a cultura popular nordestina no engenho teatral …€¦ · primeira peça de teatro do autor,...

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A Cultura Popular Nordestina no Engenho Teatral... Silva & Luna Revista Diálogos set. / out. 2018 N.º 20 438 A CULTURA POPULAR NORDESTINA NO ENGENHO TEATRAL MODERNO DE JOAQUIM CARDOZO Nadja Maira Baltazar da Silva 1 Jairo Nogueira Luna 2 d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p438 Resumo: A produção teatral do engenheiro-poeta-dramaturgo se inicia na década de 1960 com a publicação de O Coronel de Macambira, primeira peça de teatro do autor, drama desenvolvido como a encenação de um bumba meu boi, parte do universo folclórico pernambucano, indo até os anos 70, quando foi publicado seu último drama: Antônio Conselheiro. Nesse sentido, este trabalho se propõe a estudar e analisar esse construto dramatúrgico, com base na Teoria da Literatura e na Crítica Teatral dentro da concepção de teatro moderno, na intenção de demonstrar a relevância da construção dramatúrgica de Joaquim Cardozo para a literatura e dramaturgia brasileira pernambucana. A fim de demonstrar os aspectos culturais nordestinos presentes nestas peças, verificar nelas as características do teatro medieval e grego, analisar seu caráter critico-social e evidenciar as dimensões líricas presentes nesta dramaturgia. Por meio pesquisas bibliográficas, na obra teatral do autor: O Coronel de Macambira (1963), De uma Noite de Festa (1971), Marechal, Boi de Carro (1975), Os Anjos e os Demônios de Deus (1897), O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro, ambas de 1978. Sem deixar para trás, a breve visita que houve ao Teatro Joaquim Cardozo, localizado em nossa capital Recife , no intuito de investigar que fato seu nome nomeasse o teatro e conhecer a sua bela 1 Graduanda em Letras-Português, UPE-Campus Garanhuns e Bolsista de Iniciação Cientifica, CNPq. 2 Pós doutor em Literatura, USP e professor adjunto do colegiado de Letras, UPE- Campus Garanhuns.

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A Cultura Popular Nordestina no Engenho Teatral... – Silva & Luna

Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.º 20 438

A CULTURA POPULAR NORDESTINA NO

ENGENHO TEATRAL MODERNO DE JOAQUIM

CARDOZO

Nadja Maira Baltazar da Silva1

Jairo Nogueira Luna2

d.o.i. 10.13115/2236-1499v2n20p438

Resumo: A produção teatral do engenheiro-poeta-dramaturgo se inicia

na década de 1960 com a publicação de O Coronel de Macambira,

primeira peça de teatro do autor, drama desenvolvido como a encenação

de um bumba meu boi, parte do universo folclórico pernambucano, indo

até os anos 70, quando foi publicado seu último drama: Antônio

Conselheiro. Nesse sentido, este trabalho se propõe a estudar e analisar

esse construto dramatúrgico, com base na Teoria da Literatura e na

Crítica Teatral dentro da concepção de teatro moderno, na intenção de

demonstrar a relevância da construção dramatúrgica de Joaquim

Cardozo para a literatura e dramaturgia brasileira pernambucana. A fim

de demonstrar os aspectos culturais nordestinos presentes nestas peças,

verificar nelas as características do teatro medieval e grego, analisar seu

caráter critico-social e evidenciar as dimensões líricas presentes nesta

dramaturgia. Por meio pesquisas bibliográficas, na obra teatral do autor:

O Coronel de Macambira (1963), De uma Noite de Festa

(1971), Marechal, Boi de Carro (1975), Os Anjos e os Demônios de

Deus (1897), O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro, ambas de

1978. Sem deixar para trás, a breve visita que houve ao Teatro

Joaquim Cardozo, localizado em nossa capital Recife , no intuito de

investigar que fato seu nome nomeasse o teatro e conhecer a sua bela

1Graduanda em Letras-Português, UPE-Campus Garanhuns e Bolsista de Iniciação

Cientifica, CNPq. 2 Pós doutor em Literatura, USP e professor adjunto do colegiado de Letras, UPE-

Campus Garanhuns.

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arquitetura colonial. Onde, Joaquim Cardozo vem com um tímido

resgate popular iniciando e apurando suas críticas socais nas duas

primeiras obras, para por fim verificar-se no seu último bumba, um

engajamento maduro expressado de forma explicita, mas que não

despreza o rito popular do bumba-meu-boi no seu desenvolvimento.

Tendo como guia as contribuições teóricas de Luna (2015), Pallotini

(1988), Dantas (1985) e Leite (2001), além de Paiva (2009) e De Pádua

(2009).

PALAVRAS-CHAVE: Joaquim Cardozo. Cultura Popular Nordestina.

Teatro. Semiótica do teatro. Análise literária.

