a crÍtica do progresso em adorno

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    A CRITICA DO PROGRESSO EMADORNO

    MICHAEL LOWY E ELENI VARIKAS

    A ideologia do progresso, nascida (em sua forma mo-derna) com as Luzes, tern na concepcao hegeliana da historia suasuprema expressao filosofica. Interpretava-se cada acontecimentocomo urn momenta da marcha da humanidade em direcao aliberdade: quando da entrada triunfal de Napoleao na sua cidade,Hegel convenceu-se de que percebera "0 espir ito do mundo(weltgeist) montado num cavalo".o pensamento de Adorno situa-se nos antipodas desseotimismo progressista e dessa ldentificacao com a marchaconquistadora da Razao dominante. Numa passagem ironica eamarga das Minima Moralia, escrita durante a segunda guerramundial, ele reformulou a rnetafora hegeliana: "Eu vi 0 espirito domundo, mas nao a cavalo: vi-o nas asas de urn missil'"l , A seusolhos, a historia do seculo XX refutava dramaticamente a filosoflade Hegel. Com a excecao de uma conferencia de 1962, Adornonunca tratou de maneira "sistematica"ou especifica da questao doprogresso. A critica das ilusoes "progressistas", todavia, e comourn flo vermelho entretecido no conjunto da sua obra, e urnelemento central da sua visao de historia, que contribui tarnbern,Michael Lowy e Eleni Varikas, "L'esprit du monde sur les ailes d'une fusee - lacritique du progress chez Adorno", Traducao de Regis Castro Andrade. Na mesmaarea ternatica, Michel Lowy publicou nos Nouos Estudos CEBRAP (nQ 32, 1992),"Benjamin, Habermas e a modemidade".1Minima Moralia (MM), Payot, Paris, 1983, p. 53.

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    de modo determinante, it elaboracao de suas ideias sobre a arte, aliteratura e a cultura.Nao e necessario dizer que a crltica do progresso nao enova na cultura e na filosofia da Europa central. A reflexao deAdorno lanca raizes em toda uma tradicao de polernica, muitasvezes acerba, contra a modernidade burguesa. Ela esta ligada auma corrente profunda que atravessa a hist6ria de cultura alerna(e europeia) desde 0 fim do seculo XVIII ate os nossos dias: 0 ro-mantismo, nao como simples escola literaria, mas como umaWeltanschauung fundada na crttica da civilizacao industrial/capi-talista moderna a partir de valores socia is e culturais pre-capita-listas. Os dois mornentos fortes da evolucao dessa corrente sao 0romantismo "classico" do inicio do seculo XIX e 0 assim chama-do "neo-romantismo", predominante no fim do mesmo seculo,particularmente nos meios universitarios, Esses dois momentossao fontes essenciais da reflexao adorniana do progresso: fontesque sao evidentemente re-interpretadas e reexaminadas por umafilosofia que, apesar de tudo, jamais deixou de reinvindicar parasi a heranca das luzes. Adorno reconhece a legitimidade - parciale limitada, por certo - das criticas levantadas pelos romanticoscontra a modernidade e as Luzes: enquanto pura instrumentali-dade, "como simples construcao dos meios, a Razao e tao destru-tiva quanta 0 afirmam, em suas investivas, os seus inimigos ro-rnanticos". Mesmo 0 romantismo rnais reacionario - como porexemplo a contra-revolucao cat6lica - tinha razao contra 0Aufklaru ng liberal ao mostrar como, gracas it economia demercado, a liberdade se transformava no seu contrarlo/.Em certo sentido, Adorno nao estava longe decompartilhar 0 elitismo cultural dos mandarins universltariosalernaes do fim do seculo XIX e da sua hostilidade com respeitoaos valores positivistas e utilitaristas de uma sociedade de massasmoderna dominada pel a tecnologia e pelo mercado, mesmo sedeles se diferenciasse radicalmente em razao de sua opcao socialmarxista, seu modernismo estetico e sua rejeicao de todarestauracao dos privilegios aristocraticos do passado'l.2Adorno, M. Horkheimer, La Dialectique de la Raison (DR), Gallirnard, Paris,1974, p. 57, 100.3Ver Eugen Lunn, Marxism and Modernism: an Historical Study of Lukacs,Brecht, Benjamin and Adorno, California University Press, Berkerley, 1982, pp.211-212. De acordo com Lunn, Adorno era urn "mandarim de esqu erda" , rnotivadopor urn antl-capitalismo "aristocratlco-sociallsta".

