a desintegração dos regimes da europa do leste não é um fenômeno isolado

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A desintegração dos regimes da Europa do Leste não é um fenômeno isolado, pois trata-se apenas da manifestação mais recente e mais dramática de um processo que vem se desenrolando no mundo todo nas últimas duas décadas. Ela deve ser encarada como uma expressão do fracasso do Estado em atingir determinados objetivos econômicos que ele se propôs a alcançar. Assim, a crise do Estado intervencionista exige a construção de novas formas políticas que possam articular e também legitimar estratégias econômicas alternativas. Apesar de que ter sido a Direita quem ficou a montante da onda política dos anos 1980, a Nova Esquerda, durante as décadas de 1960 e 1970, articulara uma crítica ao Estado igualmente poderosa. Esta crítica, porém, não foi acompanhada por nenhuma alternativa coerente para as estratégias econômicas desacreditadas da social-democracia e do socialismo de Estado, que pudesse fazer face ao apelo da direita à panacéia do mercado e à ideologia de um passado idealizado. O programa da Direita de privatização respondia às pressões políticas tentando desmantelar ou privatizar os mecanismos que haviam sido o foco imediato de agitação política. Ele garantia sua base política através da redistribuição seletiva da renda em favor de setores estratégicos do ponto de vista eleitoral e, sobretudo, engendrando um boom militarista-keynesiano.

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Europa Leste

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A desintegrao dos regimes da Europa do Leste no um fenmeno isolado, pois trata-se apenas da manifestao mais recente e mais dramtica de um processo que vem se desenrolando no mundo todo nas ltimas duas dcadas. Ela deve ser encarada como uma expresso do fracasso do Estado em atingir determinados objetivos econmicos que ele se props a alcanar. Assim, a crise do Estado intervencionista exige a construo de novas formas polticas que possam articular e tambm legitimar estratgias econmicas alternativas.

Apesar de que ter sido a Direita quem ficou a montante da onda poltica dos anos 1980, a Nova Esquerda, durante as dcadas de 1960 e 1970, articulara uma crtica ao Estado igualmente poderosa. Esta crtica, porm, no foi acompanhada por nenhuma alternativa coerente para as estratgias econmicas desacreditadas da social-democracia e do socialismo de Estado, que pudesse fazer face ao apelo da direita panacia do mercado e ideologia de um passado idealizado. O programa da Direita de privatizao respondia s presses polticas tentando desmantelar ou privatizar os mecanismos que haviam sido o foco imediato de agitao poltica. Ele garantia sua base poltica atravs da redistribuio seletiva da renda em favor de setores estratgicos do ponto de vista eleitoral e, sobretudo, engendrando um boom militarista-keynesiano.

No fim dos anos 80 ficou claro que no houve nenhum milagre, mas apenas o velho boom do crdito. A quebra da Bolsa de 1987 revelou a base precria da montanha de dvidas sobre a qual o "milagre econmico" fora construdo. Embora uma nova onda de liberalizao na Europa do Leste e no Terceiro Mundo lance agora um salva-vidas para a Direita e prepare o caminho para uma futura expanso, improvvel que ela possa oferecer uma soluo permanente para a crise da estratgia neoliberal.

Hoje, boa parte da esquerda recorda-se com saudades dos anos dourados do otimismo social-democrtico. Segundo essa viso, os anos 1950 e 1960 aparecem como uma poca de crescente prosperidade e harmonia social, com o "Welfare State Keynesiano" realizando a viso social-democrtica de uma sociedade que combina o dinamismo econmico do capitalismo com os valores polticos do socialismo. Em conseqncia, a "crise da social democracia" no vista como um fracasso dessa concepo, mas apenas da sua concretizao fracasso criado por mudanas econmicas fundamentais que tornaram um socialismo monoltico e burocrtico inadequado para os novos modos de organizao. Ao compreender que as crescentes crises econmicas, sociais e ambientais mostram que o modelo neoliberal de desregulao no oferece uma soluo vivel, a social-democracia vem se empenhando em construir um novo modelo de regulao a fim de concretizar a velha idia.

Todo um leque de novas teorias surgiu para articular as oportunidades estratgicas que se supe que as recentes mudanas econmicas estejam abrindo para a social-democracia.1 Apesar de considerveis diferenas tericas e polticas, todas se baseiam na crtica sociolgica da teoria liberal do mercado. Para todas elas, um maior crescimento econmico s possvel dentro de uma determinada estrutura institucional reguladora, capaz de reconciliar o crescimento com a harmonia social. Nenhum desses tericos explica por que o processo competitivo no funciona, ou de que maneira as alternativas que eles propem poderiam substitu-lo.

Eles concordam que no existe um nico modelo de regulao, mas sim uma srie de alternativas, cada uma mais ou menos limitadas pelas condies das formas de produo dominantes. Concordam tambm que o boom do ps-guerra e a hegemonia social-democrtica da dcada de 1960 fundamentou-se numa forma de produo em geral definida como "fordista". Assim, a crise da social-democracia dos anos 1970 foi uma expresso do colapso dos modos fordistas de regulao, como resultado da crise da produo fordista. Por fim, h um consenso cada vez maior de que nos anos 90 iro forjar-se novos modos de regulao, adequados a novas formas de produo, que definem tanto os limites como as oportunidades para as novas estratgias polticas. Estas novas formas de produo ainda no esto claras, e as formas de regulao que se adequam a elas com preciso ainda precisam ser determinadas. Entretanto, os contornos do ps-fordismo j esto surgindo.

Alega-se que o fordismo se baseia na produo em massa de produtos homogneos, utilizando a tecnologia rgida da linha de montagem, com mquinas especializadas e rotinas de trabalho padronizadas (tayloristas). Consegue-se uma maior produtividade atravs das economias de escala, assim como da desqualificao, intensificao e homogeneizao do trabalho. Isto d origem ao trabalhador de massa, organizado em sindicatos burocrticos que negociam salrios uniformes que crescem em proporo aos aumentos na produtividade. Os padres de consumo homogneos refletem a homogeneizao da produo e fornecem um mercado para os bens de consumo padronizados, enquanto os salrios mais altos oferecem uma demanda crescente para fazer face oferta crescente. O equilbrio geral entre a oferta e a procura alcanado por meio de polticas keynesianas de macroeconomia, enquanto o equilbrio geral entre salrios e lucros se alcana atravs de acordos coletivos supervisionados pelo Estado. A educao, treinamento, socializao etc. do operrio de massa organizada atravs das instituies de massa de um welfare state burocrtico. Coletivamente, estas instituies, que surgiram na dcada de 1950, definem um crculo virtuoso de nvel de vida crescente e produtividade crescente, salrios em aumento e lucros em aumento, estabilidade econmica e harmonia social.

A subseqente crise do fordismo leva fragmentao econmica, social e poltica da qual deve surgir um novo regime "ps-fordista". medida que a produo fordista se aproxima de seus limites, surgem novos mtodos de produo. A saturao dos mercados de massa leva a uma crescente diferenciao dos produtos, com uma nova nfase no estilo e/ou na qualidade. Produtos mais diferenciados exigem turnos de trabalho mais curtos, e portanto unidades de produo menores e mais flexveis. Novas tecnologias fornecem os meios pelos quais se pode realizar vantajosamente esta produo flexvel. Entretanto, estas novas formas de produo tm implicaes profundas. Uma produo mais flexvel requer mquinas mais flexveis e de finalidades genricas, e mais operrios "polivalentes", altamente qualificados, para oper-las. Uma maior qualificao e flexibilidade exige que os operrios tenham um grau mais alto de responsabilidade e autonomia. Uma produo mais flexvel tambm requer formas mais flexveis de controle de produo, ao passo que relaes de produo mais flexveis requerem o desmantelamento das burocracias corporativas. Os interesses de uma fora de trabalho mais diferenciada no podem mais ser eficazmente representados por sindicatos e partidos polticos fordistas, monolticos e burocrticos. So necessrios acordos descentralizados para negociar sistemas de pagamento mais complexos e individualizados, que recompensam a qualificao e a iniciativa. A diferenciao do trabalhador de massa leva ao surgimento de novas identidades que no so mais definidas ocupacionalmente, mas sim articuladas no consumo idiossincrtico, em novos estilos de vida e novas formas culturais, que reforam a demanda por produtos mais diferenciados. Tudo isso vai corroendo as velhas identidades polticas. As necessidades de bem-estar, sade, educao e treinamento de uma fora de trabalho diferenciada no podem mais ser satisfeitas por um welfare state burocrtico e padronizado, mas apenas por instituies diferenciadas, capazes de responder de maneira flexvel s necessidades individuais.

