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A Cultura Popular Nordestina no Engenho Teatral... – Silva & Luna
Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.º 20 438
A CULTURA POPULAR NORDESTINA NO
ENGENHO TEATRAL MODERNO DE JOAQUIM
CARDOZO
Nadja Maira Baltazar da Silva1
Jairo Nogueira Luna2
d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p438
Resumo: A produção teatral do engenheiro-poeta-dramaturgo se inicia
na década de 1960 com a publicação de O Coronel de Macambira,
primeira peça de teatro do autor, drama desenvolvido como a encenação
de um bumba meu boi, parte do universo folclórico pernambucano, indo
até os anos 70, quando foi publicado seu último drama: Antônio
Conselheiro. Nesse sentido, este trabalho se propõe a estudar e analisar
esse construto dramatúrgico, com base na Teoria da Literatura e na
Crítica Teatral dentro da concepção de teatro moderno, na intenção de
demonstrar a relevância da construção dramatúrgica de Joaquim
Cardozo para a literatura e dramaturgia brasileira pernambucana. A fim
de demonstrar os aspectos culturais nordestinos presentes nestas peças,
verificar nelas as características do teatro medieval e grego, analisar seu
caráter critico-social e evidenciar as dimensões líricas presentes nesta
dramaturgia. Por meio pesquisas bibliográficas, na obra teatral do autor:
O Coronel de Macambira (1963), De uma Noite de Festa
(1971), Marechal, Boi de Carro (1975), Os Anjos e os Demônios de
Deus (1897), O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro, ambas de
1978. Sem deixar para trás, a breve visita que houve ao Teatro
Joaquim Cardozo, localizado em nossa capital Recife , no intuito de
investigar que fato seu nome nomeasse o teatro e conhecer a sua bela
1Graduanda em Letras-Português, UPE-Campus Garanhuns e Bolsista de Iniciação
Cientifica, CNPq. 2 Pós doutor em Literatura, USP e professor adjunto do colegiado de Letras, UPE-
Campus Garanhuns.
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arquitetura colonial. Onde, Joaquim Cardozo vem com um tímido
resgate popular iniciando e apurando suas críticas socais nas duas
primeiras obras, para por fim verificar-se no seu último bumba, um
engajamento maduro expressado de forma explicita, mas que não
despreza o rito popular do bumba-meu-boi no seu desenvolvimento.
Tendo como guia as contribuições teóricas de Luna (2015), Pallotini
(1988), Dantas (1985) e Leite (2001), além de Paiva (2009) e De Pádua
(2009).
PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Cardozo. Cultura Popular Nordestina.
Teatro. Semiótica do teatro. Análise literária.
Abstract: Theatrical production of the engineer-poet-playwright began
in the 1960s with the publication of The Colonel of Macambira, the
first play by the author, drama developed as the staging of a bumba my
ox, part of the folkloric universe of Pernambuco , going until the 70's,
when his last drama was published: Antônio Conselheiro. In this sense,
this work intends to study and analyze this dramaturgical construct,
based on Theory of Literature and Theater Criticism within the
conception of modern theater, with the intention of demonstrating the
relevance of the dramaturgical construction of Joaquim Cardozo for
Brazilian literature and dramaturgy Pernambuco. In order to
demonstrate the Northeastern cultural aspects present in these plays,
check in them the characteristics of medieval and Greek theater, analyze
their critico-social character and highlight the lyrical dimensions
present in this dramaturgy. By means of bibliographical researches, in
the author's theatrical work, not forgetting that the study is still in
progress, so we analyze for hours: The Colonel of Macambira (1963),
From a Night of Feast (1971), Marshal, steer by car (1975), The Angels
and the Demons of God (1897), The Foreman of Salema and Antônio
Conselheiro, both of 1978. Without leaving behind, the brief visit to the
Joaquim Cardozo Theater, located in our capital Recife, in order to
investigate the fact that his name named the theater and know its
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beautiful colonial architecture. Where, Joaquim Cardozo comes with a
timid popular rescue starting and clearing his social criticisms in the
first two works, to finally verify in his last bumba, a mature engagement
expressed explicitly, but does not despise the popular rite of bumba-
my-ox in its development. Having as a guide the theoretical
contributions of Luna (2015), Pallottini (1988), Dantas (1985) and Leite
(2001), and Paiva (2009) and De Pádua (2009).
KEY WORDS: Joaquim Cardozo. Popular Northeastern Culture.
