existo para matar - sávio ladeira

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Existo para Matarpor Sávio Ladeira

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A presente obra encontra-se licenciada sob Creative Commons Atribuição 3.0 Brasil. Épermitido copiar, distribuir, transmitir ou criar obras derivadas, desde que o autor seja

creditado. Veja a licença completa em:http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/br/

Imagem da capa: D Sharon PruittFontes da capa: Love Ya Like A Sister, de Kimberly Geswein, e Cabin Sketch, de PabloImpallari e Igino Marini

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A vida é assim

Sucesso

Visita inesperada

Proposta

Amizade à primeira vista

Encontro inesperado

Aula de música

Dia do ensaio

Conhecendo Daniel

Recebendo visita

Esperando

Vivendo o momento

Dead Dragons

Dia seguinte

Preocupações

Verdades

Separação

Maya

Difícil acreditar

Inesperado

Preparativos finais

Dado

Incêndio

Medo

Traição

Não há lugar como o nosso lar

Livro 2: Existo para Morrer

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Tudo novo

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A vida é assim

Chegou o dia. Eu estava nervosa e não gostava de ficar assim. Principalmente quando

não havia um motivo aparente. O evento de hoje era grande e envolvia umacoordenação perfeita de atividades e horários. Exatamente do jeito que eu maisgostava. Já havia revisado os cronogramas e documentos milhares de vezes e estavatudo perfeito. Não conseguia encontrar o motivo da minha inquietação.

Para tentar me acalmar, procurei um lugar mais afastado. Encontrei um pequenomirante, de onde eu conseguia olhar a cidade inteira. Ainda tinha tempo, então fiqueiali só observando todo o movimento. Era possível ver a presença da minha equipe empraticamente todos os lugares, acertando os últimos detalhes. Ainda faltava muito a sefazer, mas tudo parecia estar sobre controle.

Comecei a repassar novamente todos os procedimentos, quando fui interrompida pelo

meu comunicador:

– Kara? – aquela voz eu reconheceria em qualquer lugar.

– Prossiga, Teka.

Respondi tentando esconder o nervosimo, mas ela perceberia de qualquer jeito. Tekatinha sido minha assistente pelos últimos anos e sempre sabia como eu estava mesentindo.

– Estou aqui com o Ralf da recepção e ele pediu para liberar a área dezoito para aequipe dele.

– Eu quero essa área livre. Será montada uma estrutura para a equipe de suporte.

– Hum. Isso só será montado amanhã, certo? Ralf pediu para usar o espaço apenashoje. Alguma coisa a ver com o estacionamento dos transportes.

Teka tinha razão, mas eu tenho muita resistência para mudar o que já está planejado.Não queria ficar me preocupando com esses detalhes naquele momento e resolviconfiar na sugestão dela.

– Faça-o garantir que a área estará livre ainda hoje, ok?

– Certo, Kara.

Antes de desligar pude ouvir a voz dela ao fundo falando “ela não gostou muito disso”.Não tinha gostado mesmo, mas seria mais simples assim. Aquele não era um bommomento para ficar discutindo.

Para me acalmar, tentei me lembrar de todos os outros grandes eventos que já haviacoordenado. Infelizmente não deu certo, pois só conseguia lembrar os erros queaconteceram. Não foram muitos, mas devia ser o medo de errar que estava me

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incomodando. Tentei convencer a mim mesma que estava tudo sob controle e que nãodevia me preocupar.

Nem adiantava me preocupar com mais nada. Já estava quase na hora e eu precisavafazer um comunicado geral à equipe. Afinal, eu era a líder operacional e era minhaobrigação falar algumas palavras bonitas. Para motivá-los. Peguei meu comunicador e

comecei:

– Por favor, um momento de atenção – e pude ver todos parando o que estavamfazendo para ouvir meu recado. – Falta pouco tempo para vocês colocarem em práticatudo que vieram treinando nesses últimos meses. Acompanhei o trabalho de todos esei que essa é uma das melhores equipes com a qual já trabalhei.

Sim, isso era verdade. Depois de uma pequena pausa, continuei:

– Hoje teremos um terremoto de escala sete que irá atingir uma grande regiãometropolitana. Por isso é muito importante que todas as pessoas estejam em seuslocais no momento do tremor. Vocês são especialistas em acidentes naturais e sabem

o quanto é difícil coordenar todas as ações em um espaço de tempo tão curto.Principalmente em uma área urbana tão movimentada como essa.

Fazia relativamente pouco tempo que eu havia entrado nesse grupo, mas f oi muitofácil me adaptar. Os desastres me fascinavam de certa forma. Continuei:

– Apesar das dificuldades, para mim é muito gratificante ser responsável por milharesde pessoas. De vocês espero que sintam a mesma gratidão e façam o máximo paraque esse evento aconteça exatamente como planejado. Um bom trabalho para todos.

Depois do comunicado, Teka me chamou e pediu para eu encontra-la. Queria repassarcomigo os relatórios das equipes em campo. Após me informar que tudo estava

caminhando exatamente como planejado, percebi que meu nervosismo estava bemmais controlado.

Tudo pronto, recebo o aviso da equipe de subsolo de que o terremoto está vindo. Peçoque Teka dê o aviso de início:

– Todos aos seus postos, o evento vai começar em cinco minutos.

– Boa sorte a todos nós – disse para mim mesma.

Durante o evento eu gosto de caminhar pelo local. Um velho hábito. Sempre meimpressiona ver o rosto das pessoas. É como se elas já soubessem o que fosse

acontecer, mesmo que não tivessem a mínima ideia de que em breve presenciariamum grande terremoto. A expressão delas é uma mistura de medo do desconhecido coma aceitação do que está por vir.

Enquanto passeava por uma praça, vi um casal que não estava no lugar certo. Todasas pessoas do local do acidente eram marcadas para sabermos de que forma agiríamosem cada caso. Alguns ficariam em uma situação mais grave e precisariam de umresgate rápido, outros teriam que esperar um pouco mais para serem levados. Osmotivos são os mais diversos e usamos as marcações para agilizar nosso trabalho. Só

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que um casal bem idoso, que estava com a marca de resgate rápido, caminhava porum local que não sofreria nenhum desabamento. Se continuassem ali, nem seriamafetados pelo terremoto.

Procurei rapidamente pelos arquivos no meu aparelho comunicador. Lá estavam osnomes deles. Não existia nenhuma observação clara, apenas dizia que seriam

soterrados dentro de suas próprias casas. A voz de Teka continuava a contar o tempo:

– Dois minutos.

De nada adiantaria perguntar o que aconteceu. O terremoto estava prestes aacontecer e eu teria que improvisar.

O casal resolveu sentar em um banco, provavelmente para apreciar a vista daquelebonito final de tarde. O parque estava bem vazio. Eu me aproximei deles e me agacheiem frente ao banco, ficando na altura dos olhos deles:

– Bonita tarde, não? – disse para os dois.

– Sim, muito bonita – respondeu o senhor com notável calma. – A minha senhora nãoqueria sair de jeito nenhum, mas não podíamos disperdiçar um dia agradável desses,né?

– Vou ter que concordar com a sua companheira – respondi com um leve sorriso norosto. – Hoje não era um bom dia para vocês terem saído.

– Por quê? – perguntou ele para mim.

– Um minuto – ouvi a voz de Teka no comunicador.

– Em um minuto, um terremoto muito forte irá atingir toda a cidade – tentei transmitircalma, pois assim seria muito mais fácil. – Só que esse parque não será afetado.

– Então por que não deveríamos estar aqui? – perguntou intrigado o senhor.

Nessa hora eu pude ver que a esposa dela já tinha entendido o que iria acontecer. Elaassumiu a expressão característica, a mistura de medo e paz típica de quem já sabe oseu destino. Ela disse:

– Chegou a nossa hora, querido.

– Nós vamos morrer? – disse o senhor ainda intrigado.

– Vocês receberam uma passagem para o outro lado da vida. O tempo de vocês naTerra chegou ao fim.

– Você é um anjo-da-morte?

Eu preferia o nome valquíria, mas anjo-da-morte representava bem o que eu era.

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– Os dois estão prontos para ir? – sorri para eles estendendo as minhas mãos.

Ele abraçou por trás a sua esposa, deu um leve beijo na testa dela e esticou a mão emminha direção. Ela acompanhou o movimento. A terra já estava começando a tremer.Segurei as duas mãos no meu colo e beijei os dois idosos. Quando levantei meu rosto,eram apenas dois corpos inertes.

Puxei as almas deles pela mão. Ela, por aceitar melhor a morte, estava dormindo. Ele,apenas levemente tonto:

– Eu estou morto?

– Sim – respondi sorrindo.

Primeiro ele viu a alma de sua esposa dormindo em meus braços e seus corpossentados no banco da praça. Depois começou a olhar em volta, surpreso. Não pareciaestar assustado com os efeitos devastadores do terremoto. Acho que o que mais oimpressionou foi ver toda a movimentação das valquírias pelo local. Segundos antes

ele só conseguia ver um parque vazio.

– O que são aquelas coisas flutuando no ar?

Eram os transportadores, grandes naves que recolheriam as almas. Geralmente umdesses era suficiente para a maioria dos eventos, mas hoje havia dezenas delespairando sobre a cidade.

– É o que vai levar você e sua companheira para sua nova casa.

– Para onde iremos?

Eles iriam primeiro para um hospital se recuperar da transição, depois provavelmenteseriam encaminhados a um alojamento escolar para aprender tudo sobre o mundo dosmortos. Mas não era isso que ele queria saber:

– Vocês vão para o céu.

Ele sorriu para mim e finalmente se deixou embalar pelo sono. Peguei meucomunicador e mandei um aviso para a equipe de recepção, informando que tinhaduas almas precisando deles ali.

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Sucesso

Ao final do dia estávamos todos exaustos. O que antes era uma grande cidade, agora

parecia mais um campo de guerra. Ao contrário dos meus medos, a maior parte dotrabalho das valquírias havia chegado ao fim com sucesso. Agora ficaria um grupo desuporte aos vivos e uma pequena equipe para levar alguns soterrados. Na verdade, omaior trabalho agora seria de quem sobreviveu. Tomara que eles saibam aproveitarbem esse tempo, antes que a gente venha recolhê-los também.

Como era tradição, a chefe da equipe, ou seja, eu, oferece um banquete para todos.Era um momento bastante esperado e eles mereciam uma comemoração pelo sucessodo evento. Teka já havia deixado tudo preparado em um restaurante ao lado do portodos transportadores. Conforme as naves iam chegando, o grupo de recepção levava asalmas para o hospital e as valquírias e alguns grupos de apoio iam diretamente para adiversão.

Subi em um dos últimos transportes. Quando cheguei o salão já estava lotado, asmesas bem servidas de comida e a música tocando alto. Logo chegou até mim umanovata, aquele tinha sido seu primeiro evento.

– Oi, Kara? – ela estava nervosa e começou a falar mais rápido do que deveria –Queria te dar os parabéns. Tudo ocorreu de maneira espetacular. É um prazer poderver de tão perto esse seu trabalho genial.

Tinha esquecido disso. Os elogios. Adorei a forma como você protegeu as estradas deacesso, parabéns pela organização do fluxo de almas, é uma honra fazer parte da suaequipe. Esse era alguns dos comentários que eu ouviria aquela noite. Alguns eram

sinceros, outros apenas bajulação. Sempre agradecia e fazia meu discurso ensaiado:

– Esse é um trabalho de equipe. Não seria possível realizá-lo sem o empenho de todosvocês.

Eles gostavam de ouvir isso. Apesar de já saberem o que eu iria falar. Teka sempredizia que eu deveria fazer um discurso geral para não ter que ficar repetindo a mesmafrase para todos, mas eu preferia falar isso olhando nos olhos de cada um deles. Oproblema disso é que não sobrava tempo nem para comer direito, sempre tinhaalguém querendo falar comigo. Eu não ligava, gostava de poder agradecê-lospessoalmente. Mas no final do jantar sentia um vazio.

Foi quando Teka veio me lembrar de que existe vida fora do trabalho:– Pronta para sair daqui e se divertir de verdade?

– Para onde iremos hoje? – perguntei, o ânimo já se renovando.

– Eu conheço um lugar novo que vai ser perfeito.

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A diversão na pós-morte é bem parecida com a da Terra, só que as almas mantêmmuitos dos hábitos que tinham em vida. Em algumas regiões ainda fazem até dançasem volta de fogueiras. Nós, valquírias, assim como os anjos da guarda, vivemos muitopróximas dos seres vivos e costumamos acompanhar os hábitos terrestres. Por isso,gostamos mesmo é de dança e paquera.

Adorava sair com Teka após grandes eventos. Só assim eu conseguia relaxar eesquecer um pouco do trabalho. Fomos para um lugar chamado Terra no Céu. Oambiente era bem bonito, todo decorado com imagens de prédios e grandesmonumentos terrestres. Um bar bem grande cobria toda a parede lateral, algumasmesas dispostas no centro do salão, uma pequena pista de dança na frente de umpalco, mas não eram todos os dias em que a banda tocava. Nesse dia havia apenasuma música de fundo. Os garçons estavam vestidos com túnicas brancas e asas nascostas, imitando a imagem que os humanos têm dos anjos. Acho que a ideia era fazeros clientes se sentirem protegidos. No mínimo irônico, já que alguns dos que alifrequentavam eram realmente anjos da guarda.

Bares modernos atraiam principalmente os recém-chegados. Para nós era engraçadoobservá-los descobrindo o novo mundo. Logo que entramos, ouvi o comentário de umrapaz encostado no balcão do bar:

– Podem entrar crianças nesse lugar? – perguntava ele para um amigo que estava aolado.

Nós duas temos a aparência de criança, assim como a maioria das valquírias. Pré-adolescentes para ser mais exata. Ninguém daria mais do que quinze anos para agente. Após a morte, as almas assumem uma aparência que reflete a sua forma depensar, agir e ser. Em nosso caso, estamos em constante transformação paraacompanhar o pensamento dos vivos. Os humanos chamam essa fase de puberdade, agente chama de estilo.

– Elas são valquírias – explicou em voz baixa o amigo. – Parecem tão inocentes.

Achei graça naquele comentário. Resolvi provocar:

– Não temos nada de inocente. Você já experimentou o beijo de uma valquíria e sabeque eles são de matar.

Teka riu e continuou em direção a uma mesa vazia bem no meio do salão. O rapaz quenos chamou de criança foi junto:

– Eu sou Jeff . Posso me sentar com vocês? – disse puxando uma das cadeiras.

– Parece que você já está sentado – respondeu Teka sorrindo. – Eu sou Kara, esta éTeka. Vejo que não tem medo das valquírias.

– Por que eu teria? Sou um grande admirador do seu trabalho. Se não fosse por vocês,eu não estaria aqui hoje.

Ele era charmoso. Aparentava ter uns 25 anos, cabelo preto e curto, usava camiseta etênis. Um rapaz simples e de alma bonita e madura. Resolvi dar uma chance a ele:

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– Como foi a sua passagem? – perguntei.

– Sofri um acidente de carro.

– Quer dizer, causou um acidente, né? – corrigiu o amigo que também veio se sentarconosco. – Sou Lafa, o irmão dele, passageiro no acidente de carro.

– Então você é um perigoso assassino? – brincou Teka. – Por isso ele não tem medode nós, Kara.

– Pode-se dizer que sou – Jeff parecia levemente arrependido ainda. – Lafa morreu nahora. Eu tive que ficar três meses no hospital. Aprendi minha lição.

– São águas passadas, Jeff – disse Lafa colocando a mão no ombro dele. – E vocês,quando morreram?

– Não se pergunta a idade para uma garota – respondi rindo.

Ele ficaria assustado se soubesse a minha verdadeira idade.

– É verdade que só as crianças podem ser valquírias? – perguntou Jeff , se mostrandobastante interessado.

– Na verdade, só as recém-nascidas.

– Toda a criação de vocês é aqui no mundo dos mortos?

– Exatamente.

– Por que vocês são... – ele fez uma grande pausa antes de continuar, – tão bonitasassim?

– Você se lembra de como você era? Seus olhos, cabelos, altura e tom de pele?

– Claro, eu era bastante parecido com o que sou hoje.

– Sua alma reflete sua memória material. Nós não temos uma referência terrestre.Somos puramente alma.

– Legal. Vocês querem um drinque? – disse Jeff levantando da mesa. – Vou até o barpegar mais um para mim.

– Ele adorou a ideia de poder beber e não precisar dirigir – comentou Lafa.

– Traz uma rodada para gente – disse Teka.

Depois que Jeff estava no bar, Lafa falou:

– Desculpa se estamos incomodando com tantas perguntas.

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– Não se preocupe – respondi.

– Eu tenho também algumas dúvidas. Por que as valquírias são todas mulheres?

– Ninguém sabe – disse Teka.

– Talvez todas as almas sejam femininas – complementei.

– Ou as mulheres sejam mais perfeitas que os homens – brincou Teka.

Jeff olhou do balcão fingindo estar bravo. O bar estava vazio e com certeza ele podiaouvir tudo que falávamos. Lafa e eu rimos.

– Como funciona a decisão da morte? Vocês podem matar quem vocês quiserem? –perguntou Lafa.

– Quem a gente beijar, morre – expliquei. – Seguimos uma lista que nos é passada.

– Nós temos algumas regras – falou Teka e ficou um tempo em silêncio antes decontinuar. – Não podemos deixar viver alguém que esteja nas listas.

Teka estava falando de Maya. Nós a conhecemos durante a primeira guerra mundial elogo criamos uma grande amizade. Éramos um trio inseparável, até que ela cometeuum grande erro.

Maya havia sido escalada para um acidente de avião há cinco anos. Era um serviçosimples e ela foi sozinha. Todos iriam morrer, mas ela não conseguiu cumprir amissão. Ninguém sabe como ou porquê, mas ela se apaixonou perdidamente por umgaroto. Parece que ela ficou tão encantada que não conseguiu matá-lo. Por não terfeito o serviço, foi julgada e condenada à reclusão. Durante todo o tempo ela ficou em

silêncio. Faltavam menos de duas semanas para ela sair, mas não acho que ela iriacontar nem para nós o que realmente aconteceu.

– Mas, assim, vocês podem matar quem não está na lista? – perguntou Jeff ao chegarcom as bebidas.

– Podemos, mas não é nada agradável levar alguém que não quer morrer. Preferimosseguir as listas.

– E por que do beijo?

– O que tem o beijo?

– Vocês matam beijando, não é? Por que tem que ser dessa forma?

– Os lábios são a ligação mais direta entre duas almas.

– Mas só o nosso beijo tem força para retirá-las do corpo – completou Teka.

Lafa levantou seu copo e disse:

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– Um brinde ao beijo da valquíria que nos trouxe aqui.

– Ao beijo da morte – repeti.

Continuamos conversando o resto da noite, com os dois fazendo perguntas e nósrespondendo. Cada história que era contada fazia-me perceber o quanto eu gostava de

ser uma valquíria. Fomos dormir bem tarde, mas naquela noite tive um sonho que medeixou perturbada.

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Visita inesperada

Eu estava na fila para entrar em um avião. Podia ouvir os outros passageiros

conversando sobre viagens de férias ou reuniões de negócios. Eu sabia que estava ali atrabalho. Estava ali para derrubar aquele avião.

No meio dos condenados, um rosto me chamou a atenção. Era um garoto muitobonito, devia ter por volta de 15 anos. Parecia ser sua primeira viagem de avião eestava bastante animado. Seus pais estavam com ele, mas sentados do outro lado dafila. O lugar ao seu lado seria ocupado por mim.

Conversamos bastante antes do avião decolar. Estava de férias, ia visitar algumparente no exterior. A presença dele era bastante agradável e a conversa fluianaturalmente. Era difícil descrever o que eu estava sentido. Uma felicidade muitogrande só por estar ao lado dele. Não imaginava que seria possível uma empatia tão

rápida com alguém preso em um corpo material, pelo menos nunca me aproximeidessa forma de um vivo antes. Lembro que estava me divertindo tanto com acompanhia dele que demorei para reparar que ele me chamava por outro nome:

– Maya.

Percebi que aquele sonho não era meu. Eu estava vivenciando uma lembrança daminha amiga, minha quase irmã. Eu podia sentir exatamente o que ela deve tersentindo naquele dia do avião. Eu queria matá-lo para ficar com ele para sempre aomeu lado, mas ao mesmo tempo parecia errado fazer isso.

Ouvi um barulho de explosão, as pessoas começaram a gritar em desespero, pude

sentir o avião caindo. O garoto segurou em minha mão e um pequeno arrepio subiupelo meu braço. Olhei em seus olhos e ele disse:

– Não me leve agora, Maya.

Acordei. Completamente confusa. Aquela dúvida em matar um humano era umsentimento que não me lembro de ter tido antes. Será que foi isso que aconteceu comMaya? Será que eu conseguiria matá-lo se estivesse no lugar dela? O que meperturbava era duvidar da minha própria capacidade. Questionar a morte era umacrise que eu já havia superado.

Antes de ingressar na equipe de desastres naturais, eu era responsável por recolher as

almas nos campos de guerra. Era um cargo bastante nobre, pelo menos nas erasremotas. Os grandes soldados lutavam por um ideal, mesmo sabendo que iam nosencontrar. Nós éramos o prêmio pelo desempenho na batalha. Ter medo da morte eraconsiderada uma fraqueza, então eles criavam canções para nós e veneravam asvalquírias. Foi um grupo de guerreiros do norte que nos deu esse nome. Significa"aquela que ajuda os que caíram no campo de batalha". Era uma época muito boa eaprendi a valorizar a morte acima de tudo.

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Só que depois as guerras perderam a sua nobreza. Os soldados não sabiam por que oupor quem estavam lutando. Os generais se escondiam em salas de comando, enquantoos guerreiros eram levados como gado para morrer. Começamos a ser temidas,ninguém queria nos ver. A primeira vez que uma criança, vestida de soldado eempunhando uma arma maior que ela mesma, começou a chorar quando me viu, sentique existia algo errado em nosso trabalho.

Naquela época comecei a questionar os porquês. Nós recebemos listas com os nomes eas formas como as pessoas deveriam morrer. Alguns deveriam sofrer, outrosmereciam uma morte mais rápida. Enquanto os mortos gostavam de ser levados, osmotivos nunca me incomodaram. Só que desde que as valquírias passaram a ser malvistas nos campos de guerra, a dúvida começou a dominar minha cabeça.

A segunda grande guerra foi um marco para mim. Fui designada para atender umacidade inteira que morreu exatamente no mesmo instante, sem os cidadãos nemsaberem o que estava acontecendo. Essas pessoas que morreram não estavamenvolvidas com a guerra, não estavam preparadas a dar a vida por uma causa. Foramas almas mais difíceis de serem retiradas de seus corpos.

Fiz uma campanha pelo fim das guerras. Algumas valquírias me acompanharam. Todasas respostas que tivemos foram as óbvias: são os humanos que decidem seu destino,são eles que trazem a guerra e são eles que vão sofrer as consequências. Não aceiteificar parada, somente imaginando qual seria o próximo ato de terror que os humanoscriariam. Convoquei o grupo que estava comigo e fomos até a Terra influenciar oshomens. É muito difícil ignorar a influência de uma valquíria. Acompanhamos osprincipais líderes. Eles influenciaram outros e criou-se uma corrente. Inventaramcampanhas humanitárias no planeta, acordos diplomáticos entre as nações e umacrescente valorização da vida.

O resultado foi bem melhor do que o esperado. Lógico que as guerras não acabaram,mas elas se transformaram em algo bem menos letal. A guerra comercial. Dinheiro era

o novo soldado desse mundo teoricamente mais pacífico. Mas a ambição continuava.Para conseguir poder nesse novo mundo, as nações passaram a sugar cada vez maisos recursos do próprio planeta. Elas já vinham fazendo isso há um tempo, mas foitomando proporções cada vez maiores. A Terra não aguentou e a resposta foi oaumento na quantidade de desastres naturais.

Eu era a melhor valquíria para coordenar grandes resgates coletivos de almas e estavapronta para voltar à ativa. Nos desastres não senti mais aquele peso de levar almas deguerras sem sentido. Todos os humanos estavam envolvidos nessa ganância financeirae sabiam que eram de certa forma responsáveis pelos desastres.

Foi quando mudei de função e virei a coordenadora de eventos como o de ontem.

O sonho ainda estava na minha cabeça, mas tentei me convencer que aquilo foiapenas um sonho. Nem sabia se era o que realmente aconteceu com Maya. Seapaixonar por um humano é algo tão improvável que eu não deveria me preocupar. Dequalquer forma, se por um acaso acontecesse, eu tinha era que tratar logo de matá-lopara viver o romance ao lado dele.

Levantei da cama e fui até a sala tomar um copo d’água. Qual não foi a minhasurpresa ao encontrar Jeff dormindo em meu sofá.

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– O que você está fazendo aqui?

Ele acordou assustado, parecia não saber direito onde estava.

– Bom dia, Kara – disse com voz de sono. – Onde eu estou?

– Completamente perdido.

Fui até a cozinha, peguei dois copos, enchi com água e voltei para a sala.

– Como eu vim parar aqui? – perguntou Jeff.

– Não tenho a menor ideia. Cadê seu amigo?

– Ele não está aqui?

Entreguei um copo para ele e desisti de fazer perguntas. Era melhor esperar eleacordar completamente. Meu comunicador começou a tocar, era Teka. Talvez elasoubesse me explicar o que aconteceu.

– Bom dia, Teka.

– Você viu as notícias hoje? – a voz dela estava bastante desesperada.

– Do que você está falando?

– Ligue sua TV.

Percebi que era algo mais importante do que a presença do Jeff em minha casa.

Coloquei no canal de notícias e o texto na parte de baixo da tela dizia: “Valquíria foge do centro de reclusão de Myrdal. Investigadores não têm pista sobreseu paradeiro.” 

Um diretor do centro estava dando uma declaração, falando que nunca havia tido umafuga antes, que isso iria ser investigado, que ninguém precisava se preocupar e queuma equipe estava atrás da fugitiva. Eu não estava entendendo o motivo que fez Tekame ligar para falar disso, até que apareceu uma foto da fugitiva.

– É Maya – fiquei assustada.

– Não entendo, Kara. Como ela conseguiu fugir de lá?

– A pergunta não é como, mas por que. Ela iria sair semana que vem.

– Vocês conhecem essa fugitiva? – perguntou Jeff.

– Ela é nossa amiga.

– Sua amiga parece ser bem perigosa.

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– Ela não é assim, não entendo o que está acontecendo.

– Quem está aí? – interrompeu Teka.

– Ninguém. Quer dizer, é o Jeff, mas não sei como ele veio parar aqui.

– Talvez eu tenha deixado ele aí. Acordei no quarto do Rafa e vim correndo para minhacasa quando soube dessa notícia.

– O quê? – disse surpresa.

– Depois te explico. Agora temos que encontrar Maya.

Toda aquela história era muito estranha. Por que ela achava que nós seríamos capazesde encontrá-la? Até que a campainha da casa da Teka toca e ela corre para atender.Ao abrir a porta, pude ouvir o que ela disse do outro lado:

– Maya? O que você está fazendo aqui?

– Quem está no comunicador? – era a voz de Maya e parecia estar muito agitada.

– Kara – respondeu Teka.

– Kara, está me ouvindo? – Maya havia pegado o comunicador da mão dela.

– Isso é loucura. O que está acontecendo, Maya? – disse em resposta.

– Quero que você preste atenção ao que eu vou te dizer. Vão te oferecer um serviço,um incêndio em uma escola. Você tem que aceitar, por mais estranho que pareça.

– Como assim incêndio?

– Você tem que aceitar, Kara. Ou tudo terá sido em vão.

E a ligação caiu. Tentei chamar de volta, mas ninguém atendia. Continuei tentando e viJeff, bastante assustado e ainda mais confuso do que eu, sentado no sofá da sala.

– É melhor você ir.

– É, acho que é melhor mesmo.

Nem acompanhei Jeff até a porta. Estava pensando nas palavras que Maya havia medito. Por que era tão importante que eu aceitasse o serviço? Como ela sabia que iriamme oferecer? Sem contar que eu não costumava pegar pequenos acidentes, ainda maisincêndios em escolas. Estava perdida em meus pensamentos, com o comunicadorainda na mão tentando falar com Teka, quando fui interrompida novamente por Jeff.