Essas mudanas no so inevitveis. Embora o modelo ps-fordista prometa criar as condies para a prosperidade econmica e a harmonia social, ao mesmo tempo que oferece novas oportunidades para a realizao humana e o controle democrtico, no h garantia de que tal utopia possa ser alcanada. A realizao do projeto fordista levou quase cinqenta anos e teve de superar a oposio poltica durante todo o seu percurso. Hoje, as foras sociais e polticas ainda vinculadas velha ordem inibem o surgimento do ps-fordismo. Os sindicatos burocratizados no esto dispostos a abandonar seu poder e seus privilgios, assim como os empresrios e funcionrios pblicos tambm no esto. Os fabricantes de produtos de massa reagem competio manipulando seus produtos, procurando criar a impresso de diferenciao atravs do marketing e da embalagem, e no de novas concepes e de uma produo flexvel. Assim, o ps-fordismo no retrata um futuro inevitvel, mas define um projeto poltico. Seu apelo ideolgico vem do fato que, como lhe falta qualquer fundamento social significativo, ele baseia suas reivindicaes na sua necessidade histrica.

NOVAS UTOPIAS: PS-FORDISMO, ESPECIALIZAO FLEXVEL E A CRISE DO FORDISMO

O modelo ps-fordista tem tantas verses como proponentes.2 Nenhuma delas, porm, pode rivalizar com o rigor da teoria de Aglietta do regime fordista de "acumulao intensiva", basicamente porque no tm uma anlise comparvel das relaes de valor que o novo "regime de acumulao" solicitado a regular.3 O modelo ps-fordista apenas concatena umas tantas observaes superficiais da sociedade contempornea, sem sequer especificar a relao terica entre os vrios elementos do suposto regime ps-fordista, muito menos submet-los a qualquer exame crtico.4 Os proponentes do modelo fazem uma virtude da sua incoerncia, alegando que o ps-fordismo uma viso do futuro cujos contornos ainda no esto claros e s podero ser definidos atravs de um extenso perodo de crise e restruturao das relaes econmicas, sociais e polticas. A necessidade do ps-fordismo no provm das suas prprias virtudes definveis, mas da sua alegao implcita de que no h alternativa para a social-democracia perante a suposta crise terminal do fordismo. O ps-fordismo no uma realidade, nem mesmo uma viso coerente do futuro, mas sobretudo uma expresso da esperana de que o futuro desenvolvimento capitalista ser a salvao da social-democracia.

Se o modelo ps-fordista no coerente o bastante para permitir uma avaliao racional, o modelo da "especializao flexvel", como uma nova forma de produo, parece mais coerente ao postular a relao entre novas tecnologias, novos padres de demanda e novas formas de organizao social da produo. Este vnculo define as fundaes de um novo projeto socialdemocrtico, ao reconciliar o interesse do capital de garantir altas taxas de produtividade com o interesse dos trabalhadores de combinar realizao pessoal no trabalho com nveis de renda mais altos. Contudo, esta coerncia se evapora assim que se examina o modelo cuidadosamente. O modelo se prope a estabelecer a convenincia social dos novos mtodos de produo, mas a superioridade econmica destes ainda no foi demonstrada.

O modelo da "especializao flexvel" foi desenvolvido originalmente por Sabel e Piore, com base numa generalizao da pesquisa de Sabel na regio italiana da Emilia-Romagna.5 A partir da seus defensores mais ardorosos foram Paul Hirst e Jonathan Zeitlin.6 O trabalho original de Sabel tinha pretenses muito modestas, relacionando as novas formas de alta tecnologia e de produo artesanal cooperativa com o contexto econmico, social e poltico muito especfico no qual elas tinham sido introduzidas. Em particular, os privilgios dos novos artesos provinham de uma combinao de escassez de mo-de-obra qualificada num setor particularmente dinmico da produo especializada, mais a disponibilidade de um conjunto de trabalhadores no-qualificados percebendo baixos salrios. A lucratividade dos novos mtodos de produo era garantida por condies de mercado muito favorveis e pela intensificao do trabalho de uma maioria de trabalhadores mal-pagos. Ficava implcito que tanto a capacidade de generalizar o modelo como seu carter socialmente desejvel eram questionveis.7 As mesmas qualificaes se aplicam aos outros exemplos apresentados pelos proponentes da "especializao flexvel", como por exemplo os sistemas flexveis de fabricao, dos quais a pioneira foi a Toyota, no Japo, e o setor da alta tecnologia em Baden-Wrttemberg, na Alemanha.8

A coerncia do modelo original provinha da particularidade das suas circunstncias, o que explicava as condies favorveis que possibilitaram certo grau de colaborao entre empresas e permitiam que uma parte da fora do trabalho desfrutasse de relaes de trabalho vantajosas do ponto de vista social e material. Contudo, as particularidades do modelo logo foram se tornando secundrias e desapareceram. No livro que escreveu com Mike Piore, Chuck Sabel generalizou seu modelo como sendo a base de uma concepo proudhonista de um novo futuro de produo artesanal cooperativa em pequena escala, ao passo que Hirst e Zeitlin retiraram todas as limitaes, quebrando o vnculo entre a "especializao flexvel" e quaisquer condies particulares, tcnicas ou econmicas, ao insistir que o modelo universalmente aplicvel, uma vez que as relaes de cooperao e confiana no dependem da produo em pequena escala, nem de uma determinada tecnologia ou relao de mercado, mas apenas da presena de um conjunto apropriado de normas e valores.9 Esta generalizao levou a uma inverso sub-reptcia das relaes causais originais. Enquanto que no modelo eram as condies econmicas favorveis que possibilitavam a formao de relaes de trabalho harmoniosas, ao menos entre os capitalistas e uma parte da fora de trabalho, a generalizao do modelo baseia-se no pressuposto de que so estas relaes de trabalho harmoniosas a condio para a prosperidade econmica, embora esta suposio no seja nem explicitada nem submetida a um exame crtico.

difcil detectar qualquer coerncia no modelo da "especializao flexvel", enquanto que sua aplicabilidade emprica tambm j foi amplamente contestada. Williams e outros10 apresentam uma crtica completa de Sabel e Piore, mostrando que o modelo no postula relaes coerentes entre seus diferentes elementos, e que no h prova emprica para a suposta quebra dos mercados de massa nem para a suposta incapacidade da produo de massa de responder a mudanas nas condies econmicas, e nem ainda para a suposta correlao entre a nova tecnologia e a escala e as formas sociais da produo. Pollert11 mostrou que, no caso britnico, a "flexibilidade" acarretou uma intensificao do trabalho. Fairbrother12 enfatizou o papel de liderana do Estado ao promover a "flexibilidade", a qual, longe de expressar os requisitos tecnolgicos da produo moderna, foi implementada no mais alto grau no setor pblico. Tambm Holloway13 destacou o papel do Estado ao reestruturar as relaes de classe na indstria automobilstica - no como conseqncia da introduo de novas tecnologias, mas como pr-condio social e econmica para estas. Elger14 reforou esta concluso com base num levantamento abrangente das provas, que mostra que houve amplas mudanas na organizao do trabalho, nos acordos trabalhistas e nos sistemas de pagamento, mas que estas mudanas refletem o crescente fortalecimento dos empresrios e o enfraquecimento dos trabalhadores, e no tm nenhuma relao determinada com a mudana tecnolgica. Estas concluses foram ainda mais reforadas por um grande nmero de pesquisas recentes.15 Longe de voltarem atrs diante dessa bateria de argumentos assestados contra o modelo da especializao flexvel, Hirst e Zeitlin extraem fora das falhas evidentes deste, exatamente como os proponentes do ps-fordismo. Eles reconhecem que at mesmo os exemplos que escolheram no passam de realizaes imperfeitas do seu ideal, e admitem que a flexibilidade e a automao tm sido introduzidas, de modo geral, como um meio de desqualificar, desorganizar e intensificar o trabalho. Eles insistem, porm, que esta no uma falha do modelo mas sim dos capitalistas, administradores, operrios, sindicalistas e polticos, todos de viso estreita, ainda amarrados ultrapassada concepo do modelo fordista.

