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A COOPERAÇÃO ENTRE BRASIL E CHILE NA ANTÁRTICA: UMA
SIMBIOSE CONTINENTAL
Gabriele Marina Molina Hernández1
RESUMO
O esforço brasileiro em manter sua participação no Tratado da Antártica e continuar o programa
nacional, após a Estação Comandante Ferraz ter sido destruída por um incêndio, contou com a
indispensável ajuda do Chile na questão logística. Além disso, tanto a Estação destruída como a
nova Estação Comandante Ferraz não contam com pista de pouso, sendo crucial para o país tanto
o porto de Punta Arenas, no extremo sul chileno, quanto o uso da Base "Presidente Eduardo
Frei", na Ilha Rei George, como ponto de acesso ao polo sul. O presente trabalho busca
apresentar, em linhas gerais, as principais características dos programas antárticos do Chile e do
Brasil, desde a assinatura do Tratado por ambos os países até as relações de cooperação no atual
momento, por meio de revisão bibliográfica de pesquisas acadêmicas. O modo como o sexto
continente é visto sob o prisma estratégico e social em cada um dos casos será levado em
consideração. Para uma melhor compreensão do Sistema Antártico, o Tratado da Antártica será
delineado, focando nos aspectos de cooperação do mesmo, concomitantemente seguindo as
ambições por trás das ações dos Estados para a região Os interesses brasileiros no território ainda
precisam ser discutidos nas altas esferas do poder, para que se possa extrair o máximo de
aproveitamento da parceria com o Chile.
Palavras-chave: Antártica. Cooperação. Defesa. Estudos Estratégicos. Sistema do Tratado
Antártico.
ABSTRACT
The Brazilian struggle to keep its participation on the Antarctica Treaty and proceed with the
national program, after Estação Comandante Ferraz was destructed by fire, wouldn't succeed
without the Chilean logistical aid. Besides, neither the destroyed station nor the new Estação
Comandante Ferraz have an aicraft runway, making imperative for Brazil to operate on Punta
Arenas harbor, on Chile's south end, and also on the "Presidente Eduardo Frei" Base, on King
George Island, as access point to the south pole. The objective of this paper is to analyze, in
broad terms, the main characteristics of Brazil and Chile's respectives Antarctic Programs, from
the Treaty signatures of both countries to their current cooperation agreements, through a
bibliographic review of academic research. To better comprehend the Antarctic System, the
Antarctic Treaty will be studied with focus on its cooperation aspects and the interests behind
their signatures on the Treaty. The Brazilian interests on the territory must be discussed on higher
spheres of power so that the cooperation with Chile may reach its optimal outcome.
1 Mestranda em Estudos Estratégicos pela Universidade Federal Fluminense (UFF/Brasil). Pesquisadora do Núcleo
de Avaliação de Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval.
Key words: Antarctica. Cooperation. Defense. Strategic Studies. Antarctic Treaty System.
INTRODUÇÃO
A Antártica foi o último continente a ser descoberto pelo homem. É o local mais frio,
mais árido e menos habitado do planeta, com seus 14 milhões de quilômetros quadrados. Por ter
condições extremas e tão hostis à vida, o número de pessoas vivendo no território é muito
limitado. Foi na primeira metade do século XX que exploradores ingleses, franceses, russos e
americanos fincaram suas bandeiras no continente. Alguns anos depois, países como Chile e
Argentina reivindicavam partes do local como extensões de seus territórios, enquanto outros
Estados, ainda sob a lógica colonialista, viam a região como conquista em potencial.
Atualmente sua população é composta basicamente por uma pequena comunidade
científica e grupos militares que ou vivem nas bases, ou patrulham o território em embarcações,
não possuindo população nativa2 descoberta até então. Possui formação geológica antiga o
suficiente para guardar grandes reservas de combustíveis fósseis e água doce potável. O gelo
esconde formas pouco convencionais de vida, várias ainda desconhecidas. Além de todos os
recursos facilmente convertidos em commodities, sua grande massa de gelo é responsável por
controlar o clima de uma considerável parte do mundo. Sua influência nos índices de chuva em
território nacional, um país com economia fortemente pautada no setor agrário, não deve ser
ignorada. Graças às suas reservas naturais e seu posicionamento estratégico que liga o Atlântico
ao Pacífico, diversos países reivindicaram sua parcela de terra, água e gelo ao extremo sul do
planeta, o exemplo mais agravante sendo a Guerra das Malvinas, envolvendo a Inglaterra em uma
guerra com ares neocoloniais na América do Sul.
