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A Desterritorialização e a Reterritorialização das famílias atingidas pela implantação da Usina Hidrelétrica de Itá, oeste de Santa Catarina. Jaime Fogaça 1 A Desterritorialização e a Reterritorialização Busco, nesse trabalho, discutir um caso que foi, e é, muito polêmico diante do cenário de implantação das Usina Hidrelétricas - UHEs na Bacia do Rio Uruguai, a implantação da UHE de Itá, como também nas demais regiões brasileiras. Uma situação em que a cidade é totalmente coberta pelas águas da barragem,em que todas as famílias são deslocadas para outros lugares, onde restaram apenas duas torres da Igreja emersas para simbolizar, ali, as histórias de vida daqueles que não tiveram outra opção, a não ser sair da terra que haviam escolhido para morar. Sob esse prisma, cabe a indagação do motivo pelo qual as famílias tiveram que desocupar suas terras e suas casas sem estarem plenamente conscientes das conseqüências do processo ao qual estão sendo submetidas. Em que medida pode ser observado o compromisso firmado entre os construtores e a população de Itá, no que diz respeito à recuperação dos valores e da história da cidade antiga? Nesse sentido, construí o diálogo entre a Geografia, a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia para alimentar a discussão entre os processos supramencionados e a situação das famílias atingidas pela implantação da UHE de Itá. Nessas Ciências, busco a compreensão das relações existentes entre os desterritorializados e a UHE. O espaço e o território É preciso compreender o espaço e o território como conceitos que levam a explicitar os fatores decorrentes da desterritorialização e da reterritorialização das famílias de Itá. Tais conceitos são coerentes entre si, pois afirmam o espaço geográfico como espaço de vivência e permanência das pessoas, ou seja, o ser humano é mais humano quando está seguro e é conhecedor do espaço em que vive. Desenvolve suas atividades por 1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS – [email protected]

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A Desterritorialização e a Reterritorialização das famílias atingidas pela implantação da Usina Hidrelétrica de Itá, oeste de Santa Catarina. Jaime Fogaça1

A Desterritorialização e a Reterritorialização

Busco, nesse trabalho, discutir um caso que foi, e é, muito polêmico diante

do cenário de implantação das Usina Hidrelétricas - UHEs na Bacia do Rio Uruguai, a

implantação da UHE de Itá, como também nas demais regiões brasileiras. Uma situação

em que a cidade é totalmente coberta pelas águas da barragem,em que todas as famílias são

deslocadas para outros lugares, onde restaram apenas duas torres da Igreja emersas para

simbolizar, ali, as histórias de vida daqueles que não tiveram outra opção, a não ser sair da

terra que haviam escolhido para morar. Sob esse prisma, cabe a indagação do motivo pelo

qual as famílias tiveram que desocupar suas terras e suas casas sem estarem plenamente

conscientes das conseqüências do processo ao qual estão sendo submetidas. Em que

medida pode ser observado o compromisso firmado entre os construtores e a população de

Itá, no que diz respeito à recuperação dos valores e da história da cidade antiga?

Nesse sentido, construí o diálogo entre a Geografia, a Sociologia, a

Antropologia e a Psicologia para alimentar a discussão entre os processos

supramencionados e a situação das famílias atingidas pela implantação da UHE de Itá.

Nessas Ciências, busco a compreensão das relações existentes entre os desterritorializados

e a UHE.

O espaço e o território

É preciso compreender o espaço e o território como conceitos que levam a

explicitar os fatores decorrentes da desterritorialização e da reterritorialização das famílias

de Itá. Tais conceitos são coerentes entre si, pois afirmam o espaço geográfico como

espaço de vivência e permanência das pessoas, ou seja, o ser humano é mais humano

quando está seguro e é conhecedor do espaço em que vive. Desenvolve suas atividades por

1 Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS – [email protected]

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conta do envolvimento que estabelece com os recursos que estão a sua disposição. No

caso, as famílias que moravam na cidade antiga de Itá ocupavam seu território de forma

que preservavam suas origens e sua autenticidade cultural.

Na Geografia, o espaço e o território são conceitos que buscam esclarecer o

objetivo de uso e a determinação das atividades humanas. A fusão desses conceitos se

torna um grande nó quando são apropriados por grupos de investidores econômicos que

não estão preocupados com as conseqüências que podem atingir as populações, já

impedidas de participar do processo de transformação do espaço e do território que

ocupam. Assim, convém lembrar que as famílias atingidas pela UHE de Itá perderam seu

espaço por não terem sido elas que definiram sua saída do território, o qual foi absorvido

por todas as medidas de implantação da usina.

Segundo Santos (1999, p.51), entende-se espaço como um conjunto

indissociável de sistemas de objetos e sistemas de ações. Os objetos ganham uma

significação, ou seja, dão ao espaço um sentido através de uma intenção. Nesse caso,

entende-se que o espaço passa a ter uma função de possibilidades de usos quando usado na

forma como estou abordando.

Na implantação de UHE, o espaço passa a ser objeto das ações, sem

nenhum reconhecimento do vivido, sem cautela de reconhecer que a população de Itá já

havia se territorializado, seguindo sua condição material e afetiva que a ligava àquele

território. Constituiu um sistema que a associava inclusive ao Rio Uruguai, principal

agente da transformação.

A animação do espaço através das ações e dos objetos caracteriza as

relações que são desenvolvidas, sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais. Elas

dão sentido ao espaço, pois geram todo um sistema que transforma, cria, recria e organiza

os elementos no espaço, discernindo as funções que cada ser apresenta no espaço físico e

no espaço de tempo.

