a criança atual - cristina corea

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A criana atual: uma subjetividade que violenta o dispositivo pedaggicoCristina CoreaFonte: www.estudiolwz.com.arDificilmente exista hoje uma palavra mais comum e mais encobridora para nomear-se o mal estar social do que a palavra violncia. Quando isso ocorre, quando as palavras nomeiam algo e o encobrem ao mesmo tempo, estamos diante de uma boa ocasio para pensar. Com a palavra violncia ocorre, em princpio, que todos sabemos do que estamos falando: estamos de acordo de que a violncia algo ruim, que deve ser tratada, apaziguada, desalojada. No obstante, enquanto tratamos de precisar o que a violncia no discurso social, qualquer situao ou episdio se nos afigura manchada pela violncia. E ali onde se produz o encobrimento; porque se todo fato social violento, a possibilidade de pensar a violncia nos escapa como areia por entre os dedos. ali onde se convm fixarmos alguns limites, precisar o vis da interveno em torno da violncia. No tanto para defini-la, mas para decidir, acerca de um problema especfico, o que o violento em uma dada situao na qual se intervm com o objetivo de elucida-la. Em primeiro lugar, ento, vou situar o problema em torno do qual se produz a violncia especfica de que quero tratar: o esgotamento da infncia moderna no contexto do discurso miditico produz a obsolescncia do dispositivo pedaggico. A experincia do Estado nao transcorre em uma escola na qual infncia e futuro so sinnimos. A experincia do discurso miditico transcorre numa situao de pura atualidade sem futuro nem passado; com crianas que so figuras potentes e onde no h promessas para os adultos. No discurso miditico habitamos a velocidade e o instante, e ali a lgica do relato e do tempo em progresso no edificvel: nem amanh, nem futuro, somente a pura atualidade do agora. Assim como no existe infncia sem amanh, no existe educao sem futuro. Sem crianas-alunos no existem professores nem escola. Sem infncia, a educao se converte em um anacronismo. De modo que a apario de uma nova subjetividade infantil, que podemos chamar de a criana atual, criana autnoma ou criana sujeita a direitos, todas elas figuras miditicas da infncia, violenta em sua emergncia quase desmesurada o dispositivo pedaggico moderno. A tese deste trabalho sustenta, portanto, que a situao educativa atual, o anacronismo do dispositivo pedaggico referente s novas figuras da criana, gera violncia. Partindo de uma perspectiva semiolgica, a violncia no pode ser seno discursiva. Isto quer dizer que a violncia, em tais condies, um descolamento entre o enunciado e a enunciao, um descolamento entre o lugar que o dispositivo pedaggico atribui ao pedagogo e ao aluno e o excesso com que se apresenta a criana atual com relao a esse lugar. Seja por que no existe uma infncia, mas muitas, seja por que no existe um tipo de criana, mas vrias e simultneas, seja por que a criana j no um ser dbil, pois sabe, pois escolhe, pois no deve ser formado para o futuro, e sim para o que est bem equipado e capacitado para desempenhar na atualidade em que habita, o certo que esse tipo subjetivo irrompe violentando o sistema de lugares que o dispositivo escolar do Estado havia estabelecido. E o mais srio que irrompe no somente para violentar o lugar do no ser a que o dispositivo o havia confinado: irrompe tambm para desestabilizar a figura do adulto-pedagogo que se havia institudo no dispositivo; irrompe para desestabilizar o saber que o dispositivo havia acumulado, pacientemente, a respeito das crianas. Se algo nos envolveu a mestres e adultos com a infncia moderna, foi precisamente a capacidade transformadora da educao. Mas, o que era transformar por meio da ao educativa? Era transformar aquilo que ainda no era, o que era de um modo rudimentar e inepto um outra coisa: uma criana em um homem de bem. Do que se deduz que se a criana um ser pleno, como acontece agora, a capacidade transformadora da educao passa a ser imediatamente questionada. E isso ocorre no s por que a educao foi concebida como transformao daquilo que no era em algo razovel para o futuro, e sim por que aquilo que a criana possui de potencia atual no est produzido pelo discurso escolar, nem pelo discurso estatal; est produzido, sim, pelas prticas miditicas: o que a criana pode, o que ela , se verifica fundamentalmente na experincia de mercado, do consumo e dos meios: pode escolher produtos e servios; pode operar aparatos tecnolgicos; pode opinar; pode ser uma imagem... Agora bem, sem referencia a figura do pedagogo e a tarefa educativa: o que somos e o que ns adultos de hoje fazemos frente s crianas? E ainda: continuamos sendo adultos? Se as crianas so autnomas, se sabem o que querem, se podem escolher... O que foi feita da funo formativa dos adultos sobre as crinas? E o mais srio: que tipo de responsabilidade temos para com as crianas, quando no se lhes mostra mais os caminhos? Propor-lhes modelos de ser? Proporcionar a elas o saber necessrio para desenvolverem-se no futuro? Qual a ndole da responsabilidade adulta se que adulta quando a criana no mais inocente? Inclusive quando, se for o caso, a criana for imputvel, ou seja, responsvel? Do que ns somos responsveis? As perguntas so radicais, e qualquer tentativa de contesta-las est ameaada de violncia, pois corre o risco de cobrir, com uma representao disponvel mas inadequada, a radicalidade do problema. Todavia, no vou contestar as perguntas, mas examinar as condies discursivas nas quais elas so formuladas. Mais do que contesta-las, gostaria de diferencia-las, explicitando a srie de consequncias que se abrem ao formula-las. Vou confrontar o discurso pedaggico e o discurso miditico em umponto que parece decisivo para pensar o problema da violncia como descolamento entre os discursos: como instituem os tipos subjetivos em relao com o saber.Antes de tudo, o discurso miditico, ao contrrio do discurso pedaggico, no produz saber, mas apenas informao. A diferena entre saber e informao no temtica, mas enunciativa. Vale dizer, os mesmos temas podem ser tratados como saber ou como informao Do que depende? Do tipo de operaes discursivas que se De qu depende? Del tipo de operaciones discursivas que se desenvolvem com certos dados se que se pode assim chamar-se o material discursivo por fora de uma ou de outra operao. Enquanto o saber a condio da enunciao do conhecimento, a informao a condio da enunciao da opinio. Enquanto o saber acumulativo, hierarquizado e textual, a informao instantnea, sem hierarquia e hipertextual. O primeiro se registra por meio da escritura. A informao pela via informtica. Todas as operaes do saber requerem, para levarem-se a cabo, a condio de um tempo acumulativo, e a presena de dois lugares enunciativos: um que transmite e outro que recebe. Esta a chave porque a subjetividade instituda em torno do saber ou em torno da informao radicalmente distinta: em um caso, estamos diante da figura do professor, do mestre, do sbio e seus correlatos necessrios: aluno, estudante, discpulo. Na esfera da informao apenas uma figura se produz: o operador ou o consumidor. No primeiro caso, estamos diante de sujeitos intencionalmente legitimados em posies distintas acerca da transmisso do saber e no segundo caso ante sujeitos que podem manejar ou administrar indistintamente a informao necessria no momento oportuno. O decisivo aqui que as operaes produzem dois tipos subjetivos distintos: ali onde o saber requer dois lugares diferenciados pela enunciao da autoridade, a informao institui somente um: o do operador, que se conecta informao segundo suas prprias necessidades. Portanto, se uma situao regulada em princpio pelo discurso pedaggico dominada pela lgica da informao, ou se a subjetividade pedaggica destituda, de fato, pela subjetividade miditica, o descolamento entre os discursos produz violncia.