Theater. Semiotics of the theater. Literary analysis
Introdução
A produção teatral de Joaquim Cardozo se inicia na década de
1960, com a publicação de O Coronel de Macambira (1963), drama
desenvolvido como a encenação de um bumba meu boi, parte do
universo folclórico pernambucano, indo até os anos 70, com Antônio
Conselheiro (1975), que busca em seu enredo recriar a saga de
Canudos, com base em Os Sertões de Euclides da Cunha. Dentro de
escolhas de temas como estes sempre ligados ao nordeste. “Pode-se
imaginar que, já há muito tempo fora do Recife, talvez Cardozo
observasse o folclore de sua terra com os olhos de alguém de fora, com
o olhar de quem vê de longe”. (NASCIMENTO, 2007. p. 169), onde
mostra - se, por conseguinte, muito envolvido com as questões do
folclóricas pernambucanas e movimentos sócio-culturais típicos do
nordeste. Mas o que mais destaca- se nesta produção de Cardozo, o
que a faz ser irreverente “é a dimensão crítica e social que ele confere a
seus textos”. (LEITE, 2001, p. 3).
Nesse sentido, esta engenhosa obra teatral foi uma espécie de
ampliação da expressão poética, bem esclarecido por Dantas (1985):
“Para Cardozo, o teatro representou, por assim dizer, para dar expressão
à sua vocação para uma poesia, viva, permeada de ação e movimento.”
(DANTAS, 1985, p. 45). As quais em nesse âmbito de execução se
assemelham às da época medieval e da antiguidade grega, através de
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seu alto teor oral, nas quais o espaço cênico relaciona-se de modo claro
com o espaço circular de praça, lugar, onde na Roma Antiga, por
exemplo, aconteciam as apresentações dramatúrgicas de autores como
Sêneca, Terêncio e Plauto.
Obras aqui destacadas por serem aquelas sempre calcadas no
apego e na relevância que o engenheiro-poeta- dramaturgo tinha à sua
região, porém não mais como nas poesias do livro Poemas (1947),
presas a um universo circundante, como a flora nordestina e com ruas
do Recife, e sim às imagens ligadas ao Sertão, as suas manifestações
folclóricas, tradições e principalmente às realidades desse povo.
1.O Coronel de Macambira (1963): Do Regaste Popular Ao Início
Das Criticas Sociais
Livro que ocupa lugar de realce na dramaturgia de Joaquim
Cardozo, em favor de ser seu primeiro Bumba, sendo quase o único
texto de teatro conhecido por um público mais numeroso e com
superior quantidade de montagens. De acordo com (LEITE, 2001, p. 3),
a transfiguração poética que Cardozo faz realização ao compor O
Coronel de Macambira é tomada a partir de um paradigma traçado
entre este e o Bumba- meu- boi do Capitão Antônio Pereira, coligido
por Ascenso Ferreira. “Nesse texto, se por um lado se apropria da
cultura popular para construir sua obra, como ele mesmo diz no
posfácio do livro3, por outro, contribui com a cultura erudita e impõe
dignidade à popular, sempre olhada como arte menor.” (DE PADUA,
2009, p.2).
Retomando, assim o aspecto perdido no Bumba do folclore, ao
repor o boi no centro do enredo. O compõe por fragmentos, inserindo
3 A composição deste Bumba-meu-boi representa a realização de um projeto que há
muito tempo me prometi, pois, sempre considerei vivo e atuante este gênero de teatro
popular brasileiro; a sua decadência, o seu deperecimento correspondem,apenas, a
estes mesmos sintomas de declínio na vitalidade, e nas condições econômicas do
próprio povo deste país, cuja miséria vem sempre crescendo, como pude constatar
pela observação direta, em mais de cinqüenta, dos sessenta e muitos anos que já vivi.
[...] (CARDOZO, 2001, p. 95)
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diversas figuras denominadas, de acordo com (LEITE; 2001; 4)
“personagens morte”: a Aeromoça e o Soldado da Coluna, os quais
passam a formar uma tríade com o boi, que trazem consigo a crítica a
um Brasil melhor. As demais personagens são formadas por
personalidades de estereótipos típicos da região nordestina: o Capitão, o
Coronel, o Valentão...Uma e outra, apresentam falas com notável
musicalidade, em favor das rimas presentes nos finais de cada fala, o
que a aproxima textualmente e liricamente à uma narrativa de cordel:
Capitão:
[...]
Sou conde condecorado
Senhor de grande solar
Comigo trago mandato
De tudo remediar
Sou conde condecorado
Com a cruz do Tempo e do Ar
Sou comandantes das nuvens
Errante no pelejar. [...] (CARDOZO,
2001, p.16)
Tais características aproximam o teatro de Cardozo, das
manifestações orais, tanto pela simplicidade da estética, pelo lirismo,
ou, pela discutida linguagem, e também, em consequência do aspecto da
coralidade presente em seus textos na qual é perceptível a partir de uma
classificação personagens alegóricos que se deslocam por espaços
marcados por uma atmosfera realista. Mesmo com esta transmutação,
que o engenheiro-poeta-dramaturgo instaura, não deixa de haver nessa
obra teatral, momentos de singela observação e valorização à fauna
típica do sertão nordestino, por exemplo, no canto das Cantadeiras
presente final do primeiro quadro. Em que evoca os cantos de pássaros
habitantes da região sertaneja do nordeste, o Guriatã, o curió, o papa-
capim... entre outros. E o “meu” galo de campina como o eu lírico
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refere- se, uso pronominal o qual reforça essa ideia de exclusividade
dessas aves ao sertão:
Cantadeiras
Guiratá, curió
Oh! Patativa galada
Oh! Meu galo de campina
Cantando desde a alvorada
Sabia da mata, sabiá
Sabiá gongá
[...]