A alegao de Hirst e Zeitlin de que a teoria da especializao flexvel no prope quaisquer relaes necessrias entre os vrios elementos do modelo falaciosa, uma vez que eles no apresentam o modelo como mera viso utpica, mas sim como uma teoria que define novas formas institucionais de relaes sociais de produo que prometem fornecer a base econmica para uma maior prosperidade e harmonia social. O fracasso dos capitalistas e do Estado em desenvolver essa nova estrutura institucional explica no s a persistncia do conflito social mas, o que mais importante, os malogros competitivos da indstria manufatureira americana e britnica. Esta anlise parece levar diretamente a concluses neoliberais: o fordismo foi sustentado alm da sua durao apropriada por meio de subsdios e protees governamentais, pelo emprego de mais trabalhadores do que o necessrio, pela intransigncia dos sindicatos e pela letargia empresarial. Diante de tais obstculos, s uma forte dose de competio ir criar as condies nas quais as novas formas de produo podem prevalecer. Hirst e Zeitlin, porm, utilizam sua anlise como fundamento para uma crtica do neoliberalismo, baseando-se numa suposta anttese entre, por um lado, o contrato e a competio (adotados pelo neoliberalismo), e por outro a confiana e a cooperao (os valores da especializao flexvel).

Embora se suponha que as relaes de cooperao e confiana sejam a chave para o aumento dos lucros e da prosperidade, a sobrevivncia das empresas de especializao flexvel constantemente ameaada pela competio por parte das empresas fordistas, tanto no mbito da produo como nos mercados financeiros. Assim, longe de adotar uma soluo neoliberal, Hirst e Zeitlin oferecem um programa poltico construdo sobre uma estratgia industrial que forneceria ampla proteo e subsdio estatal s suas formas favoritas de produo um programa que mantm os piores elementos da velha estratgia industrial da social-democracia, ao fornecer subsdios indiscriminados a empresas capitalistas, enquanto abandona qualquer compromisso com os princpios social-democrticos de coordenao central e responsabilidade poltica. Mas h um paradoxo no cerne do seu argumento. Se a especializao flexvel a chave para se restaurar a produtividade e a lucratividade, na esteira da crise dos ultrapassados mtodos fordistas de produo, difcil perceber por que ela no seria capaz de suportar a competio vinda das empresas fordistas. Do mesmo modo, se as relaes cooperativas so mais lucrativas do que as competitivas, difcil compreender por que necessrio que estas relaes sejam impostas aos capitalistas, em vez de deixar que o prprio interesse dos capitalistas as desenvolva, seja atravs da integrao horizontal e vertical, do controle acionrio mtuo, da participao na gesto da empresa, ou de contratos de longo prazo. Mas talvez sejam os capitalistas que esto certos ao se apegarem ao fordismo, e Hirst e Zeitlin que estejam errados ao acreditar que o amor, a confiana e a harmonia so a chave para a lucratividade.

O argumento de Hirst e Zeitlin no tem nada a ver com o fordismo. essencialmente uma crtica democrata-crist dirigida tanto social-democracia como ao neoliberalismo. Seu principal argumento econmico o de que as estratgias neoliberais no levam em conta externalidades (o que pode ser verdade na prtica, mas no na teoria), de modo que uma certa estrutura coletiva necessria para se fazer investimentos adequados em treinamento, pesquisa e infra-estrutura. Porm o estatismo social-democrata politiza estas decises de investimento, em vez de subordin-las s necessidades competitivas dos capitalistas locais ou nacionais. Assim, a base mais apropriada para se construir uma estratgia econmica no so as relaes econmicas competitivas nem as formas polticas estatistas, mas sim um conjunto de valores comuns de solidariedade, que Hirst admite serem "as virtudes da cidade pequena, a famlia ao velho estilo e as atitudes sociais profundamente conservadoras", caractersticas da Democracia Crist.16 Estes valores se expressam em redes locais informais, tpicas da Emilia-Romagna e de Baden-Wrttemberg, em que os capitalistas, os polticos, os funcionrios pblicos e os burocratas dos sindicatos desfrutam de relaes de confiana e cooperao. Esta poderia se chamar a Via Manica para o Socialismo. Os que escolhem o Japo como modelo tm um diagnstico semelhante, mas uma soluo um tanto diferente, tendendo a ressaltar o poder competitivo do capital corporativo nacional, e no dos empreendimentos locais, e enfatizar a "flexibilidade estruturada" oferecida pela supresso da competio no trabalho, nos produtos e nos mercados financeiros.17 Esta poderia se chamar a Via Industrial, ou Feudal, para o Socialismo.

At mesmo seus defensores mais ferrenhos foram capazes de descobrir apenas alguns exemplos isolados do novo sistema de produo, isso para no falar dos novos modos de regulao que se supe que o modelo exija, e reconhecem que mesmo estes casos no passam de uma concretizao imperfeita do seu sistema. O ps-fordismo no uma realidade, mas uma promessa. Nenhum dos vrios proponentes do ps-fordismo oferece um argumento coerente para justificar a relao harmoniosa entre as instituies econmicas, sociais e polticas que eles propem. Assim, a promessa do ps-fordismo deriva inteiramente da alegao de que ele capaz de superar os limites de um fordismo supostamente condenado ao fracasso por sua "inflexibilidade". Esta alegao, porm, baseia-se na adequao da caracterizao do fordismo por eles empregada.

Um exame cuidadoso da revoluo tecnolgica fordista mostra que ela marcou o pice da penetrao do capital na produo, o que significa que. o fordismo sinnimo da produo capitalista como tal. Assim, a maneira como o prprio Ford aplicava os princpios da produo capitalista era inflexvel. Esta inflexibilidade no era inerente ao sistema e foi abandonada no final da dcada de 1920. Em conseqncia, no h motivo para acreditar que a produo fordista inerentemente inflexvel. Pelo contrrio, os princpios do fordismo j se demonstraram aplicveis a uma gama extraordinariamente ampla de contextos tcnicos.

A tecnologia fordista tornou uma nova variedade de produtos disponvel para o mercado de massa. Assim o fordismo, em particular na indstria automobilstica, precipitou uma revoluo no consumo. Segundo a teoria da "especializao flexvel", a inflexibilidade da tecnologia fordista e os gostos conformistas do trabalhador homogeneizado determinaram o carter indiferenciado desse consumo de massa como um momento essencial do fordismo. Ao contrrio, porm, a revoluo fordista do consumo teve o efeito oposto, pois a flexibilidade do transporte motorizado quebrou a rigidez da era da ferrovia.

O fordismo no foi apenas uma nova tecnologia. A introduo da tecnologia exigiu novas formas da organizao social do processo de produo, que dependiam da questo do controle. Esta organizao, porm, no determinada por imperativos tecnolgicos mas sim por requisitos de lucratividade. A inflexibilidade de formas particulares de organizao no resultado da tecnologia, mas sim da resistncia dos trabalhadores s exigncias dos empregadores, tanto individualmente como atravs dos sindicatos. As restries fordistas no so uma expresso da inflexibilidade tecnolgica, mas de qualquer mtodo de produo que exija a criao de um "trabalhador coletivo". Assim, as formas de organizao do processo de trabalho so determinadas atravs de uma luta permanente acerca da organizao social e do controle do trabalhador coletivo. A luta pelo controle uma caracterstica permanente que nunca pode ser resolvida de maneira definitiva, pois baseia-se num conflito fundamental entre as necessidades do trabalho e os imperativos capitalistas. Portanto, cada resoluo do conflito apenas a base para a sua renovao. Neste sentido, a organizao social da produo no pode ser explicada como uma expresso de uma determinada tecnologia, mas apenas como uma fase da luta permanente.

De um modo mais amplo, medida que as organizaes de trabalhadores fazem exigncias polticas, sua intransigncia ameaa a estabilidade do Estado e a reproduo da sociedade como um todo. Se os capitalistas e os polticos podem reconhecer que os trabalhadores tm interesses diferenciados, aqueles tambm insistem em que os interesses destes ltimos devem se subordinar necessidade de garantir a reproduo expandida do capital e a estabilidade do Estado. Assim, a recusa dos trabalhadores de aceitar esta subordinao lhes parece uma expresso irracional da sua imaturidade. essa percepo que se encontra subjacente ao projeto mais amplo do fordismo, cujo objetivo no simplesmente criar uma nova forma de organizao do trabalho, mas sim criar uma nova forma de sociedade, construda sobre instituies pelas quais os conflitos de interesses possam ser resolvidos racionalmente, e tambm um Novo Homem, com as qualidades morais e intelectuais exigidas por essa nova sociedade.