Abstract: Theatrical production of the engineer-poet-playwright began

in the 1960s with the publication of The Colonel of Macambira, the

first play by the author, drama developed as the staging of a bumba my

ox, part of the folkloric universe of Pernambuco , going until the 70's,

when his last drama was published: Antônio Conselheiro. In this sense,

this work intends to study and analyze this dramaturgical construct,

based on Theory of Literature and Theater Criticism within the

conception of modern theater, with the intention of demonstrating the

relevance of the dramaturgical construction of Joaquim Cardozo for

Brazilian literature and dramaturgy Pernambuco. In order to

demonstrate the Northeastern cultural aspects present in these plays,

check in them the characteristics of medieval and Greek theater, analyze

their critico-social character and highlight the lyrical dimensions

present in this dramaturgy. By means of bibliographical researches, in

the author's theatrical work, not forgetting that the study is still in

progress, so we analyze for hours: The Colonel of Macambira (1963),

From a Night of Feast (1971), Marshal, steer by car (1975), The Angels

and the Demons of God (1897), The Foreman of Salema and Antônio

Conselheiro, both of 1978. Without leaving behind, the brief visit to the

Joaquim Cardozo Theater, located in our capital Recife, in order to

investigate the fact that his name named the theater and know its

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beautiful colonial architecture. Where, Joaquim Cardozo comes with a

timid popular rescue starting and clearing his social criticisms in the

first two works, to finally verify in his last bumba, a mature engagement

expressed explicitly, but does not despise the popular rite of bumba-

my-ox in its development. Having as a guide the theoretical

contributions of Luna (2015), Pallottini (1988), Dantas (1985) and Leite

(2001), and Paiva (2009) and De Pádua (2009).

KEY WORDS: Joaquim Cardozo. Popular Northeastern Culture.

Theater. Semiotics of the theater. Literary analysis

Introdução

A produção teatral de Joaquim Cardozo se inicia na década de

1960, com a publicação de O Coronel de Macambira (1963), drama

desenvolvido como a encenação de um bumba meu boi, parte do

universo folclórico pernambucano, indo até os anos 70, com Antônio

Conselheiro (1975), que busca em seu enredo recriar a saga de

Canudos, com base em Os Sertões de Euclides da Cunha. Dentro de

escolhas de temas como estes sempre ligados ao nordeste. “Pode-se

imaginar que, já há muito tempo fora do Recife, talvez Cardozo

observasse o folclore de sua terra com os olhos de alguém de fora, com

o olhar de quem vê de longe”. (NASCIMENTO, 2007. p. 169), onde

mostra - se, por conseguinte, muito envolvido com as questões do

folclóricas pernambucanas e movimentos sócio-culturais típicos do

nordeste. Mas o que mais destaca- se nesta produção de Cardozo, o

que a faz ser irreverente “é a dimensão crítica e social que ele confere a

seus textos”. (LEITE, 2001, p. 3).

Nesse sentido, esta engenhosa obra teatral foi uma espécie de

ampliação da expressão poética, bem esclarecido por Dantas (1985):

“Para Cardozo, o teatro representou, por assim dizer, para dar expressão

à sua vocação para uma poesia, viva, permeada de ação e movimento.”

(DANTAS, 1985, p. 45). As quais em nesse âmbito de execução se

assemelham às da época medieval e da antiguidade grega, através de

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seu alto teor oral, nas quais o espaço cênico relaciona-se de modo claro

com o espaço circular de praça, lugar, onde na Roma Antiga, por

exemplo, aconteciam as apresentações dramatúrgicas de autores como

Sêneca, Terêncio e Plauto.

Obras aqui destacadas por serem aquelas sempre calcadas no

apego e na relevância que o engenheiro-poeta- dramaturgo tinha à sua

região, porém não mais como nas poesias do livro Poemas (1947),

presas a um universo circundante, como a flora nordestina e com ruas

do Recife, e sim às imagens ligadas ao Sertão, as suas manifestações

folclóricas, tradições e principalmente às realidades desse povo.

1.O Coronel de Macambira (1963): Do Regaste Popular Ao Início

Das Criticas Sociais

Livro que ocupa lugar de realce na dramaturgia de Joaquim

Cardozo, em favor de ser seu primeiro Bumba, sendo quase o único

texto de teatro conhecido por um público mais numeroso e com

superior quantidade de montagens. De acordo com (LEITE, 2001, p. 3),

a transfiguração poética que Cardozo faz realização ao compor O

Coronel de Macambira é tomada a partir de um paradigma traçado

entre este e o Bumba- meu- boi do Capitão Antônio Pereira, coligido

por Ascenso Ferreira. “Nesse texto, se por um lado se apropria da

cultura popular para construir sua obra, como ele mesmo diz no

posfácio do livro3, por outro, contribui com a cultura erudita e impõe

dignidade à popular, sempre olhada como arte menor.” (DE PADUA,

2009, p.2).

Retomando, assim o aspecto perdido no Bumba do folclore, ao

repor o boi no centro do enredo. O compõe por fragmentos, inserindo

3 A composição deste Bumba-meu-boi representa a realização de um projeto que há

muito tempo me prometi, pois, sempre considerei vivo e atuante este gênero de teatro

popular brasileiro; a sua decadência, o seu deperecimento correspondem,apenas, a

estes mesmos sintomas de declínio na vitalidade, e nas condições econômicas do

próprio povo deste país, cuja miséria vem sempre crescendo, como pude constatar

pela observação direta, em mais de cinqüenta, dos sessenta e muitos anos que já vivi.