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    Nao estaria essa trajet6ria em contradicao com 0progressismo marxista? Tudo depende da interpretacao dostextos marxianos, susceptiveis de leituras muito diversas ... Aleitura de Adorno poe em relevo que Marx, na sua critica aoprograma de Gotha, rejeitou "a absolutizacao da dinamica nadoutrina do trabalho como fonte (mica da riqueza social; e eleadmitiu a possibilidade de urn retorno iI . barbarie,,4. Gracas a essainterpretacao - seletiva, mas nao necessariamente erronea - afilosofia de Frankfurt pode reduzir as tensoes entre sua adesaosincera e profunda ao projeto marxista de emanci pacao social esua simpatia em relacao as criticas culturais do progresso. Nessaleitura do marxismo ele foi precedido por seu amigo WalterBenjamin, cujos escritos sao, sem duvida, a fonte mais importantee mais direta de sua reflexao nesse dominic.

    A grandeza e os limites da critica passadista ou "reac-tionnaire" do progresso sao ilustrados, aos olhos de Adorno, pordois autores do seculo XX, cujos escritos ele examina de perto:Aldous Huxley e Oswald Spengler.

    Tanto na Dialetica da Razdo como na Minima Mo-ralia, Huxley e apresentado como urn exemplo tipico (junto comJaspers ou Ortega y Gasser) de "critica reacionaria" da civilizacaoem nome da nostalgia do passado e da defesa da cultura''. Essaanalise foi desenvolvida numa conferencia de 1942, retomada emPrismes, que submete a uma atenta analise critica 0 conteudo docelebre romance dist6pico de Huxley, Admirauel Mundo Novo.Para Adorno, essa obra e a expressao do sentimento de panicodo intelectual confrontado ao choque das engrenagens da relacaomercantil universal e exclusiva. Huxley tern 0 merito de recusartoda concessao a crenca infantil segundo a qual "os supostosexcessos da civilizacao tecnica seriam compensados por simesmos num progresso irresistivel"; na sua utopia, "observacoesfeitas no estado atual da civilizacao levam a evldencia da suamonstruosidade", Nao obstante, em ultima analise, seu livro e urnfracasso: reacionario, ele "desconhece a promessa humana dacivilizacao" e a dirnensao positiva ("certamente problernatica einsuficiente") da reificacao. Puritano, ele nao distingue entre libe-racao e degradacao da sexualidade; pr6ximo dos "filisteus roman-

    4Adorno, "Le progres", 1962, inModeles Critiques, (MC), Payot, Paris, 1984, p. 172.- ver traducao neste numero de Lua Nova.5DR. p. 17, MM, p. 141.

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    ticos" ele op6e a tecnica a humanidade, a maquina ao homem, econfunde uma "lirnitacao das relacoes de producao, e entroni-zacao do aparelho produtivo em nome do lucro" com "umaqualidade Intrinseca das forcas produtivas"; em resumo, Huxleyexpressa urn "individualismo irrefletido", urn romantismo tardioe uma moral "nihilista", pois que ele "nao intrega a sua reflexao aideia de uma praxis que romperia a maldita continuidade,,!6

    Nao se pode deixar de considerar essa critica bastanteinjusta, excessivamente parcial para dar conta da riqueza e daforca do romance e base ada em premissas rnuito pouco ...adornianas: sera que ele se atreveria a censurar Beckett ou Kafkapor nao integrar a sua reflexao a ideia de uma praxis transforrna-dora? Nesse curioso texto depararno-nos com passagens quefazem pensar antes nos ataques de urn Lukacs contra 0 "nihilis-rno" dos escritores modernos que na estetica Iiterarla do fil6sofoda dlaletica negativa...