Este projeto sociolgico fordista no esttico, mas deve se desenvolver medida que confronta obstculos para sua resoluo. Isto significa que no pode haver apenas um projeto fordista, mas toda uma srie deles; alguns podem demonstrar que so temporariamente mais bem-sucedidos do que outros, mas nenhum deles poder jamais realizar-se plenamente. O que se segue indicar como o fordismo da dcada de 1960 no foi mais bem-sucedido que qualquer de suas verses anteriores na tentativa de garantir a prosperidade e a harmonia. A crise pelo qual ele passou no significou a morte do fordismo, nem tampouco a morte de qualquer dos seus prottipos anteriores.

A REVOLUO TECNOLGICA FORDISTA

Aqui o ponto de partida obrigatrio a revoluo tcnica que Henry Ford realizou na Ford Motor Company. A histria bem conhecida.18 No havia nada de original nem nos detalhes nem nos princpios gerais que Ford aplicou produo automobilstica. A decomposio das tarefas, a especializao das ferramentas, a fuso de vrias ferramentas em uma mquina, e mesmo de vrias mquinas em um sistema de mquinas, eram caractersticas tpicas da transformao da produo artesanal em produo industrial de larga escala - processo que j havia avanado mais nos EUA do que em qualquer outro pas, estimulado sobretudo pela escassez e pela fora organizada dos trabalhadores especializados.19 A originalidade do projeto de Ford foi o fato de que ele aplicou estes princpios a uma nova rea da produo, e os aplicou de uma maneira to implacvel e obstinada que transformou as condies da produo automobilstica quase da noite para o dia.

Embora as realizaes de Ford sejam popularmente atribudas sua introduo da linha de montagem, esta foi apenas uma pequena parte da revoluo. A introduo da linha de montagem pressupunha a produo em massa de peas padronizadas e intercambiveis em um grau muito elevado, o que s se poderia obter organizando a maquinaria especializada de maneira tal que permitisse tanto a desqualificao do operrio qualificado como a separao rigorosa entre produo e montagem. Uma vez que isto foi conseguido, o desenvolvimento da linha de montagem foi quase uma formalidade. A linha mais complexa, a da montagem do chassis, levou apenas seis meses para se desenvolver. Embora ela tivesse causado um corte imediato da ordem de seis vezes no tempo de trabalho exigido para montar o chassis, isso representou uma economia de apenas dez horas, ou seja, cerca de 2 dlares em custos salariais, para um automvel com preo final por volta de 500 dlares.

A fragmentao de tarefas significava que os engarrafamentos na produo podiam ser identificados de imediato, oferecendo problemas tecnolgicos e/ou organizacionais bem definidos para os engenheiros de Ford. Significava tambm que as mudanas tecnolgicas podiam ser introduzidas uma a uma, substituindo-se determinadas ferramentas ou alterando-se a organizao de uma determinada seo da fbrica sem ter de transformar o sistema como um todo. Neste sentido, a fragmentao fordista de tarefas e a padronizao de componentes introduziu uma nova flexibilidade que abriu o caminho para o dinamismo tecnolgico.

Em resumo, o fordismo desmontou uma tecnologia que era extremamente rgida e uma organizao da produo igualmente rgida, reduzindo-a a seus elementos constitutivos, a fim de remont-la segundo seus prprios princpios racionais. Se verdade que no h virtude inerente na "flexibilidade" por si s, e os mtodos estabelecidos podem se tornar uma barreira para avanos posteriores, o dinamismo tecnolgico constante inerente ao fordismo implica um mximo de adaptabilidade dos mtodos de produo. Mais ainda, enquanto o fordismo desqualificava uma grande parte da mo-de-obra da produo direta, ele tambm criava a necessidade de novas qualificaes. Para manter a linha de montagem em movimento, Ford precisava de uma camada de operrios com especializaes "polivalentes" a fim de preencher lacunas na linha, dominar os engarrafamentos e fazer a manuteno da maquinaria. Ao mesmo tempo, o dinamismo do fordismo, necessrio para manter a superioridade competitiva de uma fbrica, implicava o desenvolvimento constante de novas ferramentas, tornos e mquinas que s podiam ser desenvolvidos por operrios altamente qualificados, utilizando mquinas flexveis e para fins diversos.20

O projeto de Ford estava associado com diversas outras caractersticas provavelmente essenciais para a sua realizao, que introduziam obstculos ao avano do fordismo. Em particular, Ford via a integrao vertical da produo e a padronizao dos produtos como elementos essenciais da sua revoluo. A integrao vertical era necessria porque era preciso aplicar os princpios fordistas produo de todos os componentes. Contudo, uma vez adotados estes princpios, a integrao vertical se tornou um obstculo para seu desenvolvimento, pois os fornecedores independentes podiam conseguir maiores economias de escala fornecendo componentes idnticos a diversos fabricantes.21

Da mesma forma, a padronizao dos produtos provavelmente foi necessria num primeiro momento para garantir retornos suficientes para levar a cabo a racionalizao da produo e a padronizao dos componentes. Mas uma vez que isso foi conseguido, a padronizao dos produtos se tornou um obstculo para o desenvolvimento da tecnologia de fabricao, pois limitava o escopo para a obteno de maiores economias de escala expandindo a variedade de modelos. O aumento macio da produo do Modelo T, e o crescimento igualmente rpido de um mercado de segunda mo significou que o mercado automobilstico logo se aproximou da saturao. Por outro lado, o mercado para automveis mais sofisticados continuava demasiado restrito para comportar mtodos de produo fordistas. O fracasso de Ford em compreender plenamente que a chave da sua revoluo era a padronizao dos componentes, e no a padronizao do produto, deixou aberta a brecha que a General Motors preencheu de imediato, diversificando o leque dos seus modelos. Neste sentido, no se pode contrapor o "sloanismo" ao fordismo, uma vez que aquele no passa do desenvolvimento dos princpios fordistas, removendo as barreiras levantadas pela viso limitada de Ford. Foi a aplicao do princpio da utilizao de componentes padronizados para a produo de uma srie de modelos, e at mesmo de produtos totalmente diferentes, que permitiu a rpida difuso dos mtodos fordistas de produo.

Se o fordismo for estritamente identificado com as realizaes tcnicas e organizacionais de Ford, ou ainda com sua filosofia de produo, ento deve-se considerar que o fordismo fracassou na dcada de 1930, sendo substitudo por formas de produo mais flexveis, nicas responsveis pela difuso dos princpios fordistas. Contudo, to claro que essas caractersticas so secundrias em relao ao significado revolucionrio do projeto de Ford que muito mais sensato descart-las, e identificar o fordismo, mais amplamente, com a decomposio e a recomposio do processo de produo como base para a generalizao dos mtodos industriais de produo e internalizao das fontes de dinamismo tecnolgico.

A REVOLUO FORDISTA DO CONSUMO

O fordismo envolvia uma revoluo no s na tecnologia, mas tambm no consumo. O projeto de Ford dependia da sua concepo do automvel como o meio de transporte bsico. Esta revoluo no foi, absolutamente, associada a um estreitamento das opes, supresso das diferenas ou homogeneizao dos produtos ou dos consumidores. Antes do Modelo T, podia-se comprar qualquer tipo de transporte pessoal, contanto que fosse um cavalo. Ford ofereceu uma gama de cores mais limitada do que os criadores de cavalo podiam oferecer, mas havia oportunidade para mais acessrios do que uma simples ferra dura. Com a generalizao dos mtodos de produo fordistas, outros fabricantes logo entraram no mercado de massa, oferecendo aos consumidores da classe mdia um leque de opes que at ento s estava disponvel para os ultra-ricos. Mais ainda, a padronizao dos componentes e as melhorias tecnolgicas ampliavam os benefcios do fordismo tanto em termos de preo como de confiabilidade para os produtores especializados. Embora at ento cada cavalo, carroa e carruagem fora nico, suas limitaes fisiolgicas, tcnicas e econmicas significavam que na verdade havia uma gama muito limitada de modelos disponveis.

A rpida reduo do custo de produo do automvel transformou-o de um brinquedo de luxo em um novo modo de transporte de massa, que restaurou a flexibilidade e a individualidade da mobilidade pessoal ameaada pela era da ferrovia, embora a necessidade de estradas pavimentadas significasse que o carro nunca poderia rivalizar com a flexibilidade do cavalo. O nibus a motor cortou os custos e aumentou a capacidade do transporte pblico urbano. O impacto do desenvolvimento do transporte comercial rodovirio foi pelo menos to significativo quanto o desenvolvimento do automvel particular.

