujeito de afeto, é parente.

Considerações Finais

As narrativas nas quais o dono de um animal de estimação se coloca na posição

de seu pai ou mãe refletem um fenômeno contemporâneo. Nem todos os donos de

animais de estimação reportam-se a eles desta forma. A construção de laços de (um)

parentesco (imaginado ou fictício) parece obedecer, conforme tentei argumentar ao

longo deste capítulo, a alguns processos visíveis nas sociedades contemporâneas

ocidentalizadas, para efetuar um recorte espaço-temporal que não implique numa

universalização impossível a partir dos dados analisados: de um lado, a inclusão destes

animais em nossos lares e, seguindo-se a isto, a relação de afeto mantida com eles e sua

progressiva infantilização. Um processo social que, na Inglaterra, teria se consolidado

nos séculos XVI e XVII (Thomas, 1988) e se acirrado no século XIX, embora ainda

envolto em tensões valorativas (Ritvo,1987), precisaria de historiadores para verificar

seu desenvolvimento no Brasil.

Contemporaneamente, pode-se, no entanto, verificar que tais características

estão bastante visíveis: há pet shops em cidades grandes e diminutas, cosmopolitas ou

rurais, demonstrando a centralidade do animal de estimação e sua diferenciação de

outros animais; há serviços de banho e tosa nas pet shops (Oliveira, 2006), uma

atividade que costumava ser efetuada em casa, pelo próprio dono de animal; há uma

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progressiva expansão dos produtos (e, consequentemente, uma indústria) relacionados a

animais de estimação, especialmente para cães e gatos, de rações para variados

tamanhos e raças a idades e patologias, além de produtos de beleza e higiene,

brinquedos, roupas, sorvetes, biscoitos e chocolates; há uma equivalente expansão nos

serviços veterinários e seu desenvolvimento tecnológico (Segata, 2012). Esses são

fatores econômicos, contudo o tempo e o dinheiro investidos em animais de estimação

podem ser utilizados como uma medida da centralidade destes na vida cotidiana,

embora em cada classe social o acesso e os recursos disponíveis devam ser considerados

desiguais.

O afeto, contudo, não requer investimento econômico. A infantilização do

animal tampouco. Não foi apenas o investimento no animal que mudou, mas este é

produto direto, entre outros fatores, de uma mudança na relação com o próprio animal.

Na qualidade de sujeitos de afeto, animais de estimação se tornaram as crianças da casa.

A indústria veterinária, nesse sentido, contribuiu para a desanimalização e o controle de

seus corpos. É verdade que legislações e preocupações com maus-tratos a animais

indicam que nem sempre as relações são de afeto positivo, não obstante, a própria

condenação dos maus-tratos indica uma preocupação com o bem-estar animal cujas

raízes remontam a movimentos ingleses do século XIX (Ritvo, 1994).

Este afeto pode ser traduzido, para algumas pessoas, na terminologia do

parentesco. O deslize semântico entre amor e parentesco opera de forma a equivaler

ambos. Da mesma forma que sabemos que nem todos amam seus parentes (pais, mães,

filhos, entre outros), também sabemos que na cultura brasileira esse amor é uma

obrigação moral e social. Assim, os termos se equivalem e o afeto e a infantilização dos

animais de estimação permitem vê-los como bebês ou filhos. Há, nessa infantilização,

um pouco de distinção ontológica também, na medida em que por mais que amemos

nossos animais, eles são vistos como seres irracionais.

No grupo de proteção pesquisado, a irracionalidade do animal se conjuga à

percepção de sua fragilidade e, juntos, criam uma hierarquia entre humanos e animais

na qual aqueles são moralmente responsáveis por estes. No caso específico analisado,

responsáveis apenas por gatos abandonados na rua, uma percepção que não apenas

elege um sujeito vítima como imputa ao próprio humano a responsabilidade pela

violência que o gato sofreu e, portanto, também por sua salvação. Vítimas, eles são

sujeitos, não objetos.