Dessa forma, vimos um espaço recriado, ou seja, houve a apropriação e

transformação do recurso natural que já estava presente, o Rio Uruguai, e a destituição da

liberdade de decisão das famílias, principalmente as mais carentes, de viverem no espaço

que definiram como sendo o lugar onde as relações de produção, social e política, estavam

estabelecidas conforme a vontade delas. Houve em Itá uma desterritorialização pautada na

história de um povo humilde economicamente, mas que guardava muita riqueza nas

vivências, mesmo com seus conflitos. Todas as relações passaram a ser gestadas pela

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UHE, portanto, nesse momento, as famílias de Itá já não são mais protagonistas do espaço

e território que haviam constituído e sim a usina.

A Geografia, como uma ciência que estuda todas essas relações, contribui

no processo de ocupação do território, reconhecendo-o através dos mapas, e traduz,

coerentemente, uma percepção de que o uso do espaço numa condição econômica

excludente pode gerar uma relativa perda de vínculo entre o ser humano e a terra.

Possibilita que o ser humano não mais valorize o espaço (terra) em que vive, podendo usá-

lo de qualquer maneira, sem preservá-lo, despertando um espírito de destruição consciente

e/ou inconsciente.

Gera-se, assim, a teoria de que tudo é mutável, inclusive o sentimento de

poder ter a terra, o rio, o ar e a mata como aliados para a sobrevivência humana; enfim,

tudo passa a ser objeto de propriedade econômica e explorável para assim garantir a

riqueza capitalista de poucos. Aqui, fica clara a intencionalidade da implantação de UHEs,

como o caso que aconteceu em Ita, oeste de Santa Catarina.

A partir da ação e do conjunto de objetos que compõem o espaço, pode-se,

na Geografia, dar significado ao que nele acontece. Olhar, observar e analisar o espaço

significa, para ela, encontrar nele as razões de preservá-lo, de atribuir as funções sem

prejudicar e comprometer o conjunto de elementos que o compõem.

Nesse sentido, pela leitura de Santos (1999), o entendimento de espaço nos

remete à percepção do que são e quais são as medidas desenvolvidas pelos indivíduos no

espaço geográfico para atender às necessidades geradas por dimensões que nem sempre

são adequadas à idéia de uso racional do espaço. Formam-se as “próteses”, que configuram

o território, conforme os capítulos da história capitalista. A desterritorialização das famílias

de Itá por conta da implantação da UHE é o que me leva a usar tal abordagem.

Na abordagem psicossocial está a relação do espaço com as formas de vida

que o ser humano desenvolve na terra (Refatti, 2001). Dessa forma, é importante entender

como a natureza do espaço assume a “matriz da existência” através da organização

individual e coletiva dos seres humanos. A organização espacial aparece a partir das

necessidades demandadas da vida social no espaço, resignificando-o, ou seja, atribuindo-

lhe os valores e hábitos que identificam uma população. Por isso que o espaço geográfico

da antiga cidade, para as famílias de Itá, significava a presença de um passado que

respeitava a bagagem que foi acumulada na memória dessas famílias. Para Refatti (2001,

p.44)

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Pode-se dizer, assim, que as relações no espaço estão ligadas às

experiências sociais. Por isso as interações com os lugares são

bastante complexas, pois mostram uma dinâmica de

relacionamento muito emaranhada, ou seja, o espaço modela os

indivíduos que, por sua vez, modelam o espaço ao seu modo.

O espaço e o desenvolvimento das relações sociais pelo ser humano

retratam o comprometimento de ambos com a sua existência, pois se vive num momento

em que a consciência de espaço precisa ser revista e (re)valorizada pelos seus ocupantes.

Os investidores que constroem as UHEs percebem um espaço de uso, talvez

subjetivo, pois tamanho é o grau de materialização que os conduz. Os sujeitos que

dependem dos recursos como a água, para sobreviver, são inexpressivos no conjunto do

espaço geográfico. Assim, a desterritorialização das famílias de Itá tornou-se apenas mais

uma das “tarefas” a ser executadas pelos mandos dos investidores que são, hoje, os

proprietários da usina.

Não basta fazer só uma análise das relações conceituais que evidenciam nas

Ciências essa relação, a descrição das ações e o fato relatado atende ao processo de

aprendizagem. Esse, por sua vez, enfatiza o sentido que se dá à vida quando nela não se

pensa, só se age. O uso descontrolado e sem medida dos recursos hídricos poderá, em

muito pouco tempo, levar a humanidade a sofrer as conseqüências de uma ambição

desenfreada e sem soluções para os problemas desencadeados.

Muitas são as áreas do conhecimento científico que possibilitam essas

constatações, como a Sociologia, a Antropologia e a Geografia, porém a expressão do

capital através dos interesses das políticas de aplicação financeira é perversa e, às vezes,

distorce muitos dos dados de pesquisas elaboradas que contemplam a preservação dos

recursos naturais, em especial a água, e a sobrevivência dos seres no espaço territorial.

A idéia do espaço vivido, espaço de relações sociais desenvolvidas a partir

de realidades postas e sistemas de ações que levam o ser humano a ter “ganhos” e “perdas”

por ocasião das vivências, que elaboram, nesse espaço, as características do cenário das

representações, segundo a abordagem de Frémont (1980, p.17):

O <<espaço vivido>>, em toda a sua espessura e complexidade,

aparece assim como o revelador das realidades regionais; estas têm

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certamente componentes administrativos, históricos, ecológicos,

econômicos, mas também, e mais profundamente, psicológicos.

