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1 A CRISE (2007-2012) Lineamentos para uma abordagem global Osvaldo Coggiola Universidade de São Paulo (USP) Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Professor Titular de História Contemporânea Programa de Pós-Graduação em História Econômica PROLAM (Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina) Università di Teramo Facoltà di Giurisprudenza Membro Estero del Collegio di Dottorato

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A CRISE (2007-2012) Lineamentos para uma

abordagem global

Osvaldo Coggiola Universidade de São Paulo (USP)

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) Professor Titular de História Contemporânea

Programa de Pós-Graduação em História Econômica PROLAM (Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina)

Università di Teramo Facoltà di Giurisprudenza

Membro Estero del Collegio di Dottorato

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ÍNDICE

1. DA PROSPERIDADE À CRISE, OU DA ILUSÃO À REALIDADE, 3

2. CAPITAL FICTÍCIO, CAPITAL FINANCEIRO, CRÉDITO E ESPECULAÇÃO, 14

3. O NOVO PAPEL MUNDIAL DA CHINA (E DOS “EMERGENTES”), 28

4. O BOOM ESPECULATIVO, 35

5. O CAMINHO PARA A CRISE, 44

6. O “ESTOURO DA BOLHA”, 50

7. AS RESPOSTAS DOS ESTADOS CAPITALISTAS E SEUS LIMITES, 65

8. A CRISE NA AMÉRICA LATINA (BRASIL INCLUÍDO), 75

9. EUA E CHINA NA CRISE MUNDIAL, 87

10. A CRISE NA (E DA) EUROPA, 97

11. A CRISE EM PERSPECTIVA SISTÊMICA, 114

12. AS REAÇÕES SOCIAIS, 123

13. LUTA DE CLASSES, CRISE POLÍTICA E CRISE INTERNACIONAL, 134

BIBLIOGRAFIA, 146

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1. DA PROSPERIDADE À CRISE, OU DA ILUSÃO À REALIDADE

Pertence à natureza da crise que uma decisão esteja pendente, mas ainda não tenha sido tomada. Também reside em sua natureza que a decisão a ser tomada permaneça em aberto

Reinhart Koselleck, Crítica e Crise. Um estudo acerca da patogênese do mundo burguês

A crise é o período ou locus temporal de uma transição, determinada por uma contradição, ou uma série delas, de um dado sistema. A raiz grega da palavra (krisis, krinein, do grego κρίσις,-

εως,ἡ) remete a um significado múltiplo, ou polivalente, de “escolha”, “decisão” e, simultaneamente, de “supressão” (ou “separar, romper”). Define-se como a perturbação temporária dos mecanismos de regulação de um sistema, de um indivíduo ou de um grupo. A universalização do termo para todas as áreas do pensamento é fenômeno recente. Na conhecida passagem de Antonio Gramsci, existe uma crise quando o "velho" insepulto já não é mais vigente e o "novo" ainda não se explicitou. Contemporaneamente, o uso indiscriminado do termo em todas as disciplinas das ciências sociais e humanas, e até na linguagem coloquial, lhe fez perder peso como categoria interpretativa, ou o banalizou ao ponto de lhe subtrair qualquer significado preciso.

A crise não é qualquer situação problemática, senão aquela em que se põe em jogo a própria existência de um sistema, pois não é uma área ou parte deste a afetada, mas o seu próprio mecanismo ou metabolismo como um todo, obrigado pela crise a uma “escolha” que implica, por sua vez, a supressão de parte (ou todo) dessa mesma existência. Na definição de Gianfranco Pasquino, no Dicionário de Política coordenado por Norberto Bobbio, a crise é “um momento de ruptura no funcionamento de um sistema, uma mudança qualitativa em sentido positivo ou negativo, uma virada de improviso, algumas vezes até violenta, e não prevista no módulo normal segundo o qual se desenvolvem as interações dentro do sistema em exame”. Caberia acrescentar que os elementos deflagradores do evento/crise já faziam parte do próprio sistema que, no entanto, parecia ignorá-los (caso contrário, os teria atacado antes que agissem).

Alain Lipietz, economista, num dicionário especificamente marxista, remeteu à origem médica do termo como “fase aguda de um processo, em que se decide a cura, a morte ou o sursis” do seu sujeito (os gregos também o usavam para se referir ao impasse de uma batalha), o que, aplicado à economia (capitalista ou não), designaria os períodos de mudança estrutural, distinguindo-os daqueles de “estabilidade estrutural” em que as relações sociais “se reproduzem sem mais mudanças do que as quantitativas”. A crise seria a passagem do domínio do quantitativo para o domínio do qualitativo, ou da “transformação da quantidade em qualidade”, o que se expressa na crise mundial corrente numa dimensão inédita. Na disciplina econômica, é comum usar o termo “crise” em contraposição (oposto) ao de “prosperidade”, sem especificar se a crise é uma componente estrutural da economia em questão (ou seja, se “prosperidade” e “crise” são duas faces, embora diversas e opostas, de uma mesma moeda) ou um fenômeno de caráter aleatório, portanto evitável.

As principais análises econômicas da crise, em geral, esquivam essa questão metodológica prévia. A discussão semântica não é, portanto, supérflua. O aparente consenso de todo o espectro ideológico e político no uso do termo “crise” para os eventos do último quinquênio, se desfaz ao se considerar o significado que se lhe confere. Em toda crise há elementos aleatórios, resta saber se seu significado se esgota neles. A crise pode também ser considerada manifestação de uma tendência histórica (objetiva) do sistema considerado, para além de seus elementos singulares. Ou o mesmo sistema pode ser considerado como sendo definido por uma alternância eterna de fases de prosperidade e crise, não sendo esta última portadora de elementos que poderiam precipitar sua dissolução.

O uso da categoria de “crise” se tornou cada vez mais comum nas análises econômicas a partir da década de 1970, o que refletiu, de modo direto ou indireto, a percepção de um fenômeno

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desse tipo ao longo das quatro últimas décadas da história mundial. As mais conhecidas dentre as análises de natureza abrangente do período (Immanuel Wallerstein, Giovanni Arrighi)1 se inspiraram na proposta feita pelo economista russo Nikolai Kondratiev na década de 1920 sobre os “ciclos longos” da economia mundial, definindo o período pós-1970 como a “fase depressiva” (ou “fase B”) de um desses ciclos, acrescentando à intuição de Kondratiev a teoria histórica da “longa duração” de Fernand Braudel (explicitamente inspirada na mais restrita, e inacabada, proposta do russo-soviético).2 A validade das teorias da crise só pode ser constatada ou refutada no confronto com a própria realidade da crise, como fenômeno geral na história do capitalismo.

A especificidade da fase atual da crise econômica, iniciada no segundo semestre de 2007 nos EUA, foi a de por em evidência suas consequências em todos os âmbitos da vida política e social, e nas relações internacionais. As suas principais abordagens, porém, possuem um caráter fragmentado, isto é, não global ou de vocação totalizante, sem falar da natural dificuldade de abordar processos em pleno desenvolvimento, que ainda não desfraldaram todas as suas potencialidades. Uma abordagem pluridisciplinar, por outro lado, não poderia consistir na simples justaposição de diversos ângulos (econômico, social, político, cultural) da análise, mas em sua articulação hierarquizada em um conjunto coerente e compreensivo.

A tarefa, portanto, só pode ser objeto de um trabalho plural e coletivo, além de consciente de suas próprias limitações, ou seja, de seu caráter aproximativo, aberto, e de degrau em direção de uma compreensão progressiva. A base econômica da crise, sem a qual os outros aspectos, provavelmente, só teriam ficado num estágio virtual, deveria ser o ponto de partida desse esforço. É preciso salientar, por outro lado, que uma imensa bibliografia (livros, artigos, informes, etc.) já foi produzida a respeito, obrigando também a uma triagem seletiva, além de reforçar a necessidade do trabalho em equipe a partir de uma elementar afinidade metodológica ou teórica. O lugar da América Latina, do Brasil em especial, nessa crise, ocupa, em nosso caso, uma localização diferenciada e privilegiada.

Alan Beattie resumiu muitas opiniões ao afirmar que “a crise financeira que começou em 2007 e explodiu em todo o mundo em 2008 é um lembrete ao mesmo tempo do quão frágil e do quão reversível é a história do progresso humano (mas) com o longo decorrer da história, o tumulto que se iniciou com a contração de crédito em 2007 e foi se ampliando até se tornar

1 Giovanni Arrighi, em O Longo Século XX, fez um estudo histórico dos ciclos do capitalismo baseados nos ciclos

sistêmicos de acumulação (CSA). Sua idéia é que na história do capitalismo há alternâncias de épocas de expansão material e épocas de expansão financeira (financeirização). O CSA é composto de duas fases: a expansão material e a expansão financeira. Ao final de uma expansão financeira há mudança do ator principal do processo histórico e início de um novo ciclo. A financeirização é a fase final dos grandes ciclos capitalistas. A expansão material do sistema cresce até chegar a um ponto em que a velocidade do retorno do investimento no comércio e produção não mais atende aos interesses de lucro do capitalista. Nesse ponto há uma ruptura no sistema fazendo com que as transações tornem-se essencialmente financeiras, para se aumentar a velocidade de retorno do capital. Teria havido quatro ciclos sistêmicos de acumulação do capitalismo. O primeiro foi o das cidades italianas Gênova e Veneza (séculos XV a XVII), o segundo foi o holandês (séculos XVI a XVIII), o terceiro foi o britânico (séculos XVIII a XX) e o quarto o norte-americano (século XIX até os dias de hoje). Na análise, a estrutura do ciclo se repetiria: a expansão material atinge o seu ápice, há uma financeirização do modo de produção e a conseqüente “queda do império”. A financeirização ocorreu, por exemplo, em Gênova com a criação da "Casa di San Giorgio", uma instituição privada dirigida por banqueiros que controlava as finanças públicas da cidade-estado; seria a mesma das apostas hodiernas em mercados de derivativos, e de bônus do Tesouro movimentando trilhões de dólares ao redor do mundo em segundos sem produzir um alfinete sequer. Observa-se que antes de acabar um ciclo, ou seja, antes do findar da fase de financeirização, uma nova fase de expansão material se inicia, com um novo ator expandindo-se materialmente. Arrighi defende que grandes expansões materiais só ocorreram quando um bloco dominante acumulou poder mundial suficiente para dominar o processo. Até agora este novo ator ainda não apareceu. Arrighi levantou a possibilidade de que o bloco asiático, capitaneado pelo Japão, assumisse o papel de ator principal do início do “quinto CSA”. Na época em que escreveu seu livro a crise asiática ainda não tinha eclodido. 2 Cf. Osvaldo Coggiola. Ciclos longos e crises econômicas Estudos. São Paulo, Centro de Estudos do Terceiro Mundo

(FFLCH/USP), nº 34, novembro 1992.

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uma emergência financeira global em 2008 será visto como uma crise do capitalismo, mas não sua crise terminal”. O autor não deixa claro se essa “crise terminal” existe (ou existirá). É óbvio, por outro lado, que só poderia ser terminal uma crise (do capitalismo) que visse emergir uma força histórica disposta a substituir o capitalismo por outro sistema (modo de produção da vida social), e dotada dos meios para fazê-lo. A aparentemente bizantina querela acerca do caráter “final” de uma crise remete à própria noção de crise. Beattie é representativo da opinião, amplamente majoritária, de que a crise é uma perturbação de um cenário de normalidade.

Nas décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial, ulteriormente chamadas como “os trinta anos gloriosos” (1945-1975) do capitalismo, as crises que as pontuaram foram “recessões” de curta duração: aconteceram em 1948-49; 1952-53, 1957-58, 1960-61, 1966-67, 1970-71. Elas foram de curta duração em relação à tendência geral expansiva da economia capitalista mundial. A expansão econômica se apoiou num crescimento sem precedentes da produtividade do trabalho: ela cresceu 3% ao ano, em média (a média para todo o período de 1870 a 1973 foi de 2,4% anual).

Crescimento anual do PIB (%) 1913-1998

A crise iniciada na década de 1970 inaugurou um longo período de desaceleração da economia mundial, sendo mais semelhante à depressão do último quartel do século XIX, do que à crise mundial da década de 1930.

Taxa média de crescimento mundial do PIB, em %

4,93,8

2,7

10123456

60-

69

70-

79

80-

89

90-

93

O caminho da crise econômica atual foi pavimentado por uma série de crises financeiras: a crise da dívida externa dos países latino-americanos (1982), que se prolongou por toda a

Países 1913-1950 1950-1973 1973-1998

EUA 2,84 3,93 2,99

Japão 2,21 9,29 2,97

Alemanha 0,3 5,68 1,76

Mundo 1,85 4,91 3,01

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década; a crise bancária do sistema de poupança e empréstimos (savings and loans) dos EUA, em 1985, durante o governo Reagan, que custou US$ 500 bilhões; a quebra da bolsa de Nova York (1987);3 o estouro das bolhas acionária e imobiliária no Japão (1990), que fez desaparecer US$ 3,2 trilhões da circulação econômica internacional (5% do PIB mundial), e foi seguido de mais de uma década de recessão, estagnação e deflação no país; a recessão americana de 1990-1991, de oito meses de duração; a crise do sistema monetário europeu e o ataque à libra esterlina (1992) que fez a fama mundial do especulador (“investidor”) George Soros; a crise do México (1994-1995); a crise asiática (1997); a quebra do fundo especulativo Long Term Capital Management, LTCM (1998) nos EUA; a crise russa (1998); a desvalorização do real no Brasil (1999); a crise da Turquia (2001); a crise da Argentina (2001-2002); o estouro da bolha acionária do Nasdaq (a Bolsa de Valores das empresas de “novas tecnologias”) e a recessão nos EUA (2000-2001).

EUA: falências e suspensões anuais de bancos

Para o ex Secretário do Tesouro dos EUA, economista chefe do Banco Mundial, Lawrence Summers, “durante os últimos 20 anos grandes distúrbios financeiros ocorreram aproximadamente a cada três anos”. A partir de 1970, tivemos 17 “eventos de crise” em três décadas e meia, um a cada dois anos, em média; as crises passaram, aparentemente, a ser a norma da evolução econômica mundial, sendo a exceção o sexênio compreendido entre 2002 e 2007. A excepcional expansão econômica desse período concluiu numa crise sem precedentes, surpreendente pelo seu volume, profundidade e abrangência.

A base metodológica para vincular a profundidade da crise com a abrangência da precedente fase expansiva da economia capitalista fora dada por Karl Marx, em O Capital, que: “A enorme força produtiva, em relação à população, que se desenvolve dentro do modo de produção capitalista e, ainda que não na mesma proporção, o crescimento dos valores-capital (não só do seu substrato material), que crescem muito mais depressa do que a população, contradizem a base cada vez mais estreita em relação à riqueza crescente, para a qual opera essa enorme força produtiva, e as condições de valorização desse capital em expansão. Daí as crises”.

3 A Bolsa de Wall Street desmoronou em outubro de 1987, depois da divulgação de dados que mostraram um

importante déficit comercial e um aumento das taxas de juros do Banco Central alemão. O inchaço da Bolsa de Nova York tinha acompanhado a deflação da Bolsa de Tóquio: 100 dólares de “valor real” das empresas estavam cotizados em ações de 1000 dólares. A bolha estourou: em um dia, o índice Dow Jones perdeu 22,6%; outros índices registraram importantes perdas, mostrando a interdependência dos mercados financeiros mundiais, no “primeiro craque da era da informática”. O índice Dow Jones caiu 40% em um ano; as empresas dos EUA perderam US$ 7 trilhões. Uma grande parte dos bancos teve suas dívidas “securitizadas”.

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As crises por sua vez, só atingem sua plenitude no mercado mundial: “As crises do mercado mundial devem ser concebidas como a concentração real e a compensação violenta de todas as contradições da economia burguesa. A crise é o violento restabelecimento da unidade entre momentos independentes e a violenta separação de momentos que, essencialmente, são uma única coisa. Todas as contradições da produção burguesa atingem coletivamente a explosão nas crises mundiais gerais; nas crises particulares (particulares segundo o conteúdo e a extensão), só de maneira dispersa, isolada, unilateral” (Karl Marx). Uma crise não é mundial só pela sua extensão geográfica, mas por deitar suas raízes e afetar os movimentos (produtivos, comerciais, financeiros) do mercado mundial.

Crescimento (%) do PIB mundial e da OCDE (1961-2009)

Na fase histórica recente, as diversas etapas da crise da produção capitalista evidenciaram as contradições acumuladas ao longo de várias décadas. A crise começou a evidenciar-se nos países desenvolvidos no final da década de 1960, e ficou declarada em 1971, com o calote internacional dado pelos EUA ao declararem que o dólar não seria mais conversível em ouro. A criação da reserva comum de ouro, em 1961, já livrava os EUA de parte da responsabilidade pela manutenção do preço do metal a 35 dólares a onça troy. O passo seguinte foi a renúncia unilateral pelos EUA da obrigação de prover ouro aos compradores privados ao preço de 35 dólares a onça, em 1968. Três anos depois, produziu-se a decisão de fechar o guichê do ouro também aos compradores oficiais (institucionais). Os EUA renunciaram igualmente a suas obrigações informais como país de moeda de reserva ao obstruir o acesso aos seus mercados de capital; a imposição de um aumento tarifário de 10% sobre as importações, em agosto de 1971, mudou as regras que governavam o comércio internacional (a parte exportada da produção mundial passara de 8,5% para 15,8%, entre 1955 e 1974).

As reservas em dólar dos demais países, cujos saldos comerciais favoráveis com os EUA tinham crescido espantosamente nas três décadas precedentes, foram transformadas em títulos submetidos à política monetária dos EUA, que repassaram, usando seu domínio da única moeda de troca mundial, a sua própria crise para o Terceiro Mundo e para seus concorrentes no mercado mundial, especialmente para Europa e o Japão. No campo da teoria econômica marxista, ficaram defasadas as teses de John Strachey (Contemporary Capitalism), de Paul Baran e Paul M. Sweezy (Monopoly Capital), de Cornelius Castoriadis (Capitalisme et Révolution), e, até certo ponto, de Ernest Mandel (O Capitalismo Tardio) que enfatizavam a

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eficácia demonstrada das técnicas anticíclicas ou da política dos monopólios, ou de uma combinação de ambas, para regular a marcha da economia capitalista e evitar crises graves.

A partir de 1973/74, a crise do petróleo (aumento espetacular dos preços) tornou evidente a existência de uma crise econômica geral, e lançou as bases, através dos mercados secundários da divisa americana, para o espetacular desenvolvimento do capital especulativo. Nos EUA, em 1974, a produção caiu 10,4%, a capacidade ociosa da indústria foi até 32% e o desemprego situou-se na casa dos 9%. Entre 1971 e 1975 aprofundou-se o desemprego em todos os países centrais, sinalizando a desaceleração da economia em geral. A acumulação de capital, durante mais de 20 anos, tivera só recessões leves, como em 1960/61 e 1966/67, mas agora o número de desempregados passou de 10 milhões para 17 milhões. Nas “recuperações” posteriores, essas quedas não foram realmente superadas.

No conjunto da economia mundial, tudo aconteceu como se, devido à internacionalização do capital, o terreno de enfrentamento entre os grupos industriais e financeiros - até então essencialmente nacional - fosse transferido para o mercado mundial, no qual cada um tentou conquistar a posição mais vantajosa em mercados mais estreitos, em meio a uma concorrência exacerbada. Dois processos se desenvolveram paralelamente a partir de meados dos anos 1970, de maneira ora convergente, ora, cada vez mais, contraditória: a valorização cada vez mais fictícia do capital através da especulação financeira, e a reestruturação produtiva, destinada a aumentar o controle e a exploração do trabalho, reestruturação onde encontraram seu espaço as NTIs (novas tecnologias da informação, como a Internet) que hoje fazem parte de nossa vida cotidiana.

Desemprego (%) 1950-1998

Raphael Kaplinsky concluiu que "a introdução de novas tecnologias de automação, associadas ao aprofundamento das crises econômicas, deve levar a elevados e duradouros níveis de desemprego, provavelmente com um excesso de 12% da força de trabalho. As tendências contrárias oferecidas por novos produtos, pela busca de novas habilidades, pela introdução da semana curta e pela resistência às novas tecnologias de automação, não trarão alterações substanciais a essa perspectiva" – que implicava em um aumento brutal do desemprego mundial (a população economicamente ativa - PEA - mundial era estimada, pela OIT, em 1986, em 2 bilhões de pessoas).

As recessões de 1974/1976 e de 1980/1982 impulsionaram a “crise da dívida” de 1982 e a crise do crédito na década de 1980, em processo marcado pela crise da Bolsa de Nova York em 1987. As transformações globais iniciadas nos anos 1980 não se restringiram ao acabamento do novo sistema monetário mundial, que já tinha sido resolvido nos anos 1970, e sacramentado pela política monetária de Paul Volcker, presidente do Federal Reserve (Banco Central) dos EUA, durante os governos de Jimmy Carter e Ronald Reagan. O crescimento do PIB per capita nos EUA foi mais elevado no período de câmbio flutuante de 1974-1989 (2,1% ao ano) do que durante o período Bretton Woods de 1946-70 (2% ao ano) ou mesmo durante o período do “padrão ouro” de 1881-1913 (1,8% ao ano). Mas, entre 1973 e 1993, a renda média disponível aos 20% mais pobres caiu quase 23%, de US$ 17.601 para US$ 13.596 anuais por família, estreitando o mercado para os bens de consumo de massa (bens-salário).

De 1910 a 1970, a parcela da renda nacional que pertencia aos mais ricos decresceu progressivamente em todo o mundo. Essa tendência foi revertida dos anos 1970 em diante,

Países 1950-1973 1974-1983 1984-1993 1994-1998

EUA 4,6 7,4 6,7 5,3

Japão 1,6 2,1 2,3 3,4

Alemanha 2,5 4,1 6,2 9

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sendo esse fenômeno particularmente visível nos EUA e na Grã-Bretanha, onde a proporção da renda total em mãos do 1% mais rico caiu de 20% em 1910 para 10% em 1950. Hoje a parcela possuída pelos super-ricos nesses países voltou ao nível de 1910. Durante os últimos 30 anos, a renda dos 20% mais pobres nos EUA caiu 4%, enquanto a renda do 1% mais rico subiu... 270%. Durante o mesmo período, a parcela do setor financeiro nos lucros de todo o setor corporativo subiu de 10% para 40%. O aumento na “desigualdade social” parece ter estado intimamente ligado com o aumento do setor financeiro. No setor produtivo (os EUA detinham mais de 50% da produção do mundo capitalista, ao fim da Segunda Guerra Mundial) os EUA retrocederam relativamente, em relação aos seus concorrentes no mercado mundial, de modo espetacular, em todo o período de pós-guerra, o que acabou se expressando na balança comercial crescentemente deficitária do país.

EUA: déficit do comércio externo (US$ bilhões)

Os enormes déficits comerciais dos EUA foram financiados predominantemente por fluxos de capitais provenientes do exterior sob a forma de empréstimos às empresas, garantidos pela economia e o dólar norte-americano. O dólar enquanto tal garantiu, portanto, aos capitalistas, um canal de acumulação. O capital internacional, precisando encontrar novos circuitos de autovalorização, consegui-o passeando pelo mundo, com investimentos de carteira ou, em menor medida, produtivos (em proporção de 85% para os primeiros contra 15% para os segundos). O que mais pesava na decisão de investimento era o risco de cambio: variações da taxa de câmbio levaram a colapsos dramáticos (como veio a acontecer na Ásia, na Rússia e no Brasil). Formas de dolarização direta ou indireta (como o currency board argentino) lhe fizeram frente, garantindo margens de segurança aos capitalistas.

Durante a crise de superprodução de capital, por outro lado, o “desemprego do trabalho” é uma consequência inevitável do “desemprego do capital”. Só na Europa, mais de trinta milhões de trabalhadores não reencontraram empregos, depois das crises de 1973–1975 e de 1979–1982.4 Os dados acerca do custo fiscal geral das crises entre 1977 e 1995 foram também expressivos. O custo do Japão foi estimado em 20% do seu PIB, contando a partir de 1992, para enfrentar a estagnação deflagrada com a desvalorização de riqueza posterior à especulação da Bolsa de Valores e de imóveis. Na Noruega, entre 1987/1993, o custo chegou a

4 Nos EUA, entre 1973 e 2007 os salários reais por hora de trabalho caíram 4,4%, enquanto no período 1947-1973 o

mesmo salário horário crescera 75%.

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8% do PIB; na Espanha, 1977/1985, a 5,6% do PIB; na Suécia, 1991, a 4,0% do PIB; nos Estados Unidos, 1981-1991, a 3,2% do PIB.

Entre 1981 e 1991, mais de 1,8 milhões de empregos na área industrial desapareceram nos Estados Unidos. Na Alemanha, os fabricantes demitiram trabalhadores ainda mais rapidamente, eliminando mais de 500 mil empregos em um período de 12 meses. O declínio dos empregos no setor da produção fez parte de uma tendência de longo prazo para a substituição de seres humanos por máquinas no local de trabalho. Esse aumento global do desemprego, aparentemente irreversível, esteve ligado à operação do sistema financeiro internacional. As mudanças no sistema financeiro mundial, ocorridas a partir do final da década de 1970, exacerbaram os problemas do desemprego global. A primeira delas foi o aumento da mobilidade internacional do capital como resultado do relaxamento dos controles estatais, o chamado “neoliberalismo”. Este iria, inicialmente, promover um período de crescimento econômico sem precedentes, seguido de uma crise proporcional a esse mesmo crescimento.

As contradições precedentes, porém, não tinham sido resolvidas, sua resolução foi adiada, dando uma sobrevida ao processo de acumulação com predomínio da valorização financeira do capital, que gerou as condições para que as contradições reaparecessem, agravadas. Diversos subprodutos financeiros surgiram, como os derivativos sobre empréstimos imobiliários, que foram empacotados e distribuídos por “fundos de investimento”, perfazendo uma espiral de valorização fictícia do capital que encontrou rapidamente seus limites.5 Na década de 1990, os bancos centrais de vários países utilizaram seus recursos para prestar socorro ao capital financeiro falido, começando pelo México em 1994, onde o governo norte-americano (Clinton) foi obrigado a usar U$ 47 bilhões tirados do tesouro norte-americano para conter o efeito em cadeia da onda especulativa contra os “países emergentes”.

Em 1997, na Ásia, a crise atingiu as moedas da Coréia do Sul, Filipinas, Indonésia e Malásia, que receberam US$ 60 bilhões do FMI. Em 1998, na Rússia, o mesmo FMI entrou com um pacote de U$ 22 bilhões, diante da quebra do país, com a desvalorização do rublo e o calote nos pagamentos externos. Nos EUA, houve a quebra do Long Term Capital Management, um dos maiores fundos de investimento. No mesmo ano, o Brasil sofreu um ataque especulativo, tendo recorrido também ao FMI, que emprestou US$ 41 bilhões supostamente para defender o “câmbio fixo” (o empréstimo foi na verdade usado para salvar os “investidores” expostos no Brasil, financiando a fuga de capitais). Em setembro de 2001, o episódio das Torres Gêmeas paralisou o mercado mundial. Os bancos centrais injetaram U$ 230 bilhões para dar “liquidez” ao mercado, isto é, para evitar a falência generalizada. E, em dezembro de 2001, explodiu a crise (calote geral) da Argentina.

Os “tigres asiáticos” (Cingapura, Hong Kong, Coréia do Sul e Taiwan) tinham em comum o elevado grau de investimento e de poupança, além de mão de obra qualificada, e basearam seu crescimento na poupança interna e na produção de exportáveis. Posteriormente, os investimentos foram alavancados pela entrada de investimento estrangeiro direto. O regime de câmbio fixo atrelado ao dólar estimulava a tomada de empréstimos, mas aumentava a exposição dos países. Quando as exportações caíram devido à valorização das moedas locais,

5 Derivativos são títulos derivados de ações ou obrigações, que especulam com alterações de preços no futuro.

Geralmente se trata de negócios em que, num determinado prazo, outro papel ou outra mercadoria devem ser comprados ou vendidos a um determinado preço. Derivativos negociados em bolsas ou fora de bolsas também podem ser usados como garantia para outros negócios em bolsa ou para créditos. Quando esses derivativos perdem seu valor subitamente, afetam também o negócio que deveriam garantir. No caso dos derivativos dos créditos hipotecários subprime, os tomadores de empréstimos não tinham condições de renda para assegurar as condições dos contratos em horizontes de várias décadas, as instituições financeiras criaram então mecanismos de repasse do risco de não pagamento das hipotecas. São os mercados derivativos de risco de inadimplência, onde os “agentes econômicos” apostam nas hipóteses dos contratos serem ou não honrados.

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e à recuperação da economia norte-americana, o capital estrangeiro iniciou um processo de saída. A crise explodiu, em 1997, com a flutuação da moeda tailandesa e terminou com a Coréia do Sul; em Hong Kong, a taxa de juros chegou a atingir 200% anuais na tentativa de conter a saída de capitais.

Em 1998, na fase final da crise dos tigres asiáticos, uma nova crise levou à quebra do fundo LTCM - Long-Term Capital Management. O fundo apostava que os juros pagos por títulos dos governos de diversos países convergiriam no longo prazo, e negociava pequenos diferenciais. O calote da dívida russa levou à fuga para títulos da dívida americana, e o LCTM teria que vender títulos do tesouro norte-americano para saldar suas dívidas, provavelmente derrubando o preço destes no mercado, e forçando a elevação das taxas de juros americanas. O fundo foi liquidado após 2 anos, mas precisou de uma ajuda de US$ 3,65 bilhões dada pelos bancos americanos convocados pelo FED para o resgate. Ao FED, sobrou a tarefa de promover um corte emergencial nas taxas de juros. Na Rússia, em 1998, o processo de abertura e liberalização econômica elevou o déficit orçamentário, que tinha que ser pago com privatizações e elevação da taxa de juros. A queda do preço das commodities, e a desmontagem de parte do parque industrial devido ao fim dos subsídios estatais, além de problemas internos com corrupção, aumentaram o risco para os investidores estrangeiros.

O governo russo acreditava ser capaz de manter o câmbio fixo esperando uma recuperação dos preços das commodities, mas foi obrigado a decretar moratória por 90 dias quando surgiram denúncias de corrupção envolvendo o sumiço de US$ 5 bilhões das verbas destinadas pelo FMI e Banco Mundial para combate da crise. As bolsas russas caíram 75%, os bancos não conseguiram atender os depositantes, o Banco Central não conteve a fuga de capitais e apenas queimou reservas internacionais, levando a decretação de 90 dias de moratória, e redução de mais de 25% do PIB de 1999 em relação ao ano de 1998. A crise russa elevou o Brasil ao status de “bola de vez”, mas a situação do país já vinha se degradando devido à manutenção de juros elevados para atração de capitais estrangeiros; desigualdade de renda e desemprego; abertura comercial generalizada e moeda valorizada, prejudicando as exportações e fraco crescimento mesmo com a renovação do parque industrial; corte de despesas públicas para geração de superávits para financiar a dívida pública interna e externa. O regime de câmbio fixo teve que ser alterado, sendo criado um “regime de bandas cambiais” e realizada uma maxidesvalorização do real.

A crise da Argentina, em finais de 2001, foi emblemática pelo fato do país representar um modelo de neoliberalização e de total curvatura ao modelo pregado pelo “Consenso de Washington”: liberalização da economia, privatização e conversibilidade da moeda. A política que mantinha o câmbio fixo e lastreava os passivos monetários à existência de reservas em dólares foi indicada como responsável pela vitória sobre a hiperinflação, além de permitir crescimento considerável e conseguir vultosos fluxos de investimentos externos. A crise dos países emergentes, entretanto, agravou a vulnerabilidade do país, e a desvalorização do real, moeda do principal parceiro comercial, pôs em xeque não só a economia argentina, mas a continuidade do Mercosul. A incapacidade de pagamento do país tornou-se evidente e os saques bancários, fuga de capitais e de divisas levaram a falência do sistema bancário em dezembro de 2001, com o confisco das poupanças e uma explosão social devido ao aumento drástico do desemprego e miséria.

A crise-revolução na Argentina não foi uma exceção mundial, mas o ponto avançado de um processo geral de aprofundamento das contradições capitalistas internacionais e da luta de classes. A crise mundial - do craque asiático de 1997 à desvalorização da moeda brasileira em janeiro 1999 - levou ao refluxo massivo de capitais dos mercados emergentes, culminando no calote da dívida argentina. O default da dívida pública foi de US$ 155 bilhões, o maior calote soberano da história: a soma total do calote superou US$ 260 bilhões. O retrocesso do Mercosul foi impressionante: o PIB em dólares da região caiu 40%, a soma de seus “riscos-

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país” chegou a 10.000 pontos, o financiamento externo foi interrompido, o endividamento interno e externo atingiu 500 bilhões de dólares. Em 2002, o comércio entre os quatro países do bloco chegou aos 23 bilhões de dólares, quase 50% abaixo do pico de 41 bilhões de dólares de 1997. A deserção do FMI na crise argentina eliminou o “condão mágico” que, desde a crise mexicana de 1994 (passando pela asiática de 1997, a russa de 1998 e a brasileira de 1999) tinha impedido a generalização da crise financeira.

A crise finalmente atingiu o centro da economia mundial, no mercado das ações das empresas de “novas tecnologias”, as dotcom, que, entre 1998 e 1999, totalizou crescimento de US$ 5 trilhões sem crescimento similar dos lucros das empresas, que muitas vezes sequer tinham ativos reais, representando apenas projetos de negócios montados para IPO ou venda. O estouro da bolha levou ao derretimento de US$ 4 trilhões de ativos financeiros, amplamente repercutidos na redução de investimentos e na desaceleração da economia americana no ano seguinte, potenciada pelos atentados de 11 de setembro de 2001 e o fechamento temporário dos mercados financeiros. A crise das dotcom levou à deterioração do crédito, inadimplência no crédito imobiliário, falências pessoais e deflação global. O FED respondeu com corte de juros de cinco pontos percentuais, levando a taxa básica para 1.75% a.a. Nesse momento, eclodiram os episódios de fraude de balanços e falência da Enron, maior vendedora de energia americana, e da Worldcom. Diante da ameaça de propagação das falências, o governo adotou políticas agressivas de aquecimento interno e multiplicador de renda através do setor imobiliário, com redução de juros e nas despesas financeiras. Tais políticas foram decisivas para engendrar um período de elevado crescimento econômico entre 2002 e 2007.

Nesse quadro convulsivo e de crise, a expansão do mercado mundial, com agregação contínua de novos espaços de valorização, ou reformas e reestruturações dos antigos, e com a tendência para a globalização do trabalho assalariado e do exército industrial de reserva, ocorreu com o objetivo da classe capitalista se contrapor à tendência à queda da taxa média de lucro, derivada do aumento da composição orgânica do capital, tendência dominante no desenvolvimento capitalista.6 Ao longo do século XX, o comércio mundial cresceu cada vez mais rápido do que a produção, e as transações externas de capital superaram cada vez mais os negócios internacionais de mercadorias. Entre 1970 e 1990, no entanto, a taxa de crescimento da economia mundial caiu pela metade da registrada nas décadas precedentes.

Na fase final de uma crise, a rentabilidade só se recompõe se um processo de depuração de quebras e fusões “limpa” o mercado das empresas menos lucrativas. Na crise pós-1970 não se produziu um craque geral tipo 1929, mas a somatória dos colapsos econômicos acontecidos em quase todos os países periféricos, e em segmentos das economias centrais, pode comparar-se com a “Grande Depressão”. A massificação do desemprego, as ondas de fusões, a reestruturação forçosa de todas as empresas, evidenciam a consumação de um grande processo de perdas, falências e trocas de propriedade. No pós-guerra houve postergação do “saneamento” dos capitais obsoletos, com medidas de resgate instrumentadas pelos Estados.

Os auxílios estatais são habitualmente outorgados aos bancos em perigo, mas também mantêm em pé empresas devedoras e insolventes. Através destes salva-vidas demarca-se a crise à órbita financeira e se freia sua extensão à esfera produtiva. A desvalorização de capitais

6 A taxa geral (ou média) de lucro é a força impulsora da produção capitalista. A lei fundamental da concorrência

capitalista não é a lei da oferta e a demanda entre mercadorias (os preços de mercado), mas a lei que rege a concorrência entre capitalistas (a taxa de lucro média e os preços de produção), que regula a distribuição da mais-valia entre eles, segundo a massa de capital com que cada um participa no comum negócio de explorar trabalho assalariado. Em situação com tendência para o aumento da taxa de lucro, a inversão em capital fixo e circulante aumenta, e o desemprego cai diante da maior oferta de emprego. O capital está, nessas fases, em condições econômicas de conceder melhorias transitórias aos trabalhadores. No ponto mais alto da fase expansiva, quando a economia capitalista entra na fase de crescimento lento, parte do capital adicional começa a ser expulso da produção porque a taxa média de lucro não compensa seu investimento, o desemprego aumenta, na proporção em que a inversão cai.

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excedentes fica assim adiada, mas também se neutraliza a recuperação plena de taxa de lucro. As fortes convulsões financeiras que se sucederam periodicamente desde o craque da Bolsa de Nova York de 1987 (desvalorizações europeias, Baring Brothers, insolvência no Japão, “efeito tequila” mexicano, crise asiática) popularizaram a interpretação da crise como um fenômeno primordialmente especulativo. Partindo da crítica ao “inchaço da bolha”, convocou-se a “disciplinar o capital financeiro” e a “controlar os movimentos especulativos internacionais”. O objetivo seria impedir que o “capital industrial são” continuasse asfixiado pela “ociosidade financeira” da “economia-cassino”.7

Produziu-se então uma sequência de crises econômicas, interrompidas por "recuperações" frágeis e curtas. Para confrontar essa tendência, o capital global levou a níveis recordes a acumulação de capital, com elevação das taxas de exploração da força de trabalho (aumento da produtividade) e a potenciação de novas crises. O movimento acelerado surgia da própria crise do capital, e da tentativa de saída através do aumento da sua composição orgânica, aumentando a taxa de mais-valia e, portanto, a taxa de lucro de cada capital, acionando o mecanismo que produz a queda da taxa média de lucro. O movimento principal foi, porém, a valorização fictícia do capital.

Bill Gross, analista mor da Pimco (Pacific Investment Management Company, um dos principais fundos de investimento mundiais), “descobriu”, no início do século XXI, que os preços dos ativos não eram mais uma função dos movimentos da “economia real”, mas o contrário: "A economia real está sendo movida pelo preço dos ativos, os quais, por sua vez, são influenciados por fluxos financeiros de origem, composição e longevidade sem precedentes na história". Nos mercados hodiernos, a generalização do movimento de alta nos preços dos ativos - com forte aumento dos prêmios de risco - conta com a influência decisiva dos mercados de derivativos e com a expansão dos fundos de hedge que operam com elevada "alavancagem".8 Esse não parece ser um dado de conjuntura, mas o de uma fase histórica do capitalismo, dado o volume sem precedentes atingido por esse mercado. Trata-se de um fenômeno qualitativamente novo, na história da economia capitalista (dado esse volume)? O fenômeno em si não era novo: a questão do capital portador de juros, do capital fictício e da especulação financeira já fora abordado por Karl Marx, em O Capital (Livro III, Volume V) há quase um século e meio.

A crise (econômica), por outro lado, sendo parte orgânica do ciclo do capital, não é “autônoma”, isto é, não possui completa independência das estruturas institucionais do Estado capitalista, nem das lutas políticas e/ou de classe. Ou seja, as crises possuem sua própria história. As ações e decisões de seus protagonistas influenciam seu desenvolvimento e desfecho. As análises conjunturais, sem deixar de ter importante valor indicativo, se tornam incompreensíveis se não situadas numa perspectiva histórica de longa duração, e de abordagem historicamente comparada e multilateral. A fase atual da crise econômica mundial já produziu terremotos sociais sem precedentes nas sete décadas de pós-guerra, e está também produzindo abalos políticos e geopolíticos através dos quais se processa, potencial e gradativamente, a passagem para uma nova era histórica.

7 Daí surgiu a proposta da Tobin Tax, taxa sobre os movimentos transnacionais do capital financeiro, proposta por

James Tobin, ex-assessor de John F. Kennedy. 8 Fundos para grandes investidores que prometem rentabilidade bem superior à dos títulos públicos norte-

americanos, investem em qualquer tipo de ativo, e foram progressivamente entupidos com papéis de péssima qualidade.

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2. CAPITAL FICTÍCIO, CAPITAL FINANCEIRO, CRÉDITO E ESPECULAÇÃO

Many people are talking about the Stock Market. But hardly anyone is talking about Derivatives. Strange - because size for size the Stock Market is the size of a mouse and Derivatives are the size of an elephant.

Health, Wealth & Happiness

Durante a década de 1990, houve um período de crescimento econômico mundial através de um enorme aumento da exploração do trabalho e de um processo de reorganização econômica internacional, com a penetração do capitalismo na China, Rússia, os estados do Leste Europeu e Ásia; e a criação da União Europeia (UE) e do NAFTA (Tratado de Livre Comércio da América do Norte). Isso permitiu que o capitalismo explorasse (extraísse mais-valia) diretamente os trabalhadores desses países, principalmente da China, que se transformou em uma espécie de “fábrica do mundo”, pagando salários baixos e extraindo uma grande massa de mais-valia absoluta. Abriram-se novos mercados para as transnacionais nos países onde se restaurou o capitalismo, e também nos países onde se impuseram os chamados Tratados de Livre Comércio (TLCs), com a quebra dos monopólios para a exploração das riquezas naturais dos países periféricos. Houve um amplo e generalizado processo de privatizações, que permitiu às empresas monopolistas explorar diretamente todo um setor dos trabalhadores dos países periféricos, e dos próprios países centrais, e obter enormes lucros, o que antes só fazia de forma indireta. Se criaram novas formas de aumentar a exploração do trabalho assalariado, com a chamada flexibilização trabalhista, terceirizações, contratos precários, eliminação de conquistas sociais, aumento da jornada de trabalho.

Todas essas formas de exploração e expansão dos mercados permitiram um aumento da taxa de lucro (relação entre a mais-valia apropriada pelo capitalista e o capital investido por ele). Novas tecnologias digitais também possibilitaram aumentar a produtividade, criando um mercado financeiro mundial online e permitindo um ritmo instantâneo de repartição de lucros e acumulação de capital. Todos esses processos resultaram na extração de uma enorme massa de mais-valia. No entanto, a sobreacumulação de capital concluiu gerando uma queda na taxa de lucro na medida em que a parte superior da relação, a mais-valia, permanece a mesma, mas a parte inferior (o capital) aumenta. O capital mundial buscou novos investimentos para obter lucros, e reverter a queda da taxa de lucros.

Na periferia do capitalismo mundial, a elevada taxa de exploração dos trabalhadores locais se incrementou, combinadamente, pela intensidade da jornada de trabalho, pela constante ampliação da superpopulação relativa, pelo rebaixamento do tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho, e pela fraca expansão do capital produtivo local, reserva de exploração, ou apêndice, do capital metropolitano. A dinâmica da acumulação periférica é necessariamente “negativa” (no início do século XIX, a diferença de renda nacional entre os países ricos e pobres era de 1 para 2; um século depois, na véspera da 1º Guerra Mundial, era de 1 para 4; no final do século XX, já era de 1 para 7). Ela não pode ser separada dos interesses totais do capital, de que se constitui em elemento secundário e em elo da dominação mundial do capital financeiro. É enquanto parte do processo global de acumulação que a negatividade da acumulação periférica revela sua força “positiva” de valorizadora do capital global.

Marx já chegara à conclusão de que se produzia um movimento de capitais desde os países mais adiantados até os mais atrasados, em busca de taxas de lucro superiores. Criava-se uma taxa de lucro média internacional, na qual as taxas de lucro dos países ricos estão abaixo da média internacional e a dos pobres, acima, o que é uma das bases do superbenefício (lucros extraordinários) dos monopólios capitalistas, e da tendência para a exportação de capital. Foi sobre a base do “desemprego estrutural” e da queda mundial do valor da força de trabalho que se procedeu, na economia mundial como um todo, à chamada “reestruturação produtiva”, cujo aspecto mais visível foi à maciça incorporação nas novas tecnologias da informação (NTIs) ao processo produtivo.

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Para Michel Husson, o capitalismo atual teria uma estrutura de custos particular: uma colocação de fundos inicial importante e concentrada no tempo, onde as despesas de trabalho qualificado ocupam um lugar crescente; uma desvalorização rápida dos investimentos, que devem ser amortizados e rentabilizados num período curto; custos variáveis de produção ou de reprodução relativamente baixos; a possibilidade de apropriação mais ou menos gratuita da inovação ou do produto (programação informática, obra de arte, medicamento, informação). A valorização do capital passa, como sempre, pela formação de um preço que deve cobrir os custos variáveis da produção, a amortização do capital fixo, calculada em função da duração de sua vida econômica, mais a taxa média de lucro. Quando a inovação permite produzir mais barato as mesmas mercadorias, o primeiro capital a utilizá-la beneficia-se de uma vantagem, ou de uma renda (uma mais-valia “extraordinária”, segundo Marx) que dá uma retribuição transitória ao avanço tecnológico. Seus concorrentes serão levados a introduzir a mesma inovação, para se beneficiarem também desses superlucros, ou simplesmente para resistirem à concorrência.

A década de 1990 se caracterizou pela chamada “globalização”, marcada basicamente por: 1) Uma nova liberdade para os fluxos internacionais de capital; 2) A incorporação das antigas “economias socialistas” (URSS e Leste europeu, em primeiro lugar, depois, decisivamente, a China) ao mercado mundial capitalista. No entanto, a reestruturação e “relocalização” capitalista tropeçou nos limites do mercado mundial, revelados progressivamente ao longo da década, que não permitiram realizar os níveis de taxa de lucro alcançados de maneira sustentável. Depois de um início eufórico, a década de 1990 foi pautada por crises financeiras inicialmente localizadas, depois cada vez mais profundas e abrangentes: México 1994, a “crise asiática” iniciada em 1997, a crise russa e das moedas dos “mercados emergentes” (1998-1999), a crise da Bolsa de Valores das “novas tecnologias” (2000), o calote da economia argentina (2001-2002).

O novo patamar produtivo da economia mundial não tinha, portanto, enterrado o desenvolvimento dos mercados especulativos iniciado com o mercado de euro-moedas na década de 1970. Em pleno auge econômico mundial, o crescimento dos EUA já evidenciava seu caráter especulativo. O índice Dow Jones relativo às indústrias, que mede o preço das principais ações da Bolsa de Valores, era duas vezes maior do que o índice do salário-hora em 1990. Em 1999, era sete vezes maior. Em 1990 o índice Dow Jones era equivalente a 2% do índice de preço da moradia nos EUA. Em 1999 era de 7%: o preço das ações cresceu, portanto, quase quatro vezes mais rápido do que a média dos salários e três vezes mais rápido do que o preço das moradias. O valor do mercado de ações nos Estados Unidos era de 40% do PIB mundial, correspondendo a 150% do PIB dos EUA. Isto era quase o dobro do recorde anterior, de 1929, data do início do maior desastre da história do capitalismo. Apenas em 1998-99, o mercado de ações americano cresceu perto de US$ 5 trilhões. Mas isto não correspondeu a um crescimento similar nos lucros das empresas americanas. Desde o final de 1996, o índice do mercado de ações cresceu 77%, mas os lucros das empresas aumentaram apenas 2%. Os índices da “bolha” já eram evidentes.

O principal efeito da “mundialização” (outro neologismo para a chamada “globalização”) foi o desenvolvimento da “economia do rentista (rentier) internacional” ou “Estado assistencial do rentista”: os Estados se endividaram tomando grandes somas emprestadas de instituições financeiras para pagar juros aos rentistas a taxas estabelecidas por outro braço do governo, os bancos centrais. O acúmulo de grandes dívidas públicas conferiu aos interesses financeiros e bancários o poder de ditar a política social e econômica, processo originado na sobreacumulação de capital. Existia um excesso de capital que não conseguia valorização nos moldes “tradicionais”, isto é, por meio da produção crescente de valores, com posterior venda/realização da mais-valia neles contida, em mercados também em expansão. Era preciso encontrar outra esfera para que esse capital produzido em excesso conseguisse valorizar-se.

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O processo não era novo, remonta na verdade até o século XIX. Nova era, sim, sua extensão. Quanto mais longa a expansão econômica mundial (e a do segundo pós-guerra foi a mais longa da história da economia capitalista mundial) mais difícil seria para os capitais encontrarem setores em que a composição orgânica do capital fosse mais baixa, portanto mais lucrativos. A concorrência capitalista acentua também a queda nos preços. Quando o valor das mercadorias cai, isso obriga o capitalista a acentuar a extração de mais-valia, limitada pela redução do número de trabalhadores (redução por unidade de capital, não necessariamente em termos absolutos), resultado da adoção de técnicas mais modernas na produção. A diminuição da realização dos lucros não aparece de imediato; é primeiramente um montante de capitais que não serão mais reinvestidos na produção, devido à baixa rentabilidade, que criam um entrave para a reprodução. Esses capitais, desviados do setor produtivo, passam a agir, cada vez mais, de forma especulativa.

O aumento de especulação financeira, ou a transferência de riquezas da produção para o setor financeiro, é uma tendência em tempos de crise.9 A massa absoluta de capitais não retrocede; pode até aumentar. O emprego e a massa salarial podem também não retroceder. Mas os investimentos, o emprego e a produtividade (proporção de mais-valia relativa) não crescem mais em proporção suficiente para sustentar por si próprios a expansão da produção capitalista. A massa de capitais acumulados pela expansão é então redirecionada para setores improdutivos diminuindo a continuidade do ciclo de reprodução do capital, proporcionado pelos investimentos produtivos. A irracionalidade do sistema capitalista, regido pela lei do valor, e as contradições que levam a economia mundial à superprodução revelam-se então sob o véu especulativo.

Em consequência disso, os processos de desregulamentação, abertura e internacionalização das finanças foram acelerados, provocando a chamada financeirização. É preciso não confundir capital fictício com especulação financeira. O capital portador de juros surge quando o capital, enquanto capital, se torna mercadoria, isto é, quando o dinheiro, enquanto forma por excelência de manifestação do valor-capital, adquire um valor de uso adicional – além daquele próprio do dinheiro, enquanto mercadoria – o valor de uso de funcionar como capital. Surge a possibilidade de que o proprietário do dinheiro, com a potencialidade de entrar no processo de produção do capital, abra mão de exercer essa potencialidade, mas empreste esse valor-capital em potência para outro indivíduo que ingressa no processo de produção capitalista.

O proprietário do dinheiro (mercadoria-capital) lança assim na circulação o capital portador de juros, sendo estes definidos pelo preço da transação entre o proprietário (prestamista) e o emprestador, tornando o capital uma mercadoria, o que define um mercado específico, onde a mercadoria-capital é comercializada com base nos juros definidos na transação. A introdução do crédito – ou “capital portador de juros” – não constitui qualquer mudança qualitativa na geração de valor. O ciclo global do capital industrial, D–M...P...M’–D’, persiste. Os juros pagos ao prestamista são extraídos de parte da mais-valia extraída da atividade produtiva, da

9 Para Marx, as diversas modalidades da crise respondem a um padrão comum: «Onde o processo de reprodução se

estanca e o processo de trabalho se restringe ou, em parte, se detém, destrói-se um capital efetivo. O maquinário que não se emprega não é capital. O trabalho que não se explora equivale a uma produção perdida. As matérias-primas que ficam inúteis não são capital. Os valores de uso (assim como o maquinário recém construído) que não são empregados ou que ficam por terminar, as mercadorias que apodrecem nos armazéns: tudo isso é destruição de capital. Tudo isso se traduz em um estancamento do processo de reprodução e no fato de que os meios de produção não entram em jogo com este caráter. Tanto seu valor de uso como seu valor de troca se perdem. Em segundo lugar, existe destruição de capital nas crises, pela depreciação de massas de valor, que as impede de voltar a se renovar mais tarde, na mesma escala, seu processo de reprodução como capital. É a queda ruinosa dos preços das mercadorias. Não se destrói valores de uso. O que perdem alguns, ganham os outros. Mas, consideradas como massas de valor que atuam como capitais, vêm-se impossibilitadas de se renovar nas mesmas mãos como capital. Os antigos capitalistas se arruínam».

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exploração da força de trabalho na movimentação de determinada massa de meios de produção. O capital portador de juros possibilita a exploração da mais-valia, ao acionar a cadeia e, por isso, possui “direito” sobre parte dessa mais-valia. O capital portador de juros só possui direito a parte da mais-valia, sendo estéril na geração de valor. A apropriação de uma parcela da mais-valia, na forma de juros, é a lógica do capital monetário portador de juros, de forma que seu proprietário pode auferir lucros periodicamente pelo simples fato de conceder o uso de seu capital para outros. Nas palavras de Marx, “seu valor de uso consiste justamente no lucro que, uma vez transformado em capital, produz. Nessa qualidade de capital possível, de meio para a produção de lucro, torna-se mercadoria, mas uma mercadoria sui generis. Ou, o que dá na mesma, o capital enquanto capital se torna mercadoria”.

O capital fictício, que, para Marx, é distinto do capital portador de juros – muito embora este último venha a potencializar a acumulação do primeiro pelo processo de alavancagem financeira – é originário da arbitragem: surge do ganho especulativo que o possuidor de títulos ou ações aufere ao vendê-los no pregão – uma vez que o valor obtido pela vendo do papel seja superior ao do dispêndio para adquiri-lo. Aqui, novamente, existe um elo que conecta a esfera das finanças com a da produção. A ação é, por definição, um título de rendimento variável, ao acionista não está assegurado o recebimento de um percentual do capital adiantado, como seria ao se tratar de uma tradicional operação de crédito. A sua remuneração é vinculada ao desempenho da empresa, ao seu lucro.

Rudolf Hilferding destacou que o banco apenas coloca “à disposição do mercado, sob a forma de capital fictício, o capital monetário destinado à transformação em capital industrial. É ai que se vende o capital fictício e o banco realiza seu lucro de fundador, lucro que se origina da transformação de capital industrial em fictício. Essa função do banco, de levar a efeito a mobilização do capital, decorre do fato de o mesmo ter a sua disposição o dinheiro de toda sociedade.10 Essa função estabelece, ao mesmo tempo, a exigência de o banco dispor de um grande capital próprio. O capital fictício (título de crédito) é mercadoria sui generis, que só volta a se transformar em dinheiro mediante a sua venda”. O capital fictício, parcela do capital que se reproduz autonomamente, dissociada do valor efetivamente investido na produção e da extração da mais-valia, tem que ser considerado em seu caráter contraditório: fictício do ponto de vista social, e real do ponto de vista do capitalista individual que o detém. Embora não amplie o montante de mais-valia produzida a cada período, atua na repartição dessa mais-valia na esfera da circulação, ampliando a parcela desta que cabe a seu detentor (na divisão da mais-valia produzida), aumentando a concentração de capitais.

Quando a motivação da busca de crédito for aquisição de capital fixo (maquinário) o retorno do dinheiro ao banco se da paulatinamente, espaçado em mais de ciclo produtivo. A imobilização do crédito tomado acarreta no envolvimento distinto do banco com a empresa capitalista industrial, o banco passa a se preocupar com a forma em que o industrial empregará os recursos tomados, uma vez que a amortização do crédito passa a ser diferenciada no tempo. Daí sela-se a fusão entra capital bancário e capital industrial – “o banco deposita seu capital na empresa capitalista e com isso participa do destino dessa empresa”: eis a origem e natureza do capital financeiro.

O crédito amplia as bases da acumulação capitalista, favorecendo-a, e ao mesmo tempo amplia a base da sua crise, como pontuou Marx, em O Capital: “O sistema de crédito aparece como a principal alavanca da superprodução e da superacumulação no comércio somente porque o processo de reprodução, que é elástico por natureza, aqui é forçado até seus limites

10

A função dos bancos se resume em: 1) facilitar a circulação de mercadorias (a partir da ampliação da base monetária através do “crédito de circulação”); 2) disponibilizar aos capitalistas industriais o capital ocioso de seus pares (através do “crédito capitalista”) e 3) facilitar o acesso dos capitalistas à poupança de todas as outras classes sociais.

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extremos. A autoexpansão do capital, baseada na natureza contraditória da produção capitalista, permite um desenvolvimento verdadeiramente livre somente até certo ponto, de forma que constitui um entrave imanente e uma barreira à produção, que é quebrada continuamente pelo sistema de créditos. Por conseguinte, o sistema de crédito acelera o desenvolvimento material das forças produtivas e o estabelecimento do mercado mundial. A missão histórica do sistema capitalista de produção é elevar as bases do novo modelo de produção até certo grau de perfeição. Ao mesmo tempo o crédito acelera erupções violentas desta contradição – ou seja, a crise – e consequentemente os elementos de desintegração do velho modo de produção. As duas características imanentes do sistema de crédito são, por um lado, desenvolver o incentivo à produção capitalista, o enriquecimento através da exploração do trabalho dos outros e reduzir ainda mais o número dos exploradores da riqueza social; por outro lado, constitui a forma de transição para um novo modo de produção” (grifo nosso).

Crescimento dos seis maiores bancos dos EUA (% do PIB)

O capital fictício pode aumentar a capacidade de acumulação produtiva (investimentos) ou de consumo improdutivo (ampliando a demanda) do seu possuidor em seu aspecto de capital individualmente real, e com isso contribuir para ampliar a escala de reprodução (aumentar o crescimento), mas também abre uma nova opção de valorização para o capitalista. O capital fictício surge do processo de acumulação do capital, quando este se apropria da esfera da produção; já o domínio do capital financeiro sobre as outras formas do capital (agrário, industrial, comercial, bancário simples) é próprio de uma etapa histórica da acumulação capitalista; a especulação financeira “desenfreada” do último período – “financeirização”, segundo alguns, “regime de acumulação financeira forçada”, segundo François Chesnais – é seu desenvolvimento.

Para alguns, com ela iniciou-se uma nova era histórica do capital. Segundo Toni Negri, por exemplo: “Para além dos estados-nação, a classe capitalista se recompôs no plano mundial, graças à crise. E é nesse plano mundial que, explorando as novas tecnologias, a classe capitalista pôs em funcionamento um novo processo de “acumulação primitiva” sobre a base da transformação pós-industrial do trabalho, que se torna, cada vez mais, “trabalho de conhecimento” [dito também, erradamente, “trabalho cognitivo”]. Portanto, essa acumulação produz-se a partir da privatização e da organização produtiva do General Intellect [inteligência geral]. Entendo por General Intellect o conjunto da força de trabalho de/para o conhecimento, que substituiu, na geração de mais-valia, a classe operária industrial; e que é hoje explorada em todo o terreno social”.

A partir disso, segundo o mesmo autor: “O próprio capitalismo modifica-se de modo fundamental: agora, são as finanças que recompõem, no plano mundial, o mando do capital. A banca e as finanças dominam hoje, acima de empresários e inovadores, nas indústrias: a renda substitui o benefício. Os processos produtivos são assim transformados. Sobre a produção

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fordista, na fábrica, sobrepõe-se a organização pós-fordista da exploração de toda a sociedade e a captação, mediante mecanismos financeiros, da mais-valia (socialmente produzida). Com essa profunda transformação da acumulação capitalista, forma-se também uma nova prática política: a governança neoliberal. Com essa prática, as elites capitalistas pretendem, por um lado, destruir o Estado de Bem-estar da classe operária industrial, que veem como corpo estranho, como o vestígio de um soviet dentro de sua própria casa de elite capitalista; e, por outro lado, o capital tenta organizar a exploração da sociedade inteira, submetendo ao seu domínio toda a vida das pessoas; o capital, agora, como “biopoder”, quer dominar todo o movimento biopolítico”.11

A “privatização” progressiva do “intelecto geral” é própria do fetichismo do capital, em que as forças produtivas do trabalho aparecem crescentemente como forças produtivas do capital. O capital, por outro lado, não existe “em geral” senão como concorrência ou rivalidade entre capitais. Supor um capitalismo sem concorrência (ou seja, sem multiplicidade contraditória de capitais) e que tivesse realizado por completo a alienação da força produtiva do trabalho humano seria equivalente a supor um capitalismo sem contradições (portanto, insuperável a partir delas) em que sua essência e sua aparência coincidissem. Os avanços científicos e tecnológicos e o aumento de produtividade têm como fim principal manter ou aumentar a taxa de acumulação do capital. O produto crescente do trabalho humano torna-se propriedade do capital, elevando ainda mais o processo de alienação e apropriação de mais-valia. Consequência disso é o progressivo aumento do desemprego, a exclusão da maioria da população do acesso aos benefícios do avanço científico e tecnológico, a promoção da exaustão dos recursos naturais, a destruição dos ecossistemas e a deterioração da qualidade de vida, criando ilhas de prosperidade e consumo cercadas de miséria.

No contexto mundial, a apropriação privada do conhecimento, sustentada por meio da imposição do sistema de patentes, aumenta também a defasagem tecnológica entre países periféricos e centrais. A prevalência dessa lógica de funcionamento atua poderosamente na formação de oligopólios e reserva aos países periféricos o papel de fornecedores de matérias-primas e produtos semiacabados, transformando-os em permanentes compradores de tecnologia. A partir de 1994, os acordos viabilizados sob os auspícios da Organização Mundial de Comércio (OMC), referentes a tarifas e trocas e a direitos de propriedade intelectual, são característicos da ordem internacional. O sistema mundial de patentes é um instrumento de controle da ciência e da tecnologia pelo capital, que impede o conhecimento público e a implementação de avanços científicos, privatiza recursos naturais, especialmente nos países periféricos, e faz proliferar um número infinito de patentes inúteis, ou apenas destinadas a exercer controle de determinada área científica ou tecnológica. O novo peso adquirido no mercado mundial por alguns países que se encontravam na sua periferia ou fora dele (os chamados “emergentes”) não eliminou nem atenuou esses problemas, ao contrário, os acentuou, acrescentando à espionagem científica e industrial a questão da “pirataria”, que expressam as contradições da acumulação capitalista e da sua tendência a resolvê-las por meios ilegais, violentos e até bélicos.12

11

O conceito de biopolítica é de autoria de Michel Foucault, referido ao estilo de governo que regulamenta a população através do biopoder (o impacto do poder político sobre todos os aspectos da vida humana). Para Foucault nos séculos XVIII e XIX, a população tornou-se num objeto de estudo e de gestão política. As relações de poder permeiam a partir de então toda a sociedade. O biopoder seria a prática do estado moderno na regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de "uma explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações". Nos trabalhos de Michael Hardt e Antonio Negri, biopolítica é a luta anticapitalista que usa a vida e o corpo como armas; como no caso dos refugiados que aportam em embarcações precárias nas costas do “Primeiro Mundo”, ou o terrorismo suicida; seria o oposto do biopoder. 12

O New York Times, por exemplo, revelou que os serviços secretos dos Estados Unidos e de Israel utilizam uma arma cibernética (Stuxnet) para infectar computadores iranianos e de outros países árabes vistos com suspeitas pelo Departamento de Estado. Esta “batalha cibernética” já teria pelo menos cinco anos de existência. Para Carlos

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Quanto à “governança neoliberal”, é certo que, no período que antecedeu 2007, saíram cada vez mais de cena as despesas governamentais de caráter anticíclico. Mas os bancos centrais e as instituições multilaterais sustentadas com dinheiro público estiveram sempre presentes para garantir a valorização da riqueza privada. Para Paulo Nakatani: “A expansão só foi possível através da transferência de mais-valia produzida em todo o mundo e pela gigantesca expansão do capital fictício, o que mascarou a pressão decrescente da taxa de lucro. Essa é uma das razões pela qual a reduzida taxa de juros nos países capitalistas desenvolvidos como os EUA, Japão e União Europeia, na última década, não foi capaz de relançar a atividade produtiva. Mesmo as tentativas de uma política keynesiana, no Japão, de tornar negativa a taxa real de juros e distribuir renda para estimular a demanda, não foram suficientes para tirá-lo da estagnação. O capital monetário disponível dirigiu-se para a obtenção de ganhos fictícios nos mercados financeiros internacionalizados, mas não deixou de tentar se materializar, principalmente através das fusões e aquisições e das privatizações nos países subdesenvolvidos”. O capital fictício é postulado pelo autor como sinônimo do capital financeiro, para introduzir a (questionável) categoria de “ganho fictício”.