[...] (CARDOZO, 2001, p. 95)

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diversas figuras denominadas, de acordo com (LEITE; 2001; 4)

“personagens morte”: a Aeromoça e o Soldado da Coluna, os quais

passam a formar uma tríade com o boi, que trazem consigo a crítica a

um Brasil melhor. As demais personagens são formadas por

personalidades de estereótipos típicos da região nordestina: o Capitão, o

Coronel, o Valentão...Uma e outra, apresentam falas com notável

musicalidade, em favor das rimas presentes nos finais de cada fala, o

que a aproxima textualmente e liricamente à uma narrativa de cordel:

Capitão:

[...]

Sou conde condecorado

Senhor de grande solar

Comigo trago mandato

De tudo remediar

Sou conde condecorado

Com a cruz do Tempo e do Ar

Sou comandantes das nuvens

Errante no pelejar. [...] (CARDOZO,

2001, p.16)

Tais características aproximam o teatro de Cardozo, das

manifestações orais, tanto pela simplicidade da estética, pelo lirismo,

ou, pela discutida linguagem, e também, em consequência do aspecto da

coralidade presente em seus textos na qual é perceptível a partir de uma

classificação personagens alegóricos que se deslocam por espaços

marcados por uma atmosfera realista. Mesmo com esta transmutação,

que o engenheiro-poeta-dramaturgo instaura, não deixa de haver nessa

obra teatral, momentos de singela observação e valorização à fauna

típica do sertão nordestino, por exemplo, no canto das Cantadeiras

presente final do primeiro quadro. Em que evoca os cantos de pássaros

habitantes da região sertaneja do nordeste, o Guriatã, o curió, o papa-

capim... entre outros. E o “meu” galo de campina como o eu lírico

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refere- se, uso pronominal o qual reforça essa ideia de exclusividade

dessas aves ao sertão:

Cantadeiras

Guiratá, curió

Oh! Patativa galada

Oh! Meu galo de campina

Cantando desde a alvorada

Sabia da mata, sabiá

Sabiá gongá

[...]

Cantando vamos ao longe

Pela estrada do sertão

Cantando, vamos cantando

Salvar o boi e a nação.

[...] (CARDOZO, 2001, p.50)

Onde vê-se um tom saudosista, remetente ao assumido no

Romantismo, dentre outros por José de Alencar e por Gonlçalves Dias,

autor de “Canção do Exilio”, poema com o qual, esse recorte de cena de

O Coronel de Macambira faz dialogo, em favor do também canto à sua

terra, como no texto de Dias, onde de maneira semelhante, mensura um

sabiá, assim como no texto romântico: “Minha terra tem palmeiras,

/Onde canta o Sabiá...” (DIAS, 1959,p.2), mas de sabiá particularizado

à região nordestina: o sabia- gongá, diferenciação vista através da

inserção do adjetivo “gongá” ao substantivo sabiá, criando,

consequentemente, esse o novo significante. Em outro momento o

autor volta a trazer os valores culturais do povo do nordeste: na figura

do Retirante, o qual faz lamentações sobre o sofrimento que passou, na

busca de uma vida melhor na capital, que na maioria das vezes era falha

para estas pessoas, pois sem grau de instrução e falta de experiência

dificilmente encontravam trabalho, vivendo, assim, em condições

lastimáveis:

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Retirante

Volvi com o rosto marcado

De duas marcas de chama:

- Duas vivas queimaduras....

[...]

Da primeira foi a sede

A chama em que me queimei;

[...]

Mas, encontrei no caminho

Alguns amigos leais

Meu padrinho Padre Cicero

No Crato e no Juazeiro [...] (CARDOZO, 2001, p. 73)

Em pleno sofrimento, de volta a uma terra seca e quente, o eu

lírico vê-se numa situação, onde a única solução encontrada, após

tempos e tempos longe, é pedir ajuda divina ao Padre Cícero, tom

esperançoso inferido a partir da adjetivação que o retirante dá ao santo:

“amigo leal”, mesmo diante de tantas atitudes sem sucesso, o que

permite notar, portanto, nessa cena, uma devoção característica dos

nordestinos. Desta forma, é conseguida uma aproximação entre o leitor-

espectador de um universo espetacular bem próximo da realidade vivida

pelo público que participa das representações populares. Em vista da

riqueza discutida empregada por Cardozo para construir essa obra,

pela e simplicidade vocabular da qual faz uso, uma vez que temos uma

linguagem sem rebuscamentos, e com expressões, como a princípio

desta analise discutas: particulares do interior da região do nordeste,

sem esquecer-se particular resgate da cultura desse povo tão castigado

pela seca e pela sociedade.

