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A DISCIPLINA BIOLOGIA APLICADA: UM ESTUDO SOBRE A SUA CONSTRUÇÃO E AS RELAÇÕES CTS
LA ASIGNATURA DE BIOLOGÍA APLICADA: UN ESTUDIO DE SU CONSTRUCCIÓN Y DE SUS RELACIONES CTS
Denise de Freitas * (Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos – Brasil, [email protected] Via Washington Luiz, Km. 235 - Caixa Postal 676, 13565-905 -
São Carlos - SP - Brasil) * Com auxílio parcial do CNPq; Luísa Dias Brito ** (Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSCar-Brasil,
[email protected]) ** Com auxílio da CAPES
Resumo
Trata-se de uma investigação em desenvolvimento que busca entender a gênese e a forma de implementação da disciplina Biologia Aplicada, em duas escolas públicas do interior de São Paulo-Brasil. A implementação desta disciplina foi possibilitada pelas reformas ocorridas no sistema educacional brasileiro, especificamente, em relação as Leis de Directrizes e Bases do Ensino Médio (LDBEM) e teve por objetivo propiciar um espaço próprio para que os aspectos tecnológicos e aplicados fossem trabalhados na escola. Foram realizadas entrevistas com a direção, o corpo docente e os alunos e observadas algumas aulas de Biologia Aplicada. Buscando identificar os equívocos, avanços e limites que existem na compreensão sobre reforma curricular e o movimento CTS no ensino, verificamos que uma das dificuldades encontradas se relaciona diretamente com o entendimento dos professores sobre ciência, tecnologia e sociedade assimilados na formação acadêmica e que se constituem como obstáculos às mudanças curriculares tipo CTS. 1. Introdução
Neste trabalho buscaremos interpretar os resultados parciais de uma investigação em
desenvolvimento sobre a proposição e implementação de uma disciplina intitulada Biologia
Aplicada, adoptada por duas escolas públicas, como forma de promover mudança curricular no
ensino médio (Brito, 2003). Segundo as escolas, essa mudança foi feita para que os aspectos
tecnológicos e aplicados pudessem ter um espaço próprio para serem trabalhados pelos
professores e alunos, visto que estão bastante presentes e interferem na vida cotidiana das
pessoas. A implementação desta disciplina só foi possível devido às últimas reformas ocorrida no
sistema educacional brasileiro, especificamente, em relação às Leis de Directrizes e Bases do
Ensino Médio (LDBEM). O currículo passou a ser constituído por um núcleo comum e uma parte
diversificada. O núcleo comum é formado pelas disciplinas clássicas e a parte diversificada pode
apresentar-se como disciplina, como no caso de Língua Estrangeira Moderna, Sociologia,
Filosofia, ou pode ser desenvolvida de forma integrada com todas as matérias do núcleo comum.
Além disso, a reforma educacional agrupou as disciplinas em três grandes áreas: Linguagens,
Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências
Humanas e suas Tecnologias (Brasil, 1999).
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Santos (2001), faz uma extensa revisão bibliográfica e aponta que “há um apelo à integração
da tecnologia na escola e ao estabelecimento de relações entre assuntos científicos e assuntos
tecnológicos” (p.324). “O único objetivo comum a todos os países que agora se encontram em
fase de revisão dos seus currículos de ciências é, segundo a Unesco, a introdução da tecnologia
na escola”(Hurd, 1994 apud Santos, 2001)
2. Diálogo com a Literatura
As inovações ocorridas nas escolas sempre foram focos de investigação e análise. Elas
permitem que inúmeras questões relacionadas à educação sejam estudadas. Ao analisar a divisão
do currículo em núcleo comum e diversificado, Domingues et al. (2000) colocam que a parte
diversificada permite que a escola trabalhe com a sua particularidade e singularidade, ficando à
critério da mesma como a construir. Além disso, este fato abre o espaço para a autonomia,
criatividade e a possibilidade de discussões a respeito do que levar para a escola, como isto deve
ser feito, o que está faltando e o que poderia ser feito de forma diferente. A idéia reinante no novo currículo é a de que a base comum deverá ter tratamento metodológico que assegure a
interdisciplinaridade e a contextualização, enquanto a parte diversificada deverá ser organicamente integrada
com a base nacional comum, por contextualização que pode ocorrer por enriquecimento, ampliação,
diversificação, desdobramento, por seleção de habilidades e competências da base nacional comum e por outras
formas de integração. (71p.).
Focando melhor o “movimento CTS” como movimento internacional de reforma curricular,
vemos que existe uma extensa diversidade de modalidades de programas pautados na reforma
curricular tipo CTS apresentando distintas formas de compreensão no âmbito das pesquisas
acadêmicas e no âmbito de sua implementação na Educação Básica. Atualmente, alguns pontos
são colocados de maneira bastante clara pela academia.Um deles é considerar que o ensino das
ciências, encontrado na grande maioria das escolas do Brasil, Portugal, Inglaterra e outros países,
carrega consigo uma visão da “ciência pura”. Portanto, o conhecimento científico levado à sala
de aula se despe de vários movimentos a ele inerentes: o poder, a ética, as contradições, as
controvérsias, as paixões, as frustrações. Além disso, a ciência é posta como tendo um único
método, uma lógica intrínseca e é vista como a salvadora dos problemas sociais e tecnológicos.