As crises capitalistas são consequência da superprodução de mercadorias, manifestada como superacumulação (excedente) de capital, incapaz de continuar obtendo sua taxa de lucro precedente. Em O Capital, Marx formulou a “lei da tendência decrescente da taxa de lucro”, como “lei mais importante da sociedade burguesa”. A taxa de lucro pode ser expressa em função da mais-valia e da composição orgânica do capital, sendo que a quantidade de mercadorias produzida possui uma tendência crescente, enquanto existe uma tendência da taxa de lucro ficar menor. Porém, as modificações ocorridas na mais-valia podem compensar os efeitos da mudança na quantidade produzida. Excedente de capital e redução da taxa de lucro são características das crises de superacumulação de mercadorias e de capital. O gráfico que segue ilustra a tendência histórica para a queda da taxa de lucro.

Taxa de lucros no Reino Unido, EUA, Japão e Europa (variação por década)

Fonte: Giuseppe Sottile, Declino economico e crash finanziario

A vinculação orgânica da queda tendencial da taxa de lucro com a superprodução de capital e a crise se encontra exposta em O Capital, derivada da lei geral da acumulação do capital: “A diminuição do capital variável em relação ao capital constante, determina uma composição orgânica crescente do capital total, resultando daí que quer o grau de exploração do trabalho

Castilho, “o debate sobre a privacidade online entrou em um novo patamar. Não se trata mais de discutir se ela é boa ou ruim, legal ou ilegal. A guerra cibernética já acabou com ela de fato e não nos resta alternativa senão alterar nossos comportamentos para conviver com um mundo onde as paredes são de vidro transparente”.

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permaneça inalterável, quer aumente, a taxa da mais-valia se exprime numa taxa geral de lucro sempre decrescente (manifesta-se de uma forma tendencial e não absoluta). A tendência permanente para a diminuição da taxa geral do lucro é apenas a expressão do desenvolvimento progressivo da produtividade social do trabalho, expressão que corresponde ao modo de produção capitalista”.

Com o processo de concorrência intercapitalista, isso provoca uma expansão da concentração e centralização do capital (as desvalorizações da Bolsa, em 1994, 1996 e 1999, na casa dos 10% a 20%, revelaram-se bons momentos de compra de pechinchas),13 que se transforma em um crescimento da composição orgânica média do capital (ou seja, da produtividade média da economia),14 reforçando a tendência para a redução da taxa de lucro média do sistema como um todo.

Taxa de lucro e acumulação no “mundo desenvolvido” 1870-2005 (variação por década)

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Próprias de toda crise, como constatara Marx nas Teorias sobre a Mais-Valia: “Quando se fala de destruição de capital por crises, há duas coisas a distinguir. À medida que estagna o processo de reprodução e que o processo de trabalho se restringe ou para de todo em certos pontos, destrói-se capital real. Não é capital a maquinaria que não se utiliza. O trabalho que não se explora equivale a produção perdida. Matérias-primas que jazem ociosas não são capital. Edifícios (e também nova maquinaria construída) que para nada servem ou permanecem inacabados, mercadorias que apodrecem em depósito, tudo isso é destruição de capital. Tudo isso se reduz à paralisação do processo de reprodução e a que as condições de produção existentes não exercem na realidade as funções de condições de produção, não são postas em atividade. Então seu valor de uso e valor de troca vão para o diabo. Mas, no segundo significado, destruição de capital por crises é depreciação de valores que os impede de renovarem depois, na mesma escala, o processo de se reproduzirem como capital. É a queda ruinosa dos preços das mercadorias. Com ela não se destroem valores de uso. O que um perde, o outro ganha. Os valores operantes como capital ficam impossibilitados de se renovar como capital nas mesmas mãos. Os velhos capitalistas quebram. Grande parte do capital nominal da sociedade, isto é, do valor de troca do capital existente, é destruída de uma vez para sempre, embora essa própria destruição, por não atingir o valor de uso, incentive muito a nova reprodução”. 14

Denomina-se composição técnica do capital a proporção entre a quantidade de meios de produção e o número de operários ocupados em acioná-los. Com a disponibilidade do avanço técnico dos processos produtivos, cresceu a parte do capital que se inverte em meios de produção. Ou seja, cresceu a composição técnica do capital, apesar de uma relativa redução na quantidade de insumos por produto. O valor do capital aplicado na produção divide-se em: (a) valor dos meios de produção (capital constante) e (b) valor da força de trabalho (capital variável). Chama-se composição do capital expressa em valor a proporção entre o capital constante e o capital variável. Existe interdependência entre a composição técnica do capital e sua composição expressa em valor. As variações na composição técnica do capital associam-se às variações da composição do capital expressa em valor. Chama-se composição orgânica do capital a proporção entre o capital constante (c) e o capital variável (v): c/v. Essa proporção é determinada por sua composição técnica, refletindo suas variações. Se as variações da composição do capital expressa em valor se devem ao emprego de matérias primas ou insumos mais custosos, as flutuações temporais dos preços dessas ou da força do trabalho - mas não devidas à mudança técnica da produção - não afetam a composição orgânica do capital.

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Uma recuperação limitada da taxa de benefício, na década de 1990, a um nível superior aos anos 1970 e 1980, ainda que muito abaixo do período do imediato pós-guerra, foi revelada por diversos estudos (taxa de retorno, participação dos lucros na renda) e evidências (rendimento das ações, balanços das corporações) nos países da OCDE. Partindo do postulado de que o trabalho é a única fonte de valor e que o lucro se nutre da mais-valia, a explicação dessa recomposição da rentabilidade se encontra no avanço da flexibilidade trabalhista, a pressão do desemprego e a expansão da pobreza. Ainda que não se tenha consumado uma regressão decisiva nas condições de vida dos trabalhadores nos países avançados, a precarização do trabalho redundou numa recomposição do benefício. Para que esta recuperação ultrapassasse o curto prazo, esse aumento da taxa de exploração teria que se estabilizar.

O capítulo fundamental da tentativa de superar a queda da taxa de lucro média verificou-se no centro do sistema capitalista, o que comanda a dinâmica econômica mundial. Nos anos 1980, a produtividade cresceu a uma taxa anual de 3,0% nos EUA, a 3,8% no Japão e a 2,1% na Alemanha. Em seguida, na primeira metade da década dos anos 1990, os capitalistas dos EUA impuseram aos trabalhadores um incremento de produtividade de 3,7% ao ano, os japoneses 3,3%, e os alemães 2,9%. Finalmente, nos últimos cinco anos do século passado, a exploração da classe operária, expressa nos ganhos deprodutividade, cresceu aceleradamente nos EUA (6,4% ao ano), no Japão (5,0%) e na Alemanha (3,7%).

Índice de produtividade do trabalhador norte-americano (1991-1999)

Evolução do PIB norte americano (1989-1999)

O PIB norte americano não apresentou variações negativas desde abril de 1991 e atingiu o pico de 7,4% no 4° trimestre de 1999. Mas, na virada do século, houve a crise das bolsas de 2000 a

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2002, assim como as crises dos “mercados emergentes”. Não se tratou de simples repetições de crises precedentes: a acumulação de capital não tem como característica essencial a sua trajetória “cíclica”, isto é, que sempre, após uma fase de crescimento, se produz um momento de crise, depois do qual o capitalismo consegue reconstruir novas bases para um novo processo de acumulação, numa sequência infinita, uma espécie de “eterno retorno” da prosperidade (onde subjaz a ideia das crises como eventos localizados, isolados e conjunturais, desequilíbrios momentâneos em um sistema que prontamente se restabeleceria). O caráter histórico do capitalismo desaparece nessa concepção “cíclica” (sendo às vezes o próprio marxismo reduzido a uma mera teoria dos ciclos econômicos), impedindo compreender o caráter diferenciado das crises econômicas como manifestação do declínio da própria produção capitalista. A causa última das crises é a contradição entre o caráter cada vez mais social da produção e o caráter cada vez mais privado da apropriação capitalista.

As alterações da última década do século XX na estrutura da riqueza capitalista resumiram-se em: 1) O maior peso da riqueza financeira na riqueza total; 2) O poder crescente dos administradores de ativos mobiliários (fundos mútuos, fundos de pensão, seguros) na definição das formas de utilização da poupança e do crédito (para Aglietta e Berrebi, a atual fase do capitalismo “permite a uma elite financeira, no topo da hierarquia profissional das grandes empresas e das profissões jurídicas e financeiras associadas, capturar a maior parte dos ganhos de produtividade”); 3) A generalização, na maioria dos países, da abertura das contas de capital, dos regimes de taxas flutuantes e do uso de derivativos (que têm o propósito de limitar, assumir ou transferir determinados riscos); 4) As agências de classificação de risco assumiram o papel de tribunais de julgamento da qualidade das políticas econômicas.

A finança direta e "securitizada" (a “securitização” consiste em transformar os créditos de posse das instituições financeiras em títulos negociáveis) ganhou importância central. A desregulamentação rompeu os diques impostos à ação dos bancos comerciais, que voltaram a operar como supermercados financeiros. Essas formas tornadas autônomas “liberam” capital produtivo, que antes deveria gastar tempo nas funções de comércio e de financiamento, ao mesmo tempo em que reduzem o tempo de rotação do capital global, permitindo uma maior produção de mais-valia por capital aplicado, elevando a taxa média de lucro.

Ativos financeiros dos países da OCDE por tipo de investidor institucional, anos 1990

Fonte: François Chesnais, A Finança Mundializada

Desde o colapso das taxas de câmbio fixas (1971), os países centrais caminharam na direção de um sistema de taxas flutuantes. Tratava-se, se dizia, de escapar da "trindade impossível": convivência de taxas de cambio fixas, mobilidade de capitais e autonomia da política

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monetária doméstica. Mas, ao mesmo tempo em que as taxas de inflação de bens e serviços produzidos retrocediam, ampliaram-se as possibilidades de ocorrência de "bolhas" nos mercados de crédito, provocando uma sucessão de episódios de "inflação" de ativos. As “bolhas financeiras”, porém, são a expressão, na esfera da circulação de capitais, da sobreprodução de mercadorias, que se manifesta como excesso de capitais (sobreprodução sobreacumulação).

Robert Brenner, em O Boom e a Bolha, analisando os fatores que permitiram “a perpetuação de uma longa estagnação na economia mundial, entre 1973 e 1995”, apontou como causa “o excesso de capacidade no setor manufatureiro internacional, que há muito é responsável direta ou indiretamente pelo reduzido crescimento econômico. Disso resultou uma queda acentuada da lucratividade”. A bolha acionária e da tecnologia de informação foi uma “válvula de escape”; a crise do “estouro da bolha” foi o retorno à tendência para a estagnação. Michel Aglietta, analisando a atual fase do capitalismo mundial,15 também apontou a sobreacumulação de capital: “Não é igualmente nada surpreendente que os Estados Unidos tenham sido o principal país em termos de sobrecapacidade produtiva entre 2002 e 2005”, característica posta a nu com o estouro da bolha em 2001: a “formação da bolha e seu posterior estouro arremataram o desenvolvimento de sobrecapacidades permanentes” (grifo nosso).

As formas clássicas do capital fictício, analisadas por Marx em O Capital, são a dívida pública e as ações. A primeira diz respeito a títulos que representam um volume de dinheiro, emprestado originalmente ao Estado, em função de gastos realizados no passado. Como o próprio Estado não financiou esses gastos, naquele momento foi obrigado a lançar títulos de dívida pública. Trata-se de capital fictício, pois os títulos representam capital gasto no passado; a soma emprestada originalmente ao Estado já não existe. A segunda forma clássica são as ações, que representam direito sobre a apropriação futura da mais-valia, e se constitui sobre a expectativa/especulação de um lucro (ou dividendo) futuro. O valor desses papéis oscila em função das flutuações das taxas de juros de curto prazo; geralmente, a cotação dessas ações é superior ao valor do capital produtivo em que foi transformado o dinheiro, e oscila com relativa independência especulativa frente a ele.

Essas oscilações e essa independência aumentaram de modo espetacular depois da crise de meados da década de 1970. A etapa seguinte, que se desenvolveu principalmente a partir de 2002, consistiu em “fusionar” certo número de créditos para fazer deles uma linha de obrigações negociáveis. Os títulos assim “manufaturados” podem ser vendidos nos mercados, em pequenos pacotes, aos diversos investidores institucionais ou fundos especulativos que quiserem comprá-los. Na proporção em que crescia o apetite pelo risco, os rendimentos caiam de forma generalizada. Os investidores corriam para os mercados onde os diferenciais ainda eram atraentes, fomentando o chamado carry trade entre os ativos de baixo rendimento dos países centrais e o rendimento mais elevado dos países periféricos.

A riqueza “de papel” passou a se multiplicar de modo relativamente independente da valorização dos ativos produtivos, das chamadas “variáveis reais”, mas se trata de um processo em que todos os atores estão envolvidos, inclusive a “corporação produtiva” que incorporou a meta financeira em seus objetivos.16 A nova era passou a caracterizar-se pela reprodução

15

Que teria como marco da “mudança de regime” de acumulação a crise asiática de 1997, e como antecedentes a crise do sistema de paridades fixas e controles de capital de Bretton Woods (a partir de 1971, com a flutuação do dólar), os choques do petróleo nos anos 1970, a crise “da dívida” dos países dominados nos anos 1980 e a restauração do capitalismo nos países socialistas, evento que “abriu o mundo inteiro ao capitalismo ocidental” a partir do que considera a criação de “um espaço livre para a expansão do capital à procura de rentabilidade elevada”. 16

O ex-presidente do FED, Paul Volcker, no The Economic Club of New York, em abril de 2008, comentou: “Hoje, muito da intermediação financeira verifica-se em mercados distantes da capacidade supervisora, podendo implicar

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conjunta produtivo/especulativa do capital. Cada capitalista passou a reproduzir, conjuntamente, seu capital de forma produtiva e também financeira. Não existe mais a figura do capitalista industrial puro, contra o qual estaria oposto um puro especulador. Eles se interpenetram e, no limite, são um só.

O capitalista industrial (onde existisse só com seu capital aplicado à indústria) é levado a, de forma crescente, aplicar suas sobras de caixa, seu capital de giro, em atividades financeiro-fictícias (fundos de investimento, dívida pública, ações, derivativos, hedge) para aumentar a taxa de lucro global do seu negócio. Logo em seguida, não serão mais apenas as “sobras”, mas a própria decisão dessa repartição, acumulação produtiva/acumulação financeira, que será condicionada pelas condições da reprodução/rentabilidade financeira. Uma vez construída essa máquina de valorização financeira, ela tende a permanecer e se fortalecer, alterando as condições de reprodução ampliada. Ou seja, nem mesmo um novo período de acumulação produtiva “virtuosa” levaria ao desmonte dessa máquina especulativa. Pelo contrário, sua permanência é critério cada vez mais importante do cálculo da valorização global de cada capital, e fator que permite a reprodução do capital.

O peso inédito do capital financeiro foi também decisivo para a concentração empresarial mundial: a participação das 200 maiores empresas no produto bruto mundial passou de 24% em 1982 para 30% em 1995, 33% em 1997, superando os 35% na virada do século. As primeiras 500 empresas perfaziam 45% do produto mundial (65% ao se considerar o conjunto das “multinacionais”, em torno de 35 mil firmas). A quase totalidade dessas empresas possui sua casa matriz nos países centrais: em 1995, 89% do faturamento das 500 maiores empresas era realizado por firmas originárias do chamado G7 (grupo das maiores sete economias: EUA, Japão, Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Canadá).

Considerando-se as dez maiores corporações mundiais - Mitsubishi, Mutsui, Itochu, Sumimoto, General Motors, Marubeni, Ford, Exxon, Nissho e Shell - o seu faturamento conjunto passou a corresponder a US$ 1,4 trilhão de dólares (equivalente ao PIB conjunto de Brasil, México, Argentina, Chile, Venezuela, Colômbia, Peru e Uruguai). Metade dos prédios, máquinas e laboratórios desses grupos e mais da metade de seus funcionários estão em unidades do exterior, e 61% do seu faturamento é obtido em operações fora do país de origem. Se o faturamento se expandir para as 100 maiores corporações, descobre-se que um terço do comércio internacional (US$ 1 trilhão em 1990) referia-se a trocas entre unidades das multinacionais. Elas empregavam 20% da força de trabalho do setor secundário e terciário nos países periféricos, e 40% dos países centrais.

Na crise asiática de 1997 (em julho, a moeda tailandesa se desvalorizou, e, após ela, caíram as da Malásia, Indonésia e Filipinas, o que repercutiu também em Taiwan, Hong Kong e Coréia do Sul), o socorro do FMI falhou, e a crise alcançou uma dimensão que não conseguiu ser contida. Depois disso, tivemos o craque da Bolsa em Hong Kong e suas repercussões mundiais. Na crise russa de 1998, ou “crise do rublo”, o sistema bancário nacional da Rússia entrou em colapso, com uma suspensão parcial de pagamentos internacionais, a desvalorização da moeda russa e o congelamento dos depósitos em moeda estrangeira. O FMI concedeu vários empréstimos multimilionários para conter a queda livre da divisa, evitando um impacto irreparável no mercado internacional.

Na ascensão do mercado de valores da década de 1990, as corporações e os lares ricos vieram expandindo massivamente sua riqueza em dinheiro. Portanto puderam embarcar em um aumento recorde de endividamento e, sobre esta base, sustentar uma poderosa expansão do investimento e do consumo. O assim, chamado boom da “nova economia” foi a expressão

descuidos, tudo envolvido em desconhecidos instrumentos derivativos estimados em trilhões. Tem sido um negócio altamente lucrativo, indicando a contabilidade financeira recente algo como 35 a 40 % de todos os lucros corporativos” (grifo nosso)..

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direta da bolha histórica do preço das ações dos anos 1995-2000. Os preços das ações subiram apesar da queda da taxa de lucro, os investimentos novos exacerbaram a sobrecapacidade industrial: isso anunciou a queda da bolsa e a recessão de 2000-2001, que deprimiria a rentabilidade no setor não financeiro a seu nível mais baixo desde 1980.

Os volumes consagrados à especulação financeira tornaram evidente uma base sem precedentes para a sequência “bolha” - crise: os valores dos contratos pendentes no mercado de derivativos expandiram-se entre 1987 e 1993 de US$ 1,6 trilhão para US$ 10 trilhões, com um incremento anual médio de quase 36%, enquanto os fluxos financeiros internacionais quadruplicaram, passando de US$ 395 bilhões para US$ 1,597 trilhão. O mundo financeiro, por outro lado, tornou-se bem mais centrado em transações. Em 1980, os depósitos bancários constituíam 42% de todos os títulos financeiros. Em 2005, o percentual havia caído para 27%.

Os mercados de capital executaram cada vez mais as funções de intermediação do sistema bancário. Este, por sua vez, migrou do terreno dos bancos comerciais, que concedem empréstimos de longo prazo a clientes e mantêm relacionamento duradouro com a clientela, para atividades típicas de bancos de investimentos. Uma série de novos produtos financeiros complexos foram “derivados” dos tradicionais títulos, ações, commodities e câmbio. Assim nasceram os "derivativos", dos quais os mais conhecidos são opções, futuros e swaps. No fim de 2006 o valor de swaps de juros, swaps cambiais e opções de juros no mercado tinha atingido US$ 286 trilhões, aproximadamente seis vezes o Produto Mundial Bruto (PMB), em comparação com US$ 3,45 trilhões em 1990. Uma situação sem precedentes na história econômica mundial.

Montante global dos negócios com derivativos

Fonte: Banco de Basiléia (“billones” = trlhões)

A “revolução informática” na computação e nas comunicações permitiu a criação de transações complexas, especialmente de produtos derivativos, e a negociação, 24 horas por dia, de enormes volumes de ativos financeiros. Surgiram novos atores, especialmente fundos de hedge e fundos privados de investimento em participações. Estima-se que o número de fundos de hedge tenha crescido de 610, em 1990, para 9.575 em 2007, com um montante de aproximadamente US$ 1,6 trilhão sob sua administração.

Os fundos de hedge desempenham as funções clássicas de especulador e arbitrador (aquele que explora desníveis entre mercados), em contraste com os tradicionais fundos de longo prazo, como os fundos mútuos, cujos recursos são investidos em ações ou bônus. A captação de recursos por fundos de investimento em participações atingiu níveis recordes em 2006: 684 fundos captaram um total de US$ 432 bilhões. A soma dos ativos e passivos financeiros

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internacionais em poder de residentes em países de alta renda deu um salto de 50% do PIB mundial agregado, em 1970, para 100%, em meados dos anos 1980, e para cerca de 330%, em 2004.

As principais falências da economia norte-americana na década e meia de “neoliberalismo” vitorioso sinalizaram um processo acelerado de concentração de capital, elevando a monopolização da economia norte-americana para patamares inéditos:

Companhia Mês da bancarrota

Total de ativos pré-bancarrota (dólares)

Worldcom, Inc julho/02 $103.914.000.000

Enron Corp dez/01 $63.392.000.000

Texaco, Inc abril/87 $35.892.000.000

Financial Corp.of America set/88 $33.864.000.000

Global Crossinq Ltd. jan/02 $25.511.000.000

Adelphia Communcations junho/02 $24.409.662.000

Pacific Gas and Eletric Co. abril/01 $21.470.000.000

Mcorp março/89 $20.228.000.000

Kmart Corp jan/02 $17.007.000.000

NTL, Inc maio/02 $16.634.200.000

First Executive Corp. maio/91 $15.193.000.000

Gibraltar Financial Corp. fev/90 $15.011.000.000

Finova Group, Inc., (The) março/01 $14.050.000.000

HomeFed Corp. out/92 $13.885.000.000

Southeast Banking Corp. set/91 $13.390.000.000

Reliance Group.Holdings, Inc junho/01 $12.598.000.000

Imperial Corp.of America fev/90 $12.263.000.000

Federal-Mogul Corp. out/01 $10.150.000.000

First City Bancorp. Of Texas out/92 $9.943.000.000

First Capital Holdings maio/91 $9.675.000.000

Baldwin-United set/83 $9.383.000.000

Total $498.062.862.000

Ricardo de Medeiros Carneiro, Pedro Rossi, Marcos Vinicius Chiliatto-Leite e Guilherme Santos Mello, economistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), propuseram, a partir da análise do novo papel e do novo peso mundial dos mercados especulativos, o surgimento de uma quarta fase (ou “dimensão”) da história da economia mercantil, de acordo com o esquema a seguir, elaborado por esses autores:

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3. O NOVO PAPEL MUNDIAL DA CHINA (E DOS “EMERGENTES”)

A reconfiguração da economia mundial produziu a tendência para uma nova divisão internacional do trabalho, na qual os países centrais transferiram parcelas significativas de sua indústria para outros países, notadamente a China, em busca de condições mais favoráveis para a valorização produtiva do capital, principalmente pelo elevado grau de exploração da força de trabalho nesses países. A restauração do capitalismo na China levou a que se constituísse em local privilegiado para a expansão do capital, como zona de produção de mercadorias baratas para o mercado mundial, pela exploração da força de trabalho a níveis inéditos. Foi necessário para isso destruir a política “maoista” de proporcionar casa, comida, e assistência a todo o povo chinês: as fábricas contavam com habitações para os trabalhadores e suas famílias, além de proporcionar-lhes alimento e um salário. A via fundamental da restauração capitalista foi a abertura para os investimentos externos. A abertura econômica chinesa, porém, já começara no período maoista, na primeira metade dos anos 1970 (a entrevista Nixon – Mao em Pequim foi realizada em 1971). A partir de 1978 ela se acentuou, quando Deng Xiaoping assumiu o poder; o “modelo chinês” foi baseado na abundância de mão de obra mal remunerada, na importação maciça de fábricas montadoras, na exportação de produtos baratos e no afluxo de investimentos estrangeiros.

No meio dos abalos do mercado mundial, a colonização econômica do ex “bloco socialista”, em especial do “chão de fábrica básico do mundo”, a China, foi vista como remédio para a tendência para a estagnação econômica mundial. O acordo comercial da China com os EUA, de 1999, definiu mais claramente va inserção do país no mercado mundial na nova etapa econômica. O acordo previa a redução das tarifas de importação dos principais produtos agrícolas, desmantelando, por exemplo, o monopólio estatal da soja. As tarifas chinesas de importação de automóveis baixaram de 80% para 25%. Permitiu-se a formação de sociedades mistas, com até 49% de capital estrangeiro. Os bancos estrangeiros poderiam atuar em território chinês como entidades nacionais, dentro de certos limites. O acordo abriu o caminho para que China ingressasse na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2001, outorgando-lhe as mesmas vantagens dadas aos EUA e a todas as nações centrais. Aliado ao crescimento econômico espetacular da China, isto fez renascer, nos EUA, a China Threat Theory, defendida pela direita do establishment intelectual norte-americano (William Kristol, Robert Kagan, Bill Gertz, o representante republicano Christopher Cox), os defensores do Project for the New American Century (Pnac).

Os imperativos da burguesia norte-americana, açoitada pela crise, porém, eram outros. Na sua mensagem à nação de setembro de 2002, compêndio da “doutrina Bush”, o presidente George W. Bush expressou a linha estratégica dos EUA: “We welcome the emergence of a strong, peaceful, and prosperous China. […] Yet, a quarter century after beginning the process of shedding the worst features of the Communist legacy, China’s leaders have not yet made the next series of fundamental choices about the character of their state. In pursuing advanced military capabilities that can threaten its neighbors in the Asia-Pacific region, China is following an outdated path that, in the end, will hamper its own pursuit of national greatness”. Joseph Nye já advertira, em 1995: ““If you treat China as enemy, then you will have an enemy”.

Nas palavras de Yasheng Huang, professor adjunto da Sloan School of Management do Massachusetts Institute of Tecnology (MIT), dos EUA: “Basicamente, na década de 1990, empresas estrangeiras com sede nos Estados Unidos, Europa, Japão e o restante da Ásia transferiram suas operações de fabricação para a China. Porém, os controles e, consequentemente, os lucros dessas operações, ficam ao encargo de empresas estrangeiras. Embora a China obtenha os benefícios do salário da globalização, ela não retém os lucros da globalização”. O mercado de capitais expandiu-se o dobro que o PIB entre 1993 e 2004. Os bancos de investimento norte-americanos organizaram fundos destinados especificamente a investir nas bolsas de valores chinesas. O Industrial and Comercial Bank of China passou a

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rivalizar, em tamanho, com o Citigroup. O PIB chinês cresceu quase 90% entre 2000 e 2005 (de US$ 1,2 trilhão para US$ 2,2 trilhões), com um crescimento da renda anual per capita de 930 para 1740 dólares no mesmo período.

O governo “comunista” chinês deu esses passos sob a pressão da sua própria crise, em consequência da abertura econômica registrada desde a década de 1970, propiciada, por sua vez, pelo gargalo da economia e da sociedade chinesa depois de duas décadas de construção do “socialismo em um só (imenso) país”. O Estado impôs formas de autonomia para os gerentes de empresas selecionadas, entre 1979 e 1983. Em duas décadas de restauração capitalista, porém, todas as tendências para a sobreprodução e, consequentemente, para a valorização especulativa e fictícia do capital se manifestaram na economia chinesa. Os créditos “podres” do sistema bancário chinês eram, na virada do milênio, da ordem dos 500 bilhões de dólares, garantidos pelo orçamento do Estado. O ingresso da China na OMC significou que seu sistema legal interno iria se transformar com base nos princípios da liberdade de empresa e de comércio, ou seja, do capitalismo. Abriu-se ainda mais a via da colonização econômica e política do país. Desse modo o capital mundial pretendia abrir a possibilidade de superar a contradição entre a necessidade de desenvolvimento e independência da China, e a ordem mundial da globalização capitalista.

As gigantescas exportações chinesas não foram o resultado de uma política nacional de elevação da produtividade comandada por modernas empresas chinesas. Mais de 60% das exportações foram realizadas por empresas estrangeiras. Em categorias como peças de computador e aparelhos eletrônicos, as empresas estrangeiras ficavam com uma parcela ainda maior das exportações. E com a maior parte dos lucros: “O que a China obteve nos últimos anos foi somente alguns belos números. Quem fica com o verdadeiro lucro são as empresas americanas e estrangeiras”, disse Mey Xinyu, do Instituto de Pesquisa do Ministério do Comércio chinês. A taxa de investimentos era equivalente a 40% do PIB, um recorde histórico mundial. As exportações chinesas atingiram um trilhão de dólares, para um PIB de US$ 1,4 trilhão, no início do século XXI, transformando o país na maior plataforma de exportações do planeta, e também no maior centro mundial de acumulação de capital, mas com uma enorme carga financeira de dívidas: a carteira de empréstimos irregulares dos bancos chineses se encontrava na faixa de 70%.

Reservas internacionais de países ricos e de países “periféricos” (em US$ bilhões)

A importação de tecnologia estrangeira foi crucial, à medida que as cadeias de suprimento e de fabricação se tornaram cada vez mais complexas, com cada país produzindo alguns componentes, depois enviados para a China para a montagem final. As grandes empresas dos EUA montavam suas mercadorias na China e as reexportavam. Mas não só as multinacionais dos Estados Unidos e Europa: as alocações para a China de empresas de outras economias asiáticas, como Japão, Coréia do Sul e Taiwan, também foram significativas. A japonesa Panasonic tinha 70 mil funcionários trabalhando na China. A maior produção de tecnologia da

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informação da Toshiba foi deslocada para Hangzhou, ao sul de Xangai. A coreana Sansung instalou 23 fábricas, 50 mil funcionários, e toda sua produção de computadores notebooks na China. “Todo mundo se mudou para a China”, disse Tony Yang, um executivo da Aopen de Taiwan, uma fabricante de computadores e peças: “Nossos fornecedores, nossos compradores, as principais instalações de produção, tudo foi transferido. Os salários em Taiwan são demasiadamente altos”.

O salário mínimo oficial nos Estados Unidos (EUA) era de mais de US$ 800, na China não passava de US$ 70. O embaixador dos EUA na Organização Mundial do Comércio lembrou que o seu país e a China, juntos, eram responsáveis por 50 % do crescimento do PIB mundial. Mas a propriedade do capital e as condições tecnológicas do processo de trabalho eram controladas na China pelas empresas estrangeiras. O valor e o superávit das exportações chinesas aos EUA têm, por isso, que ser relativizado: “Num mundo globalizado, os números comerciais bilaterais são irrelevantes. A balança comercial entre os EUA e a China é tão irrelevante quanto a balança comercial entre Nova York e Minnessota”, disse, com algum exagero, mas partindo de uma base real, Dong Tao, economista chinês da União de Bancos Suíços (UBS) em Hong Kong.

Em que pese o crescimento chinês, e de outros “países emergentes”, o processo desigual de desenvolvimento científico e tecnológico entre as nações continuou e, em áreas decisivas, até se ampliou (registrado, ainda que de modo deformado, nos percentuais respectivos no registro mundial de patentes, que continua sediado nos EUA). Os produtos das empresas americanas ou chinesas, fabricados a baixos preços na China, inundaram o mercado dos EUA (estimou-se que os econômicos produtos chineses resultam numa poupança anual de mil dólares para cada lar norte-americano) sendo responsáveis por 30% do gigantesco déficit comercial dos EUA (de US$ 700 bilhões anuais já no ano 2000). Déficit da economia dos EUA, mas superávit das empresas norte-americanas instaladas na China. O grupo de distribuição Wal-Mart, que criou uma densa rede de franquias na China, passou a ser responsável por quase 10% das vendas chinesas no estrangeiro, a maior parte para os EUA. As enormes reservas internacionais chinesas não foram utilizadas para investimentos internos, mas para comprar títulos do Tesouro americano, financiando o enorme rombo fiscal da maior potência econômica do planeta.

As reservas que se acumularam nos cofres do Banco Popular da China retornaram para os cofres do Banco Central dos EUA, mediante essas compras. Cerca de US$ 465 bilhões em investimentos diretos fluíram para a China de 1995 a 2004, transformando o país num dos destinos preferidos dos capitalistas de todo o mundo. Mas, no “ranking de competitividade” (que mede, basicamente, a produtividade) elaborado pelo World Economic Forum, a “nova potência mundial” ocupava, em 2007, uma modesta 54ª colocação, atrás de países como Barbados, Tunísia, Portugal, Hungria ou Grécia. Tanto China quanto Índia arremetaram no mercado mundial como economias de baixa produtividade, plataformas de exportação (montadoras de commodities industriais) das empresas “globais” dos EUA, UE e Japão. Fábricas vindas de toda parte criaram milhões de empregos para a aparentemente inesgotável massa de migrantes do campo chinês, com salários quatro vezes menores do que os do Brasil, e trinta vezes menores do que os dos EUA.

Salário por hora trabalhada na indústria – média em US$ para o ano de 2002 Estados Unidos 21,11

União Europeia 19,80

Japão 18,65

Coréia do Sul 8,77

Taiwan 5,64

México 2,60

Brasil 2,56

China 0,75

Fonte: Bureau of Labor Statistics (EUA) – International Comparaisons of Hourly Compensations – novembro de 2005.

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Com 50% do comércio externo chinês financiado por bancos ocidentais radicados na China, como o Citibank, em 2000, as grandes petroleiras Exxon, BP Amoco e Shell se apossaram da principal companhia petroquímica e da principal empresa de transporte marítimo de petróleo da China. Os investimentos dos capitalistas taiwaneses na China continental, e os acordos em matérias tão importantes como a energia nuclear, indicaram o nível de entrelaçamento entre os regimes separados pelo estreito de Formosa. Na China, como consequência do redimensionamento industrial lançado em obediência aos acordos comerciais com os EUA e a UE, foram fechadas milhares de empresas estatais.

China, Índia, Indonésia e Nigéria têm as economias mais importantes do mundo, que ainda se encontram, para o Fórum Econômico Mundial, no primeiro estágio de desenvolvimento econômico (com PIB per capita anual menor que US$ 2000). No segundo estágio (com PIB per capita de US$ 3000 a US$ 9000) encontramos Brasil, Rússia, México, África do Sul e Argentina. No estágio 3 (PIB per capita maior que US$ 17000) encontramos as economias dominantes do sistema capitalista. Na China, a remuneração média dos primeiros empregos é muito baixa. Segundo uma pesquisa feita em 2005, mais de 1/5 (20,3%) dos formados no ensino superior ganhava menos de 1000 yuans (100 euros) por mês e quase 2/3 (65,4%) ganhava entre 1000 e 2000 yuans. A renda mensal média da população urbana era inferior a 1000 yuans.

A maioria dos comentários econômicos internacionais se focaram sobre o espetacular crescimento da economia e das exportações chinesas, pouca atenção sendo concedida ao crescimento da polarização e contradições sociais e à literal expropriação econômica da população agrária. A crise social no campo chinês foi descrita pelo correspondente de O Estado de São Paulo, por ocasião de um conflito agrário: “A causa é sempre uma: conflitos por terra e seus desdobramentos econômicos e ambientais. E o procedimento também é padrão: um empreendedor entra em contato com as autoridades de um lugarejo com uma propina suficiente para convencê-las a desapropriar determinada área para novas construções, sejam complexos comerciais, industriais ou residenciais. As fazendas coletivas que se utilizam das terras em questão não possuem a propriedade destas. Ou seja, mesmo querendo, os camponeses não podem vender ou arrendar as terras que utilizam há décadas, e acabam vítimas de esquemas montados pelas autoridades locais. A população rural chinesa, cerca de 800 milhões de pessoas, é a maior vítima do modelo econômico dual colocado em prática nos últimos quinze anos. As empresas estatais do comunismo original, que empregavam a totalidade da população e garantiam seus benefícios sociais, tornaram-se quase todas empresas de capital misto, estatal e privado, mesma equação servindo para o sistema de aposentadorias e seguro social”.17

No crescente descontentamento nas áreas rurais pobres da China, disputas por terras entre camponeses e autoridades locais geralmente acabaram em protestos violentos. Muitos camponeses reclamaram que perderam suas terras para a construção de fábricas e lojas e que não receberam as indenizações prometidas pelas autoridades. Dois fenômenos agravaram a tensão entre cidade campo: a migração da população rural para as grandes cidades (entre 100 e 150 milhões de camponeses deixaram seus vilarejos e foram para as cidades em busca de trabalho); e as cidades passaram a invadir as áreas rurais. O crescimento descontrolado dos centros urbanos da China consumiu as áreas cultiváveis com rapidez, com mais de seis milhões

17

O Leste da Ásia atravessa um dos maiores deslocamentos populacionais (rural – urbano) da história. Dois milhões de novos habitantes urbanos surgem mensalmente (24 milhões anualmente). A China contribui com 80%, com mais de 17 milhões. Vinte anos atrás, por exemplo, Shenzhen não passava de uma aldeia de pescadores. Atualmente, é uma megacidade industrial com mais de dez milhões de habitantes, uma Zona Econômica Especial (ZEE) que abriga mais de cem fábricas e escritórios das corporações multinacionais, 27 hotéis cinco estrelas, etc. Entre 1994 e 2005, a população chinesa cresceu 9,15%, passando de 1,188 bilhão para os 1,300 bilhão de habitantes. No mesmo período, a população rural encolheu 10%, de 854,30 milhões para 767,00 milhões; e a população urbana elevou-se 58,3%, de 336,70 milhões para 533,00 milhões. Em 1994, a população rural chinesa representava 72% da população total, a urbana, 28%. Em 2005, a rural representava 59% e a urbana 41% do total.

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de hectares absorvidos pelas cidades nos últimos 20 anos. Dezenas de milhões de camponeses se mudaram para as cidades como “cidadãos de segunda classe”.

Pouco mais da metade desses trabalhadores camponeses (mingong) está empregada na produção manufatureira e na construção. O resto se concentra no setor de alimentação, hotelaria, comércio, segurança privada ou mesmo em atividades "independentes", como a reciclagem de lixo. Em um sistema de segregação, as pessoas nascidas nas áreas rurais da China têm dificuldade em encontrar casa e escola, e só acham emprego em fábricas de baixos salários e na construção civil. A limpeza das grandes cidades chinesas é em grande parte devida aos mendigos que vagam pelas grandes avenidas à procura de objetos recicláveis, que vendem a preços muito baixos a empresas de reciclagem.

A taxa oficial de desemprego chinês é baixa (4,1% da população urbana no fim de 2006), mas não inclui os migrantes desempregados, os trabalhadores que perderam o emprego, mas ainda dependem da empresa ou do sistema de proteção social (os xiagang zhigong, funcionários públicos aposentados, mas que ainda têm ligação salarial com a empresa de origem), os desempregados sem direitos, e tampouco os jovens que nunca trabalharam formalmente e que não têm direito a seguro desemprego.18 A China está no fim da fila mundial no nível de despesas públicas consagradas à educação e a saúde.

A expropriação camponesa na China e na Índia, com seus gigantescos deslocamentos populacionais, possibilitou uma grande ampliação da massa de operários no capitalismo mundial, criando o trabalho assalariado mais barato do mundo, e rebaixando permanentemente os salários em todas as áreas, inclusive no interior das economias dominantes. Por trás dos negócios com a China apareciam a GM, a ATT, a Boeing, a IBM. A expropriação camponesa na China assumiu a forma de um exército industrial de reserva. Entre 1996-2003, 6,7 milhões de hectares de terras foram retirados do cultivo, três vezes e meia mais do que no período 1986-1995.

Na descrição de Amaury Porto de Oliveira: “Nas suas idas e vindas pelo imenso território chinês, o fluxo de migrantes rurais tem levado de roldão tanto o kukou quanto o danwei, difundindo relações de mercado. Sem o mercado de dimensão nacional de camponeses proletarizados, a China não teria dado os saltos de desenvolvimento que espantam o mundo. As condições que eles foram aceitando são escorchantes, mas podem parecer-lhes melhor que a vida nos grotões, e a aceitação delas é determinada pela pressão das legiões que se acotovelam no exército industrial de reserva”. 80% dos migrantes que deixam a terra sem deixar o campo são empregados da indústria rural, e metade deles não precisa sair da sua província natal.

Significa isto que está “sobrando” mão de obra no agro chinês, graças aos ganhos de produtividade? É o que afirma Jonathan Watts: “A concessão de estímulos materiais aos camponeses, representada pela liberdade de vender livremente no mercado o excedente de sua produção, evidentemente tem um papel central na explicação do alto crescimento da produção e produtividade agrícola após as reformas. Nesse quadro compreende-se como a agricultura chinesa foi capaz de aumentar rapidamente a oferta de matérias primas e alimentos com níveis crescentes de produtividade, elevando assim a renda das famílias camponesas, que foi favorecida também pela relação de preços favoráveis à agricultura”. Mas

18

Uma pesquisa feita em 2005, em quatro grandes cidades, indicou que o desemprego entre os jovens (de 15 a 29 anos) atingia 9%, contra 6,1% para o total da população urbana. Além disso, segundo o sociólogo Shen Jie, "a maior parte dos empregos para jovens não dá direito a benefícios nem proporciona estabilidade; trabalham muitas horas por salários bastante baixos". O desemprego também atinge os que têm diploma do ensino superior. O número de formados subiu de 1,07 milhões, em 2000, para 4,3 milhões, em 2006 – 13% ao ano. A economia chinesa tem muita dificuldade em absorver um número tão grande de diplomados, que correspondeu a quase metade dos 9 milhões dos ingressantes do mercado de trabalho em 2006, e que esperam um emprego. Estima-se que 60% dos formados em 2006 não tenha conseguido arranjar emprego.

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não é isso que refletiram as estatísticas da FAO, que demonstraram a diminuição progressiva da capacidade de se garantir a produção de cereais na mais populosa economia do planeta, assim como sua mecanização:

China – produção de arroz (anos selecionados)

ANO Milhões Toneladas

ANO Milhões Toneladas

1970 113,1 2001 179,3

1980 142,8 2002 176,3

1990 191,6 2003 162,3

1995 187,2 2004 180,5

2000 189,8 2005 185,4

Quantidade de tratores por superfície agriculturável

1979-1981: 7.6 tratores/1000 hectares (ha). 1989-1991: 6.7 tratores/1000 ha. 2000: 7.2 tratores/1000 ha. 2001: 5.9 tratores/1000 ha. 2002: 6.5 tratores/ 1000 há.

Disponibilidade per capita de alimento de base

1990: 388,51 gramas 1995: 378,96 gr 2000: 364,87 gr 2004: 288,16 gr

O “socialismo de mercado” chinês não conseguia produzir alimento suficiente para sua população,19 sem compensar, através de importações, a redução estrutural da produção de alimentos, para garantir pelo menos o mesmo nível de oferta interna. Ao contrário, subtraindo do mercado interno uma parte da produção de cereais, mantendo um permanente superávit comercial na balança de importações e exportações de arroz, o governo de Pequim passou a remeter anualmente para o exterior aproximadamente 1,5 milhões de toneladas de arroz, diminuindo ainda mais a oferta interna do produto.

A crise asiática iniciada na Tailândia em 1997 questionou a liderança regional do Japão, o que deu à China oportunidade de se colocar à frente, optando pela não desvalorização de sua moeda, o que evitou uma onda de desvalorizações competitivas. A reestruturação de toda a indústria petrolífera, juntamente com a suspensão momentânea das importações de petróleo, foi a resposta chinesa diante da pressão da crise financeira asiática. Em 1997, a produção de petróleo alcançou importantes resultados na China, com um ingresso fiscal de US$ 4,1 bilhões, entre benefícios e arrecadação tributária. Foram criadas a Corporação Nacional de Petróleo e Gás Natural da China (CNPC) e a Corporação Nacional Petroquímica da China, novas empresas estatais. O objetivo do 9º Plano Quinquenal vislumbrou sua transformação em multinacionais com capacidade competitiva internacional. Mas, a partir de 2000, as grandes petroleiras e petroquímicas internacionais começaram a penetrar agressivamente no mercado chinês.

A penetração do capital mundial no antigo “bloco socialista” (ou “estatal”, no caso da Índia), no entanto, só acirrou a concorrência internacional e, de saída para a crise capitalista mundial, se transformou em fator impulsionador dela. As indústrias se instalaram para produzirem na China produtos de segunda linha, sem respeito à propriedade industrial (pirataria) nem ao direito do consumidor e, com isso, constituir grandes fortunas. Este processo de enriquecimento se assemelha ao processo de uma “acumulação primitiva” atípica, com lavagem de dinheiro de drogas, corrupção, contrabando e outras atividades próprias do crime organizado. As fábricas chinesas pirateiam software, músicas, vídeos e produtos de grife norte-

19

Em 2003, a pobreza era comprovada pela desnutrição de 10% da população, e por entre 9% e 17%, ou seja, entre 110 e 220 milhões de chineses, mantidos na faixa de pobreza.

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americanos, no valor de bilhões de dólares: quase todas as operações pertencem a companhias estrangeiras, dos EUA ou que procedem de nações aliadas e parceiras comerciais dos EUA.

Sem dúvida, como constatou Santana Souza, na China verificou-se “(i) expansão da desestatização produtiva (com o avanço da propriedade privada e do grande capital sobre os meios de produção), (ii) maior alienação dos trabalhadores das estruturas de poder político, (iii) aumento das desigualdades sociais e regionais (com aumento do controle do capital sobre as decisões econômicas e sobre o processo de trabalho), e (iv) maior polarização e divisão da sociedade em classes sociais com interesses e identidades antagônicos. Esses elementos configuram uma nova e regressiva natureza da formação sócio econômica da China, a despeito das proclamadas intenções socialistas das autoridades”. Os problemas da restauração capitalista na China, porém, não se esgotam nessas características.

Em 2004, China foi o principal importador mundial de cimento (importou 55% da produção mundial), de carvão (40%), de aço (25%), de níquel (25%) e de alumínio (14%). E o segundo principal importador mundial de petróleo, depois dos EUA. Essas importações maciças provocaram uma explosão de preços nos mercados mundiais, em especial os do petróleo. A transformação da China em “fábrica do mundo”, e da Índia em país de realocação das atividades de serviços de informática e de produção de softwares, teve também efeitos importantes no domínio financeiro mundial.

Com o crescimento econômico de dois dígitos anuais, a China foi perdendo paulatinamente, em vastos setores, em especial de manufatura de massa, o “privilégio” dos mais baixos salários do planeta para outros países também populosos (Índia, Indonésia, Vietnã, entre outros). O crescimento das exportações foi seguido de importantes investimentos de capital no exterior, tanto em países “desenvolvidos” como em outras áreas, inclusive África e América Latina. China passou a ser ativa na área de pesquisa e inovação tecnológica (P&D): em 2004 havia 107 centros independentes de P&D de multinacionais na China; em 2010, eles já somavam 1.100. Como nas exportações, as empresas estrangeiras comandam o processo. Com esses avanços, as exportações chinesas se movimentaram na cadeia de valor (com maior valor agregado), competindo com os países desenvolvidos: em 2012, a exportações chinesas de bens de capital superariam às da Alemanha, já tendo deixado o Japão para trás.

O processo de restauração capitalista na China, com um mercado “livre” privado de capitais e de força de trabalho, não se completou, mas passou a sofrer das mazelas desse tipo de mercado. Na China, o Estado controla o sistema financeiro nacional, através dos bancos estatais, e criou uma dívida enorme para estimular a economia chinesa na medida em que esta era golpeada pela crise mundial, criando cidades vazias, uma infinidade de canteiros de obras e de obras inúteis, e uma enorme “bolha imobiliária”. O controle estatal do sistema financeiro e de inúmeras empresas não significa a sobrevivência na China das bases (ainda que deturpadas) de uma economia socialista, pois o Estado chinês usa esses recursos em favor da restauração e da acumulação de capital. As exportações de capital chinês, para todos os continentes e regiões do mundo, por outro lado, não criaram um novo centro imperialista (no sentido capitalista do termo), pois ainda ficaram longe de perfazer o montante global dos investimentos estrangeiros na própria China.

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4. O BOOM ESPECULATIVO

A transferência para os assalariados das pressões deflacionistas sofridas pelas empresas se fez acompanhar, na esfera financeira, de uma baixa das taxas de juros de longo prazo e de uma modificação do movimento de longa duração das ações. Do lado das empresas, as aposentadorias com prestações definidas foram maciçamente convertidas em fundos de previdência privada, onde são os assalariados que suportam os riscos. Do lado dos fundos de aplicação financeira, ocorreu uma fuga na direção das operações cada vez mais arriscadas sobre ativos cada vez mais opacos. A tendência para a deflação empurrou os investidores para as aplicações especulativas, mundialmente. A proporção de ativos financeiros mundiais em relação à produção anual disparou de 109%, em 1980, para 316% em 2005. Em 2005, o estoque mundial de ativos financeiros principais totalizou US$ 140 trilhões. Esse crescimento na movimentação financeira foi particularmente acentuado na “zona do euro” (a UE): a relação entre ativos financeiros e PIB na região deu um salto de 180%, em 1995, para 303% em 2005. No mesmo período, a taxa cresceu de 278% para 359%, no Reino Unido, e de 303% para 405%, nos EUA.

Crescimento do mercado de derivativos

A grande aceleração do movimento da especulação se deu nos primeiros anos do século XXI, provocada pela própria crise. Em 2001, os atentados de 11 de setembro em Nova York provocaram o fechamento da Bolsa de Nova York durante uma semana. Em sua reabertura, o índice Dow Jones sofreu a maior perda em pontos de sua história, de 684,81 pontos. Depois das lamentações relativas às perdas de “capital humano” sofridas pelas empresas financeiras com sede nas “torres” seguiram-se, com uma distância de pouco mais de uma semana, as notícias da demissão em massa de milhares de funcionários dessas mesmas empresas, com a

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Morgan Stanley à frente, cujos mortos nas torres foram em número menor que os demitidos logo depois dos atentados. O problema real, portanto, era a crise da economia norte-americana. Antes do atentado de 11 de setembro, o dia 18 de abril de 2001 tornara-se data fatídica também para os EUA: a taxa oficial de juros dos EUA, pela primeira vez depois de muitos anos, desceu abaixo da taxa da União Europeia, alcançando uma diferença de até -1,25 depois de ter chegado a +2,75. Uma queda total de 4%, com a taxa de juros dos EUA aproximando-se de zero.

Portanto, bem antes do fatídico 11 de setembro de 2001, sintomas da crise eram já evidentes, com o estouro da "bolha da Internet" (dot-com bubble), quando o índice Nasdaq (que mede a variação de preço das ações de empresas de informática e telecomunicações) despencou. As manobras do Federal Reserve (FED) de Alan Greenspan, com as taxas de juros e as cotações do dólar, a consequente gangorra volátil e precária relativa à importação de capital estrangeiro para pagar o rombo corrente de mais de 500 bilhões de dólares das importações, e o intrincado jogo especulativo dos “fundos” (de pensão e de investimento), mostravam cada vez mais seu fôlego curto, eram manobras de maquiagem financeira para especuladores que apostavam na baixa, no jargão financeiro chamadas de insider trading, que acumularam, em seu nome e em nome de seus clientes, mas em prejuízo do conjunto da Bolsa de Valores, centenas de milhões de dólares depois do desabamento das Torres Gêmeas.

O atentado às Torres Gêmeas não provocou a crise mundial, mas a colocou em evidência. Os EUA ficaram impelidos, por um lado, a exercer um “ato de autoridade”, pois do contrário revelariam sua fraqueza até no plano militar. Mas por outro lado, correram o imenso risco de que esse “ato de autoridade” acentuasse a crise mundial, e minasse essa mesma autoridade de um modo decisivo. Os EUA responderam ao ataque “simbólico” de Al Qaeda com toda a força de sua potência social e militar. A destruição das torres de Manhattan, por outro lado, provocou uma queda financeira que já estava latente em todas as bolsas de valores. Depois de ter caído 40% no ano precedente, as ações das “empresas tecnológicas” se encontravam ainda sobrevalorizadas devido à queda de seus lucros, ao crescimento espetacular de suas dívidas, e ao aumento ainda maior de sua capacidade industrial ociosa; a utilização das redes de cabos de fibra ótica, por exemplo, por parte das empresas de telecomunicações, caíra 10%. A crise das empresas de novas tecnologias afetou o sistema bancário, que já não tinha condições de seguir financiando esse setor. A economia mundial estava entrando em uma recessão generalizada.

Na última semana de setembro de 2001, os analistas financeiros discutiam acaloradamente se o índice Dow Jones (Industrial Average) e o Nasdaq teriam já batido no fundo (após os atentados) ou se os períodos de pânico ainda estariam por acontecer. O FED lançou mais de 600 bilhões de dólares de liquidez no mercado em 2001. A taxa de inadimplência em títulos de dívida de empresas de alto risco, segundo relatório da Moody’s Investors Service, atingiu o maior nível em dez anos, em outubro de 2001. A inadimplência no financiamento imobiliário e falências pessoais também subiram. Na base dessa deterioração do crédito, encontrava-se o movimento de deflação global.20 Frente à ameaça, o FED entrou em ação: cortou os juros de seus fundos federais (parâmetro para o mercado interbancário e para os empréstimos às empresas e consumidores individuais) em 5 pontos percentuais, levando-os para 1,75%, deixando-os portanto no menor nível nominal dos últimos 50 anos. A corrida do FED, porém, não conseguiu reerguer a produção industrial, em queda por 19 meses consecutivos. Os economistas avaliaram com um otimismo exagerado a capacidade da queda dos juros de curto prazo do FED para combater a crise americana. A “política monetária ativa”, executada por

20

Como acontece com a tendência à queda da taxa geral de lucro, só a deflação pode ocorrer no longo-prazo, na trajetória de vários ciclos econômicos. A inflação, não. Determinados pela necessária elevação da composição orgânica do capital e correspondente queda da taxa geral de lucro, os preços apresentam uma tendência à queda, ou seja, à deflação.

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Alan Greenspan, se defrontava com uma realidade inesperada, não prevista na “teoria quantitativa da moeda”: apesar das aparências, mesmo com as sucessivas reduções da taxa nominal de juros pelo FED, a taxa real de juros de curto prazo de todos os devedores americanos (empresas e indivíduos) ainda estava muito elevada. A Goldman Sachs constatou que “a taxa real de juros caiu apenas metade do que parece, por causa da queda simultânea da inflação esperada”. O que se chama de “queda da inflação esperada” nada mais é do que deflação.

A perspectiva era que a deflação americana poderia provocar taxas de juros reais significativamente elevadas, mesmo se a taxa nominal do FED fosse reduzida a níveis muito próximos de zero. Essa é a razão pela qual o presidente do FED agiu agressivamente em 2001, para manter os juros abaixo da inflação em queda. Os EUA tinham começado a experimentar o mesmo processo vivido pelo Japão e as economias asiáticas a partir de 1997. Com inflação em queda e a possibilidade que isto se transformasse em um processo deflacionário, as taxas reais de juros nos EUA estavam ficando elevadas. O crescimento econômico dos EUA na década de 1990 (entre 1982 e 2000 a economia norte-americana só teve 9 meses de recessão, em 1991) mostrou assim seu caráter especulativo, baseado na generalização das suas contradições econômicas para toda a economia mundial. As previsões de índices de crescimento mundial de 2,6% em 2001 e de 3,5% em 2002 foram rebaixadas para 2,4%. Em 2002, após dois anos de “recuperação”, a Nasdaq sofreu novamente uma queda. A falsificação das contas da empresa americana Enron e a fraude do grupo de telecomunicações WorldCom desestabilizaram as Bolsas do mundo, levando as duas empresas gigantes da “nova economia” à falência.

As falências atingiram a economia norte-americana; em todas elas, os balanços contábeis tinham sido adulterados. No caso da WorldCom os valores efetivamente fraudados foram muito maiores do que os US$ 3,5 bilhões denunciados inicialmente: atingiram a cifra de US$ 9,5 bilhões. Foi descoberto que muitas outras empresas também falsificavam seus balanços. A legislação americana foi modificada em caráter emergencial, com as empresas sendo obrigadas a declarar seus balanços sob o império de novas regras. Posteriormente, executivos e diretores foram levados às barras dos tribunais e condenados. Os mercados mundiais registraram quedas inéditas: Frankfurt perdeu 43,9%, Paris 33,7% e Londres 24,8%. A Bolsa de São Paulo também sofreu: uma grande parte das aplicações na Bovespa não era feita por brasileiros, mas, principalmente, pelos fundos de pensão dos EUA, e essas ações tiverem uma queda brusca, pois os fundos de pensão norte-americanos haviam perdido mais de US$ 500 bilhões na Nasdaq. No Brasil, foram perdidos mais de 100 bilhões de reais.

O governo norte-americano decidiu intervir com planos de aquecimento da economia, para evitar um efeito dominó que atingiria as empresas de todo o mundo: adotou políticas de aquecimento do mercado interno, com “efeito multiplicador de renda”. O setor escolhido para a realização dos incentivos foi o setor imobiliário, que recebeu políticas de redução na taxa de juros e nas despesas financeiras, além de induzir os intermediários financeiros a incentivar os clientes a investir no setor através de garantias do governo. Os investidores internos e externos (principalmente bancos) viam segurança em investir em um setor que possuía garantias do governo dos EUA. Com este sistema operante, o mercado de crédito imobiliário foi expandido para uma “demanda reprimida” de baixo poder aquisitivo.

O lastro destes empréstimos concedidos a partir do plano do governo, os créditos ditos subprime, era realizado totalmente em títulos negociáveis no mercado financeiro. Estes títulos eram “securitizados” e posteriormente “derivados” em intermináveis graus no mercado de valores norte-americano. O gráfico que segue evidencia o crescimento fora do padrão das famílias proprietárias de residências (em percentual em relação à população total) a partir de 2002:

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A “securitização” permitiu aos títulos sua transformação em títulos livremente negociáveis, que passaram a ser vendidos para outros bancos, instituições financeiras, companhias de seguros e fundos de pensão pelo mundo afora, sistema julgado com o mais alto patamar de segurança pelas agências mundiais. A economia norte-americana conheceu um boom na primeira década do novo século.

Utilização da capacidade instalada (anual - %) dos EUA

Com a redução da taxa de juros e, especialmente, com a securitização, que “difundia” o risco para o mercado, o crédito ao consumidor passou a crescer. Entre 2000 e 2005, o valor de mercado de imóveis cresceu mais de 50%, e houve um boom de novas construções. Metade do crescimento do PIB norte-americano no primeiro semestre de 2005 esteve ligado ao setor imobiliário, fosse diretamente, por meio de construção de casas e consumo relacionado, como compra de mobília nova, ou indiretamente, pelo consumo com o dinheiro obtido com o refinanciamento de hipotecas. Foi verificado um aumento vertiginoso nos valores dos imóveis de 2004 para 2007, com taxa de crescimento anual superior a 10%. Ao se registrarem elevações tão grandes nos preços dos imóveis, as dívidas contraídas também aumentavam, tornando as hipotecas mais longas ou mais caras aos bolsos dos clientes.

Os empréstimos imobiliários feitos por instituições americanas foram revendidos para financistas organizados em fundos de investimento, fundos de pensão e hedge funds, que encontravam garantia nas prestações dos imóveis e, em último caso, no próprio valor dos imóveis, que passaram a se elevar consideravelmente com a especulação. Uma "inovação" teve lugar quando a operação passou a ocorrer com hipotecas para tomadores de "alto risco" – os subprime borrowers. O percurso da “inovação financeira” tomou rumo mundial sob o comando dos “grandes atores do mercado”. Os empréstimos inicialmente eram reagrupados em títulos caucionados em hipotecas (Mortgage-Backed Securities – MBS) que possuiam um mercado secundário altamente líquido e dinâmico nos Estados Unidos.

Em seguida, esses MBS eram adicionados a outros títulos (débitos de cartões de crédito, aluguéis de automóveis, "recebíveis" de corporações etc.) e reagrupados em outros títulos hipotecários caucionados, operação de “inovação financeira” cujo produto denominou-se Collateralized Debit Obligations Securities, as CDO securities: títulos de créditos estruturados (“Obrigações de Débito Caucionadas”). Essas invenções financeiras dos bancos de

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investimento eram confeccionadas para clientes específicos, nunca comercializadas abertamente. Segundo Richard Beales, "se colocou a questão sobre se de fato hedge funds, investment banks e até fundos de pensão e grupos de seguro sabiam o quanto valiam os títulos que eles detinham".

Sobre essas bases, a economia mundial retomou o crescimento, a partir de 2002-2003, abrindo um novo ciclo periódico de expansão global da produção de capital e do comércio internacional. A taxa básica de juros dos EUA baixou para 1% em 2003. O crescimento foi, no entanto, bastante desigual, mundialmente considerado:

Região/país 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007

Mundo 2,5 2,8 3,6 4,9 4,4 5,0 4,9

Países desenvolvidos 1,2 1,6 1,9 3,2 2,6 3,0 2,7

- Alemanha 1,2 0,0 -0,3 1,1 0,8 2,9 2,5

- EUA 0,8 1,6 2,5 3,6 3,1 2,9 2,2

- Japão 0,2 0,3 1,4 2,7 1,9 2,4 2,1

- Área do Euro 1,9 0,9 0,8 2,1 1,6 2,8 2,6

Países em desenvolvimento 3,8 4,7 6,2 7,5 7,1 7,8 7,9

- África 4,9 6,1 5,3 6,5 5,7 5,9 6,5

- América Latina e Caribe 0,7 0,4 2,1 6,2 4,6 5,5 5,6

- Brasil 1,3 2,7 1,1 5,7 3,2 3,8 5,4

- México 0,0 0,8 1,4 4,2 2,8 4,8 3,3

Ásia 5,8 6,9 8,1 8,6 9,0 9,6 9,7

- China 8,3 9,1 10,0 10,1 10,4 11,1 11,4

- Índia 3,9 4,6 6,9 7,9 9,1 9,7 9,2

Fonte: FMI, World Economic Outlook Database, 2008.

Desde a crise da Bolsa de Nova York de 2000 acentuou-se o entrosamento entre as economias de China e dos EUA, eixo da retomada econômica internacional desde 2002. O déficit fiscal norte-americano produziu um incremento das exportações chinesas aos EUA e outros países. Isto explica porque um incremento de 4% do PIB mundial produziu um crescimento de 12% do comércio internacional. Uma crise desse entrosamento faria desabar o comercio mundial. O yuan chinês acompanhou a desvalorização de 40% do dólar, enquanto o euro ficou 40% más caro, o mesmo que o yen japonês. Isto provocou uma drástica queda do crescimento de suas economias, inclusive com quebras industriais (em especial na Itália e na Alemanha).