O continente é um imenso laboratório para se estudar formas desconhecidas de vida – até
organismos mais primitivos que permaneceram escondidos do homem até então em lagos
2 Salvos os casos chileno e argentino, que enviam famílias para as bases, a fim de legitimar seus reclames
territoriais. Entretanto, não há reconhecimento científico de nenhuma população que tenha vivido ali antes das
primeiras expedições.
profundos, escuros e frios. Também é um importante ponto para estudos sobre os oceanos, clima,
atmosfera terrestre e impactos ambientais (DODDS, 2012). Por ser um território cuja formação
geológica é antiga, seu território detém grandes reservas de combustíveis fósseis, como o
petróleo, dentre outros minerais muito utilizados pelo homem. Além disso, cerca de 90% das
reservas de água doce potável do mundo encontram-se congeladas no continente, o que o torna
um lugar estratégico (FELICIO, 2007). Devido a sua massiva porção de gelo, a Antártica é uma
espécie de termostato do planeta, regulando a temperatura de correntes marítimas, chuvas, ventos
que trazem importantes fertilizantes ao solo próximos, bem como uma fauna marinha que
desperta os interesses de muitos países graças a seu valor comercial.
Anteriormente às conferências que tratariam os assuntos científicos específicos do
continente antártico, era nas edições do Ano Polar Internacional que tais questões eram
discutidas, abrangendo os polos de maneira conjunta. Foi na década de 1950 que o Ano Geofísico
Internacional (AGI) nasceu, denominado no período de julho de 1957 a dezembro de 1958
(MATTOS, 2015). O AGI foi um esforço conjunto entre cientistas de várias nações para trocar
informações e conhecimento sobre assuntos ligados à Geologia, e teve efeito catalizador para que
um tratado a respeito da Antártica fosse criado.
O momento de relativa tranquilidade nos assuntos antárticos ajuda os Estados com
interesses regionais a se prepararem para um futuro incerto que pode pender tanto para conflitos
territoriais, quanto para uma parceria altamente rentável voltada para a exploração de recursos
ainda extremamente valiosos. O presente artigo apresenta um breve delineamento sobre as
relações entre Brasil e Chile no continente antártico sem, no entanto, trazer o esgotamento de
fontes e as questões referentes aos dispêndios com Defesa dentro da economia de ambos,
presentes em uma pesquisa ainda em desenvolvimento.
1. INTERESSES GLOBAIS
Vasta reserva natural de posição estratégica e convenientemente vazio, o polo sul foi alvo
de constantes reclames territoriais e cobiças ao longo do último século, além da questão das Ilhas
Malvinas alguns anos depois, ponto de posicionamento geoestratégico importante para a
Inglaterra e parte do território argentino em termos geográficos.
Assegurar um ponto de partida nas proximidades garante aos países maior fluidez no
acesso aos oceanos em caso de impossibilidade de navegação por outras vias de acesso, detalhe
importante para um país com faixa costeira tão grande como o Brasil. O Tratado da Antártica foi
assinado em 1959, logo após a Segunda Guerra Mundial, sob a tensão de que as disputas
territoriais seriam capazes de gerar um novo conflito, semelhante àqueles desencadeados pelas
disputas coloniais na África. Inicialmente abrangendo 12 países, dos quais seus cientistas
estavam engajados em atividades no continente durante o AGI no período de 1957-58. Entrou em
vigência em 1961, e desde então passou a contar com a assinatura de diversos outros países.
