a corrida dos ratos - rafaelrrezende.files.wordpress.com · e matar um ser humano é uma dessas...

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1 Rafael Alves Rezende A Corrida dos Ratos Brasil em guerra CAPÍTULO 4 Janeiro 2016

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Rafael Alves Rezende

A Corrida dos Ratos

Brasil em guerra

CAPÍTULO 4

Janeiro

2016

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IV

A tomada das bocas

Não há como evitar as consequências existenciais do assassinato,

mesmo que a justificativa seja nobre, como legítima defesa, por

exemplo; na verdade, não há como evitar as consequências

existenciais de nenhuma escolha que fazemos, muito menos do

assassinato. Seja qual for o motivo, a justificativa ou o pretexto para

matar alguém, o assassino sempre carregará o peso existencial do ato.

E não estou falando das consequências judiciais que enfrentará ou do

estigma social que vai carregar; estou falando das consequências

trágicas inevitáveis para a consciência do homicida. Dostoievski teve

de gastar mais de seiscentas páginas para dar conta da consciência de

Raskolnikov, e mais uma centena para analisar a desgraça causada aos

envolvidos...

Mano, digo isso porque todas as escolhas humanas, por menores que

sejam, afetam o equilíbrio natural da existência, criam a realidade que

habitamos e contam a história que estamos escrevendo, afetando tudo

que nos rodeia; e não é apenas a física quântica, os xamãs e as

ciências de vanguarda que argumentam isso, mas qualquer um que

ainda não tenha sido adestrado pelas ideologias dominantes ou

enganado pela própria conveniência, consegue enxergar o que digo;

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mas certas escolhas que fazemos tem o poder de criar um estrago

nessa dimensão e de repercutir em muitas outras dimensões, criando

ondas energéticas que afetam muito além do que os olhos podem ver;

e matar um ser humano é uma dessas escolhas que fazem estragos. “A

voz do sangue do teu irmão clama a mim desde a terra... E agora

maldito és tu desde a terra, que abriu a sua boca para receber da tua

mão o sangue do teu irmão”... Isso é bíblico, e foi Éder quem leu pra

mim, como a profecia do meu tormento, e desde então essa foi a

sentença que passou a ecoar de maneira ensurdecedora em minha

consciência e a afetar todas as minhas escolhas; sei que não apenas eu,

mas todos os outros soldados do Movimento passaram a ser

atormentados por causa do sangue em suas mãos. Não há como fugir

das consequências de nossas escolhas e é por isso que somos escravos

de nossa liberdade... somos as escolhas que fazemos.

Se você, caro leitor, reconhece que possui uma consciência ou alma

ou espírito ou como queira chamar, que é algo além de apenas um

nome ou um corpo ou um cérebro... se você já assistiu a alguns

documentários sobre física quântica ou se no silêncio você sente a

eternidade vibrar em ondas por todo o corpo, de algum modo você

sabe que é uma consciência que habita essa realidade, e que com essa

consciência faz escolhas. Então é necessário que reconheça que você,

ou sua consciência, é o produto de suas escolhas. Se você já se

percebeu como um ser consciente, que pode fazer escolhas livres em

qualquer direção, que pode até mesmo extinguir a própria vida, você

se tornou responsável por suas escolhas e pelo personagem que

escolheu interpretar.

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Existir, concentrado leitor, implica numa responsabilidade absoluta!

Implica no fato de que teremos de nos responsabilizar por cada

escolha que fizermos. Numa época como a nossa, em que fugimos

desesperadamente da responsabilidade de ser e existir, essa reflexão

soa como uma profecia maldita... mas é com esse decreto existencial

irrevogável que o sol nos desperta todas as manhãs. Como lembrou o

mano Sartre, só não somos livres para deixarmos de ser livres.

Nós do Movimento escolhemos matar pessoas para alcançar o poder

político. Nós nos preparamos para a dor, para a perda e para a traição

e por isso nos tornamos mais fortes. Buscar o poder implica em certas

transformações existenciais, mas isso não é novidade na história

humana, acontece desde que o ser humano surgiu sobre a face da terra

e pelos motivos mais banais e mais odiosos; no nosso caso, a

justificativa era nobre: fazer justiça ao injustiçado povo brasileiro!