2.De Uma noite de festa (1971): O Retrato da Noite de Natal e O

Desvelamento Social Nesta peça o dramaturgo poeta consegue a maneira mais bem

arquitetada, calculada e construída de seus bumbas, em três quadros,

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constituídos de fragmentações sem dependência entre si, nesses

fragmentos são aprofundados assuntos, e criadas personagens. Nisso

seus quadros servem de espaço de um microscomo de ações, imagens,

temas, palavras versos ... assim, esses quadros são configurados como

pequenas peças dentro do todo da obra. Ocorre a respeito dos animais,

uma diferenciação entre esta e O Coronel de Macambira: Em De uma noite de festa já não existem nem animais

nem fantásticos construídos à semelhança daqueles da

matriz folclórica utilizada por Cardozo para compor seu

primeiro Bumba-meu-Boi. Os animais neste Boi têm fala,

o que não ocorre no Bumba popular, e estão todos

inseridos num plano onírico, a saber, no segundo quadro o

sonho de bastião. (LEITE, 2001, p.2)

Nesse âmbito, esse drama é espaço imaginário composto por

fronteiras carregadas de arbritariedade, nas quais o autor determina o

solo da cultura e da topografia das possibilidades da ação dramática

retalhada. O mais peculiar é a relação que essa retaliação assume:

primeiro quadro, predomina a perspectiva da realidade; no segundo,

uma perspectiva onírica e, no terceiro, uma síntese entre o mágico, o

real e o onírico. No quadro inicial, vemos no seu o anúncio

introdutório, que é trazido pelas Cantadeiras, citações de nomes das

mais variadas localidades pernambucanas, entre praias, cidades... No

canto em questão há por conseguinte uma forte valorização da terra

natal do autor, através desse canto aos nomes das terras pernambucanas.

Onde chama atenção o mencionar da nossa Garanhuns, localizada no

centro do agreste Meridional do estado:

Cantadeiras

Manguezal do Mamanguape

Na barra de Coqueirinhos;

Na da Ponta da Pedra;

Cabo de Santo Agostinho.

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É Garanhuns

É Guribem

Tapirahim

Tracunhaém [...] (CARDOZO, 2001,

p.21)

O valor que Cardozo concebe à sua região continua mais nítido

ao seguir-se as observações do primeiro quadro em que os personagens

se dirigem à missa de Natal em Nazaré, fato que faz o leitor perceber

que sua titulação De uma noite de festa não é empregada apenas em

favor do festa do Bumba-meu-boi, mas também por se tratar de um auto

de natal, no qual as personagens geralmente situados em uma esfera

sobrenatural. A Virgem Maria, Os Reis Magos, os Anjos “são despidos

de suas auras místicas, trazidos para um outro contexto cultural: o

nordeste brasileiro, telúrico e mítico. Assim ocorreu com o teatro

medieval, em cuja fonte Joaquim Cardozo teve o seu aprendizado.

(DANTAS, 1985, p.47). Fato reforçado pelo uso da localidade

pernambucana de Nazaré da Mata, ao invés da cidade árabe de Nazaré,

local onde realmente se deu o nascimento do menino Jesus:

Capitão

Aos senhores apresento

O meu saudar, e previno

Que hoje é o maior dos dias.

– Dia feliz e divino.

Dia em que na Palestina,

Numa simples manjedoura,

Nasceu nosso redentor. [...] (CARDOZO, 2001, p.29)

Esta viagem feita pelos personagens pode ser relacionada com

os movimentos de romaria, atividade religiosa muito comum nas

práticas religiosas do interior do Nordeste. Ainda nesta cena da romaria,

entram no texto os Mamulengos, com a suas peculiares denominações

linguagem de siglas e também linguagem na forma de siglas, são

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figurados de maneira monstruosa e deformada, isto em favor de uma

critica à deformação dos organismos, departamentos e

superintendências, governamentais ou privadas que representam:

DASP

- OEA COCEA, DENOCS, ESSO

IST KAMI NAZARÉ?

DENOCS

- COCEA SUPRA, DASP, KAMI

NAZARÉ KOME COM UNESCO.

IAA IARIRGA CADE. [...] (CARDOZO, 2001, p.33)

Tempo depois, o cenário muda, começando a retratar um

ambiente de presépio num pátio de igreja todo ornamentado para a

missa natalina. “Ao centro o Menino Jesus, deitado sobre a palha do seu

berço humilde, junto à Virgem Maria e São José. Ao lado, no recesso da

manjedoura, o boi e o burro; em torno do menino...” 4Além dos os

pastores e dos três reis magos, estes com suas vestimentas antigas e

históricas despidas, aparecem em trajes civis do século XX,

simbolizando três figuras da alta burguesia, nesse contexto não trazem

ao Deus menino ouro, incenso e mira, mas o ouro, e outros presentes

com valor capital, demonstrando o desejo de poder e conquistas do

homem moderno:

Primeiro Rei Mago

Meu Senhor, menino-rei

Anjo-rei, aqui vos trago

Minha oferta, meu presente:

Que é ouro, o eterno ouro...

[...]

4 De uma noite de festa, Recife: Prefeitura do Recife, Secretaria de Cultura, Fundação

de Cultura da Cidade do Recife, 2001.

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Segundo Rei Mago

Não é Mirra o presente

Que aqui venho oferecer

[...]

Em seu nome é que ofereço

Não petróleo realmente,

[...]

Terceiro Rei Mago

Não foi possível mais, vós

Trazer incenso, Eminência

Como há séculos vos trouxe

Meu colega Baltazar

[...]