Muito embora essa afirmação esteja relacionada à compreensão de região, o

resgate a relaciona à idéia aqui discutida sobre espaço vivido. Partindo do ponto de vista da

desterritorialização, essas dimensões ficam presentes apenas na memória dos

desterritorializados. Resta apenas a sensação de impossibilidade de reversão, ou seja, a

usina será, como foi, construída e ocupou, inclusive, o espaço de propriedade psicológica

que as famílias de Itá tinham sobre seu território.

Não existe mais, para aqueles habitantes, uma afirmação de que Itá é dos

itaenses. Existem moradias que foram transportadas para outro espaço, para a “nova Itá”,

mas o significado de espaço vivido, como abordado por Frémont, esse permanece no

espaço hoje coberto pela barragem da usina.

Quando faço referência ao espaço vivido, com base na discussão sobre a

desterritorialização, lembro que Leonardo Boff, em uma palestra na II Conferência

Estadual Por Uma Educação Básica do Campo, em maio de 2002, em Porto Alegre/RS,

salientou que o homem, ao saltar do mundo animal para o mundo humano, socializou a

caça, consolidou o fato do ser cooperativo e solidário. Esse fato está associado à idéia que

busco entender sobre as ações desenvolvidas pelos seres humanos no contexto aqui

abordado.

A noção do espaço individual e coletivo implica perceber sua capacidade de

regeneração dos males criados pelo uso indevido e desenfreado de seus recursos. Em

estado de demência, pode-se exterminar as florestas, os recursos hídricos e a fauna; pode-

se potencializar as capacidades em mecanismos que desagreguem as relações sociais e com

a natureza. Todavia, a trajetória natural dos recursos do meio ambiente não pode ser

violada para que sustente a implantação de UHEs. De acordo com essa perspectiva,

percebo que não houve avanço significativo na relação homem versus natureza.

Talvez seja uma utopia acreditar na revigoração e na recuperação da nossa

consciência humana, mas é ainda a saída possível. Através de suas ações, o ser humano

não deve perder as oportunidades de organização social em detrimento dos projetos de

exclusão que não valorizem o espaço pelos seus significados afetivos e emocionais.

Reside, nessa sua forma de organização, a luta pela permanência dos recursos hídricos.

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O espaço geográfico é um elemento de determinação e de contribuição para

a análise do cenário da desterritorialização, visto que o fenômeno acontece a partir de

ações que promovem os fatores que mudam o sentido existencial do espaço. Esses fatores

aparecem nos sentimentos, na subjetividade de quem sente a perda, e não de quem

provoca a perda.

Como um dos pontos principais desse processo, o espaço assume o papel de

identificador e codificador dos sistemas de ações relacionadas à concretude do que estou

chamando de espaço vivido, como base de entendimento ao processo de

desterritorialização. Assim, o espaço, na visão da Geografia ou na abordagem psicossocial,

é organizado e, portanto, constituído como território, na medida em que as necessidades,

tanto das demandas sociais, como das relações afetivas, dão o sentido à existência do grupo

que ali está.

O espaço é geografizado pela presença dos recursos que ora se apresentam

na estrutura física terrestre, como também pela interação e pela inter-relação com os

habitantes já presentes nesta estrutura. Resgato aqui a importância da cultura da relação

com a natureza, com os componentes históricos e também com o trabalho que populações,

como a de Itá, estabelecem com o espaço geográfico que ocupam.

Os atingidos: quem são?

Em Itá, o processo de desterritorialização das famílias enfatiza o que é

destacado no momento em que tiveram que desocupar a área (território) e sair de suas

casas, por definição do projeto hidrelétrico. Vainer et al. (2003) tratam dessa abordagem

enfocando que, na concepção territorial-patrimonialista defendida pelos investidores do

Setor, o “atingido” é o proprietário. Ressalto que a expressão “atingido”, de acordo com os

autores, carrega a estratégia das empresas do Setor Elétrico, que, por sua vez, atribuem aos

departamentos de patrimônio imobiliário a competência de promover ações para indenizar

os donos de propriedades que estão e são de “interesse público”. Essa concepção se refere

apenas à ação indenizatória, limitada ao pagamento da terra e dos bens materiais

construídos.

A reflexão sobre esse processo refere-se à forma como é visto o povo, que são os

“atingidos”, como se estivessem diante de uma arena onde o rei derruba o lutador sem

sequer matá-lo, apenas determinando que seja retirado do jogo. Isso significa que, nessa

concepção, o direito do empreendedor está acima de qualquer prerrogativa que se levante

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contra o processo de implantação da usina. O único direito reconhecido é o direito de

propriedade e esse é pagável, tanto que, se o proprietário se recusar a receber a

indenização, o empreendedor poderá depositá-la em juízo, o que já atribui a ele o direito de

domínio da propriedade e a perda por parte das famílias.

Para as empresas, a visão limitada de proprietário é evidente, pois se trata

de não reconhecer que outras famílias, como meeiros, posseiros e arrendatários vivam em

áreas que não sejam de sua propriedade. Essa forma torna a possibilidade de viver e

sobreviver da terra condição de desenvolvimento humano. Eles também são atingidos, mas

não são incluídos na concepção anteriormente mencionada, sobretudo porque não fazem

parte daquela pequena parcela da população que foi cooptada pelas ofertas de instrumentos

de urbanização, que traduziam progresso para a cidade.

Os reais atingidos pela implantação de todo o complexo usinário são

aqueles que perceberam que suas vidas não estavam limitadas a benfeitorias e extensões de

terras ou casas valorizadas no mercado imobiliário. O grande ganho que tiveram em optar

por morar na antiga Itá foi a liberdade de conviver e viver ao seu modo, especialmente

porque possuíam o Rio Uruguai como agente transformador e mediador da territorialização

de suas famílias.