– Kara? Acho que você tem uma...

– O que foi agora? – interrompi brava.

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Virando, vi Jeff segurando a porta e, do lado de fora, alguém que eu não esperavaencontrar naquele momento.

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Proposta

Eu não sou alguém que goste de sossego. Sou bastante acostumada a viver situações

de estresse e diariamente tenho que resolver diversos problemas de uma só vez. Masenfrentar isso logo pela manhã não era nada agradável.

No dia anterior eu havia coordenado um grande evento, que felizmente foi umsucesso. Depois decidi sair com a Teka e até aí nada de estranho. O problemacomeçou quando acordei. Uma pessoa que eu nem lembrava que conhecia estavadormindo em meu sofá. Depois veio a notícia de que minha melhor amiga havia fugidoda reclusão. Além disso, ela me manda uma mensagem muito importante, mas que eunem entendi. Quando acho que nada pode piorar, um ex-namorado aparece na minhaporta.

– Olá, Kara. Bom dia.

Não, aquele não era um bom dia. O nome do meu ex era Saul. Vivemos juntos duranteum bom tempo e o motivo que nos levou a terminar é o mesmo que me preocupavaagora. Saul havia se tornado um membro do exército especial. Eles eram chamados deeinherjar e só investigavam casos muito importantes. Já podia até imaginar o motivoque fez ele vir até minha casa.

– Posso entrar? – perguntou Saul ao perceber o meu silêncio.

– Pode, claro. Jeff já estava de saída, não é mesmo, Jeff?

– Ele é um... – disse Jeff gagejando, – um einhe...

Empurrei-o para fora enquanto Saul entrava e fechei a porta.

– Estou atrapalhando? – perguntou Saul, se referindo à expulsão do Jeff. – Quem eraele?

– Ninguém. Aceita um chá?

– Adoraria – respondeu Saul, um pouco sem entender o que aconteceu.

Fui até a cozinha, coloquei a água no fogo e tentei aproveitar aquele breve momentode calma na minha manhã. Não que a presença de um einherjar em minha sala

pudesse me deixar muito tranquila, ainda mais quando ele também é um ex-namorado.

– Como você está, Kara? Faz muito tempo que não te vejo.

– Tenho trabalhado bastante.

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– É, acompanhei pelos noticiários. Inclusive, parabéns pelo terremoto de ontem. Foisensacional.

– Obrigada.

Ficamos alguns minutos em silêncio. Eu sabia que ele não estava ali apenas para uma

visita informal, mas eu tinha que manter a calma e o deixar falar. Tem que se tomarmuito cuidado com o exército especial.

– Quando cheguei você estava no comunicador e parecia preocupada. Algumproblema?

– Sabe aquele rapaz que estava aqui hoje cedo? Ele era o problema – fiz uma pequenapausa e continuei, – mas não queria falar sobre isso agora. Você se importa?

– De maneira alguma – respondeu Saul, sempre educado.

Coloquei a xícara de chá na mesa e o convidei para se sentar. Ele tomou um gole e

elogiou:

– Muito bom. Seu chá continua delicioso.

– Como você sabe, não sou boa apenas para matar pessoas.

– Claro, claro.

Até quando ele iria continuar enrolando? Será que eu teria que perguntar o motivo quetrouxe ele até minha casa? Estava ficando impaciente com aquela conversa mole.

Ele tomou mais um gole do chá, deitou a xícara sobre a mesa e finalmente falou:

– Vejo que você ligou sua televisão. Deve estar sabendo da mais recente notícia.

– Você quer saber se eu sei onde Maya está? – perguntei deixando de lado aprudência.

– Não foi por isso que eu vim – disse calmamente Saul. – Mas você sabe?

– Não tenho ideia.

– Faltavam apenas duas semanas. Muito estranho, não acha?

– Muito.

Saul ficou em silêncio por um tempo, como que procurando as palavras corretas:

– Gostaria de te pedir um favor.

– O que você quer que eu faça?

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– Nada do qual você está acostumada, por isso digo que é um favor. Você seria capazde fazer um serviço para mim?

– O que você quer que eu faça? – insisti.

– Um pequeno incêndio em uma escola.

Era exatamente o que Maya havia me dito. Como ela poderia saber? E o que teria sidoem vão se eu não aceitasse? Tentei ao máximo não demonstrar a minha surpresa, massei que não consegui. Então fingi que estava surpresa por outro motivo:

– Um incêndio? Quantas mortes haverá? Umas dez? – disse com desprezo.

– Não tenho a lista comigo, mas não são muitas.

– Por que eu?

– Algumas das almas dessa escola são muito importantes, por isso nos foi pedido que

a melhor valquíria ficasse responsável.

– Eu não sou a melhor.

– Sim, você é, Kara. Também é um serviço no qual você estará infiltrada. Poucas estãohabilitadas para isso.

– Por quanto tempo?

– Três meses.

– Três meses? Infiltrada? – repeti surpresa.

Isso queria dizer que eu teria que viver como humana por três meses, fazendo toda acoordenação do evento disfarçada como uma pessoa comum. Era terrível.

– Gostou? – perguntou Saul ao perceber minha empolgação.

– Ninguém é capaz de ficar tanto tempo na Terra.

– Os humanos conseguem. Seria a oportunidade de viver a vida que você nunca teve.Achei que você fosse gostar do desafio.

Estava começando a entender porque mandaram Saul para me oferecer o serviço. Elesaberia como me convencer e, por mais que eu relutasse, no final não conseguiria falarnão. Sem contar que as palavras de Maya ainda dançavam na minha cabeça.

– Eu não vou gostar e você sabe disso.

– Vou entender isso como um “sim, aceito”.

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Uma resposta mais precisa seria: “sim, eu sei me dar por vencida quando lutar éinútil”.

– Quando começa? – perguntei.

Ele olhou o relógio e respondeu:

– Sua primeira aula começou faz 12 minutos.

Aquela manhã seria muito mais longa do que havia imaginado e eu já estavatotalmente arrependida de ter me levantado da cama.

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Amizade à primeira vista

Ainda sem acreditar no que estava acontecendo, lá estava eu na frente do colégio

onde passaria meus próximos três meses. Parecia ser uma escola muito boa, pelomenos na aparência era bem cuidada. Não era um prédio muito alto, tinha cincoandares, mas era bastante largo, parecia ter a forma de um cubo. Ao lado dele tinha aestrutura de uma quadra esportiva e um pequeno estacionamento. Não era possívelver de fora, mas o centro do prédio era oco, com uma pequena praça ao ar livre,provavelmente onde os alunos ficavam durante os intervalos. A rua estava bastantevazia, afinal as aulas já haviam começado.

– Precisa de alguma ajuda? – perguntou Saul.

– Além do fato de eu não ter nenhuma informação sobre o incêndio?

– O importante é que agora você consiga viver no meio deles sem que percebam suasintenções. Por isso, não daremos nenhuma informação agora.

– Posso ao menos saber por que uma missão simples dessa precisa de uma valquíriainfiltrada?

– Não.

Ficamos em silêncio. Voltei a observar a escola, vi um funcionário parado no portão.Como eu tinha a aparência de uma criança, precisava bolar uma estratégia paraconseguir me matricular naquela escola. Talvez nisso Saul pudesse me ajudar, já queele aparentava ser bem mais velho.

– Você pode fingir ser o meu pai?

– Pai? Mas por quê?

Parece que eu havia conseguido surpreender ele.

– Onde já se viu uma garota de 15 anos se matriculando por conta própria na escola?

– Ah, imaginei que você fosse usar seu poder de sugestão.

– Não em uma escola inteira.

O ato de sugestionar é muito forte nas valquírias e pode fazer com que um humanofaça exatamente o que a gente queira. Só que é de certa forma cansativo. Nosgrandes acidentes, cada valquíria era responsável por duas ou três pessoas. Esserecurso era usado apenas para facilitar o trabalho, colocando cada um no lugar certodurante o evento. Em geral, organizamos os acidentes para usar o mínimo possível desugestão. Se eu tentasse fazer isso para entrar na escola, teria que influenciar umascatorze pessoas e estaria exausta antes mesmo de entrar na classe.

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– Tudo bem. Posso ser seu pai por um dia. Qual o seu plano?

– Nós acabamos de nos mudar para essa cidade e você ouviu dizer que essa é amelhor escola da região. Além disso, tem um emprego que te ocupa quase o dia todo enão poderá ficar muito tempo. Aí é só assinar os papéis e deixar o resto comigo.

– Muito bem pensado. Realmente, você é a melhor valquíria. E a mais atraentetambém.

– Como? – fiquei surpresa com o comentário fora de contexto.

Saul me apontou uma das janelas da escola. Havia um grupo de garotos olhando parabaixo, olhando para mim.

– Se até os mortos se surpreendem com sua beleza, imagina só os humanos. Não váfazer nenhum garoto se apaixonar por você, hein?

– Acho que consigo controlar o impulso de alguns adolescentes.

– Você pode se surpreender. Só tome cuidado para ninguém te beijar por engano. Nãoseria nada agradável ver garotos caindo aos seus pés. Mortos, claro.

– Resolveu fazer piadas agora? Estou vendo que o ar da Terra já está te fazendo mal.

– Eu adoro esse ar. Mas vamos logo fazer sua inscrição.

Entramos na escola e fiquei surpresa com a falta de criatividade dos humanos. Paratodo mundo que Saul me apresentava, ouvia o mesmo comentário: “sua filha é muitobonita”. Comecei a perceber que não iria ser tão fácil me infiltrar sem ser percebida.Cheguei até a perguntar para Saul em um momento que a diretora saiu para buscar

uns papéis:

– Você pode me deixar mais feia?

– Sinto muito. Não posso. Sem contar que seria uma pena esconder tamanha beleza.

Ele podia, mas não queria. Eu teria que ser muito criativa para aguentar aquilo durantetrês meses. Minha esperança é que só fizessem esses elogios abertos na frente do meusuposto pai. Quando eu ficasse sozinha deveria ser mais fácil.

O processo de matrícula aconteceu exatamente como planejado, tive que usar asugestão apenas uma vez, quando pediram nossos documentos. O resto foi bastante

tranquilo. Assinado os papéis, Saul deu a desculpa de que precisava ir embora efinalmente fiquei sozinha. Confesso que senti uma certa liberdade quando ele saiu, mesenti mais calma, como se agora tivesse total controle sobre a situação.

Três meses na escola. Um incêndio. Algumas mortes. Não poderia ser tão ruim assim.

A diretora me levou até a sala onde eu estudaria e pediu para aguardar na portaenquanto entrava para falar com o professor. Dali podia ver que a aula já haviacomeçado. Devia ser de matemática ou alguma outra ciência exata, pois a lousa já

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estava cheia de números e fórmulas. Os alunos pareciam ainda não ter acordadodireito ou simplesmente não estavam interessados no que o professor falava. Como aporta ficava no fundo, ninguém me viu parada ali. O professor fez uma pequena pausana aula e veio conversar comigo. Junto metade dos alunos se viraram para olhar trás.

– Eu sou Carlos, professor de física. Seja bem-vinda à nossa escola.

– O meu nome é Kara. Mudei esse final de semana para cá e os meus pais disseramque esse era o melhor colégio da cidade. Espero que quando falaram o melhor nãoquiseram dizer o mais exigente.

O professor riu da minha piada. Ou também estava encantado comigo. Não saberiadizer.

– Pode ter certeza que na minha aula eu serei bastante exigente. Você gosta de física?

– Posso ser sincera? – ele assentiu com a cabeça. – O meu forte é ecologia e história,principalmente as guerras.

– Vou fazer você gostar também das exatas. Pode entrar, vou conseguir um lugar paravocê.

Enquanto eu entrava na sala, todos os rostos acompanhavam meus movimentos.Alguns começaram a cochichar com os colegas do lado. Se eu fosse humana, nãoconseguiria ouvir direito. Estavam falando de mim. Algumas palavras que chegaramaos meus ouvidos foram "como ela é bonita", "deve ser modelo" e "será que ésolteira". De certa forma já estava começando a ficar acostumada com aquilo. Eu nãoachava a minha forma humana tão bonita assim, mas já ela estava causando uma boaimpressão eu teria que usar isso a meu favor para ajudar a me enturmar.

O professor indicou uma cadeira vazia bem na frente da sala, bastante próxima ao

professor. Não devia ser um lugar muito popular entre os alunos. Ele continuou com aaula e, mesmo estando na frente, podia perceber os olhares em mim. Demorei algunsminutos para recuperar a minha concentração. Ainda estava confusa com tudo queaconteceu na minha manhã. Quando finalmente consegui prestar atenção à aula, oprofessor havia acabado de explicar um exercício que teríamos que fazer. Ele começoua anotar algumas fórmulas na lousa e vi que todos começaram a anotar. Só nessa horapercebi que eu não tinha o material básico de uma escola: caderno e lápis.

A garota que estava sentada ao meu lado esticou uma folha de papel e uma lapiseiravermelha para mim:

– Acho que você vai precisar disso aqui – disse sorrindo.

Peguei da mão dela e agradeci.

– Eu sou Sara. Se precisar de mais alguma coisa, é só me chamar.

Ela sim era uma garota muito bonita. Cabelos loiros e compridos, um rosto bastantedelicado e pequenas sardas abaixo dos olhos azuis. Praticamente uma boneca deporcelana. A voz era doce e parecia ser educada e gentil com as pessoas.

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Enquanto eu copiava os exercícios, já ia automaticamente resolvendo. Eu sabia queexigiam um conhecimento avançado dos alunos, mas para mim eram como contas desomar e subtrair. Sara percebeu que eu havia terminado rapidamente e perguntou:

– Você conseguiu resolver o exercício número três?

Olhei na folha dela, Sara havia feito apenas uma pequena confusão com dois valores.Resolvemos juntas enquanto eu explicava a forma correta de calcular. Ela parecia seruma garota bastante inteligente, quase não tive que ajuda-la.

– Muito obrigada.

– Eu que agradeço pelo papel, não sei como pude vir para a escola de mãos vazias.

Sara era uma pessoa muito agradável de conversar. Todo adolescente precisa de umgrande amigo e, se a minha intuição continuava boa, ela seria uma grande amiga.

Voltei a conversar com ela na hora do intervalo. Fomos juntas até a pequena praça nomeio do prédio, um local ao ar livre onde ficava uma lanchonete e algumas mesas para

os alunos.

– Seu nome é Kara, né?

– Isso, desculpe, eu me esqueci de apresentar. Estou meio distraída hoje.

– Você é nova aqui na cidade?

– Sim, eu me mudei ontem. Estou gostando bastante da cidade. É muito bonita.

– Eu também gosto daqui, mas quero me mudar para a capital.

– Ah, é?– Eu tenho uma banda, sabe? Quero ir tocar na capital e ficar muito famosa.

– Uma banda? Que legal. Posso ouvir vocês tocarem um dia? – resolvi me empolgarcom a questão da banda, pois parecia ser muito importante para ela.

– Claro que pode. Iremos fazer um ensaio na sexta depois da aula. Quer ir comigo?

– Seria um prazer.

– Já aviso que não somos muito bons. Ainda – acrescentou Sara sorrindo. – Você tocaalguma coisa?

– Não. E você? Toca o quê?

– Eu fico no teclado. Meus pais queriam que eu me tornasse uma pianista clássica,mas eu não gosto muito. Eles nem podem saber que eu tenho uma banda. Ficariamdecepcionados.

– Que tipo de música vocês tocam?

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– Posso dizer que nossas músicas são um pouco pesadas demais para os ouvidos dosmeus pais.

Nós duas rimos juntas. Continuamos falando sobre a banda, que se chamava DeadDragons. Confesso que não entendi direito o estilo musical deles e não conseguiaimaginar como uma menina de feições meigas como as dela poderia tocar em um

grupo de rock. Tinha certeza que iria me surpreender no ensaio deles.O assunto mudou da banda para as diferenças entre as cidades do interior e a capital.Sara tinha um sentimento misto entre gostar do local onde nasceu e viveu até hoje e odesejo de ir para uma grande cidade e experimentar a fama.

Podia-se dizer que ela tinha grandes planos para seu futuro. Sempre pensei que a vidatem um prazo e deveriam se preocupar em aproveitar melhor cada momento dopresente. Não com o que virá. Eu também tinha um prazo. Três meses. Depois dissoeu voltaria à morte.

Só que conversando com Sara, fiquei com vontade de embarcar nos seus sonhos,como se pudesse compartilhar daquela urgência que ela sentia ao falar do futuro.

Ambição pessoal não era muito comum para mim. Talvez pela imortalidade, nunca tivepressa de chegar o dia seguinte. Agora tinha vontade de fazer parte desses próximosmeses do futuro de Sara.

E se ela fosse uma das pessoas que eu deveria levar? Será que ficaria feliz em morrerantes de fazer todo o sucesso que ela espera? O que ela faria nesses noventa dias sesoubesse que seriam seus últimos?

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Encontro inesperado

Foi só quando terminaram as aulas e que todos os alunos foram embora que eupercebi que não tinha planejado o que fazer com meu tempo livre. Meus únicoscompromissos eram durante o dia, com as aulas. Não tinha casa para onde ir, nemfamília me esperando. Não que eu precisasse de um lugar confortável para dormir oucompanhia para passar as noites, mas não poderia ficar desocupada por muito tempo.Acho que é por isso que os mortos não aguentam ficar muito tempo na Terra. Elesficam entediados.

Antes de encontrar algo com que ocupar meu tempo, eu tinha que falar com Teka.Queria perguntar sobre Maya e também explicar onde eu estava, o que estavafazendo. Só que meu comunicador não tinha sinal ali na região da escola. Geralmenteé possível usá-lo em locais sagrados e ali definitivamente não era o caso.

Já trabalhei em muitas batalhas e sei como é complicado falar abertamente de religião.

Essa guerra era eterna. Para não ter que me indispor em pergunta para alguém ondeficava uma igreja, resolvi caminhar pela cidade a procura de um lugar no qual pudesseligar para Teka. A escola ficava em um bairro afastado do centro e só havia casas porperto. O jeito era andar e aproveitar para conhecer melhor a cidade.

Como não tinha a menor ideia de qual direção seguir, escolhi aleatoriamente um lado esegui a rua da escola até o final. Acabei chegando a uma pequena avenida e seguipara o lado que tinha o maior fluxo de carros. Não sabia se era a melhor opção, mastinha que começar por algum lugar. Fui seguindo meu instinto.

Depois de muito andar, só percebi que havia escolhido o lado errado quando as casascomeçaram a ficar mais afastadas uma das outras e as ruas apresentavam sinal de má

conservação. Não se parecia mais nem um pouco com aquele bairro de classe médiaonde ficava a escola. Até então nenhum templo ou sinal de manifestação religiosa.

Já estava pronta para mudar de direção quando ouvi vozes em uma das ruas laterais.Parecia ser um pequeno grupo e estavam próximos de mim. Desviei meu caminho paraencontrá-los. Não seria imprudente de perguntar sobre igrejas, mas ao menossaberiam me apontar onde ficava o centro da cidade. Naquela situação, qualquer ajudaseria melhor do ficar andando sem rumo.

Andei pouco mais de dois quarteirões quando avistei os garotos. Eram quatro. Umdeles, aparentemente o mais velho, estava sentado sobre uma bola de futebol. Ao seulado tinha um de pé, com as mãos no bolso e apoiado na parede. Os outros dois

pareciam estar brigando, mas estranhamente também pareciam estar se divertindocom aquilo. O que estava apoiado na parede ria bastante. Talvez estivessem apenastreinando alguma luta ou se distraindo enquanto esperava o resto do time chegar para jogar.

Ele parou de rir quando me viu chegando. O que estava sentado se levantou e um dosque estava brigando se distraiu. O outro saiu correndo e então percebi que a briga erarealmente séria. O que fugiu parecia estar machucado, com sangue no rosto. Um delesameaçou correr atrás, mas o garoto mais velho o segurou com a mão e disse:

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– Deixe ele ir. Depois cuidamos dele.

Então olharam para mim e o que estava apoiado na parede disse:

– Tá perdida, princesa?

Nenhum deles estava com uma expressão amigável. O julgamento inicial que eu fizestava totalmente errado. Pela idade eu só poderia imaginar que eram criançasbrincando, mas agora pareciam mais com uma gangue. A postura deles era de quemqueria causar medo.

– Não acho que vocês possam me ajudar.

– Lógico que a gente pode. Somos a solução dos seus problemas.

Os outros dois riram. Pelo jeito era uma piada que eu não havia entendido. Ou talvez ohumor deles não fosse do mais convencional. Mas uma certeza eu tinha, aquele nãoera o lugar onde uma garota de quinze anos deveria estar naquele momento.

Enquanto eles iam se aproximando, fui pensando nas minhas opções. Não seria nadaagradável matá-los agora, sem contar que nenhum deles merecia morrer tão cedo.Talvez eu pudesse assumir minha forma espiritual e sumir ali mesmo, mas eu nãoqueria ficar fazendo truques de mágica. Não se quisesse continuar vivendo por trêsmeses naquela região. Resolvi fazer o que qualquer garota humana normal faria. Corri.

Nem prestei atenção para onde eu ia, só percebi que os garotos também corriam atrásde mim. Eles eram rápidos, talvez até conseguissem me alcançar. Eu só precisavaconseguir distância suficiente para sair do campo de visão deles e desaparecer. Vi umacasa próxima, com um portão baixo o suficiente para pular e com uma garagem ondeeu poderia me esconder. Apenas pelo tempo suficiente até desaparecer.

– Ela está entrando naquela casa. Corre! – disse um dos rapazes, provavelmente olíder do grupo.

Foi só eu pular o portão que ouvi a porta da casa se abrindo. De dentro saia um jovem, por volta dos dezoito anos. Devia ser um músico, pois tinha uma capa de violãopendurada nas costas. Ele não deve ter entendido o que eu fazia ali. Nem deve terpercebido que eu estava fugindo. Não falou nada, só ficou me encarando com os olhosarregalados e a boca aberta. Eu também fiquei parada e não sabia o que dizer, masdevo ter demonstrado uma enorme decepção, pois meu plano acabara de ir por águaabaixo.

O primeiro que me perseguia chegou junto ao portão e parou. Assustado também coma situação. Logo chegaram os outros dois. Então, o músico parece ter entendido o queestava acontecendo. Ele entrou na minha frente, como se quisesse me proteger, eencarou os três que ainda estavam na rua:

– O que vocês querem?

– Isso não tem nada a ver contigo. É entre a gente e a garota.

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– Você não quer arrumar encrenca, né? – disse o que antes estava brigando.

A expressão no rosto dos garotos era a mesma que eu já havia visto em muitosguerreiros. Eles iriam matar o pobre músico e eu seria a culpada de tê-lo envolvido nahistória. Como eu iria me explicar, quando encontrasse sua alma no mundo dosmortos? Que ele se sacrificou tentando salvar um anjo-da-morte? Tinha que tomar

alguma atitude.

Os dois da frente se aproximavam e ameaçavam entrar na casa. O músico, confianteou tentando mostrar confiança, avançava em direção a eles. O suposto lídercontinuava atrás, só observando toda a ação e esperando seus soldados lutarem peloseu prêmio. Ele seria o meu alvo.

Entrei na mente dele e sugeri que fossem embora. Não valia a pena lutar por mim,uma garota simples e sem graça. Alterei a imagem do músico para alguém forte econfiante, um guerreiro que eles não seriam capazes de vencer, mesmo em maiornúmero.

Era minha única chance, pois não conseguiria sugerir algo parecido para os três. Játinha me desgastado na escola e precisaria de algumas horas de sono antes derecuperar minhas forças. Por sorte, meu julgamento dessa vez estava correto e o lídertinha grande influência sobre os outros dois.

– Hei, deixa pra lá – os dois olharam assustados para ele. – Não vale a pena. Vamosembora.

Ninguém se mexeu.

– Eu disse vamos embora – reforçou o líder, dessa vez com a voz bastante firme.

Os dois devem ter achado estranha aquela decisão, mas não quiseram ir contra aordem. Olharam mais uma vez para nós dois, nos deram as costas e foram embora.Primeira confusão como humana resolvida.

O músico não se mexeu. Continuava olhando a rua. Esperei alguns segundos e elecontinuava lá, parado. Dei alguns passos para frente, afim de olhá-lo no rosto eentender o que estava acontecendo. Ele estava pálido, com as pupilas bastantearregaladas e as pernas levemente trêmulas. Coloquei meu braço sobre seu ombro eperguntei:

– Você está bem?

Ele não me responde, ainda olhando para o nada.

– Obrigada pela ajuda.

Ele se virou e foi até um pequeno banco que estava na varanda da casa. Sentou-se eficou alguns segundos olhando para baixo. Eu me sentei ao lado dele e esperei. Atéque ele se virou para mim e perguntou:

– O que eles queriam contigo? – a voz dele ainda fraca.

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– Não sei. Estava andando pela rua, eles me viram e começaram a correr atrás demim.

– E o que uma garota como você fazia andando sozinha pela rua? Ainda mais essahora.

Não havia reparado que já era quase noite. Também não sabia o que responder paraele. Realmente não devia ser normal andar sozinha pela rua naquele bairro.

– Eu estava perdida.

– E agora você sabe onde está?

– Não.

– Então continua perdida. Eu posso te dar uma carona, – disse ele apontando umamoto que estava encostada na garagem. – Mas você precisa me dizer onde quer ir.

– Poderia me levar até o centro da cidade?

– Você não bate muito bem da cabeça, né? Tem algum atrativo por lugares perigosos?– disse ele brincando.

Não respondi. Foi a primeira vez que vi o sorriso dele e percebi o quanto aquelemúsico era diferente dos outros humanos. Parecia com o rosto de alguém do mundodos mortos, um rosto angelical. Ele não tinha a beleza normal dos vivos.

– Venha, eu te levo até a sua casa. Onde você mora?

Ele já havia sido corajoso ao me proteger e estava sendo bastante simpático aooferecer a carona, não queria abusar da boa vontade dele, mas também não podiarecusar a gentileza. Pelo jeito eu teria que deixar para falar com Teka outro dia.

– Perto de uma escola. Uma que é um prédio quadrado, você conhece?

– Pelo menos você sabe onde mora. E o seu nome, você sabe?

– Eu sou Kara.

– Prazer, eu sou Daniel.

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Aula de música

No caminho de volta, Daniel insistiu que eu usasse o capacete. Só tinha um e, apesarde qualquer argumento que eu pudesse dar, ele não entenderia que apenas um de nósdois arriscaria a vida.

Como eu estava com a boca tapada e a moto fazia bastante barulho, não conseguimosconversar muito no caminho de volta. Ele me deixou na frente da escola e, para nãoter que explicar exatamente onde eu morava, disse para ele ficar tranquilo que eusabia o caminho de volta. Não sei se acreditou ou se achou que eu era muito estranha,mas ele acabou me deixando ali mesmo.

Achei melhor não me aventurar mais naquela noite. Estava bastante exausta eprecisava descansar. Na praça em frente à escola tinha uma casinha de brinquedo queiria servir. Pelo menos naquela noite. Procurei me aconchegar em algum canto e nemtive muito tempo de pensar porque eu havia aceitado aquela missão em condições tão

mal explicadas. Logo cai no sono.

Acordei com a luz do Sol. Tive a impressão de ter sonhado novamente com o acidentede avião e com Maya, mas não era uma memória muito clara. A rua em frente daescola já estava um pouco movimentada, os primeiros alunos chegavam para a aula.Era hora de enfrentar mais um dia. Só esperava que fosse um pouco mais tranquiloque o dia anterior. Pensando bem, nada podia ser mais confuso que o dia anterior.

Eu havia dormido bem e inclusive exibia uma aparência limpa e renovada, como setivesse tomado um bom banho. O meu corpo eu não podia mudar, mas trocar deroupas era fácil. Bastava pensar no que queria vestir e estava pronta. Saí do meuesconderijo e fui para a escola.