Cantando vamos ao longe
Pela estrada do sertão
Cantando, vamos cantando
Salvar o boi e a nação.
[...] (CARDOZO, 2001, p.50)
Onde vê-se um tom saudosista, remetente ao assumido no
Romantismo, dentre outros por José de Alencar e por Gonlçalves Dias,
autor de “Canção do Exilio”, poema com o qual, esse recorte de cena de
O Coronel de Macambira faz dialogo, em favor do também canto à sua
terra, como no texto de Dias, onde de maneira semelhante, mensura um
sabiá, assim como no texto romântico: “Minha terra tem palmeiras,
/Onde canta o Sabiá...” (DIAS, 1959,p.2), mas de sabiá particularizado
à região nordestina: o sabia- gongá, diferenciação vista através da
inserção do adjetivo “gongá” ao substantivo sabiá, criando,
consequentemente, esse o novo significante. Em outro momento o
autor volta a trazer os valores culturais do povo do nordeste: na figura
do Retirante, o qual faz lamentações sobre o sofrimento que passou, na
busca de uma vida melhor na capital, que na maioria das vezes era falha
para estas pessoas, pois sem grau de instrução e falta de experiência
dificilmente encontravam trabalho, vivendo, assim, em condições
lastimáveis:
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Retirante
Volvi com o rosto marcado
De duas marcas de chama:
- Duas vivas queimaduras....
[...]
Da primeira foi a sede
A chama em que me queimei;
[...]
Mas, encontrei no caminho
Alguns amigos leais
Meu padrinho Padre Cicero
No Crato e no Juazeiro [...] (CARDOZO, 2001, p. 73)
Em pleno sofrimento, de volta a uma terra seca e quente, o eu
lírico vê-se numa situação, onde a única solução encontrada, após
tempos e tempos longe, é pedir ajuda divina ao Padre Cícero, tom
esperançoso inferido a partir da adjetivação que o retirante dá ao santo:
“amigo leal”, mesmo diante de tantas atitudes sem sucesso, o que
permite notar, portanto, nessa cena, uma devoção característica dos
nordestinos. Desta forma, é conseguida uma aproximação entre o leitor-
espectador de um universo espetacular bem próximo da realidade vivida
pelo público que participa das representações populares. Em vista da
riqueza discutida empregada por Cardozo para construir essa obra,
pela e simplicidade vocabular da qual faz uso, uma vez que temos uma
linguagem sem rebuscamentos, e com expressões, como a princípio
desta analise discutas: particulares do interior da região do nordeste,
sem esquecer-se particular resgate da cultura desse povo tão castigado
pela seca e pela sociedade.
2.De Uma noite de festa (1971): O Retrato da Noite de Natal e O
Desvelamento Social Nesta peça o dramaturgo poeta consegue a maneira mais bem
arquitetada, calculada e construída de seus bumbas, em três quadros,
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constituídos de fragmentações sem dependência entre si, nesses
fragmentos são aprofundados assuntos, e criadas personagens. Nisso
seus quadros servem de espaço de um microscomo de ações, imagens,
temas, palavras versos ... assim, esses quadros são configurados como
pequenas peças dentro do todo da obra. Ocorre a respeito dos animais,
uma diferenciação entre esta e O Coronel de Macambira: Em De uma noite de festa já não existem nem animais
nem fantásticos construídos à semelhança daqueles da
matriz folclórica utilizada por Cardozo para compor seu
primeiro Bumba-meu-Boi. Os animais neste Boi têm fala,
o que não ocorre no Bumba popular, e estão todos
inseridos num plano onírico, a saber, no segundo quadro o
sonho de bastião. (LEITE, 2001, p.2)
Nesse âmbito, esse drama é espaço imaginário composto por
fronteiras carregadas de arbritariedade, nas quais o autor determina o
solo da cultura e da topografia das possibilidades da ação dramática
retalhada. O mais peculiar é a relação que essa retaliação assume:
primeiro quadro, predomina a perspectiva da realidade; no segundo,
uma perspectiva onírica e, no terceiro, uma síntese entre o mágico, o
real e o onírico. No quadro inicial, vemos no seu o anúncio
introdutório, que é trazido pelas Cantadeiras, citações de nomes das
mais variadas localidades pernambucanas, entre praias, cidades... No
canto em questão há por conseguinte uma forte valorização da terra
natal do autor, através desse canto aos nomes das terras pernambucanas.
Onde chama atenção o mencionar da nossa Garanhuns, localizada no
centro do agreste Meridional do estado:
Cantadeiras
Manguezal do Mamanguape
Na barra de Coqueirinhos;
Na da Ponta da Pedra;
Cabo de Santo Agostinho.