    Paradoxalmente, 0 "socialista Prussiano" (antes de tor-nar-se nacional socialista) e ideologo conservador Oswald Spen-gler e tratado com mais indulgencia por Adorno que 0 roman-cista Ingles, Certamente, as simpatias de Spengler dirigern-se asclasses dominantes e sua fllosofia da hist6ria legitima 0 estado decoisas existente: "assirn como Comte, ele fez do positivismo umametaflsica, da submissao ao que existe urn amor pelo destino, doconformismo uma sensibilidade cosmica". Contudo, "ele e urndesses te6ricos da reacao extremista, cuja critica do liberalisrnorevelou-se sob varios aspectos superior a critica progressista", aqual jamais levou a serio a possibilidade real de uma volta abarbaric. o esquecimento ao qual se relegou a autor da Decaden-eta do Ocidente ap6s sua morte nao se justificaria: "Spengler naoencontrou urn adversario a sua altura: 0 esquedmento assernelha-se a uma omissao", se examina as crlticas feitas a ele ate 1922,darno-nos conta "da medida do fracasso do espirito alernao dian-te de urn adversario que parecia concentrar nele a forca hist6ricado passado". A acuidade intelectual de Spengler perrnitiu-lheadivinhar "a ambigiiidade das Luzes na epoca da dominacaouniversal". Seus "progn6sticos sao tambern espantosos": noscampos da arte, da imprensa, da guerra ou da economia, 0curso

    6Adorno, Prismes, Critiques de la Culture et de la Societe, Payot, Paris, 1986, pp.82-101.

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    dos acontecimentos "corresponde com bastante precisao aoprognostico de Spengler". Nao e possivel opor-se a ele em nome"da fe no progresso continuo e na sobrevivencia da cultura": a(mica 'resposta possivel ao desafio spengleriano e 0 protestodaqueles que a historia marginaliza e aniquila - protestodesesperado que constitui "a (mica esperanca de privar 0 destinoe 0 poder da ultima palavra'".o que quer que pensemos dessa surpreendente super-avaliacao de Spengler (e, paralelamente, da excessiva sub-avalia-cao de Huxley), e evidente que Adorno leva a serio esse tipo decritica rornantica as ideologias conformistas do progresso, semaceitar de modo algum suas premissas anti-iluministas retrogradase conservadorass. Sua estrategia em face dessa corrente intelectuale definida numa passagem magnifica e muito esclarecedora deMinima Moralia. "Urna das tarefas - e nao das menores - diantedas quais se encontra 0 pensamento e a de por todos os argu-mentos reacionarios contra a civilizacao ocidental a service daAufklarung progressista'". Pode-se dizer toda a filosofia da histo-ria de Adorno, e em particular sua reflexao sobre 0 progresso,como uma tentativa de aplicar esse programa, que ele tambernformula na seguinte proposicao da conferencia sobre 0 progressode 1962: "Uma teoria do progresso devera integrar 0 que ha depertinente nas invectivas contra a fe no progresso enquantoantidoto contra a mitologia que 0mina"lO.

    Essa estrategia implica uma atitude com relacao aopassado que se distingue profundamente da dos restauracionistasromanticos: 0 objetivo nao e a conservacao do passado, mas arealizacdo das esperancas do pass ado. Isso significa que as so-brevivencias do antigo, do pre-burgues, so tern valor comoJermentos do novo11.

    Curiosamente, Adorno so percebe, no campo das criti-cas rornanticas do progresso, a corrente reacionaria, conserva-hdomo, Prismes, pp. 37-44, 56-58.8Ver Martin Jay. Adorno, Harvard .University Press, Cambridge, 1984, p. 17:" Suaavaliacao controversa e muito matizada de Spengler e de outras figuras ostensiva-mente reaclonarias testemunha seu desejo de salvar 0 que resta de valido na ,critlca romantlca da modernizacao".9MM, p. 179.lOMe; p. 165.11DR, p. 17, MM, p. 182. Essas duas proposicoes se encontram no centro dosescritos de Benjamin dos anos 30.

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    dora e contrarevolucionaria. Ele nao parece dar-se conta, nessemesmo universo cultural, de uma sensibilidade romantica/revolu-cionaria, desde Rousseau e Blake ate Ernst Bloch e Walter Ben-jamin. Isso parece ainda mais surpreendente quando se consideraque Benjamin - apesar das diferencas que os separam - repre-senta uma referencia essencial na elaboracao da sua propriaconcepcao de progresso.