Mas durante toda a nossa ‘aventura’ de tomada do poder, eu me

perguntava se o que fazíamos era motivado por justiça ou por

vingança; quando vejo aqueles pais desesperados na televisão após o

assassinato de seus filhos, clamando por justiça, sempre me pergunto

se o que eles querem é justiça ou vingança; e acredito que alguns

deles, se a lei permitisse, fariam a mesma maldade com o próprio

assassino e chamariam tal ato de JUSTIÇA, em maiúsculo.

Nós gostávamos de acreditar que nossos planos eram motivados por

um forte senso de justiça e isso era muito enfatizado por Dom em seu

diálogo com os outros membros do Movimento, mas depois que li

Memórias do subsolo, aquela porra daquele livro amaldiçoado, minha

consciência nunca mais me deixou em paz e esse argumento da

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‘justiça’ não conseguia mais me convencer. “Dostoievski, seu filho-

da-puta”, eu pensava angustiado enquanto refletia sobre as palavras do

homem do subsolo; eu queria parar de refletir sobre aquilo tudo e

aquela voz amarga não se calava em minha mente; eu queria apenas

não ter chegado àquelas questões... mas quando se ultrapassa certas

linhas de compreensão, não há mais como voltar atrás e aquilo me

angustiava demais; a justificativa que me fez chegar até aquele lugar e

aquele momento, já não alimentava meu espírito, mas eu não poderia

abandonar o Movimento no momento em que nos aproximávamos de

nosso objetivo... eu não conseguia conceber a ideia de abandonar o

Movimento e desperdiçar todo o trabalho e as energias que tínhamos

investido em nosso empreendimento, eu não tive coragem de

sacrificar aquilo em que eu já não acreditava... algo precisava ser

sacrificado, porque a escolha é sempre um ritual de sacrifício de algo!

Se eu escolhesse ouvir minha consciência, teria de sacrificar minha

participação no Movimento e abandonar tudo; se eu escolhesse

permanecer no Movimento, mesmo não acreditando mais em minhas

motivações, teria de sacrificar minha consciência... então foi aí que

sacrifiquei minha consciência e decidi me entorpecer, obviamente que

não com drogas, porque substâncias químicas não tem o poder de

entorpecer a consciência. Entorpeci-me com coisa muito pior: com a

total e completa satisfação de meus desejos.

Meus desejos se tornaram minha bússola existencial e aos poucos

entorpeceram minhas percepções de modo leve e gostoso. Pertencer

àquele contexto satisfazia quase todos os meus desejos: eu tinha

dinheiro, tinha poder, tinha criatividade a ser explorada, tinha

objetivos, metas, etc., e isso me bastava.

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E foi assim que minha participação no Movimento se tornou intensa.

Um homem sem consciência pode realizar feitos inimagináveis,

alcançar objetivos inalcançáveis, pois nada o pode frear, nem as regras

sociais, nem os princípios morais, nem o peso na consciência, pois já

não a possui. Uma consciência perspicaz e afiada é um infortúnio sem

igual, que lateja e faz doer até a cabeça; quem me dera eu tivesse a

consciência dos homens comuns, a consciência daqueles que, por

viverem submersos em sua rotina diária de sobrevivência e por

sentirem-se confortavelmente amparados por seus preconceitos e

ilusões, não se aprofundam em reflexões e questionamentos mais

essenciais.

Infelizmente não fui coroado com tal consciência débil, e pra evitar o

infortúnio de uma consciência perspicaz por muito tempo, me tornei

um homem sem consciência e o objetivo de minhas ações passou a ser

a satisfação de meus desejos, minhas vontades e meus impulsos, quase

sem restrições, até porque quando se tem o poder nas mãos, é difícil

não utilizá-lo em benefício próprio, é difícil se controlar ao invés de se

entregar descontroladamente aos desejos mais impulsivos e

caprichosos; eu senti o doce sabor do poder e era como se meu

espírito gozasse intensa e constantemente, minha autoconfiança

aumentou vertiginosamente e eu chegava a ter sensações prazerosas,

como arrepios e calafrios.

Comecei a usar o poder que tinha alcançado, cansei da minha vida

anterior de humildade e intelectualidade, como um São Francisco de

Assis das ciências humanas, e agora eu queria poder, eu queria

desfrutar de todos os benefícios que aquele poder podia me dar, sem

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qualquer restrição, até porque eu sou um cidadão da pós-modernidade,

um sujeito sem ideologia, um filho da banalidade, um habitante da

hiper-realidade; apenas me entreguei ao espírito de minha época.