Meu presente, Eminência

É a Anti-matéria! [...] (CARDOZO, 2001, p. 44-49)

Além dos personagens dos Três Reis Magos e também da

Virgem Maria... Cardozo traz para sua peça o Rei de Baralho, o Cavalo

de Carrossel, o que faz com que De uma noite de festa tenha

determinada aproximação em aspectos de forma e função de enredo às

personagens de Lewis Carroll5, em seus livros sobre Alice, pois assim

como Joaquim, Carroll era matemático, e em vista disso, empregava em

seus escritos conhecimentos matemáticos, como o da lógica simbólica...

Após esse momento alegórico, o foco é voltado para o drama do boi,

este que desta vez desaparece, nisso Catirina, Bastião e Mateus vão à

sua procura em pleno sábado de aleluia, o que mais uma vez possibilita

relacionar esse enredo teatral à historia de Jesus Cristo. Um tempo

depois o encontram e iniciam um cortejo (um coro), em que lamentam-

se pois este está ferido:

5 Lewis Carroll (1832-1898) escritor e matemático inglês. É o autor do livro Alice no

País das Maravilhas. Foi um dos precursores da poesia de vanguarda.

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Coro geral Meu boi, meu boi, meu boi

Morreu,

Meu bem

Não sei, não sei, o que

Será

De mim também! [...] (CARDOZO, 2001, p. 123)

Quando o coro acaba o boi reanima-se, e em favor disso as

personagens se animam iniciando mais um canto, em que dizem que ele

vai ser levado para a manjedoura celeste em Belém, o que reconecta

novamente esse rito do bumba ao festejo de Natal, por meio de onde

entendemos a afirmação de Dantas (1985) de tratasse de fato de um

auto de Natal, que ganha destaque por atingir “ um alto grau de

poeticidade, fundindo as crenças, as superstições populares em um

clima de magia e realismo[...]DANTAS. 1985, p. 47). Mas com grande

teor crítico para as instituições sociais: o desvelamento social trazido no

bumba.

3. Marechal, boi de carro: O Último Bumba E A Intensificação Do

Desvelamento Sociocultural

Nesta obra vê-se a imagem do bumba mais melancólico e

urbano da dramaturgia cardoziana, em que numa alegoria à situação do

brasil naquela época que se encontrava em subjeição militar, onde logo

no inicio da peça, no qual três figuras, que segundo Leite(2001) são

formas de comentaristas históricos, pois fazem a narração dos últimos e

violentos fatos ocorridos na região:

Primeiro homem

O poder não está nas armas

Não está na força a coragem

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Revista Diálogos – set. / out. – 2018 – N.º 20 450

[...]

Segundo homem

Bem armados é que estavam,

De punhal e mosquetão

[...]

Terceiro homem

Logo quando

Na cidade se instalaram,

Depois de tantas pessoas

Terem ferido ou matado

À nossa matriz rumaram

À nossa grande matriz [...] (CARDOZO, 2001, p.15)

No apelido ao boi que intitula o livro é notável um teor critico e

ambíguo que rompe a objetividade aludida, de modo que marechal é o

termo utilizado para o individuo que cuida de cavalos, palavra assim

relacionada à condição de servo, nessa concepção. Contudo, conhecesse

frequentemente por marechal o de posto mais alto no exercito,

significado que traz consigo um sentido negativo em relação à historia

brasileira, associando com isso com sua organização sintática:

Marechal, boi de carro as ideias de grande/ pequeno, forte / sem

forças. Titulo muito bem observado outra vez por Leite (2001): “Numa

possível interpretação, é como se o autor ou o povo, no plano ficcional,

que tanto respeita e admira esse boi, quisesse nos dizer: este é o

marechal que legitimamos como servo e superior.” (LEITE, 2001, p.2).

Mas o destaque deste bumba, está no estranhamento com a

sociedade que Joaquim Cardozo cria ainda no seu primeiro quadro,

estranhamento distinto daqueles vistos nas duas peças anteriores.

Remete a isso no tom de deboche que emprega no uso da personagem

de personagem de maneira estereotipada, em que traz, inclusive, a

transcrição fônica da forma peculiar de falar do Matuto. Personagem

que se lamenta criticamente, muitas vezes, mesmo que Capitão o

considere um cretino, vem com tais críticas de forma mais explicita do

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que o que em De uma noite de festa ainda ficava subtendido com o

Retirante:

Capitão

Você também vai voltando?

Matuto Inhor não, tou é chegando,

Tou vindo de serra em seca

Do véio sertão sou fio

Vim das serras sobre as serras

Pra que lugá sei não.

Catirina

Mas por que deixou sua terra?

Matuto

A terra é que me deixou. [...] (CARDOZO, 2001, p.