    De todos os textos de Benjamin, sem duvida sao suasTheses sur le concept d'bistotre (940) 0 que mais profundamenteinfluenciou Adorno, e em especial a tese VII, que encena urn Anjoda Historia lancado ao futuro por uma tempestade que 0 afastado paraiso; a essa tempestade, que produz uma sucessao de ruinas,da-se 0 nome de "Progresso". Essa alegoria reaparece, quase pala-vra por palavra, na Dialectique de ia Raison: "0 anjo portadordo gladio de fogo, que expulsou os homens do paraiso e os irn-peliu a via do preparo tecnico, e, ele proprio, 0 simbolo desseprogresso"12.

    Na conferencia sobre 0 progresso de 1962, Adornorefere-se as "Theses" de Benjamin como "sem duvida 0 pensa-mento mais pertinente sobre a critica da ideia de progresso da-queles que, urn tanto apressadamente classificamos, politicamen-te, entre os progressistas." Como seu amigo ele recusa-se aconfundir 0 progresso das tecnlcas e dos conhecimentos com 0progresso da humanidade, e, como ele, persuadiu-se de que 0momento da redencao, mesmo secularizada, esta presente no .verdadeiro progresso. Adorno recusa, porern, "como teologiahistorica" qualquer tentativa de assimilacao direta dos doismomentos: como ja 0 dissera Santo Agostinho, "a redencao e ahistoria sao inseparaveis e nao se confundem,,13

    Se Adorno parece adotar uma atitude mais matizada e,as vezes, mais positiva que Benjamin com respeito ao progresso,tarnbern e verdade que sua reflexao e cortada por uma tensaopermanente, ou mesmo por uma recusa de decidir. Mas essa recu-sa e parte integrante de sua abordagem que, fieI a sua profundadesconfianca da conceituacao abstrata, recusa urn conceito totali-zante do progresso. Nao fazer desse conceito uma "categoriaconclusiva" e uma decorrencia do "tabu dlaletico com respeito

    12DR, p. 17, MM, p. 189.13MG , pp. 156-159.

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    aos conceitos fetiches", caracteristicos da propria Aufklarungcritica, que ele faz sua, apesar de tudo-".

    Desse ponto de vista, mais do que uma hesitacao entreuma avaliacao positiva ou negativa, 0 que emerge dos seusescritos e uma verdadeira dtalettca do progresso que participa dadialeticas das Luzes ao mesmo tempo em que dela se nutre. Essadialetica ja despontava na suspeita que ele fazia pesar, desde osseus escritos do iniclo dos anos 30, sobre 0 racionalismoocidental (L 'actualite de ta Pbtlosopbte).

    Entre os membros do estreito circulo da Escola deFrankfurt, Adorno - a exemplo de Benjamin - era provavelmenteo menos confiante na dinarnica progressista da razao15. ADtaletica da Razao constitui 0 ponto culminante desse ceticismo;o progresso aparece ali com as caracteristicas de umadominacao progressiua. E verdade que esse trabalho resultou deuma reflexao conjunta com Horkheimer, cujas obras posterioresmantiveram, em grande parte, essa orientacao historico-filosoficanegativa (L' Eclipse de la Raison). Mas Horkheimer preocupou-semenos diretamente com as implicacoes episternologicas da criti-ca da Aufklarung, em Adorno, pelo contrario, essas implicacoestornaram-se uma preocupacao constante a partir dos anos 40. Eno quadro dessas preocupacoes, que definem como tarefa pri-mordial do pensamento filosoflco a reflexao sobre suas propriasaporias, que se desenvolve a ideia de uma dialetica do progresso.

    Assim como a dlaletica das Luzes pressup6e urn pontode vista que e ao mesmo interno ii . Aufklarung e critico dela, adialetica do progresso implica urn ponto de vista que critica aideia de progresso sem remoue-lo do borizonte conceitual. Enesse sentido que Adorno interpreta e retorna por sua conta acritlca benjaminiana do progressismo social-democrata: UNaimagtnacao social-democrata, 0 progresso ... seria urn progressoda propria humanidade (nao de suas aptidoes e conhecimen-tos)".0que esta em questao nessa passagem, segundo Adorno, euma certa utsao do progresso e nao a vontade de excluir 0

    1 4Me, p. 172.15C.F. Susan Buck-Morss, The Origin of the Negative Dialectics, Tbeodor W.Adorno, W. Benjamin and the Frankfurt Institute, Macmillan Free Press, NewYork, 1977, e Richard Wolin, "Critical Theory and the Dialectic of Rationalism"New German Critique, n. 41, 1987.