Enquanto a funcionalidade do capital fictício para a acumulação mundial de capital prevaleceu, esta apresentou uma relativa consistência, no período entre 2002 e 2007. As economias asiáticas, China e Índia, com os salários mais baixos do planeta, cresceram espantosamente. Também houve crescimento forte em alguns países latino-americanos, com base na elevação de preços das commodities, petróleo em especial; entre os “desenvolvidos” cresceu mais a economia estadunidense. Cresceram, em geral, as produções nacionais, os saldos no comércio internacional, o crédito, as reservas internacionais. Um dos fios condutores da análise de Michel Aglietta sobre a economia mundial diz respeito à taxa de poupança. Ela é baixa demais em alguns países, alta demais em outros. Os Estados Unidos, onde ela se tornou negativa, e a China,21 com taxas elevadíssimas, representavam os polos extremos dessa distorção.

A deflagração das guerras do Iraque e do Afeganistão aumentou os gastos armamentistas, estimulando assim um crescimento generalizado da indústria militar e dos setores ligados ao provimento das Forças Armadas. Essas medidas conseguiram suavizar a crise de 2001-2002, mas só adiaram as contradições do capitalismo norte-americano, elevando o endividamento das empresas, dos consumidores e do Estado. Os EUA procuraram ampliar os limitados

21

Na China, para Aglietta, além dos reflexos de entesouramento que mergulham suas raízes na história, lida-se com “uma poupança de precaução ante a degradação dos sistemas públicos de proteção social, de educação, de aposentadoria, diante do risco de perda de emprego nas empresas estatais subsistentes”, ou seja, a destruição das conquistas sociais da revolução chinesa, realizada pela burocracia governante.

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objetivos da “guerra contra o terror” até uma completa colonização do Oriente Médio, incluindo o Golfo Pérsico e a Ásia Central, consideradas como regiões estratégicas não só para a produção e o transporte de petróleo, mas também para o controle político daquilo que seus estrategistas chamam de “tabuleiro euro-asiático”.22 Em 2005, as despesas militares dos Estados Unidos atingiram a soma de 500 bilhões de dólares, o equivalente às despesas militares do resto do mundo.

David Ignatius comentou, no Washington Post: “A única boa ação de Osama Bin Laden poderia consistir no fato de ter colocado em ação as forças que porão fim ao grande colapso econômico de 2001”. Lhe fez eco o Prêmio Nobel Paul Samuelson: “Os esforços do bombardeio no Afeganistão e, possivelmente, em outras regiões, absorverá contingentes humanos e seus gastos darão alguma contribuição ao PIB”. Em boa hora (para o capital, não para os bombardeados). As “novas” guerras, porém, não envolviam somente a rivalidade comercial relativa ao petróleo e aos mercados de matérias primas da Ásia Central. Seu fio condutor foi a luta pela conquista econômica e política do espaço geopolítico deixado vazio pela dissolução da União Soviética, e pelo controle da restauração capitalista na China.

Na então segunda economia do mundo, o Japão, por sua vez, a dívida publica ultrapassou 130% do PIB (a dívida pública bruta do Japão em 1990 era de 69% do PIB). Os EUA pressionaram o governo japonês para apressar a baixa contábil dos “créditos podres” existentes nos balanços dos bancos japoneses, mas eles não podiam fazer isso, pois esses créditos eram superiores à soma do capital registrado de todos os bancos. A “mágica” do governo japonês foi comprar as ações em poder dos bancos pelo seu valor contábil, com dinheiro do Tesouro público. A população reagiu com palavras não publicáveis. O Japão estava, desde a depressão da década de 1990, com quase quatro milhões de desempregados, correspondentes a 5,5% da população economicamente ativa. A Fujitsu, maior fabricante de computadores do país, cortara mais de 5000 empregos, devido à queda das encomendas externas.

O ambiente regulatório ao longo desses anos inspirou-se nos Acordos da Basileia, compostos por índices de capital em relação aos ativos, segundo tipos de riscos, por agências de classificação de risco, por modelos de autogestão armados pelos grandes players bancários, pela supervisão "a distância" por parte dos bancos centrais, e pela suposta disciplina de mercado na prática da transparência das informações. Os bancos centrais deixaram solta a capacidade do sistema em criar riqueza financeira em escala global, com significativa participação direta e indireta dos bancos através de organizações paralelas. Essas organizações especiais, e os instrumentos financeiros exóticos, ficaram conhecidos como shadow financial

22

Se tivessem que depender apenas das suas reservas e da sua produção, o petróleo dos EUA acabaria em pouco menos de dez anos. Os EUA são o maior consumidor mundial de petróleo, mais da metade dele importado. A dependência das demais potências (a exceção é a Rússia) é ainda maior: Japão, Alemanha, França, Itália dependem em quase 100% das importações de óleo. As reservas internacionais estão concentradas em quatro áreas: na Arábia Saudita, no Iraque, na Venezuela e na Ásia Central (nas ex repúblicas soviéticas). As reservas de petróleo do Oriente Médio chegam a mais de 700 bilhões de barris, contra uns 30 bilhões dos Estados Unidos. O Oriente Médio e as repúblicas petrolíferas da Ásia Central passaram a ser a joia mais cobiçada pelos grandes grupos internacionais dos EUA e da Europa. Os EUA instalaram bases militares na Arábia Saudita, Turquia e Catar, como fruto da primeira guerra contra o Iraque. Antes da Guerra do Golfo, eram dez as bases americanas na Ásia Central, agora são 22. Joseph Stiglitz calculou o custo da guerra entre US$ 1,026 trilhão e US$ 1,854 trilhão. O governo de George W. Bush Jr. estimara, em 2002, um custo de... US$ 60 bilhões. China e Índia, por sua vez, detendo um terço da população mundial, cresceram nas duas últimas décadas a uma taxa entre 6% e 10% a.a. Até 2020 a China deveria aumentar em 150%, o seu consumo energético, e a Índia em 100%: nenhum dos dois tem condições de atender suas necessidades através do aumento de sua produção doméstica de petróleo ou de gás. China já foi exportadora de petróleo, mas hoje é o segundo maior importador do mundo, o que atende um terço de suas necessidades. Na Índia, sua dependência do fornecimento externo de petróleo é ainda maior do que a da China e, nos últimos 15 anos, passou de 70 para 85% do seu consumo interno. Japão e Coréia do Sul permanecem altamente dependentes de suas importações de petróleo e de gás, o que contribui para a intensificação da competição econômica e geopolítica dentro da Ásia.

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system. Um mundo de capital fictício a operar, fora dos balanços dos bancos, fora da vista das autoridades monetárias, em autoexpansão descontrolada, mas funcional às necessidades de valorização do imenso capital excedente acumulado no mundo.

Não era uma tendência recente. Segundo Paul McCulley, diretor executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco, o global shadow banking system incluiu todos os agentes envolvidos em empréstimos alavancados que não tinham, pela norma vigente antes da eclosão da crise, acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais. Esses agentes tampouco estavam sujeitos às normas “prudenciais” dos Acordos de Basiléia. Nessa definição, enquadram-se os grandes bancos de investimentos independentes (brokers-dealers), os hedge funds, os fundos de investimentos, os fundos private equity, os diferentes veículos especiais de investimento, os fundos de pensão e as seguradoras. Nos Estados Unidos se somam a eles os bancos regionais especializados em crédito hipotecário (que não têm acesso ao redesconto) e as agências financeiras quase públicas (Fannie Mae e Freddie Mac), criadas com o propósito de prover liquidez ao mercado imobiliário norte-americano.23 Desde 1980 os mercados foram amplamente utilizados para a negociação de derivativos financeiros, com o que as instituições financeiras buscavam cobertura de riscos de câmbio, de juros e de preços de mercado de outros ativos. Especulavam também sobre a tendência desses preços ou efetuavam operações de arbitragem. As relações entre o sistema bancário e o shadow banking system, desde final da década de 1990, ultrapassaram a concessão de créditos ao "sistema sombra". Os mercados de balcão passaram a negociar derivativos de crédito e outros títulos, que receberam a denominação ampla de "produtos estruturados". O sistema bancário e o shadow banking system se interpenetraram de forma inextricável.

Poucas vezes se investiu e se produziu tanto na indústria e no agronegócio mundial; poucas vezes se expandiu com tanta liberalidade o crédito e o endividamento dos indivíduos, das empresas e dos governos; no comércio internacional, nunca se comprou, se vendeu e se gerou tanto superávit comercial; poucas vezes os negócios nas bolsas de valores do mundo alcançaram níveis tão elevados. No final do ciclo, devido à gigantesca superprodução de capital, começaram a aparecer, na economia norte-americana, os primeiros sinais de um novo período de crise: desaceleração da produção industrial, elevação de estoques de imóveis não vendidos, deflação nos preços de produção internos dos principais bens de consumo duráveis, dos preços do comércio internacional de commodities.

O déficit público norte-americano aumentou, no terceiro trimestre de 2006, em 3,9%, chegando a 6,8% do PIB: um aumento de mais de US$ 225 bilhões em apenas três meses. O último recorde no déficit em conta corrente havia sido no último trimestre de 2005, US$ 217,1 bilhões: anualizado, o déficit ultrapassara US$ 650 bilhões. Todo agravado pela estrutura da economia capitalista norte-americana: os EUA apresentam o mais baixo consumo final público (incluído o consumo militar) em percentagem do PIB, e estão entre os países que menos gastam com pagamentos de transferências para a segurança social, em um país em que 23

A Fannie Mae foi criada com a função de emitir garantias de títulos baseados em empréstimos hipotecários. A Freddie Mac tinha a função de adquirir e vender hipotecas convencionais das Savings & Loans, inclusive as não garantidas. O desenvolvimento do segmento de hipotecas securitizadas proporcionou a recuperação da construção residencial norte-americana apartir de 1992. A operação de securitização tem início quando a instituição originadora, a Ginnie Mae, a Fannie Mae, ou um banco, cria outra instituição, denominada Specific-Purpose Vehicle – SPV, ou “veículo de finalidade específica” –, que compra parte do portfólio da instituição – hipotecas, no caso –, emitindo títulos lastreados nessas hipotecas, ou seja, MBSs. Normalmente, os compradores (geralmente investidores institucionais, como fundos de pensão) requerem que esses títulos sejam de elevado grau de investimento (AA ou AAA). Para tal, a SPV recebia garantias de uma instituição financeira – do próprio banco originador, da FHA ou da Ginnie Mae – de forma que não se tornava difícil obter o grau adequado junto às agências classificadoras de risco. O motivo é que se tornou consenso nos mercados financeiros que essas agências receberiam socorro do Tesouro em caso de desequilíbrios patrimoniais, pelo caráter público da FHA e da Ginnie Mae, ou pela importância das outras agências, como a Fannie Mae e a Freddie Mac.

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metade dos habitantes possui apenas 2,5% da fortuna nacional; os 10% mais ricos detêm 70%. As despesas de consumo público, excluídos os gastos militares, foram, por exemplo, de apenas 11,8% do PIB em 2007.

Componentes da despesa pública em 200724

América Latina, que inclui alguns dos chamados “mercados emergentes”, por sua vez, conheceu um desempenho econômico convulsivo no período considerado, expresso em quedas e altas abruptas do seu crescimento, o que punha em evidência economias com baixo grau de autonomia (financeira, industrial e comercial), altamente dependentes, portanto, das inflexões do mercado mundial. Nos primeiros anos do novo século, mais de 75% do PIB regional atingiu classificações de risco de crédito dentro do "grau de investimento", algo nunca ocorrido no passado. Em 2008, a região apresentava solvência, com 70% de sua dívida coberta por reservas internacionais - patamar bem acima dos índices verificados no Leste Europeu, por exemplo. Durante o período 2003-2007, América Latina recebeu um volume recorde de investimentos estrangeiros, superior a US$ 300 bilhões. Suas multinacionais (brasileiras em especial) lançaram-se a outros mercados comprando importantes ativos, inclusive em países desenvolvidos. O PIB da região cresceu numa média de 5% anual entre 2003 e 2008, com um incremento médio superior a 3% no produto per capita.

Um fator alardeado foi a redução drástica das dívidas denominadas em dólares. Mas isto ocultou a natureza real do processo econômico, embutida na valorização monetária propiciada pela “estabilização monetária”. A dívida externa foi “zerada”, a partir do fato de que as reservas internacionais do país – o total de moeda estrangeira conversível, aceita no mercado internacional – superaram o montante da divida externa, pública e privada, o que criou a ilusão da superação da dependência financeira externa. Mas o endividamento assumiu outras características. O endividamento em condições de abertura à livre movimentação cambial de empresas estrangeiras e nacionais não podia ser aferido apenas pela dívida externa formal, em títulos e contratos do governo e de empresas privadas. A dívida real, passível de ser saldada em moeda conversível, devia ser avaliada em conjunto com a situação da dívida interna em títulos públicos, a dívida mobiliária federal, por ser viável a troca de títulos da dívida externa por papéis da dívida pública. Um título público brasileiro, por exemplo, que vence em 2045, oferecia 7,5% de interesse por cima da inflação, o mesmo título do Japão pagava somente 1%.25 No custeio da dívida pública, os gastos saltaram de 18,75% do orçamento federal, em

24

A despesa pública total (coluna 1) compreende: a) as compras diretas do Estado, que contribuem diretamente para a demanda agregada total e, b) as despesas que redistribuem rendimento e capital dentro da economia, tais como o pagamento de juros, pagamento de transferências para a segurança social, subsídios agrícolas e apoios ao investimento. [10] As despesas de consumo final público (coluna 2) constituem a maior componente da parte das compras públicas da coluna 1 e incluem os gastos para fins militares. As transferências para a segurança social (coluna 3) englobam a totalidade dos esquemas de segurança social que cobrem o conjunto da comunidade, constituindo a principal fatia das despesas com a proteção social. Os dados sobre os gastos militares (coluna 4) referem-se a 2006. 25

Houve uma expressiva formação de reservas internacionais pelo Brasil, em decorrência dos saldos comerciais obtidos pela alta de preços - puxada pelo crescimento da demanda mundial de commodities - de produtos com

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1995, no primeiro ano de FHC, para 42,45% em 2005, no terceiro ano da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (um aumento de 126%).

Os êxitos econômicos latino-americanos do início do século XXI, quando, segundo os experts da OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), América Latina viveu “uma grande festa macroeconômica”, foram relativos. Houve altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com superávits. Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza. O retrocesso da pobreza foi especialmente importante no Brasil, onde os programas sociais “focalizados” permitiram uma diminuição significativa da pobreza absoluta, coexistente, no entanto, com uma trajetória pouco alterada da concentração de renda. As condições criadas, de retrocesso relativo da pobreza mais acentuada, se encontraram vinculadas ao desempenho econômico da conjuntura, muito mais que a mudanças de natureza estrutural na produção e na distribuição de renda. A constituição, finalmente, de uma população cuja sobrevivência depende de programas oficiais de ajuda social, não incorporados à estrutura institucional do país, se configurou como um paliativo de base instável.

Do ponto de vista comercial, a dependência da região em relação aos EUA e à Europa continuou grande. Mais de 65% das exportações latino-americanas dirigiam-se a essas duas regiões, com o restante indo para a Ásia e para parceiros regionais. Alguns países latino-americanos estavam mais expostos; era o caso do México, cujo comércio é fortemente dependente dos EUA (que consome 80,75% de suas exportações; apenas 19,25% vão para o resto do mundo).26 E as economias continuaram muito dependentes da venda de matérias-primas (que representam mais de 60% das exportações da América Latina), expostos negativamente às eventuais baixas dos preços do petróleo, do cobre ou da soja.27 O boom latino-americano se baseou na “reprimarização” parcial da produção, assim como o boom dos “emergentes” se baseou na exportação de produtos de baixo valor agregado, fatores dependentes do déficit comercial dos EUA e do boom especulativo internacional.

Na Europa, entre 2000 e 2006, o PIB alemão cresceu 354 bilhões de euros. A autoconfiança mundial do capital chegou longe: em um celebrado livro, de 2003, John McMillan celebrou a “economia de mercado” como “a única economia natural”, “tão onipresente quanto o ar que respiramos, não apenas para os grandes executivos, mas para todos nós”, a única capaz, além disso, de erradicar a pobreza. Antes de se chegar à terceira edição do erudito panfleto, o “ar natural” já tinha se tornado um gás tóxico e irrespirável.

forte peso nas exportações, e também pelo fato da taxa básica de juros brasileira – base da remuneração dos títulos públicos - ser muito elevada. Isto fez com que houvesse interesse dos investidores externos em negócios com os papéis da dívida pública brasileira: tornou-se excelente negócio – para grandes investidores – captar recursos no exterior, a taxas mais baixas, e aplicar esses recursos, a taxas mais elevadas, na dívida pública interna. O governo isentou os fundos institucionais estrangeiros, que aplicassem recursos em títulos públicos, do imposto de renda sobre os rendimentos. Com isso, aumentou a entrada de recursos, mas o custo financeiro foi elevado: a remuneração dos credores dessa dívida é de 12% reais ao ano. A dívida interna em títulos cresceu, inviabilizando de modo crescente o orçamento público como fonte de recursos para o Estado e para a realização de investimentos na infraestrutura e nas políticas sociais. 26

México teve que suportar novas medidas protecionistas, ditadas pela administração de Barack Obama, que proibiu (devido à pressão dos sindicatos) a entrada nos EUA de caminhões mexicanos, em que pese o estabelecido pelo Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN). Argentina, diversamente, vende 16,5% de seus produtos ao Brasil, 9,9% a Chile, 8% a China e 7,2% aos EUA. Brasil envia 47% de suas exportações para a União Europeia e para a China; só 11,5% vai a para os EUA. 27

Argentina vende farinha e soja, milho e trigo. Só depois vem, na sua pauta de exportações, um produto manufaturado: automóveis de 1.5 a 3.0 de potência. Brasil tem uma pauta semelhante: os primeiros lugares nas exportações são para os minerais ferrosos, os derivados do petróleo, a carne e as aves. E, só depois, os automóveis. Chile vende mineral de cobre e seus derivados, depois outros metais e, finalmente, pasta química de madeira. Colômbia baseia suas exportações em combustíveis (46% do total), café, matérias plásticas, pérolas finas e flores (é óbvio que as exportações de cocaína,as mais importantes, não são computadas oficialmente).

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5. O CAMINHO PARA A CRISE

A recuperação econômica mundial de 2002-2007 testemunhou também uma internacionalização sem precedentes do capital financeiro. O fluxo anual mundial de capitais pelas fronteiras nacionais cresceu para U$11,2 trilhões em 2007, mais de 20% do PIB mundial. Esse valor era de US$ 1,1 trilhão, ou 5% do PIB global, em 1990. China entrou na OMC (Organização Mundial do Comércio), como vimos, em 2001. O centro da recuperação mundial foi os EUA, onde, porém, se acumulavam as contradições: o dólar atingira o seu menor nível em 15 anos em relação às demais moedas, o país enfrentava um crescente déficit público e um déficit externo, os chamados “déficits gêmeos”: em 2005, o déficit fiscal atingiu US$ 600 bilhões, e a dívida pública US$ 4 trilhões.

Mas o boom interno dos EUA continuou, baseado na expansão do mercado imobiliário. Em 1900 cerca de 30% das residências nos EUA eram hipotecas em 40% do seu valor. Houvera um aumento considerável na quantidade de residências hipotecadas, e no percentual do valor hipotecado. O objetivo de dar ao capitalismo norte-americano uma base social ampla, favorecendo o advento de uma “sociedade de proprietários” (ownership society), vinha sendo perseguido há quase um século. Desde 1913, uma lei permitia deduzir do imposto de renda os juros sobre os empréstimos para a habitação. A isenção foi estendida aos lucros com as vendas. Entre as medidas tomadas durante o New Deal, para enfrentar os efeitos da crise de 1929, houve a criação de uma agência federal da habitação (Federal Housing Authority, FHA). Em 1970 mais de 60% das residências estavam hipotecadas em mais da metade do seu valor. Ao longo dos anos o governo norte-americano criou diversas leis e agências de forma a fomentar e desenvolver o sistema habitacional:

• 1932, Federal Home Loan Bank System • 1933, Home Owners Loan Corporation (HOLC), • 1934, Federal Housing Administration (FHA) • 1938, Federal National Mortgage Association (FNMA, ou Fannie Mae) • 1942, Federal Home Loan Bank Board, Federal Housing Administration • 1968, Government National Mortgage Association (GNMA, ou Ginnie Mae) • 1970, Federal Loan Mortgage Corporation (“Freddie Mac”) • 1974 Federal Savings and Loan Insurance Corporation (FSLIC)

A desregulamentação acelerada das décadas de 1990 e 2000 permitiu o crescimento rápido das empresas independentes de empréstimos hipotecários (a Federal Reserve reconheceu que não podia fiscalizá-las ou controlá-las). Em 2002, tais empresas ofereciam apenas 12% dos empréstimos, mas 62% dos mutuários tinham vínculos com elas. Em 2003, o objetivo da “sociedade proprietária” foi novamente fortalecido pela criação de um fundo de auxílio à primeira residência: o American Dream Downpayment Initiative. Em sentido amplo, subprime (do inglês subprime loan ou subprime mortgage) é um crédito de risco, concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa (prime rate). Em sentido mais restrito, o termo é empregado para designar uma forma de crédito hipotecário (mortgage) para o setor imobiliário, surgida nos Estados Unidos e destinada a tomadores de empréstimos que representam maior risco. Esse crédito imobiliário tem como garantia a residência do tomador e, muitas vezes, vinha acoplado à emissão de cartões de crédito ou a aluguel de carros. O termo é derivado de prime lending rate - a taxa de juros contratada com os tomadores mais confiáveis. Assim, prime lending designa o crédito concedido aos tomadores confiáveis e subprime lending se refere ao crédito dado àqueles tomadores que têm maior risco de inadimplência.28

28

Numa descrição reveladora, lê-se: “Subprime é a taxa de juros aplicada a pessoas com crédito ruim. As características desses empréstimos são cruéis. O tomador não precisa comprovar renda, seus juros são mais altos (no mínimo 2% a mais, em relação às taxas prime) e, frequentemente, lhe eram oferecidas prestações menores nos

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As residências representam bens de capital para os proprietários e bens de consumo para os locadores. A política monetária, portanto, exerce enorme influência nas decisões no ciclo da construção. O mercado habitacional norte-americano foi fortemente integrado ao mercado de capitais, a partir da reestruturação e desenvolvimento da securitização de títulos hipotecários desde a década de 1980. Dessa forma as taxas de juros no mercado de hipotecas passaram a ter uma correlação com as taxas de juros de outros mercados de capitais. A diferença entre as duas taxas mencionadas corresponde à remuneração do risco adicional envolvido no empréstimo dado a quem oferece garantias insuficientes. Por outro lado, numerosos créditos são concedidos a taxas variáveis. No caso dos créditos subprime,29 a taxa inicial podia ser atraente (teaser rate), ou seja, inferior à taxa fixa de um empréstimo normal. Para os credores, os empréstimos subprime eram considerados como individualmente arriscados - mas, coletivamente, seguros e rentáveis. A estimativa de rentabilidade baseava-se em uma hipótese de alta regular do preço dos imóveis, o que vinha acontecendo nos EUA desde 1945. Assim, se um devedor se tornasse inadimplente, era sempre possível revender a propriedade com lucro.

Composição das Hipotecas nos EUA

Total das Hipotecas - US$

Subprime - US$ bilhões

Parcela do Subprime no Total de Originações - % do valor

Subprime Securitizadas - US$

Subprime Securitizada - %

2001 2215 190 8.6 95 50.4

2002 2885 231 8 121 52.7

2003 3945 335 8.5 202 60.5

2004 2920 540 18.5 401 74.3

2005 3120 625 20 507 81.2

2006 2980 600 20.1 483 80.5

Os créditos subprime incluíam variados empréstimos, e eram concedidos a clientes sem comprovação de renda e com histórico ruim de crédito. George Soros afirmou que Alan Greenspan, nomeado presidente do Federal Reserve em 2000, foi então advertido sobre o comportamento abusivo dos mercados de hipotecas subprime, mas não considerou seriamente as conseqüências daquelas práticas.30 Essas dívidas só eram honradas mediante sucessivas "rolagens", o que foi possível enquanto o preço dos imóveis permaneceu em alta. Essa valorização contínua dos imóveis permitia aos mutuários obter novos empréstimos, sempre maiores, para liquidar os anteriores, em atraso - dando o mesmo imóvel como garantia. As taxas de juros eram pós-fixadas - isto é, determinadas no momento do pagamento

dois primeiros anos. Dessa forma, reduzia-se a inadimplência no início e deixava o tomador sem condições de pagar depois. Não era um mau negócio para os bancos, desde que o preço das casas continuasse aumentando”. O subprime era, na verdade, um sistema de confisco das pequenas poupanças e da população mais pobre. 29

Incluídos os créditos "ninja", um tipo de subprime, concedido a tomadores que não podiam comprovar renda, nem emprego, nem a propriedade de ativos (No Income, No Job, (and) no Assets). A expressão foi cunhada pela HCL Finance, uma financeira da Califórnia, especializada em conceder empréstimos com documentação mínima, isto é, sem exigência de comprovação de renda, emprego ou depósitos bancários. "Ninja" era o nome de um dos seus produtos financeiros. A FCL ganhou destaque nos anos 2000, e ficou mais conhecida após a deflagração da crise do subprime, entre julho e agosto de 2007, como o principal exemplo de práticas desastrosas na concessão de empréstimos. O uso do termo "ninja" foi assim incorporado ao jargão do mercado, durante a crise financeira de 2008. Por significarem um risco maior, esses tomadores também pagavam juros mais altos. O mercado se inundou de papéis lastreados nessas operações. 30

Para George Soros “a conexão reflexiva existente entre as funções cognitiva e manipulativa introduz um elemento de incerteza e indeterminação nas duas funções, o que vale tanto para participantes do mercado quando para as autoridades financeiras encarregadas de formular as políticas macroeconômicas e de supervisionar e regular os mercados. Ambos agem a partir de um entendimento imperfeito da situação da qual participam... O sistema financeiro global foi construído sobre premissas falsas, baseadas em certos fundamentos da teoria econômica clássica, como a preferência dos agentes com base na racionalidade e no conhecimento perfeito, e na tendência dos mercados financeiros ao equilíbrio”. Não se trataria, portanto, da natureza cega do mercado (capitalista), mas da imperfeição da cognição humana.

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das dívidas. Quando os juros dispararam, com a consequente queda do preço dos imóveis, houve inadimplência em massa. Metade dos “proprietários” só o eram no nome, pois possuiam, muitas vezes, apenas 10% do valor real de suas casas.

O ciclo de crescimento econômico internacional iniciado em 2002-2003, cuja rebarba beneficiou também os chamados “mercados emergentes” (inclusive o Brasil, com o boom do agronegócio) se aproximava em 2006 de um novo gargalo (antecipado pela crise da Bolsa de Tokyo e a nova queda espetacular das ações Yahoo) sem ter resolvido nenhum dos problemas estruturais que afetavam a economia mundial desde há mais de três décadas. Apesar da débil geração de renda nos EUA, o consumo privado cresceu até um recorde de 72% do PIB em 2007. O crescimento americano, com baixas taxas de juros e um inchaço artificial do mercado imobiliário, enfrentava agora a perspectiva do estouro da bolha imobiliária (que já levara à economia japonesa à beira do colapso)

O crédito imobiliário fora, durante décadas, a rede principal que protegeu economia dos EUA das grandes crises. O principal mecanismo de transmissão da queda das taxas de juros foi o crédito imobiliário, que sustentou desta maneira a economia, evitando que a sobreacumulação no setor tecnológico se transformasse em uma recessão aguda ou inclusive numa depressão. Os lucros com a Bolsa de Valores são, nos Estados Unidos, a segunda fonte de enriquecimento patrimonial das famílias (20%). A primeira fonte (60%) provém dos lucros realizados na compra e na revenda das residências individuais. Por isso, o FED escolheu o imóvel residencial como base das medidas para impedir a quebra da bolsa de 2001, e relançar a economia por meio do consumo dos particulares. A expansão do mercado imobiliário se deu pelo crescimento na captação de empréstimos bancários via crédito hipotecário.

Para Aglietta e Berreri, a “demanda dinâmica” necessária para o crescimento dos EUA não poderia provir dos países emergentes (China, Índia, Brasil), onde a distribuição de renda e as relações entre cidade e campo freiam o crescimento do consumo interno, e onde os excedentes externos garantem o financiamento dos déficits dos EUA. A demanda “também não poderia ter como origem as rendas salariais, cujo crescimento é fraco. Ela provém das rendas distribuídas aos acionistas e à elite dirigente, mas sua massa global é insuficiente para sustentar uma demanda agregada em crescimento rápido. A resposta a esse dilema encontra-se no poder de expansão do crédito. É aí que o capitalismo contemporâneo encontra a demanda que permite realizar as exigências do valor acionário. Esse mecanismo atinge seu paroxismo nos Estados Unidos. Empurrando para o alto os preços dos ativos patrimoniais, o crédito desconecta o consumo da renda disponível”. Isto provocava uma tendência a gerar, “em intervalos próximos, crises financeiras cujo epicentro é os EUA”.

O crescimento do mercado imobiliário, com base nesse tipo de financiamento, propiciou a elevação dos preços dos imóveis, o que, por sua vez, em um efeito autoexpansivo, possibilitou o refinanciamento das hipotecas de uma forma que o montante refinanciado de recursos permitia tanto o pagamento dos débitos anteriores quanto recursos adicionais utilizados para novas aquisições de imóveis, impulsionando ainda mais o efeito expansivo de elevação dos preços dos imóveis, o crescimento do mercado hipotecário, e a elevação do endividamento dos tomadores de empréstimos. Esse processo implicava o crescimento do consumo das famílias americanas, em função da alta do mercado imobiliário, expressa nos maiores preços dos imóveis. O crescimento da economia americana, e da economia mundial como seu reflexo, teve como base esse processo de espiral “virtuosa”: riqueza (imobiliária) – consumo – produção – emprego –renda – riqueza – consumo.

Os preços imobiliários aumentaram mais de 300%, saltando de 62 em 1987 para 189 em 2007 (com base em 2000=100). Com o processo de securitização e as “inovações financeiras” introduzidas no período, o boom do mercado residencial virou um frenesi, de modo que a taxa média de elevação dos preços dos imóveis foi de 6,4% ao ano no período 2000-2005, com o

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pico em 2005, quando os preços das residências sofreram uma elevação da ordem de 14%. Na medida em que o mercado foi se aquecendo, os imóveis foram se valorizando, abrindo aos mutuários mais uma possibilidade: o "financiamento da diferença". Assim, um cidadão norte-americano que tivesse financiado um imóvel de US$ 200 mil, cujo valor de mercado tivesse aumentado para US$ 300 mil, poderia tomar mais US$ 100 mil emprestados, dando como garantia a mesma casa. Com esses recursos adicionais, os clientes inadimplentes podiam não só pagar suas prestações como também consumir mais. Esse sistema funcionava baseado no aumento de longo prazo do valor dos imóveis. A elevação dos preços dos imóveis permitia a ampliação dos empréstimos para novas compras de imóveis, que voltavam a elevar os preços dos imóveis, e assim por diante.

A renegociação permitia uma liberação de dinheiro que era gasta com bens de consumo como carros, viagens, entre outros. Os norte-americanos estavam gastando o dinheiro em bens de consumo. Mas os juros nos EUA começaram a subir e levaram as taxas de hipoteca a patamares próximos a 8% ao ano. Supondo que o contrato fosse com taxa variável, como a maior parte dos contratos nos EUA, a prestação tenderia a subir nessas condições. Nessa ciranda financeira o problema não era a taxa de juros subir ou descer, mas sim se o preço dos imóveis parasse de aumentar. Nesse caso, o banco não teria mais interesse em refinanciar e acabaria por tomar o imóvel do devedor. É claro que não eram todos os devedores que tinham problemas com o refinanciamento de suas hipotecas, mas boa parte estava obrigada a viver com uma prestação maior do que poderia pagar, o que o fazia reduzir o consumo de outros bens.31

O sistema era insustentável, pois não estava se criando valor e sim especulando com o valor dos imóveis. O governo estadunidense fomentara um mercado secundário de hipotecas capaz de tornar líquidos contratos de longo prazo, sob o comando de três instituições: Government National Mortage Association, Federal National Mortage Association e Federal Home Loan Mortage Corporation. Todo esse sistema altamente especulativo foi construído com garantias públicas diretas ou indiretas. Foi através das mesas dessas três instituições públicas que foi revendido para o sistema global, desde 2002, um estoque de títulos subprimes de aproximadamente US$ 1,3 trilhão.

Mas a “nova arquitetura financeira” não poderia, simples e eternamente, se tornar independente da arquitetura real da indústria da construção civil e dos preços de novas casas no mercado imobiliário dos EUA. E essa evolução dos preços das casas, da mesma forma que a evolução dos preços em geral das mercadorias industrializadas, acaba finalmente determinando a tendência à elevação da taxa de juros das hipotecas e a luz vermelha para as operações dos bancos. Enquanto o ciclo de alta na liquidez e no crédito internacional resolvia os problemas de liquidez dos tomadores de empréstimos, essa bolha especulativa apresentou um caráter supostamente “virtuoso” para a economia americana e mundial. Mas com o aumento da taxa de juros de curto prazo de 1% para mais de 5% e depois, para valores que se aproximavam de 10%, muita gente deixou de pagar as prestações.32 Começou a inadimplência

31

Hyman Minsky, economista keynesiano, fez uma distinção entre três tipos de tomadores de empréstimos: • Mutuários hedge, aqueles capazes de amortizar todas as parcelas de suas dívidas por meio de seu fluxo de caixa. • Mutuários especulativos, aqueles que conseguem pagar os juros, mas que precisam rolar constantemente sua dívida para conseguir quitar o empréstimo original. • Mutuários Ponzi, incapazes de pagar os juros nem o principal. Tais mutuários dependiam da apreciação do valor de seus ativos para poderem refinanciar suas dívidas. Dos três tipos de tomadores de empréstimos, todos foram afetados pela crise, começando pelos mutuários Ponzi, passando pelos mutuários especulativos e afetando também os mutuários hedge, uma vez que a economia toda foi afetada pela crise. 32

Foi a partir de 2004 que os limites desse processo artificial de valorização do capital começaram a se manifestar, com o inicio do processo de alta da taxa de juros americana. Entre 2004 e 2006 a taxa de juros subiu de 1% para 5,35%. Mas o crescimento das concessões de hipotecas no mercado subprime, e o aumento do consumo de luxo dos investidores estrangeiros, compensaram momentaneamente o efeito do aumento da taxa de juros.

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em massa dos clientes mais frágeis. A crise foi revelada ao público a partir de fevereiro de 2007. Os processos de despejo de moradias atingiram 180 mil só no mês de julho de 2007, duplicando em um ano. Eles ultrapassaram o milhão em agosto, concluindo com 2 milhões de despejos nesse ano. A mesma “arquitetura financeira” que fora criada para espalhar o risco e perpetuar o sistema especulativo agora transmutava sua função, para ser uma poderosa agente espalhadora do prejuízo. O crédito subprime fora criado em 2001, como vimos, para salvar o capital financeiro da crise das empresas de alta tecnologia, propiciando aos bancos de investimentos gerarem operações em derivativos, tendo como título garantidor as hipotecas subprime. “Derivativos”, como já apontado, são operações financeiras pelas quais os bancos “securitizam” as hipotecas, assegurando-lhes a capacidade de tornarem-se títulos livremente negociáveis, funcionando como meio de troca em operações financeiras.

Os títulos foram assegurados por companhias de seguros e avaliados com boas notas por agências de classificação de risco. Dessa forma, os papéis foram comprados por investidores do mundo todo, como os grandes bancos e os fundos de pensão. A securitização visava a reduzir os riscos por meio da criação das séries e da diversificação geográfica de títulos, de acordo com seu grau de risco. Entretanto, isso acabou aumentando os riscos, gerando a transferência de titularidades de hipotecas de banqueiros que já conheciam seus clientes para investidores que não os conheciam. Em vez de bancos e instituições de poupança e crédito aprovarem um empréstimo e mantê-lo em seus registros, os empréstimos eram passados a corretoras, temporariamente “armazenados” por “banqueiros de hipotecas” pouco capitalizados.

A partir de 2006 houve redução do número de residências negociadas, mostrando correlação negativa entre as metas de taxas de juros do Federal Reserve e os imóveis negociados. Entre 2001 e 2004 as taxas de juros do FED mantiveram-se abaixo de 2% ao ano, enquanto as taxas de vendas dos imóveis aumentavam.

Taxa de juros do Federal Reserve dos EUA

Todo parecia funcionar bem até Federal Reserve, em 2005, aumentar a taxa de juros do crédito disponível pelo mercado, onerando de forma insuportável os limites do mercado imobiliário, e criando uma onda de inadimplência, atingindo primeiro os pequenos proprietários de imóveis financiados e cujas oportunidades de safar-se eram impossíveis. O aumento da inadimplência deveu-se ao reajuste das taxas de juros do financiamento para o nível das taxas de juros de mercado, que ocorreu exatamente no momento em que as taxas de juros básicas dos EUA estavam subindo. Os bancos começaram a retomar as casas dos inadimplentes. A grande oferta de imóveis resultante fez baixar bruscamente os preços e deixou evidente que bancos, corretoras, companhias imobiliárias, companhias de seguros e investidores em geral não só não conseguiriam obter lucros, como teriam pesadas perdas sobre o capital investido.

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Emissões de hipotecas subprime nos EUA (1994-2006)

Em 2006, como vemos no gráfico, o ciclo expansivo baseado na valorização imobiliária já mostrava sinais de esgotamento. A taxa do Federal Reserve ultrapassara 5 %, depois de quinze elevações seguidas. O Banco Central Europeu continuou mantendo sua taxa básica de juros na marca dos 2,5% ao ano. A taxa japonesa se manteve próxima de zero. Em 2005, o ouro ganhou em valorização de todas as principais divisas, aumentando 36% seu preço medido em euros e ienes, e subindo com muita rapidez frente a todas as principais moedas. Os especuladores exigiam taxas de juros mais elevadas para seus empréstimos, evitando-se assim que o câmbio das moedas nacionais se desvalorizasse ainda mais frente ao ouro. Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, considerava o preço do ouro como um importante barômetro para sua política de juros: raciocinava com um teto máximo de US$ 500 para o metal. Depois do ouro, o metal mais precioso é a prata. São as duas “moedas antediluvianas” de Keynes (“relíquias bárbaras”, chamava-as o célebre economista inglês). Quando ocorre uma perda de confiança pronunciada nas contas públicas e nos lucros privados, elas reaparecem soberanas frente às principais moedas nacionais. Em 2005, o preço da prata subira 89%, medido em dólar. Em abril de 2006, o preço da prata já tinha ultrapassado os US$ 13 a ounce troy, preço não alcançado desde 1983: aumentava a tendência do ouro e da prata se tornarem divisas internacionais, moedas de reserva. Simultaneamente às variações dos preços do petróleo, do ouro e da prata, ocorria uma variação, no mesmo sentido, dos preços dos demais metais comercializados no mercado mundial (cobre, zinco, paládio).

A variação dos preços dos metais mais consumidos na produção industrial mostrava a relação entre eles (e das matérias primas em geral) e a evolução do ciclo econômico, o processo de superprodução de capital e tendência à queda da taxa geral de lucro das diferentes economias industrializadas. Não se tratava de uma onda especulativa gerada autonomamente na esfera financeira e no mercado internacional de divisas, mas de uma crise gerada na esfera da produção e manifestada na esfera da circulação. O controle das fontes e das rotas de comércio dessas matérias consumidas na indústria capitalista global foi o principal motivo das guerras e ameaças militares arquitetadas pelas potências, EUA em primeiro lugar, nas áreas dominadas do mundo (América Latina, Ásia, Leste Europeu, África, Oriente Médio).33 No longo prazo, o aumento da extração e do volume dessas matérias primas, a regularidade dos fluxos de transporte em direção aos principais centros industriais e a redução dos seus preços, são condições imprescindíveis para amortecer a queda da taxa geral de lucro, no encerramento de cada ciclo econômico periódico, evitar a crise geral, e relançar um novo período de expansão e um novo ciclo econômico. Na primeira década do século XXI, o potencial da crise era proporcional ao gigantesco aumento da economia mundial e da sua complexidade gerados imediatamente antes.

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Os organismos financeiros internacionais se adaptaram à estratégia dos EUA. A nomeação de Paul Wolfowitz para a presidência do Banco Mundial foi parte disso. Antes de chegar à administração de Bush, como secretário Adjunto de Defesa dos EUA, Wolfowitz fora embaixador dos EUA na Indonésia. A nomeação de Wolfowitz consolidou a tese da “guerra infinita” global também no âmbito dos organismos econômicos internacionais.

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6. O “ESTOURO DA BOLHA”

No meio da expansão, houve também o aumento dos juros pelo FED, pois os contratos subprime tinham cláusulas que permitiam a variação das taxas (o aumento da taxa de juros no mercado imobiliário, que trabalha com taxas de juros pós-fixadas, e que tinha se saturado previamente, por conta da baixa taxa de juros pré-fixada). Com a união desses dois fatores, os clientes que financiaram imóveis por esse sistema foram se tornando inadimplentes em massa, gerando desconfiança nas bolsas mundiais, maximizada pelos movimentos especulativos; os títulos “derivativos” tornaram-se impossíveis de serem negociados, o que desencadeou um “efeito dominó”, causando estragos sem precedentes no sistema bancário internacional. Com medo de uma retração econômica nos EUA, somado às suspeitas de títulos “contaminados”, muitos investidores venderam suas ações, fazendo as cotações despencar. Em agosto de 2007, os EUA cortavam 4.000 postos de trabalho, a primeira queda no nível de emprego desde 2003.

O que permitiria uma aparentemente simples crise de confiança nos ativos imobiliários de um país desencadear uma crise mundial? Em primeiro lugar, a separação entre produção e circulação de mercadorias proporcionada pelo crédito permite o desenvolvimento do mercado financeiro, ou a negociação de papéis que, embora criados com base na produção “real”, têm seus valores evoluindo sem relação direta com os valores que lhes deram origem. Trata-se de uma valorização fictícia, especulativa. Em segundo lugar, os bancos credores, para garantir suas hipotecas, repassaram o risco das operações às empresas seguradoras, representadas principalmente pela AIG (American International Group). Para maximizar as operações, os bancos, visto que suas operações já estavam com seus capitais garantidos pelas seguradoras, mantinham poucos dólares em caixa, para serem utilizados caso houvesse a necessidade de liquidez imediata.

O “efeito cascata” sobre os papéis inviabilizou o pagamento de prêmio por parte das seguradoras, ao mesmo tempo que impossibilitou a cobertura da inadimplência por parte dos bancos, visto a pouca disponibilidade de capital para utilização imediata, gerando assim uma falta de crédito para os demais setores da economia. A falta de crédito impediu as firmas de investirem e mesmo de obterem o capital de giro necessário aos negócios cotidianos. As encomendas de insumos foram suspensas e os trabalhadores demitidos. As dificuldades de pagamento das dívidas já assumidas levaram às vendas de ativos que alimentam a deflação de preços. Não se conhece, nessas circunstâncias, onde está o “fundo do poço”. Todo mundo quer dinheiro. Para pagar créditos assumidos, em contrapartida de vendas que se tornam difíceis, para tocar os negócios do dia a dia, para se garantir contra o futuro, etc. Com a interligação das economias nos âmbitos do comércio de mercadorias, grande quantidade de empresas multinacionais com sede nos EUA e bolsas de valores integradas, o efeito que inicialmente afetou apenas um setor expandiu-se para diversos setores de todo o mundo. Segundo Paul Krugman, economista neokeynesiano tornado guru durante a nova crise, a falta de regulação no mercado e de intervenção nos momentos críticos foram os fatores que impulsionaram o “efeito dominó”.

Em junho de 2006, a possibilidade de uma crise econômica global estava no horizonte. Os principais sinais foram emitidos pela economia dos EUA. A manchete do terminal da Bloomberg era: “As bolsas de valores dos Estados Unidos despencam e encerram a pior semana em um ano para suas cotações. As bolsas tropeçaram nas preocupações com a inflação, completando a pior semana para o índice Dow Jones em um ano, depois que o governo divulgou que os preços de importação subiram o dobro do previsto. Especulações de que a alta dos preços vai levar o Federal Reserve e outros bancos centrais a elevar as taxas de juros, abafando o crescimento econômico neste processo, desencadeou nesta semana a maior queda dos mercados de capitais globais em mais de quatro anos”. O fantasma do “duplo mergulho” (deflação/recessão) voltava a assombrar.

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Faltava o estopim, que amadurecia na própria “alavanca” do ciclo expansivo. Nos EUA, a recuperação – ou saída da recessão de inícios do novo século – fora viabilizada, como vimos, pela desregulamentação do mercado de crédito imobiliário, impulsionada pela gestão de Alan Greenspan. Os bancos passaram a rejeitar emprestar dinheiro com casas em garantia, e com isso muitas pessoas passaram a vender suas casas para pagar as hipotecas, pois não estavam conseguindo pagá-las. Com as casas caindo de preço estourou a bolha, num curto espaço de tempo. A explosão da bolha especulativa do setor imobiliário foi a faísca da crise geral, não se limitava a “esgotar uma nova fase especulativa” como as precedentes (bolha das ações de alta tecnologia, ou das moedas dos “mercados emergentes”). Na crise dos EUA, os títulos mais problemáticos foram os derivativos de crédito, ou CDS (credit default swaps). Como o mercado imobiliário ficou aquecido durante vários anos, as instituições bancárias tinham baixado, como vimos, os padrões de concessão de financiamentos para a compra de imóveis. As carteiras dos bancos com subprime eram em seguida atreladas a CDS, os derivativos de crédito. Toda a pirâmide foi afetada pela retração da oferta de crédito imobiliário, a redução dos preços dos imóveis, o que, por sua vez, expandiu a inadimplência e, com isso, o caráter “virtuoso” do processo se transformou, em virtude de sua própria lógica (dialética, claro), em seu contrário, em círculo “vicioso”.

A instituição financeira empacotava esses títulos e os repassava para outros bancos interessados em comprar o risco. A cadeia era retro-alimentada pelo próprio sistema, pois um CDS poderia ir passando de banco em banco, indefinidamente, com um novo derivativo nascendo a cada operação. Um exemplo de como o mercado “se descontrolou” (por ser descontrolado por natureza, ou “cego”) está na explosão do valor "nocional" dos CDS. Em 2003, o ano começou com US$ 2,2 trilhões. Em junho de 2007, a cifra já estava em US$ 54,6 trilhões. A produção de títulos inflados pela especulação, créditos e dívidas em lastro, dos estados nacionais e suas autoridades monetárias, permitiram que os ativos financeiros em circulação no planeta, momentos antes da crise, fossem estimados na cifra de 680 trilhões de dólares, para um PIB mundial de 60 trilhões. No final de 2009 os países ricos atingiram um déficit em seu orçamento equivalente a 10% de seus PIB. A bolha estourara plenamente. A tabela que segue evidencia a relação clara entre hipotecas emitidas, hipotecas subprime e securitização na criação das condições preliminares da crise.

Greenspan e a FED haviam inflado a bolha imobiliária para dar tempo às corporações para se desembaraçar de seu excesso de capital e retomar o investimento. Mas em vez disso, ao centrar-se em restaurar a taxa de lucros, as corporações desencadearam uma brutal ofensiva contra os trabalhadores. Elevaram a produtividade, não tanto pelo aumento dos investimentos nas plantas e em equipamentos, mas através do recorte radical nos empregos, obrigando os trabalhadores que ficaram a utilizar os tempos mortos. Ao manter baixos os salários e extrair mais produção por pessoa, se apropriaram na forma de lucros de uma porção do crescimento do setor não financeiro do PIB sem precedentes históricos.

As corporações não financeiras, durante essa expansão, elevaram significativamente suas taxas de lucro, ainda que este crescimento não chegasse aos já reduzidos níveis da década de 1990. O grau ao qual se havia elevado a taxa de lucro havia sido alcançado simplesmente pela

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via de elevar a taxa de exploração – fazendo com que os trabalhadores trabalhassem mais e por salários horários menores. Mas, sobretudo, ao melhorar a rentabilidade por meio de se manter baixa a criação de emprego, o investimento e os salários, as empresas norte-americanas mantiveram baixo o crescimento da demanda agregada e, portanto, enterraram seu próprio incentivo para se expandir.

Taxa de lucros e taxa de acumulação (1962-2008)

Fonte: Marcel Roelandts, Le Cadre Méthodologique de la Théorie des Crises chez Marx et sa Validation Empirique

Segundo The Economist a bolha imobiliária mundial, entre 2000 e 2005, foi a maior de todos os tempos, superando inclusive a de 1929. A revista inglesa concluiu que “a moderação da recessão de 2001”, quando o país “recebeu a maior injeção monetária e fiscal de sua história, simplesmente substituiu uma bolha [de ações] por outra [imobiliária]” (culpando implicitamente essa “moderação” pela catástrofe ulterior). Mas isso fizera possível um aumento sustentado do gasto de consumo e do investimento residencial que, juntos, impulsionaram a expansão. O endividamento público e privado atingiu patamares percentuais (em relação ao PIB) que não foram atingidos nem no pico mais elevado da depressão da década de 1930, como se vê no gráfico que segue. O consumo pessoal mais a construção de moradias deram conta de entre 90% e 100% do crescimento do PIB dos Estados Unidos na primeira década do século XXI. Durante o mesmo intervalo, só o setor imobiliário foi responsável por quase 50% do aumento do PIB, que do contrário teria sido -2,3% no lugar de +1,6% (anual).

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Assim, junto com os déficits orçamentários de George W. Bush, o recorde nos déficits dos lares permitiu obscurecer quão débil era a recuperação econômica. O incremento da demanda consumista respaldada com dívida, assim como crédito excessivamente barato não só reviveu a economia norte-americana, como especialmente pelo impulso de uma nova onda de importações e do aumento do déficit de conta corrente (balanço de pagamentos e comércio) a níveis recorde, alimentou de modo artificial o que parecia ser uma impressionante expansão econômica global. O crescimento do PIB dos EUA fora o mais lento para qualquer intervalo comparável desde os finais da década de 1940, enquanto que o aumento de novas plantas produtivas e equipamento e a criação de empregos ficaram em um terço e dois terços respectivamente abaixo da média do pós-guerra.

Os primeiros sinais da chamada “crise financeira” originada no estouro da bolha no mercado subprime americano, surgiram já no início de 2006, quando o preço dos imóveis registrou uma desaceleração na sua taxa de crescimento. E esses sinais não vieram somente dos EUA: a 27 de fevereiro de 2007, a Bolsa de Xangai (China) caiu 8,9% em um único dia, gerando um efeito em cadeia que derrubou os indicadores globais do mercado financeiro. A economia mundial estava grávida de uma robusta crise econômica, irradiada pela economia chinesa. As perdas de Xangai irradiaram uma onda de desvalorizações e quedas no mercado internacional de capitais. A 2 de março de 2007, o pessimismo dos capitalistas ainda não tinha desaparecido, a Bolsa de Nova York abriu o último pregão da semana em baixa, seguindo mais um dia de pessimismo nos mercados internacionais, agora por conta do dólar fraco e da valorização do iene japonês (a valorização do iene frente às outras moedas não era um sinal de superioridade econômica, mas um sinal da vulnerabilidade estrutural do capitalismo japonês, uma indicação invertida de que doravante as exportações japonesas iriam cair, e a principal economia asiática recairia no inferno da deflação de que se imaginava estivesse saindo). Finalmente, o crescimento da economia dos EUA durante o primeiro trimestre de 2007, inicialmente avaliada em 1,3% anualizados, foi de 0,6%, a taxa mais baixa dos últimos quatro anos.

A globalização do capital financeiro associada com o processo da restauração capitalista na China e Rússia, não abrira uma saída de longo prazo para o capital, ao contrário, criara um oceano de dívidas cobrindo todo o planeta. Algumas das bolhas já estavam em processo de explosão. Em seu informe anual, de junho de 2007, o Banco Internacional de Compensações (BIS), o banco dos bancos centrais, fez soar o alarme acerca de que “as condições que conduziram à Grande Depressão dos anos 30 e às crises asiáticas dos 90 estão se refletindo no ambiente atual”. A sobreacumulação de capital, com o espantoso desenvolvimento do capital fictício, estava se transformando, de uma benção para os especuladores, em seu pior pesadelo. O eixo que conectava a China em rápido crescimento, o mais importante centro de acumulação do capital mundial, com a sobre-endividada economia norte-americana, que arcava com o peso de grandes déficits, que funcionara nos anos posteriores ao choque financeiro do ano 2000 como força impulsionadora da recuperação, começava a ser sacudido por tremores como a queda de fevereiro na Bolsa chinesa, repetida a 30 de maio de 2007.

A economia japonesa era a primeira a sofrer o impacto direto das turbulências chinesas, embora dependente das exportações para os EUA e União Europeia. São essas duas grandes áreas da economia mundial as primeiras a manifestar ciclicamente a queda da taxa geral de lucro. A consequência imediata é a queda dos seus investimentos industriais, do emprego e da demanda por importações do resto do mundo, principalmente aquelas oriundas do Japão e China, seus maiores fornecedores de bens de consumo duráveis.34 O novo período de crise global que se anunciava, no entanto, não era determinado pelas turbulências asiáticas, importantes por anteciparem, na “superfície” da circulação mercantil, os sintomas mais profundos de uma doença mais grave, a superprodução de capital. 34

Tanto o Japão quanto a China, diferentemente dos EUA e a UE, são economias “mercantilistas”, dependentes das exportações, da demanda externa, da dinâmica econômica dos EUA e da União Europeia.

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Esta última é gerada e impulsionada para a totalidade da economia mundial pelos EUA e, em menor medida, pela União Europeia. É a elevação da produtividade e da taxa de exploração nas economias de ponta que estabelece o preço de produção do mercado mundial e, consequentemente o nível da taxa de geral de lucro e o ponto de ruptura do ciclo econômico global. Os EUA, antes até da União Europeia, foram os primeiros a manifestar os sintomas da superprodução de capital. Alan Greenspan, presidente do FED declarou, na semana anterior aos abalos na Bolsa de Xangai, que a economia estadunidense poderia entrar em recessão no final de 2007, em entrevista ao Wall Street Journal: “Quando nos distanciamos tanto de uma recessão, invariavelmente algumas forças começam a se acumular para a próxima recessão e, de fato, estamos vendo os sinais. Nos EUA, as taxas de lucro começaram a se estabilizar, o que é um sinal precoce de que estamos nos estágios finais de um ciclo de expansão”.

No entanto, a 25 de julho de 2007, “a economia mundial mantém um crescimento pujante”, dizia o FMI em uma atualização das suas projeções econômicas mundiais divulgadas originalmente em abril. Para os Estados Unidos, embora tivesse rebaixado seu crescimento previsto para 2007, de 2,2% para 2%, era afirmado que o país retomaria o crescimento e estaria já no potencial máximo no meio de 2008. O setor imobiliário? Sua correção estava continuando e os riscos negativos para a demanda estavam diminuindo. Estava tudo tão bem, na visão do FMI, que, segundo ele, tinham aumentado as probabilidades de aumentos nas taxas de juros mundiais pelos bancos centrais. Zeus enloquece àqueles a quem quer perder.

No Brasil, a Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) teve uma queda de 6,6%. Um abalo tão forte não ocorria desde os atentados do 11 de setembro de 2001. Desde junho de 2007, os efeitos sobre os mercados financeiros, em especial sobre os bancos que possuíam ativos com maior exposição aos títulos das hipotecas norte-americanas, se espalharam pela economia americana, europeia e, finalmente, asiática. Até julho de 2007, a economia mundial, certamente, atravessou um período de forte expansão: as empresas nunca lucraram tanto, a China crescia a 10% ao ano, o Brasil exportava matéria-prima em volumes e preços recordes. Em total contraponto a esse ambiente, as bolsas de valores e as moedas de todo o planeta foram abaladas por um terremoto. Em duas semanas, trilhões de dólares se evaporaram dos mercados de ações sem que houvesse um ataque terrorista, como o de 2001, ou a quebra de um “país emergente” – como a Tailândia, em 1997, a Rússia, em 1998, ou o Brasil, em 1999.

A “descoberta” de que os consumidores norte-americanos não estavam pagando as prestações dos financiamentos de suas casas espalhou pânico entre investidores em todo o mundo – muitos fundos de investimento possuíam parte de seus papéis lastreados nesses financiamentos. Como um segmento da população não conseguia pagar as suas parcelas, criou-se um temor de que os americanos pudessem também diminuir o seu ritmo de consumo. Grande parte dos empréstimos feitos nos EUA eram hipotecas longas - daí o medo que a alta inadimplência no setor subprime atingisse outros setores. Nas últimas décadas, a classe média norte-americana hipotecara em massa seus imóveis: empresas especializadas davam empréstimos e tomam as casas como garantia. Houve não só um movimento de hipoteca, mas também de refinanciamento dos imóveis. Como os juros estavam baixos nos EUA, muita gente trocou de financiamento, recebendo dinheiro na troca. Muita gente se viu pagando dívidas maiores do que o bem a elas atrelado, o que acarretou um movimento de desistência por parte dos mutuários. Nouriel Roubini chamou a atenção para o fato de que a insolvência dos devedores hipotecários não se limitava àqueles de baixa qualificação, mas atingia também os de “primeiro nível”: calculou serem insolventes nada menos que 50% dos créditos hipotecários outorgados em 2005 e 2006.

O medo de retração da economia dos EUA, aliado à suspeita da existência de papéis “contaminados” nos fundos de investimentos, fez com que muitos investidores vendessem as ações que possuíam. Quando há muita gente querendo vender, o preço das ações cai. O conjunto do das ações em queda derrubou a cotação das bolsas de valores. Algumas empresas

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americanas começaram a mostrar números decepcionantes, caso das varejistas Wal-Mart e Home Depot, espécies de termômetros do consumo local. Em agosto de 2007, os EUA cortaram 4.000 postos de trabalho – primeira queda do nível de emprego do país desde 2003. No Brasil, Valor Econômico constatava, a 17 de agosto de 2007, que “o mundo está(va) fora de controle”: “O mundo está de ponta-cabeça. Quem era pessimista há um mês, hoje é considerado otimista. De 19 de julho, quando bateu 58.124 pontos, até ontem, o Índice Bovespa perdeu 19,28%, percentual que, em dólar, chega a 30,81%, por conta da crise de liquidez iniciada com as perdas de fundos internacionais com títulos hipotecários de risco subprime”.

O “risco de contágio” no sistema bancário rapidamente evoluiu para uma crise de liquidez que potencializou o efeito recessivo da crise, através da restrição do crédito tanto às pessoas físicas quanto as empresas. A situação do mercado acionário mundial também evoluiu para uma forte queda no preço das ações, implicando em intensos fluxos de capitais partindo dos países periféricos com destino aos países desenvolvidos, para cobrir posições nestas nações. Grandes instituições financeiras sofrendo de problemas de solvência tiveram que ser recapitalizadas, através de garantias, injeções de recursos, e nos casos mais extremos com os governos assumindo o controle de suas operações.

Deflagrada a crise imobiliária americana, e tendo ficado claro que ela contagiava os sistemas bancários e financeiros de países importantes, o Banco Central da Europa (BCE) foi o primeiro – seguido pelos Bancos Centrais americano e inglês – a fazer um resgate do capital financeiro, ampliando a liquidez, reduzindo as taxas de juros, não apenas como “prestamista de última instância”, mas também comprador de títulos de agentes privados quando eles não encontram no mercado compradores e estão necessitados de liquidez, e a conseguem trocando os títulos que possuem por títulos públicos, convertidos em dinheiro, para impedir que a desvalorização da riqueza financeira se agravasse, ou seja, que se tornasse pó a riqueza de papel acumulada durante o "boom financeiro".

A “crise imobiliária” americana não surpreendeu, mas sim surpreendeu a extensão com que ela penetrou os sistemas financeiros nacionais e as “inovações financeiras” globais. O aumento da inadimplência e a própria queda observada nos preços dos imóveis a partir de meados de 2006 reduziu o mercado de MBSs, que se acumularam nas carteiras dos bancos originadores que, por sua vez, não tinham cessado de emiti-los. Além disso, acreditando que a queda do preço de mercado das MBSs era fenômeno passageiro, muitos bancos incorporaram as SPVs com MBSs problemáticas, de forma que os bancos originadores que, teoricamente haviam transferido os riscos das hipotecas subprime para as SPVs e os investidores, voltaram a incorporá-los de forma crescente. As instituições financeiras que haviam segurado os títulos lastreados nas hipotecas subprime, tiveram que aumentar as provisões para perdas e dessa forma as perdas que deveriam cair sobre os investidores, conforme o pressuposto do modelo de securitização, caiu sobre as próprias instituições financeiras.

Segundo Gary Gorton: “O pânico de 2007 deveu-se à perda de informação sobre a localização e as dimensões dos riscos de perdas devido ao default de um número de ativos financeiros interligados, veículos de propósitos especiais e derivativos, todos relacionados às hipotecas subprime”. Na verdade, a crise mostrou que a dispersão do risco não diminuía o risco, como pressuponha o modelo de securitização. Com os mercados financeiros fortemente interligados a crise de um mercado arrasta os demais mercados. A bolha em um setor localizado da economia dos EUA contaminou a economia do mundo todo, porque foi só seu estopim. Em junho de 2007, o banco Bear Stearns anunciou o fechamento de dois fundos de hedge sob sua gestão (o banco de investimentos disse que seus investidores não conseguiriam resgatar o dinheiro investido em seus fundos de alto risco). JPMorgan compraria, em março de 2008, esse banco por US$ 236 milhões (um ano antes, o banco valia US$ 18 bilhões). Em agosto de 2007, o banco francês de investimentos BNP Paribas disse a seus investidores que eles

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tampouco conseguiriam resgatar seus investimentos, devido à "completa evaporação da liquidez" do mercado (menor oferta de dinheiro): o BNP congelou o saque de três de seus fundos de investimentos, que tinham recursos aplicados em créditos gerados a partir de operações hipotecárias nos EUA. A instituição alegou dificuldades em contabilizar as reais perdas desses fundos...

Quase três milhões de famílias americanas estavam em situação de inadimplência. O fluxo total real de dinheiro aos lares, que havia aumentado a uma taxa anual de 4,4% em 2005 e 2006, havia caído a quase zero. A tentativa dos clientes, como último recurso, de se desfazerem de suas casas no mercado, pressionou para baixo os preços de todos os imóveis nos Estados Unidos, inclusive aqueles que estavam sendo financiados a taxas prime. Com o excesso de oferta, o preço dos imóveis entrou em queda livre. As pessoas começaram a entregar os imóveis às empresas de financiamento. Muita gente devia mais na hipoteca do que o valor da casa hipotecada, pois os preços tinham sofrido uma queda histórica (a maior em um século, depois de ter experimentado um crescimento igualmente espetacular). Na hora em que o mercado como um todo se reduziu, todas as operações feitas com imóveis como garantia ficaram a descoberto.