As aulas da manhã foram bastante tranquilas, conheci novos professores e Sara estavatão agradável quanto no primeiro dia. Ela também me apresentou outros amigos e memostrou a escola. Aproveitei para reconhecer o local onde seria o incêndio e, a cadapessoa que me era apresentada, ficava pensando se o nome dela estaria ou não nalista.

Por enquanto, essa parte escolar da minha vida humana estava sendo bastante fácil.Na hora de ir embora, já estava prestes a me organizar para procurar uma igreja,quando Sara me fez um convite:

– Estou indo para uma aula de música. Quer ir comigo?

– Eu tinha algumas coisas para fazer.

– É rápido e fica em uma igreja aqui perto.

Exatamente o que eu precisava.

– Pode ser – respondi.

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Eu preferia ir sozinha para poder conversar com Teka sem levantar suspeitas, mas euprecisava de uma guia para me mostrar a cidade. Sem contar que era bastantedivertido ficar ao lado de Sara.

Andamos apenas alguns quarteirões e já chegamos. Se ao menos ontem eu tivesseescolhido o lado certo, provavelmente teria encontrado. Não era uma igreja muito

grande, mas o importante é que fosse um lugar religioso, que realmente tivesse umaconexão com o céu. Já havia ido a templos enormes que não apresentavam sinalnenhum no comunicador. Aquela serviria.

A escola de música ficava em um pequeno prédio anexo ao templo. Chegando naentrada, uma moça simpática veio nos cumprimentar:

– Boa tarde, Sara.

– Boa tarde, professora. Trouxe uma amiga para fazer aula hoje. Ela pode participar?

– Você toca algum instrumento?

– Não, eu só vim ver. Só estou acompanhando a Sara.

– Qual o seu nome?

– Me chamo Kara.

– Fique a vontade, Kara, – disse a professora, me apontado algumas cadeiras onde eupoderia me sentar.

Sara se posicionou atrás do piano e eu fiquei na plateia. Ia ser divertido ouvi-la tocar.Uma prévia do que eu veria na sexta, no ensaio da banda. Os outros alunos ainda

estavam chegando e professora recebia todos eles com o mesmo sorriso. Logo a salaestava cheia, ela fechou a porta e foi dar início à aula.

Sara tocava algumas notas enquanto um garoto afinava seu violão e duas meninaspreparavam suas flautas. Só os três estavam com instrumentos. Outros sete alunos seposicionaram para cantar em coral. A professora coordenou alguns exercícios de vozcom eles antes de começar:

– Pessoal, como hoje nós temos uma convidada, gostaria de começar com uma músicamais popular.

Todos eles gostaram da ideia. Menos eu. Iriam cantar alguma música bem jovem e

moderna que eu teoricamente deveria saber de cor, mas que nunca havia ouvidoantes. Já estava preparando para disfarçar o sorriso quando eles começaram a cantar.

Estranhamente, o som me era familiar. Estava um pouco diferente, talvez pelosinstrumentos, mas eu conhecia aquela música. Era do Elvis Presley. Ele fazia muitosucesso e os shows dele estavam sempre lotados. Tive até que usar minha influênciacomo valquíria para conseguir um ingresso. Sem contar que aquela era uma dasminhas músicas preferidas: Can’t Help Falling In Love.

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Aqueles alunos tocavam e cantavam muito bem. Pude sentir a música entrando pelomeu ouvido. Podia sentir a emoção por trás de cada nota. Quase queinvoluntariamente comecei a cantar com eles.

Take my hand take my whole life too

Enquanto cantava, não sei por que comecei a me lembrar de Daniel. Imaginei elecantando comigo, em um dueto. Era como se fossem memórias relacionadas uma coma outra. Foi estranho, mas bastante agradável e combinava com o sentimento damúsica.

Eu me empolguei tanto que aos poucos todos foram parando de cantar. Na verdade,somente Sara continuou me acompanhando com o piano. Ao final, começaram a meaplaudir. Inclusive a professora parecia surpresa com a minha cantoria.

– Desculpa, acho que atrapalhei a aula de vocês.

Sara levantou do piano e veio correndo em minha direção:

– Você é demais, Kara! Não sabia que você cantava tão bem.

Será que as valquírias surpreendem os humanos em tudo? Mal tinha me acostumadocom todos me achando bonita, agora ainda teria que ouvir elogios sobre minha voz?

– Professora, ela pode cantar mais uma música? – pediu um dos alunos.

– Eu só sei a letra dessa música – respondi, me esquivando. – Não quero atrasar aindamais a aula de vocês.

– Você pode se juntar ao coral, se quiser – ofereceu a professora.

No fundo, eu queria. Foi muito gostoso sentir a música e com ela me lembrar deDaniel. Eu queria ter aquela sensação novamente. Aceitei a proposta. Posicionei-meonde a professora indicou e fui tentando acompanhar. Tudo fluia tão bem, de formatão natural e automática. Agora eu entendia a paixão de Sara pela música e, se eutambém tivesse um futuro para me planejar, escolheria ser cantora.

Nem vi o tempo passar e logo a aula acabou. Todos me elogiaram bastante e pediramque eu viesse mais vezes. A professora inclusive comentou que eu poderia ter umacarreira musical de muito sucesso, achando estranho que eu nunca tivesse feito aulas.Antes de ir embora, agradeci Sara pela experiência:

– Foi maravilhoso.

Ainda estava com as melodias em minha cabeça, mas não havia esquecido meuobjetivo ao ir com Sara para a aula. Depois que todos se foram, fui para um cantoescondido atrás da igreja e peguei meu comunicador. Fiquei muito feliz ao ver o sinalno máximo e uma mensagem da Teka:

 “Kara, onde você está? Preciso falar com você.” 

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Imediatamente liguei para ela. Não demorou muito e me atendeu:

– Kara?

– Oi, Teka.

– Você sumiu. O que aconteceu? – ela estava bastante ansiosa.

– Ontem tentei te chamar várias vezes depois que a ligação caiu. Você não vaiacreditar no que aconteceu. Estou na Terra.

– Não é possível.

– Vieram me oferecer uma missão logo depois que falei com...

– Não – interrompeu Teka assustada – não acredito que você está na Terra. Queriatanto encontrar com você para conversar.

Logo entendi o que estava acontecendo. Provavelmente estavam monitorando o sinalde nossos aparelhos, procurando alguma pista que pudesse leva-los até Maya. Nãopoderia conversar com ela pelo comunicador.

– Você pode vir até aqui? – perguntei.

– Eu ir até aí? Por quê? Você volta quando?

– Em três meses.

Ela ficou em silêncio por um tempo, provavelmente surpresa pelo longo período daminha missão. Depois ela continuou:

– Vou tentar conseguir uma autorização. Quem sabe eu não te faço uma visita no finalde semana?

– Seria ótimo. Temos tanto o que conversar.

– Tome cuidado.

– Tentarei continuar viva até a sua visita – brinquei.

– É sério, Kara. Cuide-se.

Ela desligou e eu percebi que estava realmente preocupada com a minha segurança.Não tive tempo de falar que a missão estava sendo acompanhada pelos einherjar, mastalvez eu estivesse mesmo correndo algum risco. Toda aquela missão já era estranhademais. O melhor era eu seguir o conselho da minha amiga e tomar cuidado.

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Dia do ensaio

Era apenas o segundo dia em que eu não acordava em minha cama e mesmo assim jáestava começando a me acostumar com a rotina. A casa de brinquedo do parque erade certa forma aconchegante. Ir para a aula era bastante divertido, não que os outroscolegas compartilhassem da minha opinião. Talvez eu pensasse assim, e estivessegostando, por ser apenas meu terceiro dia seguido como humana. Eles já estavam háanos nesse mundo, sem qualquer tipo de intervalo.

Renovada as energias, cabelos no lugar e roupa trocada, fui para escola. Foi quando eudescobri a primeira aula em que eu não era boa: educação física. Sara estava todaanimada, gostava da ideia de não ter que resolver contas ou ler algum texto. Elaencarava as atividades como brincadeiras. Eu simplesmente não conseguia.

Enquanto estava no aquecimento, correndo em volta da quadra, achei que seria fácil.Os problemas começaram quando fomos para os tais dos exercícios de alongamento.

Não sei o que acontecia, mas eu sempre errava qual braço ia para onde e qual pernaesticava e qual flexionava. Era estranhamente confuso para mim, mas parecia tão fácilpara todos os outros.

O desastre aconteceu depois, quando o professor resolveu colocar uma bola na minhamão e pediu para que eu a lançasse do outro lado da quadra por cima de uma rede.Primeira tentativa, a bola caiu nos meus pés e a mão atingiu somente ar. Segundatentativa, acertei a bola, mas ela foi para o lado, não para frente como deveria.Quando na terceira tentativa a bola acertou o meu próprio rosto, vi que era a hora dedesistir.

Eu acertei a mim mesma com tanta força, que até alguns meninos da quadra do lado

que estavam jogando futebol vieram perguntar se eu estava bem. Lógico que eu nãoestava, mas não por causa da bolada. Era por não entender como aquilo podia ser tãodifícil.

O professor percebeu que eu era uma negação para o esporte e resolveu me deixar emuma posição que não atrapalharia muito o jogo das outras garotas e que também nãotrouxesse riscos para mim mesma. E eu tomava o cuidado de fugir da bola e evitar oconfronto com qualquer outra pessoa. Mesmo assim era difícil. Parecia que eu era umimã de acidentes.

Sara foi quem me salvou, de novo. Ela falou alguma coisa com o professor, pegou umabola reserva e me chamou para uma área aberta perto da quadra:

– Você nunca jogou vôlei antes?

– Deu para perceber, né?

– Vou te ajudar. Primeiro, tem que criar uma intimidade com a bola.

Ela jogou a bola para mim e pediu que eu a batesse algumas vezes contra o chão. Nãofoi tão simples quanto parecia ser. Depois começamos a jogar a bola uma para a

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outra. Sempre que Sara pegava na bola, ela vinha exatamente na minha direção, masquando eu jogava para ela, a bola ia para lugares completamente distintos. Eu ficavacom pena de fazê-la correr tanto. Ela só dava risada e continuava firme na vontade deme ensinar.

Levou uma eternidade para eu conseguir ganhar uma intimidade mínima com o

esporte, até que a aula de educação física chegou ao fim. Mas não o pesadelo. De látodos os alunos foram para o vestiário, tomar banho e trocar de roupa. Não seria umgrande problema, o meu corpo era perfeitamente humano em todos os sentidos.Ninguém estranharia em me ver sem roupa. A questão era que todas as outras alunasestavam suadas e sujas. Eu continuava perfeitamente limpa e com os cabelosarrumados. Foi Sara quem me fez perceber isso:

– Kara, o que você passa no cabelo?

– Como?

– Olha, você tomou tanta bolada que era para estar até com hematomas. Mas nem seu

cabelo está desarrumado...

Olhei no espelho e, enquanto todas as outras garotas pareciam ter voltado de umaguerra, eu parecia ter acabado de sair de um banho e me arrumado para ir numafesta.

– Acho que não me dediquei tanto ao esporte quanto vocês.

Todos os olhares estavam em minha direção. Alguns de admiração, outros de inveja.Ambos me incomodavam. Coloquei minhas roupas usadas em um armário e as altereiali dentro mesmo, antes de ir tomar banho. No chuveiro fiquei o mínimo de tempopossível, apenas para manter as aparências como humana. Enxuguei-me com uma das

toalhas da escola, troquei de roupa e saí correndo de lá. Pronto, o próximo pesadeloseria apenas na semana que vem, mas eu já estava pensando em uma maneira deficar doente.

Passado todo o sufoco de eu descobrir que não tinha a mínima coordenação naquelecorpo humano tão admirado pelos outros vivos, lembrei que aquele era um dia muitoesperado. Ainda mais aguardado pela Sara, pois era o assunto mais comum de nossasconversas. Era o dia de ensaio da banda.

Eu finalmente iria conhecer a maior paixão da minha nova amiga. Pelo jeito ela estavabastante ansiosa, pois saiu do vestiário logo depois de mim:

– Vamos, meu irmão já me ligou, ele está nos esperando lá fora.O irmão dela também fazia parte da banda e estava nos esperando apoiado em seucarro, na porta da escola. Foi muito fácil reconhece-lo. Ele tinha os mesmos fios loirosno cabelo, pele e olhos bastante claros, com as pequenas sardas nas bochechas.Também parecia ser feito de porcelana. Se ele não fosse claramente mais velho queela, eu até diria que eram gêmeos.

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Dentro do carro tinha outro garoto. Ele tinha cabelos compridos, estava de óculosescuros, o braço apoiado para fora do carro, corpo reclinado para trás e olhando para oinfinito. Tinha pose de astro de rock. Em seu braço havia a tatuagem de um dragão eimaginei logo que deveria ser o idealizador e líder da banda. Pelo menos deve terinfluenciado bastante o nome dela, Dead Dragons

Sara foi logo abraçando seu irmão, que a recebeu de braços abertos. Um atoinesperado entre familiares dessa idade, mas bastante condizente com as atitudescarinhosas dela. Com o garoto do carro ela também foi bastante simpática, mas elepareceu não reagir da mesma forma. Só entendi onde estava a atenção dele quandofalou:

– Não vai nos apresentar sua amiguinha?

– Meninos, essa é Kara. Mudou recentemente para a cidade e estuda na minha sala.

– Prazer, eu sou Leo, irmão da Sara – disse esticando a mão para mim. – Ela faloubastante de você esses dias.

– Esse é Dado – continuou Sara, apontando o garoto dentro do carro. – Ele é ovocalista da banda.

– E também toco guitarra – acrescentou Dado com ar de superioridade.

– É um prazer conhecê-los – respondi educadamente.

Entramos no carro e fomos em direção ao local do ensaio. Falaram para mim que erauma casa ali perto, que eles alugaram exclusivamente para a banda.

– Não aguentava mais ficar carregando minha bateria – explicou Leo.

Durante o caminho, percebi que já conhecia aquela região. Estávamos indo para obairro onde eu havia me perdido. Acredito que o normal teria sido ficar com medo doataque que eu quase sofri, mas a primeira lembrança que tive foi de Daniel surgindoda porta com sua capa de violão pendurada nas costas. Seria coincidência demais elefazer parte da banda? Ou era apenas uma vontade minha de re-encontrá-lo?

O sentimento de esperança aumentou quando paramos exatamente em frente damesma casa. A moto dele estava lá parada.

– Chegamos – disse Leo.

Eu sabia o que significava destino, mas para mim era basicamente a forma como cadapessoa iria morrer. E sempre comigo por trás, coordenando de propósito cada ação.Não era costume meu associar eventos da vida com o destino, ainda mais semninguém ali para controlá-lo. Teria sido apenas coincidência o encontro com ele nomeu primeiro dia na Terra? Ou toda aquela missão estaria relacionada?

– Você vai ficar aí no carro? – perguntou Leo.

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Sara já estava entrando na casa, Dado pegava algum instrumento no porta–malas eLeo segurava a porta do carro aberta para mim. Eu estava perdida em meuspensamentos, olhando para a casa e imaginando re–encontrar uma pessoa que eunem sabia ao certo o motivo pelo qual eu queria vê–lo de novo.

Andei receosa em direção à casa, observando detalhes que antes eu não havia visto.

Um pequeno e bem cuidado jardim com alguns vasos do lado de dentro do portão,próximos à entrada da casa. A cor alegre das paredes e a cortina na janela da entrada.O chão limpo, inclusive sem folhas caídas dos vasos. Era uma casa bem simples, masmuito bem cuidada.

– Pode entrar, fique a vontade – disse Leo, me encorajando. – Gostou da nossa casa?

– Muito bonita.

– A dona é avó do Dado. Ela não cobra quase nada pelo aluguel e ainda mantém acasa limpa. Um amor de pessoa.

Fui entrando. Da porta pude ouvir a voz alegre de Sara que falava com outra pessoa.Reconheci quem era quando ele respondeu:

– Você trouxe uma amiga?

Era Daniel, mas estava diferente. Sua voz estava mais calma. Bem mais calma do quea do dia em que nos encontramos. Senti um pequeno calafrio no corpo, uma vontadede sair dali correndo. Do que eu estaria com medo?

Continuei entrando na casa, vi os dois conversando na sala. Daniel estava sentado nosofá, com um baixo no colo e a capa jogada de lado. O mesmo rosto angelical, cabelospretos, olhos vivos e atentos. Olhou em minha direção tão logo entrei na sala, com

uma expressão de surpresa. Sara percebeu e se virou para mim:

– Daniel, essa é Kara.

– Oi, Kara – falou com um sorriso.

– Oi, Daniel.

Ficamos em silêncio por um tempo, nos olhando. Não sabia o que dizer. Por sorte, elesoube como quebrar o gelo:

– Fugindo de alguém hoje?

– Fugindo? – perguntou Sara intrigada. – Vocês se conhecem?

– Nos encontramos outro dia, Kara estava...

– Correndo – interrompi. – Estava me exercitando na rua quando encontrei Daniel.

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– Isso, fazendo exercícios – disse Daniel, confirmando a minha mentira. – Eu tinhavindo aqui buscar meu baixo e ela estava passando na rua.

– Que estranho – falou Sara.

– Não acredita em coincidências, Sara? – brincou Daniel.

– Em coincidências eu acredito, só não acredito que a Kara estivesse praticandoesporte – zombou Sara.

Nós duas rimos, Daniel obviamente não entendeu a piada, mas Sara logo tratou deexplicar. Contou e imitou todos os movimentos tortos e boladas no rosto que eu tomeina escola. Daniel ria e aos poucos também entrei na brincadeira.

– Aquela bola tinha vida própria, eu juro – comentei rindo.

Logo os outros dois entraram na casa, carregando o teclado da Sara e a guitarra doDado, além de uma sacola com alguns acessórios de som.

– O que é tão engraçado? – perguntou Leo.

O ambiente ali era muito agradável. Pude perceber que eram todos uma grandefamília. Inclusive Dado com seu ar superior de estrela da música também demonstravaum grande carinho pelos seus companheiros. Juntos foram ligando todo oequipamento, enquanto contavam histórias esportivas uns dos outros:

– Lembra quando o Leo queria descer aquela escada de bicicleta?

– E quando o Dado perdeu o tênis tentando chutar a bola?

– Foi direto na janela da vizinha.

Aos poucos vi que não era a única descoordenada no esporte. Talvez fosse a mais,mas todos tiveram seus momentos constrangedores. Menos Sara:

– E Sara? Ela não tem nenhuma história? – perguntei.

Todos pararam uns segundos em silêncio, pensando, e responderam todos juntos:

– Não.

– Ela sempre foi boa em esportes – completou Leo.

– E na música também – elogiou Dado.

– Então vamos tocar? – interrompeu Sara.

Procurei meu lugar no sofá, de onde pudesse assistir àquele ensaio–show particular. Jáhavia ouvido Sara tocar e ela era muito boa. Os outros três também deviam ser bonsmúsicos, apesar de falarem que eram amadores. A minha curiosidade não era sobre a

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qualidade da banda, mas sim do estilo. Sara tentou me explicar inúmeras vezes, masnão entendia e também não conhecia nenhuma música de referência que ela dava. Onegócio era ouvir e tirar minhas próprias conclusões.

– Vamos começar com qual? – perguntou Dado.

– Pode ser uma com piano? – foi a sugestão da Sara.

– Quer mostrar o que sabe para sua amiga? – brincou Dado. – Vamos de Evanescence,então. Dedico a nossa primeira música para Kara: My Immortal.

Engoli em seco enquanto eles faziam a contagem para começar. Ele havia acabado deme chamar de imortal ou aquele era o nome da música? Não tinha como ele saberquem eu era, tinha?

Abandonei minha paranoia quando Sara começou a tocar, um som leve de piano ebastante diferente do que eu havia ouvido na aula, mais triste. Depois entrou Dadocantando com uma emoção tão forte que fiquei impressionada. Aos poucos conseguia

sentir aquela música entrando em meu corpo e dominando meus sentimentos.

Logo Leo e Daniel entraram e me surpreenderam com uma mistura de sons, diferentedo que eu estava acostumada a ouvir. Já estava bastante arrepiada, quando senti queuma lágrima escorria dos meus olhos.

Eles terminaram a música e ficaram me olhando, esperando alguma reação minha. Euestava sem palavras. Não conseguia reagir àquele momento tão diferente. As emoçõesno céu não eram tão fortes, pelo menos não para mim.

– Ela está chorando? – sussurrou Leo para sua irmã.

– Talvez porque a gente toque muito mal – respondeu Daniel.

– Eu... eu gostei – minha voz saiu fraca. – Posso ouvir mais uma?

Eles se empolgaram e continuaram tocando uma música atrás da outra. Todas elascausavam uma reação diferente em mim. Estava envolvida com cada nota tocada eestava adorando viver cada momento naquela sala.

Não sei quanto tempo passou, mas minha consciência só voltou ao normal quando elesfizeram uma pausa. Na verdade, só depois de alguns minutos depois que eles jáhaviam parado de tocar, quando Leo falou:

– Acho que nós derretemos o cérebro dela.

– Vou tomar uma água – falou Dado. – Quem sabe dá tempo dela colocar a cabeça nolugar.

Sara saiu de trás do teclado e veio sentar ao meu lado no sofá.

– O que está achando?

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– Estou adorando. Quero vir em todo ensaio, posso?

– Claro que pode. Inclusive pode participar deles se quiser.

– Minha irmã disse que você canta muito bem – disse Leo sentando ao meu lado. –Você podia nos mostrar do que é capaz.

– Não conheço muitas músicas. Muitas dessas que vocês tocaram estou ouvindo pelaprimeira vez.

– Em que mundo você vive? – perguntou Dado.

– Um não musical? – brinquei.

– Ela cantou Elvis na aula de música – comentou Sara. – Que outra música velha nóssabemos tocar?

– Tenho certeza que ela ouviu essa – e Daniel começou a tocar.

Era uma sequência de notas que eu realmente já havia ouvido. Os recém-mortos osadoravam e estavam fazendo bastante sucesso, apesar da banda estar incompleta ealguns integrantes ainda estarem vivos.

– Beatles? – perguntei.

– Twist and Shout, baby. Vamos, cante comigo! – Daniel estava de pé, me chamandopara acompanhá–lo. – Se não souber a letra, é só repetir depois de mim.

Levantei e fui até o pedestal. Daniel já estava ao lado, com a cabeça bem próxima domicrofone. Olhando diretamente em meus olhos e começou:

– Shake it up baby, now.

Novamente a música parecia querer fluir naturalmente. Coloquei minha boca próximaao microfone e comecei a acompanhá–lo como segunda voz.

– Shake it up baby.

Daniel sorriu ao me ouvir cantando. Na aula de música tinha me imaginado cantando junto com ele e agora estávamos fazendo isso, com uma distância corporal mínima.Era assustador, mas ao mesmo tempo não queria me afastar dele por nada nessemundo.

Continuamos cantando e eu me arrepiava cada vez que ouvia ele falando frases comovocê sabe que é bonita, chegue um pouco mais perto e você sabe que é minha. Eu seique elas fazem parte da música, mas assumem um significado todo particular quandosão recitadas a poucos centímetros do seu rosto com os olhos fixados no seu. Euestava hipnotizada.

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Quando terminamos, Sara começou a aplaudir. Sai do meu estado de êxtase e olheipara a plateia. Leo e Dado estavam boquiabertos e levaram alguns segundos paraacompanhar as palmas de Sara.

– Você realmente sabe cantar, garota – comentou Daniel.

– Acho que encontramos um novo membro para nossa banda – Leo parecia estarempolgado.

– Pena que ela não conhece nossas músicas – acrescentou Dado, não muitoempolgado com a ideia de ter outra vocalista disputando a atenção.

– Eu ensino para ela, nos vemos todos os dias na escola.

– Não posso aceitar, Sara. Vocês já têm um vocalista e eu não tenho experiêncianenhuma com música.

Eles não gostaram muito e tentaram me convencer a participar, mas eu já estava me

envolvendo demais com aquelas pessoas. Minha missão na Terra era apenas observare analisar. Só a minha presença já podia estar alterando o rumo da vida deles. Asvalquírias só devem interferir se for para cumprir o destino, seja esse garantir a morteou fazer com que continuem vivos.

Só que eu também havia gostado e não iria conseguir me afastar totalmente.Participar e alterar o rumo da vida deles ou me afastar e deixá–los seguir com suasvidas? Nenhuma decisão humana é fácil, por mais simples que pareça. Escolhi ocaminho do meio, ou seja, fugir da decisão:

– Vou pensar.

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Conhecendo Daniel

Já era tarde e todos tinham que voltar para suas casas. Leo e Dado guardavam osequipamentos no carro, enquanto discutiam sobre o melhor caminho a fazer para medeixar em casa. No que Daniel interferiu:

– Eu posso levá-la.

O argumento era que minha casa ficava fora do caminho pelo qual Leo iria passar comseu carro, mas não seria um desvio muito grande para Daniel. Logicamente que eunão recusei, gostava de presença dele e seria muito bom andar novamente em suamoto.

Os três foram embora e Daniel entrou na casa para buscar seu baixo. Fiquei esperandodo lado de fora. Quando ele saiu da casa com a capa de violão nas costas,imediatamente me lembrei do dia em que o vi pela primeira vez. Tenho certeza que eletambém se lembrou ao me ver parada ali no meio do jardim.

– São engraçadas as coincidências, não acha? – perguntei para ele.

– Talvez seja o destino – disse me entregando o capacete. – Estou com fome. Topaparar em algum lugar para comer um lanche?

O certo seria recusar, mas também era impossível dizer não. Respondi apenas com omovimento da cabeça e peguei o capacete relutante:

– Da próxima vez, melhor trazer dois capacetes.

– Não se preocupe, não vou morrer.

Realmente, ele não iria, mas qualquer acidente que houvesse, para mim não fariadiferença estar protegida ou não. Para ele, sim.

– Dirija devagar, por favor.

Fomos para uma grande lanchonete que tinha em uma avenida próxima de ondeestávamos. Eu não gosto muito de comida, mas precisava acompanhar ou ficariaestranho. Afinal, estava o dia inteiro sem comer e deveria estar faminta. Eu não tinhadinheiro e nem podia materializá-lo do nada. Por sorte, ele fez questão de pagar.

– Qual a sua história? – perguntou Daniel depois que nos sentamos, antes de começara comer seu lanche.

– Como assim?

– Poderia começar me contando de onde você veio.

– Eu morava na capital. Meu pai foi transferido para trabalhar aqui e eu vim junto.

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– Só isso?

– É. Ele me matriculou na escola da Sara, foi onde a conheci.

– Hum. Isso não explica porque aqueles moleques estavam correndo atrás de você.

– Já te disse. Estava perdida.

– Não sei, mas tenho a impressão de que você está escondendo alguma coisa.

– Você acha que estou envolvida em roubos e tráfico de drogas?

– É, parece algo que você faria. Com esse rosto angelical, ninguém desconfiaria. Podiaaté se tornar uma assassina profissional.

– É o que eu faço de melhor.

Ele riu. Eu também.

– E você? Qual a sua história? – continuei.

– Não é nada interessante. Trabalho com meu avô em uma empresa de transporte.Trabalho de escritório.

– Ah, tá. Achei que você era um justiceiro que salvava garotas inocentes perseguidaspor gangues malvadas.

– Essa carreira eu comecei nessa semana, mas já desisti.

– Você se saiu muito bem naquele dia. Acho que os garotos ficaram assustados comsuas pernas tremendo

– Talvez pela palidez do meu rosto.

– E quando você começou a tocar?

– Há cinco anos comecei a ter aulas de música, foi onde conheci o Dado e o Leo. Elesqueriam montar uma banda e eu entrei com eles.

– Sara entrou depois?

– Isso, ela era muito pequena na época, mas já fazia aulas de piano clássico. Um diaLeo a levou em um ensaio e ela adorou tocar outro estilo musical. Virou nossamascote.

– Eu acho que ela vai fazer muito sucesso. Vocês todos vão.

– Não me importo muito. Não toco para fazer sucesso.

– Por que você toca então?

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Ele ficou um tempo em silêncio antes de responder.

– Para esquecer – disse Daniel olhando para seu lanche.

– Esquecer o quê?