A expanso das ferrovias fora uma alavanca imensamente poderosa para a concentrao do capital, em reas to variadas como a dos bancos e das finanas, do ao e do carvo, da distribuio de commodities e do comrcio atacadista e varejista. Isto no resultou apenas da concentrao do capital ferrovirio, mas tambm da rigidez do sistema ferrovirio, que abriu o mercado de massa mas estreitou os canais de acesso a esse mercado. A concentrao de capital em toda uma srie de indstrias de bens de consumo tinha levado competio baseada na diferenciao de produtos homogneos e no processamento industrial de matrias-primas, oferecendo uma gama cada vez maior de bens de consumo. Ao mesmo tempo, porm, a rigidez do transporte ferrovirio confinava estas oportunidades s empresas maiores, ao mesmo tempo que restringia a distribuio dos seus produtos. O desenvolvimento do transporte rodovirio superou essas barreiras, ampliando a distribuio do novo leque de produtos e tambm oferecendo aos pequenos produtores o acesso a novos mercados de massa.

A revoluo na produo e no consumo inaugurada pela era da ferrovia fora essencialmente urbana, ignorando assim, em boa medida, as comunidades que no tinham estao ferroviria.

O crescimento do transporte motorizado propagou a revoluo pelo campo, integrando at o vilarejo mais remoto estrutura do mercado e dando a base para a revoluo nas comunicaes de massa trazida pelo desenvolvimento do rdio e depois da TV. Por fim, a generalizao fordista possibilitou uma enorme diversificao no consumo de massa, pois a padronizao dos componentes possibilitava montar uma variedade quase infinita de produtos, sem perder os benefcios da produo em massa. Em todos esses aspectos a "revoluo no consumo" aplaudida pelo ps-fordismo , direta ou indiretamente, no uma reao contra o fordismo, mas apenas um desenvolvimento deste.

A TRANSFORMAO FORDISTA DO PROCESSO DE TRABALHO

O fordismo envolvia no s uma revoluo na tecnologia e no consumo, mas tambm nas relaes sociais de produo. Primeiro, a rigorosa decomposio de tarefas, incluindo a separao precisa entre tarefas especializadas e no-especializadas, permitindo a diferenciao rigorosa da fora de trabalho, o que reforou a existncia de um "mercado de trabalho duplo", composto de uma pequena camada de trabalhadores especializados e uma grande massa de operrios no-qualificados, imigrantes. Segundo, a transio do artesanato para a produo industrial ameaava reduzir o operrio a uma engrenagem na mquina industrial. A mo-de-obra industrial no era mais constituda por uma massa mais ou menos coordenada de operrios e grupos de operrios individuais, cada um sob a direo de um trabalhador especializado ou de um supervisor. O fordismo procurava fundir a fora de trabalho num todo orgnico, formando um genuno "trabalhador coletivo", em que a contribuio produtiva de cada indivduo e cada grupo dependia da contribuio de cada um dos outros. A distino entre esses dois aspectos do desenvolvimento da produo industrial essencialmente a distino entre o taylorismo e o fordismo. O taylorismo decompe tarefas e as distribui entre os trabalhadores individuais, ao passo que o fordismo re compe as tarefas soldando os trabalhadores individuais, fazendo deles uma mquina humana.22

A flexibilidade e a autonomia que se supe que sejam caractersticas dos artesos especializados so, decididamente, obstculos socializao fordista da produo, cujo desenvolvimento pleno depende de que os trabalhadores desempenhem as tarefas que lhes so designadas, por mais especializadas ou no-especializadas que sejam, no local designado, no momento designado. Por esse motivo, os artesos tendem a resistir fordizao da produo, e a destruio dos sindicatos de artesos uma pr-condio para a aplicao plena dos princpios fordistas. Isto, porm, no um requisito imposto pela tecnologia, mas sim pela dominao capitalista da tecnologia, e pela organizao social do trabalho a ela associada, para reduzir o tempo de trabalho e acelerar o turnover de capital. Assim, o grau a que a autonomia dos trabalhadores se subordinava mquina humana era determinado no pela tecnologia, mas por uma luta persistente, a qual por sua vez limitava as maneiras especficas em que os princpios fordistas eram institucionalizados em diversos lugares e pocas.

Nos EUA, os empregadores j tinham conseguido explorar o fluxo macio de trabalhadores imigrantes e as fortes divises seccionais e racistas dentro do movimento sindicalista para destruir os sindicatos de arteso e, temporariamente, controlar a produo sem serem desafiados. Na Europa, os empregadores no desfrutavam de circunstncias to favorveis. Embora tivessem derrotado o sindicalismo em meados da dcada de 1920, ainda tinham de levar em considerao os trabalhadores especializados, e organizar a produo de maneira a reproduzir e reforar dentro da fora de trabalho as divises herdadas do sistema anterior.23 Isto, por sua vez, reproduzia as diferenas na composio da mo-de-obra de acordo com a qualificao, e as formas institucionais de relaes industriais que diferenciavam a Europa (e o Japo) dos EUA. O fato de que mesmo assim os princpios fordistas puderam ser generalizados mais uma prova da sua flexibilidade.

A plena "americanizao" da indstria s poderia ter se realizado contrapondo ao poder do operariado o "direito dos administradores de administrar" um direito que os trabalhadores especializados nunca haviam reconhecido. Esta foi a considerao bsica que, at os anos 1950, motivava a resistncia dos capitalistas e operrios europeus americanizao da indstria europia. Na extenso em que os mtodos fordistas de produo se estabeleceram fora dos EUA antes de 1939, foram amplamente adaptados s condies locais, seja militarizao do operariado no Japo e nos campos de trabalho do Terceiro Reich, ou ao corporativismo fascista da Alemanha e da Itlia, ou ainda ao produtivismo trabalhista da Unio Sovitica ou s relaes industriais mais fragmentrias da Gr-Bretanha. Enquanto a nova tecnologia podia ser introduzida lucrativamente na base da negociao dentro da estrutura j existente, no havia incentivo mudana. Na Alemanha, Itlia e Japo, nem mesmo a destruio dos sindicatos pelo fascismo, pela guerra e pela ocupao limpou o terreno completamente para o fordismo. Na Gr-Bretanha, foi apenas na dcada de 1970 que os empregadores buscaram reestruturar as qualificaes e a organizao sindicalista no local de trabalho - uma reestruturao que foi inteiramente fordista, embora facilitada por novas formas de tecnologia.

um lugar-comum dizer que o desenvolvimento de novas tecnologias e da organizao social da produo moldado pelo contexto mais amplo em que ocorre. Neste sentido, o fordismo um projeto que nunca pode ser plenamente realizado. O outro lado deste lugar-comum o de que a tecnologia tem de ser suficientemente flexvel para acomodar as resistncias e imperfeies humanas. Nem as tarefas nem os trabalhadores podero jamais ser perfeitamente padronizados, de modo que um certo grau de flexibilidade tem de ser incorporado ao sistema industrial para garantir que as variaes normais no ritmo de trabalho possam ser absorvidas sem levar o sistema inteiro a uma brusca interrupo. Isto pode envolver a manuteno de estoques de emergncia, a reduo na velocidade da linha de produo, a manuteno de uma equipe de operrios extras, permitindo que os outros avancem ou recuem na linha de montagem etc. Isto, por sua vez, implica que a boa vontade e capacidade dos operrios de executar as tarefas que lhes so designadas no podem simples mente ser impostas pela tecnologia, pois a flexibilidade que tem de ser incorporada para acomodar as interrupes e as variaes individuais pode facilmente ser explorada pelos trabalhadores, individual e coletivamente, para recriar um certo grau de autonomia e aliviar a carga do trabalho.24 De outra parte, se o sistema simplesmente se ajusta s necessidades dos trabalhadores, os benefcios do sistema para o capital sofrero uma gradual eroso. Assim, longe de oferecer uma soluo tecnolgica para o problema da regulao do trabalho, o sistema industrial exacerba o problema do controle do trabalho. Este problema no era novo, em absoluto; ele o dilema do capital desde que este comeou a tentar controlar a produo. Sem o controle da fora de trabalho as novas tecnologias, por mais produtivas que sejam, so inteis para o capitalista. Assim, a soluo do problema do controle de trabalho era uma condio para a introduo proveitosa da tecnologia fordista.25

A REGULAO FORDISTA DO TRABALHO: O DIA DE CINCO DLARES

O problema do controle do trabalho apareceu sob diferentes formas nas prprias fbricas Ford. Interrupes na produo, deteriorao da qualidade, absentesmo, doenas, rotatividade de mo-de-obra e aumento da atividade sindical todos esses problemas ameaaram solapar as conquistas tcnicas de Ford. A primeira tentativa de combater esses problemas, no final de 1913, envolvia a criao de uma nova escala de salrios relacionados s qualificaes ("skill-wages ladder"'), a fim de oferecer incentivos e voltar a impor uma estrutura hierrquica no trabalho, e uma Associao de Poupana e Emprstimos para combater a insegurana. Isto, porm, teve pouco impacto. Em 1914, Ford introduziu um esquema muito mais radical, que utilizava salrios mais altos e superviso extensa, num exerccio extremamente ambicioso de engenharia social, o "Dia de Cinco Dlares", que cortava as horas de trabalho e prometia mais que o dobro do salrio (sob a forma de "distribuio de lucros") para os que se conformavam aos padres de Ford.