Para ser signatário do tratado, é necessário possuir bases operando no continente, cujas
atividades sejam voltadas inteiramente para pesquisas científicas, e que as mesmas sejam
acessíveis à comunidade de pesquisadores. O documento3 de XVI Artigos estabeleceu,
essencialmente, a proibição de atividades militares na região, tais como instalação de bases
exclusivamente militares, fortificações e testes de armamentos, tornando, assim, a região
exclusiva para fins pacíficos; liberdade para o desenvolvimento científico, desde que seja
compartilhado com os demais signatários, economizando esforços durante as pesquisas, para
maior eficiência, além de facilitar o acesso a tais pesquisas para grandes órgãos internacionais,
tais como a ONU e outros interessados no continente; todos os signatários devem dispor de
observadores que constantemente inspecionem a região, assegurando que as demais partes
estejam seguindo as devidas recomendações, e compartilhando seus relatórios, com liberdade de
deslocamento por todas as regiões antárticas; encontros anuais entre representantes de cada nação
signatária, visando discutir e compartilhar o andamento das cláusulas do tratado. Por fim, o
tratado não interfere no direito soberano de nenhuma nação no que diz respeito às suas atividades
em alto mar na região e nenhuma das cláusulas representa uma base para minar ou assegurar
quaisquer reclames territoriais, tornando o tratado neutro em tais questões.
3 The Antarctic Treaty. Conference on Antarctica. Washington. D.C. 15 out 1959. Disponível em:
<http://www.ats.aq/documents/ats/treaty_original.pdf>Acesso em 30 de dezembro de 2016.
1.1 Mudança de paradigma
Após os crescentes atritos entre os sete países que reivindicaram oito porções territoriais
diretamente – Argentina, Austrália, Chile, França, Noruega, Nova Zelândia e Reino Unido – e
demais interessados no continente, como Estados Unidos e Rússia (que se reservaram o direito de
reclame territorial futuro, caso a conjuntura tornasse necessário), a solução encontrada foi o
estabelecimento de um acordo de mútuos interesses, que marcava a transição do realismo para a
interdependência complexa (FERREIRA, 2009). Esse processo, como aponta Ferreira, se dá em
três pontos em ambos os tipos ideias de cada teoria: no Realismo, os Estados são atores unitários
e dominantes do Sistema Internacional, enquanto na Interdependência Complexa, são apenas um
dos múltiplos canais de conexão entre as sociedades; o uso da força é instrumento viável e efetivo
dentro da política para o Realismo, e na Interdependência Complexa ele não é uma opção; e por
fim, no Realismo a Segurança Militar está no topo da agenda dos Estados, hierarquia inexistente
na Interdependência Complexa. Com esses três pontos, é possível perceber que, se no começo as
preocupações territoriais e hegemônicas tomavam as consciências dos agentes internacionais,
vendo a Antártica como uma peça-chave na estratégica do Atlântico e Pacífico Sul, a necessidade
de cooperação em longo prazo fez com que essas prioridades aos poucos dividissem espaço com
instituições e trâmites burocráticos no regime internacional. As preocupações do Realismo não
foram deixadas de lado ou substituídas, mas passaram a coexistir em um processo de
institucionalização presente na Interdependência Complexa.
De acordo com Axelrod (1984), ao estudar a Teoria dos Jogos aplicada à cooperação, ele
chega à seguinte conclusão: a fim de cooperarem entre si, os Estados não necessitam confiar
totalmente uns nos outros, tampouco terem afinidade, basta seguirem os rótulos e estereótipos
desenvolvidos ao longo do tempo. Caso um Estado tenha fama de cooperar, ele tem menos
chances de defletir do que os outros. Basta terem garantias de que o sistema em que interagem se
manterá por muito tempo e é conveniente para os demais jogadores, e essa garantia é a segurança
para que, mesmo Estados que não possuem nenhuma relação amistosa, não haverá quebra de
acordos. No caso antártico, enquanto os Estados olharem para o futuro próximo e virem que
nenhum outro buscará vantagens no continente, o tratado em vigência se manterá. É importante
para o Brasil observar quais os países, em seu entorno principalmente, apresentam motivos para
não continuar seguindo o tratado e como a conjuntura internacional pode levar a uma ruptura.