Ele levantou seus olhos e me respondeu:

– Outro dia eu te conto.

– Gostaria de ouvir sua história, se você não se importar.

Daniel colocou o lanche sobre a mesa, tomou um gole de seu refrigerante e começou:

– Comecei a tocar como terapia, foi uma sugestão da minha psicóloga. Quando eutinha quinze anos estava viajando de férias com meus pais. Era a primeira vez que euviajava de avião. Meus pais estavam sentados atrás de mim. Do meu lado estava umagarota da sua idade, parecia bastante contente também. A gente conversava sobre

tudo e já estava até fazendo planos para depois do voo. Se desse, faria todos ospasseios de férias com ela. Lembro inclusive da minha mãe comentando baixo commeu pai: “esses adolescentes, se apaixonam tão rápido”. Não sei se estavaapaixonado, mas estava tudo perfeito demais para ser verdade.

– O que aconteceu?

– De repente o celular dela começou a tocar. Ela olhou o aparelho, se virou sorrindopara mim e disse: “não vai doer nada, não se preocupe”. Aquelas palavras nunca maissaíram da minha cabeça. Ela se levantou correndo e foi até a parte de trás do avião.Cheguei a me levantar para acompanhá-la, mas não deu tempo. Ouvi um barulho deexplosão do lado de fora. Logo minha visão começou a embaçar e eu desmaiei.

Daniel fez uma pequena pausa, respirando fundo, como que se preparando para aparte mais difícil da história. Eu não estava acreditando no que ouvia, simplesmentenão era possível.

– Acordei em um barco de pescadores. Não sei como cheguei lá e nem sabia o quehavia acontecido. Só fui ficar sabendo dois dias depois. O avião havia caído. Todos queestavam dentro morreram. Menos eu.

– Não é possível.

– Todos disseram que foi um milagre, mas para mim foi mais uma maldição.

– Não acredito... – estava atordoada e acabei pensando em voz alta. – Maya.

– Você conhecia ela? – Daniel parecia tão surpreso quanto eu.

– Ela era minha amiga – novamente as palavras saindo sem querer da minha boca.

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Ficamos em silêncio. Não sabia o que dizer. Eu estava frente a frente com o garoto quefez com que Maya fosse para reclusão. Aquilo não podia ser simples coincidência e aomesmo tempo era muito estranho para ser obra do destino.

Daniel colocou suas mãos sobre as minhas, levantou a cabeça e disse:

– Você deve sentir muita falta dela.

– Não mais do que você deve sentir falta de seus pais. Já faz cinco anos. Queria tantoestar com ela agora.

– Um dia iremos encontrá-los novamente.

– Espero que sim – e comecei a chorar.

Ele enxugou a lágrima de meu rosto com a mão e puxou minha cabeça para o seuombro. Comecei a lembrar de Maya e do quanto ela fazia falta. Eu não era completasem a presença dela. Senti as lágrimas de Daniel também no meu ombro. Sempre foi

mais fácil para os parentes que vão do que para os que ficam.

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Recebendo visita

Acordei na minha casinha de brinquedo, ouvindo alguém me chamar:

– Kara?

– Quem está aí?

Abri meus olhos com dificuldade, ainda não estava totalmente recuperada. No diaanterior havia tido uma enxurrada de sentimentos com os quais não estavaacostumada. Devagar fui reconhecendo a voz e a imagem que se formava na minhafrente.

– Bonita casa você tem aqui.

Teka estava abaixada em frente à pequena porta que dava acesso ao meu dormitório.

– Você conseguiu vir!

Levantei com um ânimo súbito e me joguei nos braços dela. Depois de me abraçar, elame afastou como se quisesse me examinar.

– Você está há apenas quatro dias na Terra e já está alterada? Cadê aquela Kara sériae focada que era a minha coordenadora?

– Não dormi bem ontem a noite.

– Serão três meses, né? É melhor se cuidar, pois ainda nem passou da primeirasemana.

– Queria tanto que você ficasse aqui comigo.

– Minha licença é só para hoje, logo terei que voltar.

– Não quer pedir outra para vir trabalhar comigo? Afinal, somos uma dupla.

– Melhor ainda se fosse o trio completo – disse Teka triste.

– Como está Maya?

– Não sei. Ela apareceu em casa do nada, falou com você pelo comunicador edesapareceu. Disse que era perigoso para nós duas se ela ficasse por perto. Tem todauma equipe procurando ela, mas ninguém achou nenhuma pista.

– Não consigo entender.

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– Também não. Dizem que ela saiu da cadeia para matar o garoto que ela deixouviver. Só que não faz nenhum sentido. Mesmo se fosse isso, porque ela fugiria faltandotão pouco tempo para ser libertada?

– Eu o conheci.

– O quê?

– Daniel. Ele mora nessa cidade.

– Não é possível.

– Ontem ele me contou que sobreviveu a um acidente de avião onde todos os outrosmorreram.

– Tem certeza que é ele?

– Tenho. Ele inclusive se lembra da Maya.

– Ela realmente o salvou?

– Parece que sim. As últimas palavras de que ele se lembra foram: “não vai doernada”. Maya disse isso antes dele desmaiar com a despressurização. Depois, eleacordou em um barco, sendo resgatado.

– Incrível. Eu sempre achei que era mentira dos jornais. Sempre pensei que a listaestava errada e Maya era inocente.

– Até mesmo se ela tivesse se esquecido de matar uma pessoa eu entenderia, masnunca imaginei que ela realmente o tivesse deixado viver.

– Dizem que ela se apaixonou. Mas não acredito nessa hipótese

– Se isso fosse verdade, por que ela não o matou logo, para ficar com ele? –argumentei.

– Valquírias não se apaixonam e ponto. Todas nós sabemos disso. Você acha que elaestá atrás dele?

– Ou talvez queira que eu faça o serviço – respondi. – Afinal, foi ela quem pediu queeu aceitasse essa missão.

– Aliás, como você entrou nessa história?

– Depois que falei contigo no telefone, Saul apareceu na porta da minha casa – quandofalei o nome dele, Teka ficou boquiaberta. – Foi ele quem me ofereceu, disse queprecisava de um favor e que eu era a única habilitada a ficar infiltrada na Terra.

– Ninguém está habilitado para ficar três meses.

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– Eu disse isso também. Espero que consiga controlar a loucura.

– E agora o serviço é na região do garoto que não morreu?

– Eu me lembro de Saul ter falado que tinha uma alma muito importante nessa escola.Será que eu vim para proteger Daniel?

– Só os einherjar para colocar uma valquíria de anjo da guarda. Será que eles achamque Maya irá matá-lo sem autorização? Ela não faria isso se você estivesse por perto.

– O que obviamente não é o caso, já que foi ela mesma quem pediu que eu viesse.

– Não estou entendendo nada – concluiu Teka. – Você já tem as informações doevento?

– Só sei que vai ser um incêndio nessa escola – disse apontando pela janela dacasinha, – em três meses.

– E o que você ficará fazendo até lá?

– Vivendo.

– Deve ser por isso que os mortos ficam loucos na Terra.

– O que mais incomoda é a forma como as pessoas me olham.

– Por causa da beleza?

Confirmei com a cabeça.

– Já pensou se algum garoto tenta te roubar um beijo?

– Seria desastroso.

– Falando em garotos, como é esse tal de Daniel?

– Parece que veio do céu. Quer conhecê-lo?

– Não tenho permissão para aparecer diante de humanos.

– Tudo bem, vamos disfarçadas.

Eu não sabia exatamente onde ele morava, mas tinha uma boa ideia de onde procurar.Era como um cachorro seguindo um cheiro. Eu só tive que sintonizá-lo em minhacabeça e seguir o caminho que eu achava correto.

Chegamos a uma casa azul, grande, com dois andares e várias janelas por todos oslados. Quem a construiu devia gostar muito de luz natural. O quarto de Daniel era naparte de cima. Aproximamo-nos da janela e ficamos observando. Ele estava deitado nacama, ainda dormindo.

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– Ah, entendo.

– Quem você vai levar?

– Sei lá. Acho que ninguém.

– Você poderia levar a Kara.

Nessa hora Teka olhou para mim, como que confirmando a teoria dela, eu dei deombros e continuei escutando.

– Por mim tudo bem, pode chamar ela – respondeu Daniel.

– Eu não tenho o telefone dela.

– Vocês não são amigas?

– Somos, mas esqueci de pedir. Pensei que você poderia ir até a casa dela.

– Eu não sei onde ela mora.

– Você não deixou ela em casa ontem? – Sara parecia ter ficado brava.

– Levei, mas deixei na frente da escola. Não sei qual é a casa dela.

– Droga. Ela iria gostar de ver os Dead Dragons no palco.

– Hum, vou tentar encontrá-la, ok? A gente costuma se esbarrar por aí, quem sabenão nos vemos por acaso.

O comunicador da Teka começou a tocar. Era a hora dela ir embora.

– Tente vir mais vezes, Teka. Adorei te encontrar.

– Pelo menos hoje à noite você não vai ficar sozinha. Cuidado. Não quero perder maisuma amiga.

Abraçamo-nos e ela se foi. Daniel já havia desligado o telefone e estava falando emvoz alta:

– Como vou fazer para encontrar Kara agora?

Ao mesmo tempo eu pensei: “como vou fazer para ele me encontrar?”.

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Esperando

Daniel voltou a se deitar, ainda ensaiando se iria realmente sair da cama ou não. Eunão poderia simplesmente aparecer ali na janela do seu quarto. Precisava bolaralguma maneira de garantir que ele me encontrasse, mas que parecesse casual eespontânea.

Não. Por mais que eu quisesse, não podia ficar acompanhando ele o dia inteiro paraaparecer por coincidência em algum lugar. Não é normal um humano ser perseguidopor uma valquíria. Pelo menos não os que vão continuar vivos. Esse tipo de atitudepoderia chamar a atenção de algum anjo da guarda e atrapalhar meu disfarce.

Como ele já havia comentado que iria me procurar, o mais óbvio é que fosse até apraça em frente à escola. É lá que eu ficaria esperando. Talvez lendo um livro ousimplesmente passeando. Ele acreditaria ser coincidência.

Outra possibilidade era eu simplesmente ir a tal festa como se fosse meu programa desábado, encontrando eles por acaso. Só teria que resolver o problema da minha idadeaparente, mas não seria muito difícil. Resolvi deixar isso como um plano B, caso aprimeira opção não desse certo.

Para garantir, eu precisava do endereço. Enquanto me despedia de Teka, lembrava deter visto ele anotar algo em um papel. Entrei no quarto dele e fui até a escrivaninha.Lá estava escrito “Night Raven 19 horas”. Imaginei que seria o nome do bar e ohorário em que eles deveriam chegar lá. Nenhum endereço, mas isso não foi umproblema. Ao lado tinha uma propaganda do mesmo bar, anunciando outro grupo.Provavelmente o que havia cancelado. Tinha inclusive um pequeno mapa de comochegar lá, que fiz questão de anotar. Não queria arrumar confusão ao andar sem rumo

novamente.

Quando terminei de anotar tudo que eu precisava, Daniel começou a se levantar. Umpouco sonolento ainda. Fiquei apenas observando. Foi só quando ele começou a tirar aroupa que eu percebi que a minha presença era um pouco indiscreta. Instintivamentefechei os olhos, mas não queria sair de lá. Tampouco resisti muito tempo de olhosfechados.

Abri devagar e ele já não estava mais no quarto. Estava no banheiro, tomando banho.A visão não era muito nítida e nem completa, mas dava para ter certeza de que ele eraum humano feito nos moldes de um anjo. Não me lembro de ter visto um vivo tãobonito como ele.

Aos poucos o banheiro foi ficando esfumaçado com o vapor e eu resolvi aproveitar queestava ali para espionar o quarto dele.

Ao lado de sua cama tinha um porta retratos com a foto de um casal. Logo imagineique era dos pais dele. Os dois também eram muito bonitos e aparentavam serbastante jovens no momento da foto. Não dava para saber se era uma foto antiga ouse eles haviam morrido cedo. De qualquer forma, Daniel devia sentir muita falta deles.

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Em um mural ao lado da escrivaninha tinha mais algumas fotos, provavelmente deamigos e parentes. Também alguns desenhos. A maioria deles de dragões. Naverdade, Daniel tinha um certo fascínio por esses seres mitológicos. Em uma prateleiraacima tinha uma dezena de bonecos e nas paredes alguns cartazes. Todos eles dosmais diferentes tipos de dragão. Não era só o Dado, com sua tatuagem, que deve terinfluenciado o nome da banda Dead Dragons. Eu também acho que são criaturas

fascinantes, mas que infelizmente nunca existiram.

Quando ouvi o chuveiro desligar, achei que seria melhor ir embora. Tentei prometer amim mesma que não entraria mais escondida no quarto dele, até para não chamaratenção de nenhum espírito. Mas fiquei sentada na janela esperando ele se vestir,antes de ir embora.

Ao chegar na praça, escolhi um banco bem próximo da rua, de frente para a escola.Com certeza ele me encontraria ali sem fazer qualquer esforço. Só tinha agora queesperar.

E pensar no que dizer.

Poderia dizer que estava descansando. Ou conhecendo a cidade. Que adoraria sair comele de noite. Quer dizer, adoraria ir vê-los tocar. Mas primeiro ele teria que meconvidar. Deveria aceitar rapidamente? Ou dizer que ia pensar no convite? Aí eu teriaque inventar uma desculpa. Algo que eu teria que fazer de noite, mas que tentariadesmarcar para ir ao show. Também poderia falar que não iria, infelizmente. Masaparecer na hora e fazer uma surpresa. Só que eu não tinha idade para entrar sozinhae ele poderia desconfiar. Eu teria que entrar como convidada. Como se fosse membroda família? Uma amiga distante? Prima. Prima é melhor. Não queria alguém pensandoque sou a namorada dele. Ele não pode namorar uma garota da minha idade. Pode?

Há menos de uma semana eu era responsável por todo um terremoto, coordenavauma equipe de centenas de valquírias e tinha o controle completo da situação. Agora,eu não sabia nem o que dizer para um garoto que viria me fazer um simples convite.

Quer dizer, que eu achava que viria.

A casa dele não era tão longe da praça. Será que ele havia desistido de me convidar?Não, ele falou para Sara que faria isso. Não era nem por mim, mas pela irmã do amigodele. Mas que ele estava demorando, isso estava.

Talvez ele viesse só depois de tomar café-da-manhã. Ou teve que passar em algumlugar antes, como levar a avó para fazer feira. Ao contrário de mim, ele tinha outroscompromissos cotidianos. Eu só precisava ter paciência. Uma hora ele apareceria.

Como era difícil esperar.

Até que ouvi o som da moto dele. Deveria estar a umas duas quadras de distância.Achei que isso faria a ansiedade sumir, mas só piorou. Os batimentos cardíacosficaram tão fortes que meu corpo parecia estar se preparando para uma luta. Nãoestava acostumada a essas reações hormonais.

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Quando vi ele virando a esquina, meu coração parecia que ia saltar pela boca. Até o arparecia ter ficado mais gelado, mas, apesar de sentir frio, minhas mãos suavam. Comoesse corpo humano é esquisito.

Por sorte lembrei-me de um rapaz, que, no meio da guerra, quando percebeu que iriamorrer por um bombardeio, sentou-se no chão e começou a respirar fundo. Ele ficou

bem calmo e pude retirar sua alma quase que instantaneamente. Tentei fazer igual.

Respirei uma. Duas. Três vezes. Antes de começar a quarta, já me sentia melhor eminha mente estava bem centrada. Foi o tempo exato para que Daniel parasse comsua moto na minha frente. Ele retirou o capacete e disse:

– Olá, tudo bem?

– Tudo. E você?

– Você gosta dessa praça, né?

– Eu me sinto bem aqui. Poderia até morar nela.

Ele riu e se levantou da moto. Veio caminhando em minha direção e se sentou ao meulado no banco.

– É, é bem relaxante.

Silêncio. Eu não sabia o que dizer e ele não falava nada. Cada segundo que passavaparecia uma eternidade. Eu tinha que falar alguma coisa, mas na minha cabeça sóvinham as palavras: “sim, eu quero ir hoje a noite ver o show”. O único problema éque eu ainda não havia sido convidada.

Olhei para o lado e vi ele pegando algo no bolso. Era um aparelho para tocar música.Ele ofereceu um dos fones para mim e colocou o outro em seu ouvido. Fiz o mesmo.

– O que você acha dessa música?

Começou calma, mas com uma voz que parecia estar com bastante raiva. Logo entrouum som mais pesado e o verso que mais me marcou:

 “I kiss the strangersAnd then watch then die” 

No final ela termina com a frase:

 “I am the kiss of death” 

Não sabia que os humanos ainda faziam músicas para as valquírias.

– Gostei. Quem canta?

– Doro Pesch. Ela tinha uma banda de heavy metal alemã, chamava Warlock.

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– Vocês não tocaram essa música no ensaio.

– Não. Eu estava pensando em colocá-la no nosso repertório. O que você acha?

– Acho que pode ficar legal.

– Na verdade, pensei em você cantando ela.

– Você ouviu essa música e se lembrou de mim?

– Mais ou menos.

– “Eu sou o beijo da morte” – falei com uma voz sombria.

Ele riu.

– Não é isso. Tem várias músicas que eu adoraria ouvir você cantando.

– Eu não faço parte da banda.

– Uma pena. Pelo menos você gostou de nos ouvir, né?

– Claro. Já sou praticamente uma fã.

– Os Dead Dragons vão fazer um show hoje. Quer ir?

Finalmente ele me convidou. Toda aquela conversa era para chegar nisso?

– Adoraria.

Ele sorriu.

– Seu pais deixam você ir?

– Hum, eles não vão negar. Que horas vai ser?

– Nós teremos que chegar lá às 19h, para passar o som. Posso te pegar na sua casa.Onde você mora?

– Melhor eu te encontrar aqui na praça. Não acho que eles vão gostar de me versaindo com um cara mais velho e de moto.

– Combinado. Passo aqui uns dez minutos antes.

– E traga dois capacetes.

Foi bem mais fácil do que eu havia imaginado. Difícil foi ter que esperar o resto do diapara ele vir me buscar.

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Vivendo o momento

Chegando à casa noturna, nem mesmo o painel luminoso escrito Night Raven estavaligado. Tinha apenas uma garota na porta, vestida de preto e com um cigarro na mão.Ela nos indicou que o resto da banda já estava lá dentro.

Ao me ver entrando, Sara veio correndo ao meu encontro, dando um caloroso abraço:

– Que bom que você veio!

O lugar era bem maior do que parecia pelo lado de fora, mas bastante vazio. Perto daentrada tinha um bar e no fundo tinha um palco não muito alto. Não havia cadeirasnem mesas. Todas as paredes eram pintadas de preto. Um ambiente bastante simplese sombrio.

Do lado do palco tinha uma pequena sala que serviria de camarim. Era lá que nósduas, as menores de idade, ficaríamos durante o show.

Os meninos estavam ligando os equipamentos e eu reparei que tinha um teclado,apesar de ter ouvido que Sara não poderia tocar. Não comentei nada, mas nãodemorou para eu entender o que estava acontecendo.

Logo aquela garota que vimos na porta entrou e sentou atrás do teclado, falando algosobre repassar as músicas para ela se enturmar.

– Quem é essa garota que está no seu lugar?

– Uma amiga do Dado. Ela é meio estranha, mas como não tenho idade para tocaraqui, tiveram que chamar alguém.

– Como assim estranha?

– Esquece. Venha aqui, quero te mostrar uma coisa.

De uma das bolsas que estavam no camarim, ela retirou uma pasta e entregou paramim. Abri e vi o que parecia ser uma série de letras de músicas, com algumasmarcações em cima.

– O que é isso? – perguntei.

– São as cifras das músicas que eles irão tocar hoje. Para você acompanhar.

Olhei novamente o papel e fui reconhecendo alguns dos versos que eles tocaram nasexta. Como a tecladista não estava acostumada, eles ensaiaram novamente todas asmúsicas que tocariam no show. Sara foi me ajudando a encontrar cada uma delas napasta e não foi muito difícil aprendê-las. Algumas eu inclusive conseguia lembrar e jáarriscava cantar junto. Leo e Daniel perceberam e trocaram olhares, rindo. Será queestavam com algum plano secreto para me fazer entrar na banda?

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– Ficaremos aqui ao lado do palco, se precisar é só chamar.

Não passaram nem quinze minutos e vimos Dado e Anny chegando, um se apoiandono outro e com óculos escuros. Eles andavam de forma estranha e nem nos viram alisentadas. Sara só abaixou a cabeça e parecia estar decepcionada.

– O que aconteceu com eles?

– O de sempre. Espero que não estraguem a noite.

Fiquei curiosa. Principalmente depois que vi um dos organizadores da festa sair docamarim bravo e comentado consigo mesmo:

– Ele nem vai conseguir segurar a guitarra.

Levantei e fui até lá dentro. Ao abrir a porta vi Daniel gritando, enquanto Dado olhavapara a parede, jogado em um sofá.

– Não acredito. Não acredito. A casa está lotada e nosso vocalista não consegue nemdizer o próprio nome.

– Calma, Daniel. Ainda temos alguns minutos. É só dar um tempo para eles ficarembem – disse Leo, tentando consolá-lo.

– Eu sei como vocês podem ficar calmos. – respondeu Anny rindo, jogada ao lado doDado.

Sara chegou por trás de mim e comentou:

– Inacreditável. Cada vez pior. O que eles usaram dessa vez?

– Um pouco de tudo, pelo jeito – respondeu Daniel. – Vou cancelar o show.

– Calma, Daniel, vamos esperar – insistiu Leo.

– Eu não vou subir no palco com esses dois palhaços – e saiu da sala.

Fui atrás. Precisava ajudar de alguma forma. Sabia que era importante para elesaquele show, mas entendia que seria uma decepção se metade da banda entrassedrogada no palco.

– Vocês não podem cancelar agora – respondia o organizador. – A casa está cheia etodos querem ouvir música.

– Sinto muito, não podemos entrar desse jeito.

– Posso atrasar um pouco para começar, mas cancelar é impossível.

– Sara e eu entraremos no lugar deles – interrompi.

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Enquanto os dois olhavam assustados para mim, não hesitei em sugerir no fundo doinconsciente do organizador que não teria problema nenhum em nós duas entrarmosno lugar. Na verdade, ele acharia que nós éramos a solução perfeita para o problema.

Ele olhou de cima a baixo para mim e disse:

– Você não pode entrar no palco com essas roupas.

Eu estava bem vestida, havia escolhido minha roupa baseada nas meninas mais velhasda escola, principalmente as mais admiradas pelos garotos. Estava usando um vestidoestampado, com um tênis branco.

– O que tem de errado? – perguntei.

– Muito branca. Vou procurar algo preto para você vestir. Vocês têm meia hora.

Daniel olhou assustado para nós dois. Ele não acreditava no que estava acontecendo:

– A minha preocupação não é bem com a roupa. Você tem certeza que pode subir coma gente?

– Bem, acho que não terei problemas em cantar. Só vou ter dificuldade com aguitarra.

Ele ficou me olhando por um tempo. Talvez se eu sugerisse a mim mesma que sabiatocar. Podia funcionar.

– Você está disposta a entrar num palco e cantar músicas que você ouviu pela primeiravez ontem e sua preocupação é com a guitarra? Impressionante – disse Daniel,demostrando uma empolgação renovada. – Tenho uma solução. Vem comigo.

Chegando no camarim, Leo estava com Dado no banheiro, jogando água em seu rosto.Anny estava largada no chão, dormindo.

– Sara, você consegue simular o baixo em seu teclado? – perguntou Daniel sem darimportância para os dois drogados.

– Consigo, mas não é você que está sem condições de tocar – respondeu ela, aindasem entender.

– Vou tocar a guitarra. Você faz o baixo e Kara canta.

Sara abriu um sorriso e arregalou os olhos:

– Eles deixaram a gente entrar?

– Milagrosamente, sim.

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Sara soltou um grito de alegria e abraçou Daniel. Depois me abraçou, correu até suamochila para pegar alguma coisa e foi correndo para o palco. Leo largou Dado no sofáe parecia ter ficado mais nervoso ainda.

– Tem certeza que essa é uma boa ideia? Kara, você consegue cantar?

– Ela quem sugeriu, Leo. A garota tem um dom para música. Ela até queria tocar aguitarra.

Leo afundou a cabeça em suas mãos.

– Vai dar tudo certo – disse Daniel.

– Não é isso. Não sei se eu consigo. Fico vendo vocês todos confiantes, sem medo deenfrentar aquela plateia toda. Talvez fosse melhor mesmo a gente esquecer desseshow.

Daniel sentou com ele no sofá para tentar incentivá-lo. Percebi que o medo dele era

bastante sério e não era uma simples conversa que iria recuperar o seu ânimo.

Não era comum usar a sugestão para isso, mas pensei que valeria a tentativa.Implantei em sua cabeça que ele era o melhor baterista do mundo e que ele era maisdo que capaz de tocar em um estádio de futebol lotado. Logo depois que sai da cabeçadele, vi um brilho renovado em seus olhos. Parecia ter funcionado.

O organizador chegou na sala com um vestido cheio de detalhes prateados.Definitivamente feio.

– Foi o que eu consegui. Pelo menos fica parecendo uma estrela de rock. Você temmaquiagem?

– Tenho – respondi.

Eu não tinha na verdade, mas se ele queria me deixar parecida com uma estrela derock, eu sabia o que fazer. Entrei no banheiro, joguei aquele vestido esquisito de ladoe me olhei no espelho.

– Hora de transformar.

Comecei a lembrar do ensaio e de todos os sentimentos que aquelas músicas mepassavam. Aos poucos, meu rosto parecia se maquiar sozinho. As pálpebrascomeçaram a ficar pretas, meu cabelo ganhava volume, meu rosto foi ficando um

pouco mais pálido. Mudei minha roupa para um vestido preto curto, com uma meia-calça listrada por baixo. Para completar o visual, troquei meus tênis por botas.

Ao sair do banheiro, todos estavam concentrados em algumas mudanças que fariamnas músicas, por causa da troca do baixo pelo teclado. O primeiro a me ver foi oorganizador, visivelmente espantado com a minha produção.

– Aquele vestido não serviu. Pode ser esse? – perguntei.

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Somente nessa hora os outros três me olharam, também assustados.

– Ficou ótimo – respondeu Daniel, sem se preocupar em perguntar onde conseguiaquela roupa.

– Você está maravilhosa! – disse o organizador me olhando de cima a baixo. – Quero

vocês no palco em quinze minutos.

– Adorei sua produção – comentou Sara.

– Está linda mesmo – complementou Leo. – Kara, arrumei a pasta com as músicas naordem em que iremos tocar.

– Obrigada – respondi. – Vou tentar decorar as músicas nesse tempo que falta.

– Você pode levar a pasta no palco, colocamos um pedestal para ela – disse Sara.

– Nós vamos arrasar hoje à noite – aquelas palavras saíram de um Leo totalmente

renovado.

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Dead Dragons

– As luzes estão apagadas, vocês podem entrar.

Fomos em silêncio até o palco. Olhei para Sara do meu lado direito, ajeitando o tecladono pedestal. Daniel estava à minha esquerda, passando a alça da guitarra por cima dacabeça. Atrás de mim Leo olhava para baixo, parecia estar se concentrando. Só euconseguia enxergar naquela escuridão, mas podia perceber que sentiam a tensão decada um. Aquele era um momento muito especial para eles e, pela troca repentina devocalista e instrumentos, ninguém tinha certeza se daria certo.

Nós íamos começar com uma música chamada Suddenly I See, da KT Tunstall. Achavaela uma ótima música, apesar de só ter ouvido duas vezes, nos ensaios. Seria perfeitapara abrir o show.

Olhei para o público. O local estava cheio, quase sem espaço para se mexer, masmesmo assim poucas pessoas olhavam para o palco. Eu sabia que não era por causada luz apagada. Eles simplesmente pareciam não estar interessados na banda.Somente nessa hora percebi que aquilo não era um show, ninguém estava ali para nosver.