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    progresso da teoria critica16. Esta nao poderia dispensar a nocaode progresso, portadora da esperanca "de que as coisas vaomelhorar, que urn dia os homens poderao respirar". Nao hi bern,nem traces de bern sem progresso. Ou antes: a progresso consistena guerra contra 0 triunfo do mal radical, a resistencia ao perigoconstante de regressao, a possibilidade de evitar a catastrofeintegral17.

    Se a dialetica das Luzes e elaborada a partir de umaposicao etica cuja medida nao e a grau de desenvolvirnento dosconhecimentos e nem mesmo 0 seu potencial unico de emanci-pacao humana, mas 0 grau em que os conbecimentos realizaramessa promessa de emancipacdo, 0 mesmo pode-se dizer da dia-letica do progresso. E a recusa de dissociar progresso dos conhe-cimentos e progresso da humanidade que revela 0 duplo caraterde uma dinarnica "que sempre desenvolveu 0 potencial delib erda de ao mesmo tempo que a reattdade da opressdo" 18. "Acada progresso da civilizacao, as novas perspectivas de domi-nacao abriam ao mesmo tempo perspectivas de supressao dessaultima,,19. .o duplo carater do progress a manifesta-se primeira-mente no desenvolvimento tecnol6gico e cientifico. Quer se trateda introducao da maquina, da evolucao dos meios de comunica-~ao ou do aperfeicoamento da divisao do trabalho, 0 progressosempre correu 0 risco de transformar-se em regressao. A imbri-cacao entre progresso e regressao torna-se evidente "quando seconsidera is possibilidades tecnicas a nossa disposi~ao"20. Se setoma como exemplo a reproducao mecanlca, percebe-se que 0progresso dos procedimentos de reproducao ocorre em detri-mento de uma producao definida pelas necessidades e coincide,pelo contrario, com uma adaptacao/sujeicao reais das necessi-dades aos pr6prios procedimentos. Mais ainda: que se trate daproducao de bens culturais ou materiais, sao os procedimentosenquanto tats, isto e, desenvolvidos independentemente daquilo16Segundo Adorno, em Benjamin 0conceito de progresso "Iegitlrna-se na teoriasegundo a qual a representacao da felicidade das geracoes ainda nao nascidas -sem as quais nao se poderia falar de progresso - se acompanha inevitavelmenteda representacao da redencao" (Me, p. 156).17Me, pp. 154, 159.18MM, p. 139.19DI~p. 55.20MM, p. 113.

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    que eles reproduzem, e nao seu potencial de satisfacao dasnecessidades, que se tornam as marcas do progresso.

    A modernizacao e a racionallzacao calculadora, correla-tivos do progresso tecnico, tiveram como resultado uma perda,um declinio, uma degradacao com relacao as sociedades pre-modernas. A tecniflcacao priva os gestos humanos de "toda hesi-tacao, de toda circunspeccao e de todo refinamento", ela lega ao"perecimento da experiencia adquirida" e a "decadencia dodorn", Numa palavra: com 0 progresso, "0 que os homens perde-ram foi 0 componente humano de cultura", A grande artemoderna, a obra de um Kafka ou de um Beckett e um testemunhoangustiado do declinio do sujeito humano na vida moderna. Daio valor que tem para Adorno as sobreutuenctas pre-capitaiistasencontradicas na Europa mesmo no seculo XX, nao na sociedadenorte-americana, inteiramente modernizada. Na Alemanha, porexemplo, instituicoes culturais e arristicas como as universidades,os teatros ou os museus permaneceram a margem do mecanismodo mercado: "os poderes pollticos., . aos quais 0 absolutismodeixara essas instituicoes como heranca, asseguraram sua indeipendencia com relacao as forcas dominantes do mercado, damesma forma como 0 haviam feito os principes e os senhoresfeudais no seculo XIX.Na America, pelo contrario, as antinomiasdo progresso se revelaram em toda sua paradoxal desumanidade:"a ausencia de todo esnobismo com respeito ao que - no sentidofeudal - e desonroso nas relacoes de troca, 0carater democraticodo principio de ganho, tudo isso contribuiu para perpetuar, purae simplesmente, a anti-dernocracia, a injustica economica, a de-gradacao do homem. Nao passa ali pela cabeca de ninguern quepode haver prestacoes que nao traduziveis em valor de troca"21.