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É Garanhuns
É Guribem
Tapirahim
Tracunhaém [...] (CARDOZO, 2001,
p.21)
O valor que Cardozo concebe à sua região continua mais nítido
ao seguir-se as observações do primeiro quadro em que os personagens
se dirigem à missa de Natal em Nazaré, fato que faz o leitor perceber
que sua titulação De uma noite de festa não é empregada apenas em
favor do festa do Bumba-meu-boi, mas também por se tratar de um auto
de natal, no qual as personagens geralmente situados em uma esfera
sobrenatural. A Virgem Maria, Os Reis Magos, os Anjos “são despidos
de suas auras místicas, trazidos para um outro contexto cultural: o
nordeste brasileiro, telúrico e mítico. Assim ocorreu com o teatro
medieval, em cuja fonte Joaquim Cardozo teve o seu aprendizado.
(DANTAS, 1985, p.47). Fato reforçado pelo uso da localidade
pernambucana de Nazaré da Mata, ao invés da cidade árabe de Nazaré,
local onde realmente se deu o nascimento do menino Jesus:
Capitão
Aos senhores apresento
O meu saudar, e previno
Que hoje é o maior dos dias.
– Dia feliz e divino.
Dia em que na Palestina,
Numa simples manjedoura,
Nasceu nosso redentor. [...] (CARDOZO, 2001, p.29)
Esta viagem feita pelos personagens pode ser relacionada com
os movimentos de romaria, atividade religiosa muito comum nas
práticas religiosas do interior do Nordeste. Ainda nesta cena da romaria,
entram no texto os Mamulengos, com a suas peculiares denominações
linguagem de siglas e também linguagem na forma de siglas, são
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figurados de maneira monstruosa e deformada, isto em favor de uma
critica à deformação dos organismos, departamentos e
superintendências, governamentais ou privadas que representam:
DASP
- OEA COCEA, DENOCS, ESSO
IST KAMI NAZARÉ?
DENOCS
- COCEA SUPRA, DASP, KAMI
NAZARÉ KOME COM UNESCO.
IAA IARIRGA CADE. [...] (CARDOZO, 2001, p.33)
Tempo depois, o cenário muda, começando a retratar um
ambiente de presépio num pátio de igreja todo ornamentado para a
missa natalina. “Ao centro o Menino Jesus, deitado sobre a palha do seu
berço humilde, junto à Virgem Maria e São José. Ao lado, no recesso da
manjedoura, o boi e o burro; em torno do menino...” 4Além dos os
pastores e dos três reis magos, estes com suas vestimentas antigas e
históricas despidas, aparecem em trajes civis do século XX,
simbolizando três figuras da alta burguesia, nesse contexto não trazem
ao Deus menino ouro, incenso e mira, mas o ouro, e outros presentes
com valor capital, demonstrando o desejo de poder e conquistas do
homem moderno:
Primeiro Rei Mago
Meu Senhor, menino-rei
Anjo-rei, aqui vos trago
Minha oferta, meu presente:
Que é ouro, o eterno ouro...
[...]
4 De uma noite de festa, Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação
de Cultura da Cidade do Recife, 2001.
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Segundo Rei Mago
Não é Mirra o presente
Que aqui venho oferecer
[...]
Em seu nome é que ofereço
Não petróleo realmente,
[...]
Terceiro Rei Mago
Não foi possível mais, vós
Trazer incenso, Eminência
Como há séculos vos trouxe
Meu colega Baltazar
[...]
Meu presente, Eminência
É a Anti-matéria! [...] (CARDOZO, 2001, p. 44-49)
Além dos personagens dos Três Reis Magos e também da
Virgem Maria... Cardozo traz para sua peça o Rei de Baralho, o Cavalo
de Carrossel, o que faz com que De uma noite de festa tenha
determinada aproximação em aspectos de forma e função de enredo às
personagens de Lewis Carroll5, em seus livros sobre Alice, pois assim
como Joaquim, Carroll era matemático, e em vista disso, empregava em
seus escritos conhecimentos matemáticos, como o da lógica simbólica...
Após esse momento alegórico, o foco é voltado para o drama do boi,
este que desta vez desaparece, nisso Catirina, Bastião e Mateus vão à
sua procura em pleno sábado de aleluia, o que mais uma vez possibilita
relacionar esse enredo teatral à historia de Jesus Cristo. Um tempo
depois o encontram e iniciam um cortejo (um coro), em que lamentam-
se pois este está ferido:
5 Lewis Carroll (1832-1898) escritor e matemático inglês. É o autor do livro Alice no
País das Maravilhas. Foi um dos precursores da poesia de vanguarda.