O saber opera diferenas enunciativas, simblicas e jurdicas que resultam impertinentes na lgica da informao. E aqui deve-se levar em conta que estamos falando de um saber institudo sobre um dispositivo de poder e de autoridade especfico, que dos estados nacionais. O estado respalda as diferenas enunciativas institudas em torno do saber que, por seu turno, instaura as figuras da autoridade. No dispositivo pedaggico, o saber se transmite sempre desde uma posio de autoridade. Mas acontece que ns vivemos uma poca de desfalecimento do Estado; segundo a tese do historiador Igncio Lewkowicz, assistimos o esgotamento da potencia instituinte do estado enquanto nao. O que significa que no existe posio de autoridade, legitimada a partir do Estado, de onde se enuncia o saber. Esta condio histrica afeta gravemente o dispositivo pedaggico; sem posio de autoridade os agentes do saber oscilam entre o autoritarismo e o caos; o saber, tomado pela lgica da informao, se dissemina em opinies, pareceres, pontos de vista. E a lgica da informao no requer autoridades nem delegados. Para ela no existem requisitos, nem saberes prvios, nem hierarquias.O discurso pedaggico, aqui entendido como o dispositivo educativo da infncia no itinerrio histrico do estado nao, pensou muito sobre como subjetivar indivduos com a transmisso do saber: pensou as prticas, pensou as operaes, o registro e a avaliao do saber. A pergunta se essas prticas e essas operaes so eficazes em condies de informao e no mais de saber. O que acontece, por exemplo, quando por automatismo do hbito, tratamos a informao como saber? Uma primeira resposta que , alis, uma evidncia da experincia que no acontece nada. Que o dispositivo pedaggico se torna inoperante e ineficaz em sua capacidade de produzir efeitos transformadores. Esse terreno de inoperncia a por aberta ao tdio, frustrao tanto por parte dos mestres como dos alunos, dos grandes e dos pequenos. , desde j, a porta aberta para a violncia. A pergunta, que retorna : quais so as operaoes de subjetivao em condies de infromao e quando a subjetividade instituda j no a do mestre ou do sbio, j no do aluno ou do discpulo, mas dos operadores e consumidores?