Parte dessa população que ficou desterritorializada, por conta das

concepções capitalistas, somada à idéia de que o território atingido é a área inundada

formam a concepção de que as situações e problemas decorrentes do empreendimento que

precisam ser solucionadas pelos empreendedores resumem-se apenas em avaliar e negociar

as desapropriações.

Considerando que as pessoas estão cada vez mais suscetíveis a crises

existenciais, devido a vários fatores que a Psicologia procura estudar, contribuindo na

solução dos problemas que surgem, percebo, através do caso aqui estudado, que a simples

medida de pagar pelo que essas pessoas conquistaram ao longo da trajetória de suas vidas,

não pode contabilizar suas perdas afetivas, pois os bens e mesmo a terra ou a casa, que

carregam em si estes valores afetivos, desempenham um papel importante para muitas

dessas famílias. Desvinculadas de seu território, elas desenvolvem sentimento de tristeza,

de angústia e de depressão, que explicados pela psicologia podem levar muitos a não

querer mais viver.

Com isso, quero afirmar que desterritorialização, para além de retirar as

famílias de seus lugares de moradia, independente da forma de apropriação, significa

destituí-las de todas as formas de vinculação com o território que está construído na cabeça

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e nos sentimentos expressos por elas. Essa desterritorialização identifica e tornam

explícitos os elementos que manifestam a não-aceitação da usina por grande parte das

famílias, tendo em vista que algumas concordaram com a implantação da UHE pois

obtiveram significativos ganhos financeiros. O território de Itá submerso no lago da

barragem; suas marcas territoriais estão “afogadas” e sua identidade está representada na

torres da Igreja, que ficaram emersas no meio do lago da barragem, por reivindicação das

famílias, hoje cartão postal de Itá.

O território de Itá: pertence a quem?

Os elementos acima mencionados são os princípios que foram rejeitados

pelos empreendedores no momento da decisão do empreendimento em Itá. Porém, foram

também esses que levaram parte das famílias atingidas a se manifestarem contra essa

forma de exclusão, contra a construção da usina em cima de suas terras e,

fundamentalmente, a se oporem ao projeto energético que está estruturado nas modalidades

de uma dimensão de globalização econômica, que indefere qualquer manifestação em

desacordo com os interesses do capital financeiro.

O Movimento de Atingidos por Barragens – MAB, que enfrentou todos os

desafios para que essa obra não se realizasse. As famílias que moravam na área rural da

antiga Itá, organizadas puxaram as discussões e enfrentamentos com o Estado e com as

empresas construtoras, para que fossem acordados e cumpridos os compromissos de

indenização e transferência das famílias para a cidade nova. Mesmo sofrendo críticas de

outras famílias que discordavam de tais manifestações, pois estas tinham interesses

particulares em jogo o que desmobilizava as famílias principalmente que moravam na área

urbana da cidade antiga.

Trata-se de olhar o território dessas famílias através da humanização do

espaço. O fato de a UHE ter proporcionado a mudança para um novo território, não

significa que a apropriação pelo território, desenvolvida pelas famílias na “antiga Itá”,

esteja presente na “nova Itá”. Assim, a condição humana de estar no espaço territorial

escolhido ficou expressa, simbolicamente, nas torres emersas da Igreja.

Essa forma de humanização do espaço remete a um sentimento de

pertencimento a um lugar ou território, constroem as ligações entre os mitos e o espaço

físico resultantes dos agrupamentos humanos. Heidrich e Carvalho (2001) fazem essa

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reflexão em relação à humanização espacial. Portanto, em se tratando da

desterritorialização das famílias itaenses, a usina foi o agente que, sem observar e apontar

esses aspectos, atingiu a sociedade, agiu com soberania sobre tais definições, mascarando

uma situação em benefício próprio. Nem mesmo a luta social organizada conseguiu

impedir a realização e concretização da desterritorialização dessas famílias.

O território de Itá, quando caracterizado pelas lutas e conquistas de muitos

que ali morreram para que a cidade surgisse, carrega a bagagem de populações de

indígenas, de caboclos e de imigrantes que desafiaram suas vidas para se tornarem seres

daquela sociedade. É importante salientar que mesmo com o objetivo de trabalharem e

constituírem ali suas famílias e suas moradas, os imigrantes italianos e alemães que

colonizaram Itá tiveram também suas limitações (como já mencionado) pois expulsaram,

através da sua forma de colonizar, muitos dos habitantes que já se encontravam naquela

área, como índios e caboclos.

Portanto, o território onde se constituiu a cidade de Itá é marcado, não só

pela trajetória de vida dos imigrantes, mas por outras etnias, que também foram

desterritorializados tendo que deixar suas terras para dar lugar a outra cultura que ali

chegava. Mesmo desbravando as matas e o rio, os imigrantes construíram uma cidade

modesta e sem grandes pretensões de crescimento, pois o principal objetivo era colonizar

para viver bem, utilizando os recursos naturais que permaneceram preservados mesmo

após a cidade estar estruturada.

Nesse sentido, a cidade antiga de Itá caracterizava um território que foi

possuído, habitado e tomado pelos imigrantes. Itá contava com a presença de antecedentes

de índios e caboclos, que marcavam aquele território com o signo sagrado, sendo um

território que não se caracterizava somente pelo ter, mas pelo ser.

Numa concepção da vertente cultural da Geografia, entende-se que o

território reforça sua representação quando estabelece uma relação espiritual com seu

espaço de vida. Expressando-se mais claramente sobre o assunto, Bonnemaison e

Cambrèsy (1996, p. 10) afirmam:

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O poder do laço territorial revela que o espaço está investido de

valores não apenas materiais, mas também éticos, espirituais,

simbólicos e afetivos. É assim que o território cultural precede o

território político e com ainda mais razão precede o espaço

econômico.