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Coro geral Meu boi, meu boi, meu boi
Morreu,
Meu bem
Não sei, não sei, o que
Será
De mim também! [...] (CARDOZO, 2001, p. 123)
Quando o coro acaba o boi reanima-se, e em favor disso as
personagens se animam iniciando mais um canto, em que dizem que ele
vai ser levado para a manjedoura celeste em Belém, o que reconecta
novamente esse rito do bumba ao festejo de Natal, por meio de onde
entendemos a afirmação de Dantas (1985) de tratasse de fato de um
auto de Natal, que ganha destaque por atingir “ um alto grau de
poeticidade, fundindo as crenças, as superstições populares em um
clima de magia e realismo[...]DANTAS. 1985, p. 47). Mas com grande
teor crítico para as instituições sociais: o desvelamento social trazido no
bumba.
3. Marechal, boi de carro: O Último Bumba E A Intensificação Do
Desvelamento Sociocultural
Nesta obra vê-se a imagem do bumba mais melancólico e
urbano da dramaturgia cardoziana, em que numa alegoria à situação do
brasil naquela época que se encontrava em subjeição militar, onde logo
no inicio da peça, no qual três figuras, que segundo Leite(2001) são
formas de comentaristas históricos, pois fazem a narração dos últimos e
violentos fatos ocorridos na região:
Primeiro homem
O poder não está nas armas
Não está na força a coragem
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[...]
Segundo homem
Bem armados é que estavam,
De punhal e mosquetão
[...]
Terceiro homem
Logo quando
Na cidade se instalaram,
Depois de tantas pessoas
Terem ferido ou matado
À nossa matriz rumaram
À nossa grande matriz [...] (CARDOZO, 2001, p.15)
No apelido ao boi que intitula o livro é notável um teor critico e
ambíguo que rompe a objetividade aludida, de modo que marechal é o
termo utilizado para o individuo que cuida de cavalos, palavra assim
relacionada à condição de servo, nessa concepção. Contudo, conhecesse
frequentemente por marechal o de posto mais alto no exercito,
significado que traz consigo um sentido negativo em relação à historia
brasileira, associando com isso com sua organização sintática:
Marechal, boi de carro as ideias de grande/ pequeno, forte / sem
forças. Titulo muito bem observado outra vez por Leite (2001): “Numa
possível interpretação, é como se o autor ou o povo, no plano ficcional,
que tanto respeita e admira esse boi, quisesse nos dizer: este é o
marechal que legitimamos como servo e superior.” (LEITE, 2001, p.2).
Mas o destaque deste bumba, está no estranhamento com a
sociedade que Joaquim Cardozo cria ainda no seu primeiro quadro,
estranhamento distinto daqueles vistos nas duas peças anteriores.
Remete a isso no tom de deboche que emprega no uso da personagem
de personagem de maneira estereotipada, em que traz, inclusive, a
transcrição fônica da forma peculiar de falar do Matuto. Personagem
que se lamenta criticamente, muitas vezes, mesmo que Capitão o
considere um cretino, vem com tais críticas de forma mais explicita do
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que o que em De uma noite de festa ainda ficava subtendido com o
Retirante:
Capitão
Você também vai voltando?
Matuto Inhor não, tou é chegando,
Tou vindo de serra em seca
Do véio sertão sou fio
Vim das serras sobre as serras
Pra que lugá sei não.
Catirina
Mas por que deixou sua terra?
Matuto
A terra é que me deixou. [...] (CARDOZO, 2001, p.
38-39)
Desse modo, Cardozo vem com uma narração pretérita no
intuito de por o leitor ou o público mais criticamente dentro do
desenvolvimento do enredo. “Constrói também um dos mais elaborados
quadros da sua dramaturgia, na perspectiva da narrativa épica
brechtiana.6”(LEITE, 2001, p.4). Assim, no segundo quadro eis que se
dá o único momento em que Marechal, boi de carro é dramatizado
somente através de uma narração, quando Mateus começa a contar
sobre seu encontro com Macunaíma, em uma roda de conversa, após de
6 Relativa à técnica teatral desenvolvida por Bertolt Brecht dramaturgo e poeta
alemão que, entre outras coisas, faz uso de uma exposição dialética, clara e inteligível
e que procura obter da plateia uma atitude crítica em relação aos fatos encenados, um
distanciamento emocional: teatro épico brechtiano.
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um dia cansativo à procura do boi que tinha sido levado para leilão.
Pratica típica das tradições orais nordestinas:
Mateus
[...]
Pela estrada de Goiânia
[...]
Ia assim a caminhar
Quando vi que certo vulto estava se aproximando...
[...]