Ouvi Leo fazendo a contagem com as baquetas e assumi minha posição a frente domicrofone. Não ia deixar aquele desprezo do público me desanimar. Pelo contrário,queria fazer daquela a melhor apresentação da banda.

Quando começaram a tocar, pude sentir a empolgação dos três. Aquela energia queeles transmitiam, misturada com a emoção da música, me arrepiou inteira. Resolvi queaquelas pessoas iriam prestar atenção na gente. As luzes se acenderam, olhei

diretamente para o público e deixei minha voz sair:

– Her face is a map of the world, is a map of the world.

Da mesma forma que aconteceu na aula de música da Sara, senti olhares surpresosem minha direção. Como se a minha voz tivesse um efeito hipnótico. Aos poucos maise mais pessoas passaram a prestar atenção na gente. Estar ali no palco me fazia sentircompletamente viva.

– Why the hell it means so much to me.

Quando terminei a primeira música, um aplauso espontâneo surgiu da plateia. Tudo

que eu queria era cantar mais e mais. Olhei para Sara, Daniel e Leo e via a expressãode satisfação no rosto de cada um. Peguei o microfone e gritei:

– Nós somos os Dead Dragons!

Não sei por quanto tempo fiquei cantando. Nem quantas músicas passaram. Só pareiquando o organizador entrou no palco, pegou o microfone da minha mão e disse:

– Agora eles vão fazer um breve intervalo e logo voltam a tocar para vocês.

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Daniel levou a cabeça devagar até meu ouvido e disse baixinho:

– Esquecemos de te avisar do intervalo.

Saímos aplaudidos do palco e ao chegar no camarim, Sara gritou:

– Sensacional! Toda aquela galera dançando e cantando junto com a gente. Nãoconsigo nem acreditar.

– Você foi impressionante, Kara – disse Leo. – Não acredito que você realmenteconseguiu aprender todas aquelas músicas.

– Eu te disse que o talento dela é natural – falou Daniel.

– Com ela a nossa banda vai ser um sucesso – Sara estava bastante empolgada.

– Mas eu não faço parte da banda – corrigi.

– Como não? Eu até me senti arrepiada quando você falou: “nós somos os DeadDragons”.

– Sinto muito. Estou apenas substituindo o Dado. Ele é o vocalista oficial da banda.

Os três olharam para o Dado, ainda jogado no sofá dormindo ao lado da Anny.

– Pelo menos você vai voltar lá depois do intervalo, né? – falou Daniel.

Consenti com a cabeça.

– Então vamos aproveitar para tomar uma água, pois nossa nova vocalista não sabe ahora de parar – brincou Leo.

No caminho até o bar, algumas pessoas nos pararam para elogiar. Muito parecido comos pós-eventos que eu costumava fazer. Mas percebi que nenhum deles estavamacostumados com aquilo. Ficavam tímidos e não sabiam como reagir. Eu respondia damesma maneira que fazia com minha equipe:

– Vocês que estavam maravilhosos. Uma banda não é nada sem uma boa plateia.

Até que no meio da multidão percebi um rosto conhecido, que não deveria estar ali.

– Oi, Kara.

– Olá, Saul. Você está me vigiando?

– Ouvi dizer que uma banda nova iria estrear hoje. Vim conferir.

– Espero que tenha gostado.

– Não sabia que você cantava. Sua voz torna você ainda mais irresistível.

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– Obrigada – respondi e virei de costas, indo em direção ao bar.

– Eu vim te trazer notícias.

Parei, mas continuei sem olhar para ele.

– A data foi estabelecida. Dia 22 de abril.

– Isso dá mais que três meses.

– Pelo que eu vi hoje, acho que você não terá problema nenhum em aguentar algumassemanas a mais do que o combinado.

Não respondi.

Abril. Dia 22. De certa forma aquele também era o dia da minha morte. Agora eu jásabia a minha data limite. Dizem que os humanos, quando sabem que vão morrer,passam por cinco estágios: negação, raiva, barganha, depressão e aceitação. Já levei a

morte para tantas pessoas e sabia que de nada adianta negá-la, sentir raiva dasituação, tentar negociar o fim ou ficar triste com isso. A melhor solução era aceitarlogo.

Quem aceita a morte costuma aproveitar seus últimos dias de forma mais intensa quetodos os outros de sua vida. Será que eu tinha esse direito? Eu não estava viva, euestava ali para realizar um trabalho. Podia aproveitar tudo aquilo? Estaria a minhapresença interferindo na vida de outras pessoas? Pessoas que tinham o direito de vivere deveriam fazer suas escolhas sem a minha influência.

Virei para trás e lá estava Saul, ainda olhando para mim.

– Eu quero saber o porquê.

– Do que você está falando?

– Por que eu? Por que fui escolhida?

– Só você estava qualificada e... É um trabalho, como todos os outros.

– Não é como os outros.

– Você sabe que não podemos falar sobre isso, ainda mais aqui no meio de tantagente.

– É, eu sei. Mas mesmo assim quero uma resposta.

– Sinto muito. Não posso te dar uma resposta.

– Vou entender isso como carta branca.

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– Carta branca? – disse ele surpreso, sabendo que significaria me dar total liberdadesobre o evento da morte. - De certa forma, você sabe muito bem o que pode e o quenão pode fazer.

– Não farei nenhuma besteira.

Saul olhou por cima do meu ombro. Sara estava se aproximando com uma garrafa deágua.

– O que foi, Kara? Aconteceu alguma coisa?

– Nada. Só encontrei um velho amigo – respondi à Sara e depois voltei a falar comSaul – Você vai ficar para a segunda parte?

– Não, já está na minha hora de ir – respondeu Saul. – Vocês fizeram uma ótimaapresentação. Parabéns.

– Obrigada – respondeu Sara.

– Bom, está na nossa hora de voltar. Até mais – dei as costas para Saul e puxei Saracomigo.

Quando nos afastamos um pouco dele, Sara me perguntou:

– Kara, está tudo bem? Quem era ele?

– Ninguém importante – menti.

– Tão bonito.

Fingi não ter ouvido o comentário de Sara. Logo depois voltamos para o palco econtinuamos a tocar. A sensação ainda era tão intensa quanto antes, mas algo estavadiferente. Era como se estivesse prestes a acordar de um sonho muito bom. E eu nãoqueria acordar. Não sabia ainda se eu tinha direito ou não a aproveitar aquelemomento. Só sei que enquanto estivesse viva, iria fazer valer a pena cada instante.

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Dia seguinte

Quando acordei no dia seguinte, ainda não tinha entendido o que havia acontecidocomigo. Após apenas quatro dias na Terra já me sentia uma pessoa diferente. Eraengraçado.

Estar viva era algo completamente novo para mim. Definitivamente não era melhor doque estar morta. Eu não precisava comer e nem me preocupar com todas aquelasoutras necessidades vitais de um ser humano, mas o corpo físico pesava e até o ar eramais denso que no mundo dos mortos. Agradável não era. Mesmo assim estavaadorando.

Talvez pela novidade. Ou ainda pelos amigos que eu fiz. Cantar também erafascinante. Acho que era um pouco de tudo isso que me encantava no ato de estarviva.

Estava feliz.

Só que eu não sabia onde estava.

Quando abri os olhos vi uma televisão, uma estante com livros. Eu estava em umasala, deitada no sofá e coberta com um edredom. A luz do sol entrava pelas janelas eeu não tinha noção de quantas horas eu havia dormido.

– Bom dia, dorminhoca.

Daniel entrava na sala com uma caneca na mão e um prato com biscoitos recheados.Ele sentou no sofá ao lado, colocou a caneca e o prato na mesa em minha frente e,como eu não falei nada, ele continuou:

– Pensei em deixar você no banco da praça, mas seria injusto fazer isso com umaestrela do rock.

– Onde estou? – só percebi que era óbvio depois que fiz a pergunta.

– Na minha casa. Mas não me pergunte como te trouxe até aqui.

– Você me trouxe dormindo na sua moto?

– Não se preocupe. Não deixei você cair nenhuma vez. Se bem que você estava emum sono tão pesado, nem se caísse acordaria.

– Obrigada – respondi rindo. – Nem me lembro de ter dormido.

– Você encerrou o show, voltou pro camarim e caiu morta junto com o Dado e a Anny.

Aos poucos a memória foi voltando. Eu realmente estava exausta depois que saímosdo palco, ainda mais por ter usado a sugestão duas vezes na mesma noite.

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– Como estão os dois?

– Dado e Anny? Devem estar bem. Não é a primeira vez que fazem isso.

Pela expressão no rosto de Daniel, aquele parecia ser um assunto bem delicado. Nãoquis perguntar mais sobre eles.

– Preparei um café para você e imaginei que estaria com fome – ele disse apontandopara a comida na mesa.

– Obrigada mais uma vez. Você é uma espécie de anjo da guarda?

– É o mínimo que eu poderia fazer depois de ontem.

– Mas eu não fiz nada demais.

– Nada demais? Você estava maravilhosa.

– Vocês que são muito bons.

– Nós nunca tocamos tão bem como ontem. O Leo estava perfeito na bateria. Foi comose você fosse nossa musa inspiradora.

– Só estava acompanhando vocês.

– Não precisa ser modesta. Você conseguiu cantar músicas que só tinha ouvido umaou duas vezes. A sua presença ali nos deu confiança.

– Pode economizar nos elogios. Eu sei que você só quer me convencer a entrar nabanda.

– É, esse é um dos objetivos – respondeu Daniel rindo. – Você pareceu se divertirbastante ontem.

– Foi uma experiência incrível.

– Não quero te forçar a nada, ok? Mas acho que seria bom para todos nós se vocêvirasse a nossa vocalista.

– Vocês já têm um vocalista.

– Teremos que conversar com ele.

Novamente um silêncio constrangedor. Dessa vez decidi insistir.

– Quem era aquela garota? Anny.

– Uma amiga do Dado.

– Ela sempre faz shows com vocês?

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– Só quando não deixam a Sara tocar. Sabe, ela era uma garota legal, só que nosúltimos meses começou a ficar estranha.

– Por causa das drogas?

– Deve ter sido. Ela mudou bastante. E Dado está sendo influenciado por ela.

Daniel pegou um biscoito do prato, colocou na boca e ficou mastigando, olhando parauma janela. Pensativo. Se ao menos eu pudesse fazer algo para ajudar o Dado. E aAnny. O nosso poder de influenciar é bastante forte, mas é temporário. De nadaadianta para resolver vícios, no máximo impediria o uso por algumas horas.

– Você não está com fome? – falou Daniel, saindo do transe.

– Não tenho fome quando acordo.

Nem durante todo o dia.

– Acho melhor eu ir, meus pais devem estar preocupados.

– Eu te dou uma carona.

– Não precisa.

– Você sabe chegar até sua casa?

Eu sabia, mas...

– Hum, você pode me levar até a praça?

Por que será que ele estava sendo tão gentil comigo? Durante o caminho fiquei melembrando de todas as vezes em que ele me ajudou. Ele não precisava fazer nadadisso. A gente se conhecia a menos de uma semana e ele já havia me dado caronatrês vezes, oferecido abrigo e preparado um café da manhã. Isso não era normal entreos humanos. Daniel tinha algo de especial. Quando chegamos à praça, antes de sedespedir, ele perguntou:

– Não prefere que eu te leve até sua casa?

– Por que você se preocupa tanto comigo?

– Talvez porque você seja uma garota indefesa e perdida em uma cidadedesconhecida.

– Não, eu falo sério. Você nem me conhece direito.

Seu rosto estava com uma expressão bastante suave, serena, com um leve sorriso naboca.

– Tenho certeza que você faria o mesmo por mim.

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Aquele não era exatamente o motivo. Eu não consegui ler direito a expressão facialdele, mas sabia que escondia algo de mim. Um dia ainda iria descobrir o que era.

– Não que eu espere algo em troca – continuou Daniel.

– Se você precisar de ajuda, pode ter certeza que estarei lá para te fazer o melhor

possível.

Ele não respondeu, apenas ficou me olhando com aquela mesma expressãoindecifrável. Nesse momento, não sei o que aconteceu comigo. Senti uma imensavontade de lhe retribuir a gentileza. Senti vontade de lhe dar um beijo.

Um beijo no rosto, algo amigável como já vi muitos humanos fazendo. Ele certamentenão acharia estranho nem inconveniente. Era uma forma bastante simpática e comumde agradecimento. Talvez ele até gostasse. Se eu não fosse uma valquíria.

Não seria mortal como um na boca, mas mesmo assim não seria nada agradável. Eracapaz de inclusive colocá-lo em coma. No mínimo ficaria desmaiado por algumas

horas.

O problema é que só lembrei que um beijo meu não era nada carinhoso quando jáestava inclinando minha cabeça em direção à bochecha dele. Ele havia entendido omeu gesto e estava parado, esperando. E eu fiquei ali, no meio do caminho sem saberse ia ou se voltava. Constrangedor.

Voltei assustada com a cabeça. Ele ficou me olhando, sem entender o que tinhaacontecido. Eu estava bastante envergonhada, sentia meu rosto quente.

– Tenho que ir – falei me virando para a praça.

Ele ficou em silêncio, me observando. Eu continuei andando, até que ouvi o som damoto se afastando. Ainda não acreditava no que tinha feito. Será que estouesquecendo que não sou humana?

Entrei na minha casa de brinquedo e fiquei ali sentada e me culpando por ser tãoimprudente.

As palavras de Saul gritavam na minha cabeça:

 “Você sabe o que não pode fazer.” 

 “Não vá fazer nenhum garoto se apaixonar por você.” 

Não era isso. Daniel não estava apaixonado por mim. Ele era bem mais velho. Talvezele visse em mim algo da Maya. Afinal, eu havia dito para ele que Maya era minhaamiga. Era possível que estando próximo de mim ele sentisse que ela estava de volta.Ela deve ter feito ele se apaixonar no avião. Mais uma vez, surgia o mistério: o queaconteceu naquele dia?

Nisso lembrei que não verificara meu comunicador há dois dias. Corri até a igreja, queestava cheia de gente. Um padre ou pastor, não sei, estava na frente do altar falando

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o que as pessoas deveriam fazer para entrar no paraíso. Se todos que estavamouvindo seguissem metade dos conselhos, nós teríamos muito mais almas parabuscar.

Sentei na parte de trás do salão e, tão logo liguei o aparelho, veio o aviso demensagem importante. A lista do dia 22 de abril estava pronta. Rapidamente fui

conferi-la, curiosa para conhecer quem seriam as pessoas que eu deveria levar.

A primeira ficha que abriu exibia o nome Eduardo Morgan. Era jovem, tinha 22 anos.Morreria por acidente, como era de se esperar já que o evento seria um incêndio. Umaviso alertava para possíveis danos na alma por uso indevido do corpo. Coloquei paraabrir a foto e finalmente reconheci quem era: Dado. Fiquei surpresa em descobrir queele seria uma das pessoas que eu levaria.

A próxima pessoa era Leonardo Bellini. Antes mesmo de abrir a foto, reconheci por eleter o mesmo sobrenome da irmã. Era Leo. Também morte por acidente. Como eu fariapara levar os dois até a escola no dia do incêndio?

Quando abriu o terceiro nome, cheguei a falar em voz alta:

– O quê?

As pessoas me olharam e eu fingi que não era comigo. Voltei a olhar o aparelho. Aliestava o nome dela, Sara Bellini. Sara também iria? Confesso que fiquei tão felizquanto surpresa. Sara tinha se demonstrado uma ótima amiga e me agradava a ideiade continuarmos convivendo juntas. Na verdade, só faltava uma pessoa para a bandaestar completa. Foi quando abri a quarta ficha.

Daniel Ende.

Nem precisaria da foto para confirmar que era ele. O último membro da banda. Só queum pouco abaixo do nome dele tinha uma observação:

 “Opcional. Levá-lo se achar necessário. Decisão a cargo da valquíria responsável.” 

Fazia muito tempo que eu não via essa observação. Ela era usada antigamente paraque pudéssemos levar almas que tiveram seus corpos muito danificados. Ultimamente,organizamos o evento de forma que ninguém sofra mais do que merece. Mortalmentemachucados apenas aqueles que estão na lista.

Lembrei-me das palavras de Teka: “tome cuidado”. Maya se envolveu em um sérioproblema quando encontrou Daniel há cinco anos. Depois fez questão de fugir da

reclusão só para me avisar desse trabalho. Ela queria que eu estivesse aqui, agora. Elasabia que eu iria encontrar Daniel. Não acho que ela me colocaria em uma situação derisco, mas de qualquer forma eu fiquei preocupada com o que podia significar essamissão.

Foi quando recebi uma ligação, era de Teka. Não me preocupei pelo fato de estardentro de uma igreja e atendi:

– Kara? Ela está aí.

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– O que? – falei baixinho.

– Maya. Maya está na Terra.

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Preocupações

Estava difícil manter alguma prioridade nas minhas preocupações.

Havia acabado de receber a lista e tinha uma missão para organizar. Data marcada,local escolhido. Já era o suficiente para planejar o evento. O problema é que osmotivos estavam muito mal explicados e, ao mesmo tempo em que era responsávelpelo incêndio, queria descobrir a razão secreta de eu estar ali.

Por outro lado, estava feliz em saber que levaria comigo uma amiga que fiz na Terra. Aamizade que construí rapidamente com Sara poderia durar pela eternidade. Leo e elanão eram motivos de preocupação, apenas de alegria. Já Dado podia ser um problemano momento de retirada da alma, mas nada que um pouco de cuidado não resolvesse.

Ainda tinha a questão envolvendo o nome de Daniel, que eu não tive tempo de digerirdireito. E agora descubro que Maya está na Terra.

– Como isso aconteceu? – perguntei evitando os olhares de reprovação das pessoas aomeu lado.

– Encontrei registros de que ela foi para o planeta. Isso já faz seis meses. Estavamescondendo isso de todos. Apenas divulgaram que ela havia fugido na semana passadaporque ela voltou para cá.

– Quando ela quis me avisar dessa missão.

– Isso. Elas queriam capturá-la e decidiram informar a todos. Agora sabem que ela foide novo para o mundo dos vivos, só não sabem exatamente onde. Tenho que desligaragora. Assim que descobrir mais alguma informação, eu te aviso.

Pela lógica, os einherjar deviam saber que ela estava aqui. Por isso me mandaram.Maya e eu temos uma ligação muito forte, eu perceberia a presença dela a quilômetrosde distância. É possível que tenham inventado essa missão para que eu protegesseDaniel. Saul disse que havia alguém importante. Seria ele?

Mas isso não explica o fato de Maya ter pedido para eu aceitar. Se ela realmentequisesse matá-lo, já o teria feito. Não nesses últimos seis meses, mas há cinco anosquando teve a oportunidade. Talvez o risco que ela oferecesse fosse outro. Teria eladescoberto o motivo dele ser especial?

Tudo isso estava interligado de alguma forma e, enquanto não conseguisse ligar aspeças do quebra-cabeça, teria que redobrar minha atenção. Assumir a minhaverdadeira forma nunca mais. Na forma etérea é como se eu exalasse um cheiro muitomais forte. Não era um bom momento de chamar atenção.

No fundo, eu queria muito ir atrás de Maya. Não apenas para entender o que estavaacontecendo, mas também porque estava com muita saudade dela. Em brevecompletariam cinco anos desde a última vez que a tinha visto. E ela devia estar ali,bem perto de mim.

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Pensar nisso era muito dolorido. Voltei minha atenção para o meu trabalho e dessaforma tentei me ocupar nos dias seguintes.

Na segunda-feira voltei à rotina. O que me trouxe uma espécie de segurança. Talvezpelo fato de saber que a vida continua apesar de todas as novidades que surgiram naminha primeira semana na Terra. Quer dizer, a vida continuava, mas com algumas

mudanças.

Sara e eu nos tornamos celebridades. De alguma forma a notícia de que tocamos noNight Raven se espalhou pela escola. Nossos colegas queriam saber todos os detalhesda noite e sempre nos procuravam para fazer perguntas. Sara estava adorando aquilo.Um aperitivo da fama que ela queria pro seu futuro. Mesmo que o desejo dela fosseficar famosa em vida, tenho certeza que ela faria muito sucesso no mundo dos mortos.Aliás, a banda toda.

Não podia contar para ela que a sua morte estava agendada, mas eu gostava deincentivar seus planos. Agora, nossos planos. Sim, eu havia aceitado entrar na banda.Além de ser algo que eu havia gostado muito, agora não tinha que me preocupar.

Afinal, estando na banda era a melhor forma de juntar todos eles no dia do incêndio.

Os ensaios dos Dead Dragons continuaram. Dado apareceu na sexta seguintearrependido do que havia feito, mas com o corpo e alma ainda mais danificados pelasdrogas. Leo não queria que ele continuasse, mas Daniel e eu o convencemos de queera necessário. Claro que por motivos diferentes. Daniel argumentou que sem eleperderiam a casa e precisavam de um guitarrista. Eu só queria que ele ficasse porcausa do meu trabalho, mas não podia falar isso.

O bom de ter participado desse debate é que ganhei um professor de guitarra. Issomesmo. Leo só aceitou continuar com Dado se fosse algo temporário. Daniel propôsentão me ensinar escondido a tocar guitarra. Quando eu estivesse boa o suficiente,assumiria de vez o lugar dele. Ah, claro, o posto de vocalista já havia se tornadooficialmente meu. Sara havia inclusive gravado para mim as músicas para que eupudesse estudar durante a semana.

Passei a frequentar a casa de Daniel durante a semana, para que ele pudesse meensinar a tocar. Apesar do constrangimento do quase beijo quando ele me deixou napraça após o show, as tardes que passava com ele eram os melhores momentos daminha vida. Sentia uma felicidade intensa e indescritível. Por sorte, tocar guitarra eraalgo praticamente impossível para mim, simplesmente não conseguia coordenar osdedos. Resultado: mais e mais aulas particulares.

Saul não deu mais notícias. Sempre que tentava entrar em contato com ele, nãorecebia nenhuma resposta. Talvez estivesse procurando Maya ou simplesmente

escondido me observando. Teka mandava mensagens de vez em quando, estavaorganizando um desastre natural e não tinha muito tempo para conversar ou para virme visitar.

Assim o tempo foi passando e eu continuava ali na Terra, alheia ao que estavaacontecendo nos bastidores do mundo dos mortos. Ao contrário do que eu imaginavano início, viver não me fez mal. Creio que me envolvi tanto em atividades humanasque não deixei espaço para a loucura. Sentia saudades do meu mundo e das minhas

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amigas, é lógico, mas isso não passava de uma leve ansiedade de terminar o serviço evoltar para casa.

Na escola, com exceção da educação física que eu sempre dava um jeito de fugir, erabem fácil acompanhar os estudos. Então aproveitava minhas manhãs para estruturar oevento do dia 22 de abril. Ainda não sabia como iria fazer um incêndio que matasse

três pessoas que não estudavam ali, mas sabia que aos poucos conseguiria encaixartudo.

Em uma sexta-feira, Sara e eu esperávamos o irmão dela vir nos buscar para o ensaio,quando um professor se aproximou de nós duas.

– Posso conversar com vocês um minuto?

– Claro – respondi.

– Parece que o sucesso da banda de vocês não ficou restrito à escola.

– Como assim? – perguntou Sara.

– Eu tenho um amigo que é produtor musical. Ele quer gravar um CD com vocês.

Pela expressão da Sara, vi que aquilo era algo muito, muito legal.

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Verdades

Todos adoraram a ideia. Eles já haviam tentado gravar algumas músicas, mas nadamuito sério. Agora teriam o apoio profissional que poderia mudar o destino de toda abanda. Se eles fossem continuar vivos, claro.

Daniel e Leo ligaram para o produtor e marcaram uma reunião. De início, ele pediupara que montasse uma lista com as músicas que gostariam de gravar. Foi aí quecomeçou um debate interminável.

– Existe a possibilidade da gente colocar pelo menos uma música clássica? Só parameus pais não ficarem decepcionados comigo – era Sara preocupada em nãosurpreender tanto com o estilo musical da banda.

– Já falei. Temos que tocar “A Change of Seasons”. Tenho certeza que seus paisouviam Pink Floyd. Eles vão adorar Dream Theater – sugeriu Daniel.

– Se ao menos a música tivesse menos de 20 minutos – lembrou Leo. – Sara, não sepreocupe, eles vão adorar qualquer coisa que você tocar. Você ainda será a filhaperfeita.

– Afinal, você é o irmão degenerado – provocou Daniel.

– Aprendi com você, Daniel – respondeu Leo. Depois se virou para mim e perguntou. –O que você acha, Kara? É você quem vai cantar. Alguma sugestão?

– Vocês sabem que não conheço muitas músicas.

– Só decorou todas as letras do nosso repertório em uma tarde – comentou Leo.

– Beatles. Eu acho que a gente devia tocar Beatles – sugeri.

Silêncio. Ninguém respondeu e todos estavam visivelmente impressionados. Tenteiajudar com o clima estranho:

– Eu sei que vocês não costumam tocar esse tipo de música, mas eu gosto de Beatles.

– Todas as pessoas do mundo gostam, menos uma – esclareceu Sara, apontando paraLeo.

– Não é que eu não goste – Leo tentava se explicar. – É que as músicas deles sãomuito simples.

– Perfeitas para agradar os seus pais – interrompeu Daniel – Sem contar que é muitomelhor do que muita música que tem se escutado hoje em dia.

– Está bem. Aceito incluir Beatles. Qual vocês querem tocar?

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– Dos grandes. Ainda não percebeu que está apaixonada?

– Eu não acreditava que fosse possível.

– Pelo jeito, valquírias também se apaixonam.

– O que eu faço?

– Leva ele com você. O nome dele está na lista?

– Na lista opcional.

– Isso ainda existe? – surpreendeu-se Teka.

Confirmei com a cabeça.

– Estranho. Pelo menos você não precisará se preocupar em deixá-lo vivo.

– Não posso levá-lo sem um motivo.

– É muito egoísmo se for por amor?

– Não sei se ele me ama. Também não posso tirar-lhe o direito à vida.

– Nunca entendi direito essa questão do direito de viver – comentou Teka.

– Se ele gosta de verdade de mim, posso esperar por ele – respondi.

– É, você realmente está apaixonada. Nós devíamos estudar você.

O comentário dela me fez lembrar do que aconteceu com outra amiga nossa:

– Você acha que Maya também se apaixonou por Daniel?

– Provavelmente. Então será que devemos estudar o rapaz? Estou com medo até dechegar perto dele.

Teka estava brincando, mas não era um bom momento para explicar o quão mágicoera ficar ao lado dele.

– Alguma notícia sobre Maya? – perguntei.

– Na verdade foi por isso que eu vim para a Terra. Queria saber se ela fez algum tipode contato com você.

– Não fez. Ela deve estar longe

– Talvez sua sensibilidade esteja enfraquecendo.

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– Senti você no momento em que chegou. Se Maya estivesse por perto, você tambémestaria sentindo ela.

– Acredito que sim – respondeu Teka. – Imaginei que ela estivesse interessada noDaniel.

– Eu também pensei nisso. Mas foi ela quem quis que eu ficasse perto dele. Não creioque ele esteja correndo perigo.

– E se... – Teka parou antes de concluir seu pensamento.

– Se o perigo for ele? – tentei concluir.

– Maya não colocaria você em perigo. A menos que ela tenha mudado.

– Não em relação a nós duas – afirmei confiante.

– A gente devia contar tudo para o Daniel. Não seria a primeira pessoa do mundo a

saber de nossa existência. Ele poderia nos ajudar...

– Você está falando sério? – interrompi.

– Qual o problema?

– O garoto perdeu seus pais em um acidente de avião. É possível que tenha seapaixonado por Maya.

– Ou por você – complementou Teka.

Fingi não ouvir o que ela disse e continuei a falar:

– Imagina o que seria um garoto da idade dele sabendo que existe vida após a morte?

– Ele conseguirá lidar com isso.

– A não ser que ele comece a achar que a morte é a melhor opção.

– Mas é.

– Não para os vivos. Você já pensou em qual é o caminho mais rápido para a morte?

Teka ficou alguns segundos em silêncio antes de responder:

– Suicídio.