Através dessa abordagem, percebe-se que, mesmo tendo ocorrido conflitos

que também foram excludentes, Itá é um território que passou a fazer parte da história do

Brasil, pois foi a primeira cidade (hoje já temos outros casos) a deixar de existir para dar

seu lugar a uma usina hidrelétrica. Uma nova cidade foi construída para os antigos

moradores de Itá. Contam, é claro, com a presença de novas famílias que chegaram, devido

à divulgação de que o “progresso” havia chegado “e tinha vindo do céu”, mas que havia

saltado de pára-quedas e que, ao chegar no chão, ficou um pouco insatisfeito com algumas

coisas que viu e resolveu continuar a viagem.

Isso quer dizer que Itá, mesmo recebendo uma obra faraônica, tanto em

tamanho como financeiramente, não decolou da condição de um simples território de

cultura italiana e alemã e hábitos humildes, para uma super cidade de grandes

investimentos financeiros. Reluta com as forças do imperialismo capitalista que, a cada

momento, faz com que alguns daqueles “interessados locais” pela implantação da UHE

deitem a cabeça no travesseiro e acordem com ela um pouco dolorida, talvez pelo peso da

culpa que carregam na memória, por terem sido cooptados e coagidos a convencer muitas

das famílias que hoje estão totalmente esquecidas pela usina.

Itá é hoje uma cidade que se caracteriza como um território voltado a

atender pequenas atividades econômicas locais e, em grande medida, busca resgatar

alguns traços da cultura local através de atividades e eventos locais. Criam-se imagens para

serem vendidas, esculturas em miniatura das torres da Igreja, camisetas com bordados da

“pedra-símbolo” da cidade, enfim, pequenas atitudes que literalmente são muito reduzidas

frente à expressão de desconforto vivida por parte das famílias. Essas medidas mitigatórias

não contemplam as conseqüências que atingem a “nona Itá”.

Estas famílias se encontram em casas melhoradas, mas estão se sentindo

deslocalizadas, desabitadas, desorganizadas e sem referências que constituíam os vínculos

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afetivos deixados na antiga cidade. Sem saudosismo, sem a intenção de dizer que Itá não

precisaria crescer, vê-se que o território de Itá poderia ser cedido a uma usina ou a

qualquer outro projeto econômico, mas sem que houvesse restrições à participação de

todas as famílias que habitavam a antiga cidade, desde o momento de pensar até o de

elaborar o projeto.

O processo de desterritorialização

O que houve foi uma retirada de pessoas pela força do capital e a confecção

de uma máscara bem consistente, composta por elementos e mecanismos que distorceram

os dados e cooptaram as pessoas sem esclarecê-las, de forma adequada, do real significado

de implantação da usina. Para o aprofundamento dessa discussão, cabe remeter à

conceitualização de autores que buscaram, respeitosamente, uma compreensão para as

formas de desterritorialização, conforme se percebe na leitura de Haesbaert (2002, p. 12):

Desterritorialização, para os ricos, pode ser confundida com uma

multi-territorialidade segura, mergulhada na flexibilidade e em

experiências múltiplas de uma mobilidade “opcional”. Enquanto

isto, para os mais pobres, a desterritorialização é uma multi ou, no

limite, a-territorialidade insegura, onde a mobilidade é

compulsória, resultado da total falta de opção de alternativas, de

“flexibilidades”, em “experiências múltiplas imprevisíveis em

busca da simples sobrevivência física ou cotidiana.

O mais curioso é que, para os ricos, como exposto pelo autor, a

desterritorialização está vinculada a categorias sociais mais privilegiadas, que usufruem as

benesses dos “circuitos técnico-informacionais” que estão distantes das realidades de

populações que não têm acesso ao território mais elementar, que é a terra ou o terreno, de

uso cotidiano. Com base nessa afirmação, é que a desterritorialização das famílias

atingidas pela UHE de Itá está fortemente relacionada à exclusão de seus lugares.

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Essas famílias foram proibidas de estar localizadas no território que haviam

definido como espaço de vida, por isso foram desterritorializados assim como os indígenas,

os caboclos e muitos outros grupos de “excluídos”, que também habitaram aquele

território. Um ciclo de exclusões que não termina; pelo contrário, se expande cada vez

mais, na medida em que novos projetos econômicos são organizados e executados pelos

investidores e empreendedores dos setores hegemônicos do capitalismo.

Aos poucos, ou repentinamente, as famílias de Itá tornam-se parte do

mundo que se configura grande e pequeno, homogêneo e plural, articulado e multiplicado.

Isso por ocasião de uma política que, simultaneamente ao processo de globalização,

dispersa os pontos de referências, gera grandes antagonismos, dissolve as fronteiras, dando

a impressão de a população estar flutuando, uma sensação de perda de referencial.

Perceber isso é muito difícil, pois as pessoas tendem a esconder seu sofrimento. Porém,

basta falar-se sobre algo que está sempre na memória dessas famílias, para que se perceba

os sentimentos que expressam esse seu acirrado processo de desterritorialização.

As implicações que resultam do processo de desterritorialização, em função

da implantação da UHE de Itá, possuem características que foram polemizadas por

intelectuais, políticos e pelo MAB. Todavia, todas se fundiram nas justificativas de cunho

econômico e ambiental, cujo estímulo era lutar por terras, casas, dinheiro e também pela

mudança na natureza.

Sem dúvida, os estudos e propostas que foram decorrentes desse processo

muito ajudaram para que amenizassem os impactos decorrentes da implantação da usina.