38-39)

Desse modo, Cardozo vem com uma narração pretérita no

intuito de por o leitor ou o público mais criticamente dentro do

desenvolvimento do enredo. “Constrói também um dos mais elaborados

quadros da sua dramaturgia, na perspectiva da narrativa épica

brechtiana.6”(LEITE, 2001, p.4). Assim, no segundo quadro eis que se

dá o único momento em que Marechal, boi de carro é dramatizado

somente através de uma narração, quando Mateus começa a contar

sobre seu encontro com Macunaíma, em uma roda de conversa, após de

6 Relativa à técnica teatral desenvolvida por Bertolt Brecht dramaturgo e poeta

alemão que, entre outras coisas, faz uso de uma exposição dialética, clara e inteligível

e que procura obter da plateia uma atitude crítica em relação aos fatos encenados, um

distanciamento emocional: teatro épico brechtiano.

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um dia cansativo à procura do boi que tinha sido levado para leilão.

Pratica típica das tradições orais nordestinas:

Mateus

[...]

Pela estrada de Goiânia

[...]

Ia assim a caminhar

Quando vi que certo vulto estava se aproximando...

[...]

Pensei que fosse lobisomem

Até que de perto chegando vi que era o preto safado

Sem vergonha, sem caráter,

Macunaíma chamado; [...] (CARDOZO, 2001, p. 49-

51)

Trecho em que se pode notar uma reconstrução calcada numa

superposição e aglutinação nas formas de contar fazendo a partir disso a

construção de uma delicada intertextualidade com o romance de Mario

de Andrade. Na qual “Macunaíma” figurasse na imagem de uma

imagem sonhada (um personagem morte, assim como o Capitão de

Coronel de Macambira). Representação, explicada por meio do

conceito de dupla denegação, termo da psicanalise que implica em

trazer à consciência elementos reprimidos que são por ela negados,

assim: “Na evocação do sonho e da lembrança, o autor apresenta um

poderoso recurso para discutir este embate ideológico construindo

personagens dotados de uma dupla função: interagem ao mesmo tempo

dentro do enredo e da própria sociedade. ” (PAIVA, 2009, p.87)

No final do drama conseguem resgatar do boi do leilão, porém

este é encontrado ferido, logo veem com um curandeiro para cura-lo, o

que remete também às práticas do povo do interior do nordeste: ir em

busca de conhecimentos populares para curar doenças, ao invés de ir ao

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médico, estás pessoas proveriam e proverem rezas que são passadas de

geração a geração de maneira oral, vejamos o um pouco desta do

Bumba: “ Contra o cão faminto e guenzo/ Contra o pé de um bode coxo

...[...] Eu te benzo, benzo, benzo / Por três vezes neste arrocho...

[...](CARDOZO, 2001. p.95).

Porém a tentativa de cura é em vão o boi morre e em oposição

aos dois primeiros bumbas cardozianos que sempre terminam em festa e

alegria, este é finalizado com uma despedida cheia de dor: uma

cerimônia fúnebre que se alarga no rito do Bumba-meu-boi, em forma

de um aboio feito por Mateus: “ Adeus, Brejal! Adeus Brejal! [...]

minhas terras/ seus cercados/ nunca mais[...]” (CARDOZO, 2001,

p.105). Bem peculiar à cultura do sertão nordestino: onde boiadeiros

fazem cantos como esse para levarem seu gado pelas estradas. E com

um olhar mais atento conseguimos ver nessa despedida um

desvelamento de uma ânsia pela liberdade do território e daquele que

nele vive.

4- Os anjos e os demônios de Deus: O Jogo de Oposições do Pastoril

Num Patenteamento da Sociedade

Texto teatral que integra os bumbas cardozianos, Os anjos e os

demônios de Deus vêm na forma de pastoril finalizando o conjunto de

peças do autor que tem como base um matiz popular. Através de uma

dilatação da cultura folclórica dentro do conteúdo dramatúrgico. A peça

é estruturada em doze jornadas, cada uma com um título. Onde as

pastoras anunciam a vinda do Messias, além de louvarem as belezas do

planeta Terra por intermédio de cantigas, enquanto os anjos e os

demônios discutem os desígnios de Deus para salvar a humanidade.

Leite (2001) defende ser esta ser a obra para o teatro mais rara de

Cardozo, não se restringindo à sua quantidade, em favor dos vários

exemplares impressos, e sim graças a qualidade estética de sua

conjuntura dramatúrgica de alto grau de estilização poética com

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linguagem visual, gráfica que tem filtro por meio da poética

serigráfica7.

Embora, até mesmo que com a oposição de sentidos que o título

nos traz, não existe, aqui, a luta entre o bem e o mal, entre anjos e

demônios. São personagens que, mesmo ocupando a cena

simultaneamente, não chegam a dialogar verdadeiramente. Dialogam

entre si por intermédio de um terceiro elemento: o leitor-espectador.

Sua fala é sempre voltada para o público, todavia, não se trata de uma

narrativa em terceira pessoa como se estivessem a contar uma história.

As falas no indicam que eles estivessem sempre a esperar pela interação

do leitor-espectador, em que vemos uma insistência verbal, na

exposição de seus pontos de vista:

Demônio Azael:

As Pastoras acabaram de cantar, há alegria em tudo

A terra é realmente muito bela, com suas estações:

Inverno, verão, outono, primavera;

Há muito, porém, se sabe disso, não compreendo

O entusiasmo dessas Pastoras,

A não ser que... bem...

Parece que alguma coisa de novo vai acontecer...