Preços das residências nos EUA (1890=100)

As financiadoras ficaram com os imóveis – com seu valor aviltado – e sem o dinheiro; portanto, sem recursos para honrar os títulos que haviam emitido. Isso acabou por provocar a falência de financeiras e, em efeito cascata, de instituições maiores. As empresas resolveram ir ao mercado vender ações para fazer dinheiro. Em 2007 foram 1,3 milhão de imóveis com hipotecas não pagas em que o banco ou a financeira retomaram o imóvel. Pelo menos cinco milhões de famílias iriam ser afetadas. O endividamento das famílias norte-americanas crescera espantosamente: entre 1993 e 2006 o passivo financeiro das famílias subiu de 89% para 139% da receita pessoal disponível. O superendividado consumidor norte-americano atuou como “consumidor em última instância” da superprodução capitalista mundial, mas ao preço inescapável de agravar os desequilíbrios da economia mundial.

A crise se manifestou primeiro no segmento de mercado mais arriscado, o dos tomadores de empréstimos com histórico de inadimplência. Seu processo de expansão e “contágio” se deu devido a que, ao aumentar a inadimplência, os credores passaram a sofrer também com problemas de liquidez e solvência, toda vez que os ativos que eles tinham para receber foram desvalorizados e, portanto, seus compromissos financeiros não tinham mais garantia de pagamento. Com isso, esses credores (inicialmente, os bancos financiadores das hipotecas e detentores de derivativos imobiliários), foram a vender parte de seus ativos para saldar suas obrigações. A securitização dos empréstimos imobiliários ampliou o processo.

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O movimento de venda de ativos provocou a redução de seus preços e reforçou a pressão pela alta da taxa de juros cobrada pelas instituições financeiras, agravando mais a crise. Como os juros estavam baixos na Europa e no Japão, esses fundos, que ofereciam retornos maiores, tornaram-se atraentes para os pequenos e grandes investidores. Criou-se uma pirâmide de investimentos de cerca de um trilhão de dólares por meio da qual a poupança de milhões de empresas e aposentados, europeus e japoneses, foi usada para financiar a construção e a compra de casas nos EUA. Segundo a consultora Moody’s, no momento em que a bolha imobiliária se desinflasse completamente, os preços das moradias teriam caído 20% em termos reais, a maior queda de preços na história norte-americana do pós-guerra. Devemos concluir, com Luiz Gonzaga Belluzzo, que a “crise provocada pelo estouro da bolha imobiliária nos Estados Unidos é uma reprodução de crises que assolam o capitalismo desde o século XIX, a partir da criação de um sistema bancário e financeiro articulado com grandes empresas”?

Não pensamos assim. O problema que se iniciou com as hipotecas subprime espalhou-se por todas as obrigações colaterais, pôs em perigo as empresas municipais de seguros e resseguros, e ameaçou arrasar o mercado de swaps. As obrigações dos bancos de investimentos em compras alavancadas se tornaram um passivo. Os hedge funds, criados para ser supostamente neutros em relação aos mercados, tiveram que ser resgatados. O mercado de commercial papers ficou paralisado, e os instrumentos criados pelos bancos para tirar as hipotecas de seus balanços já não conseguiam mais encontrar fontes externas de financiamento (funding). O golpe final veio quando o mercado de empréstimos interbancário, que é o núcleo do sistema financeiro, parou. Os bancos centrais de todos os países desenvolvidos injetaram no sistema financeiro mundial um volume de recursos inédito, e estenderam créditos para papéis financeiros e instituições nunca socorridas anteriormente. O sistema bancário internacional começou a sentir os estertores de seu próprio fim. Os bancos de investimentos foram as primeiras vítimas da crise, já que sua principal mercadoria – os títulos negociáveis – transformaram-se, do dia para a noite, em pó. Desmoronou-se assim um castelo de cartas construído a partir do pressuposto de que um título de crédito lastreado em financiamentos sem qualquer garantia, exceto a sua própria existência, seriam capazes de salvaguardar o mundo da crise anterior gerada pelas mesmas crenças e expectativas.

Até mesmo as instituições criadas com a finalidade de investigar de forma minuciosa as atividades desenvolvidas pelos organismos do sistema financeiro demonstraram incapacidade de compreensão dos numerosos dados estatísticos e matemáticos disponíveis, cuja compreensão não era possível nem para seus próprios criadores. A popularização dos títulos subprime e derivados anos fora espantosa, decuplicara de 2004 para 2007, ano em que se estima que de todos os valores negociados nos mercados mundiais das hipotecas, apenas 10% tinham lastro real. O tamanho da bolha atingida no final do ano de 2007 foi de 60 trilhões de dólares, equivalente a quatro vezes o PIB norte americano, ou o valor de depósitos bancários de todo mundo, ou ainda 100% do PIB mundial, configurando a maior bolha especulativa da história.

A queda nos preços de imóveis, a partir de 2006, arrastou vários bancos para uma situação de insolvência, repercutindo fortemente sobre as bolsas de valores de todo o mundo. Como os empréstimos subprime eram dificilmente liquidáveis, isto é, não geravam nenhum fluxo de caixa para os bancos que os concediam, esses bancos arquitetaram uma estratégia de securitização desses créditos. Para diluir o risco dessas operações duvidosas os bancos americanos credores juntaram-nas aos milhares, e transformaram a massa daí resultante em derivativos negociáveis no mercado financeiro internacional, cujo valor era cinco ou mais vezes superior ao das dívidas originais.

Assim, criaram-se títulos negociáveis cujo lastro eram esses créditos "podres". Foi a venda e compra, em enormes quantidades, desses títulos lastreados em hipotecas subprime o que provocou o alastramento da crise para todo o mundo. Tais papéis, lastreados em quase nada,

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obtiveram o aval das agências internacionais de classificação de risco (Standard & Poor's, Fitch e Moody's), que deram a eles a sua chancela máxima - AAA - normalmente dada a títulos tão sólidos quanto os do Tesouro dos EUA. Com essa benevolente classificação de risco, tanto os investidores, como os fundos de investimento e os bancos passaram a disputar a aquisição desses títulos, no mundo todo, e esses títulos passaram a servir como garantia para a tomada de novos empréstimos bilionários, alavancados na base de 20 para 1. A partir de julho de 2007, a crise do crédito hipotecário provocou uma crise geral no sistema financeiro e falta de liquidez bancária, ou seja, falta de dinheiro disponível para saque imediato pelos correntistas dos bancos.

Mesmo os bancos que não trabalhavam com os chamados "créditos podres" foram atingidos. O banco britânico Northern Rock, por exemplo, não tinha hipoteca-lixo em seus livros, mas adotava uma estratégia arriscada - tomar dinheiro emprestado a curto prazo (a cada três meses) às instituições financeiras, para emprestá-lo a longo prazo (em média, vinte anos), aos compradores de imóveis. Repentinamente, as instituições financeiras deixaram de emprestar dinheiro ao Northern Rock, que, no início de 2007, acabou por se tornar o primeiro banco britânico a sofrer intervenção governamental desde 1860. Na seqüência, os bancos centrais foram conduzidos a injetar liquidez no mercado interbancário, tentando evitar o “efeito dominó”, com a quebra de outros bancos, em cadeia, e que a crise se ampliasse em escala mundial. Os principais bancos centrais do planeta, o BCE (Banco Central Europeu), o Federal Reserve norte-americano e o Banco do Japão, além de entidades da Austrália, Canadá e Rússia, intervieram e liberaram bilhões de dólares em recursos aos bancos.

Em agosto de 2007, o Banco Central Europeu investiu 95 bilhões de euros no setor bancário, para melhorar a liquidez. Em seguida, mais 108,7 bilhões de euros foram investidos. O Federal Reserve dos EUA cortou pela metade a taxa de juros para empréstimos a bancos, para 5,75%. Em setembro, o FED cortou os juros básicos nos EUA em 0,5%, depois de 4 anos sem mexer na taxa. A decisão pretendia estimular novos pedidos de empréstimos e conter parte da retração no crédito. Antes disso, porém, o FED, o Banco Central Europeu e o Banco do Japão despejaram juntos quase 500 bilhões de dólares no mercado, para socorrer bancos e conter a escassez de dinheiro, a maior cifra do gênero na história. Diante da persistência da crise, porém, as medidas não tiveram efeito. O FED voltou a reduzir os juros em meados de janeiro de 2008. Desta vez, o corte foi de 0,75% - o maior desde outubro de 1984. O presidente George W. Bush finalmente anunciou, no início de 2008, as linhas gerais de um pacote para “salvar” a economia americana. O plano, de 140 bilhões de dólares, ignorava a própria lógica da crise: não era que a crise financeira tivesse contaminado o chamado “lado real” da economia (o industrial e comercial), pois este já estava integralmente inserido na lógica do capitalismo contemporâneo, a lógica da valorização fictícia.

A crise se tornou geral, em maior grau para as economias que mais se acoplaram a essa lógica, em primeiro lugar os EUA. Nos nove primeiros meses de 2008, os principais índices das Bolsas perderam mais de 25%. Em maio-junho, o Banco UBS (Suíça), um dos mais afetados, lançou ações no valor de US$ 15,5 bilhões para cobrir parte de suas perdas, que chegaram a US$ 37 bilhões, mais do que qualquer outro banco afetado pelas “turbulências”. A 19 de junho, o FBI prendeu 406 pessoas, incluindo corretores e empreiteiros, como parte de uma operação contra supostas fraudes em financiamentos habitacionais, que alcançaram valor de US$ 1 bilhão. Em setembro desse ano, o tradicional banco de investimentos Lehman Brothers, com mais de 150 anos de existência e um dos pilares financeiros de Wall Street, o quarto maior banco de investimentos dos Estados Unidos, registrou perdas de US$ 3,9 bilhões nos três meses anteriores a agosto, e anunciou processo de concordata após não achar comprador. A falência do Lehman Brothers volatilizou o crédito para todos os devedores não considerados “superseguros”.

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A crise se alastrou pelo setor bancário europeu com a nacionalização parcial do grupo belga Fortis, para garantir sua sobrevivência. O Federal Reserve, então, anunciou um pacote de socorro de US$ 85 bilhões para tentar evitar a falência da seguradora AIG, a maior do país: o governo assumiria o controle de quase 80% das ações da empresa e o gerenciamento dos negócios. Logo depois, o outro gigante do setor de hipotecas dos Estados Unidos, o Washington Mutual, foi fechado por agências reguladoras e vendido para seu adversário, o Citigroup. O Lehman Brothers fora “sacrificado” para salvar o maior grupo financeiro mundial, exatamente o Citigroup, que comprou também o Wachovia, quarto maior banco americano, em um acordo de resgate com apoio das autoridades norte-americanas: o Citigroup absorveria “até” US$ 42 bilhões dos prejuízos do Wachovia (o restante, de montante indeterminado, mas alto, seria absorvido pelo Estado, isto é, pelo contribuinte).

Ainda assim, a crise se agravou no início de outubro com quedas de quase 10% em vários mercados mundiais na segunda-feira 6 de outubro. Nouriel Roubini estimou que os prejuízos das instituições financeiras norte-americanas aproximavam-se de US$ 3,6 trilhões, atingindo metade dos bancos e corretoras dos EUA. Isso implicava a insolvência total do sistema bancário, porque este começa a funcionar com um capital de US$ 1,4 trilhão. Quando a chamada economia da produção (ou “real”) vai bem, e acompanhada de valorização financeira dos ativos (ações nas bolsas de valores, imóveis) cabe ao Estado não atrapalhar. Quando começam as desvalorizações e crises econômicas, o Estado é convocado pelos “mercados” para tomar providências destinadas a evitar o "pior" (para o capital): as perdas patrimoniais privadas. Mas o desenrolar da crise provaria que o Estado, em primeiro lugar a dívida pública, não é a solução, mas parte, e finalmente o centro, do problema. A crise das bolsas apenas refletia a crise de superprodução na economia mundial, e a expansão do volume de capital fictício, com US$ 144 trilhões aplicados em ativos financeiros em todo o mundo, mais do que o dobro do PIB mundial. Segundo o FMI declarou em 7 de outubro de 2008, as perdas decorrentes de hipotecas do mercado imobiliário subprime já realizadas contabilizavam 1,4 trilhão de dólares e o valor total dos créditos subprime ainda em risco se elevava a 12,3 trilhões, o que correspondia a 89% do PIB estadunidense.

As medidas contra a crise foram tomadas em separado pelos governos implicados. O Reino Unido, Alemanha, Bruxelas, Holanda, Luxemburgo, França e Islândia anunciaram a nacionalização de bancos. Os governos de Irlanda e Dinamarca agiram garantindo depósitos e créditos e intermediando fusões e vendas de instituições. Este tipo de nacionalização parcial temporária, que é chamado de "injeção de equity", era a solução defendida por vários economistas. Era também a solução preferida de Ben Bernanke, o presidente do FED. O Plano de Bernanke-Paulson foi criticado nos EUA por resgatar com fundos públicos os banqueiros. O pacote de US$ 700 bilhões de Bush pareceu pequeno perto do que os governos europeus anunciaram: Inglaterra, 1,3 trilhão de dólares; Alemanha, 850 bilhões; França, quase 500 bilhões; Holanda, mais de 270 bilhões. Os recursos dos mega-pacotes foram desviados dos Tesouros nacionais para estatização de fatias enormes de bancos e financeiras. Os EUA de Bush, seguindo o modelo inglês de Gordon Brown, anunciaram a liberação de US$ 250 bilhões para a estatização de boa parte dos grandes bancos de Wall Street. O plano americano permitiu evitar a queda do banco de investimentos Morgan Stanley.

Estava em curso um processo de reconcentração do capital, em escala mundial, pondo suas esperanças numa recuperação baseada na China, também afetada pela crise, o que levou ao pacote anti-crise chinês de 4 trilhões de yuanes (586 bilhões de dólares). Henry Paulson, secretário do Tesouro americano, declarou: «Os EUA têm interesse em que a China permaneça próspera e estável, queremos que a China se transforme em co-responsável do sistema internacional». O capital apelava para o “salva-vidas chinês”, comandado pelo... Partido Comunista. Os preços das ações chinesas vinham batendo recordes históricos até outubro de 2007. Entre outubro de 2006 e outubro de 2007, auge do ciclo, as ações em Xangai e em

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Shenzen aumentaram aproximadamente 200%. Mas, quando começaram a cair, não se recuperaram mais. As duas sofreram uma pesada desvalorização, que se acelerou em 2008, quando foi queimado aproximadamente um terço do capital cotado nas duas principais bolsas de valores chinesas.

O governo chinês decidiu esfriar o motor do investimento e até mesmo, em alguns setores (imobiliário, siderúrgico e automobilístico), proibir quaisquer novos investimentos. No entanto, apesar dessas medidas , teve dificuldades para frear os gastos no imobiliário, nas infra-estruturas rodoviárias e nas construções de outras fábricas. Essa situação se deveu, em parte, às províncias e aos industriais locais. As províncias buscam afirmar sua autonomia frente ao poder central, encorajando sem discernimento a implantação de indústrias locais, e os industriais locais tentam se aproveitar da euforia geral. A desvalorização do capital na China e demais “economias de baixo custo” da Ásia poderia ser rapidamente interrompida pelos seus capitalistas sem alimentar a espoleta da crise planetária? Isso era praticamente impossível. Eles também queriam adotar medidas regulatórias para o mercado de derivativos, considerado o maior responsável pela derrocada do sistema financeiro.

A ISDA (Associação Internacional de Trocas e Derivativos) disse que ninguém conhecia nem poderia conhecer o valor exato de derivativos espalhados pelo mercado mundial, na imensa maioria dos casos contratos privados entre duas partes. Um exemplo da controvérsia são as estatísticas divulgadas pela ISDA e pelo BIS (Banco para Compensações Internacionais), organização internacional que centraliza dados financeiros mundiais para todos os bancos centrais. Nas tabelas do ISDA, o valor de contratos derivativos era de US$ 454,5 trilhões. Já nas estatísticas do BIS, o valor era de US$ 596 trilhões. Em 2008, o PIB mundial não ultrapassava US$ 60 trilhões. O sistema de valorização fictícia do capital (cuja extensão ao longo de um quarto de século se mede pelo gráfico em baixo) tinha se transformado de milagre em pesadelo.

Taxa de lucro das corporações financeiras e não financeiras (%) 1981-2006

Fonte: Gisuppe Sottile. Declino economico e crash finanziario

Em agosto e setembro de 2008, o alcance da crise iniciada em 2007 chegou ao auge, com a estatização dos gigantes do mercado de empréstimos pessoais e hipotecas - a Federal National Mortgage Association (FNMA), conhecida como "Fannie Mae", e a Federal Home Loan Mortgage Corporation (FHLMC), apelidada de "Freddie Mac" - que estavam quebradas (as

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hipotecas em seu poder valiam menos que as dívidas acumuladas para financiá-las). Fannie e Freddie eram bancos privados, embora criados mediante lei, ou seja, bancados pelo Estado. Por isso, acumularam uma dívida de US$ 5,5 trilhões (nada menos que metade do mercado hipotecário norte-americano, e um trilhão superior à divida do próprio Tesouro dos EUA), com um capital que não ultrapassava... US$ 70 bilhões (1,5% de seu balanço). Falidas, o valor de suas ações despencou 90% em um ano. Mas suas hipotecas não eram junk, ao contrário, eram as mais solventes do mercado. E não era só um problema dos EUA: grande parte da dívida dessas financeiras se encontrava fora do país, no Japão e na China, uma soma de US$ 1,3 trilhões, ou seja, um percentual enorme do superávit comercial dos colossos asiáticos. A “crise dos EUA” foi, portanto, mundial desde o seu início. Com uma dívida superior à do próprio país, as “gêmeas” se tornaram não-resgatáveis, pondo em risco a qualificação da dívida pública dos EUA (AAA), isto é, sua condição de refúgio universal del capital mundial.

Logo em seguida, veio o pedido de concordata do Lehman Brothers, e a venda, ao Bank of America, da corretora Merrill Lynch, uma das maiores do mundo. A cascata de falências e quebras de instituições financeiras provocou a maior queda do índice Dow Jones e de bolsas de valores internacionais desde os atentados de 11 de setembro de 2001. Em 16 de setembro, o Lehman Brothers fechou um acordo para vender partes do banco ao britânico Barclays. No mesmo dia, as ações da American International Group Inc. (AIG), a maior empresa seguradora dos Estados Unidos, caíram 60% na abertura do mercado. Ao longo do dia, o Federal Reserve tentou convencer os bancos JPMorgan e Goldman Sachs a conceder um crédito de emergência de US$ 75 bilhões para ajudar a AIG. Enquanto isso, a Moody's e a Standard & Poor's rebaixavam a classificação dos créditos da empresa, em razão das expectativas de novos prejuízos na área de seguros de hipotecas.

O governo norte-americano não tinha mais alternativa que nacionalizar Fannie e Freddie, mas esta operação de resgate produziu novos problemas. Os fundos gastos para essa operação (ao redor de US$ 200/300 bilhões) impediram sua repetição com outras instituições financeiras com problemas. A primeira grande vítima tinha 158 anos de antiguidade: o gigantesco banco de inversão Lehman Brothers, que se deixou colapsar. A quebra do Lehman Brothers se transformou no canalizador de uma avalanche de quebras, uma intensificação da contração do crédito global, e do pânico em todo o mundo. Em coincidência, a venda forçada do Merrill Lynch, no fim de semana de 13/14 de setembro de 2008, seguido pelo resgate de último minuto da companhia de seguros AIG por parte do FED, demonstrou claramente que a catástrofe financeira global não havia finalizado. Em seis meses, fora desmantelado todo o quadro dos bancos de inversão de Wall Street: Bearn Stern, Lehman Brothers, e até Goldman Sachs e o Morgan Stanley, que tiveram que ser reclassificados e postos sob a autoridade do FED. Seguiu-se uma série de dramáticas intervenções do Estado, tanto nos Estados Unidos, como na Europa, que superaram tudo o que sucedera depois da explosão da crise em 2007.

O FED norte-americano e outros bancos centrais seguiram uma política monetária expansiva de redução das taxas de juros; foram introduzidos estímulos fiscais, cortes impositivos que favoreciam os ricos com problemas, mas a espiral da crise mundial continuou aprofundando-se, ameaçando todo o sistema. Depois do descalabro do Lehman Brothers, o Plano Paulson de 700 bilhões foi urgentemente introduzido para comprar os "ativos tóxicos", e aliviar ao sistema financeiro de sua arca destrutiva: dessa soma, 250 bilhões foram urgentemente redirigidos para recapitalizar e nacionalizar parcialmente os nove bancos mais fortes dos Estados Unidos. O Plano Paulson atacava como principal problema a liquidez, quando o verdadeiro núcleo do problema era a insolvência. A "securitização" disseminara globalmente os riscos e ofuscara os perigos de quebra, destruindo qualquer qualificação creditícia e congelando as linhas de crédito.

A carteira de empréstimos dos bancos estava estendida, às vezes 60 vezes mais que seus ativos, convertendo-os agora em candidatos à quebra. O Plano Paulson outorgou algum alívio

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temporário a Wall Street enquanto o contribuinte devia pagar a conta. Transferiu outra parte da enorme dívida privada à dívida pública dos já sobre-endividados Estados Unidos. Com o crescimento do déficit dos Estados Unidos, crescia a necessidade de inversores estrangeiros para financiá-los, e a qualificação creditícia dos EUA se deteriorou. A relação da dívida total (pública + privada) dos Estados Unidos com o PIB, que era de 163% em 1980, de 240% em 1990, saltou a 346% em 2007. Agravou-se enormemente com os acontecimentos de 2007/08, incluindo a soma de US$ 6 trilhões de passivos do Fannie e Freddie e os 700 bilhões do plano Paulson.

A queda das bolsas afetou o mundo todo desde o início da crise:

BOLSAS/Índices Outubro 2007/ Maio 2008

Janeiro 2008/ Maio 2008

Nova York – Down Jones (-) 8.5 % (-) 3.3 %

Frankfurt – DAX (-) 10.9 % (-) 12.0 %

Tókio – Nikkei (-) 20.0 % (-) 9.0 %

Xangai – SH COMP. (-) 38.5 % (-) 33.0 %

Shenzen – SZ COMP. (-) 29.0 % (-) 32.0 % Fonte: Bloomberg

Querda da Bolsa de Nova York em 2008

Houve também a queda brutal da bolsa e da moeda na Turquia, a crise da Hungria, a crise da Indonésia e a suspensão das operações da bolsa da Índia (um dos países “estrela” da onda “emergente”) depois de uma queda de dez pontos em seus índices. Um Estado após outro se somou à lista de países em default: Islândia, Hungria, Ucrânia, Bielorrússia, Cazaquistão, Romênia, Bulgária, Paquistão, Indonésia, Filipinas. Um após outro lançaram chamados desesperados ao FMI.35 O FMI respondeu aos chamados de Hungria e Ucrânia, mas sua

35

O FMI concentrou-se no financiamento dos déficits da balança de pagamentos e depois, a partir da década de 1980, na reestruturação de economias muito endividadas, através de programas de “ajuste estrutural”. A única finalidade desses programas era garantir a quitação da dívida externa. O FMI é um centro de (problemática) organização política do imperialismo financeiro: cinco países “desenvolvidos” possuem 39% dos votos de suas instâncias, e o conjunto dos “desenvolvidos” controla aproximadamente 60% dos votos.

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munição era muito limitada: aproximadamente 250 bilhões de dólares. Não poderia jogar o papel de salvador, só exacerbaria os problemas sociais e políticos ao impor suas conhecidas condições draconianas aos países que recebiam suas "ajudas".36

Já era esperada uma crise no mercado dos créditos imobiliários dos Estados Unidos, sabidamente inchado. Mas o que não se esperava é que a crise tomasse a dimensão que tomou, ameaçando uma bancarrota geral. A crise deflagrou uma guerra de moedas, uma tendência a uma desvalorização brutal do dólar e a uma queda do comércio mundial. Era a maior crise financeira internacional desde a década de 1930. A reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 2008, em Hong Kong, terminou em nada, uma promessa de reduzir os subsídios agrícolas pagos pelos governos dos Estados Unidos e da Europa a partir de 2013. Em um sistema em que tudo estava em queda, se mantinham gigantescos subsídios financiando produtores agrícolas dos países ricos, um índice de guerra comercial, que passava para o sistema monetário, por meio das desvalorizações para a disputa dos mercados em situação de recessão. A previsão do crescimento da economia mundial de 5% foi revisada para baixo, com uma contração geral do mercado. A bolha imobiliária dos Estados Unidos era o elo mais fraco do circuito especulativo internacional.

A crise estourou nos EUA, mas a regulamentação financeira nos dois lados do Atlântico era quase nula. No mundo financeiro tudo se baseia em expectativas, ou melhor, numa cadeia de expectativas e de confiança, que estava quebrada. O financiamento “irracional” do consumo fora uma das vias para o capital escapar da grave crise de superprodução presente desde a década de 1970. Acreditava-se que as “bolhas” criadas poderiam explodir suavemente, fazendo com que o capital achasse, no final do percurso, um novo patamar “sadio” para seu processo de acumulação e reprodução ampliada. O mercado de derivativos se expandira de 100 a 516 trilhões de dólares entre 2002 e 2007, segundo a estimação do BIS, e até 585 trilhões segundo outras estimativas. Com o estouro dessa gigantesca bolha, os bancos nos EUA perderam 66% de seu valor, em um ano; General Motors, 90% de seu valor; General Electric, 50%; Tenaris, 70%. Ficaram nessa situação em consequência da queda de sua expectativa de benefícios, por um lado, e de seu endividamento extraordinário, pelo outro.

Nos últimos 60 anos, cada vez que a expansão do crédito entrara em crise nos EUA as autoridades financeiras agiram injetando liquidez no sistema financeiro e adotando medidas para estimular a economia. Isso criou um sistema de 'incentivos assimétricos', conhecido nos Estados Unidos como moral hazard, que encorajava uma expansão de crédito cada vez maior. George Soros comentou: "O sistema foi tão bem sucedido que as pessoas passaram a acreditar naquilo que o então presidente Reagan chamava de "a mágica dos livres-mercados" e que eu chamo de fundamentalismo de livre mercado. Os fundamentalistas de livre mercado acreditam que os mercados tendem a um equilíbrio natural e que os interesses de uma sociedade serão alcançados se cada indivíduo puder buscar livremente seus próprios interesses. Essa é uma concepção obviamente errônea porque foi a intervenção nos mercados, não a ação livre dos mercados, que evitou que os sistemas financeiros entrassem em colapso. Não obstante, o fundamentalismo de livre mercado emergiu como a ideologia econômica dominante na década de 1980, quando os mercados financeiros começaram a ser globalizados, e os Estados Unidos passaram a ter um déficit em conta-corrente".

36

A declaração de default de Hungria foi adiada graças um pacote de resgate de urgência do FMI, o Banco Central Europeu e o Banco Mundial, de 25 bilhões de dólares. Itália, por sua vez, era a quarta economia da Europa, arcando com o peso da terceira maior dívida pública do mundo, um trilhão de dólares, ultrapassando a França: somada ao grande déficit fiscal e a gastos governamentais que chegam a quase 50% do PIB (e em que pese uma das arrecadações por impostos mais altas do mundo, 43% do PIB), elas tornaram impossível que o governo italiano pudesse proporcionar resgate aos gigantes italianos Intesa e Unicredit, muito expostos na Europa central e nos Bálcãs.

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A “globalização” permitiu aos Estados Unidos sugar a poupança mundial, e consumir muito mais do que produzia, tendo seu déficit em conta-corrente atingido 6,2% do PIB em 2006. Seus mercados financeiros empurravam os consumidores a tomar emprestado, criando cada vez mais instrumentos sofisticados e condições favoráveis ao endividamento. As autoridades financeiras colaboravam e incentivavam esse processo, intervindo - para injetar liquidez - cada vez que o sistema financeiro global se visse em risco. A partir de 1980 os mercados financeiros mundiais começaram a ser desregulamentados, tendo sua supervisão governamental progressivamente relaxada até virtualmente desaparecer. A superexpansão, supostamente, saiu dos trilhos quando os instrumentos financeiros se tornaram tão complicados que as autoridades financeiras governamentais se tornaram tecnicamente incapazes de avaliar os riscos desses instrumentos financeiros, e passaram a se utilizar dos sistemas de gerenciamento de riscos dos próprios bancos privados. Da mesma maneira, as agências de análise de crédito internacionais se baseavam nas informações fornecidas pelos próprios criadores dos instrumentos sintéticos; às vésperas da quebra da Fannie Mae, essas agências ainda classificavam os derivativos de empréstimos subprime como um risco AAA, ou seja... nulo.

Houve uma reação em cadeia no mercado internacional: em uma ação imediata e pouco coordenada, os bancos centrais dos Estados Unidos, Japão e União Europeia despejaram bilhões de dólares para atenuar o movimento dos especuladores de restringir empréstimos e retirar dinheiro de aplicações inseguras – como nos países periféricos. O governo britânico introduziu o plano de Gordon Brown para nacionalizar oito grandes bancos. Juntos, a Grã-Bretanha, Alemanha e França anunciaram em 13 de outubro de 2008 mais de US$ 222 bilhões de nova liquidez para os bancos e cerca de US$ 1 trilhão em garantias de empréstimos interbancários. Mas essa ação foi limitada. A sintonia das grandes potências econômicas era frágil, o máximo que os bancos centrais podiam fazer era estender no tempo a ocorrência de uma crise maior. Os cortes de taxas de juros por parte do FED, duas vezes em outubro de 2008, ao nível mais baixo desde o 11 de setembro (e movimentos similares do Banco Central Europeu, do Banco de Inglaterra, do Banco do Japão e de outros bancos centrais da Ásia) tinham um efeito efêmero nos voláteis mercados acionários, mas eram incapazes de reverter a contração da economia mundial.

Índice Dow Jones (janeiro 2006 – novembro 2008)

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7. AS RESPOSTAS DOS ESTADOS CAPITALISTAS E SEUS LIMITES

O Estado moderno, qualquer que seja a sua forma, é uma máquina essencialmente capitalista, é o Estado dos capitalistas, o capitalista coletivo ideal. E quanto mais forças produtivas passem à sua propriedade tanto mais se

converterá em capitalista coletivo e tanto maior quantidade de cidadãos explorará. Os operários continuam sendo operários assalariados, proletários. A relação capitalista, longe de ser abolida com essas medidas, se aguça.

Friedrich Engels, 1878

George Soros fez uma distinção entre a crise iniciada em 2007-2008 e as crises anteriores, considerando a última crise como o clímax de uma superexpansão ("super-boom") que ocorreu nos últimos 60 anos. Segundo Soros, os processos de expansão-contração ("boom-bust") giram ao redor do crédito, e envolvem uma concepção errônea, que consiste na incapacidade de se reconhecer a conexão circular reflexiva entre o desejo de emprestar e o valor das garantias colaterais. Crédito fácil criava uma demanda que aumentava o valor das propriedades, o que por sua vez aumentava o valor do crédito disponível para financiá-las. As bolhas começam quando as pessoas passam a comprar casas na expectativa de que sua valorização permitirá a elas refinanciar suas hipotecas, com lucros. A prolongada política de juros reais negativos, implementada pelo Banco Central dos Estados Unidos, e seguida na Europa e no Japão, tornara possível a formação da bolha imobiliária e a criação dos novos mercados de crédito para financiá-la. Com o furo da "bolha da Internet", sob pretexto de proteger os investidores, Alan Greenspan, presidente do Federal Reserve, orientou os investimentos para o setor imobiliário.

Adotando uma política de taxas de juros muito baixas e de redução das despesas financeiras, Greenspan induziu os intermediários financeiros e imobiliários a incitar uma clientela cada vez maior a investir em imóveis, principalmente através da Fannie Mae e da Freddie Mac, que já vinham crescendo muito desde que diferentes governos dos Estados Unidos as usaram para financiar casas aos mais pobres. O governo garantia os investimentos feitos por essas duas empresas. Bancos de vários países do mundo, atraídos pelas garantias do governo, acabaram emprestando dinheiro a imobiliárias através da Fannie Mae e da Freddie Mac, que estavam autorizadas a captar empréstimos em qualquer lugar do mundo. Os juros reais negativos (ou muito baixos) estimularam a tomada de empréstimos imobiliários, tendo as próprias casas como garantias. Esse aumento da procura por casas fez subir seus preços, possibilitando novos empréstimos com a mesma garantia. Essa maior procura também estimulou a construção civil e outros setores produtivos, ampliando a sobreacumulação de capitais e superprodução de mercadorias. A espiral especulativa foi estimulada com a criação de novos tipos de empréstimos (inovações financeiras), destacando-se os sem garantias adequadas pelos padrões anteriores (subprime), e o repasse dos riscos para fundos interessados em altos riscos/altos lucros, via securitização, que magnificou o contágio mundial da crise.

Quando a Reserva Federal dos EUA, em 2005, aumentou a taxa de juros para tentar reduzir a inflação, desregulou-se a máquina; o preço dos imóveis caiu, tornando impossível seu refinanciamento para os clientes ninja, que se tornaram inadimplentes em massa, e esses títulos derivativos se tornaram impossíveis de ser negociados, a qualquer preço, o que desencadeou um efeito dominó, fazendo balançar o sistema bancário internacional, a partir de agosto de 2007. Hanna Rosin argumentou que os adeptos da teologia da prosperidade podem ter influenciado o problema no mercado imobiliário, por ignorar fatores como salários por hora e extratos de conta bancária, bem como causa e efeito, e um cálculo prudente dos gastos oferecidos, em favor de "milagres financeiros e a ideia de que o dinheiro é uma substância mágica que vem como um dom do alto". A crise encerrava o ciclo da economia do endividamento que alimentou a saída da crise da década de 1970.

Era o fim de um ciclo histórico de mais de 30 anos de duração, com o qual se saira da crise do petróleo e de liquidez internacional por meio da especulação financeira. Naquele momento se criou o mercado dos petrodólares e, a partir daí, a especulação financeira internacional

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cresceu até atingir a cifra aproximada de 550 trilhões de dólares, de derivativos e outros tipos de títulos. O número de instrumentos financeiros, criados dentro do processo de inovações financeiras, foi vasto, encabeçado pelos derivativos financeiros e os bônus corporativos, instrumentos que jogaram papel central no estouro da crise.

A quebra do Lehman Brothers foi seguida, no espaço de poucos dias, pela falência técnica da maior empresa seguradora dos Estados Unidos da América, a AIG. O governo norte-americano, que se recusara a oferecer garantias para que o banco inglês Barclays adquirisse o controle do cambaleante Lehman Brothers, alarmado com o efeito sistêmico que a falência dessa tradicional e poderosa instituição financeira - abandonada às "soluções de mercado" - provocou nos mercados financeiros mundiais, resolveu, em vinte e quatro horas, injetar oitenta e cinco bilhões de dólares de dinheiro público na AIG para salvar suas operações. Mas, em poucas semanas, a crise norte-americana já atravessava o Atlântico: a Islândia estatizou o segundo maior banco do país, que passava por sérias dificuldades.

As mais importantes instituições financeiras do mundo, Citigroup e Merrill Lynch, nos Estados Unidos; Northern Rock, no Reino Unido; Swiss Re e UBS, na Suíça; Société Générale, na França declararam ter tido perdas colossais em seus balanços, o que agravou ainda mais o clima de desconfiança, que se generalizou. No Brasil, as empresas Sadia, Aracruz Celulose e Votorantim anunciaram perdas bilionárias. Para evitar o colapso, o governo norte-americano reestatizou as agências de crédito imobiliário Fannie Mae e Freddie Mac, privatizadas em 1968, que ficaram sob o controle do governo dos EUA por tempo indeterminado. Em outubro de 2008, a Alemanha, a França, a Áustria, os Países Baixos e a Itália anunciaram pacotes que somaram 1,17 trilhões de euros (ou US$ 1,58 trilhão / ≈R$ 2,76 trilhões) em ajuda aos seus sistemas financeiros. O PIB da Zona do Euro teve uma queda de 1,5% no quarto trimestre de 2008, em relação ao trimestre anterior, a maior contração da história da economia da zona.

Daí a importância de salvar a principal empresa seguradora do mundo. Para os analistas de negócios, um possível fracasso na operação para salvar a AIG seria duas vezes pior do que a quebra do Lehman Brothers. No entanto, a AIG conseguiria rapidamente a proteção necessária para evitar a falência: o Federal Reserve anunciou um empréstimo de US$ 85 bilhões para a AIG. Em troca, o governo americano passou a deter 79,9% de participação no controle acionário do grupo, e o gerenciamento de seus negócios, estatizando-o, ainda que, em teoria, temporariamente. Posteriormente um segundo pacote de ajuda financeira governamental no valor de US$ 37,8 bilhões se fez necessário. A crise apontava para a estatização temporária do sistema bancário, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra.

No Brasil, cogitou-se que o Banco Itaú viesse a absorver a filial brasileira da Merrill Lynch, e que o Unibanco pudesse vir a aumentar a sua participação na filial brasileira da AIG. Os empresários reivindicaram fundos do Estado para sair de seu estado de bancarrota, mas nenhum Estado do planeta tinha os meios financeiros para salvar o capital em seu conjunto. O governo dos EUA comprometeu trilhões de dólares para assistir a seus grupos mais poderosos, dinheiro tirado também dos gastos sociais, e que obrigaria a um endividamento espetacular do Estado. O círculo fatal da crise do capital fechar-se-ia na falência financeira do Estado.

Em 29 de setembro de 2007, a Câmara de Representantes dos Estados Unidos rejeitou o pacote de medidas de ajuda governamental ao setor financeiro, por 228 votos contra e 205 a favor. O pacote (“Plano Paulson”) previa a liberação de recursos do Tesouro, de até US$ 700 bilhões, para a compra de títulos podres de crédito hipotecário. O governo ficaria com ações das instituições socorridas. Desde a quebra do Bear Stearn até outubro de 2008, o governo estadunidense e a Reserva Federal já haviam despendido cerca de dois trilhões de dólares na tentativa de salvar instituições financeiras. Os países da UE também despenderam várias centenas de bilhões de euros na tentativa de salvar seus próprios bancos. Finalmente, em abril

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de 2009, o G-20, reunido em Londres, anunciou a injeção de US$ 1 trilhão na economia mundial para combater a “crise financeira global”.

Mapa-múndi mostrando taxas de crescimento real do PIB para 2009 (com os países em marrom em estado de recessão econômica)

As instituições financeiras seriam taxadas se o governo tivesse perdas por mais de cinco anos após a operação de bailout. Posteriormente, foram introduzidas algumas modificações no pacote de socorro aos bancos, de modo a atenuar seu aspecto de presente a “executivos inescrupulosos”. O custo total foi ampliado de US$ 700 bilhões para US$ 850 bilhões, dos quais até US$ 700 bilhões seriam usados para comprar “títulos podres”, conforme o projeto original. Outros US$ 150 bilhões foram acrescentados pelo Senado, na forma de cortes de impostos e incentivos fiscais. Após uma intensa campanha de pressão, que envolveu o presidente George W. Bush, o secretário do Tesouro, Henry Paulson, e o novo presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, além dos candidatos à presidência dos EUA, Barack Obama (Partido Democrata) e John McCain (Partido Republicano), o Senado dos Estados Unidos aprovou o projeto, em 1º de outubro, por 74 votos a favor e 25 contra. O pacote voltou à Câmara, para ser votado novamente, sendo aprovado e sancionado pelo presidente Bush.

O Wall Street Journal afirmou que o pacote não resolveria o problema fundamental da crise do setor imobiliário: o preço dos imóveis continuaria caindo, pois os principais sustentáculos do crescimento da economia - gastos dos consumidores, empresas e governo e as exportações - continuavam se esfarelando. A demanda externa por bens americanos, que ajudou o setor industrial a evitar uma desaceleração mais profunda, devia secar à medida que as maiores economias mundiais entravam em recessão, e nações como China e Índia perdiam o fôlego. Na melhor das hipóteses, os analistas esperavam um aumento da taxa de desemprego nos EUA, de 6,1% para 8%.

Logo após a Câmara de Representantes dos EUA ter rejeitado a proposta governamental de socorro ao setor financeiro, em 29 de setembro, a Bolsa de Valores de São Paulo, a terceira maior do mundo em valor de mercado, chegou a cair 10,16% (a 45.622,61 pontos) e teve suas operações interrompidas (circuit break). Os bancos centrais dos Estados Unidos, Europa e Japão emprestaram em uma ação concertada US$ 395 bilhões aos seus bancos em apenas três dias, 9, 10 e 13 de agosto de 2007. A continuidade desses “empréstimos de liquidez” fez aquela enorme cifra quase multiplicar-se por dez, se aproximando de US$ 3,5 trilhões, aproximadamente 25% do PIB dos EUA. Se considerarmos em relação ao total de créditos imobiliários subprime dos EUA, estimado em US$ 2 trilhões, esses empréstimos já corresponderiam quase ao dobro de todo o estoque.

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Revelou-se a tendência deflacionária, em virtude da derrubada do crédito: pela primeira vez em 40 anos a criação de crédito foi negativa nos EUA. Isto exatamente quando os bancos centrais abriam quase sem limites as torneiras da emissão monetária para resgatar os bancos falidos, mostrando que o dinheiro não refluia sobre o comércio e a produção: “resgate” do capital não é sinônimo de recuperação econômica. O aumento do preço e dos contratos no mercado do petróleo, que funcionou momentaneamente como reserva de valor, implicava a possibilidade de uma derrubada planetária da atividade econômica. E os balanços de General Motors e General Electric, as duas maiores empresas industriais, mostravam que essa era uma possibilidade iminente. A General Motors e a Chrysler precisaram de mais de US$ 17 bilhões para continuar em operação e evitar milhares de demissões em empregos diretos e indiretos. O desemprego aumentou consideravelmente: em 2008, nos EUA, a taxa de desemprego foi de 7,2%, a pior desde 1993. Além disso, Espanha se uniu às nações que enfrentavam quebras de imobiliárias e bancos, assim como Inglaterra e Irlanda, com Itália, Alemanha e França enfrentando índices de recessão.

As exportações “periféricas” - que dependem de fontes externas de financiamento - tenderam a sofrer imediatamente os efeitos da redução da oferta internacional de crédito. Além disso, a queda da demanda nos Estados Unidos afetou as exportações - do Brasil e da América Latina, e também de outros países, como a China que, sendo grande exportadora para os EUA, tendeu a experimentar uma desaceleração no seu crescimento. De imediato, esperava-se que crescimento do PIB chinês caísse cerca de 1%, mas essa queda foi bem maior, chegando a 4%, embora mantendo a taxa alta (mais de 6% ao ano) comparada com os países centrais.

O governo chinês fixou uma meta de crescimento de 8% anuais. Mas, no primeiro trimestre de 2009, a economia chinesa sofreu uma queda brusca nas suas exportações e o PIB cresceu à menor taxa dos últimos dez 10 anos: 6,1% em relação ao primeiro trimestre de 2008. No trimestre anterior, o país crescera 6,8%, em comparação com o mesmo período, no ano anterior. Estes números indicavam que seria difícil cumprir a meta de crescimento. Desde 2006, China crescera a aproximadamente 10% ao ano.

A preocupação das autoridades norte-americanas consistiu em comprar ativos ilíquidos do sistema financeiro, “privatizando os lucros e socializando as perdas”. O secretário Henry Paulson chegou a ser chamado de “socialista” (às avessas). Outros acusaram seu pacote de não tratar do problema da brutal descapitalização sofrida pelas instituições financeiras. Estas, depois de haverem visto cerca de 16 trilhões de dólares dos recursos de seus clientes serem torrados na fogueira das bolhas especulativas, estavam sem condições de ofertar o crédito que a economia (capitalista) necessita para funcionar.

As estatizações capitalistas visam salvar o capital do próprio capital, através de demissões, congelamento de salários, da miséria social em todas as suas formas. A restauração das clássicas crises catastróficas do século XIX (só que agora com um potencial de destruição muito maior) não poderia ser completa sem a presença do desabastecimento e da elevação a nível proibitivo para a maioria das pessoas dos preços dos alimentos de base (a crise alimentar de 2007-2009), filha do deslocamento da especulação financeira dos setores falidos para setores “novos”: o número de pessoas que passavam fome no mundo cresceu, em 2009, em mais 40 milhões; desde 2007, em mais 150 milhões, segundo a ONU-FAO.

Depois de décadas de “desregulamentação” neoliberal e privatização, a intervenção do Estado ocupou novamente o centro do cenário, começando com injeções de capital sem precedentes, cortes nas taxas de juros, intervenções e nacionalizações, em 2007 e 2008, nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha, logo estendidas para o mundo. Mas não foi um revival do “Estado de Bem Estar Social” nos países capitalistas desenvolvidos: o Estado não “expandiu”, mas avançou nas destruição dos serviços públicos (saúde, educação etc.), privatizando-os, e acumulando déficits e dívida pública para assegurar recursos para salvar banqueiros e outros capitalistas. De fato,

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só existe um fortalecimento do estado capitalista como “último recurso salvador” do capitalismo. As nacionalizações capitalistas, “a negação do capitalismo dentro do próprio capitalismo”, são uma ação extrema para salvar o capital da bancarrota. A nacionalização joga a crise sobre os ombros do público através da dívida pública, do desemprego, da inflação.

Nada se comparou à injeção de fundos públicos equivalentes a 40% do PIB mundial no falido setor financeiro e industrial do “Primeiro Mundo”. Os Estados capitalistas entregaram cerca de 25 trilhões de dólares às grandes empresas e bancos falidos. O Government Accountability Office (órgão do Congresso dos EUA) descobriu que o Tesouro norte-americano entregou 16 trilhões de dólares em empréstimos secretos às grandes empresas, mais que um PIB dos EUA entregue secretamente aos grandes bancos.37

O Estado, expressão de uma relação social, se transforma aparentemente em uma coisa ou poder supremo capaz de absorver todas as dívidas e sustentar todos os capitais em bancarrota: a bancarrota do Estado (liquidação do crédito público, calote da dívida pública, colapso do sistema monetário, rompimento de todas as relações interestatais) passou a ser a condensação da crise. O Estado, mediador das contradições sistêmicas, se transforma em um centro de intenso conflito político entre os diferentes grupos de interesses capitalistas privados, da mesma forma que com os trabalhadores e as massas populares. A pergunta “quem pagará pela crise?” se transforma na pergunta central e mais discutida. Ao mesmo tempo, a pergunta “quem governa a sociedade?” e, por conseguinte, a centralidade do poder estatal em si, se converte na maçã da discórdia.

Os choques entre o Estado, os interesses dos grupos capitalistas e as massas trabalhadoras e desempregadas alimentaram a instabilidade e as crises políticas. Logo que se agravou a crise, em setembro de 2008, os governos trataram de encontrar saídas em três direções: 1. Buscando estabelecer novas regras internacionais: uma “nova arquitetura financeira” ou um “Breton Woods II”. 2. “Olhando a China”, cuja taxa de crescimento impressionante a fez aparecer como uma possível locomotora que salvaria a economia mundial de sua queda vertiginosa. 3. Sobretudo, mediante uma intensa intervenção estatal, injetando enormes pacotes de “resgate” para um sistema bancário e uma indústria que se desmoronam, introduzindo nacionalizações e estatizações.

As esperanças de um novo Breton Woods, uma nova ordem mundial para sair do caos demonstraram seus limites logo. A primeira reunião do G20, em novembro de 2008 em Washington, foi um fiasco. A sucessiva reunião do G20, em Londres, evitou um aberto naufrágio, porém, não alcançou nenhum de seus objetivos (novas regras financeiras internacionais, pacotes de estímulo para a Europa). O êxito mais significativo foi somente a promessa de aumentar as reservas do FMI em 500 bilhões de dólares, para chegar a 1,1 trilhão, incluindo 250 bilhões em linhas de crédito em Direitos Especiais de Transferência para ajudá-lo a ter um papel mais ativo no “resgate” de paises sob ameaça imediata de calote (os países da Europa Oriental). Os bancos europeus tinham investimentos de US$ 1,6 trilhão nestes países e na Turquia. As somas estavam sempre atreladas, por imposição do FMI, a medidas draconianas de austeridade e cortes sociais.

Os Estados Unidos buscaram utilizar sua hegemonia mundial, e o papel do dólar como moeda de reserva internacional, para emitir enormes quantidades de dinheiro para sustentar seus

37

Em junho de 2010, conheceu-se o resultado de uma auditoria realizada pelo Government Accountability Office no Banco Central dos EUA (FED), a primeira que sofreu a instituição desde que foi criada (1913), que revelou que entre 1º de dezembro de 2007 e 21 de julho de 2010, o FED concedeu empréstimos secretos a grandes corporações e empresas por 16 trilhões de dólares, uma cifra superior ao PIB dos EUA e à soma dos orçamentos do governo federal nos últimos quatro anos. Desse total, cerca de três trilhões foram destinados a socorrer grandes empresas e entidades financeiras na Europa e na Ásia. O resto foi orientado para o resgate de corporações estadunidenses, encabeçadas pelo Citibank, o Morgan Stanley, Merrill Lynch e o Bank of America. O segredo bancário e comercial, alma do negócio, foi transferido naturalmente para o Estado.

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pacotes de auxílio ao grande capital falido, como o plano Paulson ou o posterior plano de Obama. Porém, o oceano de “ativos tóxicos” era tão ilimitado que todo o esforço se tornou uma tarefa de Sisifo. Os EUA injetaram 1,2 trilhões de dólares na sua economia. Seu superendividamento e seus déficits alcançaram dimensões astronômicas. A União Europeia passou a culpar os Estados Unidos por gastar recursos mundiais para resgatar sua própria bancarrota, criando pressões insuportáveis e ameaçando com a desarticulação da União Europeia e da União Monetária Europeia.

A Rússia também entrou em sua pior crise desde os tempos do calote financeiro de 1998, comovida pela queda do preço do petróleo, o colapso do rublo e a bancarrota da maioria dos oligarcas sob as pressões do capital financeiro mundial. O Leste Europeu se transformou em um buraco negro, ameaçando tragar o sistema bancário europeu. A euforia do ocidente, que se seguiu ao colapso dos estados “socialistas” 1989-1991, e a abertura de um caminho de integração da ex União Soviética ao mercado capitalista mundial deixaram de ser o sonho histórico do capitalismo. O bonapartismo de Putin não representou um retorno aos tempos soviéticos, nem um renascimento do espaço econômico da antiga União Soviética; não foi um regresso a uma distorcida forma de transição ao socialismo, mas outra via ao capitalismo e à integração ao mercado mundial, que se seguiu ao impasse e colapso da primeira etapa da restauração do capitalismo sob a “terapia de choque” de Yeltsin, na suspensão de pagamentos da Rússia em 1998.

O regime de Putin foi obrigado a renacionalizar parcialmente o setor estratégico da economia, o setor energético, e a revitalizar algumas indústrias; beneficiara-se do astronômico aumento dos preços do petróleo no período 2000/2006 para criar um Fundo de Estabilização para cancelar a dívida externa, pagar os atrasos das pensões e acumular provisões para futuros choques financeiros. O enorme crescimento do Estado sob a supervisão da antiga KGB, agora FSB, era o produto de pressões externas do capital financeiro e das pressões internas da desintegração da vida econômica e social. Com a União Europeia importando da Rússia 49% do seu gás (e, em projeção, 80%, por volta de 2030), o governo Putin buscou transformar Rússia num gigante mundial da energia (ou seja, num país exportador primário), unificando e reestatizando parcialmente suas empresas produtoras.

Mas a semi-estatização de setores estratégicos da economia, combinada com golpes a algumas oligarquias, não significava um retorno ao período anterior a 1991, inclusive se as antigas formas de governo, incluindo os serviços secretos, eram usados para outros propósitos: estabilizar a economia e fazê-la funcionar sob parâmetros capitalistas. Nenhuma parte significativa do Fundo de Estabilização foi usada para renovar a infra-estrutura ou os serviços sociais; a principal preocupação foi pagar os banqueiros internacionais e cooperar com as demandas do ambiente financeiro capitalista mundial.

Combinar uma economia de extração de petróleo e matérias-primas com um forte laço com o capital financeiro internacional não resolveu os problemas da economia russa: as desigualdades entre as regiões cresceram, e somente uma elite, na região central da Federação Russa ao redor de Moscou, se beneficiara com a recuperação econômica. Os EUA começaram a se preocupar com a Rússia reforçada sob o governo Putin, e com seu papel independente reafirmado na política mundial e no Oriente Médio, na Europa, nos Bálcãs (incluída a invasão da Georgia, com a que os EUA tinham fechado acordos militares na própria fronteira da Federação Russa); e sobretudo pela incerteza da plena reabsorção da Rússia no mercado mundial.

George Soros considerou que embora uma recessão no mundo desenvolvido fosse mais ou menos inevitável, China, Índia, e alguns países produtores de petróleo, os chamados “emergentes”, configurariam uma vigorosa contra-tendência, o que tornaria menos provável que a crise financeira causasse uma recessão global, devendo provocar uma realinhamento

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radical da economia mundial, com um relativo declínio dos EUA, e com a ascensão da China e de outros países do mundo subdesenvolvido. No entanto, a tese do descolamento dos países “emergentes”, que por serem supostas potências em ascensão poderiam escapar da crise, revelou-se problemática. Na Rússia, por exemplo, em só uma semana, os pregões da bolsa foram interrompidos quatro vezes, numa tentativa de impedir a fuga de capitais. Somente em um dia, a Bolsa de Valores de Moscou caiu 19%. O governo russo foi obrigado a suspender o funcionamento da bolsa por dois dias para não ruir completamente o sistema financeiro.

Na Rússia, as reservas de capital do Estado ficaram bastante fortes - as terceiras no mundo (basicamente devido ao aumento dos preços do petróleo nos sete anos anteriores a julho de 2008) – mas a contração internacional do crédito infringiu golpes devastadores ao setor privado, que se viu subitamente incapaz de honrar os créditos obtidos para projetos ambiciosos, particularmente em energia e matérias-primas. Em setembro/outubro de 2008, as duas bolsas russas perderam mais de 75% de sua capitalização, desde seu teto em maio desse ano.

O Estado russo efetuou enormes injeções de liquidez (da ordem dos 90 bilhões de dólares) depois dos colapsos das bolsas, e em resposta aos temores sobre a estabilidade dos bancos russos. O Kremlin voltou-se, em primeiro lugar, sobre os “oligarcas”, para forçá-los a repatriar e injetar entre os 10% e 30% sua riqueza total nos mercados e nos bancos para reabilitar o sistema financeiro. O Estado consolidou ainda mais seu controle sobre os ativos privados, mas isto não foi suficiente para deter a crise. Os oligarcas, muito ricos em ativos, são muito pobres em efetivo; alguns dos mais poderosos entre eles, como Oleg Deripaska, o homem mais rico da Rússia, teve que liquidar parte de seus ativos para conservar liquidez.

Mas o hipertrofiado Estado construído sob o governo bonapartista de Putin encontrou suas bases sacudidas, sendo obrigado a lançar mão de suas reservas monetárias, que baixaram de 600/650 bilhões de dólares em agosto, a 515 bilhões, em 17 de outubro de 2008, com a fuga de capitais em pleno desenvolvimento. A dívida externa russa total, nesse momento, ascendia a 527 bilhões de dólares, dos quais 228 bilhões pertenciam aos bancos, privados ou governamentais. Os bancos russos dependem do acesso ao capital estrangeiro para financiar tudo, desde empréstimos para automóveis até os gastos das empresas de energia e minerais. Enquanto o rublo se desvalorizava frente ao dólar, a dívida externa em dólares começou a crescer. A reestabilização da economia russa sob o regime de Putin se sustentou, em seu conjunto, sobre um só pilar: a energia. Com a queda dos preços do petróleo e das matérias-primas, esse pilar foi sendo questionado.

A virada em direção ao capital financeiro desde os anos 1980, e sua globalização, produziu uma gigantesca pirâmide mundial de capital fictício para sustentar o sistema. O processo chegou ao clímax no período 2002 – 2007, logo após a crise internacional (1997 – 2001), com a produção de todo tipo de bolhas e exóticos instrumentos financeiros (depois chamados “tóxicos”). Apesar de a crise impulsionar a tendência de se elevar enormemente a taxa de exploração (mais-valia relativa e absoluta) através de todos os meios velhos e novos de relações de trabalho “flexibilizadas”, a desproporção é tanta que não é possível superar a crise. Para o capital, a crise é o único meio de sair da crise. Deve destruir gigantescas somas de capital acumulado para restabelecer a taxa de lucro e recomeçar o processo de acumulação. O FMI estimou em 2009 que foram “perdidos” 4,1 trilhões de dólares no sistema financeiro, e as perdas continuavam crescendo.

Essa soma, embora gigantesca, representava uma parte pequena do capital fictício (e produtivo) que deveria ser destruído. A crise implica na destruição massiva do capital excedente, das forças produtivas mundiais, e antes de tudo, da força social mais importante para a produção: a classe operária. Por sua própria natureza este seria um processo prolongado: não um colapso, instantâneo e automático, nem um queda eterna em um abismo sem fim. A crise mundial implica não só em rearranjos e ajustes econômicos, controle de

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“gastos excessivos” e paraísos fiscais além-mar, mas também um vasto processo de desestabilização, desintegração e reorganização de todas as relações sociais através de conflitos políticos agudos e violentos enfrentamentos nacionais e internacionais. A gigantesca torre de Babel do capital fictício, a estrutura de crédito global que se ergueu nas últimas décadas, deixara de ser um instrumento de expansão global para converter-se em um fator de desintegração global e de crise.

Mas, em 2009, cantou-se vitória quando o Índice Mundial MSCI, que mede todos os principais mercados de ações, cresceu 59% desde março – o maior ganho desde seu início em 1970. Isso equivalia ao maior crescimento nas bolsas desde os anos 1930. O que ocorria com os mercados financeiros dos EUA estava em desacordo com o real estado da economia do país.

Taxa de desemprego (EUA)

Haviam sido diminuídas as espetaculares perdas dos últimos 18 meses graças a uma onda sem precedentes de liquidez financiada pelos governos. Bancos, que receberam trilhões de ajuda, estavam novamente se envolvendo em especulação de alto risco e lutando contra tentativas de se regular e limitar tais atividades. Os líderes políticos e dos bancos centrais do mundo conseguiram, através de enormes intervenções estatais, inchar uma nova bolha financeira, de vida curta, e abrindo caminho para novas ondas de pânico financeiro, numa recessão de “duplo mergulho”, em formato de W. A capitalização das bolsas do mundo se reduzira à metade; as perdas em instrumentos da dívida alcançavam perto de três trilhões de dólares, e a destruição da dívida continuava; existia uma "quase desintegração do sistema bancário do mundo ocidental", segundo o Financial Times, apesar de uma intervenção sem precedentes dos Estados.

A economia mundial se contraiu. O FMI previu para 2009 uma recessão generalizada em todo o mundo desenvolvido e mais de 20 milhões de novas perdas de postos de trabalho. As condições de fome já produziam distúrbios nos países do "Terceiro Mundo", a queda dos preços das matérias-primas acelerou a perspectiva de bancarrota dos países exportadores. A massiva injeção de liquidez pelos governos, medidas de salvamento dos bancos e programas de estímulo como corte de impostos e apoio à vendas de carros e casas, serviram para amortecer a queda econômica, mas ao custo de déficits recordes e da piora dos desequilíbrios da economia global.

Na melhor das hipóteses, havia uma estabilização da economia em seu novo e baixo patamar do final de 2008. Um editorial do Financial Times (27 de julho de 2009) resumiu: "Muito dessa recuperação reflete as leis da física. Se você deixa algo cair no chão, quica". O comércio mundial, que impulsionara o crescimento econômico por décadas, sofrera sua primeira contração desde 1982, mas desta vez a queda foi muito maior – cerca de 10%. A União Europeia experimentou uma queda de 4,1% do PIB, e uma maior em 2010. A previsão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a economia

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americana era uma queda de 2,8%: "Estamos indo para um longo período de economia fraca, doente", disse Joseph Stiglitz, economista chefe do Banco Mundial.

O FMI calculou que os países ricos gastaram 9,2 trilhões de dólares em apoio estatal ao setor financeiro nos dois primeiros anos da crise, enquanto as “economias emergentes” gastaram um igualmente impressionante 1,6 trilhão de dólares. Governos nos principais países capitalistas transferiram as perdas do setor financeiro para o setor público, nas costas dos que pagam impostos: isto foi chamado o "socialismo para os ricos", e foi acompanhado de cortes salariais, privatização e cortes orçamentários. Na Letônia, sob a pressão do programa do FMI e da UE, metade dos hospitais foi fechada, e o salário de professores foi cortado em um terço para garantir cortes orçamentários. Até a minúscula Islândia, arruinada por seus bancos privatizados, foi ordenada pelo FMI a cortar o orçamento estatal em um terço.

No Japão, que embarcou no estímulo estatal bem antes dos outros países, entre 1994 e 2007, a renda doméstica anual caiu 16%. O crescimento da pobreza foi um dos fatores responsáveis pela imensa queda de votos que expulsou os Liberais Democratas do governo em 2009. As políticas de “estímulo estatal” tiveram pouco impacto no desemprego em todo o mundo. Na China, 41 milhões de empregos sumiram em 2008-2009, com perda de 3,4 milhões de empregos por mês. Nos EUA, 6,9 milhões de empregos sumiram no mesmo período. Isso levou o desemprego para mais de 25 milhões em termos reais, ou seja, contando com os subempregados e aqueles que desistiram de procurar emprego, o que diminui o consumo e aumenta as taxas de inadimplência em empréstimos.

A OECD previu a perda de outros 25 milhões de empregos, sem falar em que mais de um sexto das companhias americanas impuseram férias não remuneradas aos trabalhadores, e 20% delas pararam de pagar a previdência (privada) de seus empregados. A longa crise japonesa (1990-2003) mostrou que salários em queda criavam um círculo vicioso de menor demanda de consumo e crescimento do endividamento doméstico, trajetória seguida pelo restante do mundo capitalista nos anos ulteriores. A ação conjunta internacional dos Estados e governos, e das instituições internacionais, mostrou logo seus limites, e foi incapaz se sobrepor ao acirramento da guerra comercial internacional. 17 dos estados do G20 tomaram medidas protecionistas uns contra os outros. A indústria da aviação dos EUA e Europa (Boeing e Airbus) se engajaram num duelo pelo domínio do mercado, com a Europa/Airbus perdendo um crucial julgamento da OMC por subsídio “injusto”. Os novos episódios da crise puseram fim às afirmações de sua superação a partir da segunda metade de 2009. A injeção de uma massa de liquidez sem precedentes de parte dos governos e bancos centrais - em especial depois do pânico causado pela queda do Lehman Brothers, nos EUA - com a intenção de salvar o sistema financeiro internacional em colapso, foi uma manobra de contenção; adiou a queda temporariamente, sem resolver suas contradições sistêmicas, que foram exacerbadas.

O governo norte-americano emititu grandes quantidades de moeda com intuito de combater os efeitos da crise mundial, mas o excesso da moeda americana reduz seu valor em relação às demais. O dólar desvalorizado prejudica as exportações dos parceiros comerciais americanos, tornando seus produtos mais caros no mercado internacional. Ao mesmo tempo, torna as importações destes países mais baratas, enfraquecendo suas indústrias locais, que perdem mercado tanto local quanto de exportação. A guerra cambial metaforiza uma guerra real pois o confronto entre dois grandes oponentes, China e Estados Unidos, obriga seus aliados menores a tomar partido, enquanto terceiros, que podem não estar engajados diretamente, sofrem os “danos colaterais” da disputa. A disputa cambial pode levar a uma onda de protecionismo, como na Grande Depressão da década de 1930. Países com moeda valorizada frente ao dólar dificilmente deixarão que haja uma inversão do câmbio, erguendo barreiras comerciais. Os bancos centrais, bombeiros na primeira fase da crise, são, teoricamente, fontes de crédito de última instância e podem emitir moeda para garantir liquidez.