Permiti que meus desejos me controlassem e assim desci aos lugares

mais sombrios da minha alma. Já imaginou o que é descer aos lugares

mais sombrios da alma e lá permanecer? Já imaginou o que é

relativizar o mundo todo ao seu redor apenas pra justificar suas

escolhas e aprovar seus caprichos? Já imaginou o que é cegar os olhos

da alma para não enxergar as próprias debilidades?

Sei que você, caro leitor, não apenas imaginou, como provavelmente

deve estar incorrendo nos mesmos erros... e não profiro isso como

julgamento, é apenas a constatação de que a natureza humana, em

toda a sua hediondez, está sendo carinhosamente cultivada em nosso

interior. Somos os mestres do autoengano!

E foi assim que minha participação no Movimento se tornou intensa e

a tomada das bocas foi o rito de passagem; se um verdadeiro rito de

passagem deve ser marcado com sangue, o nosso foi especialmente

sangrento.

Fumávamos excessivamente em nosso Centro de Inteligência

enquanto discutíamos sobre como montar nosso exército pra invadir

as bocas de fumo, e emergindo daquela fumaça densa Marcinho teve

uma ideia que nem mesmo ele levou a sério, mas acabou expondo a

todos: “Vamos montar um exército com as crianças de rua! Ninguém

se importa com elas, são necessitadas de tudo, de amor, de atenção, de

cama para dormir e teto pra se abrigar; é só darmos abrigo, comida,

atenção e treinamento e faremos um exército de elite, com soldados

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motivados e dispostos a dar a vida por nós. Já imaginou um exército

de esfarrapados tomando o poder?”.

“É exatamente o que faremos!”, falou Dom, “Essa engenharia social

ainda está se formando na minha cabeça, mas é com eles que faremos

nossa ‘revolução dos excluídos’! O povo, desde o mais fundo poço

que um ser humano pode chegar, se revolta contra seus opressores e

os esmaga sem dó; os moradores de rua, os comedores de lixo, os

invisíveis sem identidade agora gritam em alto e bom som e se fazem

ouvir!”, e Dom estava radiante com a ideia e transmitia essa

empolgação em suas palavras, “Os moradores de rua são a própria

essência de nossa revolução, pois se os brasileiros são injustiçados por

seus governantes, os mais injustiçados de todos são os moradores de

rua; eles são cuspidos por todos e não tem nada a perder e ainda são

sagazes porque tem que sobreviver nas ruas, à mercê da maldade de

todos. Nós vamos tirá-los das ruas, resgatar sua dignidade e dar um

significado a suas vidas, além de um objetivo a alcançarem, e aí não

haverá como frear a força desses revoltados! O Movimento será a mãe

desses desgraçados e eles darão a vida pela revolução!”.

Marcinho, sem acreditar muito na empolgação de Dom, já desferiu a

primeira crítica: “Seria genial se os mendigos não fossem tão idiotas e

retardados”, e deu uma risada debochada de quem só tinha dado uma

ideia idiota qualquer e algum otário, no caso Dom, teria acreditado em

algo desse tipo, e continuou o que dizia, “esses mendigos-micróbio

retardados só querem encher a cara de cachaça o dia todo! Se você

mandá-los escolherem entre um fuzil e uma garrafa de vodca, pode ter

certeza que escolherão a vodca! Hahaha. Você quer montar um

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exército de bêbados?” e Dom respondeu, “nem todos os moradores de

rua são mendigos ou bêbados, e aqueles que não são basta educá-los e

teremos o maior exército de indignados da história! Eles lutarão por

qualquer causa ou ideologia, porque o sistema criou monstros que não

tem nada a perder e que lutam sozinhos pra sobreviver, e nós só

vamos juntar esses abandonados e dar um motivo pra lutarem!”.