O Dia de Cinco Dlares acarretou uma reestruturao mais radical das categorias ocupacionais. O mais importante, porm, que ele foi usado para impor padres de moralidade e comportamento, tanto no local de trabalho como fora dele. Apenas os trabalhadores maduros, com seis meses de servio, cujos hbitos morais e pessoais passavam por rigorosos testes, eram elegveis para as bonificaes. Para capacit-los a passar nesses testes, Ford fundou igrejas e estabeleceu um programa de educao e bem-estar para oferecer orientao moral, ensinar ingls, inculcar valores americanos e defender o American Way of Life. Os trabalhadores que no passavam nos testes podiam ficar um perodo extra antes de serem despedidos. Foi fundado o Departamento Sociolgico para desenvolver, monitorar e implementar este projeto. Nem necessrio dizer que na viso de Ford, individualista e centrada na famlia, no havia lugar para o trabalhador de massa, os sindicatos, o pleno emprego ou o welfare state.26

O impacto inicial do novo esquema foi impressionante. O absentesmo caiu de 10% para menos de 0,5%. A rotatividade caiu de quase 400% para menos de 15%. A produtividade cresceu to intensamente que, embora os salrios tivessem dobrado e a produo por dia de trabalho diminudo, os custos caram. Contudo, Ford no conseguiu pagar esses salrios por muito tempo. Enquanto a inflao corroa os ganhos salariais, o mercado para seu automvel permanecia limitado, apesar de uma contnua queda nos preos, e Ford enfrentava a competio crescente daqueles que no s haviam seguido seu pioneirismo mas tambm levado ainda mais adiante sua revoluo. A General Motors oferecia uma variedade mais ampla de produtos, enquanto o crescente mercado de segunda mo solapava o Modelo T. Mesmo assim, foi Ford, e no o fordismo, que foi demasiado inflexvel para reagir a estas mudanas. Ford continuou convencido da sabedoria de seus mtodos e procurou fazer face competio crescente cortando ainda mais os custos. Porm as melhorias tecnolgicas, por si s, no podiam cortar os custos o suficiente para restituir a boa-sorte a Ford. A nica alternativa era cortar os salrios e intensificar o ritmo de trabalho, no por meio de aumentos salariais, mas por uma implacvel disciplina, imposta pelo setor agora chamado de "Departamento de Servio", com sua fora policial particular e sua rede de espies dentro e fora da fbrica.

Os mtodos cada vez mais repressivos de Ford no foram ditados pela tecnologia, nem pelas condies econmicas. Outros produtores vinham desenvolvendo sistemas alternativos e mais econmicos de controle do trabalho, para fazer face crescente resistncia dos trabalhadores. A tentativa de Ford de criar um Novo Homem adequado sua Nova Era criou apenas hostilidade e ressentimento, ao mesmo tempo que embarcava numa escalada de custos de superviso e implementao. O alto ndice de desemprego possibilitou a Ford recrutar mo-de-obra durante toda a dcada de 1930, e ele conseguiu utilizar sua riqueza e poder para excluir os sindicatos; entretanto, outros empregadores estavam reconhecendo os sindicatos e percebendo que novas formas de relaes industriais, construdas sobre os acordos coletivos, eram capazes de reconciliar o controle do trabalho com a paz industrial, permutando a aceitao das prerrogativas gerenciais por melhores salrios e condies de trabalho. O desenvolvimento de sistemas mais complexos de classificao de empregos e de pagamentos, incluindo bonificaes, incentivos e pagamentos por produo, fragmentou a fora de trabalho, ao mesmo tempo que oferecia um meio pelo qual os trabalhadores individuais podiam ser subordinados disciplina de seus colegas, reduzindo assim os custos de superviso. Tais sistemas davam mo-de-obra um certo grau de controle coletivo sobre o ritmo de trabalho. Ao mesmo tempo, porm, atravs de acordos de produtividade e da ideologia da "participao nos lucros", foi institucionalizado um interesse comum entre o empregador e os sindicatos, representando o "trabalhador coletivo", postado acima do conflito dirio de interesses entre o empregador e os trabalhadores ou determinadas sees. Mais ainda, o desenvolvimento de um sindicalismo responsvel, com o incentivo ideolgico, financeiro e poltico do Estado, mostrou ser uma poderosa fora para a estabilizao poltica perante o crescente torvelinho poltico durante o New Deal - estabilizao que foi ameaada pela oposio rancorosa e contnua de Ford aos sindicatos. Mesmo assim, foi s em 1941, quando forado a reconhecer a existncia da UAW (Union of Automobile Workers) devido a uma greve macia, que Ford admitiu o fracasso de sua misso de inspirao divina.

A ROTINIZAO DO CARISMA: FORD E SUA FUNDAO

O fordismo tinha resolvido sua primeira crise desenvolvendo outras formas de controle do trabalho, diferentes das que Ford defendera de incio - formas de controle que abandonavam a tentativa de criar o Novo Homem e permitiam s organizaes trabalhistas certo grau de autonomia negociada. O desenvolvimento de um esquema estvel de relaes industriais na fbrica era estreitamente associado com o desenvolvimento de estruturas de negociao que se estendiam por toda a indstria, e com o reconhecimento poltico dos sindicatos como o canal legtimo para a representao dos interesses de seus membros. A utopia fordista tinha entrado em colapso, e logo seria substituda pelo novo sonho do New Deal. Embora este ltimo sistema tivesse semelhanas superficiais com a concepo social-democrtica do Welfare State de Keynes, tratava-se de uma estratgia populista, e no socal-democrtica. Assim, o Welfare State keynesiano no foi um desenvolvimento do New Deal, assim como o New Deal no foi um desenvolvimento do projeto fordista original.

A estratgia do New Deal no podia ser mais diferente do projeto de Ford, ao conceder aos trabalhadores o pleno reconhecimento poltico. Porm ela se baseava numa f ingnua na compatibilidade do capitalismo com a democracia industrial. Foi articulada pelas teorias sociolgicas populistas do institucionalismo, que viam os sindicatos como representantes autnticos dos interesses da mo-de-obra, ou seja, como o baluarte da democracia dentro do capitalismo. Entretanto, ela falhou ao no reconhecer nenhum conflito de interesses fundamental entre o capital e o trabalho, assumindo assim que um sistema poltico democrtico podia oferecer o arcabouo para a resoluo racional dos conflitos. A viabilidade dessa estratgia dependia do baixo nvel de desenvolvimento das organizaes polticas trabalhistas, do desenvolvimento limitado do sindicalismo, e da desmoralizao dos sindicatos na pior fase da depresso. Assim, a estratgia j estava passando por dificuldades com a onda de greves e paralisaes de 1936-37, antes de receber um novo impulso vital pelos imperativos da guerra que se aproximava.

Os limites da utopia do New Deal tornaram-se evidentes assim que terminou a Segunda Guerra Mundial. Os vencedores precisavam supervisionar a reconstruo econmica, social e poltica dos vencidos, mas tinham tambm seus prprios problemas no processo de converso paz, e estes foram sua primeira preocupao. Estes problemas se centravam nas formas apropriadas de institucionalizao das relaes de trabalho, uma vez que haviam terminado as condies de guerra. Os empregadores procuravam reverter os ganhos que o trabalho organizado conseguira na poca da guerra, enquanto os trabalhadores procuravam aproveitar-se do mercado de trabalho relativamente rgido, dos altos lucros e dos mercados com alta potencialidade de expanso, para garantir mais vantagens. O resultado, em especial nos EUA, foi um perodo de lutas acirradas, ainda que episdicas e fragmentadas, e uma forte instabilidade institucional, cujos riscos polticos foram simbolizados pela direo de diversos poderosos sindicatos da CIO (Congress of Industrial Organizations) conquistada pela esquerda.