    Assim como a razao que se desvia de sua finalidadeemancipadora renuncia a sua realizacao, 0progresso tecno16gicoque dela e 0meio privilegiado transforrna-se em progresso dopoder quando se autonomiza com relacao aos fins que deveservir. Nesse sentido, nao e a evolucao ou a tecnologia que per-mite a transformacao da maquina em mecanismo de dorninacao,mas sua adaptacao ao poder. A manipulacao da consciencia cole-tiva pelo que Adorno chamou a industria cultural e a utilizacaobrutal das tecnicas mais sofisticadas pela barbarie fascista sao -

    21MM., p. p. 37, 139,183,202; DR,p. 141; MartinJay, Adorno, p. 130.

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    dois aspectos essenciais dessa inversao sinistra do progressocientifico. Entretanto, 0 duplo carater.oo progresso nao designasimples mente urn mau uso da ciencia, designa, rnais radical-mente, a existencia de urn potencial de desumanizacao nasproprias ralzes da empreitada cientifica. Ao referir a Dialetica c iaRa zdo a ernergencia do racionalismo ocidental, Adorno eHorkheimer esbocarn uma tendencia a "dominacao progressiva"ligada a articulacao de dois aspectos constitutivos do projetocientifico: a reducao do qualitatiuamente diferente a umaidentidade quantitativa que tera seu apogeu no preceito "Scienceis Measurement:" e 0 controle da natureza. A mani pulacaoinstrumental da natureza levaria inexoravelmente a instru-mentalizacao do homem, assim como a transforrnacao do mundoem puro objeto conduziria a relficacao das relacoes humanas22.Condicao necessaria do progresso cientifico, a cegueiradiante da dor e dos sofrimentos causados pelo controle danatureza voltar-se-ia contra 0 homem como uma vinganca danatureza brutalizada. Apesar da sua evidente atualidade, essaanalise remetia menos a uma reflexao ecologica que asrepercurssoes desastrosas que sobre 0 homem teve sua alienacaonao apenas com relacao a natureza sobre a qual ele exerce suadominacao como tarnbern, com relacao aquilo que nele mesmopertence a natureza. Desmitificando as supersticoes do mundoanimista, que havia atribuido erma alma as coisas, 0 progressoacabou por submeter-se a uma mistlficacao bern mais terrivel: ade urn mundo que transforma a alma do homem em coisa.Esquecendo-se de sua antiga unidade no mundo natural, 0homem moderno ficaria como que enfeiticado: "toda reiflcacao",observam Adorno e Horkheimer, "t: urn esquecimento".o tema do "retorno a natureza" volta sempre nareflexao adorniana sobre 0 progresso, tanto como vinganca danatureza brutalizada quanta como necessidade de"reconciliacao", Em "Juliette ou Raison et Morale", 0 "retorno danatureza" na o e simples regressao a urn estado anterior aclvilizacao e ao progresso, mas urn momenta da propriacivilizacao: Juliette nao encarna nem urn libido nao sublimadonem urn libido regressivo, mas 0 prazer intelectual da regressao, 0

    22Martin Jay. L'Imagination dialectique, Histoire de L'Ecole de Francfourt,Payor, Paris. 1977. pp. 295-296.