(Amorin, 1997; Cachapuz, 1999; Santos, 2001).
A partir desta perspectiva fica patente a necessidade da construção de um ensino de ciências
que de fato considere as intrínsecas relações existentes entre a ciência, a tecnologia e a sociedade.
Um ensino que proporcione
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aos alunos meios para emitirem julgamentos reflectidos sobre os problemas da sociedade; proporcione uma
perspectiva mais rica e mais realista sobre a história e a natureza da ciência; que torne a ciência mais acessível e
mais atraente a alunos de diferentes capacidades e sensibilidades e que prepare os jovens para o papel de cidadão
numa sociedade democrática. (Santos, 2001:38). Que movimentos as escolas têm feito para que este quadro se concretize? Que propostas
curriculares tipo CTS são projetadas no âmbito do projeto pedagógico das escolas?
3. Objetivos e considerações sobre o processo de construção da pesquisa
Como apenas duas escolas, em um contexto mais amplo, fizeram a proposição de uma
reformulação curricular, em nível disciplinar, do tipo CTS achamos interessante pesquisar em
linhas gerais a implementação da disciplina Biologia Aplicada como forma de superação, ou não,
do currículo tradicional. Mais especificamente estamos buscando: i) entender a gênese,
implementação e sustentação desta disciplina no currículo escolar; ii) analisar o entendimento
que o professor de Biologia tem sobre o ensino da Biologia Aplicada; iii) analisar a construção da
Biologia Aplicada considerando o processo ensino-aprendizagem e a compreensão dos
movimentos CTS no ensino.
A tomada de dados foi realizada por meio de entrevista com a direção e os professores destas
escolas; de questionários com os alunos de uma das escolas e observação direta de algumas aulas
de Biologia Aplicada. Neste trabalho apresentamos e tecemos comentários somente em relação a
alguns trechos das entrevistas, analisando parcialmente o primeiro objetivo desta pesquisa.
4. Resultados parciais e uma breve discussão
Uma das dificuldades encontradas pelos professores e diretores para implementar esta
disciplina relaciona-se diretamente com o entendimento “ortodoxo do ethos tradicional de
ciência, de tecnologia e de sociedade” assimilados na formação acadêmica e que se constituem
como “obstáculos à ‘reinvenção’ curriculares de tipo CTS” (Santos, 2001).
Este fato, reconhecido pelos professores e diretores, é verbalizado quando mencionam a
dificuldade em contextualizar o conhecimento e procurar outras formas de se trabalhar com os
alunos. Abaixo apresentamos um excerto da entrevista com a diretora da escola 1 “Nós estávamos pensando que o conteúdo é o meio para que se passe às habilidades. Falar é fácil: o conteúdo é
um meio…E na parte prática, como chegar, como fazer o professor de Biologia contextualizar um conteúdo?
Pensando, estudando, lendo: há! vamos, colocar uma parte aplicada. Então, são dois professores trabalhando na
mesma frente. A Biologia seria aquela tradicional, porque imagine: “uma escola de ensino médio que não trabalha
com o conteúdo” E uma parte o professor trabalharia essa parte aplicada, a Biologia Aplicada. Então, não era
para ser uma matéria prática no sentido de laboratório. Era para contextualizar, vamos supor assim, um tema que
se aborda na Biologia e ver qual a razão social, biológica do desenvolvimento da epidemia, da doença, da fome…
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então, iria estudar essa parte mais prática e atual. Foi para começar a entender a contextualização: uma
contextualização de problemas de saúde, ambiental, social. Foi essa a finalidade” (entrevista com a Diretora).
Nesta escola percebemos que houve uma preocupação em antecipar as mudanças que estavam
para ser implementadas; em se colocar à frente do processo que seria instalado pela Secretaria da
Educação. Esta escola entendeu que se fosse criado um espaço próprio para o professor trabalhar
de forma contextualizada o conhecimento, este poderia ser considerado como uma etapa de
transição para que posteriormente fosse possível fazê-lo na própria disciplina. E, uma forma
como isso poderia acontecer seria trabalhando com aspectos do conhecimento científico que são
“aplicados”, isto é, que são mais facil de visualizar a sua aplicação (a tecnologia, os “avanços” na
medicina, os assuntos relacionados a saúde etc.)
No excerto da entrevista com o diretor da escola 2 “Procuramos dar um caráter próprio da Biologia; o professor deveria dar a feição dele, tirar daquela rotina, trazer
mais para o dia-a-dia. Ver o que a imprensa, a mídia está trazendo para que se possa trabalhar na Biologia...
Porque o aluno questiona: "Por que eu aprendo Biologia? Por que eu estou estudando química? E às vezes o
professor de Biologia, e Química não sabe explicar porque: "Não, porque tem que estudar, é matéria, é currículo!"