Nos EUA a estabilizao do sistema de relaes industriais foi um problema agudo, mas em outros pases foi pior ainda. Ele foi exacerbado pela ingenuidade da primeira tentativa norte-americana de exportar o New Deal para as potncias derrotadas, incentivando a expanso dos sindicatos como baluartes da democracia e garantia contra o ressurgimento do fascismo. Eles de fato provaram serem baluartes da democracia, mas no necessariamente dedicados realizao do fordismo e do American Way. O rpido crescimento do sindicalismo militante, muitas vezes sob liderana comunista, ameaava entregar a Europa e o Japo aos comunistas. O sindicalismo tinha de ser despolitizado, reduzido representao de interesses econmicos especficos e negociao dentro dos limites de um esquema legalmente regulamentado de acordos coletivos. Tinha de ser representado politicamente apenas como grupos de interesse dentro de um sistema poltico pluralista. Tinha de ser salvo dos Vermelhos e reincorporado aos ideais do fordismo.

Mais uma vez foi a sociologia que veio em auxlio no momento crucial, oferecendo a perspectiva estratgica para a reconstruo capitalista do ps-guerra em escala global. Desta vez no foi o defunto Departamento de Sociologia de Ford, mas uma instituio muito mais grandiosa, a Fundao Ford, com ntimas ligaes com o governo americano, e em especial com a CIA. Em 1948, a Fundao Ford encomendou um estudo sobre a filosofia poltica a ser adotada no futuro, cujo relatrio (o Relatrio Gaither) teve enorme influncia para determinar tanto a estratgia da CIA durante sua fase "liberal" dos anos 1950 como o desenvolvimento das cincias sociais. O projeto mais influente que resultou da ltima parte dessa iniciativa foi o "Estudo Inter-Universidades de Problemas Trabalhistas e Desenvolvimento Econmico", que comeou a solicitar fundos em 1951 e apresentou seu relatrio final em 1975.27

O Relatrio Gaither preocupou-se em identificar os problemas sociais crticos "onde se situa a mais grave ameaa democracia e ao bem-estar humano."28 O relatrio advertia sobre os perigos da complacncia, que surge de uma identificao das instituies existentes com o "esprito da democracia". Assim, o anticomunismo por si s no era suficiente. Era necessrio primeiramente reformar as instituies americanas para dar democracia o "direito de crescer", a fim de "nos livrarmos da traio sem pr em risco a liberdade". O relatrio enfatizava a importncia da defesa nacional e os perigos do isolacionismo, mas criticava severamente as pretenses democrticas das instituies americanas existentes. Expressava ansiedade sobre a impropriedade de um sistema poltico que servia a interesses especiais, em vez de refletir a vontade do povo. O relatrio destacava a importncia de se atingir um nvel de renda e de emprego elevado e estvel, tanto no pas como no estrangeiro, e realava a necessidade de "uma compreenso mais completa do comportamento humano" para determinar as causas do conflito industrial. Ele relatava "um grau incomum de insatisfao" com o fracasso do sistema educacional em oferecer igualdade de oportunidades e em desenvolver "a determinao, o carter e os valores do indivduo". Alertava contra os perigos do "ajustamento emocional inadequado" perante "mudanas vastas e rpidas... com as conseqentes perturbaes polticas, econmicas e sociais." Mas apesar de descrever a desigualdade, o descontentamento, o conflito e o desajustamento no corao do pas, o relatrio deixava claro que os defeitos do sistema americano eram apenas superficiais. Podiam ser remediados por um programa abrangente e ambicioso de desenvolvimento das cincias humanas, das quais o projeto da "sociedade industrial", dominado por Kerr e Dunlop, foi o resultado mais importante e mais influente.

Sem indulgir num reaproveitamento da conhecida teoria da sociedade industrial, que o prato principal da sociologia moderna, basta notar que Kerr definia um projeto fordista muito mais humanista e otimista, na esperana de que ele se venderia melhor nos mercados mundiais do que o plano anterior de Ford, de trabalho duro e autodisciplina puritana. A imagem de Kerr no era a de uma sociedade industrial tal como ela , mesmo nos EUA, mas sim de uma sociedade industrial "do tipo ideal", na qual uma fora de trabalho feliz, dotada de mltiplas qualificaes, instruda, individualista, orientada para as realizaes, com mobilidade social, ocupacional e geogrfica, culturalmente homognea e psicologicamente saudvel se adaptaria constantemente s rpidas mudanas tcnicas e sociais, solucionando seus conflitos pacificamente, atravs dos canais apropriados para a resoluo de conflitos e de um sistema adequado de relaes industriais. Embora Kerr acreditasse que o desenvolvimento de uma sociedade desse tipo, funcionalmente integrada, acabaria sendo inevitvel, havia muitas barreiras a serem removidas ao longo do caminho. A tarefa bsica do socilogo era mostrar como remov-los. Enquanto o Departamento de Sociologia de Ford ensinava o Novo Homem a portar-se de acordo com a vontade de Deus e a natureza humana, o Departamento de Sociologia de Kerr ensinava o Homem Mais Novo (no, ali tambm no havia nenhuma mulher) a portar-se de acordo com a vontade de Mammon e o esprito do industrialismo. Se ele (e sua mulher e seus dois filhos) gostavam da coisa ou no, era irrelevante. Uma vez reconhecendo que era inevitvel, ele a aceitaria.

UM ESTRANHO CASAL: FORD E KEYNES

Uma coisa era traar o plano geral da nova utopia fordista; outra muito diferente era implement-la. Os socilogos e o Departamento do Trabalho, a CIA, a AFL (American Federation of Labor), o ICFTU (International Confederation of Free Trade Unions) e uma poro de outras iniciais e acrnimos podiam fazer sua parte, mas a reestruturao das relaes industriais e polticas dependia da capacidade do sistema de oferecer garantia de emprego, salrios mais altos e benefcios de bem-estar adequados, coisas que no passado ele no fora capaz de oferecer de maneira constante. Tambm no estava claro de que maneira esses benefcios poderiam ser oferecidos no futuro, pois havia uma variedade de diagnsticos das limitaes passadas do capitalismo e uma variedade de panacias para a sua reforma. um lugar-comum das teorias do fordismo dizer que o keynesianismo-welfarismo um componente central do modelo fordista. Embora a retrica keynesiana-welfarista tenha sido amplamente empregada durante meio sculo, a realidade tem sido um tanto diferente. Seja na teoria, seja na prtica, o arcabouo da reconstruo do ps-guerra e a base do boom do ps-guerra foram fornecidos pela democracia liberal ortodoxa. Longe de ser uma fonte de estabilidade, o keynesianismo-welfarismo foi uma resposta a uma crise que se ampliava e, longe de resolv-la, s serviu para aprofund-la e politiz-la mais ainda.

No ps-guerra imediato, os diagnsticos e panacias dominantes e progressivos eram uma ou outra variante do keine-sianismo-welfarismo. No entanto, no foi o keynesianismo-welfarismo que dominou a reconstruo do ps-guerra e assentou as bases para o boom do ps-guerra. Nos EUA, o keynesianismo-welfarismo ficou associado aos adeptos do New Deal, que agentaram a maior parte da culpa pelo ressurgimento, ocorrido no ps-guerra, dos conflitos trabalhistas nos EUA e do avano da esquerda na Europa e no Japo. Assim, depois de um par de anos j havia pouca distino entre o keynesianismo-welfarismo e o comunismo. Na Gr-Bretanha houve uma corrente keynesianista-welfarista no Partido Trabalhista, mas sua nfase principal era produtivista. As reformas na rea do welfare ficaram confinadas produo.

Embora depois da guerra houvesse medo de uma depresso com o rpido aumento do desemprego, logo ficou claro que o perigo principal era a inflao. A barreira principal para a reconstruo eram os desequilbrios globais na estrutura da produo, motivo da escassez de dlares e das restries comerciais e monetrias. Enquanto as medidas keynesianas eram amplamente utilizadas para refrear as presses inflacionrias e a retrica keynesiana era moeda corrente, nenhum governo na dcada do ps-guerra comprometeu-se com a filosofia keynesiana do pleno emprego, s expensas do compromisso de conter inflao. Assim, muito difcil dar a Keynes o crdito da prosperidade e estabilidade do boom do ps-guerra. De 1947 em diante, a estratgia da reconstruo baseou-se inequivocamente, tanto na teoria como na prtica, na rpida liberalizao do comrcio e dos pagamentos internacionais, culminando em 1958 com a restaurao da conversibilidade monetria geral. Foi essa liberalizao - e no o keynesianismo - que alimentou o boom do ps-guerra.29

O boom possibilitou um "acordo ps-guerra" entre o capital e o trabalho organizado, que permitiu, estimulou e depois implementou a generalizao dos mtodos fordistas de produo. Este acordo ps-guerra inclua uma ampliao dos esquemas welfaristas, fosse por meio de fundos pblicos ou privados, com a nfase sobretudo nos benefcios de contribuio para os setores mais bem pagos e mais garantidos do trabalho, e marcadamente inferiores para aqueles que no tinham a folha de contribuies com as qualificaes necessrias. Mas essas realizaes eram limitadas. No final da dcada de 1950, os problemas econmicos aumentavam na Gr-Bretanha e nos EUA: inflao, desemprego, pauperismo, decadncia urbana e racismo indicavam os limites das conquistas liberais da dcada do ps-guerra. Para os social-democratas, as conquistas do ps-guerra traziam a promessa de mais sade, educao, bem-estar, melhores moradias, salrios mais altos e a ampliao na participao democrtica. Por volta de 1960, o macartismo e a liberalizao do ps-guerra aparentemente haviam limpado o campo para que o keynesianismo-welfarismo social-democrtico assumisse seu papel histrico.