Éder, que tinha apenas escutado a discussão, balançou a cabeça em

sinal de reprovação, pensou alguns segundos e disse, “Porra Dom,

Marcinho tem razão, esses desgraçados já se entregaram totalmente e

não tem força de vontade pra nada, nem pra sair do lixo; minha tia faz

esses trabalhos solidários na igreja dela, leva comida pra esses caras

na rua, conversa com eles, mas esses desgraçados não tem motivação

pra nada, só pra vadiar, já perderam toda a capacidade de mudança...

como é que alguém que perdeu as forças pra mudar a própria vida,

pode mudar o Brasil?”; e a ideia que Dom tanto gostara já estava

desacreditada e superada na cabeça de alguns que participavam da

reunião, mas Dom não abandonou aquela que lhe parecia a melhor

ideia desde a organização do Movimento e continuou argumentando,

“O que é necessário para satisfazer um homem? Será que o alimento

que satisfaz seu estômago tem a capacidade de alimentar seu espírito?

As igrejas, os centros de espiritismo e as muitas instituições

filantrópicas, por mais bem intencionadas que estejam, não sabem que

encher a barriga desses fodidos é apenas uma pequena parte do

processo de transformação dos desgraçados em homens, e nem é a

mais importante. É necessária uma motivação mais profunda, um

combustível existencial mais viscoso que alimente o espírito dessas

pessoas ou elas vão continuar nas ruas abraçadas à vida miserável que

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escolheram...”, e Marcinho perguntou no mesmo instante já

desacreditando da resposta “e que motivação seria essa?”, e Dom

respondeu prontamente “Poder! Poucas coisas motivam mais um ser

humano do que a possibilidade de exercer poder sobre outros

humanos, impor-lhes a sua vontade; nem dinheiro motiva tanto quanto

o poder!”.

Estavam todos olhando para Dom tentando assimilar o discurso e a

proposta de oferecer poder aos miseráveis; Éder acendeu um baseado

e soltou a fumaça que se agigantou como um cogumelo atômico

naquele ambiente meio escuro do nosso QG, e tive a impressão de

termos entrado num sonho lento e teatral, de uma teatralidade

psicodélica muito louca e muito sombria e eu me sentia o espectador

privilegiado daquele instante e me sentia estranhamente mergulhado

numa dimensão intermediária, entre o tempo e a eternidade,

percebendo traços de ambas as realidades.

Os momentos que se seguiram foram vislumbres de eternidade! Tudo

me pareceu claro, meus olhos se abriram, mas nada me pareceu belo

nem confortante porque me senti angustiado e sozinho, mergulhado

numa existência vazia e senti que a minha conexão com os outros

humanos era tão frágil, que se romperia com qualquer movimento;

senti que talvez a conexão entre todos os humanos fosse tão frágil e

tão fugaz, que a própria noção de ‘relação’ fosse uma ilusão muito

ingênua.

Eu olhava pra todas aquelas pessoas na reunião e elas me pareciam

personagens caricatas de si mesmas... e pensei que se não usássemos

máscaras, não suportaríamos olhar nos olhos uns dos outros;

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precisamos sempre ocultar o verdadeiro teor de nossos pensamentos

para não fazermos guerra o tempo todo... aquelas pessoas eram

avatares flutuantes, hologramas conscientes projetados nessa

dimensão infinita, e aquela sala de reunião me pareceu uma pequena

dimensão, quadrada como uma caixa de concreto e perdida na

imensidão da existência entre outras bilhões e bilhões de dimensões, e

tudo me parecia como se eu tivesse ingerido alguma erva xamânica.

Todas as importâncias foram anuladas, os significados humanos foram

suspensos e tudo o que antes me parecia grandioso e admirável, se

tornou desprezível; não houve revelação ou compreensão daquilo

tudo, apenas a sensação de estar penetrando clandestinamente e como

bandido sórdido nos bastidores da existência; e o que ali me

aguardava não eram anjos com Boas Novas, mas trevas existenciais

densas, uma escuridão quase palpável. Aqueles instantes foram

intensos e angustiantes e essa clarividência sombria me ocorreu

justamente enquanto discutíamos o nosso apocalipse.