Toda essa alegria é prenúncio de coisas graves

Anjo Anael:

O Padre Eterno para aqui me enviou

E me deu conselhos, conselhos muito

Necessários e especiais,

Sobretudo me aconselhou a ter precaução

7 Vem de Serigrafia, também conhecido como silk-screen ou impressão a tela, é um

processo de impressão à base de estêncil na qual a tinta é forçada através de um crivo

fino para o substrato abaixo dela.

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Com o meu modo de falar, com o que devo dizer:

Vim ver de perto a situação

Estamos de fato, diante de um caso muito difícil. [...]

(CARDOZO, 2001, p.25)

Cabe destacar que para fazer essa transfiguração do popular para

o meio das letras, Joaquim Cardozo vai buscar inspiração na obra

renascentista de Matteo Palmieri8 - Città di vita, que foi uma espécie

de tratado “místico-utopista, que concebe uma cidade ideal e perfeita

que os homens permanecem neutros na luta entre o Criador e

Lúcifer.”(LEITE, 2001, p.12). Nesse jogo opositivo entre bem e mal,

claro e escuro, os anjos e os demônios, trazem representação da divisão

das massas, em classes, ricos e pobres, fortes e fracos, na simbologia do

cordão azul e o cordão vermelho rito popular do pastoril, denunciando

as divergências sociais em um desnudamento social típico das obras do

Recifense.

Fora desse jogo de antíteses surgem as figurações das Pastoras

estão fora deste jogo com o público. Elemento mais característico da

religiosidade do a partir das narrações de passagens da bíblia, pondo em

evidencia as belezas do mundo e fazendo lamentações das misérias

humanas. Numa representação da esperança dentre os homens, que

podem segundo Paiva (2009)podem ser classificadas como atemporais

as quais carregam consigo as reminiscências de antigas tradições, em

especial das musas gregas continua a tradição das musas gregas, que

transmitiam a verdade histórica encoberta pela tradição assimilada pelo

pensamento dominante e oficial, característica que permanece em

essência no espetáculo do Pastoril:

Nesse planeta de beleza tanta

Se ergue, porém, um surto de agonia;

8 Foi um florentino humanista e historiador. Defendia humanismo cívico, e sua

influência no aperfeiçoamento do vernáculo Tuscan à mesmo nível que o latim. Mais

reconhecido pela sua obra Città di vita.

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nos homens há uma força que os suplanta;

E de tudo, por tudo se irradia.

Há na paisagem rastro de uma dor

Do qual nunca se sabe onde se encanta,

E nas asas do vento voador

Há um vento maior que se levanta [...] (CARDOZO,

2001, p.31)

Desta forma, dentro deste pastoril as Pastoras servem para narrar

a história de modos diferentes, bem como as filhas de Mnemósine9 e

Zeus, que previam o futuro por meio de suas belas vozes em coro. Em

Os anjos e os demônios de Deus a narrativa das Pastoras sobre a

história mais conhecida de todos os tempos, a história bíblica do

nascimento de Jesus Cristo, é “invadida” pelos anjos e pelos demônios,

personagens que dominam a ação verbal. (PAIVA, 2009, p.67). Os

quais tem como intenção nortear ao público que aquilo contado na

bíblia não é propriamente o ocorrido e que há muito a ser descoberto

ainda.

5. O Capataz de Salema e Antônio Conselheiro: Realidade Social No

Jogo de Antíteses de Cardozo e Na Sua Intertextualidade Dialética

No último volume teatral de Joaquim Cardozo encontramos duas

peças: O capataz de Salema e Antônio Conselheiro, obras

complementares do absoluto teatro sem medidas do pernambucano,

duas sementes antagônicas, defende Leite (2001), que se abrem em

estalidos, dizendo em sua germinação, acerca de reflexões sempre

opostas entre si: privado e público, mito e história, submisso e

9 Deusa grega da memória, filha de Urano e Gaia, concebida pelos gregos como forma

personificada da memória. “É a mãe das nove musas que ela procriou no decurso de

nove noites passadas com Zeus. Lembra aos homens a recordação dos heróis e dos seu

altos feitos, preside a poesia lírica.” (LE GOLFF,1990,p.378)

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dominador... Volume trazido ao leitor em 1975, embora, apareça na

forma de fragmentos, em Signo Estrelado (1960) e Poesias Completas

(1971).

Dramas que se afastam dos espetáculos vindos da cultura

popular em que elabora seus Bumbas, O Coronel de Macambira, De

uma noite de festa, Marechal, boi de carro e também seus pastoril, Os

anjos e os demônios de Deus, mas mantendo a luta incessante daqueles

postos à margem da sociedade, que buscam uma atitude em que

prevaleça um ideal de libertação, à medida que põe essas figuras

descriminadas como personagens centrais de suas obras, o Capataz, a

filha de pescadores...

Em o capataz de Salema, Cardozo traz entre um homem que

manda e vigia os pescadores (O Capataz) e uma filha de pescadores

(Luzia) um conflito amoroso que não se resolve. E mais duas

personagens apenas para compor o enredo: Sinhá Ricarda (avó de

Luzia) e o Mar, personagem que aparece apenas em som, semelhante a

um concerto de orquestra o qual acompanha todo o desenvolver do

drama. Personagens sempre marcadas pelas diferenças da sociedade:

masculino -feminino, comandante-comandado e a pobreza diversa.