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    amor intetlectualts diaboti, 0 prazer de destruir a civilizacao comsuas proprias arrnas". Em 0 Eclipse de la Raison, Horkheimerformularia isso de outra maneira, apresentando 0 facismo comouma "sintese satanica da razao e da natureza, exatamente nooposto da reconciliacao dos dois extremos, que a filosofiasempre sonhou"23.o destino reservado as mulheres na civilizacao modernatern urn valor paradlgmatico da desumanizacao que, segundoAdorno, essa dupla premissa do progresso acarreta: 0nivelamento ou a rejeicao do qualitativamente diferente e 0controle da natureza. Portadora das marcas indeleveis de umadiferenca inassirnilavel imposta pela natureza, a mulher torna-se 0objeto predileto da dominacao, ela representa a natureza, numacivilizacao onde a gloria esta na opressao dessa ultima, e torna-seportanto "0 substrate de uma subordinacao sem fim no planoconceitual, de uma subrnissao sem fim na realidade". Enquantosigno mais visivel da impossibilidade de uma autonomia absolutado ser humano com relacao a natureza, ela atrai urn odio semlimite, do qual a violencia sadica revela a profundidade, bernmais do que toda indulgencia de que se enfeita 0 paternalismoburgues, A dorninacao exercida sobre a mulher e emblernatica dodestino dos homens modernos numa sociedade governada pelacoercao e pela reiflcacao.Privada de todo acesso ao estatuto de individuo, ela naopassa de "representante de sua especie", assim como os homensmodernos privados da sua individualidade tornarn-se "represen-tantes de uma especie, que 0 isolamento tornou semelhantes unsaos outros". Da mesma maneira que os indigenas das colonias ouos judeus entre os arianos, a incapacidade feminina de defender-se "confere-lhe urn titulo legal a opressao", Isso faz com que asmulheres representem uma minoria mesmo quando rnajoritarias.Essa irnpotencia, por sua vez, ao mesmo tempo que sua longaausencia do exercicio do poder confirmam sua proximidade danatureza. Mas essa proximidade, bern como a natureza ferninina",sao, na realidade, crlacoes da opressao, Aquilo que, na logicapatriarcal e burguesa e designado "pelo termo natureza nao passado estigma de uma multilacao social". Longe de ser ligada ao"instinto", a feminilidade e a condicao "a que cada mulher deverestringir-se por forca - uma forca masculina". Em outras pala-

    23DR, pp. 104-105, Horkheimer, L'Eclipse de la Raison, pp. 130-131.

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    vras: "a mulher enquanto ser supostamente natural e urn produtoda historia que a desnatura'

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    servar a memona da antiga injustica, contra a qual 0progressose insurgiu. Promessas de urn mundo melhor e da possivel abo-licao da fome na terra; promessas desse "elernento socialista doprogresso que permite a qualquer pessoa exercer qualquer funcao.Mesmo a logica quantitativa da troca e do pensamento "identifi-cante" e seu corolario, a comparacao, continha, em si, como pro-messa, 0 ideal de uma troca livre e justa. E verdade que esse idealserviu de pretexto para a injustica. E verdade tambern que a com-paracao, enquanto categoria de medida, foi utilizada para reduziro qualitativamente diferente a urn conjunto de deterrninacoesquantificaveis expelindo para uma alteridade inferiorizante tudo 0que nao se curvasse a suas normas quantitativas. Mas ao mesmotempo, a cornparacao constituiu 0 unico terreno no qual foi pos-sivel afirmar com legitimidade a igualdade de todos os sereshumanos, ou sua humanidade comum. Ao tornar legitima umacornparacao de posicao social dos oprimidosfas) com 0 dos se-nhores, ao abrir a possibilidade aos primeiros de dizer "nos tam-bern", 0 principio da identidade mostrou sua afinidade subterra-nea com a tendencia anti-autoritaria da Razao, que, como lembra-ram Adorno e Horkheimer, "nao prestam a dorninacao os leaisprestimos que as ideologias antigas haviam prestado". Com efei-to, 0 golpe assestado na legitimidade da dominacao constituiutalvez 0 unico progresso consumado na historia, pois que ele ali-mentou todas as revoltas contra a opressao e a injustica. Renun-ciar a comparacao, sob pretexto de respeito ao irrredutivelmentequalitativo, constituiria, para Adorno, "uma desculpa para voltar aantiga injustica". Em nossos dias, quando 0 "direito a diferenca"esta em vias de se enfeudar inteiramente a desigualdade, ao racis-mo e a xenofobia, essa observacao adquire seu sentido plen030.

    No plano historico, 0 balance da dialetica do progressoera amplamente negativo. Pois "enquanto 0 tecido do progressoe feito de sofrimento real, que nao diminui na proporcao do au-mento dos meios para suprimi-lo", a realizacao das perspectivasde progresso humano permanecia uma potencialidade ou umapromessa. A 1i~aoque Adorno tirou disso foi a rejeicao de todafilosofia posltiva da historia, que implicasse uma finalidade, leispre-estabelecidas e uma ternporalidade linear. Longe de ser umaprogressao em direcao a liberdade e a ernancipacao, tampouco anistorla poderia ser percebida como uma descida gradual ao

    30MG, pp. 155, 166; DR, pp. 17. 103; DN, pp. 119-120.