1.2 O olhar nacional
O Brasil somente assina o Tratado em 16 de maio de 1975, durante a gestão do presidente
Ernesto Geisel, influenciado por ideias como as de Mário Travassos e Therezinha de Castro, que
viam a importância geopolítica e estratégica da região. O Programa Antártico Brasileiro
(PROANTAR) foi instituído em 1982, e dois anos depois é inaugurada a primeira base brasileira
de pesquisas no continente antártico, a Estação Comandante Ferraz (EACF), localizada dentro da
Península de Keller, na Baía do Almirantado, Ilha Rei George. Com o Protocolo de Proteção
Ambiental do Tratado da Antártica (ou Protocolo de Madri), assinado em 1991 e em vigor desde
1998, os 19 países signatários estabeleceram uma moratória de 50 anos, sujeita a renovação, para
a exploração comercial de recursos minerais na região (FERREIRA, 2009), visando à redução de
impactos ambientais tanto no continente quanto nos mares. Atualmente o Brasil adota uma
postura não-territorialista, ou seja, não reivindica soberania territorial, apenas acesso a qualquer
área do continente que julgar necessária a suas atividades (NASCIMENTO, 2007).
A presença brasileira na região nunca foi um assunto popular entre os meios mais
diversos, tornando-se limitado a algumas esferas das forças armadas e meios científicos ao longo
dos anos. A questão ambiental, apesar de ser constantemente estudada e monitorada por cientistas
brasileiros de diversas universidades, ainda é bastante limitada, enquanto no âmbito estratégico,
se reduz ao Ministério da Defesa, à Marinha do Brasil e círculos diplomáticos, principalmente. A
opinião pública pouco conhece sobre o projeto, tampouco tem noção de suas dimensões.
Envolver o meio ambiente também é estratégico para o país, uma vez que as alterações climáticas
polares podem afetar o índice de chuvas no Brasil – importante devido à forte dependência no
setor agrário nacional.
É imprescindível que um Estado que queira se tornar um global player diversifique sua
área de atuação. Entretanto, o histórico brasileiro no continente não é compatível com a
capacidade e posição do país. Os interesses nacionais no território ainda precisam ser trabalhados,
e o que o Brasil busca na Antártica deve se tornar claro para o país (MATTOS, 2014).
Os esforços científicos também estão aquém da capacidade nacional, como ressalta
GANDRA (2009, p.73):
Considerando-se o peso político que as atividades científicas terão, em um futuro
relativamente próximo, no que diz respeito à soberania do continente, a revisão da atual
geopolítica antártica brasileira é de vital importância às pretensões científico-territoriais
do país naquela região.
Os problemas enfrentados pelo país, portanto, pedem por mais atenção por parte do
Estado, no que tange à tecnologia e ciência, meio ambiente e pretensões geopolíticas no local. O
Protocolo de Madri traz maior atenção para a questão ambiental, precisamente em uma época
onde as mudanças climáticas se tornaram assunto em voga, parte da agenda científica. Os
pesquisadores brasileiros começam, então, a investigar os impactos da região antártica no
território nacional, em especial na Amazônia. A política externa durante o governo Lula (2003-
2010) passa a buscar cooperação com os demais países da América do Sul no sexto continente, a
fim de fortalecer os laços regionais. Entretanto, mesmo tais esforços não conseguiram se adequar
bem às necessidades de manutenção do projeto brasileiro no continente que apresenta falhas em
sua estrutura (ABDENUR; NETO, 2014). A geopolítica antártica brasileira se fundamenta
basicamente em uma doutrina de segurança nacional, enquanto a permanência no continente pede
desenvolvimento científico de ponta, algo que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
(MCTI) até então tratou com pouca prioridade. As questões de segurança nacional têm carência
em empenhar-se no continente antártico, herança de uma doutrina idealizada no regime militar
(GANDRA, 2010). A cooperação regional é um dos principais mecanismos de assistência no
caso de acidentes ambientais na região, particularmente em ecossistemas vulneráveis e áreas de
interesse global. As pesquisas brasileiras mais recentes na região apontam pra forte influência do
continente antártico no sistema climático terrestre, com ênfase na América do Sul, onde as
circulações atmosférica e oceânica são interligadas, e até a Amazônia sofre alterações vindas do
continente gelado (SIMÕES, 2013).