Luzia

Por que tão tarde chegaste?

É tarde... tarde demais.

Por quanto tempo ficaste

Ausente.

Capataz

Bem desiguais

Têm sido os nossos destinos

Há muitas horas navego,

Pois vim de mares distantes

Por isso a minha demora

Em bater à tua porta

- Escuro bater de cego. (CARDOZO, 2001, p.20)

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Na conjectura dramática do autor esta peça acaba se destacando

como a de menor extensão, com poucos personagens, e apenas um

espaço: o casebre de Sinhá Ricarda, isto dentro de um ato único

também. Mas chama atenção o jogo de antíteses sociais que são

empregadas nas representações dos personagens, Luzia, por exemplo,

não aceita fugir com o Capataz, para não viver em condições precárias,

hostis. De retirante, o que diante da sociedade seria pior que sua

condição de filha de pescadores:

Na peça O capataz de Salema, que Cardozo subintitula:

uma conjectura dramática, a protagonista Luzia encontra-

se no limiar entre aceitar sua condição de miserável, sem

qualquer perspectiva de mudança dentro de uma realidade

social desequilibrante, que explora a pobreza, e

permanecer no seu local, preservando suas tradições e

suas referências culturais, ou partir com o Capataz e ver-

se num local hostil como o outro, o imigrante, o

subdesenvolvido. (PAIVA, 2009, p.41)

Ao que segue o volume encontra-se Antônio Conselheiro, uma

recriação de Os Sertões de Euclides da Cunha, onde “Cardozo amplia e

aprofunda a problemática, histórica, política, social e religiosa de

Canudos, criando uma territorialidade dramática de reverbações

universais poucas vezes alcançadas no texto teatral brasileiro.” (LEITE,

2001, p.2). Peça na qual usa recursos técnicos e de arte peculiares ao

teatro contemporâneo, fazendo um misto de passado, presente e futuro

numa comunicação dialógica dentro de cena, afirma o crítico. No

seguinte trecho este recurso, muito bem explicado acima, é criado num

embate entre passado no início do texto: “vivi - revivi” e futuro no final

do texto: “haverão de ver e rever”.

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Conselheiro

Vivi e revivi muitas vezes...

E por que para aqui me trouxeram?

O destino há de se cumprir;

Hei de nascer, hei de voltar para mais de uma vez

Aos lugares onde, estão os que me esperam.

E esta volta é revolta contra os demônios;

Todos haverão de ver e saber. [...] (CARDOZO, 2001,

p. 59)

A partir disso, vemos a relevância que Joaquim Cardozo

concebe às palavras, dando a elas forças para afastar o individuo em

cena de sua situação banal, aquela presa ao tempo dramático, pois em

favor deste atributo de expressão consegue revelar as ações em um

tempo diferenciado do tempo dramático, visto que ocorrem

impulsionamentos nas variáveis de tempo e espaço da peça, e que

fazem também de Antônio Conselheiro o épico do engenheiro literário,

defende Paiva (2009; 131).

Deste modo, ao comparar os dois escritos é notável que O

capataz de Salema a focalização se dá mais dentro de um cenário único,

com diálogos de personagens também restrito, sem muito movimento

em cena. Ao passo, que em Antônio Conselheiro é construído no jogo

múltiplo na disposição dos quadros, vindos lado a lado numa singular

movimentação dialética de tempo e espaço.

Considerações finais

No percurso aqui realizado na obra dramatúrgica de Joaquim

Cardozo foi possibilitada a verificação do resgate da cultura popular do

povo da região nordestina, ao construir o primeiro de seus dramas

Coronel de Macambira, que tem construção baseada no rito do bumba-

meu-boi, trazendo consigo também o início das críticas sociais as quais

serão intensificadas a cada peça. Na segunda dramatização Cardozo

vem com um auto de natal configurado em Bumba (De uma noite de

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festa), mas um bumba que traz à tona questões sociais não tão

discutidas, em uma mesclagem de magia, realidade e sonho, além de

propriedades técnicas de escrita perspicazes, estas até semelhantes às de

Carroll.

Nesse âmbito, em sua última composição teatral que retoma o

rito popular do boi: Marechal, boi de carro, o engenheiro propõe-nos

um desvelamento social bem mais intenso e amadurecido que nas duas

obras anteriores, em consequência do teor não mais implícito, e sim

explicito e objetivo através do qual traz as críticas, sem esquecer de

correspondências aos escritos de Brecht. Ainda no matiz de cultura do

povo o pernambucano cria Os anjos e os demônios de Deus vinda ao

receptor na forma de pastoril usufruindo do jogo de oposições deste

espetáculo para expor as diferenças sociais. Para por fim em Capataz de

Salema e Antônio Conselheiro, engenhar respectivamente um embate

cênico monótono de antíteses da sociedade e uma recriação ampliada

de Os Sertões que teve por base um jogo dialético-temporal peculiar à

escrita do autorB.

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