Contudo, o que as pessoas sentiram ao verem encher o lago foi algo inexplicável. O

impacto no interior dessas pessoas, causado pela imagem da água cobrindo vagarosamente

suas terras, gerou resultados como depressão, estado profundo de tristeza, angústia e

melancolia. Expressões que formam uma concepção subjetiva da desterritorialização, mas

que pode ser percebida e analisada a partir do momento em que isso acontece.

Para o entendimento mais objetivo, foi possível perceber-se in loco como a

desterritorialização das famílias de Itá prejudicou a estrutura afetiva e emocional das

famílias atingidas. Na convivência com as famílias e nas entrevistas que realizei durante o

trabalho de campo, pude observar e constatar como se desencadeou essa desestrutura

emocional e afetiva.

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A resistência à usina não se deu de forma massiva em Itá quando da sua

implantação, pois ali era usado um discurso, pelos próprios moradores, que procurava

manipular e fazer crer que a construção da UHE era uma necessidade e a solução para seus

problemas. Sem desprezar a capacidade de entendimento dessas famílias, iludidas com

promessas de ganhos econômicos inquestionáveis e de serviços públicos eficientes ao

alcance de toda a população, o argumento usado nos discursos visava desenvolver a

aceitação tácita do projeto da usina.

Modelo de convencimento que, ao se fazer vencedor, instala a UHE de Itá,

uma estrutura faraônica de concreto, represando a água e afogando uma outra estrutura que

poderia ser humilde, mas representava a autonomia de pensar de um povo, de construir

para si o que queria, e não de acomodação e desvinculação do restante do mundo,

conforme aparecia nos discursos dos políticos e lideranças convictas da implantação da

usina.

Mesmo os personagens que nunca apareceram em Itá e que são os principais

responsáveis pela usina, não tiveram a coragem de vir e negociar com a população. Seus

intermediários políticos, lideranças cooptadas, representantes do Estado e, inclusive, a

polícia, foram os que apareceram, pois todos cumprem a sua função de obrigação com o

capital, ou na condição de empregados assalariados ou na condição de beneficiados.

O distanciamento entre famílias atingidas e construtores, maioria

estrangeiros, sempre foi algo que influenciou na condução de negociações, pois não havia

como impedir a construção de uma usina se não se discutia diretamente com quem a

mandava construir. Nesse sentido, vejo o não-cumprimento do papel do Estado como

mediador desse processo, pois, na situação de Itá, tanto o poder local como o estadual e

também o federal estiveram a favor da construção, se opondo à população atingida. Os

benefícios financeiros para projetos públicos, a credibilidade política diante do poder

econômico, o que mais tarde subsidiou os discursos eleitorais nessas mesmas instâncias,

justificam tal posição.

De qualquer forma, a desterritorialização é uma expressão da retirada das

pessoas de seus referenciais pessoais e também dos vínculos afetivos que o ligam ao

mundo material e social. Viver em sociedade implica conjunção desses elementos numa

perspectiva de que o ser humano possa criar seu espaço e constituir suas marcas no

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território que servem como aporte de sua identificação. Isso significa se territorializar por

conta das demandas, respeitando o desejo, os estímulos que norteiam o ser humano.

As UHEs não permitem uma reterritorialização dos vínculos afetivos e das

impressões territoriais; elas apenas pagam uma determinada quantia de valor em dinheiro,

que supre apenas o esforço físico, mas que jamais vai repor as expressões e criações que

existiram na vida dessas famílias atingidas. Essas não possuem valor econômico, mas sim

o campo afetivo dos esforços dedicados à construção do seu modo de vida.

A decisão de aceitar ou não a UHE não foi unânime em Itá, por parte das

famílias. Houve aquelas que percebiam essas mudanças com um olhar voltado ao seu

próprio interesse. Porém, é possível afirmar que a maioria das famílias de Itá, hoje, sabe o

que é perder seus vínculos, sua identidade com o território, permitindo que pessoas

estranhas e que não as conheciam tomassem decisões que mudaram suas vidas.

Essa desterritorialização foi muito além da simples transferência de suas

casas, seus objetos, seus animais e até de seus mortos. Ela mexeu com sentimentos que são

únicos em cada ser, agrediu a privacidade da vontade própria, transgrediu a liberdade

pessoal e acumulou esses sentimentos de perda durante muitos anos. Atualmente, as

famílias de Itá vivem com esses conflitos na memória; alguns procuram esconder que essas

expressões estão presentes no cotidiano da cidade. Isso é possível de se perceber e de se

ver ao andar pela cidade onde o vazio ocupa lugar.

Paira um silêncio que só é quebrado pelas imagens dos ônibus que trazem

turistas para visitar a usina, não para ver e falar com as pessoas de Itá. Essas estão sentadas

ou em pé atrás de um balcão vendendo aquilo que lhes restou – lembrancinhas da cidade,

cartões postais com a foto das torres da Igreja, emersas no lago da usina. Por outro lado, os

paredões, a casa de força e a superestrutura da UHE atraem turistas, empresas de filmagens

e de fotografias que sequer se apercebem da existência das pessoas que lá permaneceram

procurando dar um novo sentido a suas vidas.

Muitas das famílias de Itá estão empobrecidas, vivem de um saudosismo da

cidade antiga, alimentam suas inquietações guardando objetos, plantas e fotos que lhes

repõem energias para mais um pouco de sua existência. Essas famílias fizeram desses

elementos uma forma de se esconderem do inevitável, da tristeza e em alguns casos da

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doença, como depressão profunda provocada pelo acúmulo desses sentimentos

interiorizados.