Existe um motivo para que os humanos tenham dúvidas sobre a vida após a morte. Apartir do momento em que eles desvalorizam suas vidas, a alma perde suaconsistência. Vai desenvolvendo fissuras cada vez mais profundas. O dano éirreversível quando eles chegam ao extremo de se matarem.

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– Pelo menos alguns deles acreditam que sim. Eu não posso deixar que esse garotoperca a alma dele para sempre.

– Você acha que ele faria isso?

– Pelos pais dele, sim. E se ele fizesse isso, nunca mais os veria.

Eu também nunca mais poderia vê-lo. Se eu tinha algum tipo de esperança de ficarcom ele futuramente, não podia deixar que ele se matasse.

– Por que você acha que Saul está envolvido nisso? – perguntei, mudando um poucode assunto.

– É, eu cheguei a investigar isso para você. Não encontrei nada suspeito.

– Só o fato dele estar ligado a essa missão estranha, já é suspeito para mim.

– Não vou negar que não tem nada de convencional, mas ele deve ser simplesmente o

mensageiro.

– Por que você acha que eu fui escolhida?

– Eu estou com uma nova teoria. Quantas valquírias você conhece que estãocapacitadas a ficar na Terra sem causar confusão?

– Mas não é uma missão tão complexa. Muitas conseguiriam organizar ficando poucashoras no planeta.

– Dessas muitas, quantas estão acostumadas a lidar com listas opcionais?

Não respondi. Realmente não existiam muitas opções.

– Primeiro eu achava que era para proteger esse garoto, mas acho que não temnenhuma relação.

– Então por que ele estaria na lista opcional?

– Não sei responder. Talvez o registro dele esteja confuso depois que ele foi mantidovivo.

– É uma possibilidade. Você pode investigar isso para mim?

– Claro. Tenho que ir agora, mas te manterei informada.

Abraçamo-nos e ela se foi. Agora tinha que voltar para o ensaio e pensar numa boadesculpa para explicar porque saí correndo daquele jeito.

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Separação

Chegando à casa, logo percebi que não teria que me preocupar com explicações sobrea minha saída repentina. Na frente estava parado um outro carro, do Dado, e euconseguia ouvir da rua uma discussão entre eles:

– Ela aparece do nada e de repente é mais importante que tudo – era Dado gritandocom alguém, provavelmente falando de mim. – O que essa garota tem?

– Ela é muito talentosa – respondeu Leo.

– E nós não temos talento? – continuou Dado. – Você quer dizer que sem ela nãosomos nada?

– Se você tivesse visto ela no palco. Pena que estava sem condições de ficar de pé –retrucou Leo. – Na verdade, sorte que você estava acabado e deu chance para elacantar.

– Leo, o que você está falando? Nós já tocamos em muitos outros lugares. Você achaque nos convidaram para tocar no Raven por um acaso? As pessoas gostam da gente.

– Não tanto quanto estamos com Kara no palco.

– Você só pode estar de brincadeira. Ela tem quinze anos. É uma criança. Nem sabedireito o que é música. Daniel, ela é tão especial assim?

Daniel, que até agora estava em silêncio, se pronunciou:

– Mais do que você imagina.

– Não estou acreditando. Qual é o problema de vocês?

– Qual o seu problema, Dado? Foi você quem nos deixou na mão. Kara nos salvou deum fracasso.

– Já não pedi desculpas? Vocês estão fora de si. Devem estar encantados pela belezadela. É só o que ela é, uma garotinha bonitinha. Vocês não sabem quem ela é deverdade e vão se arrepender de colocá-la na banda.

Ficaram em silêncio. Continuei parada em frente à casa. A porta se abriu e Dado parouao me ver:

– Está de volta, princesa?

– O que aconteceu? – perguntei confusa.

Ele estava bastante alterado. Não era o mesmo rapaz que eu havia conhecido noprimeiro ensaio da banda. Ele chegou bem perto de mim e falou:

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– Você não me engana. Eu sei quem você é.

Não falei nada. Dado virou o rosto, entrou no seu carro e foi embora. Logo Danielchegou na varanda e, vendo minha expressão assustada, passou o braço por cima domeu ombro e disse:

– Deixe ele ir. Vamos entrar.

Na sala, Leo estava sentado no sofá e Sara oferecia um copo com água para o irmão.Entrei em silêncio e me sentei de frente para Leo. Daniel sentou no braço da poltronaao meu lado.

– Ele era um cara tão legal – divagou Leo.

– É. Ele mudou muito – respondeu Daniel.

– Lembra quando nos encontramos na escola de música? Você e eu tínhamos o sonhode montar uma banda e era ele quem não queria?

Os dois riram. Mas era uma risada nervosa, como que querendo esconder umaangústia.

– Só convencemos quando falamos das garotas que iriam cair matando em cima dagente.

Leo voltou a ficar bastante sério.

– Você acha que nós estragamos ele?

– Por quê?

– Foi por causa da banda que ele conheceu Anny. Se não fosse por ela...

Leo não terminou seu pensamento e os três ficaram quietos por um instante. Até queeu interrompi o silêncio:

– Cada um é responsável pelo seu próprio destino.

Leo olhou para mim e deu um sorriso, demonstrando simpatia e ao mesmo tempoagradecendo pela minha tentativa de confortá-lo. Tomou a água que sua irmã ofereciae se levantou, guardando o equipamento na sua mochila.

– Você vai embora? – falou Daniel. – Não vamos deixar que essa briga atrapalhe ascoisas.

– Desculpa, Daniel. Não tem mais clima para ensaio.

– Quem disse em ensaio. Pensei em sairmos para comemorar a gravação do nossoprimeiro disco. O que vocês acham?

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Mais importante que comemorar, eles precisavam relaxar. Decidimos ir para um bar,afinal era sexta-feira, ainda estava cedo e ninguém tinha compromisso no diaseguinte. Principalmente eu.

Fomos para um local onde os Dead Dragons costumavam tocar de vez em quando.Logo que chegamos, fomos bem recebidos por um senhor que parecia ser o dono:

– Daniel, Leo! Que prazer recebê-los aqui. Depois que tocaram no Night Raven nuncamais vieram no meu bar, hein?

– Você que nunca mais nos chamou – brincou Daniel.

– Pequena Sara. Continua tocando com esses degenerados?

– Alguém tem que colocá-los na linha.

– Claro. E vejo que você trouxe uma amiga. Ela também é da banda?

– Essa é Kara. Nossa nova vocalista – apresentou-me Daniel.

– O que aconteceu com Dado? – perguntou o senhor, preocupado.

– Não vamos falar nele hoje – respondeu Leo.

– Então vamos falar de coisas mais importantes. O que vocês vão querer? Estão comfome?

– Traz uma daquelas porções caprichadas de batata. Com aquele molhinho depimenta.

– Trago em um minuto.

Não falamos mais no Dado, nem sobre a banda. Aquele era um momento de puradescontração. Sara e eu contamos algumas histórias da escola, Daniel e Leo falavamsobre sua época estudantil. Em alguns momentos, inclusive o terremoto, minha últimamissão, entrou na conversa.

Era muito curioso conversar com humanos sobre os desastres naturais. Para asvalquírias, cada morte era muito importante e comemorada. Para eles, quando onúmero de mortos era muito grande, um sentimento de surpresa aparecia, mas nãoaquele sentimento de dor e perda quando morria alguém importante. O vínculo queeles criam não é com toda a humanidade, mas com pessoas específicas e selecionadas.

Um pouco diferente do mundo dos mortos, onde não é preciso lidar com perdas,apenas com a saudade dos que ainda não morreram.

Também foi bastante engraçado a surpresa deles ao perceber que eu sabia muitosdetalhes de todos os acidentes naturais que eles comentavam. Datas, locais equantidade de mortos. Para mim eram memórias vivas, trabalhos que eu haviarealizado ou ajudado de alguma forma. Para eles, eu parecia apenas uma garotamórbida, que se deliciava com notícias de mortes em massa.

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Era difícil argumentar sem revelar quem eu era. Os meninos começaram a pegar nomeu pé, voltando àquela brincadeira de Daniel que eu era uma assassina e deviaadorar terremotos e vulcões como se fossem uma inspiração profissional. Como se umdia eu fosse capaz de matar milhões de pessoas de uma só vez. Quem dera. Matarcentenas já era um trabalho considerável, imagina milhões.

Pela primeira vez desde que vim para a Terra, eu me distrai. Talvez pelo ambiente queme trazia conforto. Ou ainda pela preocupação em não falar mais do que devia sobreos acidentes. Não sei explicar o que aconteceu, mas baixei totalmente a minha guardae deixei de lado toda a prudência. O pior é que só percebi que minha atenção estavatoda voltada para o que acontecia naquela mesa quando olhei para o outro lado da ruae vi uma garota parada, olhando em minha direção. Se fosse uma pessoa qualquer,não teria problema. Mas era alguém que nunca poderia se aproximar tanto de mimsem que eu percebesse. Era alguém que há cinco anos eu queria reencontrar. Do outrolado da rua estava Maya.

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Maya

Logo que a vi com meus olhos, comecei a sentir a presença dela. Estava muito forte,mas também muito diferente. Era Maya, isso eu tinha certeza. Só que ela estavamudada.

Fiquei paralisada. Minha vontade era de correr aos braços dela, sentir na pele que elaestava bem. A saudade era muito grande e quase incontrolável. Quase.

Ao mesmo tempo em que queria rever minha grande amiga, não sabia por qual motivoela estava ali. Nem como ela conseguiu se aproximar sem que eu a percebesse. Tivemedo. Talvez estivesse ali por causa do Daniel. Será que ela queria matá-lo?

Lembrei que Daniel também já havia encontrado. Os dois estavam sentados lado alado no avião. Para ele, Maya havia morrido no acidente. Eu mesmo havia confirmadoisso na única conversa que tivemos sobre o assunto. Mas não consegui impedir que elea visse.

Ao perceber que eu estava olhando para alguém do outro lado da rua, minhaexpressão de surpresa chamou a atenção de Leo. Ele olhou para Maya e meperguntou:

– Quem é ela? Uma amiga sua?

Logo Daniel e Sara também olharam. Não sabia o que dizer, até que Maya começou ase aproximar. Eu não conseguia pensar em nenhuma maneira de sair dali e levá-lacomigo. Pelo menos não sem chamar tanta atenção.

Comecei a imaginar o que poderia acontecer. Primeiro Daniel iria reconhecê-la ecomeçaria a se lembrar do acidente. Os humanos costumam ter esperança pornatureza, então a conclusão que ele tiraria de início seria que ela não morreu naqueledia. Isso o deixaria feliz, mas confuso. Principalmente quando percebesse que elacontinua linda e perfeita com os mesmos quinze anos de quando ele a haviaconhecido.

Existia uma remota possibilidade de que ele não se lembrasse dela ou que por umacaso percebesse que não poderia ser a mesma Maya que estava ao seu lado no avião.Afinal, aquela garota, se estivesse viva, estaria cinco anos mais velha. Essa era aminha esperança, mas como não sou humana, não ficaria contando com isso.

Outra opção é que Daniel reconhecesse Maya, se lembrasse dela e começasse a pensarque era um espírito. Isso podia ser bom ou ser ruim. Dependeria de como ele ficariaapós chegar nessa conclusão.

Não importa qual fosse a reação das pessoas naquela mesa, a minha já estava bemdefinida. Simplesmente não tinha a mínima ideia do que fazer para que aqueleencontro não fosse uma catástrofe.

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Sem contar que eu já havia perdido qualquer chance de tomar uma atitude. Maya jáhavia se aproximado da nossa mesa. Ao chegar perto, ela olhou em minha direção edisse:

– Oi, Kara. Que surpresa te encontrar aqui. Posso me sentar?

Ela conseguiu soar o mais casual possível, como se fosse apenas um encontro develhas amigas. Olhei para Daniel, procurando perceber a reação dele ao rever avalquíria que deveria ter lhe matado. Ele apenas respondeu ao pedido de Maya:

– Claro que pode. Fique a vontade.

– Não vai nos apresentar sua amiga, Kara? – perguntou Sara.

Eu estava muda. Talvez Daniel não tivesse reconhecido o rosto dela, mas se eu falasseo nome, com certeza se lembraria. Maya percebeu meu engasgo e se adiantou:

– Sou Maya. Uma velha amiga da Kara.

Senti minha garganta apertar e o coração bater acelerado. Como eu estava meodiando por estar sem ação. Logo eu, que já havia passado por tantas situações queexigiam controle e determinação, estava imóvel e sem palavras. Assustada como umasimples humana.

– Maya? – comentou Daniel. – Bonito nome. Uma vez conheci uma Maya. Até quetenho boas lembranças dela.

– Tenho certeza que tem – respondeu Maya, já se sentado conosco.

Não entendia mais nada. Eu estaria delirando? Daniel havia me dito que se lembrava

claramente da garota ao seu lado no avião, do nome e principalmente das suas últimaspalavras: “não vai doer nada”. E, se eu ouvi direito, ele voltou a confirmar agora aodizer que conheceu uma Maya e ainda que tinha boas lembranças dela.

Olhei bem para minha antiga amiga e ela estava exatamente igual. Eu a conheciamuito bem e nem um detalhe do seu rosto havia mudado. Algo muito estranho estavaacontecendo.

– O que foi, Kara? – perguntou Daniel – Surpresa de ver sua amiga aqui?

Certo. Era hora de parar de tentar entender o que estava acontecendo e aproveitarque a situação era favorável. Nenhuma catástrofe estava para acontecer a não ser que

eu continuasse bancando a idiota. Tinha que dançar conforme a música.

– Estou sem palavras.

Levantei da minha cadeira e fiz algo que estava com muita vontade de fazer. Fui emdireção a Maya e dei um forte e demorado abraço. Como era bom ver minha amigalivre. Como eu senti falta dela.

– Estava com saudades – disse Maya em meu ouvido.

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Logo comecei a sentir meus olhos ficando úmidos.

– Você está bem? – perguntei.

– Temos tanto a conversar.

– Precisarei ficar aqui mais um pouco. Você espera?

– Fique a vontade. Eu espero.

Falamos tão baixo que ninguém deve ter ouvido nossa conversa. De qualquer forma,devem ter imaginado que tínhamos fofoca para colocar em dia, não assuntos referentea uma missão que envolvia a morte deles.

Soltei-me de seus braços e enxuguei os olhos.

– Desculpa, pessoal. Faz muito tempo que eu não a vejo. Éramos grandes amigas.

– Praticamente irmãs – acrescentou Maya.

– Deixa eu te apresentar meus amigos. Essa é Sara, também minha grande amiga ecompanheira de escola. Esses são Leo e Daniel. Os três fazem parte de uma banda.

– Não só nós três. Kara também. É nossa vocalista – disse Sara.

– Você é vocalista de uma banda? Acho que é a minha vez de ficar sem palavras –brincou Maya.

Conforme a conversa foi ficando casual, eu fui relaxando. Era ao mesmo tempogostoso e esquisito estar naquela mesa. Minha grande amiga valquíria junto com meusgrandes amigos humanos. Dois mundos diferentes se encontrando. Só podia imaginaro quanto seria agradável depois que todos nós estivéssemos do outro lado. Não faltavamuito tempo, pouco mais de um mês.

Talvez tivesse que esperar um pouco mais pelo Daniel. Inclusive Maya poderia meajudar a desvendar porque a morte dele era opcional. Será que no avião o nome deletambém estava nessa situação? Isso explicaria porque ela o deixou viver, mas nãoporque ele não a reconheceu. Sim, ela teria muito o que me explicar.

Já era tarde quando resolvemos ir embora.

– Maya, você vai precisar de carona? – ofereceu Leo.

– Estou na casa de uma tia aqui perto, não precisam se preocupar.

– Não seria incomodo nenhum te levar.

– Kara, você quer ir dormir lá hoje?

– Adoraria – respondi.

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– Eu levo as duas – insistiu Leo.

– Deixa elas irem – comentou Sara. – Eu sei como é encontrar uma velha amiga. Elasdevem ter muito o que conversar.

– Mas...

– Sem mas, Leo – interrompeu Daniel. – Você nem sabe se elas realmente vão paracasa ou se estão indo para outra balada.

Leo olhou assustado para Daniel. Ele respondeu para mim com uma piscada. Nós duasrimos.

– Aproveitem a noite, meninas – disse Sara se despedindo da gente.

Daniel puxou Leo pelo braço e foram em direção ao carro.

– Se precisarem de algo, é só ligar. Você sabe meu telefone – falou Daniel antes de ir

embora.

Nem bem eles se afastaram, Leo já estava olhando para trás dando tchau e sorrindo.Falei baixinho para Maya:

– Acho que ele gostou de você.

– Eu também gostei dele. Ele está morto, né?

– Sim.

– Que bom.

– Podemos ir agora?

– Conhece algum lugar onde podemos conversar? – perguntou Maya.

– Venha comigo.

Fomos até a praça, na casa de brinquedo. Deixamos para conversar quandochegássemos lá, assim não teríamos que nos preocupar com pessoas nos ouvindo pelarua.

– Bem vinda ao meu lar.

– Aconchegante – ela respondeu.

Não sabia por onde começar minhas perguntas, até que ela se adiantou.

– Aquele garoto, Daniel. Ele é o mesmo do avião?

– Sim. Você não o reconheceu?

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– Eu nunca o tinha visto antes.

– Como assim?

– Eu nem cheguei a entrar naquele avião.

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Difícil acreditar

Maya havia ficado cinco anos em reclusão por causa de uma pessoa que ela nãomatou. Disseram que ela teria se apaixonado por esse humano, o que já é umahipótese absurda. Uma valquíria é incapaz de se apaixonar. Em teoria. Agora tudoficava mais estranho ainda ao saber que ela nunca tinha visto esse garoto antes.

– O que você está dizendo?

– Não entrei naquele avião. Não fui eu quem deixou de matar o rapaz.

– Mas como isso aconteceu?

– Eu era a responsável pela queda do avião. Havia feito todo o planejamento eestudado as vítimas. Daniel não estava na lista. Nem os pais dele.

Eu estava chocada. Maya continuou:

– Um dia antes eu desci para a Terra, visitei a casa de cada uma das vítimas. Existiaminclusive algumas restrições, pessoas que não deveriam embarcar. Tudo estava certopara que o avião recebesse apenas os que mereciam morrer.

Ela fez uma pequena pausa, olhou para baixo e voltou a falar:

– Já estava quase na hora quando terminei a vistoria. Assumi minha forma humana efui até o aeroporto. Peguei um táxi para chegar ao local como todos os outros vivosfazem, mas no caminho sofremos um acidente.

Maya parecia não se lembrar dos detalhes:

– Parece que um caminhão bateu no nosso carro. O motorista sobreviveu, mas euestava presa sob as ferragens do veículo. Foi quando alguém vestido de preto seaproximou de mim, encostou a mão na minha cabeça e eu desmaiei.

– Quem era essa pessoa?

– Era um espírito, não era vivo. Disso eu tenho certeza. Não consegui ver o rosto nempercebi nenhuma identidade conhecida. Só lembro quando acordei, estava na zona derestrição. Sem ao menos saber direito o que havia acontecido.

– Você ficou lá por cinco anos sem te explicarem o motivo?

– Não. Depois de alguns dias, conheci uma valquíria chamada Rota. Ela me explicou oque havia acontecido, que alguém havia entrado no avião com meu nome e que euhavia sido vítima de uma conspiração.

– O que ela quis dizer com conspiração?

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– Ela falava que era uma espécie de revolução que estava acontecendo no mundo dosmortos e que nós, valquírias, seríamos as primeiras vítimas.

– Isso é impossível.

– Também achei. Infelizmente ela foi embora e não pude tirar mais informações dela.

Antes de ir ela só pediu para que eu tomasse cuidado e não tentasse fugir dali. Seriamapenas cinco anos e que eu deveria esperar.

– E você acreditou nela?

– Obviamente que não. Ela era louca. Você nunca esteve na zona de restrição, né? Éimpossível sair de lá, por mais que você queira. Você não tem noção de tempo nem deespaço. Por vezes até duvida que sua consciência esteja intacta.

– Mas você saiu antes.

– Outra mentira. Não sei se saí antes ou não, mas com certeza não fugi de lá. Só me

lembro de uma voz: “está na hora de ir”. Quando abri os olhos estava na Terra.

– Por que te mandariam para cá?

– Também não sei. Você foi a primeira pessoa para quem eu tentei ligar. Seucomunicador estava fora de área, então chamei a Teka. Ela me disse que estava sendoprocurada e deveria continuar escondida na Terra por enquanto. Foi ela quem mecontou que eu estava sendo acusada de fugir.

– Calma. Tem algo errado nessa história.

– O quê?

– Eu falei com você antes de vir para cá. Você tinha ido até a casa da Teka.

– Não. Eu não pisei no mundo dos mortos desde então.

– Então quem conversou comigo? Tenho certeza que era sua voz. Se não fosse porvocê, eu não estaria aqui na Terra.

– Você veio me procurar?

– Não. Eu vim porque você pediu para que eu viesse.

– Por que eu pediria isso?

– Era o que eu esperava que você me respondesse. Você pediu para que eu aceitasseessa missão, do contrário eu teria recusado.

Maya ficou olhando para mim, intrigada com tudo que havia acontecido.

– Será que existe mesmo uma conspiração? – perguntei.

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– Se existe, você é a próxima vítima. Quem te ofereceu essa missão?

– Saul.

– Os einherjar estão envolvidos?

– E pelo jeito Teka também. Precisamos falar com eles.

– De que adiantaria? – perguntou Maya. – Você acha que eles irão nos explicar o queestá acontecendo?

– Eles podem nos dar pistas. São os únicos que podem esclarecer algo.

– Eu não quero me arriscar, Kara. Desculpe-me, mas não pretendo voltar nunca maispara reclusão.

– O que você sugere que a gente faça?

– Temos que procurar Rota. Ela deve saber por que te envolveram nessa espécie dearmadilha. Eu não posso voltar, mas você pode. Ninguém lá está te procurando.

– Também não posso sair daqui. Estou em uma missão.

Maya fez uma expressão de surpresa.

– Essa sua missão é uma mentira – ela parecia estar inconformada.

– Eu sei. Mas você abandonou uma missão e olha o que aconteceu contigo.

– Não foi um abandono. Alguém me tirou de lá.– Então você entende porque não posso sair daqui agora.

– O quê? – Maya estava começando a se exaltar. – Você acha que eu estou tentandote incriminar de alguma forma?

– Lógico que não. Você e Teka são as duas pessoas em quem eu mais confio. Só queestá tudo muito confuso e não acho que o mais sensato seja deixar tudo para trás eprocurar uma valquíria que nem sabemos se existe.

– Deixar tudo para trás? Do que você está falando?

Eu não sabia explicar.

– É aquele garoto, não é? Daniel?

Sim.

– O que ele tem de especial?

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– É o que eu estou tentando descobrir.

– Então vamos lá descobrir. Onde ele mora?

– Do que você está falando?

– Não quer descobrir o que ele tem de especial? Temos que observá-lo.

– Está bem.

Fomos até a casa dele invisíveis na forma de espírito. O seu quarto estava com a luzacesa, ele devia estar acordado ainda. Subimos pela janela e lá estava Daniel, sentadona cama com a guitarra no colo. Ele tocava uma música que eu ainda não haviaouvido. Parecia mais melódica, mais romântica.

Maya reparou nas diversas figuras de dragões espalhadas pelo quarto.

– Dragões? Muito estranho.

– Não vejo nada demais.

– Tenho a impressão de já ter visto isso antes.

– Você não veio aqui na época do acidente de avião?

– É verdade. Agora me lembro. Ele não morava aqui, mas seu quarto era cheio dessesbrinquedos. Imaginei que era algo de criança, não que essa obsessão pelos dragõesfosse se manter na vida adulta.

– Eu gosto dos seus dragões.

Maya olhou para mim.

– Tem algo diferente em você.

– O quê?

– Não sei. Você fica diferente quando está perto dele.

– Então, o que você acha que faz dele especial? – falei tentando mudar de assunto. – Éum humano normal. Não vejo porque existiria uma conspiração só para tentar matá-lo.

Quando falei isso, veio a minha cabeça algo que não havia pensado antes. Talvez aideia não fosse matá-lo. Colocaram no avião e fizeram questão que ele saísse de lávivo. É possível que Daniel fosse um garoto normal, simplesmente escolhido paramostrar a incapacidade de nós valquírias em matá-lo. Aí a conspiração poderia fazeralgum sentido. Eles queriam desmoralizar as valquírias.

Maya desceu da janela e começou a andar pelo seu quarto. Ela olhava as imagens,seus desenhos. No mural havia fotos de vários amigos, mas Maya reparou que a minha

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foto estava em um lugar de destaque. Ela olhou para mim como se condenasse aminha presença tão forte na vida desses humanos. Até que ela saiu do quarto e foiandando pela casa.

Pulei para dentro do quarto e fui atrás dela, mas logo ela aparece de volta. Agora naforma humana.

– Olá, Daniel.

Ele levantou a cabeça assustado.

– Maya? O que você está fazendo aqui?

– Eu precisava confirmar algo.

Daniel ficou parado, sem saber o que dizer. Eu queria tirá-la de lá o mais rápidopossível, mas não podia simplesmente aparecer no quarto.

Maya andou calmamente em direção a ele, retirou o violão do seu colo e, como sefosse algo totalmente normal, aproximou o seu rosto do dele e lhe deu um beijo.

– Não! – gritei desesperada. Só Maya me escutou.

Estava prestes a assumir minha forma humana e retirar Maya de lá, quando quem fezisso foi o próprio Daniel.

– O que foi isso? – ele parecia atordoado, mas ainda estava definitivamente vivo.

– O quê? – disse Maya impressionada. – Não é possível.

Daniel ficou ali parado, sem entender o que estava acontecendo. Nós duas também,ficamos imóveis, incapazes de imaginar o que teria feito com que Daniel continuassevivo mesmo após o beijo de uma valquíria.

– Acho melhor você ir – disse Daniel. – Amanhã podemos conversar com calma. Vocêparece estar confusa.

– Muito mais do que você imagina – ela respondeu e saiu do quarto.

Corri atrás, ela já estava saindo da casa pela porta da frente. Enquanto eu descia asescadas, ouvi um barulho de tiro e um grito abafado. Do lado de fora da casa, estava ocorpo de Maya caído no chão.

– Obrigado, Kara. Você conseguiu encontrar a fugitiva.

Era Saul. Ele segurava uma espécie de aparelho que fazia com que Maya ficasseparalisada.

– Ela não é fugitiva. Ela nem ao menos é culpada.

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– Por favor. Espero que você não tenha acreditado em nada que ela tenha dito. Vocêviu pelas atitudes dela que Maya não está em condições normais.

– Ela não mentiria para mim – podia sentir que Maya estava consciente e escutandonossa conversa, mas não conseguia reagir. – Você tem que soltá-la.

– Sinto muito, mas isso eu não posso fazer. Você não sabe o trabalho que deu parafinalmente a pegarmos.

– Toda essa missão foi uma mentira? Era tudo para que vocês pudessem capturá-la?

– Não, a missão existe. Ela é real. Só que você mesmo achou estranho o fato de tersido a responsável.

Não estava acreditando no que estava ouvindo.

– Sabíamos que Maya iria te procurar.

Eu havia pensado nessa possibilidade, de ser isca, mas não queria acreditar nisso.Tinha algo muito estranho naquela missão, não podia ser apenas um evento qualquer.Principalmente depois do que eu havia visto. Daniel havia recebido um beijo de umavalquíria e ainda estava vivo.

– Peço desculpas por ter te enganado. Iremos conseguir outra valquíria para terminara missão em seu lugar. Você está dispensada e será recompensada pela grande ajuda.

– Maya não fugiu.

– Isso é impossível. Temos registros da fuga dela. Você mesma viu no noticiário.

– Ela nem mesmo entrou naquele avião. Vocês estão cometendo uma injustiça.

– Kara. Você precisa se acalmar. Você já está há muito tempo na Terra e isso deveestar te afetando.

– Você está dizendo que eu estou desequilibrada?

– Não. Eu estou dizendo que Maya está. Você apenas está com problemas na suacapacidade de julgar a verdade.