Entretanto, logo ficou claro que os crescentes problemas econmicos e sociais no eram apenas alguns fios soltos a serem amarrados. O sonho de Lyndon Johnson da Grande Sociedade durou apenas um par de anos at ser engolfado pela Guerra do Vietnan. O projeto de Harold Wilson de modernizao tecnolgica e social mal conseguiu decolar quando foi varrido pela crise econmica. Longe de resolver os problemas econmicos, sociais e polticos, as solues keynesianas tenderam apenas a intensific-los. O rpido crescimento dos gastos estatais impunha um crescente escoamento improdutivo dos lucros. As medidas polticas expansionistas alimentavam as presses inflacionrias. A crescente interveno estatal encorajava a mobilizao poltica popular e politizava a tomada de decises econmicas. Em resumo, a relao entre o fordismo e o keynesianismo era mais ou menos to prxima e to estvel como se pode imaginar que teria sido uma relao entre Ford e Keynes.

A CRISE DO FORDISMO E A CRISE DO CAPTALISMO

Os ps-fordistas poderiam afirmar que exageraram a estabilidade do fordismo, enquanto ainda insistiam que a causa da crise de 1970 era a inflexibilidade da produo fordista. Num certo sentido, a crise foi causada pela inflexibilidade dos arranjos institucionais existentes, mas, tal como ocorreu em perodos de crise anteriores, esta inflexibilidade no era uma caracterstica da tecnologia de produo mas sim da resistncia trabalhista, institucionalizada nas formas de relaes industriais e de representao poltica que foram desenvolvidas como soluo provisria de conflitos trabalhistas anteriores. Assim, a chave para se quebrar esta inflexibilidade no era a introduo de novos mtodos de produo mas sim a remoo da base da resistncia trabalhista, reestruturando as formas institucionais de representao trabalhista. Foi apenas na base dessa reestruturao das relaes de classe que houve qualquer possibilidade de introduo vantajosa de novos mtodos de produo.

As presses sobre a lucratividade vinham aumentando j desde meados da dcada de 1950, embora no incio as altssimas taxas de lucro tivessem possibilitado que o capital absorvesse estas presses, enquanto ainda comportava uma folga para atender s reivindicaes por maiores salrios e gastos sociais e previdencirios como meio de garantir a paz social e a estabilidade poltica. Estas presses, porm, se intensificaram na dcada de 1960 e incio da de 1970, quando o boom contnuo levava a uma competio internacional cada vez maior e alimentava as demandas trabalhistas, canalizadas atravs dos sistemas institucionalizados de relaes industriais e da representao poltica oferecida pelo welfare state keynesiano.

A presso da competio se fez sentir mais agudamente nos pases, especialmente na Gr-Bretanha e nos EUA, onde a fora do mercado mundial exigira investimentos em novos mtodos de produo. Enquanto a produtividade do trabalho estagnava, os custos fixos se mantinham baixos, o endividamento das empresas continuava baixo, os riscos financeiros e sociais eram minimizados e os lucros continuavam altos. A medida que as presses competitivas corroam a lucratividade, os esquemas institucionais anteriores - desde o financiamento corporativo, passando pelo gerenciamento da produo, a organizao dos operrios no local de trabalho, os sistemas de pagamento e os procedimentos para acordos sindicais, at os sistemas de sade, bem-estar, moradia e aposentadorias - cada vez mais se tornavam barreiras para a reestruturao da produo, necessria para fazer face ao desafio competitivo. Alguns desses esquemas institucionais, tais como as estruturas do gerenciamento das empresas ou o financiamento dos investimentos, podiam ser organizados com relativa facilidade. Outras estruturas institucionais eram aquelas pelas quais o trabalho articulava seus interesses e no poderiam ser desmanteladas com tanta facilidade. Assim, a fonte principal de inflexibilidade que inibia a reestruturao da produo era a resistncia dos trabalhadores. O resultado foi que as crescentes presses competitivas precipitaram o aumento dos conflitos industriais - no s acerca de salrios e benefcios sociais, mas tambm, cada vez mais, acerca da produo, acordos e pagamentos salariais, sade, educao e seguro social.

Entre 1966 e 1980 o conflito entre o keynesianismo e o monetarismo foi a expresso poltica dessa luta. As presses polticas impediram os governos britnico e americano de reagir crise de 1974 com as medidas deflacionrias sustentadas do tipo das que foram adotadas pelo governo alemo. Em vez disso, lanaram mo de uma variedade de meios inflacionarios que aliviaram a ameaa de recesso mas tambm mantiveram o poder de barganha trabalhista e reduziram as presses sobre os capitalistas retrgados para investir em novas tecnologias de produo. Mesmo assim, tendo aprendido a lio da crise de 1974 e sofrendo crescentes presses financeiras, o Estado buscou estratgias de reestruturao cada vez mais implacveis, planejadas basicamente para restaurar a solvncia fiscal. Isto no foi conseguido desenvolvendo-se a capacidade de produo, mas intensificando o trabalho, mantendo os salrios baixos e cortando benefcios de sade e bem-estar. No final da dcada, a base institucional da resistncia trabalhista tinha sido substancialmente erodida, de modo que, em resposta crise de 1979 tanto o governo da Gr-Bretanha como o dos EUA conseguiram adotar estratgias deflacionrias radicais.

Num primeiro momento a ofensiva da dcada de 1980 ainda foi dominada pela tentativa de restaurar a lucratividade atravs da intensificao do trabalho e da reduo dos salrios reais nos setores mais vulnerveis da fora de trabalho. Esta estratgia de confronto no foi ditada pela obstinao capitalista de se recusar a reconhecer o potencial libertador da nova tecnologia, mas sim pela fora residual da mo-de-obra. Era necessria uma reestruturao institucional, no para a introduo de uma determinada tecnologia, mas para restaurar o controle sobre o processo de trabalho. S com a restaurao da lucratividade poderia o novo capital se tornar disponvel para novos investimentos, e s com a restaurao do controle do processo de trabalho poderiam esses novos investimentos se mostrar lucrativos. Assim, a reestruturao institucional foi imposta pela crise da reproduo capitalista - e no pelos requisitos de qualquer tecnologia particular. por isso que o mesmo processo ocorreu em todos os setores da produo, qualquer que fosse a tecnologia: nas indstrias de produo de massa, na indstria pesada, nas indstrias extrativas, no transporte e nas comunicaes, nos servios e no setor pblico.

No h nada de ps-fordista nessa reestruturao. O sucesso da ofensiva capitalista removeu muitas barreiras que antes impediam que a mudana tecnolgica criasse condies nas quais novas tecnologias pudessem ser introduzidas com proveito. Mas essas tecnologias no so introduzidas em termos qualitativamente diferentes de qualquer das suas predecessoras; tal como a linha de produo de Ford, so introduzidas apenas para aumentar os lucros. Alguns setores do trabalho se beneficiaram da introduo das novas tcnicas, da mesma forma que os operrios da linha de montagem de Ford se beneficiaram com a introduo do Dia de Cinco Dlares. Mas, assim como as presses competitivas vindas de novas formas do fordismo, mais desenvolvidas e mais flexveis, logo foraram Ford a introduzir os homens de Pinkerton e o Departamento de Servio, tambm os especialistas flexveis e os especialistas em nichos do mercado j esto sofrendo a presso de competidores que conseguiram reconciliar as economias de escopo com economias de escala. A crise do fordismo no nada de novo; apenas a mais recente manifestao da crise permanente do capitalismo.