Pensei que fosse lobisomem
Até que de perto chegando vi que era o preto safado
Sem vergonha, sem caráter,
Macunaíma chamado; [...] (CARDOZO, 2001, p. 49-
51)
Trecho em que se pode notar uma reconstrução calcada numa
superposição e aglutinação nas formas de contar fazendo a partir disso a
construção de uma delicada intertextualidade com o romance de Mario
de Andrade. Na qual “Macunaíma” figurasse na imagem de uma
imagem sonhada (um personagem morte, assim como o Capitão de
Coronel de Macambira). Representação, explicada por meio do
conceito de dupla denegação, termo da psicanalise que implica em
trazer à consciência elementos reprimidos que são por ela negados,
assim: “Na evocação do sonho e da lembrança, o autor apresenta um
poderoso recurso para discutir este embate ideológico construindo
personagens dotados de uma dupla função: interagem ao mesmo tempo
dentro do enredo e da própria sociedade. ” (PAIVA, 2009, p.87)
No final do drama conseguem resgatar do boi do leilão, porém
este é encontrado ferido, logo veem com um curandeiro para cura-lo, o
que remete também às práticas do povo do interior do nordeste: ir em
busca de conhecimentos populares para curar doenças, ao invés de ir ao
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médico, estás pessoas proveriam e proverem rezas que são passadas de
geração a geração de maneira oral, vejamos o um pouco desta do
Bumba: “ Contra o cão faminto e guenzo/ Contra o pé de um bode coxo
...[...] Eu te benzo, benzo, benzo / Por três vezes neste arrocho...
[...](CARDOZO, 2001. p.95).
Porém a tentativa de cura é em vão o boi morre e em oposição
aos dois primeiros bumbas cardozianos que sempre terminam em festa e
alegria, este é finalizado com uma despedida cheia de dor: uma
cerimônia fúnebre que se alarga no rito do Bumba-meu-boi, em forma
de um aboio feito por Mateus: “ Adeus, Brejal! Adeus Brejal! [...]
minhas terras/ seus cercados/ nunca mais[...]” (CARDOZO, 2001,
p.105). Bem peculiar à cultura do sertão nordestino: onde boiadeiros
fazem cantos como esse para levarem seu gado pelas estradas. E com
um olhar mais atento conseguimos ver nessa despedida um
desvelamento de uma ânsia pela liberdade do território e daquele que
nele vive.
4- Os anjos e os demônios de Deus: O Jogo de Oposições do Pastoril
Num Patenteamento da Sociedade
Texto teatral que integra os bumbas cardozianos, Os anjos e os
demônios de Deus vêm na forma de pastoril finalizando o conjunto de
peças do autor que tem como base um matiz popular. Através de uma
dilatação da cultura folclórica dentro do conteúdo dramatúrgico. A peça
é estruturada em doze jornadas, cada uma com um título. Onde as
pastoras anunciam a vinda do Messias, além de louvarem as belezas do
planeta Terra por intermédio de cantigas, enquanto os anjos e os
demônios discutem os desígnios de Deus para salvar a humanidade.
Leite (2001) defende ser esta ser a obra para o teatro mais rara de
Cardozo, não se restringindo à sua quantidade, em favor dos vários
exemplares impressos, e sim graças a qualidade estética de sua
conjuntura dramatúrgica de alto grau de estilização poética com
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linguagem visual, gráfica que tem filtro por meio da poética
serigráfica7.
Embora, até mesmo que com a oposição de sentidos que o título
nos traz, não existe, aqui, a luta entre o bem e o mal, entre anjos e
demônios. São personagens que, mesmo ocupando a cena
simultaneamente, não chegam a dialogar verdadeiramente. Dialogam
entre si por intermédio de um terceiro elemento: o leitor-espectador.
Sua fala é sempre voltada para o público, todavia, não se trata de uma
narrativa em terceira pessoa como se estivessem a contar uma história.
As falas no indicam que eles estivessem sempre a esperar pela interação
do leitor-espectador, em que vemos uma insistência verbal, na
exposição de seus pontos de vista:
Demônio Azael:
As Pastoras acabaram de cantar, há alegria em tudo
A terra é realmente muito bela, com suas estações:
Inverno, verão, outono, primavera;
Há muito, porém, se sabe disso, não compreendo
O entusiasmo dessas Pastoras,
A não ser que... bem...
Parece que alguma coisa de novo vai acontecer...
Toda essa alegria é prenúncio de coisas graves
Anjo Anael:
O Padre Eterno para aqui me enviou
E me deu conselhos, conselhos muito
Necessários e especiais,
Sobretudo me aconselhou a ter precaução
7 Vem de Serigrafia, também conhecido como silk-screen ou impressão a tela, é um
processo de impressão à base de estêncil na qual a tinta é forçada através de um crivo
fino para o substrato abaixo dela.
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Com o meu modo de falar, com o que devo dizer:
Vim ver de perto a situação
Estamos de fato, diante de um caso muito difícil. [...]
(CARDOZO, 2001, p.25)
Cabe destacar que para fazer essa transfiguração do popular para
o meio das letras, Joaquim Cardozo vai buscar inspiração na obra
renascentista de Matteo Palmieri8 - Città di vita, que foi uma espécie
de tratado “místico-utopista, que concebe uma cidade ideal e perfeita
que os homens permanecem neutros na luta entre o Criador e
Lúcifer.”(LEITE, 2001, p.12). Nesse jogo opositivo entre bem e mal,
claro e escuro, os anjos e os demônios, trazem representação da divisão
das massas, em classes, ricos e pobres, fortes e fracos, na simbologia do
cordão azul e o cordão vermelho rito popular do pastoril, denunciando
as divergências sociais em um desnudamento social típico das obras do
Recifense.