1.3 O olhar chileno
O Chile tem uma longa história de reclame territorial na Antártica, principalmente por ter
o ponto mais austral do mundo, e enorme proximidade geográfica com a região, o que lhe rendeu
disputas duradouras com a vizinha Argentina. Em 1964 o Instituto Antártico Chileno (INACH)
foi criado, e é, desde então, o responsável pela coordenação, planificação e execução das ações
governamentais chilenas no polo sul. Em 1964, junto com a criação do instituto, foi realizada sua
primeira expedição científica, o pontapé para o desenvolvimento de pesquisas nas áreas das
ciências da natureza e ciências biológicas.
O INACH atualmente está sediado em Punta Arenas, cujas atividades são divididas entre
seis departamentos: Científico, Orçamentário e de custos, Suporte à Ciência, Concurso e Meio
ambiente, e Comunicação e Educação. Se trata de uma divisão do Ministério de Relações
Exteriores do Chile, cujas responsabilidades englobam o desenvolvimento científico e
tecnológico na Antártica, a participação ativa no Sistema do Tratado Antártico e a comunicação
com a comunidade científica (CHILE, 2017). No continente, o instituto opera diretamente na
base Professor Julio Escudero4.
Possui três conglomerados de bases permanentes, além de outras quatro bases de verão e
três refúgios operativos, sendo os mais significativos: o conglomerado da Base Presidente
Eduardo Frei Montalva – Base Frei, que concentra atividades da Força Aérea chilena, além de
englobar a Villa Las Estrellas, um dos dois únicos assentamentos com população regular,
incluindo crianças; a Base Prat, coordenada pela Marinha Chilena, e a Base O’Higgins, a mais
antiga, inaugurada em 1948 e operada pelo Exército, responsável por desempenhar atividades
logísticas.
Atualmente, o país manifesta suas pretensões na Antártica exclusivamente através do
INACH. São definidos três objetivos estratégicos governamentais e quatro estratégicos
institucionais. Os governamentais são assegurar a execução da Política Antártica Nacional,
destacar o Chile como uma potência na região e reforçar as relações de cooperação
4 INACH. Informações disponíveis em <http://www.inach.cl/inach/> Acesso em 10 de dezembro de 2016.
principalmente com foco em outros países latino-americanos. Já os objetivos institucionais são
incentivar a pesquisa científica na Antártica, promover a participação ativa no Sistema do
Tratado Antártico (STA), colocar a cidade de Punta Arenas como ponto principal de acesso ao
continente antártico e reforçar o envolvimento cultural que a sociedade chilena tem com a
Antártica, criando um sentimento de identidade, algo que o país já faz com as famílias vivendo
nos assentamentos da Villa Las Estrellas. O turismo regional é outro ponto forte do programa
antártico chileno, atraindo diversos visitantes para cruzeiros que atravessam as ilhas da Tierra del
Fuego.
Mesmo antes de sua assinatura do Tratado Antártico em 1959, os chilenos já indicavam
suas intenções no continente. A reivindicação territorial sempre esteve presente em seus
discursos, tendo como vantagem a possibilidade da utilização de argumentos geográficos e
ocupacionais. Geográficos pela proximidade física dos territórios; ocupacionais pela importante
presença civil e de bases de pesquisa ao longo da Península Antártica. Tal prioridade dada ao
polo sul é clara quando consultados documentos de defesa e sites oficiais do governo chileno,
assim como em seus programas de política antártica. As relações com a vizinha Argentina só
chegaram a uma solução permanente nos últimos trinta anos, e foram suavizadas pelo tratado. Em
1983 Chile e Argentina entram em disputa por três ilhas no canal de Beagle, as ilhas Lennox,
Pícton e Nueva, porções terrestres estratégicas para a corrida territorial que se instaurou entre os
dois países pelo continente antártico:
[...] enquanto o litoral do Chile está voltado para o Oceano Pacífico, o da Argentina
encontra-se no Oceano Atlântico. Como o Canal de Beagle dá passagem de um oceano
para outro, a posse das ilhas em seu interior poderia significar projeção de poder de um
país sobre o oceano que banha o país vizinho – e sobre a própria Antártica (VIEIRA,
2006, p.54).