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Em lados opostos do conflito, EUA e Ásia tem armas distintas, mas igualmente letais às economias mais vulneráveis. Países como a China, Japão, Coréia do Sul, Cingapura e Taiwan conseguem defender seu câmbio por meio de compras maciças de moeda estrangeira porque têm alto índice de poupança. Somente a China tem reservas internacionais superiores a US$ 3 trilhões, razão pela qual consegue manter seu câmbio estável e subvalorizado. Do outro lado, os EUA realizaram forte expansão monetária através dos pacotes bilionários para compra de títulos públicos, e pressionam a valorização das demais moedas. E podem fazer isso, até certo ponto, sem gerar inflação interna, devido ao seu status de economia central, enquanto desvalorizam as reservas internacionais dos outros países.

O Federal Reserve injetou US$ 1,7 trilhão na primeira fase da crise e mais US$ 900 bilhões em duas operações de recompra de títulos do Tesouro norte-americano. O Banco Central Europeu (BCE), por sua vez, recomprou títulos de Portugal, Irlanda e Grécia e usou mais de 10 bilhões de euros na recompra de títulos de Itália e Espanha. A emissão desenfreada e competitiva de moeda abriu a nova fase da a guerra monetária. Desde o início da crise cambial, o Brasil tomou algumas medidas para conter o fluxo excessivo de capitais de curto prazo, como aumentar o IOF, Imposto sobre Operações Financeiras, para o capital estrangeiro e sobre as margens de derivativos. Mas o fluxo do investimento externo continuou crescendo de modo espetacular.

Evolução (“guerra”) cambial após a crise de sub-prime (moedas/US$)

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8. A CRISE NA AMÉRICA LATINA (BRASIL INCLUÍDO)

À histórica separação dos vinte estados da América de colonização espanhola em relação ao Brasil, os anos da euforia econômica no início do século XXI acrescentaram a nova condição deste último como “mercado emergente” da zona, único “membro” latino-americano dos BRICs (ou BRICS, se incluirmos a África do Sul). O processo de integração dos anos 1990 se inseria em um marco de uma nova divisão internacional do trabalho, na qual alguns países latino-americanos, principalmente a Argentina, Brasil e México, haviam agregado produtos industrializados na sua produção, diversificando a sua pauta comercial. Para estes países, a nova divisão internacional do trabalho deixou de ser primário-exportador / industrializado, para industrializado-maquila ou de baixo valor agregado / intensivo em tecnologia. No início do novo século, América Latina viveu cinco anos com altas taxas de crescimento, inflação reduzida aos menores patamares históricos e orçamentos equilibrados ou até com superávits.

Ao mesmo tempo, 40 milhões de pessoas deixaram a linha da pobreza (pelo menos estatisticamente) durante esses anos. O retrocesso relativo da pobreza mais acentuada esteve vinculado ao desempenho econômico da conjuntura, não a mudanças de natureza estrutural. A crise econômica mundial afetou as economias latino-americanas, muito dependentes da venda de matérias-primas (que representam mais de 60% das exportações do subcontinente); todos os países se viram afetados negativamente pelas baixas do petróleo, do cobre ou da soja. Para a maioria dos economistas, as consequências da crise mundial para a economia da América Latina e do Brasil seriam menores, pois os países do continente estavam com melhores fundamentos macroeconômicos e bancos mais sólidos. A crise, porém, estava potencialmente presente no Brasil desde o seu início, em agosto de 2007. O crescimento da Bolsa de Valores foi alimentado, no Brasil, por bancos locais que recorreram à liquidez internacional, ou seja, ao endividamento. Em apenas cinco dias de 2008, empresas brasileiras perderam 227 milhões de dólares de seu valor. A repentina desvalorização da cotação das empresas brasileiras, e de outros países da zona, era o primeiro sinal da crise. Houve divulgação de perdas consideráveis da Aracruz Celulose, do grupo Votorantim, da Sadia.

Evolução do índice Ibovespa entre 1994 e julho de 2009

Assim, depois de um período de ilusões no “desacople” (decoupling) da economia latino-americana da crise econômica mundial, América Latina começou a sentir diretamente os efeitos dessa crise, em primeiro lugar pela redução de suas exportações, que reduziram drasticamente os saldos favoráveis da balança comercial de suas principais economias, e também pelas restrições de crédito, vinculadas ao credit crunch internacional. Em 2008, houve ainda uma forte expansão: Argentina (7%); Brasil (5,2%); Chile (3,2%); Equador (6,52%); México (1,3%); Peru (9,8%), Venezuela (3,2%), tiveram desempenho positivo. No terceiro trimestre de 2008, a crise do subprime dos EUA virou abertamente uma crise financeira internacional de grandes proporções. Em decorrência disso, no primeiro trimestre de 2009, na

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América Latina, o PIB da região caiu 3%, com destaque para a brutal queda do México: 9,31%. A recessão começou “oficialmente” no quarto trimestre de 2008. Ainda em dezembro de 2008, a CEPAL previa para 2009 um crescimento de 1,9%, mas, em abril de 2009 já estimou uma contração de -0,3% (em junho elevou-a para -1,7%). Durante o quarto trimestre de 2008, México, Brasil, Argentina e Chile registraram quedas anualizadas do PIB de -10,3%, -13,6%, -8.3%, e -1,2%, respectivamente. No primeiro trimestre de 2009, México registrou uma queda anualizada sem precedentes, -21.5%.

A queda do emprego no primeiro trimestre de 2009 atingiu um milhão de vagas em toda a América Latina, calculando-se uma perda total de até quatro milhões até o final de 2009. O México sofreu especialmente a crise, embora com desemprego ainda baixo, pelos padrões regionais (mas em crescimento de 4,9% para 6,1%), sobretudo nos setores que “puxaram” seu crescimento no período recente, especialmente o setor automotivo, que emprega quase 600 mil trabalhadores. As exportações mexicanas de veículos caíram 57% já em 2008, a GM de Guanajuato deixou em paro técnico 10 mil funcionários, e 6.600 em outras três fábricas. Volkswagen demitiu 900 trabalhadores, Delphi (fabricante de autopartes), 1.700. Em abril de 2009, o governo mexicano anunciou ter recebido do FMI uma linha de crédito preventivo (dentro da FCL, Linha Flexível de Crédito) de 47 bilhões de dólares, para socorrer as empresas (outro país latino-americano que usou essa linha foi a Colômbia, com um crédito US$ 10,5 bilhões).38

No Brasil, o efeito imediato da crise foi a baixa das cotações das ações em bolsas de valores, provocada pela venda maciça de ações de especuladores estrangeiros, que se atropelaram para repatriar seus capitais a fim de cobrir suas perdas nos países de origem. Em razão disso, ocorreu também uma súbita e expressiva alta do dólar. Posteriormente, grandes empresas brasileiras exportadoras sentiram o baque da falta de crédito no mercado mundial para concretizar seus negócios com parceiros estrangeiros. A recessão que atingiu uma grande parte dos países desenvolvidos também afetou o comércio externo. Empresas como Embraer e Cummins, que têm seus faturamentos altamente dependentes de vendas ao exterior, tiveram que cortar postos de trabalho e reduzir drasticamente o ritmo de produção. Grandes empresas siderúrgicas no Brasil também desligaram alguns fornos. Empresas menores fornecedoras desses grandes conglomerados também foram atingidas. No mercado interbancário, houve uma paralisação quase total dos empréstimos normalmente concedidos pelos grandes bancos aos menores.

Num primeiro momento, o Banco Central do Brasil decidiu isentar os grandes bancos de uma parte do depósito compulsório, que deveria ser destinada a empréstimos aos bancos menores. Mas, devido ao clima de pânico que se instaurou nos mercados financeiros em geral, tal medida não se revelou suficiente: os grandes bancos continuavam não concedendo empréstimos aos menores. Assim, o Banco Central decidiu adquirir as carteiras de crédito de que os bancos pequenos desejassem se desfazer, desde que oferecessem garantias. Houve pressão ainda para que os bancos estatais comprassem bancos menores em dificuldades. Assim, o Banco do Brasil comprou 49% das ações do banco Votorantim, injetando liquidez, mas não ficando com o controle acionário da instituição.

Os dados da conjuntura latino-americana começaram, assim, a mudar com a crise econômica mundial. A crise mundial possuía mecanismos diretos de transmissão, vinculados à contração da demanda mundial: o comércio externo e as matérias-primas. Segundo a CEPAL, os termos de troca da região caíram 15% durante 2009. Os preços dos produtos primários despencaram com a crise, depois de uma alta especulativa das commodities em 2008. Em fevereiro de 2009, os preços tinham sofrido queda respeito ao pico da alta, nas proporções que seguem: petróleo

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Oito novas bases militares dos EUA foram instaladas no país, que é, depois de Israel, o aliado que recebe de Washington a mais volumosa ajuda militar.

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51%, alimentos 18%, arroz 50,6%, milho 47,9%, trigo 41,9%, metais 49%, cobre 37,9%. As quedas de remessas de migrantes afetarão, sobretudo, México, Bolívia, Equador, e quase toda América Central e o Caribe (estas últimas, além disso, sofriam com a acentuada queda de ingressos pelo turismo, basicamente de europeus, norte-americanos e japoneses).

As contas nacionais paulatinamente se ressentiram de arrecadações menores. E a situação do mercado mundial consentiu cada vez menos uma saída baseada num novo ciclo de endividamento. Os fluxos de remessas, aplicações e investimentos diretos entraram em queda, enquanto as emissões de títulos de dívidas a serem realizadas em 2009 foram dominadas pelos países da OCDE (os EUA lançaram mais de US$ 2 trilhões, dentro de um total de US$ 3 trilhões na OCDE), deixando pouco espaço para os “emergentes”. A dependência financeira da região é a sua grande vulnerabilidade, somada ao escasso desenvolvimento do mercado interno e à crescente fuga de capitais, vinculada aos mecanismos generalizados de “desalavancagem” e de aversão ao risco, que provocam uma fuga em direção aos ativos e países “mais seguros”, um fator de crise ligado ao setor bancário. Nos anos 1990, considerou-se que a forte internacionalização do sistema financeiro era positiva para fugir das crises: a partir de 2008, verificou-se o contrário.

José Serra distinguiu a crise latino-americana da “europeu-norte-americana” pelo fato de que “na América Latina em geral, assim como na Ásia, o contágio veio dos subprodutos da crise, principalmente a retração brusca das finanças e do comércio. Não houve colapso de instituições financeiras importantes. As únicas exceções mais sérias foram as perdas em derivativos no México - US$ 4 bilhões no último trimestre de 2008 - e no Brasil - estimadas em US$ 25 bilhões. Houve, sim, uma acentuada redução na oferta de crédito às atividades produtivas, em decorrência da perda de linhas de crédito estrangeiras”.

Chile e Peru eram mais vulneráveis à crise que o Brasil, segundo Serra, devido à sua maior dependência comercial, mas adotaram rápidos pacotes anticíclicos de grande envergadura, coisa que o Brasil, segundo Serra, não fez. Mas ainda era cedo para dizer que na América Latina não haveria colapso financeiro, e que a própria crise estava encerrada mundialmente. O problema do “canal de contágio” da crise é subordinado, derivado, diante de uma crise de natureza sistêmica e mundial. Os problemas estruturais (históricos) da economia latino-americana, que a crise, como uma espécie de catarse, pôs em evidência, voltaram a se evidenciar.O principal deles é que, transcorrida mais de uma década, as experiências nacionalistas fracassaram na tentativa de estruturar um Estado nacional independente, e de iniciar um processo de industrialização capitalista autônomo, derrubando a supremacia do capital financeiro. As nacionalizações pouparam os bancos, o aspecto decisivo da gestão do capital. Não criaram uma burguesia nacional, nem estruturaram uma etapa de transição nesse sentido, sob a hegemonia do Estado, mas uma burocracia governamental (que sangrou financeiramente o Estado). Nas nacionalizações realizadas em diversos países, os empresários (externos e internos) receberam fortes compensações, até maiores do valor em Bolsa de Valores de seus capitais.

O uso dos recursos fiscais extraordinários para compensar os capitais nacionalizados acabou bloqueando a possibilidade de um desenvolvimento econômico independente. O capital estrangeiro, forçado a sair da esfera industrial nos países que realizaram nacionalizações, retornou sob a forma de capital financeiro, usando as indenizações para a compra da dívida pública. O governo brasileiro, por sua vez, pensou poder “navegar” a crise graças aos recordes na exportação de etanol (5,16 bilhões de litros exportados em 2008, de 24,5 bilhões produzidos) e de biodiesel, que tinham por destino principal os EUA. Os governos “progressistas” latino-americanos batalharam, em diversos fóruns internacionais (OMC especialmente) pela abertura dos mercados dos EUA e da Europa, fortemente protegidos por barreiras tarifárias e não tarifárias, às exportações primárias da América Latina.

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As nacionalizações das telecomunicações e da eletricidade na Venezuela foram indenizadas aos monopólios que as detinham aos preços de mercado, incluindo o capital instalado e as expectativas de ganâncias futuras. A nova associação com os monopólios internacionais do petróleo para a exploração do Vale do Orinoco não divergiu do que se negociou na Rússia ou na Argélia: um acordo estratégico para a exploração do mercado mundial nas condições criadas pela elevação dos preços e, portanto, da renda dos hidrocarbonetos. No caso da Bolívia, os monopólios ficaram com o direito a registrar como próprias uma grande parte das reservas, e ainda a possibilidade de condicionar os futuros contratos. Na Venezuela, o processo de elevação da renda da maioria empobrecida da população não ocorreu às custas do capital, nem pela modificação das relações entre o capital e o trabalho, mas pelo uso dos enormes recursos fiscais, o que criou uma inflação a taxas crescentes, e uma forte corrupção da burocracia civil e militar. Os acordos de Venezuela com o Mercosul serviram só para grandes operações financeiras, como a compra da dívida pública argentina, mas não para abrir um processo de industrialização independente.

A crise mundial também golpeou o Brasil, considerado o “emergente” do continente. Os superávits comerciais enormes começaram a ficar no passado, o país começou a registrar déficits fiscais, e a primeira queda absoluta de arrecadação desde 2003. Os subsídios do governo brasileiro ao grande capital, industrial e financeiro, somaram mais de R$ 300 bilhões de “renúncia fiscal”, ameaçando as reservas em divisas. Isso estabeleceu a perspectiva de uma crise financeira, adiada pelos investimentos externos, que atingiram US$ 80 bilhões anuais. O saldo comercial favorável se apoiou em fatores conjunturais importantes, que reforçaram a “primarização” da economia brasileira, em especial a alta das commodities agrícolas e minerais.

Cotações favoráveis foram a principal explicação para o desempenho do comércio exterior brasileiro, com exportações e superávits em crescimento. "A única razão pela qual o déficit em conta corrente brasileiro não explodiu são os altos preços das commodities. Mas esse boom pode não durar para sempre", alertou o Financial Times. “A bicicleta econômica se depara com a trincheira da guerra cambial", ou seja, com a realidade da crise mundial. A “bolha”, que é sua manifestação fenomênica, já está presente: “Os consumidores brasileiros parecem estar sobrecarregados, gastando mais que um quarto de suas rendas para o pagamento de empréstimos - nível superior ao verificado nos Estados Unidos no período anterior à crise de 2008”, advertiu o jornal.39

Um fator decisivo foi o crescimento do comércio brasileiro com a China, que pulou de US$ 760 milhões de dólares, em 1989, e US$ 2 bilhões em 2000, para US$ 56,8 bilhões, em 2010. A corrente de comércio do Brasil com o país asiático saltou de 1,5% para 15% do total. Além disso, enquanto os investimentos diretos (IED) realizados pela China no Brasil, que somaram 250 milhões de dólares entre 1990 e 2009, elevaram-se a 13,7 bilhões de dólares em 2010, 28% de todos os investimentos estrangeiros no Brasil. A economia chinesa, porém, não é imune à crise mundial, e desenhou um movimento de desaceleração. A alta das commodities, por sua vez, inclui um importante componente especulativo: os derivativos financeiros passaram a focar fundamentalmente os mercados de commodities devido ao colapso da especulação imobiliária, mas em volumes ainda maiores. As commodities são negociadas nos

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Um estudo da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, de 2011, apontou que 64%, em média, das famílias que vivem nas 27 capitais do país tinham dívidas. No mesmo período, em 2010, o endividamento era de 61%. Há capitais nas quais o endividamento é quase absoluto. Curitiba, por exemplo, tem 88% das famílias endividadas; seguida por Florianópolis, cujo índice é de 86%. Ou seja, quase nove entre 10 famílias estão endividadas nessas capitais. O valor médio da dívida aumentou quase 18%: de R$ 1.298 para R$ 1.527 mensais. Segundo um estudo da LCA Consultores, o total da dívida das pessoas físicas chegou a R$ 653 bilhões. Em dezembro de 2009, a dívida das famílias estava em R$ 485 bilhões.

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mercados futuros, onde cada produto é vendido dezenas de vezes antes de chegar ao consumidor.

Brasil: investimento estrangeiro direto (IED)

Venezuela e Bolívia, por sua vez, quando favorecidas pela conjuntura favorável do mercado mundial, impulsionaram importantes campanhas de saúde e de educação (que nunca seriam feitas pelas velhas oligarquias governates desses países, substituídas pelos regimes nacionalistas “de esquerda” de Hugo Chavez e Evo Morales), mas não avançaram em sentar as bases econômicas da autonomia nacional, para sustentar no longo prazo os planos populares e os programas sociais. Concluíram, ao contrário, dilapidando a renda extraordinária (diferencial) da produção mineira, na crença de que os preços internacionais não cairiam nunca. A nacionalização parcial, na Bolívia, das três principais jazidas petroleiras, não só preservou os “direitos adquiridos” pelos grupos multinacionais que as detinham, também fracassou em manter os investimentos previstos e aumentar a produção. A queda dos preços dos hidrocarbonetos fez entrar em crise as nacionalizações parciais, e abriu a via para uma nova etapa de concessões às multinacionais.

O ciclo de grandes arrecadações começou a vislumbrar seus limites. As limitadas reformas fiscais, com aumento dos impostos, sobre o petróleo e o gás, ofereceram uma vantagem passageira no marco de preços internacionais elevados. A crise mundial passou a ameaçar o governo de Equador, cujo petróleo financia, não só a economia nacional, mas também a dolarização monetária, até agora mantida. Para mantê-la, Correa começou um recorte de importações, e uma moratória da dívida externa (pela primeira vez um governo de América Latina declarou o caráter ilegítimo e imoral da dívida). O desconhecimento da dívida usurária seria incompatível com a dolarização.

Na Argentina, as multinacionais passaram a expatriar capitais e ao mesmo tempo demitir milhares de trabalhadores (na maioria dos casos sem indenização), exatamente as empresas que mais fizeram fortuna com os governos dos Kirchner: bancos, montadoras de automóveis, produtoras de alimentos. O governo Kirchner recortou as indenizações trabalhistas, favorecendo sua "burguesia nacional", duas semanas antes da vitória eleitoral presidencial de Cristina Kirchner (derrotada previamente nas eleições legislativas de junho de 2009).

Na nova Constituição boliviana, por sua vez, se estabeleceu a preservação dos direitos adquiridos pelos grandes proprietários, ou seja, a supremacia do grande capital da soja no Oriente, e a concentração do grande capital agrário na região andina (o altiplano, ou planalto). Desse modo pactuou-se, em nome da “soberania alimentar” (baseada na produção de subsistência) e da preservação do meio ambiente, com os interesses agrários exportadores, e com a produção contaminante.

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Foram os países mais desenvolvidos da América Latina os mais afetados pela crise mundial. A “periferia emergente” do capitalismo “global” enfrentou, em 2009, pagamentos externos incrementados por uma dívida principalmente contraída pelas multinacionais, superando em muitos casos as reservas internacionais. Na Argentina, em 2008, se registrou uma saída de capitais de US$ 20 bilhões: uma parte da dívida foi contraída para expatriar capitais. Não é verdade, portanto, que no ciclo econômico 2002-2007 as nações latino-americanas se transformaram em credoras no mercado mundial: com o aumento da dívida privada externa, se mantiveram como devedores netos; os superávits comerciais foram a garantia financeira do endividamento privado. O capital financeiro internacional apropriou-se do excedente comercial gerado pelo aumento dos preços e dos volumes exportados.

A crise mundial penetrou na América Latina devido à sua fragilidade financeira e comercial, e à sua fraca estrutura industrial. Os governos da América Latina afirmaram inicialmente que driblariam a crise com a “solidez” das reservas dos bancos centrais. Mas a queda das Bolsas regionais, a saída de capitais e a desvalorização das moedas deixaram sem base esses argumentos. Propostas como a da "Declaração de Caracas", defendendo o fortalecimento da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas) e o Banco do Sul, novas instituições econômicas reguladas, e um acordo monetário latino-americano para enfrentar a crise, foram se revelando crescentemente irrealizáveis. Projetos que não conseguiram avançar durante o período de crescimento econômico, ficaram com menos fundamento sólido diante da crise.

O projeto da ALCA (Aliança de Livre Comércio das Américas) era um instrumento de pressão dos EUA sobre Europa e sobre as economias em transição para o capitalismo, especialmente a chinesa, lhes opondo América Latina como uma plataforma de exportação dos capitais norte-americanos, mas não dava ao empresariado latino-americano a possibilidade de abrir o mercado norte-americano à sua produção agrícola, eliminando os subsídios aos produtores do Norte.

A ALCA, porém, foi morrendo em meio à crise mundial de 1997-2002. Depois disso, a integração de América Latina à economia mundial escorou-se no aumento de preços das matérias primas e no crescimento do endividamento (a penetração do capital financeiro na América Latina foi a mais alta da história). A rodada comercial de Doha, na qual se chegara a um acordo do Brasil com Europa e os EUA, entrou em crise pela oposição da Índia e da Argentina. Brasil acordara com os EUA exportar etanol sem impostos desde América Central, em troca da autorização de inversões norte-americanas na indústria dos biocombustíveis no Brasil.

Porém, os projetos unificadores ou “integradores” latino-americanos também entraram em crise. Gasoduto do Sul, Banco do Sul, entrada de Venezuela ao Mercosul, não saíram do papel. A moeda comum Brasil-Argentina seria só um recurso contábil para compensar saldos de pagamentos externos. Acentuou-se a cooperação entre Venezuela e Colômbia, justamente quando a segunda estava prestes a realizar um tratado de livre comércio com os EUA. Brasil, por sua vez, reforçou sua aliança financeira com os EUA, em oposição à decisão argentina e chilena de nacionalizar os fundos de pensão privados. Brasil reduziu o consumo e o preço do gás boliviano.

A Unasul apareceu como um projeto dos interesses do empresariado brasileiro para “integrar” uma indústria militar e civil regional sob seu controle, e para impulsionar gastos em infraestrutura para suas empresas. Mas pôs o Brasil no limiar da ruptura diplomática com Equador, devido às violações trabalhistas e ambientais da Odebrecht no país (o BNDES respaldou financeiramente a obra com empréstimo de US$ 243 milhões, que o Equador foi obrigado a quitar). Evo Morales nacionalizou o consorcio petroleiro Chaco, do qual fazia parte a empresa argentina Bridas, devido à negativa daquele a aceitar os termos das nacionalizações bolivianas. As bandeiras “integracionistas” se transformaram crescentemente em ficção, em

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face dos conflitos regionais que se acumularam, expressando a defesa dos diversos (e contraditórios) interesses empresariais de cada país.

O grau da exposição do Brasil à crise mundial se mede pela acelerada internacionalização, comercial e financeira, de sua economia na última década. A corrente de comércio (importações + exportações) que em 2000 situava-se em R$ 100 bilhões, alcançou R$ 383 bilhões em 2010, se encaminhando para meio trilhão. O “Fundo Soberano” brasileiro perdeu mais de R$ 2 bilhões (mais de US$ 1 bilhão) em 2010 devido à queda das Bolsas. As remessas de lucros ao exterior, por sua vez, se situam nos níveis de 2008, superando os US$ 34 bilhões (74% do total correspondentes a empresas estrangeiras que fizeram investimentos diretos no Brasil). O déficit em conta corrente do país superou US$ 30 bilhões. A manutenção das reservas vinculou-se ao saldo positivo da conta capital, de US$ 80 bilhões. O fator que manteve os recordes do fluxo de capitais externos ao país foram as elevadas taxas de juros, assim como os recordes nas exportações e no superávit na balança comercial, enquanto os investimentos externos (de caráter especulativo, chamados pelos economistas de “aplicação disfarçada em renda fixa”) ultrapassaram US$ 70 bilhões.

O saldo comercial favorável do Brasil se apoiou em fatores conjunturais, em especial a alta mundial das commodities agrícolas e minerais. Um fator decisivo foi o crescimento do comércio com a China, que pulou de US$ 2 bilhões em 2000 para US$ 56 bilhões em 2010. Mas a economia chinesa (com uma grande bolha especulativa, inclusive imobiliária, interna) não era imune à crise mundial, e desenhou um movimento de desaceleração; a alta das commodities, por sua vez, inclui um importante componente especulativo. Contra esse pano de fundo, a situação das contas nacionais se deteriorou: Brasil gastou, nos últimos anos, em média, mais de R$ 200 bilhões anuais (entre 40% e 50% do orçamento federal) em juros e amortização da dívida pública, que continuou crescendo, ultrapassando R$ 3 trilhões (R$ 2,4 trilhões a dívida interna; mais de R$ 600 bilhões a dívida externa), ou seja, quase um PIB. Nos quatro mandatos somados de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e Lula (1995-2010) os gastos com a dívida somaram mais de R$ 6,8 trilhões, dois PIBs. A situação das contas nacionais brasileiras piorou aceleradamente.

Brasil: dívida pública interna (R$)

Credores da dívida interna brasileira

Fonte: www.divida-auditoriacidada.org.br

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Entre janeiro e junho de 2011 o governo brasileiro gastou R$ 364 bilhões com juros, amortizações e refinanciamento da dívida: esses gastos representaram 53% do orçamento executado em 2011, previsto para pouco menos de R$ 650 bilhões, com juros muito altos.

Brasil: juros básicos anuais

À tendência estrutural para a deterioração das contas públicas somou-se à crise mundial. O “pacote anticíclico” do governo Dilma em 2011, com a queda em meio ponto percentual das taxas de juros e o aumento do IPI para veículos importados (11% do consumo de veículos em 2005, quase 36% em 2011), provocaram uma desvalorização do real (alta do dólar) que sentir-se-ia de imediato no “setor produtivo”, cuja dependência externa para o consumo de máquinas e equipamentos pulou de 20% em 2005 para quase 36% em 2011. Para compensar, o plano “Brasil Maior” anunciou uma renúncia fiscal de R$ 25 bilhões, beneficiando os empresários, comprimindo ainda mais as finanças e os gastos públicos, já submetidos a um recorte de R$ 50 bilhões no início do mandato de Dilma Roussef. Nos dois anos precedentes, o governo destinou R$ 635 bilhões para pagar a dívida pública, contra R$ 166,6 bilhões pagos no total aos servidores públicos federais (quatro vezes menos).

Brasil: dívida externa (US$ bilhões)

Fonte: www.divida-auditoriacidada.org.br

A dívida pública (interna ou externa) não tem sido, no Brasil, arma de desenvolvimento independente. A CPI da Dívida Pública, concluída em 2010 na Câmara, comprovou que as altas taxas de juros foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida pública, apesar dos vultosos pagamentos anuais de juros e amortizações: a dívida pública brasileira não tem contrapartida real em bens ou serviços, se multiplica em função de mecanismos e

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artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de “juros sobre juros”. O BC informou à CPI que para estabelecer as taxas de juros consulta “analistas independentes” em reuniões periódicas, fundamentando a definição da Selic pelo Comitê de Política Monetária (Copom) com estimativas sobre a evolução futura da inflação, evolução de preços e taxa de juros. A CPI requereu ao BC os nomes dos participantes dessas reuniões: 95% deles fazia parte do “setor financeiro”.

Todos os gastos públicos (saúde, educação, transporte, previdência e assistência social) foram sendo afetados, com destaque para os salários do setor público que, devido ao crescente “superávit primário” (para pagar a dívida pública), foram comprimidos de 56% da receita corrente líquida (em 1995) para pouco mais de 30% (em 2010). O gasto com reforma agrária foi o mais baixo da década, R$ 526 milhões em 2010. A percentual dos salários na renda nacional se manteve constante em 43% (percentual equivalente ao de 1995), enquanto os lucros de empresas, bancos e proprietários de terras foi de 31,2% para 32,6%, no mesmo período. Nos grandes centros mundiais capitalistas, a participação dos salários na renda nacional é de, no mínimo, 50% (superando folgadamente 60% na Suíça ou nos países escandinavos).

Na América Latina, a crise mundial começou a desenhar fortes confrontos nacionais, como no caso da Argentina, afetada por um forte déficit comercial devido à importação crescente de energia, que levou à “nacionalização” da companhia petroleira YPF-Repsol. A pretensão do governo argentino de seguir o modelo da Petrobrás, cujo capital se encontra em mãos de fundos privados em 52% do valor acionário, mostrou os limites capitalistas desse enfrentamento, sem falar do ressarcimento que o Estado argentino deveria reclamar pelas condições fraudulentas que rodearam a entrega da YPF à Repsol, na década de 1990. A ação sobre a YPF deixou em pé o conjunto da estrutura privada do setor petroleiro, em mãos de grandes grupos internacionais em 66% da produção total. A presidenta Kirchner deixou claro que a expropriação parcial em termos privatistas apontou a relançar a licitação petroleira internacional nas águas do Atlântico Sul e para as jazidas de gás, os objetivos mais cobiçados pelo capital internacional.

Brasil começou o ano 2012 proclamando, de modo bastante ufanista, sua nova condição de sexta economia do mundo (superando pela primeira vez o PIB da Inglaterra) e proximamente quinta, dada a descontada queda do PIB francês neste ano; a balança comercial brasileira registrou, em 2011, superávit de quase US$ 30 bilhões, o maior nos últimos quatro anos, com um aumento de 47,8% (as vendas ao exterior somaram US$ 256 bilhões, um aumento de 26,8% em relação a 2010, as exportações brasileiras atingiram a marca histórica de US$ 1 bilhão por dia útil): China, Estados Unidos e alguns países da África foram os principais destinos das exportações brasileiras; aumento real do salário mínimo (com um reajuste acumulado em dez anos de 65,96%) cujo novo valor é de R$ 622. Em relação ao anterior (R$ 545), o novo valor representa um aumento nominal de 14,13% e de 9,2% reais, já descontada a inflação de 2011. Um panorama cor de rosa para o Brasil, no meio da crise econômica mundial?

Os investimentos continuaram estagnados, e a produção, extensiva e cada vez (percentualmente) mais primária (soja, sobretudo para o mercado chinês, minério de ferro, petróleo), ficou voltada ao aumento das exportações, para nichos cuja capacidade de compra poderia cair abruptamente com o aprofundamento da crise mundial. As importações, por sua vez, alcançaram US$ 226 bilhões, ou seja, 24,5% a mais do que o registrado no ano precedente. No segundo semestre de 2011, houve queda significativa da demanda de crédito do BNDES para compra de máquinas e equipamentos, indicando queda absoluta do investimento privado, especialmente industrial. Isso repercute diretamente no salário médio (não o mínimo) que, contrariamente à propaganda governamental, tem sofrido queda real nos últimos anos, pois, para um salário médio industrial de R$ 1700 (ou seja, pouco mais de

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oitocentos dólares), ele é de R$ 1440 no setor de serviços, e de R$ 1300 no setor comercial, setores estes que avançam percentualmente no emprego total devido à "primarização" da economia brasileira.

O governo Dilma Roussef promoveu, em 2012, um corte no orçamento de R$ 60 bilhões, superando os R$ 50 bilhões de 2011, visando o cumprimento da meta cheia de superávit primário, de 3,1% do PIB. O objetivo do governo foi continuar a política de superávit primário para pagar mensalmente 30 bilhões de reais de juros e amortizações. Dilma Roussef firmou a posição de não reajustar os salários dos servidores públicos, sob o argumento de que seria necessária austeridade fiscal para enfrentar a crise econômica mundial, a mesma contra a qual o Brasil estaria, supostamente, blindado. Ora, as próprias estatísticas oficiais demonstram que os gastos do governo com o pagamento de pessoal têm caído em proporção ao PIB. Os gastos com pessoal (ativo e aposentado), na conta Receita Corrente Líquida da União, caíram de 56,2% em 1995, para 33,3% em 2010.

O projeto de lei orçamentária de 2012, encaminhado pelo governo, previu uma redução nos gastos com pessoal, proporcional ao PIB, de 4,89% em 2009 para 4,15% em 2012, uma queda de 0,75% do PIB (que se incrementou em mais de 10% nesses anos). Ao lado disso, os gastos com a dívida, incluindo pagamento de juros e amortizações, consumiram 22,37% do PIB em 2012. Em 2009, esses gastos somaram 20,17% do PIB. Ou seja, houve um decréscimo no gasto com pessoal (serviço público universal), e há um aumento no pagamento dos juros. Os aumentos nos "gastos sociais" (programas focalizados) são financiados com uma fração pouco significativa desse 2,20% do PIB pago "a mais" aos especuladores financeiros (nacionais e internacionais). Em 2011, foram gastos com o pagamento da dívida (juros, encargos e amortizações) R$ 708 bilhões. A partir de setembro de 2011 a Taxa Selic iniciou sua trajetória descendente, saindo dos então 12,5% para 9% a.a. em meados de 2012, reduzindo os encargos da dívida pública.

A frente externa, por outro lado, não é o componente principal do impasse econômico. A dívida pública brasileira representa 36,6% do PIB, menos da metade do que a da França (85,4%) ou a da Alemanha (81,7%), para não falar dos 163% da Grécia, 120% na Itália, ou 108% na Irlanda; predominantemente interna, no entanto, ela questiona o investimento público do Brasil. A dívida privada brasileira, por outro lado, é proporcionalmente superior à dos EUA na fase prévia à crise de 2007-2008, sendo refinanciada com juros que não admitem comparação: a taxa anual de juros do cartão de crédito no Brasil é, por exemplo, de 238%, contra uma média que oscila entre 30% e 40% no restante da América Latina (na Argentina, a mais alta, ela atinge 50%), e é muito mais baixa nos países-epicentro da crise mundial (EUA, Europa, Japão) com taxas de juros vizinhas de zero. A capacidade de refinanciamento foi chegando ao limite, com o horizonte econômico brasileiro tingido pela desaceleração econômica. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, anunciou uma expansão do PIB entre 4% e 5% em 2012, mas os dados do Relatório de Inflação do Banco Central reduziram o percentual para 3,5%.

Os "emergentes", como China e Brasil, entraram na crise menos pelo "contágio externo" do que pelas suas próprias contradições internas. A trajetória descendente do PIB (+7,5% em 2010; +2,7% em 2011) refletiu, em primeiro lugar, a tendência para o recuo do mercado mundial. A anunciada desaceleração da economia chinesa, principal cliente das exportações brasileiras, provocou uma queda abrupta nas bolsas de valores no país. O centro da política governamental ficou determinado pela remuneração extraordinária ao capital financeiro, que manteve os fluxos de investimentos externos. Os cinco maiores bancos brasileiros (BB, CEF, Bradesco, Itaú, Santander) apresentaram em 2011 um lucro líquido (recorde) de quase R$ 51 bilhões, quase o total do montante do corte orçamentário executado por Dilma Roussef para seu segundo ano de mandato. A “prosperidade” brasileira baseou-se numa valorização fictícia do capital (nacional e internacional) derivada de uma violenta de renda em favor do grande

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capital financeiro, afetando todas as classes assalariadas, compensada pelos programas sociais (Bolsa Família e outros, que beneficiam 58% da população brasileira, contra 8% em 1978).

Brasil: Orçamento Geral da União de 2011, por Função (R$ 1,571 Trilhão)

No meio da crise mundial, o crédito no país passou de 38,4% do PIB (em dezembro de 2008) para 49,1% do PIB (em dezembro de 2011). Isto não se refere apenas, nem principalmente, à dívida das “famílias”: refere-se, sobretudo, à dívida do grande capital financeiro, que dobrou nos em 2009-2010, perfazendo uma cifra próxima de R$ 350 bilhões (era de R$ 313 bilhões em setembro em 2009, com R$ 125 bilhões dos bancos estrangeiros, e R$ 188 bilhões dos bancos nacionais). Um relatório do banco de investimentos Morgan Stanley revelou que o total do endividamento externo brasileiro (passivos em moeda estrangeira), antes declarado “extinto”, atingiu US$ 746 bilhões em dezembro de 2011, perto de R$ 1,3 trilhão, o equivalente a quase todo o orçamento federal. O Morgan Stanley definiu a economia brasileira como a mais vulnerável dentre as dos países ditos “emergentes”, passível de uma espetacular fuga de capitais. De pouco adiantou consagrar mais de metade do orçamento federal ao pagamento de juros e amortizações de credores (nacionais e estrangeiros).

Isso, contra o pano de fundo de um aparelho produtivo tornado mais dependente da importação de bens de capital (maquinário) e de mercadorias externas: entre 2005 e 2011 a participação de produtos manufaturados nas exportações despencou de 55% para 36%; a indústria reduziu em 17% sua participação no PIB, entre 1985 e 2008 (caiu de 33% para 16%), situando-se agora em 14,6%, a menor participação do setor no PIB nacional desde 1956 (primeiro ano do governo JK, ou seja, a um nível anterior ao “desenvolvimentismo”). Entre 2004 e 2010, o percentual da indústria na pauta exportadora caiu de 19,4% para 15,8%. A fatia do Brasil no mercado mundial de manufaturados despencou de 0,95% (1984) para 0,68% (2010). Durante o primeiro ano do governo Dilma foi continuada a política econômica do governo Lula, a taxa de juros ficou inicialmente alta, a política fiscal foi marcada pelo arrocho, a taxa de câmbio mantinha sua trajetória de valorização em relação ao dólar e demais moedas externas. O embate da crise mundial obrigou a uma redução da taxa de juros, o real sofreu desvalorizações sucessivas até atingir R$ 2,00 (Lula o havia deixado em R$ 1,60).

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Na política tributária e de incentivos, o governo lançou um “pacote” dirigido ao empresariado, com reduções no Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e no Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). A renúncia fiscal do governo foi de R$ 7,2 bilhões, só em 2012. O governo cedeu à reivindicação do empresariado em favor da desoneração da folha de pagamentos para efeitos de contribuição previdenciária. As contribuições patronais sofreram uma queda de 20%. Todas essas medidas atenderam a demandas de setores como a cadeia automobilística, os diversos setores da construção civil, as empresas da chamada “linha branca”. O grande capital teve reduzidos seus impostos, pode receber empréstimos com taxas de juros subsidiadas do BNDES (o Tesouro liberou R$ 10 bilhões para reforçar as linhas de financiamento do Banco, estando previstos outros R$ 10 bilhões no segundo semestre), foi contemplado pela redução generalizada dos juros bancários e até obteve diminuição nos custos trabalhistas. Foram previstos R$ 45 bilhões de subsídios nas medidas da segunda fase do “Plano Brasil Maior”.

O endividamento privado interno no Brasil passou a beirar a inadimplência, com 15 milhões de famílias “superendividadas”, ou seja, tecnicamente inadimplentes. Os calotes de créditos concedidos (as “carteiras podres”) reduziram o valor de mercado dos principais bancos do país (BB, Itaú, Bradesco e Santander) em R$ 40 bilhões (US$ 20 bilhões) somente no mês de abril de 2012. A inadimplência no financiamento de veículos saltou de 4 % para quase 6 % em um ano. Com uma sobreprodução elevada no setor automobilístico, a liquidação de estoques das montadoras chocou contra a realidade da inadimplência privada. A produção industrial brasileira sofreu em 2012 uma nova queda, pelo quarto trimestre consecutivo.

The Economist deu o sinal de alarme para os “investidores internacionais”, qualificando o Brasil como “um touro rebaixado”, com um crescimento inferior a 2 %. A crise econômica brasileira teve e tem imediata projeção internacional, devido aos investimentos brasileiros na América do Sul (Bolívia, Equador, Colômbia, Peru, Argentina) e até na África, onde operam Petrobrás, Vale do Rio Doce, Odebrecht, Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão e Marcopolo, principalmente (os investimentos e a corrente de comércio brasileiro no continente, porém, equivalem só a 3% dos investimentos chineses e a 10% daqueles da Índia). Nada que se compare, porém, aos US$ 70 bilhões investidos por empresários brasileiros em paraísos fiscais (os investimentos verde-amarelos na Unasul, em comparação, mal superam US$ 12 bilhões).

O superávit comercial de US$ 24 bilhões na área de produtos industriais, em 2004 (inicio do governo do PT) se transformou, em 2010, em um déficit de US$ 36 bilhões. Cerca de 60% das empresas brasileiras estão, por outro lado, nas mãos de estrangeiros. As exportações corresponderam a 12% do PIB em 2008 (a média internacional é de 30%). O PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) consumiu ingentes recursos públicos para incrementar em menos de 0,5% o PIB (de 2,05% para 2,53%) os investimentos em infraestrutura, sem falar nas “renúncias fiscais”, equivalentes a R$ 144 bilhões. O governo FHC, em seus oito anos, pagou R$ 2,079 trilhões em juros e amortizações da dívida. Nos oito anos de governo Lula, esses gastos mais que dobraram, atingindo R$ 4,763 trilhões. De 1994 a 2010 o país pagou, portanto, R$ 6.842 trilhões, e mesmo assim a dívida interna atingiu o patamar de R$ 2,5 trilhões, em 2011. Vale lembrar que no inicio do governo FHC o montante dessa dívida era de R$ 64 bilhões...

Em finais de junho de 2012, a agência de classificação de risco Moody´s rebaixou a nota de oito grandes bancos brasileiros, pelo nível de exposição dessas instituições à dívida pública: os bancos afetados foram Banco do Brasil, Safra, Santander Brasil, HSBC Brasil, Bradesco, Itaú, Itaú-BBA e Votorantim. A Moody´s argumentou que a revisão levou em conta "a extensão da dependência de seus negócios da conjuntura doméstica e financeira e a sua exposição direta ou indireta à dívida soberana doméstica, comparada com suas bases de capital". O diagnóstico da Moody´s soou como o início de uma conta regressiva.

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9. EUA E CHINA NA CRISE MUNDIAL “Hoje, China e EUA são faces da mesma moeda, reflexos de um sistema econômico em vigor há anos, conhecido

como ‘Chinoamérica’: um cenário que traz hoje o Partido Comunista chinês no papel de principal investidor capitalista em nível global"

Um comentarista econômico

A vitória eleitoral de Barack Obama expressou a necessidade, tanto dos governantes como dos governados dos EUA, de superar uma situação insuportável herdada dos anos do governo de Bush: deterioração das condições de vida, crescimento do desemprego, dívida pública, corporativa e dos consumidores, déficits gigantescos, recessão e catástrofe financeira junto com o impasse na "guerra contra o terrorismo" no Oriente Médio e Ásia Central e do Sul. O primeiro "Programa Barack Obama" de enfrentamento da crise, divulgado em fevereiro de 2009, não encarou o problema de que a grande maioria dos bancos e instituições financeiras norte-americanas estavam insolventes, não colocando medidas para a retomada do crédito aos consumidores e às empresas, em vez disso injetando capital adicional e comprando ativos "podres" (com pelo menos US$ 1 trilhão para essa tarefa). No âmbito do estímulo à demanda agregada, foi anunciado um programa de US$ 838 bilhões de gastos com infraestrutura, programas de transferência de renda, auxílios a governos estaduais e locais, cortes de impostos etc. O governo norte-americano deixou em aberto muitos pontos, revelando que a disputa pelo pagamento da fatura da crise continuava aberta entre as diversas frações do capital.

Quando Ben Bernanke foi indicado para um novo mandato de quatro anos como presidente do Federal Reserve pela administração Obama, foi aclamado por ter "evitado uma segunda Grande Depressão". Bernanke injetou US$ 1,7 trilhão na primeira fase da crise e mais US$ 900 bilhões em duas operações de recompra de títulos do Tesouro . Mas, em 2009, 92 bancos norte-americanos faliram, comparados à 25 em 2008 e a três em 2007. A maioria das falências foi de bancos regionais, mas incluiu o Colonial Bank, 6ª maior falência bancária da história americana: os bancos regionais passaram por uma explosão de atrasos nos pagamentos, sobretudo nos estados mais atingidos pela recessão, como Califórnia e Geórgia. O não pagamento de cartões de crédito representou um obstáculo suplementar para os bancos.

O preço dos imóveis nos EUA, por outro lado, continuou em queda, apesar de reduções de tributos e outras medidas para aliviar o setor, ameaçando mais problemas para alguns dos maiores bancos. O preço dos imóveis caiu 32% desde o pico de 2006. No Japão, o preço das propriedades caiu mais que 50% após o estouro de sua bolha financeira em 1990, continuando em queda por treze anos, para depois se estabilizarem, e tornarem a cair a partir de 2007. Para Nouriel Roubini, mais de mil instituições financeiras poderiam falir: "O sistema financeiro está seriamente danificado, não só os bancos".

A crise já custara, em 2009, muito mais de que a da década de 1930 – 25 vezes mais (23.108 dólares por pessoa, 821 dólares por pessoa na “Grande Depressão”, medidos na cotação atual do dólar). Para o New York Times (12 de setembro de 2009), "um ano após o colapso do Lehman Brothers, a surpresa não é o quanto as coisas mudaram na indústria financeira, mas o quão pouco mudaram". Os maiores bancos americanos e europeus demitiram mais de 300 mil funcionários entre 2007 e finais de 2009. Ao mesmo tempo, a maioria dos executivos manteve seus empregos, com seus salários voltando aos níveis anteriores à crise. E as políticas estatais tiveram pouco efeito sobre os níveis de dívidas ruins ou “tóxicas”. "Os problemas são maiores do que em 2007, antes da crise", disse Joseph Stiglitz, em 2009: "Nos EUA e em muitos outros países, os bancos ‘grandes demais para falir’ se tornaram maiores ainda".

Nos EUA pós resgates estatais do setor financeiro, três bancos – JPMorgan Chase, Wells Fargo e Bank of America – passaram a concentrar 30% de todos os depósitos. Segundo o mesmo autor citado acima: "Repetindo o desastre da Savings&Loans de 1980, os bancos estão usando má contabilidade (eles são permitidos de contabilizar papéis tóxicos sem rebaixar o valor,

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esperando que eles talvez voltem a ter valor). Pior ainda, eles estão sendo permitidos a pegar empréstimos baratos do Banco Central dos EUA, sem caução e simultaneamente tomando posições arriscadas. Mas isto não vai levantar a economia rapidamente. E se a aposta não vingar, os custos aos contribuintes será ainda maior".

Antes de explodir na Europa pelo mesmo motivo, os EUA experimentaram uma crise política desatada pela questão do teto de sua dívida pública (que se resolveu com a elevação do teto dessa dívida pelo Congresso, depois de um precário acordo entre os dois grandes partidos, republicanos e democratas). O gigantesco déficit fiscal dos EUA foi gerado durante o governo Bush e usado para financiar os cortes nos impostos, subsidiar empresas e pagar as guerras do Iraque e Afeganistão. Com a crise econômica deflagrada em 2007, a dívida deu um salto brutal com os pacotes de ajuda ao setor financeiro. O saldo fiscal negativo mensal em fevereiro de 2009 foi de US$ 193 bilhões. Os 14,3 trilhões do déficit total representavam o equivalente a um quarto do PIB mundial (US$ 62 trilhões).

Taxa de crescimento anual do PIB e da dívida pública dos EUA (1957-2009) [em dólares de 2005]

EUA: dívida como percentaul do PIB (1956-2009)

O quadro que segue evidencia que o resgate do setor financeiro foi o principal responsável pela explosão da dívida pública norte-americana:

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EUA: orçamento de defesa, resgate bancário (bank bailout) e interesses da dívida pública (US$ bilhões)

Defence including Supplementary allocations; $534 billion (FY 2010), $130 billion supplemental (FY 2010), $75.5 billion emergency funding (FY2009)

739.5

Bank bailout (TARP plus Obama) 1450.0

Net Interest 164.0

TOTAL 2353.5

Total Individual (Federal) Income Tax Revenues (FY 2010)

1061.0

Total Federal Government Revenue (FY 2010) 2381.0

Fonte: USA Bureau of the Budget and Official Statements

O acordo, aprovado pela Câmara dos Representantes, de maioria republicana, garantiu a elevação do endividamento em US$ 2,1 trilhões. Em contrapartida, impôs uma redução de US$ 1 trilhão nas despesas do governo para os próximos 10 anos. Uma comissão composta por 12 parlamentares ficou responsável por definir um corte adicional de 1,5 trilhão. O calote dos EUA não ocorreu, mas a crise ficou longe do fim. Enquanto parlamentares se enfrentavam para resolver o déficit, os índices da economia norte-americana reafirmavam a desacelaração e a tendência para a estagnação. O crescimento do primeiro semestre de 2011 foi o mais lento desde a primeira metade de 2009, quando “oficialmente” os EUA saíram da recessão.

O desemprego superior a 9% não dava sinais de recuperação. Para sair da “Grande Recessão”, o FED (BC americano) baixou para zero a taxa básica de juro em dezembro de 2008, e injetou US$ 3 trilhões (quase um PIB e meio do Brasil) para comprar títulos de bancos e empresas em dificuldade. O governo Obama também gastou US$ 800 bilhões em programas de incentivo à produção e ao emprego. Esses gastos resultaram na explosão do endividamento e no rebaixamento da dívida dos EUA. Na base do crescimento do endividamento público dos EUA e da Europa houve a maciça injeção de fundos públicos para salvar o setor financeiro, mensurável pelas cifras da tabela que segue (quando não se indica o país, trata-se de bancos dos EUA):

Principais bancos beneficiários de empréstimos públicos (2007-2010)

Citigroup: $2.5 trilhões ($2,500,000,000,000)

Morgan Stanley: $2.04 trilhões ($2,040,000,000,000)

Merrill Lynch: $1.949 trilhões ($1,949,000,000,000)

Bank of America: $1.344 trilhões ($1,344,000,000,000)

Barclays PLC (United Kingdom): $868 bilhões ($868,000,000,000)

Bear Sterns: $853 bilhões ($853,000,000,000)

Goldman Sachs: $814 bilhões ($814,000,000,000)

Royal Bank of Scotland (UK): $541 bilhões ($541,000,000,000)

JP Morgan Chase: $391 bilhões ($391,000,000,000)

Deutsche Bank (Germany): $354 bilhões ($354,000,000,000)

UBS (Switzerland): $287 bilhões ($287,000,000,000)

Credit Suisse (Switzerland): $262 bilhões ($262,000,000,000)

Lehman Brothers: $183 bilhões ($183,000,000,000)

Bank of Scotland (United Kingdom): $181 bilhões ($181,000,000,000)

BNP Paribas (France): $175 bilhões ($175,000,000,000)

Wells Fargo & Co. $159 bilhões ($159,000,000,000)

Dexia SA (Belgium) ) $159 bilhões ($159,000,000,000)

Wachovia Corporation $142 bilhões ($142,000,000,000)

Dresdner Bank AG (Germany) $135 bilhões ($135,000,000,000)

Societe Generale SA (France) $124 bilhões ($124,000,000,000)

Outros : $2,6 trilhões ($ 2,639,000,000,000)

Total $16.115 trilhões ($ 16.115.000.000.000)

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No total mundial, os estados entregaram cerca de 25 trilhões de dólares às grandes empresas e bancos ameaçados. A dívida federal do governo dos EUA passou de 9,2 trilhões de dólares em 2007 a 14,5 trilhões em 2011, o que correspondia a 100% do PIB. A dívida alcançava 63% do PIB da Espanha, 76,5% na Inglaterra, 81,7% na França, 93% em Portugal, 114% da Irlanda, 120% da Itália e 152% do Grécia. Os EUA, de fato, se encontravam em situação de cessação de pagamentos (default), com a dívida pública federal superando 14,3 trilhões de dólares – quase 100% do PIB; o déficit fiscal do exercício 2011 superou 10% do PIB, aproximadamente dois trilhões de dólares. A dívida pulou de US$ 3,7 trilhões em 1997, para US$ 3,9 trilhões em 2002, crescendo 5,6%. No final de 2007, a dívida federal era equivalente a 64,4% do PIB. Depois, em apenas três anos, foi de US$ 5,8 trilhões em 2008, para US$ 14,3 trilhões, crescendo 150%. Grande parte do endividamento, no período de 2003 a 2011, se deveu aos gastos (subsídios ao grande capital) com os efeitos das crises de 2000-2002 e de 2007-2008, somados aos gastos com a invasão do Iraque e do Afeganistão.

Cotação do Ouro (Onça Troy)

Nesse período a expansão da dívida estadunidense chegou a 270%, enquanto a expansão do PIB e das receitas foi pífia, mesmo com a aceleração dos gastos militares. A dívida pública norte-americana vale, em ouro, 12% de seu valor de 2005. Quando Nixon abandonou o padrão-ouro em 1971 (impondo uma moratória na dívida externa dos EUA) cada onça de ouro valia 35 dólares: a onça passou a custar quase 1700 dólares (e continuou aumentando), ou seja, entre 1971 a 2011 o dólar se desvalorizou 4.857% frente ao ouro. O restante do mundo, com suas reservas em dólares e em títulos públicos norte-americanos, financia a dívida pública dos EUA.

O cálculo da dívida pública norte-americana não inclui os estados da federação e os municípios - muitos dos quais deixaram de pagar suas contas em dólares para fazê-lo em “moeda” local. Computadas as dívidas estaduais e municipais, a dívida pública total se eleva a 22 trilhões de dólares (150% do PIB). Os EUA deixaram de pagar sua dívida pública faz tempo, apenas a reciclam. Pela primeira vez na história, os títulos públicos norte-americanos foram rebaixados pelas agências de classificação de risco, com graves consequências para os países credores, que detém metade desses títulos. O rebaixamento dos títulos públicos (o anúncio do rebaixamento - de AAA, qualificação que ostentavam desde 1917, para AA+ - tirou os EUA do grupo de 14 países cujas dívidas recebem a nota máxima das três principais agências de risco, Fitch, Moody's e Standard & Poor’s),40 foi um fato de valor simbólico e político: a Standard &

40

A partir dos anos 1970, estatutos e regulamentos determinaram que emissores de dívida obtenham uma nota que prove a sua solvabilidade. Um oligopólio de agências (criadas nos Estados Unidos há quase cem anos, pela necessidade de alguém atestar a qualidade dos títulos nos quais investem bancos centrais, seguradoras, fundos de pensão e instituições), passou a emiti-las, controlando de fato o acesso ao sistema financeiro. Uma simples ameaça de rebaixamento da nota por uma delas pode fazer com que linhas de crédito simplesmente desapareçam. Segundo Jeffrey Manns, do New York Times, “As agências de classificação de crédito estão se aproveitando dos problemas

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Poor’s concedeu ao Lehman Brothers, cujo colapso deu início ao “pânico global”, nota máxima até o mês da sua quebra.

Principais credores do Tesouro dos EUA

46,5% dos títulos emitidos pelo Tesouro dos EUA estão em mãos estrangeiras – bancos centrais e investidores privados. A inflação pode desvalorizar essa dívida em relação com os preços de outros ativos e operar como uma transferência de valor entre frações do capital. Os principais credores internacionais (China, Japão, Inglaterra, Brasil) poderiam desfazer-se dos bônus e títulos dos EUA em seu poder, ruindo o mercado de capitais norte-americano e o comércio internacional, mas o prejuízo para os mesmos credores seria enorme, pois seria o acelerador explosivo da crise mundial, em condições de sobre endividamento dos principais Estados. O total de títulos dos EUA comprados pelos outros países já chega a US$ 4,5 trilhões e representa uma parte considerável do total dos US$ 14,3 trilhões da sua dívida.

Os países, que mantém suas reservas em dólar compram títulos do Tesouro dos EUA pela sua “segurança”. Do total das reservas cambiais brasileiras, por exemplo, dois terços se compõem das chamadas “reservas estéreis”, que derivam não de um superávit comercial, mas de atividades que levam ao endividamento público: parte das reservas vem de um endividamento com taxa básica de 12,5% ao ano, recebendo 1,9% ao comprar os títulos do Tesouro dos EUA. O impacto dessa diferença para os cofres públicos do Brasil em 2010 foi de R$ 50 bilhões. O país ainda arca com os custos de senhoriagem (lucro derivado do privilégio de emitir moeda, igual à diferença entre o custo dessa emissão e o preço dessa moeda no mercado).

A causa principal do crescimento da dívida pública dos EUA é a acumulação de juros que se pagam com emissão de dívida nova. A taxa de crescimento da dívida supera a do PIB - por isso passou de 62% a quase 100% do PIB no curso de quatro anos. A potência capitalista mais importante está em default, o valor de sua dívida no mercado não tem nada a ver com a realidade. A cotação da dívida pública dissimula a desvalorização do dólar, a moeda- referência mundial. A dívida pública norte-americana vale, em ouro, 12% de seu valor de 2005. Quando Nixon abandonou o padrão-ouro em 1971 (impondo uma moratória na dívida internacional dos EUA) cada onça de ouro valia 35 dólares: atualmente a onça custa aproximadamente 1700 dólares, ou seja, entre 1971 a 2011 o dólar se desvalorizou 4.857% frente ao ouro (o resto do

financeiros do país para aumentar o seu poder político, e têm o governo federal (dos EUA) à sua mercê”. Para Paul Krugman, “se há uma expressão que descreve a decisão da agência de classificação de crédito [S&P] de rebaixar a nota dos EUA, esta é a cara de pau” (sic). Para ambos, o problema não seria a crise do capital, mas a ditadura das agências de classificação (que foram criadas, exatamente, para salvar o capital de seus “excessos especulativos”). Afinal, o presidente da S&P é ninguém menos que o diretor-executivo de operações do Citibank, Douglas Peterson. Um rebaixamento por duas das três maiores agências de classificação pode ter como consequência exigir que alguns emissores de títulos ofereçam garantias adicionais.

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mundo, com suas reservas em dólares e em títulos públicos norte-americanos, portanto, financiou a dívida pública dos EUA).

Uma disposição legal fixa um teto no endividamento em que podem incorrer os EUA, que o Congresso norte-americano aumenta cada vez que se chega ao limite. É o que ocorreu com o teto de US$ 14,3 trilhões de 2011. A Constituição lhe exige honrar a dívida pública, ainda que não lhe proíba desvalorizá-la, recorrendo à desvalorização da moeda. Ao chegar ao teto sem obter uma autorização do Congresso para elevá-lo, o governo deixa de pagar gastos sociais e até salários, suspende ou demite pessoal, mas continua com a especulação financeira. 50% da dívida pública norte-americana está em mãos estrangeiras – bancos centrais e proprietários privados. Uma inflação interna pode diminuir (desvalorizar) essa dívida em relação com os preços de outros ativos no interior do país e operar como uma transferência de valor entre os proprietários do capital. Os credores internacionais (China, Japão, Alemanha, Brasil) podem desfazer-se dos bônus e títulos públicos em seu poder, ruindo o mercado de capitais norte-americano e o comércio internacional, mas o prejuízo para os mesmos credores seria enorme.

A crise forjou um fim quando um acordo complexo entre ambas as partes conseguiu elevar o limite de gastos em 31 de julho de 2011. Após a sua aprovação no Congresso e Senado, foi ratificado pelo Presidente Barack Obama, ficando o acordo conhecido como Budget Control Act of 2011 em 2 de agosto, data limite para o acordo. A maior parte das bolsas de valores mundiais, no entanto, fecharam em forte queda. O governo Obama conseguiu que o Congresso aumentasse o teto do endividamento público dos EUA, prometendo reduzir o déficit em seis anos. Os republicanos queriam que o aumento do teto cobrisse só um ano, e que a redução do déficit fosse maior do que a prometida por Obama, com acento no corte dos gastos sociais.

Mais de um terço (US$350 bilhões) do corte de US$ 917 bilhões em gastos correntes cabe ao Pentágono. Isso reduz a escalada de gastos militares verificada desde a primeira “guerra do Golfo” (1990). Uma comissão composta por 12 parlamentares ficou responsável por definir um corte adicional de US$ 1,5 trilhão. “Conseguimos 98% do que queríamos” – disse o republicano John Boehner, presidente da Câmara, sobre o acordo. Obama começou pedindo aumento “limpo” (sem condições) no teto de US$ 14,3 trilhões para endividamento; depois, passou a pedir que houvesse cortes nos impostos e nos gastos. Não conseguiu sequer que o Tea Party (ala direita republicana) aceitasse abolir a isenção de impostos sobre jatos privados. No estágio atual do desenvolvimento do capitalismo, o valor de uma moeda é determinado pela cotação da dívida pública do país emitente. A dívida norte-americana é o antepenúltimo refúgio do capital frente à crise; o refúgio último, o ouro, seria o detonante de uma bancarrota mundial, porque privaria aos Estados dos meios para se financiarem. A situação social nos EUA, por outro lado, se deteriorou aceleradamente, os gastos sociais per capita sofreram uma queda abrupta durante a crise:

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O governo chinês se queixou do rebaixamento dos títulos do Tesouro dos EUA (T-Bonds). China é refém econômica dos saldos comerciais favoráveis em seu crescimento exportador. Os principais destinos das exportações chinesas são Europa, Estados Unidos e Japão. Suas exportações tiveram alta de 20,4% em 2011 e atingiram valor recorde em julho desse ano, de US$ 175,13 bilhões. A diferença em relação às importações foi de US$ 31,5 bilhões, um novo recorde (o saldo comercial favorável havia sido de US$ 22,27 bilhões em junho e de US$ 28,7 bilhões em julho de 2010), cifra que inchou ainda mais as gigantescas reservas internacionais da China, de US$ 3,5 trilhões, as maiores do mundo. A depreciação do dólar reduz o valor dos investimentos financeiros realizados pela China. Mas, como a China é a maior detentora de títulos norte-americanos, afinal prevalece um arranjo: a China entra com capitais que obtém com receitas de exportações e, em troca, os EUA entram com seu próprio mercado e com a oferta de títulos públicos.

A saída da crise mundial pelo gasto público imporia a estatização da economia, a usurpação da propriedade capitalista pelo Estado. Contra esta tendência, a crise passou a alentar o florescimento do explosivo mercado de seguros contra o calote. O retorno dos lucros bancários mundiais veio pelo lado dos bancos de investimento (através da chamada inovação financeira) em vez de vir do lado dos bancos comerciais (que fazem empréstimos para a produção e agem mais amplamente). A melhora no mercado de ações e títulos, recuperação dos preços das commodities, e a retomada de fusões corporativas abriram novas oportunidades para a especulação. Mas a esperança maior seria que a China viesse ao resgate da economia mundial, puxando o mundo para fora da recessão.