Dom se levantou da cadeira, desligou o som que tocava Skrillex

incansavelmente, olhou pra todos como um Martin Luther King e

perguntou “vocês estão aqui em busca de quê? O que os motiva a

permanecer no Movimento? Vocês querem mudar o mundo ou apenas

mudar suas vidas?”, e essas perguntas tornavam minha angústia ainda

mais profunda, pareciam assombrar minha consciência; “Vocês

querem poder!”, continuou Dom com ênfase e uma energia

apocalíptica na voz, “de um modo ou de outro, o que todos nós

buscamos é sempre o poder, a vontade de submeter toda a realidade

ante nosso inquestionável poder. Ninguém quer mudar o mundo, mas

apenas mudar a própria sorte, e assim a história humana foi escrita,

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assim os humanos pintaram a Terra com sangue! Assim inventamos o

dinheiro e as hierarquias, as estátuas e as obras grandiosas da

engenharia”, e Dom fez uma pausa e olhou nos olhos de todos nós

para arrancar-nos o espírito e levá-lo cativo, ou pelo menos era como

eu me sentia naquela circunstância; “os prédios gigantescos que

construímos, os carros luxuosos que fabricamos, os belíssimos rituais

que praticamos são apenas símbolos de nossa sede de poder! É isso o

que todos queremos! Imaginem esses fodidos, que sempre foram

vítimas do poder dos outros, tendo a oportunidade de fazer justiça com

as próprias mãos e fazer o mundo pagar por sua desgraça! Eu lhes

garanto que eles não perderão essa chance por nada e nosso exército

lutará até o último soldado! E tem mais: recrutaremos aqueles

moleques presos nas casas de detenção pra menores infratores e

formaremos o maior exército de desprezados já visto na história!

Imaginem todos esses adolescentes maltratados pelos pais, torturados

pela polícia, marginalizados pela sociedade e abandonados pela

justiça... Vamos educá-los e teremos um exército de loucos, um

exército de pessoas que não tem nada a perder e que avança sem medo

para a conquista ou para a morte, tanto faz. Serão como formigas

devoradoras, escondidas nas brechas… Pra acabar com a gente, só

jogando bomba atômica nas favelas… Aliás, a gente acaba arranjando

uma bomba também, daquelas bombas sujas mesmo. Já pensou?

Ipanema radioativa? A burguesada toda apavorada! Se nós

oferecermos uma causa para eles lutarem, eles lutarão e serão nossa

linha de frente!”.

“Mas não seria melhor contratar um exército mercenário ao invés de

tentar controlar um exército de loucos?”, perguntei em voz baixa

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movido por meu desespero particular, “os mercenários viriam,

tomariam as bocas e depois nos auxiliariam no golpe de Estado.

Depois de terminarem o serviço sujo, iriam embora...”, e

impressionado com as sensações avassaladoras que estava sentindo,

eu tentava encontrar uma solução menos comprometedora para minha

consciência; mas minha pergunta pareceu dar uma força ainda maior à

argumentação de Dom, que aproveitou para tocar os corações de

todos, “A revolução brasileira precisa ser feita pelos brasileiros e não

por mercenários estrangeiros, e essa revolução será feita pelos filhos

rejeitados da ‘pátria-mãe-gentil’! Não há nada que pague a satisfação

de ver os rejeitados tomarem o poder! Todos concordam?”, perguntou

Dom aos presentes, e todos permaneceram em silêncio, esperando a

conclusão de Dom.

“Marcinho, vamos enviá-lo à Guatemala para ser militarmente

treinado pelos Kaibiles. Você verá que bastam apenas oito semanas

para transformar um idiota num soldado de elite. Você será nossa

cobaia! Você é o líder dos Caveiras, então você será a cobaia.”.

Depois que enviássemos Marcinho à Guatemala para ser militarmente

adestrado por mercenários guatemaltecos, ele voltaria transformado

num verdadeiro guerreiro a serviço de qualquer interesse que lhe fosse

vantajoso. Naquele momento, a escolha mais vantajosa era o

Movimento. Dom tinha lido em Zero Zero Zero, do Saviano, que os

soldados mais cruéis do mundo eram os Kaibiles e que eram

adestrados na Guatemala; “Oito semanas e tudo o que existe de

humano no ser humano desaparece”, me disse Dom secretamente,

antes de enviá-lo à Guatemala. “Os Kaibiles descobriram uma maneira

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de anular a consciência... em oito semanas eles pegam um Papa

Francisco e o transformam num assassino capaz de matar um cachorro

a dentadas, sobreviver bebendo mijo e matar dezenas de seres

humanos sem se angustiar de remorso. Bastam oito semanas para

aprender a combater em qualquer tipo de terreno e em qualquer

condição atmosférica. Somaremos ao ódio de Marcinho, um

treinamento de elite e assim teremos nosso exército de desgraçados

pronto para atacar”.