Desde 1977 as ilhas haviam sido concedidas ao Chile pela CIJ, mas a Argentina não
aceitou e prosseguiu com ensaios militares na região, seguidos pelo Chile, até que em 1984 uma
nova decisão foi tomada (VIEIRA, 2006) e por tratado assinado em 1985, as ilhas continuaram
pertencendo ao Chile. Tais atritos serviram como incentivo a ambos para que uma aproximação
com o Brasil fosse estabelecida:
Não se poderia deixar de levar também em consideração a discreta sondagem feita por
representantes da Argentina e do Chile [...] em julho último em Buenos Aires, no sentido
de averiguar a reação do Brasil quanto à sua eventual participação em atividades
austrais, em bases conjuntas com grupos argentinos e chilenos. Segundo se pode
depreender, àquele ensejo, os governos da Argentina e do Chile estariam sofrendo
desilusões no campo da cooperação consignada no Tratado da Antártida, mormente em
relação aos países desenvolvidos presentes no Continente Austral. Essa interpretação
favorável à presença brasileira na Antártida foi recentemente corroborada pelas
declarações feitas, a título pessoal, pelo Ministro das Relações Exteriores do Chile ao
Embaixador do Brasil em Santiago no sentido de que, “caso fosse solicitada, a marinha
chilena colocaria à disposição do Brasil sua experiência e conhecimentos na região
austral”5
As relações com vários países no projeto são bastante amistosas, em 1916 a expedição
liderada por Pardo Villalón resgatou 22 homens presos na Ilha Elefante, o primeiro resgate na
Antártica. Em 1915 a Expedição Transantártica Imperial, sob a coroa britânica e comandada por
Ernest Shackleton, se viu presa em pleno inverno antártico quando sua embarcação, o veleiro
Endurance, foi destruído pelo gelo, obrigando os 28 tripulantes a passarem meses em um
acampamento improvisado, até que Shackleton e outros cinco homens navegaram a bordo de um
barco aberto até o Chile, convencendo o governo do mesmo a ajudar no resgate dos outros
homens6. Membros da Marinha Real Britânica se uniram a oficiais chilenos para homenagear a
expedição de Villalón no mês que ela completou cem anos, em uma série de comemorações na
cidade de Punta Arenas, sinalizando o sucesso da parceria histórica de ambos os países na
Antártica. Já a Rússia vê o país como um grande parceiro comercial quando se trata de aeronaves
próprias para o continente antártico. Uma versão adaptada para os polos do helicóptero russo Mil
Mi-17, lançada em 2016, fez o mercado russo apostar no Chile como futuro comprador. O país
latino-americano já havia adquirido outros modelos de aeronaves da Rússia para seu programa
antártico, garantindo frutíferas relações comerciais na área.
5 Telegrama secreto 2093, de 27 de agosto de 1974. Fonte: Arquivo Histórico do Itamaraty (apud MATTOS, 2015,
p.198). 6 GAMPER, Juan. Shackleton Crew rescued by Pardo, 100 Years Later. IFSMA, 2016. Disponível em:
<http://www.ifsma.org/tempannounce/aga41/Shackleton%20Rescue.pdf> Acesso em: 7 de dezembro de 2016.
Brasil e Chile, desde suas respectivas assinaturas no Tratado, sempre dispuseram de
relações favoráveis, sendo esse, talvez, o país que mais ofereceu vantagens e ajuda ao
PROANTAR desde sua criação:
O anunciado início das atividades brasileiras na Antártica é novamente seguido da oferta
por diversos países de programas de cooperação. A oferta chilena foi particularmente
generosa, oferecendo pessoal especializado para planejamento, treinamento e adaptação
climáticos, base de apoio em Punta Arenas e a cooperação de suas estações na Antártica.
Porém, a Guerra das Malvinas vai colocar a política antártica brasileira novamente em
compasso de espera, adiando seguidas vezes a primeira reunião da Conantar
(FERREIRA, 2009, p.133).