Fora desse jogo de antíteses surgem as figurações das Pastoras
estão fora deste jogo com o público. Elemento mais característico da
religiosidade do a partir das narrações de passagens da bíblia, pondo em
evidencia as belezas do mundo e fazendo lamentações das misérias
humanas. Numa representação da esperança dentre os homens, que
podem segundo Paiva (2009)podem ser classificadas como atemporais
as quais carregam consigo as reminiscências de antigas tradições, em
especial das musas gregas continua a tradição das musas gregas, que
transmitiam a verdade histórica encoberta pela tradição assimilada pelo
pensamento dominante e oficial, característica que permanece em
essência no espetáculo do Pastoril:
Nesse planeta de beleza tanta
Se ergue, porém, um surto de agonia;
8 Foi um florentino humanista e historiador. Defendia humanismo cívico, e sua
influência no aperfeiçoamento do vernáculo Tuscan à mesmo nível que o latim. Mais
reconhecido pela sua obra Città di vita.
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nos homens há uma força que os suplanta;
E de tudo, por tudo se irradia.
Há na paisagem rastro de uma dor
Do qual nunca se sabe onde se encanta,
E nas asas do vento voador
Há um vento maior que se levanta [...] (CARDOZO,
2001, p.31)
Desta forma, dentro deste pastoril as Pastoras servem para narrar
a história de modos diferentes, bem como as filhas de Mnemósine9 e
Zeus, que previam o futuro por meio de suas belas vozes em coro. Em
Os anjos e os demônios de Deus a narrativa das Pastoras sobre a
história mais conhecida de todos os tempos, a história bíblica do
nascimento de Jesus Cristo, é “invadida” pelos anjos e pelos demônios,
personagens que dominam a ação verbal. (PAIVA, 2009, p.67). Os
quais tem como intenção nortear ao público que aquilo contado na
bíblia não é propriamente o ocorrido e que há muito a ser descoberto
ainda.
5. O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro: Realidade Social No
Jogo de Antíteses de Cardozo e Na Sua Intertextualidade Dialética
No último volume teatral de Joaquim Cardozo encontramos duas
peças: O capataz de Salema e Antônio Conselheiro, obras
complementares do absoluto teatro sem medidas do pernambucano,
duas sementes antagônicas, defende Leite (2001), que se abrem em
estalidos, dizendo em sua germinação, acerca de reflexões sempre
opostas entre si: privado e público, mito e história, submisso e
9 Deusa grega da memória, filha de Urano e Gaia, concebida pelos gregos como forma
personificada da memória. “É a mãe das nove musas que ela procriou no decurso de
nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e dos seu
altos feitos, preside a poesia lírica.” (LE GOLFF,1990,p.378)
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dominador... Volume trazido ao leitor em 1975, embora, apareça na
forma de fragmentos, em Signo Estrelado (1960) e Poesias Completas
(1971).
Dramas que se afastam dos espetáculos vindos da cultura
popular em que elabora seus Bumbas, O Coronel de Macambira, De
uma noite de festa, Marechal, boi de carro e também seus pastoril, Os
anjos e os demônios de Deus, mas mantendo a luta incessante daqueles
postos à margem da sociedade, que buscam uma atitude em que
prevaleça um ideal de libertação, à medida que põe essas figuras
descriminadas como personagens centrais de suas obras, o Capataz, a
filha de pescadores...
Em o capataz de Salema, Cardozo traz entre um homem que
manda e vigia os pescadores (O Capataz) e uma filha de pescadores
(Luzia) um conflito amoroso que não se resolve. E mais duas
personagens apenas para compor o enredo: Sinhá Ricarda (avó de
Luzia) e o Mar, personagem que aparece apenas em som, semelhante a
um concerto de orquestra o qual acompanha todo o desenvolver do
drama. Personagens sempre marcadas pelas diferenças da sociedade:
masculino -feminino, comandante-comandado e a pobreza diversa.
Luzia
Por que tão tarde chegaste?
É tarde... tarde demais.
Por quanto tempo ficaste
Ausente.