Mas, já em 2006, no pico de seu crescimento econômico, o premiê chinês Wen Jiabao afirmou que sua economia era "desequilibrada, instável, descoordenada e insustentável". E, depois, passou a sofrer os efeitos da crise mundial. A recessão mundial impactou com força também a economia chinesa, sendo este o aspecto menos estudado pelos observadores e comentaristas econômicos. Janeiro de 2009 mostrou a pior queda nas importações (-41,3% no ano) e nos investimentos estrangeiros diretos (-32,7%) no país, assim como uma queda nas exportações de 17,5%. Apesar de um audacioso plano de estímulo de 500 bilhões de dólares, o crescimento PIB chinês caiu para 6,1% no primeiro trimestre de 2009, a metade dos 13% de 2007 e menor que as cifras do quarto trimestre de 2008. As taxas de crescimento de 12% e 13% acabaram.

Analistas começaram a constatar o perigo do “descontentamento crescente que pode desencadear protestos e distúrbios”, com razões na própria estrutura sócio-econômica: “No nível mais básico, a economia chinesa se estruturou, nas últimas três décadas, para ser alimentada pelas exportações e pelos investimentos estrangeiros. Juntos, continuam sendo a coluna vertebral da economia chinesa. São fortes na época de atividade econômica global, porém um peso morto em época de retração global. Internamente, só cerca de ¼ dos 1,3 bilhões de chineses são realmente economicamente ativos [entenda-se consumidores, NDA], membros da “classe média” ou estratos superiores. Este é um número que deixa cerca de 1 bilhão de pessoas no mais profundo sofrimento”, disse a revista de análises estratégicas Stratfor, em abril de 2009.

A queda na demanda mundial de exportações chinesas devida à contração do comércio mundial, a fuga do capital estrangeiro, devida à progressiva bancarrota mundial, e à ausência de um mercado interno capitalista desenvolvido, deixaram China vulnerável às pressões da crise mundial. Uma virada para desenvolver um mercado interno não seria possível sem extrapolar as contradições entre o campo e a cidade, levando a um descontentamento massivo e levantamentos sociais. O processo de restauração capitalista produziu grandes lucros para o capital estrangeiro e para uma “classe média” local, criando a ideia de uma China que se elevava à hegemonia mundial no século XXI. O processo de restauração capitalista na China teve um papel fundamental para os EUA ao financiar seus gigantescos déficits e sustentar a melhora da economia mundial no período 2002-2007.

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China - Produto Interno Bruto (PIB) - Taxa de Crescimento Real (%)

.

Ano Produto Interno Bruto (PIB) - Taxa de Crescimento Real (%)

2000 7

2001 8

2002 8

2003 8

2004 9.1

2005 9.1

2006 10.2

2007 10.7

2008 11.9

2009 9

O efeito da crise obrigou o regime chinês a lançar seu próprio pacote de estímulos em novembro de 2008, no valor de US$ 600 bilhões, com uma injeção recorde de crédito – 1,2 trilhão de dólares em oito meses – por bancos estatais, sob regime monetário "frouxo". Esses novos empréstimos, mais do que o pacote, mantiveram o crescimento chinês. A quantidade de novos empréstimos foi um recorde mundial, equivalente a quase 25% do PIB, com os bancos "atirando dinheiro pelas portas". Isso parcialmente reverteu o colapso de produção sofrido devido à queda nas exportações (que caíram 22%, também em oito meses). No agudo conflito entre a China e os EUA sobre pneus, o regime chinês protestou com vigor contra a decisão do governo dos EUA de impor uma nova medida protecionista, com tarifas de até 35% sobre os pneus chineses (os pneus só são responsáveis por 1,5 bilhões dos 340 bilhões de dólares, o valor total das exportações chinesas aos EUA). A maior parte das companhias americanas se opuseram à medida, pois muitas eram donas das fábricas de pneus chinesas, atingidas pelas novas tarifas. O problema da China não era só aumentar a produção, diante de um mercado mundial em vias de estreitamento pela via da concorrência acirrada, mas a demanda interna, dados os baixos salários chineses, problemas agravados pelas rivalidades regionais, desperdício, duplicação de projetos e corrupção. Com um desequilíbrio entre os investimentos (45% do PIB) e consumo (apenas 35% do PIB), os investimentos gerados pelo regime de liberação de crédito foram responsáveis por quase 90% do crescimento do PIB em 2009, sem precedentes. Até onde vai o desperdício destes investimentos, incluindo infraestrutura e novos projetos industriais, é geralmente subestimado pelos comentaristas econômicos.41

China tem mais de 7.000 siderúrgicas, o dobro do que tinha em 2002, com capacidade de produzir 660 milhões de toneladas de aço anualmente, mas de acordo com o Ministério da 41

Um secretário regional do PCCh disse: "Construir uma ponte é PIB, demoli-la é mais PIB, e a reconstruir de novo é também mais PIB. Uma ponte contribuiu três vezes para o PIB, gastando imensos recursos sociais, mas formando riqueza social real apenas uma vez".

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Indústria e Tecnologia, a demanda total para consumo doméstico e exportação é de apenas 462 milhões de toneladas; a capacidade utilizada caiu de 83% para 74%. Quase metade dos novos empréstimos dos bancos chineses foi para canais especulativos, o mercado de ações e o mercado imobiliário. O aumento dos preços das propriedades se deveu amplamente à alta liquidez. A emergência da China é, portanto, frágil. O consumo interno chinês é de cerca de US$ 1,5 trilhão, comparado a US$ 22 trilhões somados dos EUA e Europa: para compensar 1% de queda no consumo dos países ocidentais, deveria haver um aumento de 15% do consumo chinês.

As políticas chinesas tiveram um escasso efeito sobre a criação de empregos e crescimento da demanda mundial. É um pequeno segmento, de cerca de 10% da população – afluentes moradores das cidades – que conta pela maior parte do consumo na China. Em outubro de 2008, o Banco Popular da China previu que os preços das casas baixariam entre 10% e 30%; o banco revelou suas preocupações frente uma possível crise de liquidez que afetaria severamente não somente as companhias imobiliárias, mas também os bancos comerciais que dedicaram entre uns 20% a 40% de seus empréstimos totais ao setor imobiliário. Os cortes nas taxas de juros bancárias foram um indicador de um esfriamento do crescimento chinês sob as novas condições mundiais.

Finalmente, ficou claro que a crise não era um episódio cíclico nem um distúrbio conjuntural, e que não afetava somente o setor financeiro, mas toda a economia capitalista, dominada pela superexpansão do capital financeiro, que durante décadas invadiu, interligou e controlou todos os aspectos da vida econômica do mundo. Manifestou-se primeiro na esfera financeira e levou o sistema bancário internacional à crise, em 2007/2008, conduzindo para uma “Grande Recessão” e precipitando ao abismo as grandes companhias como a General Motors e outras montadoras dos Estados Unidos, Europa e Ásia. Somente as intervenções estatais sem precedentes, resgates e pacotes evitaram que a “Grande Recessão” se convertesse em uma grande depressão. O prognóstico do FMI, em abril de 2009, previa uma retração de 1,3% na economia mundial, derrubando a previsão anterior de 0,5%, realizada em janeiro de 2009. Um ano antes, em 2008, o FMI prognosticava um crescimento de 3,8% do PIB para 2009. Haveria, nos cálculos otimistas, mais 60 milhões de desempregados.

Rendimento (%) dos títulos da dívida pública (a dez anos) dos EUA, Reino Unido, Alemanha e Japão (1990 – 2011)

A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) enfatizou em 2009 que “a economia mundial está na mais profunda e sincronizada recessão de nossas vidas, causada por uma crise financeira mundial e aprofundada por um colapso do comércio mundial”. Nos EUA, a taxa de queda da produção industrial se comparava com a da Grande Depressão da década de 1930. No Japão, já caíra tanto quanto nos EUA nos anos 1930. Grã Bretanha e os países da zona do euro entraram em recessão, com retração de 4,2% do PIB em 2009, e uma recessão pior em 2010, enquanto o desemprego alcançou 10,1% e 11,5%,

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respectivamente. A economia alemã se retraiu 5,3%, a maior queda da economia alemã, excluindo a devastação posterior à Segunda Guerra e as profundezas da Grande Depressão, quando a economia se retraiu aproximadamente 7,5%. A recessão mundial não expressou mais uma crise de superprodução, mas também o colapso as bases do processo de acumulação capitalista do último período histórico.

A capacidade da China para neutralizar uma recessão nos EUA e na Europa ficou mais limitada do que na crise de 2008, quando o governo chinês lançou um pacote de estímulo que garantiu taxas de crescimento próximas de dois dígitos e beneficiou países exportadores de commodities, como o Brasil. A injeção na economia, por parte das autoridades do Estado chinês, de um pacote de estímulo de quatro bilhões de yuan não se sobrepôs à crise de capacidade ociosa (a capacidade ociosa na siderurgia já era, em 2005, de 120 milhões de toneladas, mais que a produção anual do Japão, o segundo produtor mundial). Levou à formação de novas bolhas na Bolsa e de especulação imobiliária. Os empréstimos bancários na China passaram de 121% para 150% do PIB em apenas três anos. Em 2009, o sistema financeiro chinês (estatal) concedeu US$ 1,4 trilhão em empréstimos, o dobro do ano anterior, ameaçando elevar o endividamento do país a níveis insustentáveis. A inflação na casa dos 6% diminui a margem de manobra para reduzir juros e adotar políticas de expansão monetária. A injeção de recursos em projetos de infraestrutura nos últimos dois anos foi financiada por um espetacular aumento do crédito, criando um leito de “ativos tóxicos” no sistema financeiro chinês.42 As exigências de uma revalorização da moeda da China (yuan) tem o objetivo estratégico de abrir os mercados financeiros chineses, da expansão de um mercado interno dominado pelo capital estrangeiro e, finalmente, da transformação deste vasto país em uma semicolônia do capital norte-americano, europeu e japonês. Tal objetivo acarretaria um processo político e social violento e prolongado.

No segundo trimestre de 2010, o PIB chinês ultrapassou o japonês, tornando-se o segundo do mundo. Mas a agricultura continuou a ser a principal fonte de renda para mais de 30% da PEA da China (contra menos de 2% nos EUA, e 6% na Coréia do Sul): os salários operários urbanos (em média de US$ 1.500 anuais, pouco mais US$ 100 mensais) continuaram atraentes para os trabalhadores rurais, com renda ainda menor. Para chegar a uma PEA agrícola equivalente a 10% da PEA total, ponto em que se equilibrariam os salários de ambos os setores, China precisaria criar 150 milhões de empregos urbanos. Com uma taxa de crescimento de 8% anual, isso levaria ainda 30 anos (incluso com políticas de restrição da natalidade), uma performance incerta diante do retrocesso dos mercados externos e do acirramento da concorrência mundial. Os salários médios na China atingiram a casa dos US$ 400 mensais, perdendo o “privilégio” dos salários miseráveis para Tailândia (US$ 250), Indonésia (US$ 200), Filipinas (pouco mais de US$ 100) e, sobretudo, Vietnã (menos de US$ US$ 100). Mas isso não se tornou suficiente para “aquecer” um mercado interno que já mostrou os sintomas da saturação. Estimular o consumo interno na China é uma das políticas chaves do governo chinês, para reequilibrar a economia. Mas, segundo as estatísticas oficiais, a relação consumo/PIB caiu persistentemente, de 62% em 2000, para 47% em 2010, o que aponta para graves problemas. Os fatores da grande arrancada chinesa no mercado mundial começaram a se esgotar. A sobreprodução (interna e externa) começou a cobrar seu preço: em meados de 2012, o sistema financeiro chinês começou a oferecer os “produtos” que fizeram explodir, cinco anos antes, a crise na Europa e nos EUA: os já mencionados SPV (special purpose vehicles) e SIV, structured investment vehicles (chamados, no jargão financeiro, de “Bônus-Ponzi”) como saída para os “capitais ociosos”. O “supercrescimento” chinês, considerado panaceia universal, sem assemelha mais a uma fuite en avant.

42

Parte das obras feitas com a inundação de empréstimos registrada a partir de 2008 não tem viabilidade econômica, e as entidades responsáveis por elas não terão condições de pagar os empréstimos contraídos, o que eleva a quantidade de créditos irrecuperáveis no balanço dos bancos.

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10. A CRISE NA (E DA) EUROPA

“O endividamento do Estado é de interesse direto da fração da burguesia que governa e legisla nos Parlamentos. O déficit do Estado era, precisamente, o objetivo ao qual visavam às especulações e principal base do enriquecimento

daquela fração. Ao final de cada ano, um novo déficit . Ao cabo de quatro ou cinco anos, novo empréstimo. Ora, cada novo empréstimo dava à aristocracia nova ocasião para cobrar resgate para ‘salvar’ o Estado, o qual, mantido

artificialmente à beira da bancarrota, era forçado a negociar com os banqueiros sob condições as mais desfavoráveis. Cada novo empréstimo era nova ocasião para roubar o público que aplica seus capitais em papéis do

Estado”. (Karl Marx, Les Luttes de Classes en France, 1848-1850)

Depois de apressadamente considerada “superada”, a crise do crédito privado (bancos) se transformou em crise do crédito público (Estado). A crise, que começou no mercado imobiliário e derrubou os bancos, sepultou os Tesouros em montanhas de dívidas, sem maiores condições de colocar em marcha programas anticíclicos. O desdobramento da crise financeira e econômica internacional de 2008-2009 foi a insolvência dos estados das nações desenvolvidas. Em 2011, por primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, a dívida pública superou em média 100% do PIB nos países avançados, atingindo uma média de 88% na Europa, 103% nos EUA, e 230% no Japão.

O problema não era novo: nos países da OCDE, as dívidas públicas ultrapassavam US$ 13 trilhões em 1995, quase o valor do PIB dos EUA. Somente nos Estados Unidos a dívida pública cresceu cinco vezes (atingindo US$ 5 trilhões em 1996) durante o período Reagan – Bush (pai). Depois da crise de 2008, o grande acúmulo de dívida governamental fez estourar a capacidade de endividamento dessas nações, provocando o temor geral de que não pudessem “honrar seus compromissos” e decretassem o calote da dívida. A principal consequência da crise das dívidas soberanas foram as revoltas sociais causada pelos cortes dos salários, empregos e benefícios sociais. O desabamento da ultrapequena Islândia foi o sinal da crise geral dos Estados europeus, e da própria UE. A crise financeira de 2008 na Islândia envolveu os três principais bancos. Em setembro, anunciou-se que o banco Glitnir seria nacionalizado. Na semana seguinte, o controle do Landsbanki e Glitnir foram assumidos pelo governo que depois tomou conta do maior banco da Islândia, o Kaupthing. O governo islandês acabou por emitir um decreto para nacionalizar as instituições financeiras privadas.

Ao mesmo tempo, continuava a liquidação massiva de bônus do Estado grego (mais de 3 bilhões de dólares nos últimos dez dias de outubro de 2008). Planos de “reajuste” foram aplicados, com ataques aos salários, direitos e aposentadoria dos funcionários públicos. No setor privado, o aspecto central foram as demissões. Grécia, uma economia menor que a de vários estados brasileiros, foi posta no centro da crise europeia, com uma dívida pública em torno de 300 bilhões de euros (o equivalente a US$ 400 bilhões). Para tentar minimizar a situação precisava refinanciar mais de 50 bilhões de euros em dívidas. A queda da Grécia traçou um novo marco no processo situado entre a crise do banco de investimentos Bear Stearn em 2007 até a crise do Lehman Brothers no final de 2008. A crise global deixou de ser só o estouro da bolha das hipotecas (prime e subprime) e evoluiu para uma crise de endividamento público. Os únicos fornecedores de liquidez passaram a ser os bancos centrais. A situação da União Europeia ficou mais complicada, porque o BCE tinha mais restrições para operar com recompra de títulos públicos dos países da área do euro, uma prática que poderia caracterizar emitir moeda para dar cobertura a despesas correntes.

Aparentemente “europeia”, a crise das dívidas soberanas teve sua origem, porém, na “desconfiança dos mercados” de que os EUA não conseguissem pagar suas dívidas. A crise do limite de dívida dos EUA, que levou a um longo processo de negociações e de debate no Congresso dos EUA sobre o aumento do limite de dívida, fez crescer a especulação internacional sobre a real capacidade de solvência americana. A agência de classificação Standard & Poor's (S&P) rebaixou pela primeira vez na sua história, como vimos, a nota da dívida pública dos EUA. Imediatamente ao rebaixamento da nota de crédito dos EUA, as bolsas

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de valores mundiais calcularam altíssimas perdas. Seguiu-se ainda que os dados divulgados no mês de agosto apontavam que as economias da zona do euro haviam crescido menos do que o previsto, com algumas já em profunda recessão.

A crise mundial se centrou a partir daí na Europa e pôs em questão os fundamentos da União Europeia. A falência da Grécia (e as perspectivas de falência de Irlanda, Portugal, Espanha e Itália) foi apresentada como seu motivo principal, quando na verdade foi só seu estopim. O colapso de 2011 evidenciou que as instituições construídas ao longo de mais de meio século não conseguiram resolver a questão da desigualdade econômica entre os países componentes (agravada com a adesão dos países bálticos e do Leste europeu), nem criar um sistema supranacional capaz de reagir de forma unificada a crises nacionais ou regionais. As desigualdades econômicas e sociais dentro da UE se aprofundaram desde a introdução do Euro. A renda anual média de um trabalhador em uma grande companhia varia em um fator de 20, entre € 43.000 na Dinamarca e € 1.900 na Bulgária. A UE não tem mecanismos institucionais que possam prestar socorro a sócios que, repentinamente, enfrentem graves problemas de caixa. Europa continuou sendo o “gigante econômico e pigmeu político”, com seus quase 500 milhões de consumidores (o maior “mercado interno” do planeta), mas incapaz de ter uma política unificada diante de problemas internos ou externos graves.

Dívidas na área do euro (2011)

O problema foi a irresponsabilidade fiscal dos “estados periféricos”? Diz um velho ditado argentino que la culpa no es del chancho, sino de quien lo alimenta. A história recente da UE o comprova. Em 2002, Alemanha sofreu um previsível estouro da sua bolha acionária (depois da euforia da reunificação, iniciada em 1990), caindo numa recessão de alcance continental,

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enquanto a “Europa do Sul” se entusiasmava com a adoção do euro, em substituição de suas moedas cronicamente desvalorizadas. O BCE adotou uma política de “juros [anti-recessivos] alemães” (ou seja, quase zero) o que alimentou o endividamento da periferia Europeia, ainda sofrendo da inflação precedente, portanto com juros negativos. Os déficits em conta corrente atingiram 15% na Grécia, 13% em Portugal, 10% na Espanha. O déficit público, nesses países, nunca se adaptou às normas europeias, e foi financiado com empréstimos bancários privados dos países do “núcleo duro” da UE. A criação da zona do euro colocou na mesma arena economias completamente desiguais. Enquanto existiam moedas diferentes, a taxa de câmbio ajudava os países mais fracos a manter algum grau de competitividade.

Quando se falou em salvar à Grécia, falava-se, na verdade, em salvar os bancos franceses e alemães expostos na “tragédia grega”. Esses bancos, além disso, continuaram cheios de “ativos tóxicos” (importados ou caseiros), herança da fase precedente da crise mundial. Assim, depois do estouro econômico (e social) da Grécia, um dos bancos expostos nesse estouro, o Dexia (com sede na Bélgica), detentor de títulos gregos com valor de face de € 4,8 bilhões (e valor de mercado quase zero), tornou público um passivo de € 420 bilhões (150% do PIB da Bélgica), ou seja, 50 vezes a dívida grega de curto prazo. Quem estava falido, afinal? O problema dermatológico (“periférico”) da Europa, revelou-se um problema coronário da UE. Em 2008, o Dexia só se salvou da falência graças a um empréstimo franco-belga-luxemburguês de € 6,8 bilhões (e outro, menor, do Tesouro norte-americano, de US$ 37 bilhões). A degringolada da UE não caiu como raio em céu de brigadeiro, pois foi a exacerbação de um problema estrutural da união capitalista da Europa, desde o seu início.

José Manoel Barroso, presidente da Comissão Europeia, evocou a “morte da Europa” caso as políticas propostas fracassassem. O New York Times viu “em frangalhos o sonho de uma Europa cada vez mais unida (com) sua moeda única fadada ao fracasso”. Se isso acontecer, só haveria uma instituição com força gravitacional unificadora do continente: a OTAN. A unidade europeia fora concebida como resposta às realidades econômicas de pós-guerra (a concorrência exacerbada entre os grandes monopólios e blocos econômicos no mercado mundial). Quando a crise se agravou em setembro/outubro de 2008, os governos europeus intervieram para evitar o colapso dos principais bancos e companhias: os governos de Bélgica, Holanda e Luxemburgo nacionalizaram o banco Fortis, o maior empregador privado da Bélgica;

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foi nacionalizada a britânica Bradford & Bingley, que tinha a maior porção do mercado de hipotecas imobiliárias, o governo alemão resgatou ao gigante dos empréstimos comerciais, Hypo Real Estate, e anunciou que garantiria os depósitos de todos os correntistas (já havia criticado o governo irlandês por fazer exatamente o mesmo), o governo britânico nacionalizou e recapitalizou os oito maiores bancos do país pela compra de ações preferenciais.

Apesar disso, os Estados da Europa reagiram frente à crise sobre linhas nacionais, não continentais. Fez-se evidente a ausência, na UE, de um órgão equivalente à Reserva Federal norte-americana, capaz de impor um plano em todo o âmbito da Eurozona. A UE não é um "super Estado": tem uma moeda comum entre 15 de seus 27 membros, mas carece de um sistema de impostos ou um orçamento único. O Banco Central Europeu tem a tarefa exclusiva de manter a inflação por debaixo da taxa estipulada pelo Tratado de Maastricht (2%), mas lidava com uma inflação anual superior a 3,6%. Outro limite estabelecido pelo mesmo Tratado, o de manter o déficit público por debaixo de 2%, também foi abandonado. Os líderes europeus reclamaram a imposição de novas regulações internacionais - um novo "Bretton Woods" - ao mesmo tempo em que ignoravam completamente suas próprias regulações europeias.

O Tratado de Maastricht, de 1992, como base da UE e do lançamento do euro e, depois, da sua expansão até as fronteiras da Rússia, viu-se acompanhado por um auge do crédito e pela realocação de indústrias na Europa central e nos Bálcãs. A introdução do euro deu aos países mais frágeis acesso a empréstimos a juros favoráveis. Isso fez disparar bolhas na especulação e na indústria de construção na Espanha e na Irlanda.

Antes da criação do euro, as burguesias da periferia da Europa se defendiam da agressão comercial dos países mais produtivos (Alemanha e França) desvalorizando suas moedas, isso lhes permitia tomar um respiro e manter mal ou bem o seu tecido produtivo e o equilíbrio de suas balanças comerciais. Com a moeda única esta possibilidade foi cortada, a potência exportadora alemã não teve mais barreiras, debilitando cada vez mais a produção da periferia e levando estes países a um processo de desindustrialização. Entre 2002 e 2010 este processo gerou um excedente de 1,64 trilhões de euros na Alemanha, dos quais somente 554 bilhões foram aplicados no seu próprio mercado interno. O resto, 1,07 trilhões, foi colocado fora da Alemanha, e desta parte 356 bilhões em empréstimos e créditos para financiar investimentos. As dívidas crescentes da periferia foram a forma de “encher” o vazio entre a produção interna de valor e uma moeda deslocada da capacidade produtiva do país.

A UE atingiu 27 países, mas as restrições do Tratado de Maastricht não foram respeitadas, o euro sofreu enormes pressões, a bonança nos países do Leste sob os novos regimes pós-comunistas converteu-se em um pesadelo para os bancos europeus. Apesar de uma avalanche de créditos ao Leste - e uma guerra devastadora da OTAN que destruiu a ex Iugoslávia - a restauração capitalista na Europa central e nos Bálcãs mostrou sua fragilidade, e pôs de manifesto que dependia da arrecadação de capital estrangeiro, mais do que de estruturas capitalistas enraizadas localmente.

A crise originada nos EUA passou assim rapidamente para Europa, cujos bancos estavam atolados duplamente, pelos “ativos tóxicos” dos EUA e a exposição no Leste. O custo dos swaps de default de crédito (CDS, na sigla em inglês) dos bancos – operações pelas quais o mercado compra um seguro contra o calote de um título – disparou. A saída à crise pela injeção de fundos públicos no setor financeiro falido, em proporções gigantescas, nos EUA e na Europa, adiou por pouco tempo sua reaparição como explosão da dívida pública. Os novos episódios da crise puseram fim às afirmações de sua superação a partir da segunda metade de 2009. O espectro dos defaults soberanos, desde Grécia até a Irlanda, sacudiu o conjunto da Eurozona, e revelou o impacto catastrófico das montanhas de dívidas dos Estados em todo o planeta, começando pelos EUA. Em inícios de 2010, os bancos franceses e alemães alertaram à UE e ao BCE de que o déficit público grego e de outros países os punha sob risco grave.

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Dívida pública de países europeus (1995=100)

As contas da União Europeia

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Europa: dívida e déficit públicos

A condição do BCE e do FMI para “salvar” esses países foi a adoção de drásticos planos de austeridade que provocaram revoltas sociais (a explosão social de Atenas, os “indignados” espanhóis, as greves gerais em Portugal e Irlanda) como já acontecera na “periferia da periferia” europeia (os países bálticos e balcânicos). Impuseram-se medidas draconianas sobre Irlanda e um programa mais duro, como o aplicado na Letônia,43 foi apresentado pela UE como ultimato à Grécia. O resultado é conhecido: maior crise financeira e fuga de capitais (os “mercados” fugiram dos países “contaminados”), novas explosões sociais. Os principais bancos europeus foram submetidos a “testes de estresse”, nos quais o Dexia ocupou um honroso 12º lugar entre 91 (ou seja, que haveria oitenta bancos em situação ainda pior).

Os bancos europeus estavam sobrecarregados com títulos de dívida soberana (dos tesouros nacionais). A agência Moody's rebaixou a classificação de crédito de 12 instituições financeiras do Reino Unido e nove de Portugal. No Reino Unido a reclassificação incluiu entidades de peso como Lloyds, RBS (Royal Bank of Scotland), o banco hipotecário Nationwide, Co-operative, além do Santander. O BCE passou a fazer o que antes se negava: recomprar dos bancos europeus esses títulos, recomprando no mercado secundário títulos da Grécia, Portugal e Irlanda, que a rede bancária não vinha conseguindo manter em carteira. Problemas semelhantes começaram a acontecer com Itália e Espanha, países com dívidas três ou quatro vezes maiores do que as de Grécia, Portugal e Irlanda. Estes são 6% da zona do euro, Espanha e Itália são 30 %.

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País em que, desde a explosão da crise, o desemprego subiu até 23%, o PIB caiu 25%, os salários do setor público foram reduzidos em cerca de 30%, e 75% dos trabalhadores sofreram cortes de rendimentos. Estatísticas próprias de um desastre bélico. Num clima de fechamento de escolas e hospitais, a emigração massificou-se, alimentando o exército de subempregados na Europa.

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Variação das ações dos bancos

Em 2008, a dívida pública espanhola equivalia a 40 % do PIB. Em 2011 já equivalia a 68 %. Além disso, a dívida pública faz parte de um endividamento total (de bancos, empresas e famílias) que chega a quase quatro vezes o PIB espanhol, metade do qual é dívida externa. Na Itália, a dívida pública era equivalente a dez vezes a dívida da Grécia. A cada mês a Itália ia a leilão com 25 bilhões de euros em títulos, o que Grécia leiloa em um ano. Os países “pequenos” só deram o chute inicial da crise. A União Europeia não tinha mecanismos institucionais para conter crises dessa envergadura. Um dos principais problemas da UE (e do BCE) é a ausência de um sistema único de dívida pública. Um projeto de Constituição Europeia fracassou quando foi rejeitado em vários plebiscitos nacionais e, por isso, abandonado. Finalmente, a União Européia, junto ao FMI, lançou um pacote de ajuda à Grécia em maio de 2010 no valor de 110 bilhões de euros, sendo 80 bilhões de responsabilidade da UE e 30 bilhões do FMI. Em contrapartida o país assumiu o compromisso de realizar um forte ajuste fiscal e reduzir seu déficit público de 13,6% para 3,0% em 2014.

Dívida e déficit público (EUA, Japão, UE)

O Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, cuja função foi dar cobertura de liquidez a países membros do bloco do euro, dispôs de 440 bilhões de euros (o equivalente ao passivo de um só banco) e, ainda assim, seus estatutos deviam ser previamente aprovados nos parlamentos de cada país. As notícias a respeito do possível rebaixamento francês foram suficientes para derrubar cotações, principalmente papéis de bancos. As ações da Société Générale, por exemplo, chegaram a despencar 21% e fecharam em fortíssima baixa de 14% – num único

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pregão. A possibilidade de quebra em cadeia dos bancos entrou na agenda, e foi verificado nos ataques ao Bank of America (Estados Unidos); ao Crédit Agricole, ao BNP Paribas e ao Societé Générale (França).

Para Nouriel Roubini, “a menos que se triplique o montante do Fundo Europeu de Estabilidade Financeira – movimento contra o qual a Alemanha resistirá –, só restará, como opção, a reestruturação ordeira, mas coercitiva das dívidas de Itália e Espanha, como aconteceu na Grécia”. França e Alemanha defendem uma “regra de ouro” estipulando metas de controle do déficit público, para ser incluída na Constituição dos membros da zona do euro.44 Na sua intervenção no parlamento para defender o “pacote” de austeridade, o ministro da Economia, GiulioTremonti, comparou a situação da Itália à do Titanic, afundado em 1912. O “plano de ajuste reforçado” da Itália objetivou aumentar os ganhos financeiros em até 20% (para atingir o equilíbrio fiscal em 2013): todos os títulos financeiros teriam taxas de 12,5% a 20% (essas taxas eram de 12,5%).

Um ano depois de seu primeiro “resgate”, a Grécia, brutalmente golpeada, não podia garantir os pagamentos do mês de julho e só lhe faltava declarar-se falida. Todos os créditos do primeiro “resgate” foram utilizados para pagar empréstimos anteriores, e quanto mais pagava, mais dinheiro devia. Desta vez, diferentemente do primeiro resgate, o “contágio” (expresso no “prêmio de risco” ou “risco-país”: a diferença entre a taxa de juros da dívida paga pelo país e a paga pela Alemanha) não só afetou Portugal e Irlanda como também atingiu à Espanha e, pela primeira vez, à Itália. O pacote de austeridade grego incluiu 6,4 bilhões em reduções de custos no orçamento de 2011, incluindo uma "taxa de solidariedade" (redução salarial) para os empregados (do setor privado ou público). Esse plano era condição para os empréstimos da troïka (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em troca da liberação da nova parcela de 12 bilhões de euros, Grécia deveria reduzir seu déficit em 28 bilhões, com cortes na despesa e aumento dos impostos e um vasto plano de privatizações no valor de € 50 bilhões.

Finalmente, o calote grego foi “encaminhado”. Após os bancos ganharem dinheiro pegando empréstimos baratos junto ao Banco Central Europeu para ganhar juros altos emprestando à Grécia e outros países, os mesmos bancos concordaram com uma redução de 50% na dívida grega. Ao mesmo tempo, os bancos seriam “capitalizados” (ou seja, salvos) para enfrentar essas perdas, bancados pelos próprios governos, ao custo de mais dívida pública. Ao mesmo tempo, a Europa aumentaria o “fundo de resgate”, ou seja, recursos para países endividados, condicionados à implementação de políticas de ajuste antipopulares.

Diante da violência social (de classe) dos ajustes propostos, houve propostas de não pagamento (moratória) da dívida pública, de criação de eurobônus (títulos públicos europeus, com os que os países “centrais” da UE assumiriam parte da dívida dos “periféricos”) e até de retirada (da UE ou da “zona euro”: 10 dos 27 países da UE não adotaram o euro) dos países mais endividados, que assim poderiam desvalorizar suas moedas, novamente “nacionais”. Analistas da UBS (Suíça) calculam que a ruptura do euro custaria a um país periférico entre 40% e 50% do seu PIB (desvalorizado), e a um país central de 20% a 25%, só no primeiro ano. Índices dignos de uma catástrofe bélica. Depois dos “periféricos” (Europa do Leste) e dos “pequenos” (Grécia, Irlanda Portugal) foram os “latinos” (Espanha e Itália, com seus títulos [dívida] públicos “rebaixados”) os próximos da fila.

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Lançado pela Alemanha, o Pacto Orçamentário Europeu, ou Tratado para Estabilidade, Coordenação e Governança no interior da União Econômica e Monetária (TSCB) foi assinado em 2 de março de 2012 em Bruxelas, por 25 Estados da UE (o Reino Unido e a República Checa não aceitaram subscrevê-lo). Este pacto obriga cada país signatário a inscrever em sua Constituição um limite – a famosa “regra de ouro” – ao déficit público, fixado em 0,5% do PIB. Também prevê pesadas sanções contra os países que ultrapassem os 3%.

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Na Espanha, dois anos de recessão deixaram o país com uma taxa de desemprego de 21,3% - a mais alta entre as 27 nações que integram a zona do euro - e com uma dívida soberana enorme. O desemprego chega a 35% quando são considerados os espanhóis entre 16 e 29 anos de idade. La Vanguardia, jornal conservador espanhol, afirmava que os jovens de hoje vivem pior que seus pais e que seus avós. Os “mercados emergentes” dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), vítimas históricas do colonialismo europeu, negociaram aumentar suas carteiras de títulos em euros, “em uma tentativa de ajudar os países europeus que sofrem uma crise de dívida soberana". O mundo pareceu virado pelo avesso.

Em 2008 a economia espanhola começou sua retração: a evolução do PIB passou de uma taxa de crescimento anual de 2,8% a uma taxa de -4,8% em meados de 2009. Alguns pensaram que a crise havia tocado o fundo. Em julho do mesmo ano, o PIB começou a sair do buraco e cresceu a uma taxa de 1% até meados de 2011. Aí reiniciou o declínio até chegar à segunda queda: uma recessão em forma de W. O parlamento espanhol votou uma reforma constitucional que impôs um limite ao déficit orçamentário e à dívida, estabelecendo a prioridade de pagamento dos vencimentos da dívida pública. Os partidos nacionalistas e de esquerda votaram contra, porque a nova regra serviria para anular o financiamento público das comunidades autônomas. Alemanha tem um teto similar incorporado à sua Constituição. Um dos principais problemas da UE (e do BCE) é, justamente, a ausência de um sistema único de dívida pública. As reformas seriam um passo em direção da união fiscal da Europa, o que equivaleria à sua absorção pela Alemanha. As “autonomias“ espanholas (Euskadi [País Basco] e Catalunha) seriam enormemente reduzidas. A obrigação de pagar em primeiro lugar a dívida pública, em detrimento dos gastos sociais e da partilha federal, abriria a possibilidade da desintegração política do Estado espanhol, que só poderia ser preservada se ocorresse a desintegração da UE. Em maio de 2010, a OCDE constatou que as dívidas públicas dos 30 países industrializados ultrapassavam US$ 43 trilhões (65% do PIB mundial), tendo aumentado quase sete vezes desde 2007.

A partir de 2010, Europa passou a ocupar o centro da crise mundial. Países como Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha ficaram com suas economias com insuportável grau de endividamento. A crise grega foi tão anunciada quanto à do subprime: com uma economia débil, um déficit público de aproximadamente 3,5% do PIB, um déficit de pagamentos superior a 15% do PIB e uma dívida total, pública e privada, de meio trilhão de dólares, tinha seu sistema bancário superexposto nos Bálcãs, particularmente na Bulgária e na Romênia. A crise começou com a difusão de rumores sobre o nível da dívida pública da Grécia e o risco de suspensão de pagamentos pelo governo grego. A crise da dívida grega se tornou pública em 2010. Resultou tanto da crise econômica mundial como de fatores internos ao próprio país - forte endividamento (cerca de 120% do PIB) e déficit orçamentário superior a 13% do PIB. A situação foi agravada pela falta de transparência por parte do país na divulgação dos números da sua dívida e do seu déficit. A diferença média entre o déficit orçamentário real e a cifra notificada à Comissão Europeia foi de 2.2% do PIB. Diante das sérias dificuldades econômicas da Grécia, a União Europeia adotou um plano de ajuda, incluindo empréstimos e supervisão do Banco Central Europeu.

O Conselho Europeu também declarou que a UE realizaria uma operação de bailout do país, se fosse necessário, pela ameaça de extensão da crise a outros países, nomeadamente Portugal e Espanha. Em última instância, essa crise poderia significar rebaixamento das dívidas de todos os países da Europa. Os ataques especulativos à Grécia foram considerados por alguns, inclusive pelo governo grego, como ataques à Zona Euro - através do seu elo mais fraco, a Grécia. Todos os países da Zona Euro foram afetados pelo impacto que teve a crise sobre a moeda comum europeia. Houve receios de que os problemas gregos nos mercados financeiros internacionais deflagrassem um efeito de contágio que fizesse tremer os países mais fracos da

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zona euro, como Portugal, República da Irlanda, Itália e Espanha que, tal como a Grécia, tiveram adotar planos de austeridade para reajustar suas contas.

A partir de março de 2010, a Zona Euro e o FMI debateram conjuntamente um pacote de medidas destinadas a resgatar a economia grega, que foi bloqueado durante semanas devido em particular a divergências entre a Alemanha e os outros países membros. Durante essas negociações e perante a incapacidade da Zona Euro de chegar a um acordo, a desconfiança aumentou nos mercados financeiros, enquanto o euro teve uma queda regular e as praças bolsistas apresentavam fortes quedas. Finalmente, em 2 de maio de 2010, a União Europeia (UE) e o FMI acordaram um plano de resgate de 750 bilhões de euros para evitar que a crise grega se estendesse por toda a Zona Euro. A essa medida adicionou-se a criação, anunciada a 10 de maio, de um fundo de estabilização coletivo. Ao mesmo tempo, os maiores países europeus tiveram que adotar os seus próprios planos de ajuste das finanças publicas, inaugurando uma “era de austeridade”. Mas as políticas europeias não se sobrepuseram às políticas nacionais. Para Jüergen Habermas, teórico mor da constituição europeia, o momento chave foi em 2010, quando a chanceler alemã, Angela Merkel, adiou uma decisão sobre o primeiro resgate para a Grécia até depois das eleições regionais na Alemanha: “Foi quando pela primeira vez dei-me conta de que o fracasso do projeto europeu, sim, era risco real.”

A dívida da Grécia era a mais elevada na historia de um país com pouco mais de 10 milhões de habitantes. O aumento do déficit orçamentário também foi o mais elevado dos últimos 16 anos: o país foi cobrado pelo Banco Central Europeu para que tomasse medidas para reduzir esse déficit orçamentário, de valores de 12,7% do PIB, alcançando quatro vezes a porcentagem permitida pela União Europeia, que é de 3% o PIB. Foi imposto um pacote de medidas de austeridade, economizando 4,8 bilhões de euros (menos de 2% da dívida pública), para tentar resolver a crise no país, condição para receber ajuda de US$ 140 bilhões, de outros 15 países europeus: congelamento e até redução de salários dos funcionários públicos, cortes nos fundos de pensão e aumento dos impostos, aumento do preço da gasolina. O governo aumentou a idade para a aposentadoria, “economizando” dinheiro no sistema de pensões. Bastou que fosse conhecido o resgate da Grécia para que, em 24 horas, fosse evidente que seu default seria inevitável: o aumento da soma prevista para o resgate, de 60 para 140 bilhões de euros, demonstrou a insolvência do Estado grego. A repercussão internacional foi imediata. O pacote de austeridade provocou uma recessão econômica que só agravou a incapacidade do Estado para pagar a dívida pública.

Houve protestos massivos por causa dessas medidas, que ocasionaram mortes de manifestantes, até se chegar à greve geral em 5 de maio de 2010. O objetivo do pacote governamental foi reduzir o orçamento da Grécia em 30 bilhões de euros, fixando o objetivo de levar seu déficit de 14% para menos de 3% do PIB até 2014. Ora, Grécia não foi o único país da zona do euro a violar a regra que afirma que o déficit orçamentário não deve ultrapassar 3% do PIB. Na Grã-Bretanha, que não está na zona do euro, esse déficit chega a 13%; na Espanha ele chega a 11,2%, na Irlanda a 14,3% e na Itália a 5,3%. Os bancos de toda Europa estão, por outro lado, fortemente expostos na Grécia. A Alemanha já apresenta altas taxas de desemprego com horas de trabalho reduzidas, com sua dívida pública alcançando o limite máximo aceito pela União Europeia. Operadores já demonstraram medo de que alguns países com grandes déficits no orçamento, como Grécia, Espanha e Portugal, possam abandonar o euro. Ao deixar a moeda comum, o país poderia permitir a desvalorização de sua moeda e, assim, melhorar sua “competitividade internacional”.

A crise provocou nova discussão sobre a coordenação econômica e integração fiscal da zona, sendo apontadas as faltas de um tesouro e de um orçamento consolidado da Zona Euro como problemas mais importantes. Os países da zona do euro, o FMI e a Grécia chegaram a um acordo, envolvendo empréstimos no valor de 110 bilhões de euros ao país e condicionado à execução de um programa de “ajuste estrutural” da economia grega. O presidente francês

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Nicolas Sarkozy e a chanceler alemã, Angela Merkel, anunciaram que os 16 países da Zona Euro iriam elaborar um plano de defesa da moeda europeia para evitar novos ataques especulativos à moeda europeia. A base jurídica para tal plano repousava no artigo 122-2 do tratado europeu.

Angela Merkel ressaltou a determinação em blindar o euro contra a especulação, e ressaltou a necessidade de uma regulação mais forte para o mercado financeiro. Sarkozy declarou que "o euro é um elemento essencial da Europa. Nós não podemos deixá-lo na mão de especuladores". Em 16 de maio de 2011, os ministros das finanças da Zona Euro aprovaram um empréstimo de 78 bilhões de euros a Portugal. O empréstimo seria dividido igualmente pelo Mecanismo Europeu de Estabilização Financeira, pelo Fundo Europeu de Estabilidade Financeira e pelo Fundo Monetário Internacional. Portugal tornava-se assim no terceiro país da Zona Euro, após a Irlanda e a Grécia, a receber apoio financeiro internacional.

Queda das bolsas de valores em agosto de 2011

Em agosto de 2011, novamente, as Bolsas de Valores do mundo todo conheceram uma queda, consecutiva à “degradação” dos títulos públicos norte-americanos (considerados o refúgio de valor mais seguro do mundo) e às repetidas crises europeias, devidas ao montante espetacular do débito público, à perspectiva de falência de vários estados da “zona euro” (Grécia, Portugal, Espanha, Itália) e às crises sociais e políticas provocadas pelos planos de austeridade nesses países. Retirando-se das Bolsas, os investidores (os empresários capitalistas, grandes especuladores ou não) expressavam assim seu pânico diante do fato, agora comprovado, de que a crise de 2007-2008, que provocara uma catástrofe no setor financeiro do “Primeiro Mundo” não só não tinha concluído, mas tinha se aprofundado e contagiado o crédito público. Paradoxalmente, a segurança foi buscada justamente nos títulos da dívida do Tesouro norte-americano, rebaixados pela agência Standard & Poor’s (S&P). Isso mostrava que não havia para onde fugir.

Em 2008, afirmara-se que era a última vez que dinheiro público era usado para salvar bancos privados. Em outubro de 2011, porém, o governo belga entrou com € 4 bilhões para manter o banco Dexia em funcionamento, enquanto uma parceria pública França-Bélgica-Luxemburgo garantia a operação com € 90 bilhões (literalmente penhorados dos orçamentos públicos respectivos). Angela Merkel e Nicolas Sarkozy chegaram a um acordo para capitalizar as instituições financeiras e impedir um colapso bancário. Além de ajudar bancos com papéis de países falidos (Grécia, Irlanda e Portugal), liberaram um socorro de € 158 bilhões para Grécia. O banco Dexia foi desmembrado para facilitar seu saneamento. Um fundo de estabilização europeia de € 440 bilhões foi criado. A catástrofe foi evitada (melhor, adiada) graças a um acordo governamental franco-alemão: e a UE? Bem, obrigado.

A crise financeira na Europa, na verdade, não era mais um problema restrito a economias pequenas e periféricas como a Grécia, mas uma corrida em grande escala aos bancos nas

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economias muito maiores da Espanha e da Itália. Os países em crise respondiam por cerca de um terço do PIB da zona do euro, deixando a moeda comum europeia diante de uma “ameaça existencial”. Mas o euro não é só um “símbolo” da UE. A “soberania partilhada” entre Estados - Nação e a União Europeia, consagrada no Tratado de Lisboa, implicaria que os governos nacionais prestem contas de suas políticas domésticas, ao mesmo tempo em que questões mais amplas devam ser tratadas no nível europeu.

Em 2012, Jüergen Habermas questionou a estrutura política da União Europeia que, criada para governar essa soberania partilhada, estaria “carregada de falhas”. Não haveria relação simétrica nas funções e competências dos três principais corpos: o Parlamento Europeu, a Comissão da União Europeia e o Conselho de Ministros. Não há lei eleitoral unificada para o Parlamento Europeu – em alguns países, os deputados ao Parlamento Europeu são escolhidos em eleições diretas; em outros, são escolhidos a partir de listas partidárias. O Conselho Europeu, o segundo na lista de órgãos, abaixo do Parlamento, nos termos do Tratado de Lisboa, é, segundo Habermas, completa anomalia. 45

Na verdade, a “supranacionalidade” europeia não conseguiu superar as nacionalidades prévias, e isso se evidenciou na crise. Em vez de se homogeneizar, as desigualdades econômicas na Europa se acentuaram com a pretensa “integração”, exatamente por ser esta capitalista, isto é, baseada na concorrência entre capitais de nacionalidades diversas:

Saldos comerciais na Europa

Para Rob Johnson: “Construiu-se na Europa um sistema que se pode definir como “uma bolha política”. Todos negociam sob o pressuposto de que a Alemanha garante todos os negócios. A ideia dominante é que a Alemanha está mandando. Que está sólida. Que garante tudo. Todos os preços são feitos a partir da qualidade do crédito da Alemanha. E a Alemanha, porque joga dentro do sistema europeu, está fazendo como se assinasse um contrato de seguro, como empresa seguradora. Todos sabemos como são as empresas seguradoras. Enquanto só recebem pagamento pelas apólices que vendem, está tudo bem. Mas, quando os acidentes acontecem e chega a hora de pagar, elas fazem de tudo para não pagar. Desde o início de 2009, o que está acontecendo é que Angela Merkel disse que não garantirá todos os

45

A “democracia europeia” já está questionada. Os ministros do Interior dos países membros da União Europeia chegaram a um acordo em junho de 2012 para reformar o Tratado de Schengen, que instituiu a livre circulação de pessoas na região. A medida, patrocinada pelos governos na França e da Alemanha, consiste em autorizar o fechamento das fronteiras por até um ano para conter fluxos imigratórios excepcionais. A reforma, que excluiu o Parlamento Europeu do debate, anula um dos pilares da constituição da UE. Em vigor desde 1996, o Tratado de Schengen abriu as fronteiras de 26 países no continente europeu, incluindo os membros da União Europeia (exceto Reino Unido e Irlanda) e três países que não fazem parte do bloco econômico (Islândia Noruega e Suíça). Nesse espaço, as pessoas podem (ou podiam) circular livremente, sem necessidade de apresentação de passaporte.

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pagamentos a todos os bancos da Europa. Cada empresa, cada país, que se defenda. Assim, Angela Merkel dividiu a Europa. Enquanto a Irlanda foi vista como parte do sistema europeu, assumiram riscos bancários descomunais relativamente ao seu PIB. Agora, foram deixados sozinhos, obrigados a responder sozinhos pelas próprias dívidas. Como se dizia, a Irlanda seria “grande demais para falir”. De repente, passou a ser “grande demais para ser salva””.

Vencimento de Dívidas Públicas na Europa – PIGS (em US$ bilhões)

A União Europeia aprovou finalmente um pacote econômico anticrise (lançado a 27 de outubro de 2011) prevendo maior participação do FMI e do BCE no enfrentamento da crise; uma ajuda financeira (condicionada) aos países com mais dificuldades econômicas; a definição de um Pacto Fiscal, a ser ratificado em 2012, cujos objetivos seriam : garantir o equilíbrio das contas públicas das nações da União Europeia e criar sistemas de punição aos países que desrespeitarem o pacto. Vale destacar que o Reino Unido não aceitou o pacto, fato que aumentou a crise política na região.

Os círculos dirigentes da França e Alemanha expressaram abertamente sua preocupação de que a indignação popular na Grécia se transformasse numa revolução social, com consequências diretas em toda Europa. Não só a dívida grega era insustentável e em constante crescimento, como também Portugal e Irlanda seguiram os passos da Grécia com novos “acordos financeiros” com a troïka (BCE, UE, FMI). Itália e Espanha, a terceira e quarta maior economia da “eurozona”, desmoronaram sobre montanhas de dívidas. Depois de muito, o BCE finalmente admitiu recomprar títulos da Itália e da Espanha, cujas dívidas ficaram sob ameaça de colapso. França, que pertence ao núcleo duro da União Europeia, perdeu sua qualificação de crédito AAA, enquanto que o conjunto da União Europeia, começando pelo seu motor, a Alemanha, começou a se afundar na recessão. O círculo vicioso da austeridade que agrava a recessão e o endividamento não se interrompe, ao contrário, aperta a corda e estrangula a chamada “economia real”, a produção, achatada por uma crise de superprodução de capital, sem mercados suficientemente rentáveis. Ao colocar a Grécia na UTI com o segundo resgate (garantia) pretendeu-se evitar as consequências catastróficas de um segundo Lehman Brothers, que causaria uma avalanche de quebras de países e bancos. A economia grega já encolheu 16% em cinco anos, o desemprego chegou à estratosfera. E o peso da dívida, em vez de diminuir, só aumentou: dos 130% do PIB no final de 2009, chegou em 2012 aos 160%.

Em meados de 2012, Espanha afundou novamente na recessão. A crise nunca foi embora. O anúncio sobre a nova queda do PIB foi feito pelo Instituto Nacional de Estatística: a economia espanhola encolheu 0,3% durante o primeiro trimestre desse ano. No último trimestre de 2011 o retrocesso também foi de 0,3%: a economia espanhola entrou em sua segunda recessão em apenas 24 meses: para 2012 e 2013 se previram contrações de 1,5% e 0,5%, respectivamente. O desemprego na Espanha chegou quase a 25%, oficialmente: o nível mais elevado em dezoito

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anos, colocando mais de 5,6 milhões de pessoas na rua. Em quatro das regiões autônomas espanholas, o nível de desemprego ficou superior a 30%, em nível nacional o desemprego entre menores de vinte e cinco anos se fixou em... 52%. O governo “socialista” de José Luis Zapatero foi varrido nas eleições, com a direita voltando ao governo com Mariano Rajoy. O novo governo deu sinais de querer incrementar o imposto ao valor agregado, além de manter firmes seus cortes salariais e golpes às pensões, um novo garrote à já fraca demanda dos consumidores, com diminuição na capacidade de pagamento das dívidas que sobrecarregaram os lares espanhóis. Com o aumento da carteira vencida de empréstimos, em especial de hipotecas, em algum momento, o governo espanhol teria que intervir para resgatar os bancos. A Standard & Poor's reduziu a qualificação sobre a dívida soberana de curto e longo prazo da Espanha. A agência explicou a medida pela deterioração na trajetória do déficit para o período 2011-2015, assim como pela probabilidade de que o governo intervenha para ajudar um setor bancário em dificuldades. Alguns analistas colocaram o montante da "ajuda" que necessitaria o setor bancário no patamar mínimo de 120 bilhões de euros.

Uma forma de reunir recursos seria colocando dívida no mercado internacional, mas isso seria custoso e implicaria uma maior deterioração na posição creditícia do governo, agravando a crise da dívida soberana e afetando negativamente os estados financeiros dos bancos que obtenham os novos bônus. O programa de refinanciamento de longo prazo (LTRO) foi posto em marcha em dezembro de 2011; seu objetivo seria injetar liquidez no sistema bancário. Os bancos podem agora tomar recursos durante três anos a uma ridícula taxa (1%) para reinvesti-los como melhor lhes pareça. Devem dar uma garantia ao BCE, como bônus de dívida soberana, o que se traduziu em uma espécie de intervenção indireta nesse mercado por parte do BCE.

Segundo Paul de Grauwe, a injeção de liquidez foi muito maior do que a que resultasse através de uma intervenção direta. A instabilidade dos bônus soberanos não foi eliminada; com as economias europeias em recessão, nem as famílias nem as empresas querem tomar novos créditos. O gigantesco fundo soberano chinês, a Corporação de Investimento da China, cortou grande parte de sua carteira de ações e dívida em euros. A flexibilidade da política monetária na versão do BCE não permite assegurar a recapitalização dos bancos. As utilidades que os bancos podem obter através das operações com os recursos do LTRO no mercado de bônus soberanos não são suficientes.

Rendimento dos títulos públicos (bônus soberanos) a dez anos de sete países europeus

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Não só não havia reativação econômica, mas tampouco recapitalização dos bancos. Europa passou a se enfrentar com um duplo efeito: por um lado o potente freio da austeridade e, pelo outro, o pseudo motor da liquidez em aumento, pelas operações do BCE. A receita de austeridade se pôs na ordem do dia em toda Europa. Nos planos de ajuda à Grécia, Irlanda e Portugal, que tiveram de solicitar empréstimos para “sanear” suas economias, a ajuda financeira veio condicionada à adoção de medidas de austeridade fiscal, incluindo cortes generalizados de gastos públicos, que mergulharam os países em recessão econômica, aumento do desemprego e da pobreza.

Na Espanha, o quarto maior banco do país, o Bankia, falido e com uma carteira de mais de US$ 400 bilhões, foi estatizado numa operação de 19 bilhões de euros. Os ministros do Eurogrupo aprovaram, em junho de 2012, um pacote de resgate “espanhol” no valor recorde de 100 bilhões de euros, para a reforma do sistema financeiro (os bancos espanhóis terão supervisão do FMI). De 2007 a 2012, o balanço financeiro do setor privado saltou de déficit a superávit em 16% do PIB, na Espanha. A União Europeia exigiu que governo de Mariano Rajoy escolhesse os bancos que receberiam repasses. Bancos que pedirem fundos do governo deveriam arcar com uma taxa de juros equivalente 8,5% - cinco pontos percentuais a mais do que a Espanha paga ao FROB (Fundo de Reestruturação Ordenada Bancária).

Assim: 1) O dinheiro do “pacote espanhol” seria entregue ao FROB, órgão criado pelo Executivo espanhol que, afinal, é seu avalista; 2) Haverá condições impostas ao governo, além daquelas que ele já vem cumprindo há mais de dois anos, para controle do déficit público mediante cortes nos gastos sociais e investimentos; 3) A troïka, UE, BCE e FMI (este não destinará recursos, mas participará do monitoramento das contas espanholas), estará presente em todas as etapas do processo de resgate; 4) Embora o principal dos 100 bilhões não seja contabilizado como déficit público, o que estouraria todas as metas da Espanha, os juros a ser pagos aumentarão a dívida pública. Paralelamente ao empréstimo ao FROB, que será vigiado de perto pela troika em suas aplicações, também aumentará o acompanhamento das medidas de ajustes e reformas impostas pelo Pacto de Estabilidade e Austeridade. O empréstimo incrementou a dívida pública espanhola em 15% de uma só vez, para fazer frente a uma corrida bancária: no primeiro trimestre de 2012 saíram da Espanha 97 bilhões de euros, outros 45 bilhões o fizeram em abril. A fuga superou o montante de salvamento, antes de seu início.

Os fundos de resgate da zona do euro, já envolvidos com Grécia, Portugal, Irlanda e Espanha, poderiam ser insuficientes para lidar também com a Itália (o yield [retorno ao investidor] dos bônus italianos de dez anos está apenas oito pontos-base abaixo do nível em que estava o yield dos bônus espanhóis, antes do pacote de resgate de junho de 2012). Os grandes investidores, e até diretores do FED dos EUA, expressaram dúvidas sobre se juros baixos poderiam trazer algum benefício, ou seja, temem que os Bancos Centrais não possam salvar a “economia global”. O governo da China admitiu que nos próximos cinco anos pretendia aplicar 500 bilhões de dólares de suas reservas na Europa comprando ativos, para se adiantar a uma desvalorização do dólar ou a um processo de hiperinflação da moeda norte-americana. Uma parte do sistema bancário francês está enterrada na Grécia, enquanto que a da Itália acumula uma parte enorme da dívida pública italiana e no Leste europeu e os Bálcãs, à beira de um “default”. A maioria dos bancos está atolada em dívidas de seus próprios países. A agência Moody fez notar que a crise não afeta apenas aos bancos, mas também os fundos emprestados para comprar empresas em crise.

Os bancos da Europa, do Japão, e o Federal Reserve dos EUA, pressionaram à Alemanha para que aceite integrar um Fundo de Financiamento, que possa ser subscrito (emissão de ações para se obter os recursos) no mercado internacional e que supere largamente o trilhão e meio de dólares. Mas a posição do governo e das autoridades monetárias alemãs é: nada de títulos unificados da zona do euro; nenhum aumento nos recursos destinados ao Mecanismo de

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Estabilização Europeu (no momento de 500 bilhões de euros); nenhum esquema comum de sustentação ao sistema bancário; austeridade fiscal a todo custo, inclusive na Alemanha; nada de financiamento a governos via política monetária; nenhum relaxamento da política monetária da zona do euro; e nada de boom de crédito forte na Alemanha. O país credor, em cujas mãos o poder se concentra em um momento de crise, quer (por enquanto) transformar à UE em uma plataforma econômica própria no mercado mundial.

Superávit comercial da Alemanha com a zona do euro (US$ bilhões)

Em 1998, quando os alemães ainda usavam o marco, seu superávit comercial junto às nações que mais tarde adotariam o euro era de apenas US$ 29 bilhões. Em 2008, já com a divisa comum, o saldo atingiu US$ 177 bilhões, número sete vezes maior. Mais de US$ 1 trilhão entrou na Alemanha desde a criação da moeda única (1999) até 2010 por meio do comércio de bens com seus colegas do euro, segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Não por mera coincidência, a escalada das exportações alemãs ocorreu principalmente em cima de países que mais tarde se tornaram o foco da crise europeia. De 1998 a 2008, o superávit comercial da Alemanha com a Espanha aumentou 11 vezes; com a Itália, 8,6 vezes; com Portugal, sete vezes; com a Grécia, 3,5. Somente em cima da Espanha, a Alemanha ganhou US$ 270 bilhões no comércio de bens de 1999 a 2010. Sobre a França, os alemães acumularam um saldo de US$ 328 bilhões. A Alemanha, no entanto, não tem os meios militares, políticos ou econômicos para impor uma anexação - deve proceder por etapas. Tampouco pode proceder de forma administrativa: deve negociar ou impor sua hegemonia à França, e negociar uma divisão de influencias com os Estados Unidos e a China.

O Banco da Inglaterra lançou em junho de 2012 uma nova rodada de estímulo monetário devido à piora da crise, na primeira vez que as autoridades ficaram divididas com um placar de 5 a 4 desde junho 2007, elevando as compras de ativos em 50 bilhões de libras (US$ 78,6 bilhões), para 325 bilhões de libras. No G20, reunido no México no mesmo mês, os governos dos “emergentes” (BRICS) acenaram com um fundo de resgate do euro de US$ 400 bilhões, sem entrar em maiores detalhes, mas fazendo bastante propaganda. O documento final do G-20 trouxe o compromisso dos países europeus de tomar "todas as medidas para salvaguardar a integridade e a estabilidade da zona do euro, melhorando o funcionamento dos mercados financeiros e quebrando o movimento de retroalimentação negativa entre dívidas soberanas e os bancos". Entre dezembro 2011 e fevereiro 2012, o BCE emprestou mais de um trilhão de euros para os bancos comerciais da zona do euro, para reduzir os custos dos financiamentos soberanos no mercado, pois os bancos investiram parte dos fundos em títulos dos governos.

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Martin Wolf resumiu assim a situação: “Com os bancos enfraquecidos, a demanda privada combalida, a demanda governamental em contração e a demanda externa fraca, as economias frágeis provavelmente sofrerão queda de produção e desemprego mais alto que o atual, dentro de dois a três anos. A recompensa pelo sofrimento atual é mais sofrimento no futuro. Quer a Grécia seja "salva", quer não, no momento é difícil acreditar que a zona do euro atual poderia sobreviver a isso, especialmente quando o principal argumento em seu favor -o da integração econômica e financeira- está sendo destruído. As empresas, especialmente instituições financeiras, estão tentando cada vez mais equiparar seus ativos e passivos de país a país. Da mesma forma, apenas as companhias mais corajosas planejam produção confiando em que os riscos cambiais tenham sido eliminados. Já que parcela crescente do risco transnacional agora cabe ao Banco Central Europeu, o caminho para uma dissolução está mais aberto que nunca” grifo nosso).

A enorme acumulação de capital, real (ou “produtivo”) e fictício, propiciada pela formação da zona do euro, que esteve ligada de forma íntima à separação da Europa oriental e os Balcãs da União Soviética, chegou à sua estação terminal. A soma dos títulos do setor financeiro, tanto na Alemanha quanto na França, é três vezes maior do que seus PIBs. Na Suíça, o país recordista, é seis vezes maior. Até recentemente, os bancos europeus eram importantes investidores em papéis governamentais, detendo um terço do total. Apesar de começarem a se desfazer deles, sua exposição continua enorme na dívida dos governos, totalizando 2,6 trilhões, ou 7,5% de seus ativos totais. Nos EUA, a exposição dos bancos aos títulos americanos equivale a 1,25% de seus ativos.

Alemanha não deu qualquer sinal de apoiar as duas propostas que “todos” (os outros) consideraram indispensáveis para evitar o cataclismo na Europa: a monetização da dívida soberana, pelo Banco Central Europeu (BCE) e a criação dos eurobônus para reduzir o peso dos juros nos países mais vulneráveis aos mercados financeiros. A chamada "união bancária" da Europa, que colocaria o sistema bancário europeu sob proteção e supervisão únicas, faria que o resgate de um banco falido corresse por conta das instituições europeias com independência da nacionalidade da entidade falida. Alemanha, Áustria, Finlândia e Holanda se opõem porque seriam as que deveriam entrar com a maior parte de uma fatura que seria principalmente alheia. A falência da economia mundial nocauteu à Europa, cuja implosão retroalimenta essa mesma falência.

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11. A CRISE EM PERSPECTIVA SISTÊMICA

Para alguns analistas, a primeira metade da década de 2000 seria lembrada como a época em que as inovações financeiras superaram a capacidade de avaliação de riscos tanto dos bancos como das agências reguladoras de crédito. O caso do Citigroup é emblemático: o banco sempre esteve sob a fiscalização do Federal Reserve, e seu quase colapso indica que não apenas a regulamentação vigente foi ineficaz como também que o governo norte-americano, mesmo depois de deflagrada a crise, subestimou sua severidade. O Citigroup não esteve sozinho dentre as instituições financeiras que se tornaram incapazes de compreender totalmente os riscos que estavam assumindo. À medida que os ativos financeiros se tornaram mais e mais complexos, e cada vez mais difíceis de serem avaliados, os investidores passaram a ser garantidos pelo fato de que tanto as agências internacionais de avaliação de crédito de bônus como os próprios agentes reguladores, que passaram a nelas confiar, aceitavam como válidos os complexos modelos matemáticos - de impossível compreensão para a maioria das pessoas - usados pelos criadores dos produtos financeiros sintéticos, que "provavam" que os riscos eram muito menores do que veio a se verificar na realidade.