Mas não é por causa disso. E na parte aplicada não precisa explicar por quê; ele vê: "Opa, mas aquilo que eu
aprendo lá, serve aqui!" O objetivo era esse, é esse, o principal. Eu pedia sempre: " tem que trabalhar muito, ler
jornal etc. A escola assina jornal, revistas então, pega o que está sendo dado nas disciplinas, no dia-a-dia leva
para o aluno para mostrar como pode ser aplicado". Eu lembro da discussão sobre a clonagem. Outra foi o
genoma. Pensamos nas disciplinas aplicadas como uma forma de pegar o que é dado na teoria e ver como é
aplicado na vida, no dia-a-dia. Aquilo que ele aprende na teoria onde é aplicado? Por que estou aprendendo isso,
onde vou usar isso? Talvez não vai usar nunca na vida se não for trabalhado” (entrevista com o diretor).
Na segunda escola a implementação da Biologia Aplicada está atrelada a uma tentativa mais
ampla de melhoria da qualidade do ensino naquela instituição. Ela se insere dentro de uma das
medidas para valorização da escola. Além dela e anterior a ela a escola passa por mudanças desde
o espaço físico até medidas disciplinares e pedagógicas. Não é possível olhar para a mudança
curricular desta escola sem considerar este contexto. A Biologia Aplicada é uma tentativa de
trazer o conhecimento formal, “científico” para a realidade do aluno. Aumentar uma aula de
Biologia é possibilitar ao aluno ver este corpo de conhecimento por meio do olhar de diferentes
professores. Melhorar a qualidade do ensino para que, além de estar mais preparado “para a vida”
possa ter melhores condições para enfrentar o vestibular.
Apesar de as dificuldades apontadas pelos professores, estes ficaram muito abertos a discutir
questões a respeito do conteúdo tais como questões relacionadas a produção e uso do
conhecimento científico, contextualização, aproximação do conhecimento formalmente
sistematizado, a relação com o aluno, a avaliação e os procedimentos de ensino. A configuração
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desta disciplina fez emergir inúmeras questões, pois eles sentiam que ela pedia um outro jeito de
trabalhar. As questões partiram deles, eram colocadas por eles e não o contrário, como
normalmente ocorre. Em suas falas percebemos que de alguma maneira já trabalhavam antes com
a questão da aplicabilidade: discutindo mais a fundo determinado aspecto, considerando algum
tópico que devesse ser abordado para aproximar os alunos do conhecimento. A Biologia
Aplicada abre espaço e permite que isto seja potencializado. Outro aspecto que nos chama a
atenção são os critérios para a seleção de conteúdo. Aqui aparece o interesse do aluno, assuntos
que despontam na mídia, conteúdos ligados à saúde, ao dia-a-dia do aluno etc. A escolha de um
conteúdo pertinente altera também a forma de se trabalhar; a aula expositiva não satisfaz o
professor. Há então uma busca por outros meios. Meios que já foram usados ou pensados pelos
professores em Biologia, mas que nesta disciplina puderam ser potencializados.
Em síntese a implementação da Biologia Aplicada, apesar de provocar uma contradição e
aparente dicotomia entre teoria e prática constituiu-se mais como um espaço em que os
professores puderam sair das amarras curriculares e reinventar uma nova forma de olhar para os
conteúdos e as formas de ensinar. Entendemos este como uma possibilidade de deflagar o
movimento na escola, mas sabemos que ela por si só não faz a reformulação pretendida. Trata-se
principalmente de uma busca da escola de romper com o tradicionalmente instituído abrindo
caminhos para o diálogo com outros tipos de conhecimentos (do dia-a-dia, tecnológico, cultural)
e para criar um ambiente melhor; um lugar mais agradável, mais interessante para o aluno .
7. Referencial bibliográfico
Amorim, A. C. R. (1997). O ensino de biologia e as relações entre Ciência/Tecnologia/Sociedade: o que dizem os professores e o currículo do ensino médio? In: VI Encontro “Perspectivas do Ensino de Biologia”, Coletânea, 74-77. Faculdade de Educação – USP. São Paulo – SP
Brasil, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Média e Tecnológica (1999). Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação.
Brito L.D. (2003) Biologia Aplicada: investigando sua construção e as relações ciência/tecnologia/sociedade. Texto da qualificação. São Carlos: PPGE-UFSCar
Cachapuz, A. F. (1999) Epistemologia e ensino de ciências no pós mudança conceptual: análise de um percurso de pesquisa. Coletânea do II Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências (CD-Rom). Valinhos-SP: Associação Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências.
Domingues, J. J.; Toschi, N. S.; Oliveira, J. F. (2000) A reforma do ensino médio: a nova formulação curricular e a realidade da escola pública. Educação e Sociedade, 70, 63-79.
Pórlan, R. & Rivero, A. (1998) El conocimiento de los profesores: una propuesta formativa in el área de ciencias. Sevilha: Diada.
Santos, M. E. V. M. (2001) A cidadania na “voz” dos manuais escolares. Lisboa: Livros Horizonte.