Dom continuou, “Imaginem os oprimidos se vingando de seus

opressores! Karl Marx e todos os outros revolucionários da história se

remexerão de orgulho no túmulo, hahaha! Imaginem a favela

invadindo o asfalto!”, e minha mente flutuante vagava pelas sugestões

que Dom fazia penetrar nossas mentes, e eu via ódio nos olhos dos

revoltosos, eu via coquetéis molotov serem lançados contra carros de

luxo, joalherias sendo saqueadas e destruídas, pessoas correndo nas

ruas, policiais sendo perseguidos pela multidão... a fumaça preta de

borracha queimada já começava a arder em minhas narinas e o

desespero das grávidas berrava em minha consciência... o caos!! As

luzes da cidade em guerra ofuscavam meus olhos e as imagens eram

tão intensas que começavam a me causar náuseas, um mal-estar que

lutei para controlar, mas o discurso de Dom vinha como uma

enxurrada brutal em minhas percepções, “Vamos explodir os bancos e

mandar seus juros abusivos pra casa do caralho! Vamos pixar a cidade

e obrigar todas as pessoas a conhecerem nossas ideias estampadas nos

muros; fodam-se as redes de televisão, não precisamos delas pra

comunicar nossa revolta, porque a revolução será feita nas ruas e pela

internet! Marighella tomou a sede da rádio nacional e espalhou suas

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ideias, nós tomaremos as redes sociais com nossos vídeos e nossas

ideias! Nosso comboio revolucionário será o bonde mais sinistro que

já se viu, o bonde dos injustiçados, que veio fazer justiça com as

próprias mãos. E mais: vamos treinar um exército de cães, um exército

de pitbulls pra apavorar qualquer um que seja contra a revolução...

conseguem imaginar?”.

O discurso de Dom convenceu e empolgou a quase todos na reunião,

mas em minhas percepções alteradas pela clarividência que me

tomava, aquele discurso parecia o anúncio do apocalipse; enquanto ele

falava sobre o exército brutal que pretendia montar, minha mente era

invadida por imagens quase proféticas sobre como toda aquela

violência aconteceria. A ideia de Dom era criar um exército de

matadores raivosos e inconscientes, com estratégias de luta sangrenta

e cruel, como muitos grupos rebeldes fazem ao redor do mundo e

principalmente na África, onde crianças são treinadas para se tornarem

soldados cruéis e sem alma; e com as proporções geográficas do

território brasileiro aquilo se tornaria um verdadeiro apocalipse local.

Meus pesadelos aumentaram.

Mais do que imaginar, eu estava vivendo intensamente aquele

apocalipse e meu rosto deve ter revelado meu terror interno, porque

Maria me olhou e perguntou, “Zumbi, você está bem? Que cara de

terror é essa?”, e todos me olharam, e Marcinho começou a rir de

deboche e emendou, “Esse cara não vai conseguir nem apertar o

gatilho, ha ha ha! Olha essa cara de medo, essa cara de frouxo!”;

Marcinho jamais entenderia os lugares pelos quais minha consciência

viajava e a clarividência que me atingira; pra ele tudo era simples

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demais e ordinário demais; suas reflexões eram rasas demais, ele

acreditava no chão em que pisava e naquilo em que suas mãos

tocavam, o resto não existia.

Dom se aproximou de mim, abaixou pra olhar na altura dos meus

olhos e me disse com muita calma, com aquela calma que só possuem

aqueles que sabem o que estão falando, “os tempos de reflexão e

consciência se foram! Agora é o momento de escrever a história com

nosso próprio sangue e o sangue de todos os desgraçados que

estupram nossa nação!”.

Os olhos de Dom não eram mais os mesmos, ele ainda olhava com

profundidade, mas agora era de uma profundidade visceral e

desencantada, agressiva, cortante; seu rosto também parecia mais duro

e os pelos de sua barba me pareceram de arame farpado; tinha mais

tatuagens e olheiras, e ele me parecia tão estranho e diferente, como se

eu não o visse há dois anos; ele já se preparava pra essa transformação

existencial desde que teve a ideia de fazer a revolução, ele já sabia que

teria que abandonar a consciência para fazer a revolução, pois não há

causa ou ideologia que justifique o assassinato.