Essas análises não conseguiram ver além das causas imediatas. George Soros, em The New Paradigm for Financial Markets (2008), disse que "estamos em meio a uma crise financeira não vista desde a crise de 1929", que teria podido ser evitada: “Desgraçadamente temos a ideia de fundamentalismo de livre mercado, que hoje é a ideologia dominante, e que pressupõe que os mercados se corrigem; e isso é falso porque geralmente é a intervenção das autoridades que salvam os mercados quando eles se atrapalham. Desde 1980 tivemos cinco ou seis crises: a crise bancária internacional de 1982, a falência do banco Continental Illinois em 1984 e a falência do Long-Term Capital Management, em 1998, para citar três. A cada vez, são as autoridades que salvam os mercados, ou organizam empresas para fazê-lo. As autoridades têm precedentes nos quais se basear. Mas, de alguma maneira, essa ideia de que os mercados tendem ao equilíbrio e que seus desvios são aleatórios ganhou aceitação geral e todos estes instrumentos sofisticados de investimentos foram baseados nela”.

Para o economista norte-americano Walter Williams: “A crise foi causada pelo governo, pela Fannie Mae, Freddie Mac e outros, e pelas regulamentações do governo americano, que obrigam os bancos a concederem empréstimos a quem eles não concederiam de outra maneira. Foi a chamada Lei de Reinvestimento Comunitário que possibilitou aos pobres comprarem casa própria. Obrigaram os bancos a fazer empréstimos. [...] Eles disseram aos bancos: "Se quiser abrir outra agência, tem que nos mostrar que concedeu empréstimos a pobres, negros ou minorias." E fizeram chantagem com os bancos. A crise foi causada pelo governo”. Para Vandana Shiva, ativista indiana, presença constante no Fórum Econômico Mundial de Davos: “A financeirização da economia e a consequente redução da economia a um cassino, e os recursos do planeta em mercadorias privatizadas, são a raiz das crises ecológicas e econômicas. Estas crises não podem ser resolvidas por mais financeirização e mercantilização”. Alan Greenspan e Cia. teriam respondido, e de fato responderam, que essa política, suposta causadora da crise, foi a que evitou uma “grande depressão” em 2001. Essas explicações giram em torno de um círculo vicioso.46

E há sempre a busca do "especulador irresponsável". Em janeiro de 2008, o escândalo de Jerome Kirviel foi manchete de todos os jornais. Kirviel é julgado como responsável pela queda da Société Générale (banco francês) por ter perdido 4,82 bilhões de euros, devido a uma série

46

Paul Krugman escreveu em 2002 que "para combater a recessão, o FED precisa de mais do que uma recuperação rápida; precisa aumentar dramaticamente as despesas das famílias para compensar o moribundo investimento das empresas. E, para fazer isso, como Paul McCulley da Pimco coloca, Alan Greenspan precisa criar uma bolha imobiliária para substituir a bolha do Nasdaq”. Foi exatamente o que fez, ou melhor, o que Greenspan (o FED) já estava fazendo quando Krugman efetuou essa “descoberta”.

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de erros decorrente de má gestão. A verdadeira razão dessa crise, a explosão da bolha imobiliária dos Estados Unidos, foi relegada ao segundo plano. Em dezembro de 2008, o investidor Bernard Madoff foi investigado por um desfalque de 65 bilhões de dólares. Converteu-se no maior desfalque de todos os tempos e permitiu, pontualmente, esquecer o fracasso bancário do gigante americano Lehman Brothers. Em setembro de 2011, o especulador Kweku Adoboli foi acusado de uma fraude de 2,3 bilhões de dólares no banco suíço UBS. Esse assunto veio à luz do dia de uma forma totalmente inesperada e em meio a uma nova convulsão econômica mundial.

Na verdade, a crise evidenciou uma base sem precedentes para o colapso do sistema capitalista mundial, base que existia antes dela, pois foi criada muito antes das políticas monetárias permissivas do século XXI. Isso evidenciava já a marcha para o colapso, sobre uma base superior a qualquer crise precedente do capitalismo. A taxa média de crescimento do PIB per capita da economia capitalista mundial diminuiu de 2,6% em 1960/70 a 1,6% em 1970/80, chegando a 1,3% entre 1980/1987. O crescimento do PIB per capita da economia capitalista mundial diminuiu pela metade. A crise mundial acentuou todas as desigualdades do desenvolvimento capitalista. Nos anos 1960, todas as zonas da economia capitalista mundial cresceram, mesmo que em ritmos desiguais. A partir dos anos 1970, as coisas mudaram. Alguns países industrializados e a Ásia continuaram tendo um crescimento do PIB per capita; África, América Latina e Oriente Médio experimentam uma diminuição. Na realidade, as recessões sucessivas em 1967, 1970-71, 1974-75, 1991-93, 1997-1998 (na Ásia) e 2001-2002 não fizeram mais que preparar o drama atual. Em cada ocasião, o capital só conseguia relançar a economia mundial ao preço da abertura das comportas dos créditos, sem solucionar o problema de fundo, a superprodução crônica. Não fez mais que adiar os prazos recorrendo às dividas, e atualmente o sistema está afogado por elas.

A globalização do capital financeiro, associada com o processo da restauração capitalista na China e Rússia, não abriu uma saída de largo prazo à crise do capital, mas criou um oceano de dívidas que cobriram o planeta como bombas-relógio. No período 2002/06, a espiral da crise foi desviada e dois motores interconectados, a expansão do crédito nos EUA e o crescimento industrial da China, conduziram ao crescimento da economia mundial. Os dois motores começaram depois a parar, e o primeiro explodiu em 2007-2008. A contração da economia mundial tenta eliminar a massa de capital excedente que obstrui o processo de acumulação capitalista. O colapso do mercado subprime nos Estados Unidos desatou uma avalanche internacional de quebras e uma contração global do crédito, seguidos por uma subida sideral e, depois, por uma dramática queda nos preços do petróleo e das matérias-primas, mas, sobretudo, por uma queda e uma recessão sincronizadas da economia mundial. As três décadas de globalização do capital financeiro terminaram em catástrofe. A crise, considerada historicamente, não é conjuntural ou cíclica, como aquelas que no pós-guerra foram chamadas de “recessões” (1948-49; 1952-53, 1957-58, 1960-61, 1966-67, 1970-71), mas uma crise que atingiu limitações estruturais do capitalismo: no pós-guerra o capital usou as possibilidades do gasto armamentista, da formação de capital fictício, do desenvolvimento artificial das nações atrasadas com vistas à criação de mercados para exportar seus capitais e mercadorias. O capital mundial fez isso de modo sistemático e esgotou seus recursos nesse plano.

A natureza histórica da crise diz respeito a que esta afeta, com as relações de produção capitalistas, o sistema institucional edificado em cima delas. A explosão dos cimentos do sistema está mudando as bases da sociedade, as relações sociais e internacionais. Uma saída do impasse só poderia acontecer através de uma série de confrontações históricas entre o capital e o trabalho. As crises econômicas do século XXI (novas tecnologias, créditos subprime, produtos financeiros derivados, dívida pública) concentraram todos os aspectos que as crises precedentes conseguiram, até certo ponto, encarar separadamente. A crise iniciada em 2007 foi a culminação e a superação das crises prévias. O capital mundial passou a buscar, por isso,

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uma saída de conjunto. O Estado foi se revelando incapaz de enfrentar uma crise globalizada, depois de uma globalização capitalista que interconectou as partes da economia mundial de maneira muito mais profunda do que no passado. A posse do último recurso econômico (o Estado) não é uma panaceia universal. Devido à crise global, o Estado sucumbe diante do peso do sobre-endividamento, da ruína das finanças públicas e da incapacidade de pagar a dívida, que o leva ao default.

A crise demonstrou não somente o fracasso do neoliberalismo antikeynesiano, mas também do intervencionismo estatal neokeynesiano. Quando o Estado intervém entre interesses no conflito, converte-se no foco de todas as tensões sociais, em mediador que transforma a crise econômica em uma crise social que afeta a todas as classes. A luta pelo mercado mundial ganhou cada vez mais peso na crise, evidenciada na disputa sino-americana pela taxa de cambio do yuan. China pareceu ceder à pressão norte-americana pela revalorização de sua moeda, descolando o yuan do dólar, ao qual estava atrelado desde 2008. A decisão de flutuar o tipo de câmbio foi também uma potencial concessão ao grande capital internacional, como passo necessário para a liberalização do mercado de câmbio e o acesso do capital externo ao mercado financeiro de China.

O crescimento chinês, que converteu o país na "fábrica do mundo", baseou-se na privatização dos setores nos quais a revolução chinesa havia expropriado ao capital (empresas estatais, sistema bancário estatal) para impulsionar uma economia liderada pelas exportações ao mercado mundial e não pela demanda local, nem pelas ganâncias no mercado doméstico. Um forte desenvolvimento capitalista foi impulsionado sobre premissas não capitalistas (por exemplo, os empréstimos são outorgados pelos bancos estatais sem seguir critérios capitalistas) e, em última instância, sobre a superexploração de uma força de trabalho vasta e barata, disciplinada por um regime repressivo stalinista, a serviço do capital mundial. As desigualdades sociais entre as zonas industriais costeiras, abertas ao mercado mundial, e as zonas rurais do interior, alimentam ondas de migrantes internos até às cidades, agitação rural e contínuas rebeliões camponesas e greves operárias “selvagens” (isto é, ilegais).

China precisaria de uma taxa de crescimento anual de 9% a 10% para absorver a aproximadamente 24 milhões de pessoas que se incorporam cada ano ao mercado de trabalho, e os 12/14 milhões de camponeses pobres que migram ao setor urbano industrial. Qualquer diminuição da taxa de crescimento por debaixo dessa marca cria milhões de novos desempregados e mais material explosivo para novas rebeliões. Um “pouso forçado” da economia chinesa, de 12% a um crítico 6%, significaria um golpe mortal para a legitimidade e a estabilidade do regime restauracionista. O governo do Partido Comunista chinês está pressionado por um duplo limite: manter uma alta taxa de crescimento, concentrando seus esforços nas zonas costeiras e enfrentando a contração norte-americana e do mercado mundial, e a desintegração do interior agrário; ou cortar os laços que unem a China com o mercado mundial e construir “para dentro” um mercado interno (capitalista).

A maciça intervenção estatal mundial para salvar o capital financeiro e as finanças públicas não produziu os efeitos esperados: não houve recuperação de postos de trabalho, mas crescimento do desemprego; não houve recuperação, mas contração do crédito imobiliário e das pequenas empresas; não houve recuperação do gasto em consumo, mas subconsumo; não se sanearam os bancos sobreexpostos e subcapitalizados. O oceano de derivativos retrocedeu só um pouco. Sua função é vital para o capitalismo contemporâneo, e não pode ser abolida sem precipitar o colapso do sistema. As trocas de papéis podres por papéis ainda mais podres estão hoje entretecidas em todo o sistema. E ninguém sabe dizer qual o montante total dos derivativos, porque não há lei ou regra que diga que esses seguros não podem ser maiores que o risco segurado. Outro efeito previsível da lassidão dos grandes bancos centrais é a inflação, devida à emissão de mais moeda para dar gás às economias, fazendo aumentar os preços das

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commodities, especialmente petróleo e alimentos, a um ponto em que é inevitável elevar os juros.

Novas bolhas enormes de capital financeiro se formaram quando a liquidez disponível foi dirigida massivamente, uma vez mais, para atividades especulativas, em especial o carry trade (inversões financeiras em países com altas taxas de juros, que são financiadas pelos empréstimos em outros países com baixas taxas de juros), baseado no enfraquecimento do dólar, que alimentou a especulação, desvirtuou os efeitos do pacote de estímulos, e redirecionou o fluxo de dinheiro para fora dos EUA. Os mercados financeiros especulativos levantaram novamente voo, ainda que na esfera da produção dominassem a capacidade ociosa e a superacumulação de capital, abrindo mais ainda as tesouras entre o capital fictício e o produtivo. A dívida pública mundial cresceu exponencialmente, sem ter uma base sustentável na esfera de produção de valor. Os bônus soberanos para financiar dívidas e déficits públicos ocuparam o espaço que até recentemente possuía o mercado de hipotecas subprime, cujo colapso levou à crise. A partir de ativos e passivos dos bancos foi construído outro edifício financeiro consistente em contratos de seguros sobre esses ativos e passivos, bem como outros investimentos compensatórios (os já conhecidos "derivados"). Reduzir a crise ao “default” (moratória) dos ativos visíveis impede uma perspectiva adequada. O aumento da dívida pública desvaloriza os ativos do Estado em mãos dos bancos, o que aumenta sua incapacidade de pagamento.

Dívida pública em razão do PIB em 2007

Dívida pública em razão do PIB em 2009/2010

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A crise mundial marcou um limite decisivo à vitória ideológica obtida pelo capitalismo com o chamado “fim do socialismo”. Em menos de uma década, a ilusão da “vitória” dissipou-se, pois o processo político que levou à dissolução da URSS e à reintrodução do capitalismo na China teve lugar, historicamente, no quadro de uma crise do capitalismo mundial, sendo, justamente, alimentado por ela. A penetração capitalista na Rússia teve um caráter essencialmente destrutivo, porque não havia lugar para a produção da ex URSS em um mercado mundial saturado de mercadorias e capitais excedentes. Isto também passou a valer, crescentemente, para a China. A desintegração da URSS fora celebrada como "o fim do comunismo" e até da própria história; logo depois o capitalismo enfrentava sua implosão em seus centros metropolitanos, nos Estados Unidos, na Europa e no Japão. Os EUA e a Europa foram levados a relançar um esforço de recolonização do amplo espaço da Europa Oriental até Rússia e China, buscando uma saída à crise sistêmica.

O mito pós 1989/91 de um aparentemente triunfante sistema capitalista liberal, incluída a fantasia de um "mundo unipolar" com centro no "indisputado" império norte-americano, entrou em colapso. A completa conquista capitalista dos espaços econômicos da ex URSS e da China continua, porém, posta como objetivo estratégico, mas ela também implica o cerco militar. Na conclusão da reunião de cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, dirigida pela China, em junho de 2012, os estados-membros assinaram declaração conjunta em que unanimemente rejeitam qualquer tipo de intervenção militar como meio para resolver “questões internacionais” em qualquer ponto do mundo. A presença militar dos EUA no Afeganistão, ao longo de dez anos, as intervenções na Líbia (onde existiam, sob Khadafi, fortes investimentos chineses) e no Oriente Médio em geral, apontaram para o aperto do cerco militar dos espaços geográficos do ex “bloco socialista”.

A hoje (quase) universalmente aceita crise ecológica é, certamente, consequência da anarquia da produção guiada pelo lucro, com ou sem crise.47 A crise capitalista, porém, acentuou a depredação da natureza e a destruição do meio ambiente. A busca por recompor a taxa de lucro agravou as tendências à degradação dos recursos naturais. Se sob o capitalismo o meio natural sempre foi considerado como um recurso a serviço da valorização do capital, as épocas de crise acentuam esse caráter. A abertura do “negócio ecológico” (com vendas de direitos de emissão de poluentes, de acordos com as normas estabelecidas nos fóruns internacionais) não pode ser separada da busca de novos campos de investimento lucrativo, no quadro da crise. Muitos exemplos de empresas que comercializam emissões demonstram que instrumentos dos mercados financeiros são utilizados para ganhar dinheiro e especular sobre a natureza.

A destruição da natureza corre paralela à destruição da força de trabalho. A Conferência de Copenhague sobre a mudança climática impulsionada pela ONU foi um fiasco. Os líderes do mundo demonstraram ser relutantes em dar passos em direção da redução do perigo de uma catástrofe ecológica. O acordo final costurado entre os EUA, China, Índia, Brasil e África do Sul foi uma expressão de objetivos vagos, sem nada além do compromisso implícito de defender os lucros empresariais. Inclusive esse papel foi rasgado logo depois por alguns dos países signatários. A catástrofe da central nuclear de Fukushima, no Japão, tingiu com as cores da tragédia a degringolada antiambiental da sociedade capitalista. O terremoto que assolou esse país evidenciou, uma vez mais, que não existem "catástrofes naturais", mas consequências catastróficas a fenômenos naturais. O capital usa as catástrofes para ampliar sua dominação e

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De acordo com uma forte corrente de cientistas, a Terra ingressou numa nova era, o “antropoceno”, caracterizado por mudanças globais no meio-ambiente como produto da ação humana. Devido ao seu sucesso como espécie, os seres humanos se transformaram em uma “força geológica” de certa importância: a dimensão humana deveria ser incluída nos modelos do sistema terrestre, pois existiriam processos geofísicos potencialmente instáveis (numa listagem dos doze principais, a devastação da floresta amazônica ocupa lugar de destaque) devidos à ação humana.

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seus lucros: a forma como o furacão Katrina foi tratado em Nova Orleans mostrou uma gigantesca negociata beneficiando as grandes empreiteiras com fundos públicos.

A “Avaliação Ecossistêmica do Milênio” (Millennium Ecosystem Assessment), promovida pela ONU, é um programa de pesquisas sobre mudanças ambientais e tendências para as próximas décadas. Em 2005, 1.360 especialistas do mundo inteiro produziram uma análise científica sobre o estado e o desenvolvimento do ecossistema e seus serviços. Dos 24 ecossistemas analisados, quinze (60%) revelaram um estado de destruição avançada ou contínua. Os especialistas também apresentaram uma proposta para fortalecer e conservar esses ecossistemas. A proposta de incorporar (negativamente) o dano à natureza ao cálculo do PIB, porém, não ultrapassa os limites do sistema, e já existe, em parte, com os relatórios de impacto ambiental, que se limitaram, em geral, a abrir um negócio para empresas especializadas e uma nova fonte impositiva para os Estados capitalistas. Na variante “humanitária” da proposta, se estabelece que os habitantes e usuários tradicionais das florestas recebam uma contrapartida aos benefícios que as suas florestas trazem para o mundo inteiro: solos que contêm carbono e armazenam CO2.

Para Pavan Sukhdev,48 isso “revelaria aos tomadores de decisão o imenso equívoco cometido ao se supor que estes serviços prestados pelos ecossistemas possam não existir. Somados, podem chegar a 8%, 10%, 20% ou até 40% do PIB. No entanto, talvez seja mais importante fazer medições específicas, principalmente as relacionadas com o PIB dos mais pobres. Os resultados são estarrecedores. Eles mostram o quanto os pobres, os camponeses, a população das florestas dependem das prestações de serviço dos ecossistemas. No caso da Índia, sobretudo na economia de subsistência, esses serviços representem praticamente metade dos ingressos de cerca de 350 milhões de camponeses e populações das florestas. Na Indonésia, chegaríamos a 75%. E no Brasil, onde 25 milhões de pessoas vivem na floresta tropical da Amazônia, alcançaríamos 90%. Portanto, nos países em desenvolvimento, a natureza disponibiliza uma ampla gama de serviços para a sobrevivência dos mais pobres”.

A proposta de incorporar no cálculo econômico os serviços prestados pelos ecossistemas e os valores econômicos produzidos por eles, como a formação dos solos, a polinização, a disponibilização de água potável, a proteção contra tempestades e furacões, funções “invisíveis”, mas de enorme valor econômico, pois sem elas a sociedade não poderia funcionar, se situa fora dos marcos da concorrência e anarquia capitalistas. Mas o Estado não pode ignorá-la, o que abre uma base para movimentos ambientalistas e para contradições geopolíticas vinculadas ao financiamento das propostas, assim como para clivagens políticas e ideológicas a respeito do debate ecológico. A simples precificação dos danos à natureza somente serviria para criar um novo mercado capitalista (como já acontece com a negociação mercantil internacional dos direitos de emissão de carbono) e teria a provável consequência de agravar, no médio e longo prazo, a própria destruição ambiental.

Em junho de 2012, na conferência Rio+20, foi aprovado um documento de “consenso", imposto pela diplomacia brasileira, que deu um ultimato aos outros países para fechar uma declaração com a finalidade de salvar as aparências. O fiasco previsto levou Obama, Merkel e Cameron, entre outros chefes de Estado, a desistir de viajar à cúpula. O próprio secretário geral da ONU reconheceu que o documento final estava muito aquém do mínimo necessário, mas foi logo enquadrado pelo Brasil, que lhe exigiu elogiar o “acordo”, o que o chefe da ONU não teve problema em conceder. Até o Vaticano, que era apenas observador, conseguiu impor a retirada da menção aos “direitos reprodutivos das mulheres”.

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Chefe da “Divisão Mercados Globais” do Deutsche Bank na Índia, que coordenou o relatório TEEB (The Economics of Ecosystems and Biodiversity), estudo que pleiteia a valorização dos serviços prestados pelos ecossistemas para proteger a natureza de mais destruição.

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O impasse entre o bloco dos países periférico/emergentes, com Brasil, China e o G-77 (o bloco de 130 países "em desenvolvimento") e os países centrais, em especial os europeus, girou em torno das manobras para descarregar as responsabilidades ecológicas sobre os outros. A falta de acordo foi determinada pela crise econômica, com relação à qual a crise ambiental permanece para os governos como uma cobertura retórica. Os produtores de matérias primas querem vender “serviços ambientais”, ou seja, ser retribuídos por não explorar seus recursos naturais e compensar a poluição gerada pelos países que produzem manufaturados. Do outro lado, os países industrializados, com a Europa à frente, querem impor ao resto do mundo compromissos legais de utilizar tecnologias “verdes” que só eles possuem, para abrir um novo campo de exploração e lucro para o capital.

A Rio+20 confirmou, tal como acontecera nas conferencias sobre mudança climática em Copenhague, Cancún e Durban, (e no debate sobre o Código Florestal no Brasil) a crise do movimento ambientalista, o que não lhe impede fechar negócios: só no Brasil, as ONGs ambientalistas recebem 10 bilhões de reais anuais em doações. O fracasso da Rio+20 foi a continuidade de duas décadas de retrocesso ambiental, desde a Eco 92. A flora e a fauna foram dizimadas pelo extrativismo e pela expansão dos cultivos transgênicos com uso de agrotóxicos, a biotecnologia foi hegemonizada pelas corporações farmacêuticas, que se apropriaram dos conhecimentos das comunidades originárias sobre o uso da biodiversidade por meio dos registros de patentes. Todas as convenções da ONU criadas nas últimas duas décadas fracassaram na utopia de tentar conciliar a preservação ambiental com a ordem social existente. Os países “desenvolvidos” consomem 80% da riqueza, são os principais responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa e a mudança climática. A tese de que sob essa ordem poderia ser recuperada a temperatura media histórica da Terra, a biodiversidade e a qualidade dos solos para agricultura, recuperados os gelos polares, reparar a diminuição da massa glacial das cordilheiras e fazer retroceder os oceanos para seu nível anterior, está questionada de modo claro.

Se no passado era possível pensar em planejamento, organização e gestão de sistemas e processos energéticos sob os auspícios de um conjunto delimitado de áreas do saber, hoje o debate do meio ambiente e, acima de tudo, a necessidade sistêmica de avaliar uma grande quantidade de processos de produção, conversão, usos finais, diversidade de fontes, requer uma visão de conjunto, integrada, da energia, o que implica a contribuição de inúmeras áreas do conhecimento, para que a demanda da sociedade seja atendida com um equilíbrio das diferentes fontes primárias, e com um uso racional das mesmas, que minimize os impactos sobre o meio ambiente e a saúde. As tarefas postas pela crise ecológica ultrapassam os limites da atual ordem social, de modo cada vez mais profundo e claro, embora encoberto pela profusão de organizações internacionais e documentos oficiais que procuram aparentar o contrário.

Um programa para enfrentar a crise ecológica pode se basear nas premissas que seguem: 1) Os recursos da biosfera são limitados, e devem ser reintroduzidos depois de sua utilização pelo homem, nos ciclos naturais, sob pena de esgotá-los definitivamente; 2) A integridade desses ciclos naturais deve ser preservada; 3) A poluição pela tecnologia moderna destrói a integridade desses ciclos; 4) A luta contra a poluição é impossível no quadro da utilização dessa tecnologia e exige o recurso a outras tecnologias, racionais e não-poluentes; 5) Essas tecnologias existem ou poderiam existir, mas não são desenvolvidas ou empregadas pelo imperialismo capitalista, pois são infinitamente menos rentáveis para os capitalistas do que as utilizadas atualmente. A partir desses conhecimentos básicos, uma discussão poderia concluir com a elaboração de uma análise dos aspectos econômicos e políticos dos problemas, e com a elaboração de uma posição internacional.

Uma série de questões são claramente urgentes: 1) Fim das diversas formas de poluição, das águas, dos rios e dos solos; 2) Fim da destruição planetária das florestas, pulmão indispensável

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da biosfera e garantia da manutenção dos solos; 3) Fim da exploração irracional dos solos e das diversas formas de pilhagem e desperdício dos recursos minerais, vegetais e animais da Terra; 4) Fim da destruição sem retorno do meio-ambiente natural e das espécies vivas; 5) Elaboração de um relevamento dos problemas fundamentais que afetam a biosfera e dos processos geofísicos potencialmente instáveis, devidos à ação humana, e de suas mútuas inter-ações, para definir um programa de desenvolvimento mundial das forças produtivas sociais baseado no restabelecimento crescente do equilíbrio sociedade humana / natureza.

Na crise, a linha da pobreza (renda de menos de US$ 1,25 por dia/ pessoa) continuou a crescer, chegando a 41,7% da população mundial (mais de 2,7 bilhões de pessoas): os Objetivos do Milênio previam baixar essa porcentagem para 20,9% (1,4 bilhão), até 2015 (previsão já abandonada). A concentração de renda mundial continuou crescendo, com 1% da população detendo 40% da riqueza total. Em 2008, o desabamento dos mercados especulativos levou a uma nova onda de especulação sobre matérias primas e alimentos, com resultados sociais catastróficos (aumento espetacular dos preços dos alimentos, em especial nos países pobres). Em 2009, o número de pessoas afetadas pela fome ultrapassou a cifra simbólica de um bilhão (150 milhões a mais do que em 2003), ou seja, pouco menos de um sexto da população mundial, encerrando um período de mais de 20 anos em que vinha caindo, em parte como resultado dos projetos contra a pobreza em economias como a Índia, a China e o Brasil. A crise mundial fez com que os países que elaboraram programas de ampliação da produção alimentar por pequenos agricultores fossem “imobilizados” devido à falta de financiamento (de “doadores”).

As previsões sombrias da FAO foram superadas: antes, previa-se que um bilhão e 300 milhões de pessoas passaria fome em 2020 (a cifra foi quase atingida uma década antes). O percentual de desnutridos se situou em 16% da população mundial, retornando ao nível do período de 1990-92 (entre 2003 e 2005, a população subnutrida, pessoas que consomem menos de 1800 calorias ao dia, era de 13%, a diferença de 3% significa o ingresso na categoria de subnutridos de aproximadamente 200 milhões de pessoas). A concorrência internacional para garantir fontes de suprimentos se acirrou, com os países ricos importadores de alimentos comprando vastas áreas nos países pobres, por via estatal ou privada: o Estado chinês comprou mais de 2 milhões de hectares nas Filipinas e em Moçambique; Arábia Saudita meio milhão na Indonésia, através do Saudi Binladin Group;49 a Daewoo (Coréia do Sul), 1,3 milhão de hectares em Madagascar, por exemplo.

O aumento nos preços dos alimentos básicos foi de 24%, não como resultado de colheitas menores (redução da oferta) já que a produção de alimentos de 2009 foi só levemente inferior ao recorde atingido em 2008. O menor aumento no número de subnutridos, 10,5%, ocorreu na região da Ásia e do Pacífico, que já abriga, porém, o maior número de subnutridos, 642 milhões (a pobreza tem menos espaço para avançar), e também consequência do crescimento das economias de China, Índia e Indonésia. Nos países desenvolvidos a fome deve avançar 15%. O total, porém, é bastante inferior ao das demais regiões: 15 milhões de pessoas. Na América Latina e no Caribe, o número de subnutridos chega a 53 milhões, oito milhões a mais do que no período 2004-2006, com alta de 13%. Na África subsaariana, com 265 milhões de subnutridos, a alta seria de 11,8%. A meta posta para 2015, dee reduzir o número mundial de subnutridos para 420 milhões, não será atingida. Depois da crise alimentar, os preços dos cereais se estabilizaram 70% acima da média de 2005.50

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Sem erro, são os Bin Laden mesmo... 50

O Programa Alimentar da ONU é considerado a principal arma internacional de combate à fome. A meta da ONU era alimentar 105 milhões de pessoas em 2009, usando US$ 6,4 bilhões (pouco mais de 60 dólares por pessoa/ano). Tradicionais doadores, como os EUA, Europa e Japão, efetuaram um corte drástico nas remessas. Programas em várias partes do mundo se viram afetados: na Coréia do Norte, a meta era de alimentar 6 milhões de pessoas em 2009, mas os recursos só atenderam 1,8 milhão. As cotas também foram reduzidas na Etiópia e no Quênia. Em

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A criação de estoques reguladores mundiais de alimentos voltou à baila (o debate sobre a questão fez parte da agenda do G8+5 reunido em julho de 2009, na Itália). Mas a proposta só abriu mais frentes de crise entre países produtores (exportadores) e consumidores, ou entre países industrializados e países exportadores de matérias primas. Parte-se da constatação de que seria preciso dobrar a produção de cereais para alimentar a população global, que atingirá mais de dez bilhões de pessoas em 2050. O Japão, maior importador mundial, é o maior defensor dos estoques reguladores. Alguns parlamentares nos EUA sugeriram até a localização regional de estoques.

A proposta é defendida como ajuda no combate a especuladores nos mercados de commodities. Por trás dela, porém, esconde-se um aspecto da guerra alimentar (isto é, comercial) mundial, entre os países metropolitanos e os “subdesenvolvidos”, e entre os próprios países “desenvolvidos”, referida: a) ao controle dos estoques reguladores; b) à sua própria localização. O controle desses estoques daria ao país controlador uma arma de poder devastador na concorrência mundial. Para uma demanda estimada entre 2,8 e 3,05 bilhões de toneladas, a produção mundial de grãos (milho, sorgo, cevada, aveia e centeio) foi de 2,12 bilhões de toneladas em 2007/2008, e de 2,21 bilhões de toneladas em 2008/2009, com um crescimento de 4,2% (ela era de 1,77 bilhões de toneladas em 1990). Os estoques finais mal ultrapassam 7% da produção total.

Brasil declarou sua desconfiança em relação aos estoques reguladores, achando que os grandes produtores é que acabariam “pagando a conta” (pois deixariam de se beneficiar da alta dos preços agrícolas), e pôs em questão os subsídios agrícolas praticados pelos EUA e Europa. Não se trata só de uma disputa pela renda diferencial entre países “desenvolvidos” e “subdesenvolvidos”, mas também dos interesses dos monopólios produtores de fertilizantes, agrotóxicos e sementes transgênicas, ou seja, de uma disputa entre monopólios. A fome só “aparece” como preocupação urgente quando ameaça se transformar num terremoto social, em especial na África, e numa crise internacional.

Em muitos países mais da metade da renda das famílias é comprometida com alimentos. Com a desregulamentação dos mercados financeiros, houve uma redução nos estoques públicos voltados a mitigar desequilíbrios entre a oferta e a demanda. Os estoques globais de comida se situaram no menor patamar do último quarto de século: a sua disponibilidade é crucial para conter a alta de preços em um mercado sujeito aos efeitos das mudanças climáticas. A isso se soma a política de subsídios agrícolas praticados pelos países metropolitanos. Os elevados subsídios da Europa e dos EUA inibiram investimentos em novas plantações ou em tecnologia para tornar as terras aráveis, especialmente nos países periféricos.

A água é a outra face do drama alimentar. 1,3 bilhão de pessoas no mundo (mais de um sexto da população mundial) não dispõe de água potável, e 2,6 bilhões não têm acesso ao saneamento básico. No entanto, em 2050, pela projeção do SIWI (Instituto Internacional da Água), a quantidade de água necessária para a fabricação de biocombustíveis (que consomem 100 milhões de toneladas de cereais, 5% da produção global) equivaleria à requerida pelo setor agrícola para alimentar o conjunto da população mundial. Aumento da pobreza, da precarização trabalhista, do desemprego, da superexploração, da fome, da sede, da destruição ambiental: a crise do capital evidencia de modo brutal a tendência para uma regressão social e civilizatória sem precedentes.

Uganda, a ONU suspendeu a distribuição de alimentos para 600 mil pessoas. Em Ruanda, reduziu os cereais distribuídos de 420 gramas por dia/ pessoa para 320 gramas. No total, a “ajuda”, por todo conceito, dos países “ricos” aos “pobres” limitou-se, em 2007-2008, a US$ 29 bilhões (compare-se isso com os mais de US$ 18 trilhões – declarados – de ajuda desses mesmos países aos bancos e empresas “em dificuldades”, no mesmo período). As grandes corporações capitalistas receberam em um único ano quase dez vezes mais recursos do que todos os países pobres em meio século: US$ 2 trilhões em 49 anos para os pobres e US$ 18 trilhões em um ano para os bancos.

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12. AS REAÇÕES SOCIAIS

J'ai rien a gagner, rien a perdre Même pas la vie J'aime que la mort dans cette vie d'merde J'aime c'qu'est cassé, c'qu'est détruit J'aime surtout, tout ce qui vous fait peur La douleur et la nuit...

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Rénaud Séchan, Deuxième Génération

A crise não se limitou a acirrar as disputas internacionais entre países e blocos econômicos e a provocar profundas crises políticas tanto nos países centrais como também nos “emergentes” e nos periféricos. Depois de um estupor inicial, pela brutalidade dos ataques às condições sociais de existência, as reações sociais começaram a surgir e se generalizar, originando movimentos sociais inéditos nos centros capitalistas (como os occupy dos EUA e Inglaterra, ou os “indignados” da Europa continental), atingindo projeções revolucionárias nos países com crises sociais mais graves ou com contradições políticas mais agudas, como os países árabes ou do norte da África. Assim como a própria crise econômica, isto não carecia de antecedentes e causas precedentes.

Do ponto de vista das lutas sociais (de classe), a partir da segunda metade dos anos 1990 uma nova radicalização começou a manifestar-se: as greves de massa em 1995 na França, as revoltas “antiglobalização” que se estenderam de Seattle a Genova nessa década, a segunda Intifada palestina, o Argentinazo de 2001-2002, as manifestações de massa contra a guerra contra o Iraque em 2003, o fracasso da "guerra contra o terrorismo" nesse país e no Afeganistão, a derrota da invasão israelense ao Líbano em 2006. O “altermundialismo” surgiu, nesse quadro, como um movimento internacional, extremamente variado. Sua face mais radical foi expressa nos movimentos de protesto antiglobalização que se estenderam de Seattle em 1999 a Gênova em 2001.

Sua face mais moderada e “institucional” foi expressa no Fórum Social Mundial (FSM) reunido em Porto Alegre com 10 mil a 15 mil participantes na sua primeira edição, em 2001. Esse número cresceria enormemente nas edições sucessivas, que também se deslocaram para Ásia, África e outros países latino-americanos.52 Na origem, foi proposto como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, que se realiza anualmente, em janeiro. Aos poucos, o Fórum passou a ter uma composição hegemônica das ONGs (o chamado “terceiro setor” da economia), incluída a ATTAC (associação defensora da “Tobin Tax” sobre transações financeiras internacionais), consultora regular dos governos franceses (de esquerda ou de direita), com conferências magistrais de “grandes intelectuais” (progressistas ou nem tanto). Com as vitórias eleitorais da esquerda na América Latina (a começar pela vitória de Lula, em 2002) estes governos pasaram a ser o eixo político do Fórum, com a presença cada vez mais central de representantes governamentais (inclusive de governos em absoluto “de esquerda”).

O FSM definiu como objetivo aumentar “a capacidade de resistência social não violenta ao processo de desumanização que o mundo está vivendo”, propondo uma espécie de filantropia social destinada a criar uma sorte de “capitalismo de rosto humano”, regulável através do Direito e do reforço dos Estados. O ataque ao capitalismo restringiu-se ao “capital especulativo” (eventualmente, ao capital financeiro em geral) poupando o “capital produtivo”.

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Nada tenho para ganhar, e nada para perder / Nem mesmo a vida / Só gosto da morte, nesta vida de merda / Só gosto do que está quebrado, do que está destruído / E gosto, sobretudo, daquilo que vos mete medo / A dor, e a noite. 52

O Fórum se realizou várias vezes (em 2001, 2002, 2003 e 2005) em Porto Alegre; em 2004, na Índia; de forma descentralizada em 2006, e em Nairobi, Quênia, em 2007. A nona edição do Forum novamente teve lugar no Brasil, em Belém. Das propostas dos movimentos que compõem majoritariamente o fórum resultou, durante o evento de 2005, em Porto Alegre, o “Consenso de Porto Alegre”.

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Segundo ATTAC, “a finança especulativa parasita a esfera produtiva”. A “mundialização neoliberal” (não o capitalismo) foi definido como o “inimigo” a ser combatido.

As políticas propostas pelo FSM poderiam em geral ser definidas como: modernização dos Estados e reforma dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.); ATTAC chegou a lançar um candidato à presidência do FMI. O Estado francês, assessorado por ATTAC, chegou a financiar largamente várias das contramanifestações realizadas por ocasião das cúpulas do G7 (ou G8), as quais, porém, não foram sempre “pacíficas” (isto é, “não violentas”). O “altermondialismo” virou, na França, uma espécie de ideologia oficiosa. O FSM apontou para a “taxação das atividades especulativas para reparar os danos sociais que elas provocam”, uma política de redistribuição de renda através de programas sociais compensatórios (que seriam levados adiante não só na América Latina) baseada em uma estrutura e movimentação política de conciliação de classes (“associações de cidadãos” e estruturas assemelhadas), financiadas pelos Estados. Le Monde Diplomatique, velho suplemento mensal de um conhecido jornal cotidiano francês, beneficiário dos subsídios estatais do Estado à imprensa, passou à condição de porta-voz oficioso do alter-mundialismo, com edições em quase todo o mundo, nas mais diversas línguas.

Definido inicialmente como “o movimento dos movimentos”, o Fórum Social Mundial passou assim, gradativamente, a ser um evento turístico crescentemente despolitizado, de grande envergadura (seu deslocamento de Porto Alegre para outras cidades provocou um protesto das câmaras comercial, turística e hoteleira da cidade...), com propósitos políticos propositalmente vagos (“Um outro mundo é possível”: qual? Nas declarações do FSM não se foi muito além do “orçamento participativo”, os programas sociais compensatórios, a Tobin Tax, e a ação setorial das ONGs) e dominado por ONGs de fronteiras mal definidas entre o interesse humanitário e a ação comercial, além de uma fisionomia cada vez mais claramente para-governamental (ou seja, para-estatal). O “movimentismo”, assim, concluiu no para-governismo.

A crise foi propiciando a passagem da hegemonia de “movimentismo altermundialista” para a indignação nas praças e locais públicos. O movimento de protesto que começou na Tunísia em janeiro de 2010 se espalhou em seguida para o Egito e a Espanha e depois tornou-se global. Os protestos abraçaram Wall Street e dezenas de cidades nos Estados Unidos. Isto também não carecia de antecedentes em movimentos pré-existentes, como os “desobedientes” ou as performances das tutte bianche da Itália e as variadas alas mais ou menos anarquistas (antiautoritárias) do “altermundialismo”. Ou até antecedentes teóricos, nas críticas de Oskar Negt a Jüergen Habermas, em defesa de “uma esfera pública não institucional (estatal)”. O nome do novo movimento se inspirou num panfleto de menos de cem páginas (Indignez-vous) do ex deportado, ex resistente e funcionário do setor externo da França, Stéphane Hessel, nascido em 1917, que foi criticado por não apregoar a revolta ou a organização, mas uma atitude moral e individual (indignar-se).

O detonador do movimento, obviamente, foi a ocupação da Praça Tahrir no Cairo, na revolta que precedeu à queda do governo egípcio de Hosni Mubarak. Estes antecedentes seriam o leito de “novos movimentos”, que não nasceram, como se vê, brancos como uma folha de papel, ou virgens (isto é, carentes de antecedentes políticos e teóricos). Temps Critiques, na França, criticou a “indignação” como susbstituto da consciência política, e o panfleto de Hessel por “denunciar o exagerado [do sistema] como se esse exagero não fosse o produto de uma lógica geral” (que Hessel aceitaria de modo implícito). Roitman Rosenmann, ao contrário, reivindica nos “indignados” “o retorno da política” (em um texto, por outro lado, bastante hostil contra a “esquerda organizada”). Certamente, entre os indignados há uma forte presença de camadas sociais não proletárias, em particular uma classe média em processo de proletarização. Boris Kagarlitsky estendeu para todos os movimentos anti (e pós) globalização a qualificação de “rebelião da classe média”.

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Mas uma coisa são as tertúlias turísticas de massa do FSM, e outra ocupar praças, locais públicos e, finalmente, locais de trabalho. Mundialmente, havia uma tendência crescente à rebelião, particularmente de parte de uma nova geração de trabalhadores com empregos precários e mal pagos: desde a revolta dos subúrbios franceses em 2005 e a mobilização contra o CPE (Contrato de Primeiro Emprego) na França, em 2006, até a mobilização da juventude grega contra a privatização das universidades segundo as diretivas da União Europeia, em 2006-2007. Partindo das periferias miseráveis de Paris, a revolta juvenil iniciada na França em outubro de 2005 se alastrou para o interior das principais cidades francesas. Na passagem de 2005 para 2006, os carros voltaram a arder na periferia das cidades francesas. Mais de 25 mil policiais foram mobilizados para tentar impedir que no fim de ano, acontecesse uma “onda de violência urbana”. A mobilização policial foi extrema, o esquema foi reforçado nas áreas conflituosas, com mais 6.000 agentes. Ela incluiu a inspeção de blogs e mensagens de celular.

O total de homens escalados para o reforço de segurança correspondeu a 10% das forças encarregadas da proteção da França. A repressão se estendeu à imprensa e à informação em geral. Segundo o chefe de polícia, Jean-Marie Salanova, a “midiatização” foi o "combustível do contágio", quando a revolta, que começou em Clicly-sous-Bois (arredores de Paris) após a morte (devida à perseguição policial) de dois adolescentes, se espalhou para o resto do país. Nada disso impediu que a França terminasse o ano com cerca de 10 mil veículos incendiados. Segundo o Observatório Nacional de Zonas Urbanas Sensíveis (ZUS), o índice médio de desemprego em 2004 era de 20,7% nos subúrbios franceses, o dobro do índice nacional. Entre os jovens de 15 a 25 anos, ele afetava 36% da população masculina e 40% da feminina. Esse índice era o dobro da média nacional nas banlieues (periferais) das grandes cidades.

A revolta dos beurs (jovens franceses de origem árabe) deu, para Thomas Stowell, entre muitos outros ideólogos direitistas, o pretexto para o novo tom na criminalização da protesta social, o da xenofobia: “Enquanto o Dr. Dalrymple chama essa população islâmica de “bárbaros”, um ministro francês a chamou de “escória”, o que provocou, contra ele, uma indignação instantânea, incluindo críticas de, pelo menos, um seu colega de gabinete. Esses escrúpulos nas palavras e nos atos e a recusa em enfrentar as óbvias realidades constituem a maior parte do pano de fundo que possibilita a ruptura da lei e da ordem e a conseqüente degeneração social. Nada disso é peculiar à França. É um sintoma comum da fuga da realidade e das duras decisões que ela exige, não somente na Europa, mas também nas sociedades derivadas do continente europeu, como o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia – e os EUA. Os países europeus, especialmente, têm escancarado suas portas a um amplo influxo de imigrantes islâmicos que não têm nenhuma intenção de se tornar parte das culturas dos países que os acolhem, mas objetivam recriar neles suas próprias culturas. Em nome da tolerância, esses países têm importado intolerância, da qual o crescente antisemitismo, na Europa, é apenas um exemplo. Em nome do respeito a todas as culturas, as nações ocidentais têm recebido indivíduos que não respeitam nem as culturas, nem os direitos das populações no seio das quais eles se estabelecem”.

Em que pese a destilação desse veneno, o movimento de luta dos trabalhadores (inclusive precários e desempregados, boa parte de origem estrangeira/migratória, na Europa e nos EUA) passou a viver uma nova etapa a partir da crise econômica iniciada nos EUA em 2007, generalizada para o mundo em 2008. Depois da surpresa inicial, a revolta grega de dezembro de 2008, com um grande papel do movimento estudantil, evidenciou o início de uma resistência aos efeitos catastróficos da crise sobre os trabalhadores. Na restante da Europa começaram também a ocorrer reações operárias. Um dia de paralisação nacional aconteceu na Bélgica. Os operários da Renault na França receberam o presidente Nicolas Sarkozy, que visitava a empresa, com um dia de paralisação em protesto contra os planos de demissão da empresa.

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Em 2009, a luta social se espalhou pela Europa, com a greve geral dos estudantes na Espanha (precursora do movimento nas praças dos indignados), a luta dos estudantes ingleses contra o aumento brutal das anuidades universitárias (houve fortes enfrentamentos de rua com a polícia), as lutas na Itália contra a precarização do trabalho impulsionada pelo governo de Berlusconi. Com a crise, governos e empresários do mundo todo apelaram para o aumento da exploração do trabalho com a intensificação do seu ritmo e da produtividade, cortes de custos, retiradas de direitos, demissões, etc. Segundo relatório da OIT de 2009, o mundo tinha 250 milhões de desempregados (10% da PEA mundial), sem contar os subempregados. No auge da crise, além disso, pelo menos um bilhão de pessoas estava passando fome no mundo, a maior cifra já registrada na história. Se considerarmos a insuficiência na alimentação, essa cifra passa para três bilhões de pessoas. A ONU reconheceu que uma em cada seis pessoas passava fome no mundo. O desemprego cresceu em todo o mundo. Nos Estados Unidos atingiu oficialmente 9,5% da população ativa, o maior índice em 26 anos. Os empresários aproveitaram para reduzir direitos e rebaixar salários dos trabalhadores. Na General Motors dos EUA, a maior empresa do planeta em número de empregados, ainda que seus trabalhadores tivessem aberto mão de direitos históricos, pelo menos 35 mil deles perderam seus postos de trabalho.

A economia norte-americana tem, em 2012, sete milhões de empregos a menos do que em dezembro de 2007. No início de 2011, eram criados 180 mil empregos ao mês. Previa-se um crescimento anual do PIB de 4% (foi recalculado para menos de 2%). A renda pessoal caiu em 4%, excluídos os pagamentos de benefícios-desemprego, há quase paralisia do setor de construção, e queda de 24% no preço dos imóveis residenciais, desde 2008. O índice de produção industrial está 8% abaixo de dezembro de 2007. O cenário de crise social só piorou com os cortes orçamentários do governo Obama. Ao lado disso, os lucros das empresas dos EUA aumentaram em US$ 264 bilhões nos últimos três anos, principalmente as do setor financeiro, em uma conjuntura de recessão e crise. A pobreza nos EUA atingiu índices latino-americanos. Em 2010 havia 46,2 milhões de pessoas, quase um em cada seis habitantes, vivendo abaixo da linha oficial da miséria, incluindo 16,4 milhões de crianças. Destes, cerca da metade, 20 milhões, vivem na extrema pobreza, sobrevivendo com menos de metade do que o governo dos EUA estabelece como necessário para cesta-básica, moradia, roupas e bens de consumo.

Na Europa, os países mais afetados pela crise são exatamente aqueles em que a jornada anual de trabalho (isto é, a superexploração dos trabalhadores) é maior:

Horas trabalhadas por ano (2007)

Um salto nas lutas sociais da Europa se produziu em 2011. Na Inglaterra, em agosto, após a polícia ter baleado o taxista negro Mark Duggan, as revoltas de Londres (e, logo depois, de outras cidades) foram um reflexo da raiva e desespero de toda uma geração de jovens para os

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quais foi negado o futuro, que foram jogados na marginalidade, na criminalidade, e submetidos à opressão de todo tipo. A repressão policial nas ruas de Londres deixou o saldo de cinco mortos, dezenas de feridos e centenas de detidos. Os protestos aumentaram, em novos bairros, como Oxford Circus e Enfield, e inclusive outras cidades, como Leeds, Birmingham, Liverpool, Manchester e Bristol, o que obrigou ao governo a proceder a uma mobilização inusitada de forças - uns 16 mil policiais.

A deterioração das condições de vida era um fenômeno do conjunto do país: “A parte dura do precariado é a que foi vista nos incêndios em Londres e nas revoltas em toda a Inglaterra”, escreveu Guy Standing, postulando o nascimento de uma nova classe social. A crise social chegou no pior momento para o regime britânico que, sacudido pela crise política gerada pela revelação das escutas telefônicas de personagens ou figuras públicas por parte do império midiático de Rupert Murdoch, com a cumplicidade da polícia britânica, Scotland Yard (cujos chefes tiveram que renunciar por sua relação com o escândalo) e dos políticos britânicos. O premiê britânico, o conservador David Cameron, foi obrigado a regressar de suas férias ante a extensão da rebelião juvenil contra a força policial. Cameron assumiu com o objetivo de aplicar um rigoroso plano de ajuste frente à crise mundial, e agora devia lutar por manter seu governo. A rebelião dos jovens teve lugar enquanto os sindicatos discutiam um plano de luta contra o corte às aposentadorias, depois de protagonizar a maior paralisação de funcionários públicos em 80 anos, e no meio de uma grande mobilização estudantil contra o plano de cortes à educação.

Europa apresentou em forma condensada as tendências principais que se desenvolveram na classe trabalhadora. Greves de massa, mobilizações e passeatas massivas, ocupações de fábricas, tomada de reféns por trabalhadores, revoltas de jovens e operários em vários países na Europa (França, Itália, Grécia, Irlanda, e também Romênia, Sérvia, etc.) demonstraram a crescente combatividade da classe operária, sob a pressão do desemprego massivo, da flexibilização laboral, das reduções salariais, da destruição de direitos previdenciários, da repressão estatal. O desenvolvimento das lutas e da consciência social não foi linear, mas diverso de país a país, e contraditório.

As demissões decorrentes da crise geraram reações desesperadas na França e outros países. Em março de 2009, em três oportunidades, trabalhadores franceses fizeram reféns devido a demissões: dia 13, funcionários da Sony detiveram o presidente da empresa no país por uma noite, forçando o pagamento de indenizações maiores pelas demissões; no dia 25, o diretor de operação da 3M foi detido por um dia, sendo libertado após aceitar oferecer melhores condições aos 110 empregados demitidos; e no dia 31, os funcionários da Caterpillar fizeram reféns quatro diretores da empresa, após o anúncio do plano de cortar 733 empregos na unidade. O desespero diante da pobreza e perspectivas de piora levou aposentados ao suicídio (em Grécia, onde um aposentado suicida deixou uma carta condenando o governo e o capitalismo, e em Portugal).

Mas a reação social começou a ganhar contornos de classe, por exemplo, na greve geral na Espanha, convocada pelos sindicatos desse país. Na Espanha, o pacote de austeridade reduziu em 5% os salários públicos em 2010, e fez um corte de 600 milhões de euros nos investimentos públicos. Essas medidas foram exigências do FMI, que comprometeu três trilhões de dólares para “enfrentar a crise” nesses países. O pacote de austeridade foi enfrentado com uma massiva paralisação nacional dos trabalhadores, convocada pelas centrais sindicais. Os trabalhadores de outros países europeus também reagiram com grandes manifestações, uma resistência bem superior à de 2008. Depois dos movimentos das praças, hegemonizados pelos estudantes e a juventude desempregada, a classe operária começou a manifestar-se em greves maciças e de grande mobilização.

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As greves gerais na Grécia e na Turquia, as greves e as manifestações na França e Espanha, as numerosas ocupações de fábricas na Itália, foram uma amostra da crescente combatividade da classe operária e da juventude contra o desemprego massivo, a flexibilização trabalhista, as reduções salariais, a destruição dos sistemas sociais. No movimento de ocupação das praças em Espanha (o chamado 15-M, evocando seu nascimento a 15 de maio) criou-se um sistema de assembleias permanentes dos ocupantes, que discutiram e chegaram a definir um programa anticapitalista (expropriação dos sitema financeiro e das grandes empresas, controle social dos serviços públicos, entre outros muitos pontos programáticos discutidos e votados), demonstrando não se tratar de uma revolta espontânea e despolitizada, mas portadora de um potencial político de transformação e revolução social.

Os efeitos mais visíveis da crise nas cidades italianas (onde 10% da população possui 50% da riqueza) foram o fechamento de pequenas e médias fábricas; a crise do comércio, com o fechamento diário de inúmeras pequenas lojas. Por outro lado, nem as grandes vendas promocionais pareceram encorajar uma retomada do consumo: tornou-se raro ver filas no caixa dos grandes supermercados e tornou-se por outro lado menos incomum observar pessoas consumir produtos diretamente no local de venda (sobretudo supermercados): marginais? Não. Imigrantes ilegais? Também não. Trata-se normalmente de pessoas idosas ou de desempregados ou mesmo de trabalhadores que apesar de empregados não podem mais comprar produtos de primeira necessidade e que precisam sobreviver. Com as privatizações e “liberalizações” de segmentos do comércio e serviços levadas adiante pelo governo, supostamente para favorecer o aumento da concorrência e uma diminuição dos preços, e com um aumento dos impostos indiretos de 19% a 21% e até 23% até o fim de 2012, o cenário de miséria econômica e social da Itália mostrou a primeira etapa de uma catástrofe social, não na periferia, mas no próprio coração da Europa.

A contínua rebelião grega não foi dirigida por nenhum partido ou força organizada sobre a base de um programa. Mas não foi só expressão de espontaneidade de uma juventude que se rebelava contra a repressão policial. Na Grécia, foi reduzida a renda dos trabalhadores em até 50% nos últimos dois anos. Houve tentativas de avançar para uma greve geral política. Houve, desde 2010, 17 jornadas de paralisação geral na Grécia, e a presença constante dos jovens “indignados” na Praça Syntagma. Muitas experiências das lutas passadas foram revividas e superadas; as burocracias sindicais foram desafiadas e expulsas das assembléias gerais em diversas ocasiões. Junto com o monopólio estatal da violência, foi desafiado o controle da classe dominante sobre as informações, os meios de comunicação e a cultura. As exigências de uma reorganização das relações sociais sobre bases anticapitalistas, pela retomada da vida em todas as suas manifestações, se expressaram em espaços ocupados, em assembléias gerais abertas e em centros de ação.53

Nos últimos vinte anos, houve uma recomposição da classe operária mundial, com a incorporação de milhões de novos trabalhadores, que protagonizam novos combates de classe, na Grécia, França, Itália, Alemanha, passando pela América Latina, sem esquecer a recuperação do ativismo da classe operária russa e na Europa do Leste, dos trabalhadores sul-africanos, e da classe operária chinesa, que começou a se manifestar com grandes greves. As paralisações de 24 horas dos sindicatos europeus foram impostas pela pressão da crise e o

53

Segundo Slavoj Žižek, construíram-se duas perspectivas acerca da crise. A visão dominante proporia uma naturalização despolitizada da crise: medidas regulatórias são apresentadas não como decisões baseadas em escolhas políticas, mas como imperativos de uma lógica financeira neutra. Já segundo a visão dos trabalhadores, aposentados e estudantes, os que protestam nas ruas, as medidas de austeridade constituem uma nova tentativa do capital financeiro internacional de desmantelar o que resta do estado social. De acordo com a primeira perspectiva, o FMI aparece como um agente neutro da disciplina e da ordem; na segunda perspectiva, aparece como agente opressivo do capital global. O problema é a expressão política da segunda perspectiva, e o seu caráter de classe (ou seja, seu programa). A ambiguidade a respeito é cultivada pela “neo-esquerda” europeia. Žižek é uma espécie de filósofo oficioso do bloco de esquerda grego Syriza, cujo principal dirigente é o deputado Alexis Tsipras.

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descontentamento general da população, generalizando um método: seis paralisações gerais na Grécia, no entanto, não torceram o braço da austeridade repressiva do governo de Papandreou. Para além de todas as teorias a respeito dos “novos movimentos sociais”, caracterizados pelo uso das NTIs (redes sociais, telefonia celular, “ação digital”) os movimentos tentaram superar os impasses políticos.

Em 2010-2011, a reação anticapitalista dos trabalhadores, em especial na Europa, foi ainda fragmentada, mas importante, sobretudo na Grécia, com greves gerais e manifestações de rua e fortes encontros com a polícia, sem falar nas greves gerais da Itália, Espanha e Portugal. Grécia fez uma greve geral de 48 horas nos dias 28 e 29 de junho de 2011, data da votação no Parlamento do novo plano de austeridade, com as escolas e os museus fechados, os voos cancelados e os hospitais atendendo apenas casos de emergência. O governo grego pretendia reduzir o quadro do funcionalismo público de 750 mil pessoas para 150 mil até 2015, pondo, de imediato, trinta mil deles em paralisação técnica, com uma redução de 40% do salário.

Na Espanha, a bancarrota econômica, que destruiu o mito do "milagre econômico espanhol", com cinco milhões de trabalhadores desempregados, pôs em questão também a "Espanha das autonomias" da Constituição de 1978. Na própria Alemanha, os salários reais estão estagnados desde 1991 e ao desemprego oficial (7,6 % ou 2,9 milhões de pessoas) devem ser adicionados mais de cinco milhões de trabalhadores que recebem assistência social porque não chegam ao fim do mês com seus salários; 1,2 milhão de trabalhadores temporários subcontratados com salários reduzidos pela metade e ramos inteiros, como segurança e limpeza, relegados a empregos precários e “salários-lixo”. Registre-se também o aumento da precariedade na Alemanha e das formas que ela recobre: entre 1999 e 2009, as formas “atípicas” de trabalho aumentaram, no mínimo, 20%.

Os jovens espanhóis começaram a se reunir nas praças, denunciando a corrupção dos políticos, a destruição do serviço público, a expulsão dos locatários inadimplentes, o desemprego dos jovens (diplomados ou não), os traballhos temporários mal remunerados. Basta Ya! e Democracia Real Ya! foram as palavras de ordem que começaram a dar certa homogeneidade ao movimento. Os protestos massivos na Espanha começaram em 15 de maio de 2011 e desde então se alastraram por várias cidades do país, alimentando-se da insatisfação de milhares de pessoas cansadas de cortes salariais e demissões. Jose Maria Aznar, ex-primeiro-ministro espanhol, descreveu os indignados como um “movimento marginal, não representativo”. Respondendo à convocatória do movimento “15M”, mais de 150 mil manifestantes ocuparam em Madri a Praça Neptuno. Em Barcelona eram 270 mil e em Valência vários milhares. A “indignação” deu um denominador comum ao movimento, alimentado pela venda massiva do panfleto de Stéphane Hessel, traduzido ao espanhol pelo economista José Luis Sampedro. Um vasto programa de reivindicações anticapitalistas foi definido em assembléias que reuniram milhares de jovens (estudantes e desempregados, na sua maioria) nas “acampadas” realizadas nas principais cidades da Espanha. Depois, o programa foi “rebaixado” a quatro pontos principais (reforma da lei eleitoral, contra a corrupção, separação efetiva dos poderes, controle cidadão), sob pretexto de “simplificação e popularização”.

O caráter não político e não partidário do movimento foi enfatizado (as pessoas que falavam nas assembleias em nome de partidos ou organizações políticas eram vaiadas, e se chegou a proibir a exibição de faixas ou placas partidárias nas passeatas). Começaram a surgir críticas ao chamado “apoliticismo militante” dos “indignados”, pois, de fato, uma direção “não política” começou a impor uma normatividade (e sua política) às assembleias. Os programas discutidos e votados pelos jovens de Democracia Real Ya! foram amplamente divulgados e lidos na população em geral, que no mesmo momento votava nas eleições gerais para derrubar o Partido Socialista de Zapatero e para levar ao governo à coalizão direitista de Mariano Rajoy. Os refrénduns islandeses foram definidos como o “modelo” a ser seguido por uma “verdadeira democracia”. Zygmunt Bauman qualifica os movimentos de “emocionais”. Para ele, “embora a

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emoção seja útil para destruir, parece inepta para construir algo. As pessoas de qualquer classe e condição reúnem-se nas praças e gritam os mesmos slogans. Todos estão de acordo sobre o que rechaçam, mas haveria cem respostas diferentes se se perguntasse a eles o que desejam”. O movimento de ocupação de praças e locais públicos se alastrou por muitos países, em especial os afetados pela crise econômica. O protesto em Paris foi marcado pela detenção de 100 pessoas. Até na Austrália, centenas de pessoas protestaram na cidade de Sydney. Os manifestantes traziam cartazes com dizeres como "o capitalismo está matando nossa economia". As passeatas aconteceram também nas cidades de Melbourne, Adelaide, Perth, Townsville, Brisbane e Byron Bay. Nessa altura, nos países árabes, a luta contra a carestia já se transformara em rebelião popular, derrubando um governo após o outro.

Na Espanha, as “acampadas” e as praças foram se esvaziando, e finalmente foram dispersas pela repressão policial (mas o movimento de ocupação das praças renasceu em meados de 2012, alimentado pelos novos episódios da crise econômica e as medidas de austeridade draconianas impostas pelo governo de Rajoy, subordinado aos organismos europeus e internacionais). Em Nova York, pouco antes do prefeito Bloomberg ameaçar despejar os ocupantes do Zucotti Park, com a ameaça de despejo da ocupação, as AG’s foram praticamente desprovidas de qualquer discussão significativa. A maioria das AG’s foi tomada por relatórios dos grupos de trabalho e dos comitês, sem nenhuma discussão. A única discussão que era permitida pelos organizadores da assembleia foi para tratar da proposta limitar a tocar baterias a duas horas por dia. Ainda assim, as ocupações (repetidas e recorrentes) de Praça Tahrir e de Puerta del Sol passou a configurar um modelo de luta de repercussões mundiais (a de Nova York, Wall Street, foi só a mais famosa).

O papel das NTIs e das novas mídias (que já vinham sendo usadas desde a década de 1990, com grande sucesso, pelo movimento zapatista mexicano, por exemplo) foi um elemento marcante nas grandes mobilizações provocadas pela crise. O mundo virtual é um instrumento que foi elevado à condição de criador de movimentos; a internet, porém, não cria nada, apenas acelera a informação e ajuda a divulgá-la. O Twitter é útil, não porque divulga eventos, mas porque reúne as ideias de uma grande assembleia, para uma específica decisão, em tempo real. Noutra interpretação, ela própria seria um campo de criação de novos movimentos. De um dos mais célebres grupos de ação digital disse Quinn Norton: “A linguagem dos Anonymous é imprópria, de baixo calão, mas é deliberadamente o que é. Suas metáforas estão vivas, são criativas e efetivas, porque os anons nunca param de tentar romper a linguagem e o pensamento convencionais. De tanto querer fazer e tentar, acabaram por aprender a fazer. Quando distorcem uma imagem, distorcem como querem e o quanto querem, e para um objetivo determinado”. Nenhuma cultura emerge do vácuo, e Anonymous não é exceção. A cultura hacker e praticamente toda a cultura de computadores nasceram da movimentação contracultural dos anos 1960 e 1970.