Mexer numa história onde as tradições são conservadas em decorrência das

características culturais significa mexer com essas famílias, descendentes de alemães e

italianos, que costumam interiorizar seus sentimentos, o que vem desde a colonização.

Foram famílias que chegaram ao Brasil também excluídas de seus países de origem,

portanto, necessitam preservar suas origens como qualquer povo da terra. Essas famílias

construíram suas gerações com muitas mudanças, mas guardam preciosidades de sua

cultura que são próprias delas e que são repassadas aos seus descendentes. Apesar dos

antagonismos que por ventura existam, elas vivem porque alguma forma de cultivar a vida

foi criada e repassada de geração a geração.

O modelo implantado com o objetivo de capitalizar as pessoas e, por

conseguinte, a terra, a água, os animais e as plantas, acabou com a possibilidade do existir

tudo para todos. Hoje, o domínio das riquezas naturais e materiais se concentra em grupos,

como o dos construtores e dos investidores em UHEs, que apostam nestes investimentos

como se fosse um jogo para assim ver quem consegue ganhar mais para concentrar mais.

Raças e etnias são vergonhosamente tratadas como mercadorias; escravizam-se os recursos

naturais; criam-se estruturas institucionalizadas que modelam as peças de um quebra-

cabeça que não está mais se encaixando.

As UHEs formam, hoje, uma corporação que alimenta muitas ações na

bolsa de valores, que alimenta também a estabilidade do fornecimento da energia para as

indústrias e para uma parcela da população que pode pagar seu consumo sem restrições.

Elas são, na realidade, símbolo do crescimento econômico para as empresas e empresários

construtores, além de serem consideradas uma das melhores opções de investimentos com

fins lucrativos do mundo. Para tanto, basta que se observe o seu crescimento numérico em

âmbito global. Trazem, como bagagem principal na viagem que percorrem pelos rios do

mundo, o poder centralizado e fixam, nos lugares onde são implantadas, uma dinâmica de

desterritorialização de famílias e de pessoas individualmente atingidas. Notoriamente, o

capital acaba exercendo sua territorialidade, oportunizando, não só o crescimento

econômico, mas também o subdesenvolvimento das estruturas políticas, sociais, culturais e

ambientais em todo o globo.

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A desterritorialização e a reterritorialização das famílias atingidas por

barragens são processos que ora parecem distintos. O que os distingue é apenas uma

transferência territorial de pessoas, que não dinamiza mais os poderes de decisão das

famílias em sua individualidade, porém as tornam sobreviventes do sistema, sobreviventes

do poder ideal. Podem até morrer, porque não alimentam mais a coragem de resistir.

É difícil de se avaliar o que seria correto, mas é oportuno salientar que a

reterritorialização é algo que pressupõem a recuperação dos vínculos territoriais, acabando

por se confundir com transferência de território só em caráter físico, para onde se deslocam

os bens materiais e os corpos, vivos ou mortos. O sentido real da história de vida dessas

famílias, no entanto, fica na memória e na natureza que vai re-surgir no lugar onde

viveram, esse vínculos as famílias buscam recuperar hoje na cidade nova de Itá.

A abordagem sobre a desterritorialização e a reterritorialização das famílias

atingidas pela implantação da UHE de Itá não poderia ser desvinculada do processo

avassalador dos capitalistas. A fusão entre o capital e o exercício do poder político nas

áreas inundadas pelas usinas tem sido motivo de grandes transformações sociais e

ambientais. Porém, cabe às comunidades locais procurarem esclarecimentos e meios que

permitam a participação efetiva e real dos verdadeiros atingidos. Isso significa dizer que as

usinas são os veículos que desmontam as estruturas de poder local, destituem as pessoas de

seus territórios e enfraquecem as alternativas de cidadania a serem utilizadas para a

conscientização dos atingidos.

Ainda que as UHEs beneficiem as empresas construtoras e as indústrias que

demandam a maior fatia de energia produzida no país, são elas o grande argumento de

modernidade ao se instalarem em cidades consideradas atrasadas ou tradicionais. Esse

argumento acaba provocando uma mobilidade “aparente”, estruturada apenas no caráter

econômico. Segundo Haesbaert (1997), as inovações tecnológicas da desterritorialização

geram, por conseqüência, um desmonte do Estado-nação. Esse fica enfraquecido diante do

exercício de poder capitalista assegurado nos argumentos de necessidades geradas pelos

grandes meios e modos de produção.

Em síntese, podemos afirmar que a desterritorialização

contemporânea, fruto sobretudo de uma longa história das relações

capitalistas, é produto/produtora das inovações tecnológicas

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impostas pelos capitalistas e pela sociedade de consumo, que

podem gerar uma crescente mobilidade (de pessoas, mercadorias e

informações), do relativo desmonte do Estado-nação e do domínio

que exercia sobre sua territorialidade (enfraquecendo as formas

tradicionais de cidadania e de controle político sobre as

transformações territoriais) e da crise de valores que gera uma

crise de identidades, incluindo as identidades com a natureza (cada

vez mais devastada e “enclausurada” em reservas de acesso

controlado) e com o território em sentido mais amplo.(

HAESBAERT, 1997, p.115).

Assim, a desterritorialização pode promover a formação de novos territórios

que, pressupõem uma reterritorialização, pois essa se caracteriza por as famílias se

apropriar de territórios novos e reconstituírem seus espaços, sob sua vontade de ocupá-los

ou de territorializá-los. Constituiriam a cidade nova de forma participativa e consciente na

integração política-econômica-cultural, de condução de vida (Heidrich; Carvalho, 2001,

p.7). Ter sua identidade e ser feliz foi o objetivo que fez com que as famílias de Itá se

organizassem na luta contra a usina, mas muitas delas acabaram sendo coagidas pelas

forças externas estruturadas na lógica capitalista.