Nós já havíamos discutido isso algumas vezes nos jardins da FFLCH e

Dom defendia que a vida humana está acima de qualquer formulação

ou resolução intelectual, seja de cunho político, econômico, religioso e

nenhuma filosofia ou ideologia pode justificar o assassinato, a

extinção da vida. Dom acreditava nisso, e por isso escolheu abandonar

a consciência como se abandona um navio. Seu olhar também

transmitia essa escolha maldita.

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Eu, em minha estúpida ingenuidade, ainda não tinha me dado conta de

que, ou nossas escolhas são radicais e nos jogam na frenética

intensidade da vida, ou boiaremos sempre na superfície das meias-

escolhas, viveremos sempre na mornidão de uma vida sem gravidade

e sem peso. Eu sempre fui da classe média e quem é da classe média

geralmente não precisa fazer escolhas radicais: temos segurança

financeira, temos plano de saúde, temos entretenimento e temos

consumo; estudamos, arrumamos emprego, entramos no mercado e

nos tornamos competitivos; estamos seguros e satisfeitos dentro de

nossas celas, fazendo girar o motor do sistema que nos aprisiona e nos

protege do chão frio e úmido da realidade; nossa consciência quase

não é exigida e permanece semiadormecida por décadas. Mas agora

estávamos fazendo a revolução, e a consciência desperta exigia de nós

uma escolha radical; Dom e os demais já haviam feito suas escolhas, e

apenas eu havia protelado esse momento crucial e agora estava

apavorado, como diante de um abismo.

Dom levantou-se novamente e continuou, “Quantos concordam com

meu exército de excluídos e rejeitados?”, e todos se manifestaram a

favor, inclusive eu, que olhava para o chão sem a menor convicção e

suando de desespero; eu não conseguiria ficar naquela reunião nem

mais um instante, acreditava que seria tomado por uma crise de pânico

e que nunca mais voltaria ao normal, então saí da sala e desci as

escadas sem olhar pra ninguém; desci as escadas como um

mergulhador sem ar busca desesperadamente a superfície, e quando

atravessei a porta e saí para a rua, vomitei nos pés de dois moleques

que brincavam ali e que logo correram com nojo e riram da minha

cara.

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Eu encostei o rosto no muro de nosso QG e vomitei até ficar sem ar

nos pulmões, eu estava passando muito mal e sentia uma angústia que

me fez chorar dolorosamente assim que consegui respirar novamente.

Maria saiu pela porta e me olhou encostado no muro, a calçada toda

vomitada e minha cara que se desfazia em lágrimas; eu dei as costas

pra ela e saí andando cambaleante e sem forças e ela começou a me

chamar num tom inquisitivo, “Zumbi, o que está acontecendo? Zumbi,

me espera!”, e eu não sabia o que ela estava querendo ou como eu

reagiria, então continuei me esforçando para andar sem cambalear

tanto, mas ela logo me alcançou e me amparou com medo que eu

caísse, e continuou me questionando, agora num tom mais amistoso,

“Zumbi, o que está acontecendo? Por que você está desse jeito?”, eu

continuei chorando e caminhando pendurado em Maria até o beco

mais próximo.

Quando vi o beco escuro e vazio, puxei Maria para dentro do beco,

segurei seu rosto com as duas mãos, meus olhos vermelhos e

encharcados de lágrimas, olhei-a nos olhos e perguntei, “Maria, onde

está sua consciência? Como faço pra minha consciência desaparecer

completamente? Por favor, me liberte dessa agonia!”, e Maria me

olhava assustada tentando compreender exatamente o que eu estava

querendo dizer, “Maria, isso tudo é uma corrida de ratos, uns

devorando os outros, irmãos se alimentando das desgraças uns dos

outros e no final sempre nos autodestruímos... nós derramaremos o

sangue de nossos irmãos, nós pintaremos o solo com sangue de nossos

irmãos e isso não te atormenta? O mistério da iniquidade está entre

nós, o apocalipse se avizinha e isso não te atormenta?”.

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Maria soltou um riso nervoso e sem convicção, como que pra afastar

as profecias malditas que eu acabara de proferir, mas aquele beco em

trevas fazia tudo parecer ainda mais tenebroso e sua risada me pareceu

demoníaca, maldosa; “Zumbi, que apocalipse? Que apocalipse? Nós

vamos mudar a história do Brasil, vamos dar voz ao povo! Se isso é

um apocalipse, então eu vou ajudar a realizá-lo, não importa o preço a

pagar!”.