O campo virtual, a “ação digital”, se transformou, assim, em campo de luta e também de repressão política, incluindo variados projetos estatais de censura de internet, que já existe em diversos países.54 O impacto mais espetacular do hacking digital foi causado pelo Wikileaks, site que publica em sua página postagens de fontes anônimas, documentos, fotos e informações confidenciais, vazadas de governos ou empresas, sobre assuntos “sensíveis”. A página foi construída com base em vários pacotes de programas. A WikiLeaks não é uma wiki - leitores que não têm as permissões adequadas não podem editar o seu conteúdo. A página foi lançada em dezembro de 2006 e, em meados de novembro de 2007, já continha 1,2 milhão de

54

Existem várias técnicas de bloqueio na Internet. O bloqueio a sítios, portas e protocolos TCP/IP da Internet pode ser realizada por softwares específicos instalados no equipamento que acessa a Internet, através de roteadores locais, domésticos ou empresariais, ou diretamente nos roteadores dos provedores de internet. A censura imposta à Internet em alguns países utiliza preferencialmente o bloqueio através dos roteadores dos provedores da Internet, que são mantidos sob controle de seus governos.

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documentos. Seu principal editor e porta-voz é o australiano Julian Assange, jornalista e “ciberativista”. Ao longo de 2010, WikiLeaks publicou grandes quantidades de documentos confidenciais do governo dos Estados Unidos, com forte repercussão mundial. Em abril, divulgou um vídeo de 2007, que mostrava o ataque de um helicóptero Apache estadunidense, matando pelo menos 12 pessoas - dentre as quais dois jornalistas da agência de notícias Reuters - em Bagdá, durante a ocupação do Iraque. Outro documento polêmico mostrado pela página foi a cópia de um manual de instruções para tratamento de prisioneiros na prisão militar estadunidense de Guantánamo, em Cuba. Em julho do mesmo ano, WikiLeaks promoveu a divulgação de uma grande quantidade de documentos secretos do exército dos Estados Unidos, reportando a morte de milhares de civis no guerra do Afeganistão em decorrência da ação de militares norte-americanos. Finalmente, em novembro, publicou uma série de telegramas secretos enviados pelas embaixadas dos Estados Unidos ao governo. Os telegramas diplomáticos que chegaram a WikiLeaks foram publicados em cinco jornais – The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País.

Com o decorrer do tempo, a penetração hacker em sites de segurança foi se banalizando. E assim “a 3 de junho [de 2012], anunciou-se que remanescentes daquele antigo exclusivo grupo de hackers haviam capturado 3 terabytes de dados do governo, inclusive material do FBI e do Departamento de Estado, a mídia deu de ombros. É excesso, dados demais. Mais dados do que alguém pode ler e, menos ainda, avaliar; e são dados inúteis, quando o noticiário diário já oferece tantas notícias péssimas. Em ambiente no qual todos sabemos que o presidente tem sobre a mesa uma lista de pessoas a serem assassinadas, entre as quais há cidadãos norte-americanos, difícil supor que um d0x traria algo que fizesse diferença. Depois de milhões de logins e e-mails vazados e de bancos de dados invadidos, estamos em crise de fadiga de dados” (Quinn Norton, grifo nosso). O excesso de informações, próprio da “era informática”, parece conduzir a uma crise de interpretações. O meio (a web) não pode substituir o objetivo (a elaboração política e cultural).

A isso se acrescenta que não existem greves, passeatas, ocupações de prédios públicos ou privados, virtuais. A rua e a praça, não o cyberespaço, voltaram a ser o cenário da revitalização da luta de classes. Nos EUA, houve uma marcha de 20 mil pessoas por Wall Street já no dia 12 de maio de 2011 (três dias antes do 15M espanhol), protestando contra o resgate aos bancos e os cortes no orçamento para o funcionalismo público: daí nasceu o movimento Occupy Wall Street, nos EUA55. Um ativista disse, do acampamento em Wall Street: “A qualquer momento, alguém iniciava uma marcha até o prédio de Goldman Sachs, e centenas o seguiam”. A noite de 5 de outubro de 2011 foi exemplo espetacular. Depois de uma marcha encabeçada pelos sindicatos, pelo centro de Manhattan, centenas de pessoas apareciam, em várias marchas por todo o distrito financeiro, durante horas. Com tanta gente nas ruas, ouvindo o som do apoio popular nos calcanhares, Wall Street sentiu-se vulnerável e a polícia de Nova York sentiu-se sitiada.

Occupy Wall Street foi um movimento que se apropriou de um parque público e o reconfigurou como espaço político. Instalou até uma biblioteca pública gratuita, com livros doados. No início do movimento Occupy, poucos discordaram do que se lia num dos cartazes,

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Uma testemunha relatou: “O parque ocupado fica logo depois de uma esquina de Wall Street; é praticamente do outro lado da rua, à frente do gigantesco canteiro de obras do Marco Zero. A nova sede do banco Goldman Sachs fica logo ao lado do poço das fundações do Marco Zero. Uma loja de Brooks Brothers de um lado do parque, e outra, de Men’s Wearhouse, do outro lado. Os banqueiros tiveram de atravessar o parque. Um acampado, jovem petroleiro do Alasca, contou-me que praticamente não dormira na noite anterior, primeiro porque os ocupantes faziam muito barulho e, depois, quando resolveram dormir, começaram os banqueiros, a passar por cima de seu saco de dormir, desde as 5h30 da madrugada. Se fossem pela própria Wall Street, logo veriam que todas as medidas de segurança implantadas depois do 11/9 foram reforçadas por vários bloqueios da polícia, para impedir o crescimento natural da ocupação, que levaria um oceano de manifestantes e seus sacos de dormir até a porta do prédio da Bolsa de Valores de Nova York”.

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que os que protestam são “uma única raça, a raça humana, antigamente dividida por raça e classe”. O conceito central do movimento Occupy foi: “não pode haver democracia política, sem democracia econômica”. O caráter a-classista do movimento não podia ser mais claro e explícito. A potência do movimento brotou da mesma fonte da qual jorraram a primavera árabe, os indignados na Espanha e o levante trabalhista em Wisconsin, do qual falaremos adiante. Os “indignados” norte-americanos denunciaram que um trabalhador recebia, na média, 450 vezes menos que um empresário médio, que o abismo entre ricos e pobres continuava aumentando; que se multiplicava a terceirização e a precarização trabalhista, e que os bancos não pagavam impostos. O desemprego real estava por cima de 16%, bem acima do 9,1% oficial. A renda média familiar caiu em 3.600 dólares, nos EUA, na primeira década do século XXI.

Partindo da generalização dos “empregos-lixo” e da precarização, e da cada vez mais violenta protesta social da juventude precarizada e desempregada, Guy Standing propôs a existência de uma “nova classe emergente”, evidenciada dramaticamente em 2011, nas cidades europeias, onde milhões de pessoas começariam a se ver como parte de um precariado (proletariado precário) – “e não se envergonham de afirmar tal condição, ou de reivindicar que suas inseguranças e seus interesses sejam levados em conta. A demanda do precariado por envolvimento em órgãos que tomam decisões e em plataformas de políticas sociais está crescendo. O precariado está começando a exigir representação em órgãos que determinam as condições para ter direito a benefícios do estado”. A ideia da “nova classe” fez pendant a outra exposta anteriormente por Toni Negri: a da dissolução da classe operária (das classes exploradas em geral), fadada ao desaparecimento pelo “novo capitalismo”, e substituída pela “multidão” como protagonista central do cenário social.

Segundo Standing: “O precariado está se aproximando de uma consciência comum de vulnerabilidade. Não apenas entre aqueles com empregos inseguros, apesar de muitos serem trabalhadores temporários, de meio-período, tercerizados ou em call-centers. Mas também entre os que sentem que suas vidas são feitas de partes desarticuladas, que não podem construir uma narrativa profissional ou carreira desejáveis, nem combinar de modo sustentável formas de trabalho e lazer. Pela flexibilidade dos mercados de trabalho, onde comunidades profissionais foram desconstruídas, o precariado não pode construir uma memória social, um sentimento de pertencer a uma comunidade de ética, solidariedade, orgulho. Tudo é transitório. Eles percebem, ao lidar com outras pessoas, que não têm sombra de futuro; que é improvável estarem com as mesmas pessoas amanhã. A mente do precariado não tem âncoras, passa de sujeito para sujeito, no sofrimento extremo do déficit de atenção. Mas também são nômades no relacionamento com outras pessoas. Por não terem vida profissional, os menos educados estão tornando-se agressivos, como nas revoltas aparentemente irracionais na Inglaterra, em agosto de 2011. Desconsideram o futuro, por que percebem que não há futuro a perder”. Estariamos, portanto, diante do desaparecimento do “proletariado histórico”: quais seriam as consequências desse fato?

A “esquerda institucional” (ou seja, para Standing, os PSs da Europa continental e o trabalhismo inglês) carece de propostas para esse setor (Standing omite que, em contrapartida, lhe sobram propostas para o capital). Esse setor seria uma nova classe diferenciada do proletariado tradicional (“Por que os assalariados podem obter crédito muito mais barato que os sem contrato de longo prazo?”, pergunta o autor) que está se unindo pela internet e em praças públicas. Para Standing, as experiências de ajuda social deveriam ser generalizadas para todo o planeta (Standing pertence ao corpo dirigente da BIEN [Rede Planetária pela Renda Básica / Basic Income Earth Network]): “A única forma de oferecer a segurança econômica necessária é fazê-lo ex-ante, antes que os riscos se concretizem. Há uma

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proposta para tanto: estender, a todos os residentes legais de uma determinada sociedade, o direito a uma renda básica”.56

Não se pode aceitar vandalismo e violência, diz o autor. Caso a renda básica não seja adotada, o “precariado” tornar-se-ia clientela política do Tea Party norte-americano, da English Defence League, da Frente Nacional francesa, do True Finns (partido ultradireitista bem-sucedido nas eleições gerais na Finlândia), do partido de ultradireita sueco, ou seja, da renascida (embora nunca previamente morta) extrema direita europeia. O crescimento dos nacionalistas de direita (a Frente Nacional na França; a Liga do Norte na Itália; o Partido da Independência Britânica, na Grã-Bretanha e o presidente da ex-Associação Federal da Indústria Alemã, Hans –Olaf Henkel, na Alemanha) vincula-se mais às suas propostas de fim do euro e da União Européia e à defesa de medidas populares (ou populistas) do que a propostas xenófobas, racistas e de defesa de um Estado totalitário (que, obviamente, são o conteúdo profundo de seu programa). O fascismo é, historicamente, o recurso último da burguesia contra a revolução proletária. A sua vitória na Europa, na década de 1930, foi antes do mais a expressão da impotência e da derrota prévia da esquerda (socialista ou comunista). E este é o problema político central da esquerda europeia atual.

O “subsídio universal” poderia ser (e é, onde ele existe) uma transferência de renda dos assalariados (ou dos assalariados “bem remunerados”) para os desempregados, eventualmente também para os assalariados superexplorados (de mais baixa remuneração) sem tocar nos lucros do capital (o imposto sobre o gasto, ou consumo, afeta todas as classes e camadas sociais, e afeta mais, por ser igual para todos, às classes assalariadas). Os “subsídios universais” acabam criando um patamar baixo para os salários e uma base social para os empregos precários: na França, a Renda Mínima de Inserção (RMI), 417 euros por pessoa, virou uma máquina de produzir trabalhadores pobres. A RMI foi convertida em RSA (Renda de Solidariedade Ativa). A “nova classe precária” seria incapaz, seguindo a atual filantropia social, de auto-organização, de consciência de classe e de qualquer ação política independente (sujeito histórico), só sendo apta para uma espécie de paternalismo estatal (ou seja, objeto de um “despotismo democrático ilustrado”), em um horizonte do qual estaria explicitamente descartada a “socialização dos meios de produção”. O apelo de Standing (e assemelhados) para a “consciência social” (ou simplesmente para o medo) das elites governantes (de esquerda ou conservadoras) se esgota assim em uma política de pressões sobre essas elites, prometendo-lhes a salvaguarda da propriedade capitalista. O movimento de revolta social, porém, percorreu crescentemente outros caminhos políticos. Na segunda década do século XXI, uma nova geração de jovens e trabalhadores se defronta com uma crise econômica e social sem precedentes, em condições políticas radicalmente mudadas em relação ao século precedente. As dificuldades e impasses políticos já enfrentados lhe abrem lenta, e dolorosamente, o caminho da superação política. A história tem seu papel revigorado nesse caminho.

56

A ideia de “renda universal básica” não é nova, nem pertence a uma corrente ideológica determinada: foi defendida por Ernest Mabel e Dennis Milner, em 1919; pelo trabalhista inglês George D. H. Cole, em 1935; pelo Prêmio Nobel de Economia de 1977, o inglês James E. Meade (autor de Liberty, Equality and Efficiency); por Oskar Lange (marxista polonês), em 1936; por Joan Robinson (economista keynesiana), em 1937 e por Abba P. Lerner, em 1944. O liberal Friedrich A. Von Hayek, em 1944, defendeu "a salvaguarda contra graves privações físicas, a certeza de que um mínimo de meios de sustento será garantido a todos". George Stigler, em 1946, propôs que o imposto de renda negativo seria a melhor maneira de proteger a remuneração dos que, de outra forma, ganhariam muito pouco. Até o ultraliberal Milton Friedman popularizou a defesa do imposto de renda negativo, em 1962, como “o mais eficaz instrumento para combater a pobreza”. Em 1983, Philippe Van Parijs e Robert Van der Veen, economistas belgas, começaram a defender um “subsídio universal”, apresentando-o explicitamente como alternativa ao socialismo marxista, chamando-o de “via capitalista ao comunismo” e, sobretudo, questionando que “a classe operária, inclusive quando definida amplamente, seja a força social com a qual a esquerda deveria identificar-se e se alinhar sistematicamente”. No Brasil, o senador Eduardo M.Suplicy, do PT, tenta popularizar a ideia.

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13. LUTA DE CLASSES, CRISE POLÍTICA E CRISE INTERNACIONAL The future is unwritten…

Joe Strummer – The Clash

A crise na Europa fez com que os governos do continente fossem caindo um após outro (o trabalhismo de Blair-Brown na Inglaterra, o “socialismo” de José Luis Zapatero na Espanha, a indefinível sexo/cleptocracia de Silvio Berlusconi na Itália, o direitismo/espetáculo de Nicolas Sarkozy na França, só para nomear os países mais importantes), para serem substituídos por alternativas políticas previamente existentes, em geral à direita (a vitória do PS de François Hollande, na França, foi a exceção). Na Holanda o governo liberal do primeiro-ministro Mark Rutte renunciou por não conseguir impor mais cortes orçamentários; quem lhe resistiu no parlamento foi a extrema-direita liderada pelo temido Geert Wilders, alegando que os cortes de 16 bilhões de euros retirariam poder aquisitivo aos holandeses. Em Portugal o Partido Socialista já discursa como aspirante a suceder o governo de centro-direita de Passos Coelho, sujeito a um voto de desconfiança que a cada dia parece mais provável.

Não se tratou nem se trata, porém, do tradicional jogo da “alternância democrática”, mas de uma deterioração de todo o sistema (regime) político. Nos países mais afetados pela crise (Grécia, Espanha, Itália, Portugal) se produziu uma espécie de vazio político que tendeu a ser preenchido, independentemente dos resultados eleitorais, por “governos técnicos”, isto é, governos diretos de tecnocratas do grande capital, que não passaram por qualquer escrutínio eleitoral, como exemplificado pelo governo de Mario Monti na Itália (nomeado pelo presidente da República), ou a supervisão que o FMI, a CE e o BCE exercem sobre o governo espanhol de Mariano Rajoy. A “democracia europeia” foi se revelando a cobertura de um bonapartismo de crise cada vez menos dissimulado.

Dívida pública neta (% do PIB) nos EUA, Reino Unido e Alemanha (2006 – 2017)

A suposta “estabilidade alemã” (do governo de Angela Merkel), por outro lado, é bem relativa (seu governo foi sendo derrotado em quase todas as eleições parciais ou regionais).57 As mudanças no tabuleiro político foram dadas pelo aparecimento de uma “neoesquerda”, como a Frente de Esquerda (motorizada, porém, pelo velho PCF) na França, que obteve mais de 11%

57

Fato notável é que na Renânia do Norte-Vestfália, o estado alemão mais populoso, responsável por quase 4% do PIB da União Europeia, o “Partido Pirata” obteve 8% dos votos. Os “piratas” não se reconhecem nem na esquerda nem na direita, “conceitos muito século XIX”, segundo eles. Defendem “a liberdade do lugar onde vivemos, que é a internet. A web é o nosso campo de existência”, e não tem posição oficial sobre o cenário (crise) econômico: “Ainda não compreendemos as sutilezas envolvidas” (sic). O PP enviou uma delegação à Islândia para estreitar laços com o “Melhor Partido” desse país: ao fim da entrevista, divulgou-se uma solene “Declaração Conjunta a Respeito de Nada”... O PP tem seu centro na terra natal de Karl Marx (e ai se esgota sua semelhança com este).

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dos votos nas eleições presidenciais com a candidatura de Jean-Luc Mélenchon, e, sobretudo, a coalizão Syriza na Grécia.58 Existem articulações políticas continentais que as incluem, com o Partido da Esquerda Europeia e a Esquerda Anti-Capitalista Europeia. O que distinguiu Syriza foi a proposta de recusa do “memorando de ajuste” e do plano de austeridade que a Comissão Europeia, o FMI e o Banco Central Europeu impuseram a Grécia.

Na transição de 2010 para 2011, a revolta social atravessou o Mediterrâneo e virou crise revolucionária no Oriente Médio árabe. As quedas dos governos ditatoriais árabes, em meio a gigantescas mobilizações populares, não foram uma anomalia, mas um sinal de novos tempos internacionais, além de provocarem grandes mudanças geopolíticas na região mais conflituosa do planeta nas últimas décadas. As greves nos países mais ricos do Oriente Médio precederam à “primavera árabe”. Dez milhões de trabalhadores imigrantes trabalham nos estados árabes do Golfo: Arábia Saudita, Omã, Kuwait, Bahrein, Catar e Emirados Árabes Unidos. Recebem salários que vão de 93 a 131 euros por mês, por jornadas de trabalho de 12 horas ou mais.

Em outubro de 2008, houve uma onda de greves nos estaleiros de Dubai: enfrentaram a polícia do emirado, 4500 operários foram presos. O governo anunciou inicialmente a expulsão do país de todos os detidos, mas decidiu afinal expulsar apenas 159, dos quais 90 indianos. Em novembro, a greve de 40 mil trabalhadores asiáticos da construção em Dubai levou o governo a ordenar aos ministros e às firmas de construção a reverem os salários e a definirem um salário mínimo, para diminuir a agitação operária nessa terra sem sindicatos nem direitos trabalhistas, e com uma classe operária da mais variada origem étnica e nacional. Da China até Dubai, uma nova classe operária começou a levantar a cabeça no continente asiático, gerando o teatro dos maiores confrontos sociais deste período histórico.

As greves chinesas aconteceram em empresas estrangeiras, depois de um longo período de preparação, com a emergência de representantes eleitos, organizados à margem do sindicalismo oficial, controlado pela burocracia estatal. Esses representantes apareceram fusionados com a massa de milhares de grevistas, e com posições e reivindicações claramente classistas. O poder burocrático recuou pela primeira vez em muitos anos (lembrar o massacre da Praça Tienanmen, em 1989), mostrando fraqueza política e temor a provocar uma rebelião geral nas grandes empresas. Sem direitos políticos, a classe operária chinesa pavimentou o caminho para conquistar o contrato coletivo de trabalho, em um país em que as normas trabalhistas são fixadas unilateralmente pelo Estado ou pelas empresas.

Antes da explosão árabe, Europa estava no centro da luta de classes internacional. Em novembro de 2010, 150 mil pessoas protagonizaram uma grande mobilização de rua em Dublin para rejeitar o resgate da Irlanda por parte da União Europeia e do FMI – um ataque aos salários, ao gasto social e ao emprego. Poucos dias antes, havia ocorrido uma grande greve geral em Portugal, grandes mobilizações estudantis na própria Irlanda, Inglaterra e Itália, e nas semanas anteriores manifestações em toda a França. A crise econômica se estendeu então a Portugal, Espanha e Itália, e inclusive à França, ao ponto de se colocar na pauta dos governos um desdobramento da Europa em um bloco do norte e outro do sul – com diferentes moedas (Grécia, Portugal, Espanha e Itália sairiam da “zona euro”). A rebelião árabe, que depois “cruzou o estreito de Gibraltar” para chegar às praças da Espanha, já encontrou no velho continente um terreno propício.

O centro econômico da crise mundial continuou sendo os EUA, desafiados por uma enorme crise hipotecária, industrial e fiscal – o pagamento da dívida pública é financiado pela emissão

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Συνασπισμός της Ριζοσπαστικής Αριστεράς Synaspismos Rizospastikīs Aristerás, forma abreviada, em grego, de “Coalizão da Esquerda Radical”, constituída em 2006, defendendo o aumento dos impostos para os contribuintes com mais rendimentos, o adiamento ou anulação dos pagamentos da dívida e cortes nos gastos da defesa. O "espaço" era composto por várias organizações políticas gregas de esquerda que iniciaram uma ação política comum em temas como a guerra no Kosovo e as privatizações, etc.

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gigantesca do Banco Central. Em outubro de 2009 o presidente Obama assinou o Defense Authorization Act de 2010, o maior orçamento militar da história dos EUA, não só o maior orçamento militar do mundo como também é maior do que as despesas militares somadas de todo o resto do mundo. O orçamento militar de 2010, que não cobriu muitas despesas relacionadas com a guerra, chegou aos US$ 680 bilhões. A título de comparação, em 2009 esse orçamento era de US$ 651 bilhões e em 2000 de US$ 280 bilhões. Mais do que duplicou em 10 anos.

O orçamento militar foi financiado com cortes nos gastos sociais e no sistema de previdência pública, que motivaram uma forte reação de luta dos trabalhadores e aposentados afetados no estado de Wisconsin, onde se configurou, embora regionalmente, um movimento de alcance social inédito na história contemporânea dos EUA, com ocupações massivas dos centros do poder político. Os protestos de Wisconsin começaram quando Scott Walker, governador republicano (apelidado de "Mubarak do Midwest”, o que demonstrava a clara inspiração “árabe”, internacional, do movimento) pretendeu eliminar os direitos dos funcionários públicos a negociarem os termos dos seus contratos, uma proposta vista como o maior ataque das últimas décadas contra o sindicalismo nos Estados Unidos. Walker, que foi apoiado pelo Tea Party, decretou que os funcionários públicos passassem a descontar mais para a Segurança Social e para os seguros de saúde, aliviando a carga do governo estadual. A medida permitiria poupar cerca de 150 milhões de dólares por ano.

Os líderes sindicais declararam estar dispostos a aceitar o plano, mas foram desbordados. Walker também quis rever as regras da negociação colectiva: a sua proposta de lei retiraria aos sindicatos dos trabalhadores públicos o direito de discutirem condições de trabalho, benefícios ou políticas de demissão em futuros contratos. Polícia, bombeiros e state troopers (guarda estadual) cujos sindicatos apoiaram Walker nas eleições, ficariam isentos da medida. A proposta gerou intensos protestos diários, com ocupação da sede parlamentar estadual e de prefeituras, acusando Walker de suprimir direitos dos trabalhadores. "É como se o Cairo se tivesse mudado para Madison" (capital do Wisconsin) disse o líder parlamentar republicano, em Washington. A proposta de lei de Walker foi adiada depois de 14 senadores democratas terem deixado o estado, refugiando-se no vizinho Illinois, e boicotando o quórum necessário para sua votação.

O alcance da crise sobre a China começou a configurar uma reação social em consequência do seu impacto sobre os trabalhadores do país. Patrões japoneses se surpreenderam com a resistência chinesa aos seus métodos autoritários de trabalho fabril (usuais no Japão). No geral, a crise foi marcada pela emergência de mobilizações operárias e pelo aprofundamento das crises políticas: na Grécia; nas greves de Bangladesh, China e Vietnã; nas greves francesas e na rebelião operária e estudantil na Inglaterra, Irlanda e Escócia. As lutas operárias e camponesas na Bolívia, Equador, Venezuela e Uruguai fizeram parte desta tendência, assim como a grande reação operária frente ao assassinato do ativista Mariano Ferreyra (do Partido Obrero, e em meio a uma luta contra a precarização trabalhista) em 2010, na Argentina, configurando tendências para a greve geral.

Registrou-se em diversos países uma tendência à ocupação dos locais de trabalho. As ocupações de fábricas são, historicamente, o questionamento do despotismo na fábrica, que decorre de uma necessidade do capital: a divisão do trabalho que, através dos avanços técnicos e dos graus de especialização do trabalho, faz aumentar a produtividade, acumulando mais capital. A própria acumulação capitalista conduz à crise, e esta acarreta a necessidade da eliminação dos capitais menos competitivos, com sua sequela inevitável: o fechamento e/ou esvaziamento dos estabelecimentos (as fusões capitalistas, propiciadas pela crise, levam ao mesmo resultado). A ocupação da fábrica surgiu como a medida extrema (mas, sob determinadas condições, a única realista possível) para salvaguardar as condições de sobrevivência básicas dos trabalhadores.

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O processo revolucionário dos países árabes começou com um caráter democrático geral, com uma perspectiva de classe potencial. Foi hegemonizado nas ruas pela juventude estudantil, especialmente universitária, embora com presença massiva de pessoas de todas as classes sociais. A população menor de 30 anos constitui, nesses países, entre 65% e 80% do total. No Egito, 20 milhões de habitantes (1/4 do total) vivem com dois dólares diários ou menos, depois de três décadas de privatizações e perda dos subsídios estatais para os gêneros de primeira necessidade. Em países como a Tunísia, os aposentados não têm vencimentos, os salários são muito baixos, e um milhão de pessoas com educação superior migraram para o exterior por falta de perspectivas de trabalho.

A catástrofe social foi o motor inicial da “primavera árabe” no Egito. Essas lutas mostraram um movimento operário forte, combativo e estruturado, mas não nacionalmente. Em 2006 houve 227 greves em todo o país; em 2007, essa cifra elevou-se até 580. Em 2008, houve uma greve geral convocada pelos sindicatos contra o aumento do pão, do custo de vida, e por reajustes salariais. A crise alimentar foi motivada pela alta internacional dos alimentos, provocada pela especulação desatada com a crise mundial. 389 greves e protestos houve, no Egito, nos três primeiros meses de 2008. A explosão social e política dos países árabes (ou “islâmicos”) de 2011 veio de longe. Os ex “heróis da pátria” desses países (Hosni Mubarak, Ben Ali, Muammar Khadafi) rumaram para ditaduras policial - familiares que, graças a uma corrupção gigantesca e disseminada, se apropriaram privadamente de quase todo o excedente nacional.

O estopim da crise política “árabe” vinculou-se à crise econômica mundial, pois esteve determinada pelo aumento dos gêneros alimentícios de primeira necessidade (sêmola, trigo, arroz) em virtude da onda especulativa internacional sobre as matérias primas, consecutiva à crise dos mercados financeiros. Os problemas sociais (fome, carestia, desemprego) se agravaram: a 17 de dezembro de 2010, Mohamed Bouazizi, um jovem desempregado de 26 anos, imolou-se pelo fogo em Sidi Bouzid (Tunísia) como ato de protesto (Bouazizi faleceu no hospital a 5 de janeiro) depois de ter arrancadas pela polícia suas escassas mercadorias de vendedor ambulante: a tocha humana da pobre aldeia tunisiana acendeu a revolta geral do mundo árabe. Esta não se apoiou somente nos sites da internet, no twitter e no facebook (que sabe usar), mas, sobretudo, na tradição de uma história mais que secular de luta dos povos árabes.

A revolução no Egito se desenvolveu como manifestações de rua, protestos e atos de desobediência, desde 25 de janeiro de 2011. Os organizadores das manifestações contaram com a revolta da Tunísia para inspirar as multidões egípcias a se mobilizar, assim como ocorreu em grande parte do mundo árabe. Os principais motivos para o início das manifestações foram a violência policial, as leis de estado de exceção, o desemprego, a luta para aumentar o salário mínimo, a falta de moradia, a inflação, a corrupção, a falta de liberdade de expressão e as más condições de vida. A massiva luta provocou a queda de Hosni Mubarak e seu governo, que estavam no poder por 30 anos. Contra a perspectiva revolucionária de conjunto no mundo árabe, a OTAN, a UE, os EUA, em seu conjunto, estruturam uma intervenção militar na Líbia, sob o pretexto de proteger à população civil da repressão do regime de Kadafi, provocando centenas de mortes, e visando criar uma cabeça de praia para intervir militarmente contra todos os países árabes em rebelião, e contra a luta nacional palestina.59

Ora, os países árabes e do norte da África não estavam no centro da crise econômica mundial, conhecendo ao contrário, uma fase de crescimento econômico de certa importância, em parte

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Isto, em momentos de grave crise política em Israel, ao ponto do Parlamento rejeitar, em junho de 2012, um projeto que regularizava assentamentos ilegais na Cisjordânia. Essas colônias foram consideradas irregulares até pela Suprema Corte de Israel; o país, porém, manteve sua política de expansão dos assentamentos ilegais. Segundo dados da ONG Palestine Monitor, os assentamentos ilegais e as estradas que os conectam entre si e a Israel ocupam 40% do território supostamente “palestino”, e seu acesso é proibido a palestinos. A finalização do projeto de assentamentos fará o plano de criar um estado palestino totalmente irreal.

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vinculada ao incremento dos preços do petróleo e do gás, favorecidos pela especulação sobre as matérias primas que a própria crise econômica propiciou. O “crescimento”, porém, não deu lugar a uma melhora na situação dos mais desfavorecidos, mas, ao contrário, a um aumento da polarização social e da concentração de renda. Os «países emergentes» foram situados no centro da crise mundial, porque neles a crise revelou contradições históricas mais agudas do que nos países «desenvolvidos». A revolução árabe, na sua nova fase, transcendeu seu conteúdo nacionalista, e recolocou o Oriente Médio no centro da luta social e política mundial.

O “renascimento” da luta de classes foi, assim, o elemento marcante da política mundial no último quinquênio. Depois da Espanha, Itália, Grécia, Egito, Chile, a tensão social invadiu o coração financeiro do mundo contemporâneo, Wall Street, nos EUA. A 15 de outubro de 2011, centenas de milhares de manifestantes em mais de mil cidades em 82 países de todo o mundo responderam ao chamado dos “indignados” espanhóis e norte-americanos, e se uniram em manifestações quase sem precedentes. Na Espanha, quase um milhão de pessoas marchou em 80 cidades (em Madri, houve 500 mil manifestantes).

Os protestos incluíram a ocupação de prédios destinados à especulação imobiliária. 200 mil pessoas marcharam em Roma, dezenas de milhares em Portugal. As manifestações de 15 de outubro na Itália faziam parte de toda a luta política e social prévia contra o governo de Silvio Berlusconi, que foi varrido nas eleições ulteriores; houve fortes enfrentamentos com a polícia, e vários feridos, em Roma. Nos EUA (Occupy Wall Street) o movimento demonstrou sua força e popularidade somando o apoio de milhares de pessoas, de sindicatos, e se expandiu por todo o país, incluso em estados e cidades de escassa tradição de luta social, como Las Vegas, Nevada, Florida, Texas. Occupy Wall Street inspirou-se nos acampamentos das praças centrais na Espanha, depois da ocupação da Praça Tahrir, no Cairo, no início da primavera boreal. A essa sucessão de manifestações, é preciso acrescentar vários outros protestos, como as longas manifestações na Assembleia Estadual em Wisconsin, a ocupação da Praça Syntagma em Atenas, os acampamentos de israelenses por justiça econômica.

Os “novos movimentos sociais” são de caráter heterogêneo. O que popularizou os movimentos é que, em geral, adotaram a palavra de ordem de "somos 99% (da população)" que é afetada pela crise, como afirmaram os manifestantes norte-americanos. Quer dizer: somos a maioria, com exceção de uma fina parcela de exploradores, do capital financeiro. Esses movimentos passam, por isso, uma mensagem interclassista (um sociólogo norte-americano chegou a propor, com algum exagero, que poderiam ser o berço [a]político de um neopopulismo), promovendo uma primeira reação à crise econômica e política capitalista, protagonizada pela juventude, sem ser ainda movimentos de classe. Com palavras de ordem como “somos 99%” o que se faz é ocultar (igualando todas as classes que se encontram por baixo do grande capital), e não promover, a diferenciação política e social, embora a metáfora provasse ter um enorme conteúdo mobilizador.

Ainda assim, a presença de trabalhadores nesses movimentos foi cada vez maior, marcando seu rumo futuro. A manifestação espanhola foi precedida por uma greve de professores, com passeatas junto a pais de alunos e estudantes, em defesa da educação pública. Na Itália, a 7 de outubro de 2011, 100 mil estudantes se mobilizaram contra os recortes no orçamento educacional. Na Grécia, os trabalhadores enfrentaram o plano de ajuste governamental, com passeatas de milhares de pessoas, e marcando uma nova greve geral. Ativistas de Occupy Wall Street fizeram piquetes conjuntos com trabalhadores na sede central do monopólio de comunicação Verizon, e em outras empresas. O movimento dos indignados, iniciado na Espanha, se limitava inicialmente a criticar a política corrupta ou a “crise de representação”. O adversário de classe foi sendo identificado: o resgate dos banqueiros, os planos de “ajuste”, as reformas trabalhistas, a precarização social da juventude, e se chama a resistir contra os despejos de moradias: “Esta crise não é nossa e não a pagaremos”, gritavam as passeatas italianas de professores e estudantes.

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46 milhões de norte-americanos, uma cifra inédita, passaram a viver na pobreza. Pelas estatísticas oficiais, na União Europeia a taxa de desemprego dos solicitantes com idade entre 15 e 24 anos é de 20,3%. Das revoltas árabes até os indignados de Europa e os EUA, das greves operárias da China (o país com maior número de greves no mundo) até a luta estudantil chilena, a tendência à rebelião da juventude e das massas pobres percorreu o mundo. No horizonte histórico e político mundial só há falências, danos contra os trabalhadores, reestruturação econômica e social de conjunto. A percepção da revolução social nasce quando a contradição entre as relações de produção e as forças produtivas se torna socialmente incontornável. Até os setores menos organizados e mais recentemente estruturados da classe operária mundial começaram a se mobilizar. O movimento de classe existe, e tem uma dimensão mais extensa geograficamente, e mais internacional, do que em qualquer era do passado. Defronta-se, porém, com a hegemonia teórica da defesa do “fim da classe operária” e de um discurso político centrado na luta contra a desigualdade social, não na luta de classes.

Para David Harvey: “Um dos primeiros objetivos do movimento [Occupy] “Wall Street” é mudar as discussões, redirecioná-las de volta à questão da desigualdade social. E, particularmente, não apenas a desigualdade da riqueza, mas a desigualdade de poder político, a falta de formas democráticas de governo, e nesse sentido penso que o movimento obteve sucesso na mudança da discussão. Agora, até mesmo o Partido Democrata dos Estados Unidos discute sobre desigualdade social, o que o aterrorizaria uns dois anos atrás. Isso, porém, é apenas um tiro inicial, e penso que a grande questão agora é como organizar um movimento social que seja amplamente anticapitalista”. O anticapitalismo passa assim a ser o ersatz do socialismo, como objetivo social e político. Historicamente, todos os movimentos começam por um recusa (o “anti”), mas só se transformam em alternativa efetiva ao definir seus próprios objetivos.

Os acontecimentos mundiais, a persistência e agravamento da crise internacional do capital, deixaram perceber o ingresso em uma nova fase histórica, em todos os continentes, uma etapa que pôs novamente no tapete os problemas políticos não resolvidos das etapas precedentes. A convulsão no mundo contemporâneo marca claramente uma transição desde o período prévio, dominado pelos efeitos diretos do colapso da União Soviética, a uma nova ascensão internacional de lutas nacionais e sociais nos últimos anos do século XX e nos primeiros anos do século XXI, a uma polarização das forças sociais que avança para grandes confrontações em todo o mundo. Não há espaço para concessões históricas à classe operária, como sucedeu depois da Segunda Guerra Mundial; pelo contrário, a salvação do capital financeiro é compensada com a destruição dos serviços públicos sociais (educação, saúde, pensões e aposentadorias públicas, etc.) e das condições de vida da população empobrecida.

Nas últimas décadas, houve efetivamente um refluxo do movimento operário e da consciência de classe, um fortalecimento da sua dominação ideológica, especialmente depois do colapso da União Soviética. Mas não aconteceu um retrocesso histórico da magnitude do ocorrido nos anos 1920 e 1930, com o triunfo do fascismo em países como Itália e Alemanha. Pelo contrário, o que se manifesta é a crescente incapacidade da classe dirigente para governar em meio às suas irresolutas contradições políticas e econômicas, enquanto a capacidade de combate e o potencial político transformador não foram destruídos. O círculo vicioso da austeridade que agrava a recessão e o endividamento não se interrompe, achatando a produção que não encontra mercado suficiente devido ao desemprego e aos cortes salariais.

O desespero e a revolta começaram a ganhar contornos de classe. A Europa do Sul (Grécia, Espanha, Itália) se projetou como a ponte entre a primavera árabe com os trabalhadores, os desempregados e as massas empobrecidas da Europa, que já estão nas ruas e nas praças. A Europa começou a apresentar os signos clássicos da polarização política, inclusive no terreno eleitoral, com o avanço da esquerda em quase todas as eleições de 2011 e 2012, assim como a notada nova presença da extrema direita, na sua versão tradicional (a Frente Nacional da

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França, de Marine Le Pen) ou neonazista (Grécia, com a “Alvorada Dourada”). Mas é justamente em Grécia que se produziu o mais espetacular avanço da esquerda com a votação, em 2012, do bloco de esquerda Syriza, transformado no árbitro da política do país, ao ponto de conseguir impedir a formação de um governo dos partidos favoráveis aos acordos e o “memorando” da chamada troïka (FMI, EU, BCE).60 O pleito foi vencido pela Nia Dimokratia, coalição conservadora, com 29,9 %. Em resposta ao convite desta última para participar de um governo de unidade nacional, o Syriza anunciou sua decisão de ficar na oposição. Syriza enfatizou as bases do seu “plano de reconstrução nacional” contrário ao memorando de “resgate” repleto de cortes (em salários, pensões, investimentos públicos, políticas sociais) formulado pela troïka (FMI, UE, CE).

Em junho de 2012, Étienne Balibar, filósofo francês, Vicky Skoumbi, editora da revista αληthεια (Atenas) e Michel Vakaloulis, sociólogo, lançaram um apelo europeu em defesa da esquerda grega, transformando a luta política da Grécia em uma questão continental e internacional. O programa do Syriza, que se posiciona por “salários decentes e uma vida decente”, e por “uma Grécia realmente europeia” (na UE), ou seja, uma “esquerda radical” com um programa que não rompe com o marco político-institucional vigente: “Encontraremos nossa própria justiça. Proporemos obstáculos às medidas [de austeridade] e ao resgate [da troika]. É a única opção viável para a Europa”: a 17 de junho de 2012, a Syriza conseguiu quase 27% dos votos, um aumento de 60% em relação à eleição prévia de 6 de maio, 1,6 milhão de votos e 72 cadeiras no Parlamento de um total de 300.

Um professor de Coimbra generalizou: “As condições do combate político em escala europeia e em escala nacional mudaram. Há uma inequívoca derrotada nas eleições francesas e gregas: a troika e a sua receita estúpida e incompetente para a Europa. O campo dos talibãs da austeridade ficou fragilizado. E se é certo que do novo presidente francês não se ouve a palavra ruptura, não é menos certo que no centro do seu compromisso eleitoral estava a renegociação do pacto orçamental imposto por Angela Merkel. Esse vai ser o teste decisivo à intensidade da mudança: ou a social-democracia hoje personificada em François Hollande se limita a uma adenda ao neoliberalismo - que o aceita e não quer mais do que "humanizá-lo" - ou tem a coragem de lhe contrapor com clareza e coragem outra estratégia, outro horizonte e outra cultura económica e política”. Ora, o novo presidente francês, François Hollande, tem insistido num plano de 120 bilhões de euros para reativar as economias da região. Segundo El País, contudo, o rascunho da resolução nesse sentido insiste em: desregulmentação dos mercados de trabalho e sistemas de proteção social; “nenhum ou quase nenhum estímulo keynesiano”, isto é, mais do mesmo.61

Syriza, com seu segundo lugar nas eleições de junho de 2012, não admitiu nenhum tipo de acordo político que não contemplasse a anulação do “memorando de ajuste” assinado pela Grécia com a Comissão Europeia e o FMI. Este memorando, que acompanhou o refinanciamento da dívida grega, impôs cerca de 150 mil demissões adicionais na administração pública, maiores cortes nas aposentadorias e nos gastos sociais, e uma série de arrochos e privatizações. Syriza propôs também um condicionamento para o pagamento da divida externa: que uma auditoria internacional determinasse sua legitimidade, e inclusive uma nacionalização parcial dos bancos. Syriza não podia fazer um acordo governamental com

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Desde a queda da ditadura militar, em 1974, a Grécia era tida como um dos países politicamente mais estáveis da Europa. Juntos, a Nova Democracia e o Pasok (socialdemocracia, da Internacional Socialista) somavam tranquila e repetidamente 85% dos votos. Em 2009, o Pasok obteve uma vitória histórica de 45% nas eleições parlamentares; o Syriza teve 4,5%. Na disputa realizada em maio de 2012, Syriza quadruplicou a percentual para 17%. 61

O próprio presidente do BCE, Mario Draghi, propôs em a deputados europeus, um “pacto de crescimento”. Mas por trás desta expressão, se enxerga sobretudo a adoção do que chama de “reformas estruturais” (que liberalizariam ainda mais os mercados de trabalho) e, em hipótese alguma, medidas de relançamento da economia por meio de investimentos públicos.

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a direita para não perder sua base popular, que vai incontestavelmente para a esquerda. O novo mapa político pôs a retirada da Grécia da zona monetária do euro e da União Europeia, mas Syriza, que está a favor de manter a Grécia dentro dessa aliança, embora a Comissão Europeia insistisse em que a recusa do “memorando de ajuste” é incompatível com a continuidade da Grécia na zona do euro e na União Europeia (que inclui países que não estão na zona monetária, como Grã Bretanha, Dinamarca, Suécia, Polônia e outros). Um cálculo do Financial Times estimou em 80 bilhões de dólares para a França, e em 110 bilhões de dólares para a Alemanha, a perda que a saída da Grécia provocaria nesses países.

O preço da Grécia “europeia”, por isso, é enorme. Em meados de 2012, as indústrias farmacêuticas deixaram de entregar medicamentos aos hospitais públicos, após meses fornecendo sem receber. Cirurgias foram adiadas em grande número e faltam itens tão básicos como seringas e gaze. O Tesouro grego anunciou que, sem recursos, poderia ser incapaz de pagar os salários dos servidores públicos. A troika ofereceu destravar o equivalente a 9,6 bilhões de dólares para Grécia, mas os dirigentes gregos deveriam cortar mais US$ 14,5 bilhões do orçamento de 2012, num país onde o índice de desemprego é de 22% e ultrapassa 50% entre os mais jovens. A única maneira para Grécia não pagar esse preço e impor os custos da crise aos especuladores financeiros que lucraram com sua dívida pública seria, exatamente, sair da UE, mas Syriza que manté-la dentro e não pagar (ou, ao menos, não pagar todo, mas pagar só o que a auditoria determinar: mas, quem faria a auditoria?).62 O impasse grego é o próprio impasse da esquerda europeia, largamente hegemonizada pelo programa de negociar os danos da crise, não de romper a lógica (capitalista) que levou a ela.

Em Portugal um quinto do eleitorado votou o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista (PC), que ganhou 40% dos votos nas áreas industriais importantes. O Die Linke (Partido de Esquerda), na Alemanha, tem tido algum sucesso eleitoral e tem sido capaz de cortar o crescimento da extrema-direita a nível nacional, mas também diminuiu seu discurso anticapitalista. Na Itália, a liquidação do governo Berlusconi, a crise escancarada da Lega Nord, deram lugar a um “governo técnico” (Mario Monti), em condições de liquidação do Partido da Refundação Comunista (PRC), devido à sua participação no governo Prodi, que precedeu Berlusconi, e a administração de cortes sociais e ataques contra a classe trabalhadora na base do chamado “pragmatismo político”, que levou ao colapso quase total do partido que representava a alternativa de esquerda no país. A crise da esquerda hegemônica na Europa na década de 1990 é terminal.

Na Escócia, o governo minoritário do Partido Nacionalista Escocês, (SNP), eleito em 2007, evocou um suposto arco de prosperidade, formado por Irlanda, Islândia e Noruega, uma idéia que foi enterrada exatamente na Islândia. Certamente, em vários países europeus, organizações de extrema-direita, sectárias e racistas, e foram capazes de ganhar espaço com as táticas de tornar bodes expiatórios da crise os imigrantes e as minorias. Muitos dos principais partidos deram-lhes legitimidade, tomando para si aspectos do programa dos racistas, como fez a UMP francesa, partido de Sarkozy (que, no entanto, foi derrotado nas eleições presidenciais de 2012 pela candidatura de François Hollande, do Partido Socialista). Na Irlanda, um quarto dos que vivem do subsídio de desemprego tem menos de 23 anos de idade. Isso ainda não provocou oposição e protestos em massa, mas campanhas como a Youth

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O principal dirigente do Syriza escreveu, no Financial Times: “A Coalizão Syriza é hoje, na Grécia, o único movimento político que pode oferecer estabilidade econômica, social e política ao nosso país. Uma Grécia renovada contribuirá para dar novas bases a uma Europa mais solidamente unificada. A estabilização da Grécia, no curto prazo, trará benefícios para a eurozona, num momento crítico na evolução da moeda única. Se não alterarmos nosso rumo, a austeridade, ela sim, acabará por nos jogar para fora do euro.[Queremos] reformar o regime de impostos de modo a equalizar a riqueza e a renda de todos os cidadãos; e distribuir equitativamente a carga tributária”. Para seu assessor-mor Slavoj Žižek: “A coalizão não traz a voz da “loucura” da extrema esquerda, mas a voz do falar racional contra a loucura da ideologia dos mercados... Ao salvar a Grécia de seus ditos “salvadores”, salvaremos também a Europa”.

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Fight for Jobs (Juventude em Luta por Trabalho) fornecem um veículo para que os jovens se interliguem e organizem.

A luta dos estudantes pela educação pública volta a ser, nos mais diversos países, o combustível da luta social. Em 2012, ela renasceu no habitualmente “tranquilo” Canadá. A greve dos estudantes do Québec adotou o slogan “Isto é uma greve de estudantes e uma luta popular” (la grève est étudiante, la lutte est populaire). Durante o desenvolvimento da paralisação, sem precedentes no país, todos os setores da sociedade se juntaram aos estudantes em oposição ao governo do Partido Liberal. Os protestos diários incluíram os casseroles (com potes e panelas), os panelaços que aconteceram por todo Québec, repercutindo em pequenas cidades e regiões. A legitimidade do governo foi questionada por milhares de manifestantes que desafiaram a “lei especial 78”, utilizada para criminalizar manifestações, com 300 mil nas ruas de Montreal. Um forte papel coube à Coalizão contra as Taxas de Utilização e Privatização do Serviço Público (Coalition Opposée a la Tarification et Privatisation des Services Publics), criada na primavera de 2010 em resposta ao orçamento de austeridade, incluindo organizações comunitárias (anti-pobreza e em prol da saúde e habitação), o movimento estudantil e vários sindicatos locais de trabalhadores.

Os estudantes, organizados pela Associação por uma Solidariedade Sindical Estudantil ou ASSÉ (Association pour une solidarité syndicale étudiante) mobilizaram um grande número de pessoas. A Coalizão bloqueou escritórios do governo, como a Hydro Quebec e a Bolsa de Valores de Montreal (enquanto acontecia a greve dos estudantes). As reivindicações levantadas pela Coalizão passaram das demandas defensivas – contra os cortes sociais – para a discussão da educação gratuita, novas habitações sociais, e uma renda mínima garantida. Por não focar suas ações apenas nos interesses de seus próprios membros, o movimento estudantil tem recebido a solidariedade de outros setores sociais.

Na América Latina também estão presentes os elementos de uma virada social e política. Ela encontra o obstáculo do histórico atrelamento das direções sindicais ao aparelho de Estado, desenvolvida ao longo de décadas em todo o continente, e particularmente marcante no Brasil. As bases jurídicas dessa estrutura sindical não foram suprimidas, mas revitalizadas, para obter maior fatia dos R$ 2,5 bilhões (bem mais de US$ 1 bilhão, total do imposto sindical no Brasil em 2011) distribuídos entre as nada menos que seis centrais sindicais brasileiras e o MTE. O oficialismo sindical também é nutrido pelos dutos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, que arrecadou R$ 50 bilhões (quase US$ 30 bilhões) em 2011 e que, desde 1990, vêm repassando centenas de milhões para as centrais sindicais ofertarem cursos de qualificação profissional. O processo de cooptação e subordinação do sindicalismo de Estado se completa com a participação dos sindicatos nos fundos de pensão, que precisam valorizar suas cateiras de ações: a valorização do portfólio de ações requer que o “fundo dos trabalhadores” se volte contra os direitos dos trabalhadores.

A “primavera dos povos” iniciada no Oriente Médio chegou, porém, à América Latina pelo extremo sul do continente. As grandiosas greves educacionais no Chile, o movimento dos “pinguins”, em defesa da educação pública e de maiores recursos para a educação, se realizaram em convocatória conjunta com a central operária do país. Em 2011, três meses de mobilizações massivas dos estudantes chilenos mudaram a face do país. A 28 de abril, pressagiando o grande movimento que se desencadearia em Junho, realizou-se a primeira mobilização nacional de universitários, de instituições públicas e privadas, contra o elevado nível de endividamento que têm de assumir para acederem ao ensino superior. Em maio, começaram a sentir-se ventos de mudança quando trinta mil pessoas se manifestaram em Santiago e vários milhares em diversas cidades.

Pouco antes, tinham-se dado importantes movimentos regionais, como em Magallanes, contra a subida do gás e em Calama para conseguir benefícios da produção de cobre na zona, assim

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como recuperação de terras e greves de fome dos mapuches. A seguir, juntaram-se outras reivindicações, das vítimas do terremoto de fevereiro de 2010 em habitações de emergência, dos sindicatos do cobre que paralisaram as minas, mas foram os estudantes secundários e universitários, com greves massivas, manifestações e ocupações de escolas, exigindo ensino gratuito e de qualidade, os que transformaram a situação dando outra dimensão às mobilizações e acuando o governo de Sebastián Piñera. Os estudantes procuraram manter a participação das bases, realizando assembléias onde todos davam opinião e decidiam. Mostraram grande criatividade na forma dos protestos, aparecendo cada dia nas ruas com uma novidade: disfarces, bailes, imitações de suicídios coletivos, beijos em massa, corpos nus pintados, corridas ao redor do palácio de La Moneda (sede do governo chileno), imitação de pregadores, imobilizações nas ruas, lenços engenhosos. Procuram assim, não só chamar a atenção, mas também integrar outros setores e demarcar-se dos atos de violência. Repararam os danos causados à margem dos protestos, pintando fachadas de casas ou juntando dinheiro para o proprietário de um automóvel queimado.

O modelo educacional chileno foi implantado pela ditadura de Pinochet e desenvolvido pelos governos civis que lhe sucederam. Menos de 25% do sistema educativo é financiado pelo Estado e mais dos 75% restantes dependem dos pagamentos dos estudantes. O Estado apenas consagra 4,4% do PIB para a educação. Existem hoje 60 universidades no Chile, a maioria privadas. Os estudantes têm que pagar mensalmente entre 170.000 e 400.000 pesos chilenos, num país em que o salário mínimo é de 182.000 pesos e o salário médio 512.000 pesos. Esta situação faz que 70% dos estudantes chilenos utilizem o crédito universitário.

Na Argentina, grandes lutas sociais, pelo salário, contra o fechamento de empresas (existem centenas de empresas ocupadas contra seu esvaziamento ou fechamento), contra as demissões e as terceirizações (precariedade trabalhista) estiveram presentes nos últimos anos. Isto teve expressão política direta nas eleições presidenciais de 2011, que deram 54% dos votos para Cristina Kirchner: a Frente de Esquerda, encabeçada pelo Partido Obrero, com um programa claramente anticapitalista e socialista, se transformou na quarta força política do país, abrindo uma etapa política inédita, em que uma esquerda declaradamente socialista e revolucionária se perfila como uma alternativa política real.

Até no México, em meio à campanha para as eleições presidenciais de 2012, em uma universidade privada, a Universidad Javeriana, ligada à igreja católica e à Companhia de Jesus, vaiaram o candidato do PRI, Enrique Peña Nieto durante sua visita à instituição, e denunciaram a repressão da polícia contra camponeses, ocorrida em 2006 em San Salvador de Atenco, quando o candidato presidencial era governador do estado. Dali em diante, um movimento espontâneo, denominado “Yo Soy 132” (eu sou 132), arrebatou o México. Predominantemente juvenil, apesar de reunir integrantes de todas as camadas da população em seus protestos – nas ruas e nas redes sociais – a movimentação, que surpreendeu o país, acendeu as esperanças de uma “primavera mexicana”. Desde seu surgimento, em 11 de maio de 2012, o movimento produziu um giro político radical no México. Assessores do candidato atribuíram o protesto a “grupos manipuladores e agitadores”.

Como reação, 131 estudantes do centro educativo da Cidade do México fizeram um vídeo em que, com documentos de identidade em mãos e um por um, assumiram sua responsabilidade. Milhares de universitários de instituições públicas e privadas somaram-se aos primeiros 131 (“Yo Soy 132”). Uma manifestação gigante ocorreu na capital e repetiu-se em cinquenta cidades, com participação de aproximadamente 100 mil pessoas. No México, segundo o censo de 2010, existem pouco mais de 14 milhões de jovens que têm entre 18 e 24 anos de idade, 5,9 milhões vivem com recursos abaixo da “linha de bem-estar”, 1,3 milhões vivem em extrema pobreza, com renda menor de 70 dólares mensais. Os jovens são, também, o setor mais atingido pela violência. Ela multiplicou-se com a estratégia de militarização, adotada pelo governo de Felipe Calderón contra o crime organizado e o tráfico de drogas: entre 2001 e

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2010, mais de 92 mil pessoas entre 18 e 24 anos morreram no México de forma violenta, 25 jovens mortos diariamente.

No Brasil, nos oito anos de governo encabeçado por Lula, praticamente a totalidade das direções políticas e sindicais da classe operária e do campo foi integrada ao Estado. O Brasil foi um palco de especulação financeira internacional, que inchou sua capacidade de consumo e, até certo ponto, de investimento. Os trabalhadores e as classes médias viram no “lulismo” um fator de integração, de ascensão social e de progresso econômico ininterrupto, uma situação que começou a mudar em 2010-2012. Além de incorporação de numerosos dirigentes aos diversos escalões do Estado, a cooptação baseou-se no fortalecimento dos aparelhos sindicais com base nas contribuições compulsórias.63 A quase completa desmobilização social, com escassas exceções, foi a tônica dominante nos últimos anos. Desde 2009, frente à crise e as demissões, se produziu uma recuperação das lutas operárias, inclusive em setores estratégicos. Grandes setores de assalariados, como metalúrgicos, bancários, petroleiros (estes, pela primeira vez em greve em 14 anos, em 17 plantas e refinarias), operários da construção e de correios, cruzaram os braços e ganharam as ruas em defesa de seus salários e reivindicações. Desde 1995, as estatísticas comprovam que a produtividade do trabalho aumentou 14%, enquanto os salários se mantiveram no mesmo patamar. Nos anos de 2009 e 2010, ocorreram 964 greves no país, segundo o Dieese. Os números são os maiores da década.

As lutas sociais no Brasil em 2011 (na construção civil e nas obras do PAC, no Norte-Nordeste; nos bombeiros de RJ, na educação em diversos estados, na administração em Rio Grande do Norte, no funcionalismo municipal de Fortaleza e Salvador, nas universidades federais e estaduais, na saúde em Alagoas e São Paulo, em fábricas químicas e metalúrgicas) se desenvolveram de modo isolado, sem coordenação. Os cortes no orçamento federal, e também nos estaduais e municipais, ameaçaram provocar uma crise institucional. Foi o que se evidenciou na greve salarial, em fevereiro de 2012, das polícias e bombeiros militares de Bahia e do Rio de Janeiro, que fazem parte da coluna vertebral do Estado e sustentam a repressão social. Em junho de 2012, depois da declaração de greve dos professores universitários, todo o funcionalismo público federal do Brasil (um milhão de trabalhadores) decretou greve. O projeto de lei que congela o salário dos servidores por 10 anos já estava sendo posto em prática. O Brasil foi entrando no ritmo político continental e mundial.

Ao recrudescimento internacional das lutas de classe se opõe a preparação e lançamento de novas guerras. A guerra continuou sendo, no último quinquênio, a maior manifestação da barbárie. O governo Obama retirou as forças norte-americanas do Iraque, para reforçar sua presença no Afeganistão e no Paquistão. O “Af-Pak”, junto com Oriente Médio, é um cenário bélico provável para o início de uma conflagração de vastas proporções. China alertou oficialmente que um ataque planejado dos EUA sobre o Paquistão seria interpretado como um ato de agressão contra a própria China, cujo mar litoral já é patrulhado pelos próprios EUA. E já se iniciou uma nova guerra de rapina pela África. A escalada do esforço bélico no Afeganistão decidida pela administração Obama manifesta tanto a continuidade como o fracasso da chamada "guerra contra o terror", começada pela administração Bush, contra quem Obama foi eleito. Na mesa diplomática mundial, os EUA estão colhendo os frutos de seu retrocesso no Iraque e no Líbano, cenário das últimas guerras, e no Oriente Médio em geral.

Na Líbia, as potências europeias e os EUA iniciaram um movimento de intervenção militar contra a rebelião árabe, com milhares de missões de bombardeio e deixando dezenas de milhares de mortos, ao tempo que intervinha para impor uma direção política conciliadora

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Entre fins dos anos 1970 e meados dos anos 1980 ocorreu um forte impulso pela autonomia sindical no Brasil. As oposições sindicais e os trabalhadores que empreenderam lutas realizaram uma dura crítica à estrutura do sindicalismo de Estado. Esta fase de retomada das mobilizações da classe trabalhadora brasileira na luta contra a ditadura militar ficou conhecida como “novo sindicalismo”. O “sindicalismo atrelado” foi, no entanto, reciclado na “transição democrática”.

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(incluindo figuras do antigo regime) à rebelião contra o regime de Khadafi, em uma perspectiva política intervencionista que abrange todo o Oriente Médio. Os porta-vozes das potências repetem todo dia que a Líbia não pode se tornar um novo Iraque (ou um novo Afeganistão), referindo-se à necessidade de salvaguardar o aparato estatal do antigo regime para evitar a desintegração de um país com grandes reservas petrolíferas. As manobras diplomáticas encobrem a carreira das multinacionais para tirar proveito na "reconstrução" da Líbia.64 A luta contra a ditadura na Síria está repetindo, em versão talvez mais grave, esse cenário, pela preparação de uma intervenção militar externa (da OTAN).

Algumas frases proferidas pelo presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, de que quer "riscar Israel do mapa", seriam para os EUA (e para Israel) a "prova" de que o Irã pretende lançar um ataque nuclear contra o Estado judeu, o que justificaria uma guerra contra aquele. Os EUA poderiam usar Israel como bucha de canhão, justificando a sua entrada na guerra logo em seguida. Mas o exército israelense também está desmoralizado desde a derrota para o Hezbollah no Sul do Líbano, em 2006. O eventual ataque contra o Irã é o pivô da preparação de um cenário de guerra geral no Oriente Médio e na Ásia Central, que ameaçaria as fronteiras da Rússia e da China. Quando imposto pelas armas, um embargo transforma-se num ato de guerra. É por isso que os embargos econômicos rapidamente acabam por se tornar em ações militares, como o demonstra a experiência de duas guerras mundiais. O governo do Irã declarou que seu país estava preparado para negociar o programa nuclear, mas rejeitava a imposição de "condições prévias".

A crise da coalizão “ocidental” em torno das perspectivas bélicas na Ásia Cental e no Oriente Médio reflete o conflito de interesses entre os governos dos EUA, Europa e Rússia, não apenas quanto ao programa nuclear iraniano, mas, sobre assuntos geopolíticos mais amplos. A Rússia não tem qualquer objeção à guerra da OTAN no Afeganistão, é até favorável. Mas a Rússia ressente-se, sim, de a OTAN monopolizar a guerra; a guerra deveria ser “democratizada”. Mas Moscou anunciou que "não colocará em risco o vínculo político com potências regionais". E Rússia já disse que não aceita um “escudo antimíssil europeu” (controlado pelos EUA), contra um mais do que improvável ataque nuclear iraniano contra Europa (porque o Irã não tem a bomba, e está longe de tê-la), escudo situado fora da órbita direta de influência russa. Rússia tem parceiros europeus importantes, como Alemanha, França e Itália, para garantir que a OTAN não entre em confronto direto com a Rússia. O imperialismo dos EUA sobrevive através de um complexo de compromissos internacionais e enfrentando uma inédita comoção interna.

O cenário das guerras, e as próprias guerras, já estavam postos antes da atual fase da crise mundial. A crise, com todas suas consequências sociais e políticas, pôs esse cenário em outro patamar. Esse patamar põe as tensões internacionais lado a lado com a perspectiva da revolução social, redefinindo a época do imperialismo como uma “era de guerras e revoluções”. A “globalização” capitalista teve como efeito principal a tendência para a unificação dos ritmos históricos em todas as regiões do planeta. A análise histórica retoma assim plenamente seu lugar no debate contemporâneo. Entre o novo que ainda não se explicita, e o velho já falido, mas ainda não substituído, se desenvolve a crise, ou seja, a transição para um futuro ainda indeterminado, mas virtualmente desenhado pela própria crise, e ao alcance da ação humana consciente e dotada de um projeto histórico.

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O chanceler da França “considerou lógico que os países que apoiaram os rebeldes sejam privilegiados na hora da reconstrução”. A chancelaria da Itália (país com histórica influência na Líbia, que colonizou de 1911 até 1943) esclareceu que seu país “não disputa uma carreira colonialista contra a França para ver quem chega primeiro à Líbia”. Os EUA, por sua vez, consideraram necessário “sair ao passo da impressão criada de que a França e Reino Unido estão sendo os autênticos artífices” da “libertação” da Líbia. É, claro, uma corrida colonialista disfarçada. China foi sendo relegada no novo realinhamento médio-oriental das potências, depois de reconhecer que negociou vender armas a Khadafi em plena guerra civil líbia: China manteve bloqueado o descongelamento dos fundos líbios, reclamando garantias para seus investimentos no país, e teve de organizar uma operação relâmpago de repatriamento de mais de 36 mil trabalhadores chineses, depois de cancelados numerosos contratos.

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