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Por outro lado, na ordem brasileira, aquele que habita a casa é parte da família,

ainda que estendida, ainda que na qualidade de agregado (DaMatta, 1991). Assim, o

animal que habita nossas casas e apartamentos, às vezes nossas camas e sofás, se torna

um membro da família, sujeito, com nome e gostos próprios, a quem se dedica tempo e

dinheiro e por quem somos responsáveis, moral e juridicamente. Mas não somos pais e

mães de gatos ou cachorros, somos pais e mães de nossos animais de estimação. Não há,

portanto, nenhuma confusão ontológica nem borrão na fronteira entre humanos e

animais. Nós somos humanos e nossos animais de estimação são criaturas

desanimalizadas, pelucizadas, assépticas (Digard, 1999), que podem conviver conosco

em nosso ambiente cultural doméstico, sob as nossas regras de conduta, como se não

fossem mais animais. Porém, sabemos bem que o são, mesmo quando imaginamos que

não são (mais).

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ii Os termos em itálico, salvo quando usados para palavras em língua estrangeira ou títulos de obras, indicam terminologia nativa.ii Post é mensagem escrita em tópico na comunidade.iii Resgate é a captura e retirada do animal da rua. Essa captura envolve uma técnica específica, pois os animais nem sempre se deixam pegar por humanos. Os que fazem resgate de gatos são chamados resgateiros, em um trocadilho com a palavra inventada gateiro. Os que cuidam dos animais são chamados protetores. Segundo os pesquisados, o gateiro(a) possui e ama gatos. Não se observou uma hierarquia entre as categorias, mas algumas vezes tive a sensação de que, no universo daqueles que protegem e resgatam, essas atividades são mais valorizadas e de maior prestígio que a simples adoção ou posse do animal, o que envolve questões morais de intervenção na realidade que não poderão ser exploradas no momento.iv Esterilização das fêmeas pela retirada de útero e ovários e dos machos pela retirada dos testículos.v O lar temporário é o espaço doméstico de cuidado com um gato que foi resgatado e que será encaminhado para adoção. Está em oposição ao lar da família que o adota, por um lado, e em oposição à rua por outro. Trata-se, portanto, de espaço de transição.vi O animal é doado pelo grupo apenas depois que todos os cuidados com sua saúde foram tomados. Filhotes só são doados a partir de cerca de dois meses de vida, idade do desmame. Filhotes novos não podem ser castrados. Nesse caso, o doador ganha a castração para o animal mais tarde, ou seja, ele não paga por ela. Um gato é considerado filhote até o primeiro ano de vida e vive, em média, 15 anos.vii O coletivo de gatos que habitam áreas como praças, parques, campus, cemitérios, hospitais, abrigos, etc, é chamado pelo grupo pesquisado de colônia. O abrigo é um espaço reservado para a habitação dos gatos, na forma de gatil, porém sem grande convivência dos animais com os humanos. É o análogo ao asilo humano e, da mesma forma, mal visto por isolar os animais dos humanos e por impedir que haja encaminhamento dos mesmos a lares adotivos.viii Em oposição aos animais de rua. Indico, contudo, que para o grupo essa oposição não existe e faço uso dela apenas de forma analítica.ix Embora a maioria seja feminina, segue-se a norma culta da língua portuguesa que dispõe o plural e o sujeito indefinido no masculino.x Foram utilizadas citações de um mesmo tópico: “adoções concretizadas dos regatados”. Foi compilado, em 2011, um total de 226 tópicos, contabilizando 3.699 páginas em Word for Windows de material escrito e inúmeras fotografias. As passagens e a linguagem utilizadas, contudo, se repetem de um tópico a outro e o conjunto dos tópicos da comunidade forma uma narrativa mais ou menos homogênea. Por exemplo, há mais de um tópico sobre o mesmo assunto. No presente trabalho, selecionou-se o tópico no qual a principal protetora atuante no parque em questão, G. S., divulga os animais já adotados. Outros membros da comunidade comentam estas adoções, entre outros assuntos. Há mais citações de G. S. porque é ela quem mais posta neste tópico, já que é quem efetivamente resgata os animais do parque e os disponibiliza para adoção. O tópico escolhido é bastante representativo dos debates da comunidade, embora não o único, e é o mais longo (190 páginas em Word).xi Para maiores considerações acerca da posse responsável, ver Osório (2011).xii O nome, eu sugeriria, não é apenas um processo de humanização, mas também de individualização.xiii Kulick (2009) relata um caso destes.