Eu sentia o desespero de Maya caída ali no chão. Vítima de uma injustiça e incapaz dese defender.

– A restrição não fez bem para ela. É possível que ela não esteja mentindo para você,mas que tenha criado uma realidade alternativa só para ela. Ela criou uma fantasia pornão aceitar o que fez de errado.

O que Saul disse fazia sentido, mas a minha intuição dizia que não era verdade. Todaessa história estava muito confusa e não havia ninguém que pudesse me esclarecê–la.A não ser Rota.

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– Venha, Kara. Vamos voltar comigo.

Eu não podia voltar. A única resposta para a tal conspiração era encontrar Rota, maseu simplesmente não queria sair da Terra daquele jeito. Não sei se estava apegadaàqueles humanos ou se realmente havia me apaixonado por Daniel, mas eu precisavacompletar aquela missão.

– Vou ficar.

– Tem certeza?

– Não sou de abandonar uma missão no meio.

– Como quiser.

Olhei em direção a Maya e pensei: “Vou esclarecer isso tudo e logo irei libertá-la.” Elanão poderia reagir visualmente, mas sabia que confiava em mim para descobrir essemistério. Eu só não sabia por onde começar a investigação, nem em quem confiar.

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Inesperado

Existiam dois motivos que me seguravam na Terra. O primeiro era Daniel. Euobviamente não conseguia mais ficar longe dele. O segundo era Teka. De algumaforma ela estava envolvida naquilo e eu queria evitar ao máximo encontrar novamentecom ela. Pelo menos não antes de descobrir a verdade por trás do que estavaacontecendo.

Aproveitei meu tempo livre para pesquisar nos documentos do meu comunicador. Eramuito difícil encontrar qualquer referência a Rota. Existem arquivos detalhados detodas as valquírias. Nenhuma delas com esse nome. Outra tentativa foi criar uma listacom todas aquelas que estiveram em reclusão. Não adiantou muito, pois apesar deserem só algumas centenas, eu não sabia quase nada sobre a valquíria que euprocurava.

Pior do que procurar uma agulha no palheiro é que eu nem sabia se a agulha

realmente existia. Parecia um trabalho em vão. Talvez Maya estivesse realmenteenlouquecido. Ela mesma não tinha certeza se o encontro ocorreu de verdade ou seera fruto da imaginação.

Ao mesmo tempo, procurava outra informação que havia me intrigado. O beijo deMaya em Daniel.

Nunca havia escutado nenhum relato sobre a falha do beijo de uma valquíria. Era algoinerente ao nosso corpo, fora de nosso controle. Só que eu havia visto ela beijarDaniel. Ele continuou vivo, sem qualquer alteração física.

Será que eu realmente vi aquilo? Não conseguia acreditar que Maya havia perdido seus

poderes. Comecei a duvidar da minha própria sanidade. Não me sentia louca, mas nãopodia negar os casos de insanidade terrestre.

Passei dias pesquisando esses assuntos e acabei me esquecendo das minhasobrigações como humana. Como dependia do sinal do comunicador, havia ficadopróxima da igreja. Só percebi quanto tempo havia passado quando senti a presença deSara.

Era quase uma semana depois, ela estava lá para sua aula de música. Mal conseguiaacreditar que eu havia perdido a noção do tempo. Nem que havia perdido minhasaulas particulares com Daniel. Estava na hora de desistir por um tempo daquelainvestigação e voltar à minha vida.

Fui ao encontro dela, com a tradicional desculpa dos humanos:

– Sara, que saudades. Eu fiquei doente, nem conseguia sair da cama. Agora estoubem melhor. Conta, o que eu perdi esses dias?

Entre tarefas escolares e fofocas sociais, as maiores novidades eram sobre a gravaçãodo disco:

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– Você nem vai acreditar – dizia Sara empolgada. – Além das músicas, eles queremgravar um show nosso e uma série de entrevistas. Sabe, uma espécie dedocumentário.

– É bem difícil de acreditar mesmo.

– Eu juro. Já até marcaram as datas para gravarmos as músicas e as entrevistas. Apartir dessa sexta nossos ensaios serão dentro de um estúdio.

– Muito legal. E as entrevistas?

– Hum, deixa eu ver – disse Sara, procurando uma agenda na sua mochila. – Achei.Daqui a três semanas. Dia 22 de abril.

Também conhecido como o dia da nossa morte. Não existem coincidências, mas era aminha chance de juntar toda a banda no local do incêndio. Afinal, era para isso que euestava ali na Terra.

– Vocês já escolheram um local?

– Ainda não. Mas temos algumas opções. Eu queria que fosse na casa do Dado, masdepois daquela briga o Leo não quer mais saber dele. Ainda mais agora queconseguimos outro local para ensaiar.

– E se a gente gravasse na escola? Seu irmão também estudou lá, não foi?

– Boa ideia. Tenho certeza que os meninos também vão gostar.

Eu podia não ter ido muito bem na investigação, mas organizar eventos era minhaespecialidade. E esse já estava mais do que encaminhado.

Naquela noite finalmente voltei para o meu lar habitual. Chegando lá, qual não foiminha surpresa ao encontrar outra pessoa muito importante para mim. Daniel estavasentado no balanço, ao lado da casinha de brinquedo.

Ao me ver chegando, ele sorriu e continuou sentado. Esperou eu chegar perto paracomeçar a falar:

– Um dia você vai ter que me contar onde mora.

Parei na frente dele, de pé e respondi:

– Pelo jeito você sabe muito bem como me encontrar.

– Sara me contou o que aconteceu.

– Por isso que você veio até aqui? Para me procurar?

– Mais ou menos. Vamos dizer que acabei passando por essa praça mais vezes do quecostumo.

– Já estou bem. Não precisa mais se preocupar comigo.

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– Bom saber.

Ficamos em silêncio por um tempo, somente nos olhando. Como era possível. Ficamosapenas alguns dias sem nos ver, mas vê-lo novamente estava me fazendo muito bem.

– Quer se sentar? – disse Daniel, apontando um balanço ao lado do dele.– Achei que nunca iria me convidar – respondi e ocupei o lugar.

– Ah, gostei da sua ideia de gravar as entrevistas na escola.

– Obrigada pelo elogio, mas algo me diz que você não veio me procurar só por causadisso.

– É, não vim. Tinha algo a mais que eu queria saber.

– Pode perguntar.

– É sobre aquela sua amiga. Maya, né?

Apenas consenti com a cabeça, mas acredito que ele não viu.

– Só para confirmar, ela não é aquela mesma amiga sua que estava no avião comigo,era?

– Não, não era – de certa forma, eu estava falando a verdade. – Você lembra como elaera, não lembra?

– Lembro, sim. Lembro que era muito bonita, mas não como sua outra amiga Maya.

Ele parou de falar por um breve instante, como que escolhendo as próximas palavras.– Nem tão bonita como você.

Não sabia o que dizer. Aquele tipo de elogio era algo que eu estava acostumada aouvir todos os dias, mas vindo dele tinha uma importância totalmente diferente.

Senti os olhos dele em mim. Eu olhava para frente e comecei a sentir um medoenorme de virar meu rosto na direção dele. Medo do que poderia acontecer.

Aos poucos aquela conversa começou a fazer sentido. De alguma forma o beijo deMaya fez com que ele perdesse o medo de demonstrar o quanto gostava de mim.

Fiquei paralisada por alguns segundos, até que senti a mão dele tocando no meubraço. Um calor tomou conta de todo meu corpo e me queimava por dentro. Ele foideslizando, até que sua mão encontrou a minha. Automaticamente meus dedos seabriram, deixando ser segurados pelos dedos dele. Não resisti e olhei para ele. Seu sorriso era encantador. Seus olhos exalavam paixão.Eu podia sentir suas mãos quentes e o coração acelerado. Aquilo não estava certo enão ia acabar bem.

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Aos poucos ele foi aproximando o seu rosto do meu. Eu estava imóvel, mas precisavatomar uma atitude. Eu sabia o que ele queria e não podia deixar aquilo acontecer. Nãopodia matá-lo agora. Ou será que ele não iria morrer?

Foi só quando os olhos dele já estavam quase fechados e sua boca muito mais próximada minha do que deveria, que eu consegui reagir e virar o rosto.

Ele parou e ficou me olhando por um tempo antes de se afastar. Continuou segurandominha mão e não disse nada. Fui eu quem falou primeiro:

– Desculpa, mas não posso.

– Não pode? – perguntou Daniel confuso.

Como eu queria poder explicar o quanto era arriscado ele me beijar, mas nem eu tinhacerteza dos efeitos de um beijo de valquíria nele.

– Pelo jeito confundi as coisas – disse ele com uma voz bastante chateada.

Ele tentou soltar a mão da minha, mas algum instinto maluco do meu corpo nãodeixou. Eu o queria perto de mim, queria beijá-lo e abraçá-lo, mas não podia. Entãopor que não o deixava ir? Isso só o deixou ainda mais confuso.

– Não estou entendendo.

– Eu sou... – como eu podia explicar? – Nós somos diferentes.

– Kara, o que eu sinto por você nunca senti por outra pessoa antes. Existe algo deespecial em você que eu não consigo explicar. Não ligo para as nossas diferenças, façode tudo para ficar ao seu lado.

– Para. Não fala mais isso.Segurei a mão dele entre minhas duas mãos, voltei a olhar para o seu rosto econtinuei a falar:

– Eu não posso te explicar, mas preciso que você entenda que não podemos ficar juntos. Não agora.

– É por causa da idade? Eu posso esperar.

– Você não imagina o quanto eu gostaria que você esperasse, mas não posso exigirisso de você.

– Eu posso esperar. O tempo que for necessário.

– Pode ser muito mais do que você imagina.

– Você trouxe de volta para minha vida um brilho e uma alegria que há muito tempoeu havia perdido. Eu não consigo me imaginar feliz longe de você, Kara.

Eu também.

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– Não posso te prometer que estarei sempre ao seu lado, Daniel. Por favor, nãoprenda sua vida a mim. Não vale a pena.

Sua expressão mudou de apaixonado para confuso. Logo depois foi para decepção.Acredito que rejeição fosse o sentimento mais correto.

Tudo que eu queria falar naquele momento é: “também estou apaixonada como nuncaestive antes”, mas era melhor deixá-lo imaginando que havia sido rejeitado. Seriamais fácil para ele aceitar e continuar com sua vida, sem a minha interferência.Humanos se prendem muito à esperança e eu não podia ficar dando nenhuma a ele.

Abaixei novamente minha cabeça e soltei a mão dele. Daniel continuou sentado, masnão falou nada. Depois de um tempo, ele se levantou, pegou algo no bolso e colocousobre o balanço. Virou-se e foi embora.

Eu só voltei a olhar para cima quando ele já estava bem distante. Olhei o balanço dolado e tinha um pequeno caderno. Na capa estava escrito o meu nome.

Peguei lentamente e abri. Ali estava colado o desenho que ele havia feito de mim como

assassina, no dia em que fomos sozinhos na lanchonete. Praticamente nosso primeiroencontro. Folheei as outras páginas e todas elas continham imagens minhas.

Fechei o caderno e deixei as lágrimas rolarem pelo meu rosto.

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Preparativos finais

As situações na Terra tinham uma tendência de tomarem rumos cada vez maisinesperados. Os dias a seguir passaram voando. Daniel continuou me tratando damesma maneira, mas eu não conseguia deixar de me lembrar da decepção que causeinele. Apesar dessa dor que eu sentia toda vez que o via, fiz de tudo para manter umrelacionamento o mais sincero possível.

Faltavam apenas alguns dias da minha vida na Terra e eu queria poder aproveitar aomáximo todos os momentos que estivesse ao lado dele. Fiz questão de continuar comas aulas de guitarra e de usar qualquer tipo de desculpa para vê-lo.

No começo ele não entendeu direito, mas percebi que ele também gostava de estar aomeu lado. Apesar de eu o ter rejeitado, a paixão entre nós dois continuava viva eforte. O tempo todo me lembrava do beijo que Maya deu nele, chegava a pensar seDaniel não seria imune ao nosso beijo e estaria livre para namorar comigo. Loucuras

que eu procurava não alimentar muito.

Por outro lado, as gravações no estúdio foram ótimas. Nosso disco estavapraticamente pronto, faltava apenas um ou outro ajuste. O produtor garantiu que seriaum grande sucesso. Pena que ninguém iria ver isso acontecer com vida. Talvez Danielconseguisse.

A questão da vida de Daniel eu havia deixado na mão do acaso. Decidiria na hora deacordo com a forma que o acidente atingisse seu corpo. Não poderia deixar minhasvontades interferirem nessa decisão. Por enquanto, estavam garantidas apenas asmortes de Leo e Sara.

O evento estava praticamente pronto. No dia das entrevistas, um curto-circuito entre oequipamento de gravação, a caixa de força da escola e uma estante com livros velhosiria causar um incêndio muito rapidamente. Pela posição que eu havia planejado, osprodutores e equipe técnica conseguiriam escapar sem problemas. Sara e Leo ficariamisolados comigo em uma pequena área. As almas deles seriam retiradas antes que afumaça do incêndio causasse muito desconforto. Nenhum deles iria sofrer e os corposficariam visualmente intactos para o funeral. A morte que os dois mereciam.

Ainda tinha que dar um jeito de levar Dado. Aos poucos, influenciei o produtor aprocurar o agora ex-integrante da banda. Fiz ele acreditar que seria de grandecontribuição para o mini documentário que estavam montando. Após ele fazer oconvite, fiz algumas visitas escondidas ao Dado para fazer a sugestão. Para não ter

erro, no dia iria até a casa dele fazer o convite pessoalmente. Minha ideia era chegarna entrevista acompanhada dele, como meu convidado, para que não houvesse umabriga desnecessária.

Era uma grande mistura de sensações ao mesmo tempo. Apesar de muitas situaçõestomarem rumos imprevisíveis, tudo ali corria bem e logo eu estaria voltando para casacom Sara e Leo. Por outro lado, eu talvez tivesse que deixar Daniel para trás. Tambémexistia o mistério da conspiração e uma certa ansiedade em tentar descobrir o que iria

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acontecer. Após a missão, eu teria que voltar para o mundo dos mortos e enfrentarTeka. Não era algo que eu queria, mas eu sabia que precisava fazer.

Em meio a pensamentos, dúvidas e ensaios, o tempo passou e estávamos a vésperada gravação. Ou do incêndio. Sara e Leo nervosos com o que iriam falar no vídeo,Daniel tranquilo e confiante como sempre. Eu, dessa vez, estava calma e segura.

Gostava de estar assim antes de um evento. Tinha total controle sobre a situação eainda queria dar logo aos meus amigos a boa notícia de que seriam levados comigo.Não que eles fossem achar uma boa notícia logo de início, mas depois perceberiam quemorrer não era ruim.

Naquela noite eu havia assumido novamente a minha postura de valquíria. Não eramais apenas uma garota humana. Repassei os horários e revi as planilhas, poisgostava de ter tudo claro em minha cabeça. Uma pequena equipe de recepção estariadisponível algumas horas antes do incêndio. O resto era tudo comigo mesmo.

Senti falta de Teka ao meu lado. Eu sabia que ela não era mais confiável, mas mesmoassim era muito bom cuidar de um evento com ela ao lado. De qualquer forma, eu não

ficaria surpresa em encontrá-la amanhã. Principalmente se existir a tal conspiração. Euteria que ficar atenta a tudo.

Antes de dormir fiz uma última visita a Dado. Ele estava bastante acabado, com ocorpo e a alma destruídos pelas drogas. Seria difícil retirar a alma dele, mas precisavaque ele estivesse conosco, seu nome estava na lista. Fiz apenas uma leve sugestão.Deixaria guardada um pouco de energia caso não conseguisse convencê-lo no diaseguinte.

Tudo preparado. Era hora de dormir e recuperar as forças.

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Dado

A gravação estava marcada para depois da aula, mas Sara e eu combinamos de não irnaquele dia. Ela queria treinar seus depoimentos e eu queria me concentrar noincêndio.

Aproveitei para dormir até mais tarde e recuperar as minhas forças. Depois fiz umaminuciosa visita técnica ao local, conferindo se estava tudo certo para que o fogo docurto-circuito se espalhasse rapidamente. O próximo passo era buscar o terceiro nomeda lista. Foi lá que o plano começou a sair um pouco do controle.

Dado estava na casa dele, exatamente como previsto. Cheguei na forma humana etoquei a campainha. Ninguém atendeu. Insisti novamente. Eu sabia que ele estava lá.

Após esperar alguns minutos, pude finalmente ouvir um barulho de alguém andandopela casa. Toquei mais uma vez a campainha. A pessoa parou, mas não veio meatender. Parecia que estava tentando ignorar a minha presença.

– Dado? – gritei. – Sou eu, Kara.

– O que você quer? – ouvi a resposta por trás da porta fechada.

– Preciso conversar contigo.

Ainda levou um tempo até ele finalmente decidir ir até a porta me receber. Seu rostoexibia profundas olheiras e sua pele estava bastante pálida. Exatamente como eu ohavia visto na noite anterior.

– Como estão as coisas? – perguntei.

– Desde quando você está interessada em mim?

– Eu... eu não queria que as coisas ficassem assim. Ainda dá tempo de eu pedirdesculpas?

– Tanto faz.

– Eu sei o quanto a banda era importante para você. Quer dizer, o quanto ela ainda éimportante.

– Você não veio aqui apenas para pedir desculpas e falar o óbvio, né?

– Não. Eu vim de fazer uma proposta. Melhor, vim te fazer um pedido.

– Você quer um favor meu?

– Quero. Para mim seria muito importante.

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– Foi por você, Kara. Você mexe comigo, perco a concentração quando estou perto devocê. Não aguentava ficar vendo você e o Daniel cheio de intimidades e brincadeiras

Enquanto falava isso, ele aos poucos ia se aproximando de mim.

– Você é linda. Você não deve ter noção do quanto é bonita e do efeito que causa em

mim.

Já estava me arrependendo de ter ido lá, mas para piorar as coisas, senti umapresença totalmente inesperada. Daniel estava se aproximando. O que ele estariafazendo por ali?

Instintivamente olhei para o lado, procurando a moto dele. Com isso Dado conseguiuse aproximar de mim e, antes que eu pudesse reagir, colocou a mão sob meu queixo,virou meu rosto e colou seus lábios nos meus.

Idiota.

Uma dor alucinante percorreu meu corpo. Podia sentir pontadas em meus lábios, comose estivesse beijando cacos de vidros. Os cortes iam se aprofundando cada vez mais,só que eu não podia desprender meu lábio. A alma de Dado estava mais danificada doque eu previa e eu poderia perdê-la para sempre se fizesse algum movimento brusco.

A dor era muito forte, mas eu podia suportá-la e sabia que era capaz de retirar a almacom sucesso. O problema é que isso levaria algum tempo. Não é algo que eu pudessefazer em poucos minutos. Muito menos antes que Daniel visse aquela cena.

A presença dele estava cada vez mais forte e eu já podia ouvir o barulho da motoentrando na rua. Eu não podia olhar para trás e a dor era intensa demais para que eupudesse tomar alguma atitude.

Permaneci parada. Meus lábios encostados nos de Dado, na frente da porta de suacasa, segurando-o em meus braços para que seu corpo não caísse. Certamente Danielestava vendo aquela cena, parado com sua moto, sem entender o que estavaacontecendo. Quer dizer, ele devia estar tirando todas as conclusões erradas.

Meu pensamento estava todo nublado pela dor, só queria que Daniel fosse emboralogo e me deixasse terminar o serviço que Dado havia começado por mim. Qualquersegundo a mais que ele ficava ali era uma eternidade.

Ele poderia querer descer da moto e pedir explicações para mim. É bem possível queessa ideia tenha passado pela cabeça dele. Por sorte, ele escolheu a outra opção. Ir

embora.

Tão logo ele virou a esquina, comecei o processo de retirada da alma de Dado. Nessassituações, é preciso puxar lentamente para que ela não se separe em pedaços e nãotenha danos irreversíveis. Quanto mais se puxa, mais profunda é a dor que umavalquíria sente. Mesmo assim temos que manter a calma, respirar fundo e continuarpuxando lentamente. O que leva às pessoas a destruírem suas almas dessa forma?Dão trabalho para as famílias em vida e para nós na morte.

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Demorou, mas quando finalmente consegui retirar toda sua alma, eu estava exausta.Suava frio e sentia minha boca toda cortada. Joguei o corpo dele para um lado e omeu para outro. Precisava sentar e respirar.

Ainda não acreditava que ele havia sido capaz de fazer aquilo. Se depois disso a almadele conseguisse se recuperar, iria ficar me devendo favores para o resto da morte. E

eu iria cobrar uma bela de uma recompensa.

Olhei o comunicador e pude ver que as equipes de recepção já estavam na Terra. Osveículos de transporte também funcionam como retransmissores de sinal, aproveiteipara mandar um pedido de resgate e me deixei adormecer.

Quando acordei, estava dentro do veículo de transporte e já me sentia um poucomelhor. Ao meu lado estava a alma de Dado com um tipo de estrutura mantendo-a emsegurança. Levantei e saí, ainda cansada. Do lado de fora, os membros que foram nosbuscar se posicionavam em frente da escola. E eu já estava atrasada para o início doevento.

– Você não pode ir assim – disse um dos receptivos. – Precisa descansar. Estamossolicitando a presença de outra valquíria.

– Não perca seu tempo. Eu sou responsável pelo evento e irei buscar essas almas.

Eles olharam assustados para mim, enquanto eu caminhava em direção à escola. Erahora de terminar o serviço.

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Incêndio

– Ali está, Kara – comentou Sara apontando para mim.

Ela estava sentada ao lado de Leo em uma das cadeiras da cantina. De frente paraeles estavam o produtor musical que nos acompanhava e um cinegrafista com acâmera apoiada sobre as pernas.

Os três se viraram para me ver chegando e logo perguntaram:

– Onde está o Daniel?

– Ele não chegou ainda? – perguntei casualmente.

Era natural imaginar que isso poderia ter acontecido, principalmente depois da cena

que ele presenciou. Daniel nunca deu grande importância para a fama, ele tocava peloprazer e pelas amizades. Acho que eu havia tirado essas duas motivações dele de umasó vez.

– Você esteve com ele hoje? – perguntou Leo.

– Estive. Achei que ele já havia chegado. De qualquer forma, acho melhor começarmossem ele.

– Não prefere esperar? – perguntou o produtor.

– Não tem necessidade. Logo ele estará aqui.

Pensando por outro lado, talvez fosse melhor que tivesse acontecido dessa forma. SemDaniel no local eu não teria que escolher se o mataria ou não. Confesso que aindatinha esperanças de que alguma prateleira caísse mortalmente sobre sua cabeça, paraque eu pudesse levá-lo sem culpa alguma. Eu queria ele ao meu lado, mas teria queaceitar a ideia de esperar. Se é que depois de hoje ele continuaria a sentir o mesmopor mim.

Minhas preocupações agora eram apenas com Sara e Leo. Dado já estavaencaminhado. Precisava colocar os dois em posição e aguardar o incêndio começar.Exatamente conforme o planejado sem qualquer tipo de improvisação ou adaptação.

– Ok – disse o produtor. – Onde iremos começar?Logo me adiantei:

– Gostaria de gravar na biblioteca. Podemos começar por lá?

– Podemos, sim.

Assim que chegamos, coloquei três cadeiras exatamente na posição que eu queria.

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– Hum, a iluminação aqui não está muito boa – comentou o cinegrafista.

Não pensei duas vezes e logo entrei na cabeça dele. Sugeri que aquele era o lugarperfeito e era ele que não havia avaliado direito.

– E se acendermos essa luz aqui? – disse apontando para uma luminária qualquer.

– É, assim vai ficar ótimo – respondeu ele. – Só vou precisar de uma tomada para ligara câmera e já podemos começar a gravar.

A mais próxima era exatamente aquela que daria o curto. Como era boa a sensação dever tudo caminhando conforme deveria. Olhei contente para os dois irmãos que logome acompanhariam para o outro mundo. Eles devem ter interpretado meu sorriso demaneira diferente, mas retribuíram assim mesmo.

O produtor deu algumas orientações, ele iria fazer perguntas e com isso iria dirigindoos depoimentos. Os três poderiam responder, mas com calma e um de cada vez.Enquanto ele explicava, outro imprevisto indesejável. Comecei a sentir uma presença

muito conhecida. Teka estava na Terra e estava por perto.

Mal percebi quando a gravação começou. O fato de Teka estar por ali me incomodavabastante. Eu tinha total controle sobre aquele evento, mas o que será que estavaacontecendo além dele? Não podia sair dali agora e precisava segurar a minha tensão.Não queria que os humanos desconfiassem de nada, não antes do incêndio começar.

Pelo menos não demorou muito tempo para isso acontecer.

– Que cheiro estranho é esse? – disse Sara.

O fogo já havia começado há algum tempo, mas quando o cheiro de fumaça atingiu o

olfato dos vivos já era tarde demais. Logo depois uma estante caiu entre nós três e asaída, toda coberta com fogo que se espalhava com uma velocidade impressionante.Tudo aconteceu muito rápido.

Sara se levantou da cadeira em um pulo, mas depois ficou paralisada, em estado dechoque. Leo tentava de alguma forma procurar uma saída. Eu podia ouvir os gritos dedesespero do outro lado da cortina de fogo:

– Ei? Vocês estão bem?

Eu respondi gritando:

– Corram. Saiam daqui!

– Vamos buscar ajuda – responderam.

– Não será necessário – falei em voz baixa.

Sara e Leo ouviram. Eles já estavam começando a ficar sufocados com a fumaça.Virei-me para eles e encontrei aquela expressão típica de quem sabe que irá morrer.

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– O que está acontecendo, Kara? – perguntou Sara.

– Primeiro preciso pedir desculpas – disse.

– Desculpas? – disse Sara confusa.

– Não fui completamente sincera durante esses meses que passamos juntos.

Eles já estavam ficando atordoados com a fumaça, mas olhavam atentamente paramim.

– Logo tudo isso irá acabar, fiquem tranquilos.

– Nós vamos morrer? – perguntou Leo.

– Sim, vocês irão. Eu estou aqui para buscá-los.

Eles se entreolharam, ainda assustados, mas aceitando seu destino. No momento finalda vida, todos aceitam a morte.

– Estão prontos para ir? – perguntei, estendendo minha mão.

– Quem é você? – perguntou Sara.

– Os vivos me chamam de anjo da morte. Não se preocupem, teremos muito tempopara conversar e todas as explicações virão.

Leo foi o primeiro a estender a mão. Ele tossia fortemente por causa da fumaça e jáestava prestes a desmaiar. Aproximei-me dele, segurei seu rosto com minha mão livree dei o beijo final. Senti sua alma se desprendendo com muita facilidade, enquanto seucorpo caía no chão.

Sara havia ficado levemente assustada:

– Vai doer?

Cheguei bem próximo de seu rosto. Ela estava parada, esperando.

– Nem um pouco.

Aquele foi um dos beijos mais agradáveis que eu dei em toda minha existência como

valquíria. Não me lembrava de ter sido responsável pela morte de algum humanoconhecido. Era muito prazeroso levar a alma de alguém que eu gostava.

Suavemente retirei meus lábios da boca dela e a alma veio comigo. Os dois estavamadormecidos, em completa paz.

Acionei a equipe de recepção pelo rádio:

– Tudo pronto. Podem vir nos buscar?

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– Estamos a caminho.

A missão estava cumprida, mas ainda não podia relaxar. Tinha que procurar Teka etentar descobrir o que estava acontecendo por trás de tudo aquilo. Sara e Leo estariamem boas mãos e minha preocupação agora era com outra pessoa. Daniel.

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Medo

Quando saí da escola, as chamas já estavam bastante altas e alguns carros debombeiro se aproximavam. Pessoas se aglomeravam na rua para ver o que estavaacontecendo. Um pequeno espetáculo para aquela cidade do interior.

Sentia que Teka não estava muito longe, mas também não estava com Daniel. Nãopodia ir atrás dos dois, então tive que pensar rápido. Precisava de ajuda.

– Saul, preciso falar com você. É urgente – disse no comunicador.

– O que aconteceu, Kara? – respondeu ele rapidamente.