Todos estavam envolvidos demais com a revolução e suas

consciências não lhes permitiam sequer formular as questões que eu

então formulava, e eu, existencialmente sozinho e em desespero, caí

de joelhos, abracei as pernas de Maria e soltei o resto do choro que

ainda havia. Fiquei assim por um minuto, com os olhos rigidamente

fechados e desejando que aquela angústia me abandonasse, pensando

que eu aceitaria qualquer oferta em troca da minha consciência;

“qualquer oferta me livraria daquela angústia”, eu pensava

angustiadamente, e lentamente minha angústia foi sumindo. Aos

poucos, uma sensação de contentamento foi me tomando e logo já era

um bem-estar, como se uma droga espiritual tivesse sido injetada em

mim; soltei as pernas de Maria e sentei sobre meus calcanhares;

enxuguei as lágrimas e respirei fundo enquanto Maria me olhava com

atenção, perscrutando meus movimentos e tentando capturar meus

pensamentos.

Fiquei de pé vagarosamente e olhei para Maria; eu me sentia

indiferente, blasé, sem compromisso com o ‘fio da realidade’; “Vou

dar uma volta e amanhã nos falamos... amanhã é um novo dia”, disse

eu e saí andando em direção ao carro que usávamos no Movimento;

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não olhei para trás e não vi a cara que Maria fez quando me afastei;

entrei no carro, tirei do bolso uma cópia da chave, liguei o carro e fui

dar uma volta na orla da Praia da Costa para experimentar essa nova

sensação que tomava meu ser. Eu me sentia leve e livre de qualquer

amarra moral ou social; todas as possibilidades estavam disponíveis

diante de mim e eu até me sentia poderoso. Agora tudo parecia

possível!

As noites de Vila Velha são extremamente agradáveis e essa noite

estava especialmente agradável, com uma brisa fresca que entrava

pelas janelas abertas do carro; acendi um cigarro e fui sentindo o

vento na cara refrescando meus neurônios depois de tanta opressão e

sofrimento mental; eu puxava a fumaça e com ela soltava os últimos

resquícios do tormento que minha já ausente consciência me causava,

eu passava a mão na minha cabeça raspada e deixava meus olhos

vagarem perdidos entre as luzes ofuscantes da orla e senti meu ser se

pulverizar com a força da brisa e se misturar com todas as outras

partículas da existência; eu era todas as coisas e senti meu ser se

espalhar por todos os cantos do universo e se perder completamente.

A única coisa que ainda me conectava a essa dimensão a que

chamamos de realidade, era a vaga sensação de ainda estar dirigindo

aquele carro pela orla, e bastou apenas isso para que meu ser se

recompusesse, vindo de todas as partes do universo.

Minha mente flutuava leve e não sentia o peso esmagador da

responsabilidade de ser e existir; quaisquer que fossem minhas

escolhas, eu sentia que não me responsabilizaria por elas e pensar

nisso me dava uma leveza ainda maior, cada vez maior e eu queria

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navegar infinitamente por essa sensação. “Se estou condenado a ser

livre”, pensava eu, “então quero ser livre para não me responsabilizar

pelo que faço!”, e esse sentimento juvenil de leveza me invadiu

completamente. Eu me sentia feliz e posso até dizer que me sentia

pleno. Finalmente encontrei o paraíso mental em que se refugiam os

poderosos!

Parei o carro na curva da sereia, atravessei o calçadão, tirei a camisa e

o tênis e mergulhei só de bermuda nas águas geladas da Praia da

Costa. Meu corpo todo ficou dormente e eu sentia a energia vital do

meu corpo se espalhar por todo o oceano e sentia minha mente se

esvaziar; o ritual de abandono da consciência estava concluído e esse

mergulho me servira como um batismo maldito, mas que me deu

bastante tranquilidade; agora eu estava pronto para as próximas fases

da Revolução.

Saí do mar, depois de alguns minutos boiando em sua calmaria e disse

a mim mesmo em voz alta, “vamos promover o Apocalipse!”. Entrei

no carro e voltei para o nosso Principado.