Abandono e abuso: uma representao da criana atual

Existem duas figuras que encarnma o rosto das crianas de hoje: o abandono e o abuso. Com a mesma velocidade com que a violncia semantiza qualquer situao social, o abandono e o abuso semantizam a violncia atual exercida sobre as crianas. A infncia de nossos dias uma infncia abandonada ou abusada, se ouve frequentemente. E assim, com as crianas declaradas vtimas fechamos o expediente. No obstante, tambm aqui convm deter-se. Porque ambos significantes encobrem ao mesmo tempo em que enunciam. Ningum duvida de que uma criana da rua seja uma criana abandonada. Ningum duvida que a infncia assassina, tanto como suas vtimas, vem de crianas maltratadas e abusadas. Mas quanto risco de abandono corremos no que diz respeito abusiva autonomia infantil? Quanto abandono no elogio de sua fortaleza e de sua lucidez? Quanto abuso na explorao da autonomia e responsabilidade das crianas? O abandono e o abuso so os modos comuns mais representados, conhecidos e digeridos de tratar a criana atual: sabe-se e ningum duvida, explica-se e sentencia-se sobre a infncia abusada e abandonada. Contudo, como costuma ocorrer com as representaes, h nelas um excesso, um abuso. H abuso dos termos por um excesso de saber. No abandono, h um excesso de representao da autonomia infantil. No abuso, um excesso da representao da responsabilidade da criana por causa de seus direitos. Ali se produz o encobrimento: o excesso de saber encobre a impossibilidade dos dispositivos atuais de escutar de modo genuno a voz da criana. Quando as crianas tm voz, perdem sua inocncia e adquirem fortaleza. Os adultos correm um risco permanente de abandono e de abuso se a relao com eles se joga em torno do saber. Porque dessa alteridade nada sabemos. preciso pensa-la. Dificilmente algum saiba mais sobre as crianas do que o discurso pedaggico. Mas tudo parece indicar que as operaes do dispositivo pedaggico moderno, educao baseada no princpio da autoridade delegado pelo estado, formao para o desempenho futuro, transmisso de saber, perderam sua eficcia. Talvez persistir em educa-los, conhece-los, representa-los, faze-los conhecerem mais de si prprios, hoje no seja outra coisa do que renegar as crianas. Talvez tenhamos que aprender a ensinar sem educar, a pensar sem saber, a enunciar do modo autnomo a figura da autoridade requerida na situao e no a que o Estado havia representado. E de como algum se autoriza sem representao: isso uma criana hoje.

Referencias bibliogrficas:Cristina Corea, Pedagoga del aburrido, Revista Palabras. Letra y cultura de la regin N.E.A. N1, Bs. As., Primavera de 1995Cristina Corea; Ignacio Lewkowicz Se acab la infancia? Ensayo sobre la destitucin de la niez. Bs. As., Ed. Lumen-Humanitas, 1999Oximoron, La historia desquiciada. Tulio Halperin Donghi y el fin de la problemtica racionalista de la historia., Bs. As., Ed. Ignacio Lewkowicz y otros, 1993