– Você confia em mim?

– Do que você está falando?

– Preciso de você na Terra. Agora.

Ele não respondeu imediatamente.

– Teka está aqui e alguém tem que ficar de olho nela.

– Não estou entendendo.

– Não tem que entender, tem que confiar em mim. Venha logo, por favor.

– Estou indo.

Com Saul por perto, Teka não conseguiria fazer nada de errado. Minha preocupaçãoagora era com Daniel. Mesmo estando longe dela, ainda sentia que algo estava errado.

Minha suspeita se confirmou assim que cheguei à casa dele. A porta da frente estavaaberta. Na sala podia ver a silhueta da Anny, só não conseguia imaginar o que elaestaria fazendo ali.

Entrei correndo e vi uma cena assustadora.

Daniel segurava um revólver em sua mão, com um olhar totalmente confuso. Anny

falava de maneira agitada:

– Você tem que acreditar em mim. Tudo que eu te disse é verdade.

– O que é verdade? – interrompi a conversa, surpreendendo os dois com minhapresença.

– Quem é você, Kara? – perguntou Daniel.

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– Por favor, não.

Não podia deixar ele se matar assim, mas também não sabia como convencê-lo docontrário. É muito difícil mudar a cabeça de um humano quando ele deixa de valorizara vida.

Até que fui salva por um anjo.

– Não faça isso, rapaz – era a voz de Saul, entrando pela porta.

– Quem é você? – perguntou Anny.

– Sou um anjo, assim como Kara é – a voz dele era calma e profunda. – Vim aqui paraimpedir que vocês façam uma besteira.

Eles olhavam confusos para Saul e para mim.

– Daniel, por favor largue essa arma. Tenho um presente para você.

– Presente?

– Sim, alguém que vai poder te convencer a continuar vivo.

Eu também estava curiosa e olhei para a direção de Saul. Atrás dele estava o tal dopresente, invisível aos olhos humanos.

– Anny, pode me emprestar seu corpo por um instante? – pediu Saul educadamente.

Ela estava assustada e não sabia o que responder. Saul aceitou isso como um sim. Foiaté ela, colocou uma mão sobre sua cabeça e deixou com que seu corpo fossepossuído pela alma da mãe do Daniel.

– Filho? – era ela falando pelo corpo da Anny.

– Mãe? – Daniel estava confuso e assustado.

O presente a que Saul se referia era esse encontro. É possível que ele tivesse previstoessa situação toda?

– Como você está, meu filho? Estamos com muita saudade de você.

Apesar da voz diferente, Daniel foi capaz de reconhecer a mãe dentro daquele corpo.Esse tipo de possessão era algo que só os einherjar podiam permitir.

Os dois se abraçaram e caíram em lágrimas. Daniel largou a arma no chão e falou:

– Também tenho muitas saudades. Está muito difícil ficar aqui sem vocês, mãe.

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– Eu sei, meu filho. Eu sei. Mas ainda não é a sua hora. Ainda tem muito o que viver.Sofrerá bastante ainda, mas isso faz parte da vida. Ela é o que temos de maisimportante.

Daniel só chorava.

– Logo nos encontraremos e teremos a eternidade toda para matar a saudade. Vocêtem que aproveitar ao máximo sua vida. Seu pai e eu andamos te observando eestamos muito orgulhosos de você. Só prometa que não fará nenhuma besteira, filho.

Em meio às lágrimas, ele respondeu.

– Prometo.

E continuaram abraçados por algum tempo. Eu me virei para Saul e disse:

– Obrigada.

– Eu que tenho que te agradecer. Vocês dois serão muito importantes ainda.

Nem bem fiz menção de perguntar por que éramos importantes e Saul já respondeu.

– Tudo a seu tempo. Logo irei te explicar tudo que sei.

Consenti com a cabeça.

– Temos que ir agora – anunciou Saul para Daniel e sua mãe.

– Tchau, filho. Cuide-se bem e seja firme. Logo você terá outras notícias ruins, masvocê precisa se manter forte. Eu te amo, filho.

– Também te amo, mãe.

Saul colocou novamente a mão sobre a cabeça da Anny, retirando de lá a alma da mãede Daniel, deixando-a bastante atordoada por causa da possessão.

– Você vai ficar bem, garoto? – perguntou Saul.

Ele ainda chorava muito e mal conseguia falar:

– Muito obrigado por ter me dado essa oportunidade.

– Eu quem terei que te agradecer futuramente.

Daniel esboçou um leve sorriso e respondeu:

– Deixarei meus pais orgulhosos de mim.

– É assim que se fala.

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– Kara? Posso falar com você? – pediu Daniel.

Antes mesmo que eu pudesse abrir minha boca, Saul olhou em minha direção comuma expressão bastante séria e disse:

– Nós temos que ir. Já interferimos demais na vida dele.

Olhei triste para Daniel. Não era daquela maneira que eu queria me despedir dele.Havia tanto o que dizer. Gostaria de poder agradecê-lo por tudo fez por mim. Por termudado completamente a minha forma de ver a vida. Queria poder dizer o quantogostava dele e que ficaria esperando o tempo que fosse necessário. Mas não podiadizer isso. Só podia ir embora. Em silêncio.

Com todas as forças que me restavam, segurei minha vontade de correr e abraça-lo.Mas não consegui segurar as lágrimas que começaram a escorrer dos meus olhos

– Cuide-se e viva da melhor forma possível – falou Saul.

Só espero que não seja muito longa, pensei antes de ficarmos invisíveis aos olhos deDaniel.

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Traição

– Você vem comigo? – perguntou Saul.

Ainda estávamos na frente da casa de Daniel. Ele estava lá, parado, chorando,tentando entender o que tinha acontecido.

– Eu gostaria de te fazer algumas perguntas – respondi depois de observar Daniel poralguns minutos.

– Não na frente dela – respondeu Saul, olhando para a mãe de Daniel. – Podemosconversar na sua casa.

– Não posso voltar agora.

– Eu não posso ficar. Tome cuidado e não faça nada de errado.

Os dois desapareceram na minha frente.

Eu tinha que ficar. Estava na hora de confrontar Teka.

Eu podia sentir que ela estava perto. Estava esperando por mim na praça em frente àescola. O local devia estar cheio de bombeiros e curiosos. Precisaria tomar cuidado aoabordá-la em um ambiente com tantos vivos. Até agora já havia sido muitoimprudente e cometido vários deslizes. Não podia errar mais.

Chegando lá, pude ver a rua cheia de pessoas, caminhões, luzes e barulho. As almas

de Leo, Sara e Dado já haviam sido retiradas. A única morta ali era Teka. Estava empé, no meio da praça, apenas observando. Como que esperando me ver saindo dedentro da escola.

– Por um momento achei que você já tinha ido embora – disse ela ao me ver.

– O que você está fazendo aqui? – perguntei.

– Vim prestigiar o belo trabalho da minha amiga.

– Eu sei que você não veio para isso.

– Hum. Vejo que voltou a ser a Kara fria e determinada de antes.

– Eu encontrei com Maya.

– Quando?

– Há algumas semanas. Ela me contou coisas que não sabia.

Teka se virou para olhar o incêndio. Continuei falando.

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– Você sabia que ela nunca esteve naquele avião?

– Sabia.

– Desde quando?

– Fui eu quem entrei naquele avião.

Por que será que eu não estava surpresa?

– Foi você também que me pediu para vir nessa missão? Por quê?

– Você não entende, Kara. Existem coisas mais importantes acontecendo no mundo.

– Por que você não tenta me explicar?

– Grandes mudanças estão acontecendo. Existe alguém querendo desmoralizar asvalquírias.

– Isso não faz sentido.

– Nós podemos acabar com a vida. Isso é muito importante.

– Mas ninguém pode tirar esse poder de nós. Ou matar em nosso lugar.

– Eles não querem tirar o poder. Querem nos transformar em peões. Usar-nos apenaspara tirar as vidas, não para ter controle sobre toda a passagem.

– Já não temos total controle. Nem podemos definir as listas.

– Se depender deles, poderemos fazer ainda menos.

– Quem são eles? De quem você está falando?

Ela não respondeu.

– Você está louca.

– É você que está sendo muito ingênua. Alguns sacrifícios precisam ser feitos paramanter a ordem.

Eu não estava reconhecendo aquela Teka. Ela estava muito diferente.

– Você planejou tudo isso sozinha? – perguntei.

– Somos um grupo pequeno. Em breve teremos força o suficiente para conter toda arevolução.

– Você continua soando como louca. Isso tem algo a ver com Rota?

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Teka ficou surpresa:

– O que você sabe dela?

– Maya encontrou com ela na reclusão. Não sabia que ela realmente existia.

– Ela é nossa líder.

– Achava que eu era sua coordenadora.

– Você é muito melhor que ela, Kara. Se ao menos você entendesse o que está em jogo. Com você ao nosso lado poderíamos fazer muito mais. Você poderia se juntar anós.

– Não sei se concordo com seus ideais. Principalmente a parte de colocar grandesamigas em situações de risco.

– Pense no bem maior. Não podemos perder tudo que conquistamos até hoje.

– Não acho que iremos perder nada.

– Não se depender de nós. Estamos cuidando para que os agentes sejam eliminados.

– Agentes?

– Você encontrou com um deles. Não percebeu que Daniel era muito diferente dosoutros humanos?

Continuava sem entender.

– Desculpa, mas tínhamos que eliminá-lo. Ele é uma ameaça.

Também não me surpreendia saber que ela estava por trás da tentativa de suicídio deDaniel. Só que ouvir aquilo da boca dela era muito mais doloroso.

– Apenas uma vida perdida, não se preocupe.

Eu podia sentir a raiva dominando meu corpo, queria causar algum tipo de dor a ela. Amesma dor que senti ao imaginar a alma de Daniel desaparecendo. Tudo que eu podiafazer é contar-lhe a notícia de que tudo havia sido em vão.

– Ele está vivo.

Teka olhou inconformada em minha direção.

– Não é possível. Aquela incompetente.

– Anny? Ela fez um bom trabalho, mas não foi suficiente.

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A expressão de Teka estava dominada pelo ódio. Eu estava satisfeita com a vingança,mas não com as consequências de tê-la provocado. Ela saiu. Iria punir a garota dealguma forma.

Eu não podia permitir. Teka era uma valquíria e poderia devastar a existência dealguém com o corpo debilitado como o de Anny. Correndo o mais rápido que pude,

segui seu rastro e a encontrei na frente da casa de Daniel.

– Ela não está aqui – gritei assim que cheguei.

– Eu sei – disse Teka sorrindo e desaparecendo.

Ela queria me distrair. E conseguiu. Daniel ainda estava ali, sentado no chão. Com elepor perto eu não conseguia identificar nenhum outro rastro. A presença dele era muitoforte para mim. Precisava pensar rápido.

Continuei tentando identificar o rastro dela, mas só Daniel aparecia em minha cabeça.Como que em sintonia de pensamentos, ele levantou a cabeça e olhou em minha

direção. Ele não tinha como saber que eu estava ali. Ou tinha?

– Kara? – disse Daniel, procurando com a cabeça, sem me ver.

Ele sabia que eu estava ali. Como isso era possível?

– Não sei se você pode me ouvir. Nem sei direito o que está acontecendo – falavaDaniel para o nada. – Só queria que você soubesse...

Ele fez uma pausa e não conseguiu continuar. Fui até ele e o abracei. Provavelmenteele nem iria sentir, mas eu precisava sentir o corpo dele pela última vez. Para melembrar como era estar viva. Aquele seria o momento que ficaria na minha memória

enquanto esperaria a hora de reencontrá-lo.

Aproximei minha boca do ouvido dele e disse.

– Eu te amo, Daniel.

As lágrimas voltaram a escorrer dos olhos dele. E dos meus também.

Não queria ir embora, mas não poderia ficar ali para sempre. Só percebi isso quandosenti alguém tocar o meu ombro. Era Saul.

– Voltei para te buscar e encontrei Teka no caminho.

– Onde ela está? Temos que...

Antes que eu pudesse terminar de falar, ele me interrompeu:

– Já está tudo sob controle. Cheguei antes que ela fizesse mal à humana.

– Parece que você salvou novamente o dia – brinquei.

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– Foi você quem salvou o dia, Kara. Se não tivesse pedido ajuda a tempo, eu nãoestaria aqui.

– Obrigada – respondi.

– Pode voltar comigo agora?

Apesar do coração apertado, eu estava finalmente aliviada, com a sensação de devercumprido. Olhei uma última vez para Daniel e respondi:

– Hora de voltar para casa.

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Não há lugar como o nosso lar

Ao chegar em casa, sentia que estava em um lugar estranho. Eu me apeguei àquelapequena casa de madeira no parque da escola. Fiz daquele lugar o meu lar. Iria sentirsaudades de lá, bem como de todos os momentos em que fiquei na Terra. Dosmomentos em que vivi.

Voltar à morte me trouxe segurança, mas não a paz que eu imaginava que teria. Se omundo dos vivos é capaz de te enlouquecer, precisaria de um tempo para voltar àsanidade dos espíritos. Principalmente para me acostumar a viver longe de Daniel.

Além disso, ainda havia dúvidas que me inquietavam. Saul foi levar Teka para areclusão e disse que voltaria para conversar comigo. Enquanto isso eu aproveitavapara tirar o pó da mesa e preparava um chá.

Logo ele chegou, com seu semblante calmo de sempre.

– Que dia, hein? – disse ele assim que se aproximou de mim.

– Que meses!

– Você parece ter se adaptado bem.

– Gostei de lá. Tive ótimas experiências. Mas meu lugar não é na Terra.

– Também prefiro te ver bem, aqui na sua casa, do que no planeta pedindo socorro.

Servi a ele uma xícara de chá, depois peguei alguns pacotes de bolacha no armário.Coloquei-as em um prato, exatamente da mesma maneira que Daniel me serviu ocafé-da-manhã.

– Saul?

– Eu sei que você quer me fazer algumas perguntas. Responderei a todas que puder.

Por onde eu iria começar?

– Quando eu te pedi ajuda, como você sabia exatamente o que tinha que fazer?

– Eu estive te acompanhando o tempo todo, Kara.

– Não senti sua presença.

– Esqueceu quem eu sou?

Parece que os einherjar possuíam truques além do meu conhecimento.

– Como aquilo aconteceu?

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– Preciso que você seja mais específica.

Comecei a lembrar de tudo e a dúvida principal era:

– Valquírias não se apaixonam. Você sabe disso.

– Parece que não é bem assim. Certo, Kara? – apenas abaixei a cabeça, concordando.– Daniel é uma pessoa especial.

– O que ele tem de especial? Teka falou algo sobre agentes de uma revolução.

– Sabemos que ele não é o único. Existem outros iguais a ele.

– Outros?

– Sim. Em várias partes do mundo nasceu essa geração de crianças especiais.Acreditamos que eles tenham uma missão em conjunto.

– Que tipo de missão?

– Não sei. Talvez salvar o planeta? Sabemos que o mundo está passando por diversasmudanças. É possível que o nascimento desses humanos especiais possa ter um papelfundamental na renovação da Terra. Mas essa é só uma hipótese.

– Salvar o planeta? De quem?

– Dos próprios humanos.

– Não era o que Teka dizia. Ela falava em revolução no nosso mundo também. Umaconspiração contra as valquírias.

Ele não respondeu imediatamente. Parecia estar medindo as palavras.

– Você sabe que isso é besteira

– Elas tiveram um grande esforço para fazer com que Daniel se suicidasse. Nãoparecia uma simples besteira.

– Quem estaria interessado em ir contra as valquírias?

Não sabia responder aquilo, mas percebi que aquela pergunta era uma forma de me

fazer ver a situação de outra forma. Ele parecia estar tentando me ajudar a solucionaro mistério.

– Acabaram as perguntas?

– Não – respondi. – Quero saber de Maya.

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– Teka foi pega em flagrante tentando realizar uma morte não autorizada. Nomomento ela está sendo interrogada e certamente irá confessar ser responsável pelocaso do avião.

– E se ela não confessar?

– Confie em nós. Nesse momento Maya já está sendo retirada da reclusão. Serãopedidas as devidas desculpas e ela será recompensada.

– Que tipo de recompensa?

– Você vai precisar de uma nova assistente, não vai? Acreditamos ser uma honrapoder trabalhar contigo e pretendemos dar esse cargo para ela. Se você aceitar, claro.

– Mas ela... – parei a frase antes de falar alguma besteira, mas já era tarde demais.

– O que tem ela?

– Aquele dia, quando ela foi me visitar na Terra – eu estava me enrolando com aspalavras, mas teria que ser direta e contar a verdade. – Eu a vi beijando Daniel. Elecontinuou vivo.

– Ela beijou Daniel? Por que ela faria isso? Ainda mais na sua frente.

– Deveria ter ficado curioso pelo fato dela ter beijado alguém que não morreu.

– Sim, isso também. Existem relatos de que, caso uma valquíria fique muito temposem matar ninguém, seus poderes se tornam mais fracos.

– Como eu nunca ouvi falar disso?

– É só pensar em quantas valquírias você conhece que ficaram muito tempo sem beijaralguém. Trabalho é o que não falta para vocês. Só vemos isso em casos de reclusãopor muitos anos, o que também é bastante raro de acontecer.

– Parece que você acabou de inventar tudo isso – brinquei.

– Você sabe que não sou capaz de inventar boas mentiras em tão pouco tempo.

– Não seria nem se tivesse muito tempo. Falar sempre a verdade também é umahabilidade secreta dos einherjar?

– Isso é confidencial.

Saul deu um leve sorriso. Eu retribui. Estava feliz em estar ali, de volta à minha vidanormal.

Não totalmente normal. Eu já não era a mesma, me sentia diferente. Não podia negarque Daniel era um dos principais responsáveis por essa mudança. Foi ele quem memostrou o que é paixão. No mundo dos mortos sentimos uma espécie de amor, por

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tudo e por todos. Muito diferente desse amor terrestre entre duas pessoas. Todosdeveriam se deixar sentir a paixão alguma vez na vida. Estava muito feliz em ter tidoesse experiência, mesmo que depois de muitos séculos.

Tentei não pensar mais nele, apesar de parecer impossível. Tinha muito trabalho parafazer como valquíria, além de treinar uma nova assistente e começar uma nova banda.

Minha mente estaria bastante ocupada nos próximos anos. O amor que eu sentia porDaniel ficaria guardado comigo, apenas esperando o momento certo. O momento emque a gente fosse nos reencontrar.

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Livro 2: Existo para Morrer

Tudo novo

Estava claro. Muito claro. Tão claro que eu mal conseguia ver alguma coisa. Ou talvezeu não estivesse de olhos abertos. De qualquer forma, eu não conseguia abrí-los.Como também não conseguia mexer meus braços e minhas pernas. Eu estavaparalisada. Não como uma pedra. Eu me sentia leve, mas totalmente imóvel. Como seeu não soubesse como me mexer. Como se eu tivesse esquecido onde ficavam osmeus dedos.

Eu só conseguia enxergar a luz. Era como se eu estivesse olhando para o sol. Mas nãoqueimava, apenas incomodava um pouco. Meu ouvido também estava funcionando. Euouvia pessoas ao meu redor. Não, eu não as ouvia. Eu apenas sentia que havia alguémali. Será que era alguém que eu conhecia?

...

Eu não me lembrava de ninguém. Não tinha memória de nenhum amigo. Eu deveriater algum, não deveria? Todo mundo tem pelo menos um amigo. Nem da minhafamília eu conseguia me lembrar. Eu devia ter um pai, uma mãe, talvez irmãos. Seráque eu era órfã? Abandonada no mundo? Não, eu não era. Quem era eu?

Meu nome. Eu tinha um nome, não tinha? Droga. Como era difícil de lembrar. Eu nãoconseguia pensar com aquela luz toda na minha frente.

Tirem essa luz da minha cara.

Minha voz não saiu. O que estava acontecendo? Eu precisava me lembrar de algo.Como havia ido parar ali? Melhor, onde eu estava? Devia estar deitada tomando sol. É,devia ser isso. Estava aproveitando o sol em alguma praia bem bonita. Praia, não. Nãosentia areia debaixo do meu corpo. Talvez um gramado de alguma praça. Não,também não era grama. Era bem macio... como uma cama. Isso, uma cama.

Eu poderia estar em um hospital. Isso explicaria a luz, a incapacidade de memovimentar e a falta de memória. É, eu havia sofrido um acidente. Eu me lembrava deum acidente. Minha memória estava voltando!

Eu não conseguia respirar. Era a única coisa que eu me lembrava do acidente. Eudevia estar me afogando. Alguém deve ter me resgatado. Respiração boca-a-boca.Sim, era isso. Alguém fez respiração boca-a-boca em mim.

Não, eu lembrava mais. Estava quente também. Se eu estivesse me afogando eu teriasentido frio. Eu também sabia nadar muito bem. Como eu sabia que sabia nadar? Nemlembrava meu nome. Aquela luz. Será que ninguém poderia apagá-la?

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Pode ser que eu estivesse praticando algum esporte. Eu gostava de esportes. Era umadas poucas coisas em que eu era boa. Não, eu gostava também de... eu gostavamuito. Como não conseguia me lembrar?

As pessoas ao meu lado começaram a aumentar. Eu sabia que elas estavam entrandopela porta, quer dizer, acho que tinha uma porta. Hospitais sempre têm portas. Eles

conversavam algo, mas eu não podia ouvir. Era estranho saber que estavam falando,mesmo sem ouvir nenhuma voz. Eu devia ter sofrido um acidente dos grandes.

Um nome. De repente veio um nome na minha cabeça. Kara. Quer dizer, achava queera um nome. Parecia ser um nome, mas depois parecia mais ser uma expressão.Cara. Não, não era com c. Era com K. Era um nome. Mas de quem? Será que era omeu?

Kara. Esquisito, mas era legal. O som era familiar para mim. Talvez fosse mesmo omeu nome. Já era um grande avanço. Sabia que estava em um hospital, que era umaatleta e que meu nome era Kara. Kara é nome de mulher, né? Sim, eu era umamulher. Essa tinha sido a primeira informação que eu realmente tive certeza.

Um ar frio entrou pela porta. Demorei a perceber que mais importante do que o ar frioera eu ter sentido ele. Não, não era um ar. Era o lugar. Estava frio. A sensação eramuito gostosa. Antes eu só havia sentido calor e mais calor.

Foi um incêndio. Cada nova memória me trazia uma sensação enorme de alegria. Sóque essa trouxe uma sensação esquisita. Eu não queria me lembrar do incêndio. Comoisso era possível? Eu tinha memória de meia dúzia de coisas e ainda queria esquecer opouco que teimava em aparecer? Lembrei-me da dor.

A pele quente incomodava, mas o que doia mesmo era o nariz. Faltava ar. Não, artinha. Faltava oxigênio. O ar quente entrava pelas narinas e queimava por dentro, mas

não satisfazia. Impulsivamente buscava mais ar, só para sentir novamente aqueimação. Mesmo assim não parava de tentar. Respirar.

Cheiro. Nesse momento senti um cheiro. Doce. De flores. Meus visitantes deviam terlevado flores para mim. Eu estava respirando. Devagar, bem devagar, mas a sensaçãoera ótima. Sentir ar puro entrando pelos pulmões era um prazer indescritível. Nuncahavia ficado tão feliz por simplesmente conseguir respirar.

Os ruídos aumentaram. Será que algo havia acontecido? Eu ainda não conseguia memexer. Quer dizer, conseguia sim. Eu sentia os dedos da minha mão. Mas era umasensação estranha. Minha mão estava leve demais, mas com certeza era minha. Meusdedos estavam ali. Leves, mas intactos. Eu devia estar fraca, por isso pareciam leves.Quer dizer, se eu estivesse fraca, eles deveriam parecer mais pesados. Não importava.Eu tinha dedos e podia respirar.

Fiquei tão feliz com meus dedos que não percebi que a luz começou a diminuir.Finalmente alguém havia percebido que eu estava incomodada com aquela luz forte.Mas ela ainda estava forte. Não entendia porque diminuíram ao invés de tirá-la de vezda minha cara.

Cara. Kara. Eu gostava do nome, mas não sentia que era meu. Kara. O som era esse.

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– Kara, venha aqui.

Uma voz. Eu havia ouvido uma voz. Já estou indo, quis responder, mas a voz aindanão saia. Aliás, quem havia sido o insensível que me chamou? Estava paralisada nacama, mal conseguindo mexer os dedos da mão. Se queria que eu fosse a algumlugar, que viesse me buscar.

Se fosse meu irmão, ele não deixaria isso acontecer. Irmão? Sim, eu tinha um irmão.Como era o nome dele? O rosto dele estava totalmente claro na minha cabeça, masnão lembrava o nome. Eu tinha uma irmã também, não tinha? Os dois estavam lá. Elestambém estavam no incêndio. Será que eles estavam bem como eu estava? Querdizer, esperava que eles estivessem melhor, que pudessem se levantar e tudo mais.

Não, ela não era minha irmã. Era uma grande amiga. Quase irmã. Mas ela estava lá.Quase que conseguia lembrar dela falando comigo. Ela pedia desculpas. Desculpas porquê? Pelo meu irmão. Isso, eu lembrava. Meu irmão caindo no chão. De repente mehavia dado uma vontade imensa de ir vê-lo, queria saber urgentemente se ele estavabem. Eu precisava levantar.

Mãos seguravam minhas pernas. Eu mal tinha forças para mexê-las e alguém tentavame impedir. Por que não usavam as mãos para apagar aquela luz infernal?

– Ualu...

Não era isso que eu queria dizer, mas foi isso que saiu da minha boca. Eu estavafalando de novo. Quer dizer, tentando falar.

– Como ela está? – perguntou uma voz conhecida.

Aquela era a voz de Kara. Então aquele não era meu nome. Kara era a minha amiga.Ela estava no incêndio, ela falou comigo, ela beijou meu irmão. Por que ela beijaria

meu irmão? Não fazia sentido. O lógico seria fugir do incêndio.

Aos poucos estava conseguindo me lembrar de vários detalhes. Desisti de tentar sairda cama e voltei a me concentrar nas memórias. Kara foi a última pessoa que eu vi.Ela disse: “nem um pouco”. Era minha última memória. Não, eu me lembrava de mais.Dela me beijando. Por que ela me beijaria também? O beijo foi bom, muito bom.Trouxe alívio, acabou com meu sufocamento e com todo meu medo.

Verdade. Eu tive medo. Mas não igual a medo de escuro. Era medo de desconhecido.Igual nos parque de diversões. Você tem medo, mas sabe que quer andar namontanha-russa. Eu queria o beijo dela mais do que tudo. Por quê?

Imaginei que talvez eu fosse gay. Kara seria minha namorada. Não, não era isso. Meuspais não aprovariam. Foi quando pensei neles que veio toda a memória de volta.Consegui me lembrar deles, de nossos almoços e jantares juntos, e também daquelesem que a ausência de um ou outro fez falta. Do meu irmão e de todos os momentosem que brincamos ou brigamos. Dos meus sonhos. Queria ter uma banda, ser famosa.Eu tinha uma banda. Gostava muito de esportes também, de todos eles. Tambémconsegui me lembrar perfeitamente do incêndio e da realidade por trás dele.

Junto com as lembranças, veio também a consciência total de meu corpo. A luz sumiu,meus olhos continuavam fechados. Eu me sentia leve, mas isso não parecia mais algo

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errado. As pessoas a minha volta estavam em silêncio, esperando. Esperando eu abrirmeus olhos.

– Você não era preguiçosa assim, Sara.

Sara. Aquele era meu nome. A voz era de Kara. Eu sabia onde estava. Quer dizer,

exatamente onde estava eu não sabia. Mas tinha certeza de uma coisa:– Eu estou morta.

Disse com a voz fraca enquanto abria os olhos. Ao meu lado estava minha grandeamiga Kara. Ela era o anjo da morte que havia ido me buscar.

– Todos nós estamos – ela me respondeu. – Como está se sentindo?

Bem. Eu estava me sentindo muito bem. Sempre imaginei que morrer seria ruim, algovazio e triste. Eu estava completamente em paz e pronta para enfrentar todos osdesafios que a morte poderia me proporcionar.