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    inferno. Ela contern a possibiJidade de rupturas que interrompemseu curso anterior e que se abrem a' qualquer coisa de radical-mente diferente: possibilidade ameacadora da qual a fil6sofo daEscola de Frankfurt fez a experiencia ap6s Dachau e Hiroshima.Mas essa possibilidade nao excluia a irru pcao do momentamessianico tao caro ao seu amigo Walter Benjamin. Nessa visaoda hist6ria, a passado poderia surgir a qualquer momenta sejacomo reaparicao do "eternamente sernelhante" - a dominacaoque jamais deixou de espreitar a humanidade - seja como mem6-ria das esperancas messianicas de uma rnudanca radical31.

    Apesar de seu pessimismo, Adorno se obstinara em suarecusa de ontologizar tanto a progresso como a declinio. Nocentro de seu procedimento dialetico encontra-se, evidentemente,a critica da Aufklarung, mas tarnbern as impllcacoes eplsternolo-gicas e politicas dessa critica. Essa maneira de proceder ja seanunciara nos anos 30, quando ele afirmava: "a interpretacao detoda realidade dada esta ligada a sua abolicao". Ora, a medidaem que a esperanca numa praxis realmente tranformadora sereduz, a necessidade de urn pensamento que resiste a realidadeexistente se imp6e como (mica recurso. Essa preocupacao animasua critica rigorosa das filosofias progressistas e anti-progressistasda hist6ria. Isso porque ambas ameacarn legitimar a ordem exis-tente, apagando para sempre aquila que na consciencia de suatransforrnacao possivel representa a utopia. As primeiras fazemisso naturalizando a que existe, tudo a que a humanidade criou eque, transformado em Jato posittuo, imp6e-se a consclenciahumana como evidente au inelutavel, a tal ponto que mesmo "aImaginacao revolucionaria c . . . ) envergonha-se de si pr6pria co-mo de urn utopismo, e degenera em conflanca d6cil nas tenden-cias objetivas da hist6ria". As segundas traduzem "0 desesperohist6rico em norma que e preciso respeltar": "pais que nao hou-ve progresso ate a presente, mas pode haver progresso". As duasfilosofias decorrem da mesma postura positivista segundo a qual"0 que as homens nao conseguiram, foi-lhes recusado ontol6gi-camente"32.

    Fiel ao seu metoda fragmentario, Adorno nao apresenta,em seus escritos, uma critica sistematica do progresso, nem uma

    31DR, p. 55 e Martin]ay, Adomo, p. 104.32Mc, pp. 158-159, 164-165; T. W. Adorno, "The Actuality of Philosophy", 1931,TekJs, n. 31, prlrnavera de 1977, p. 129; DN, p. 51; DR, p. 57.

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    teoria da hist6ria que pudesse servir de fundamento de tal critica.Ele esbocou, contudo, por aproxirnacoes sucessivas, uma tentativaadmiravelmente rica e matizada de problematizacao dialetica danocao de progresso. Para alern dos mitos burgueses e das nostal-gias reacionarias, do otimismo superficial dos marxo-positivistase da apologia mistificadora dos liberais, ele traz a discussao ascontradicoes e antinomias, os perigos e as promessas implicadasno progresso. Trabalhado por tens6es internas, seu pensamentonao repousa jamais e nao pode satisfazer-se com nenhuma con-clusao. A tonalidade dominante dessa sinfonia inacabada, contu-do, nao deixa de ser a melancolia e 0 pessimismo, a recusa desucumbir ao canto de sereia do progresso e da modernidade. 0ponto de partida de sua reflexao e a experiencia hist6rica da suageracao, mais precisamente, e a confrontacao do intelectual judeuda Europa Central com duas figuras perversas (seguramente muitodiversas) do progresso no seculo XX: 0 fascismo e a civilizacaoamericana. Nao e por acaso que 0 tom pessimista se acentua nosescritos dos anos 1944-48, La Dialectique de la Raison e MinimaMoralia, redigidas durante 0 exilio nos Estados Unidos e sob 0impacto direto da Segunda Guerra Mundial.

    Mas 0 conjunto dos seus escritos vincula-se ao mesmoprocedimento dialetico e a mesma tentativa desesperada de sal-var a esperanca (num futuro emancipado do drculo rnagico dafatalidade "progressista/regressiva".

    MICHAEL LOWY e ELENI VARIKAS sao pesquisadores do CentreNational de la Recherche Scleruifique (CNRS) de Paris