Capataz
Bem desiguais
Têm sido os nossos destinos
Há muitas horas navego,
Pois vim de mares distantes
Por isso a minha demora
Em bater à tua porta
- Escuro bater de cego. (CARDOZO, 2001, p.20)
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Na conjectura dramática do autor esta peça acaba se destacando
como a de menor extensão, com poucos personagens, e apenas um
espaço: o casebre de Sinhá Ricarda, isto dentro de um ato único
também. Mas chama atenção o jogo de antíteses sociais que são
empregadas nas representações dos personagens, Luzia, por exemplo,
não aceita fugir com o Capataz, para não viver em condições precárias,
hostis. De retirante, o que diante da sociedade seria pior que sua
condição de filha de pescadores:
Na peça O capataz de Salema, que Cardozo subintitula:
uma conjectura dramática, a protagonista Luzia encontra-
se no limiar entre aceitar sua condição de miserável, sem
qualquer perspectiva de mudança dentro de uma realidade
social desequilibrante, que explora a pobreza, e
permanecer no seu local, preservando suas tradições e
suas referências culturais, ou partir com o Capataz e ver-
se num local hostil como o outro, o imigrante, o
subdesenvolvido. (PAIVA, 2009, p.41)
Ao que segue o volume encontra-se Antônio Conselheiro, uma
recriação de Os Sertões de Euclides da Cunha, onde “Cardozo amplia e
aprofunda a problemática, histórica, política, social e religiosa de
Canudos, criando uma territorialidade dramática de reverbações
universais poucas vezes alcançadas no texto teatral brasileiro.” (LEITE,
2001, p.2). Peça na qual usa recursos técnicos e de arte peculiares ao
teatro contemporâneo, fazendo um misto de passado, presente e futuro
numa comunicação dialógica dentro de cena, afirma o crítico. No
seguinte trecho este recurso, muito bem explicado acima, é criado num
embate entre passado no início do texto: “vivi - revivi” e futuro no final
do texto: “haverão de ver e rever”.
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Conselheiro
Vivi e revivi muitas vezes...
E por que para aqui me trouxeram?
O destino há de se cumprir;
Hei de nascer, hei de voltar para mais de uma vez
Aos lugares onde, estão os que me esperam.
E esta volta é revolta contra os demônios;
Todos haverão de ver e saber. [...] (CARDOZO, 2001,
p. 59)
A partir disso, vemos a relevância que Joaquim Cardozo
concebe às palavras, dando a elas forças para afastar o individuo em
cena de sua situação banal, aquela presa ao tempo dramático, pois em
favor deste atributo de expressão consegue revelar as ações em um
tempo diferenciado do tempo dramático, visto que ocorrem
impulsionamentos nas variáveis de tempo e espaço da peça, e que
fazem também de Antônio Conselheiro o épico do engenheiro literário,
defende Paiva (2009; 131).
Deste modo, ao comparar os dois escritos é notável que O
capataz de Salema a focalização se dá mais dentro de um cenário único,
com diálogos de personagens também restrito, sem muito movimento
em cena. Ao passo, que em Antônio Conselheiro é construído no jogo
múltiplo na disposição dos quadros, vindos lado a lado numa singular
movimentação dialética de tempo e espaço.
Considerações finais
No percurso aqui realizado na obra dramatúrgica de Joaquim
Cardozo foi possibilitada a verificação do resgate da cultura popular do
povo da região nordestina, ao construir o primeiro de seus dramas
Coronel de Macambira, que tem construção baseada no rito do bumba-
meu-boi, trazendo consigo também o início das críticas sociais as quais
serão intensificadas a cada peça. Na segunda dramatização Cardozo
vem com um auto de natal configurado em Bumba (De uma noite de
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festa), mas um bumba que traz à tona questões sociais não tão
discutidas, em uma mesclagem de magia, realidade e sonho, além de
propriedades técnicas de escrita perspicazes, estas até semelhantes às de
Carroll.
Nesse âmbito, em sua última composição teatral que retoma o
rito popular do boi: Marechal, boi de carro, o engenheiro propõe-nos
um desvelamento social bem mais intenso e amadurecido que nas duas
obras anteriores, em consequência do teor não mais implícito, e sim
explicito e objetivo através do qual traz as críticas, sem esquecer de
correspondências aos escritos de Brecht. Ainda no matiz de cultura do
povo o pernambucano cria Os anjos e os demônios de Deus vinda ao
receptor na forma de pastoril usufruindo do jogo de oposições deste
espetáculo para expor as diferenças sociais. Para por fim em Capataz de
Salema e Antônio Conselheiro, engenhar respectivamente um embate
cênico monótono de antíteses da sociedade e uma recriação ampliada
de Os Sertões que teve por base um jogo dialético-temporal peculiar à
escrita do autorB.
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Recife, Secretaria de Cultura, Fundação de Cultura da Cidade do
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Recife, Secretaria de Cultura, Fundação de Cultura da Cidade do
Recife, 2001.
__________________. Os anjos e os demônios de Deus. Recife:
Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação de Cultura da
Cidade do Recife, 2001
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A Cultura Popular Nordestina no Engenho Teatral... – Silva & Luna
Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.º 20 462
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Pastoril do planeta e formosura da vida. Prefácio. In: CARDOZO.
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Recife, Secretaria de Cultura, Fundação de Cultura da Cidade do
Recife, 2001.
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fogo dos homens. Prefácio. In: CARDOZO, Joaquim. Capataz de
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PAIVA, Ana Carolina do Rêgo Barros. A dinâmica da Palavra na
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escrita e o espaço da cena. Tese (Doutorado em Teatro) -Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.