Em nenhum momento, o Estado-nação, no seu exercício de gestor, foi

aliado das famílias que se opuseram a essa lógica. Houve uma rede de interesses que

subestimou a capacidade de discernimento e decisão dos atingidos de Itá, principalmente

daqueles que ocupavam as áreas rurais da cidade. Essa rede também atuou no sentido de

facilitar o convencimento das famílias da área urbana, principalmente daquelas que já

apoiavam a implantação da usina, por conta dos benefícios materiais que a cidade

receberia.

(Re)territorialização das famílias

Territorializa-se assim, uma UHE em Itá. Removem-se as famílias para uma

nova cidade e reassentam-se as demais em áreas rurais de outros estados da região sul. As

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famílias que foram morar na cidade nova, construída a 4 km de distância da antiga, passam

a viver dia-a-dia o significado da desterritorialização ora abordado. Suas identidades, suas

particularidades que foram constituídas ao longo da história de vida da cidade antiga como

um todo, ficaram nos retratos, nos objetos e na memória.

Apoiados pela religiosidade, os atingidos foram passivamente atendidos em

alguns detalhes neste processo de transferência para a cidade nova. Foram replantadas

algumas das árvores; foi feito o translado de seus antepassados enterrados no antigo

cemitério construído pelas famílias; foram reconstruídas réplicas de símbolos culturais,

como a casa de cultura, e foi transferida a pedra fundamental da cidade, que leva o

significado do nome Itá – “objeto-duro”.

Para que essas famílias fossem reterritorializadas, tiveram que continuar na

sua condição de família. No entanto, as famílias anteriormente compostas, em sua maioria,

por pessoas com idade em torno de 45 anos, filhos em idade escolar ou já adolescentes, ao

término da construção e da inauguração da UHE, no ano de 2000, apresentavam outra

configuração. Os pais já estavam idosos, os filhos ou foram estudar fora ou casaram-se e

foram morar em outro lugar. As famílias se destituíram, cada um tomou seu rumo, não

mantiveram sequer a tradição de morar próximo e de dar identidade ao espaço territorial

que ocupavam. Essa desconstituição provocou nas pessoas de mais idade problemas de

ordem psicológica, como depressão e um profundo estado de tristeza.

Ligadas por vínculos que expressavam o conjunto social familiar e a

comunidade, as famílias de Itá, atingidas e desterritorializadas pela usina, constituíram-se

em significativo objeto de estudo para várias áreas do conhecimento como Geografia,

Sociologia, Antropologia, História, entre outras. Dentre tais estudos pode-se citar o de Reis

(2001), que infere que, para as famílias de Itá, o espaço possui múltiplos significados, para

além, inclusive, da propriedade de cada família. Enfatiza, ainda, que a migração, nesse

caso, não tem somente o significado de mudança de espaço físico, mas que a valorização

simbólica dada pelas famílias ao seu espaço não possui só o valor monetário em relação às

terras e às benfeitorias.

Percebe-se, nesse contexto, que as famílias atingidas pela UHE de Itá foram

morar em uma cidade nova, construída dentro dos padrões de pessoas que nunca moraram

em Itá. Aqueles que a construíram somente tinham a obrigação trabalhista de cumprir a

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execução de um projeto elaborado dentro das estratégias políticas e econômicas, dirigidas

por políticos e empresários investidores. Jamais a consciência do trabalho árduo que foi

desenvolvida, principalmente, pelos trabalhadores do campo, foi reconhecida nesse

processo. Nenhum valor monetário cobriu a perda afetiva que essas famílias tiveram.

Constituíram uma nova forma de vida, novas relações, novo jeito de ver uma cidade, uma

casa, um bairro e novos hábitos religiosos.

Para essas famílias, mudar para a cidade nova significou perder a terra, a

casa, o compadrio e, também, o seu modo de vida, a sua identidade. Esse valor, que é

simbólico, torna-se um peso na vida dessas famílias, pois ao se darem conta que a situação

não irá mudar, passam a sentir, em vida, o real sentido de transgressão e agressão ao modo

de vida que haviam escolhido. Numa área territorial menor, com menos liberdade de

expressão e vigiados pelos olhares de desconhecidos, confinam-se dentro de suas casas

como espectadores de um objeto presente, que é a UHE, que tem grande importância em

todo esse processo, mas que não faz parte do cotidiano em que vivem.

Os fatores que caracterizam o cenário de produção de energia por

hidrelétricas mostram, com clareza, que as famílias atingidas pela implantação dessas

usinas são elementos pontuais e não-significativos no conjunto de decisões implicados na

construção de usinas. Portanto, para as empreiteiras e os consórcios de construtores, não

interessa se as famílias se integrarão ou não ao processo, o que interessa é a geração de

lucros através da produção de energia. Os problemas sociais e psicológicos das pessoas

atingidas não estão na pauta de discussão e de decisões dos empreendedores. Esse é mais

um argumento que vem a reforçar a desterritorialização das famílias que foram atingidas

pela UHE de Itá.

A pressão que existe em muitos lugares no mundo, em especial no Brasil,

para que se construam usinas hidrelétricas é, indiscutivelmente, acirrada e representativa.

Isso remete a uma outra discussão: verificar se os territórios que se formam por ocasião da

implantação das usinas apresentam a característica de estarem sendo construídos por seus

ocupantes. Esse posicionamento é que se reflete nos objetivos de existir um território, para

que assim as populações tenham fixação, com o direito do livre arbítrio, respeitando a sua

cidadania.

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