Logo após o incêndio na base brasileira, foram militares chilenos e argentinos que
ofereceram abrigo e apoio aos brasileiros afetados pelo acidente, reafirmando os laços positivos e
relações bilaterais entre os dois países no continente.
Para além das questões científicas e ambientais, o país deixa claro em seu programa
antártico os interesses geopolíticos, especialmente na integração sul-sul e cooperação
multilateral, tornando-se vital para as políticas regionais de outros agentes interessados no meio.
O polo sul é ponto-chave para compreender a política externa do país, especialmente na reação
com países vizinhos:
O Chile se auto-denomina um país “tricontinental” pelo fato de que suas ilhas no Oceano
Pacífico localizam-se na Oceania, seu território encontra-se na América do Sul e suas
reivindicações territoriais ao sul abrangem a Antártica. Essa pretensão choca-se com a da
Argentina porque suas reivindicações territoriais ao sul, tanto sub-antárticas como
antárticas, são em grande parte as mesmas que as da Argentina (VIEIRA, 2006, p.54).
Por outro lado, o PROANTAR possui uma série de dependências em suas relações com o
Chile, a começar pela logística. Não há pista de pouso na estação brasileira devido à geografia
local, sendo necessário utilizar a pista da Base Frei, principalmente durante o inverno, época em
que as águas da Baía do Almirantado estão congeladas e somente navios quebra-gelo conseguem
navegar pela camada de água congelada – diversos países também utilizam a pista da estação
para suas operações polares. O ponto de partida pode ser feito por Ushuaia, na Argentina, ou por
Punta Arenas, no extremo sul chileno, de duas formas: 1) os navios NPo Almirante
Maximiano (H-41) e NApOc Ary Rongel (H-44) saem de um dos dois portos em direção à Ilha
Rei George; ou 2) voo com o avião c-130 Hércules em direção à estação Frei, e de lá para a
EACF por via marítima. Por não dispor de navio quebra-gelo, o acesso brasileiro à Ferraz se
limita ao verão antártico. Nos meses invernais, a Estação recebe suprimento somente por via
aérea, nos chamados “Vôos de Apoio à OPERANTAR”. São cerca de onze vôos sazonais, que
jogam a carga de suprimentos através de paraquedas até a região onde estão os cientistas. Quem
realiza o procedimento é o Esquadrão Gordo da Força Aérea Brasileira, único no mundo a
realizar tal operação. Diferentemente do Chile, o Brasil não emprega o exército em suas
operações antárticas.
Sem a cooperação com o INACH, a presença brasileira no Tratado é seriamente
prejudicada em termos de logística, como na ocasião do incêndio da EACF, quando cientistas e
militares brasileiros que estavam na estação foram socorridos e transportados por militares
chilenos, primeiro para a Base Frei, depois para Punta Arenas. Entretanto, não há uma designação
oficial clara sobre os interesses nacionais em sua relação com o Chile no longo prazo, tampouco
se vê o delineamento de uma estratégia integrada na América do Sul levando em consideração o
fim do Protocolo de Madri.
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Algumas questões não são explícitas no Tratado, entretanto estão intimamente ligadas a
essa relação simbiótica. Quais os interesses chilenos por trás da cooperação altamente benéfica
com o Brasil, assim que o Protocolo de Madri expirar, em 2048? Há a possibilidade de abrir um
canal ainda mais vantajoso para os brasileiros, a fim de formar uma frente latino-americana que
garanta interesses de dimensões continentais? Somente uma participação brasileira mais ativa na
Antártica é capaz de responder tais questões antes de 2048, vislumbrando tanto o cenário de
exploração comercial dentro da interdependência complexa, quanto à interrupção do Tratado ante
aos anseios territoriais das hegemonias futuras.
Da mesma forma, caso o paradigma estratégico chileno mude, em vista a um cenário
futuro negativo para a cooperação entre os dois países, cabe ao Brasil um plano que não dependa
exclusivamente das instalações e apoio logístico do Chile. As relações ora amistosas, ora
conflituosas com a vizinha Argentina podem significar uma relação com ganhos pragmáticos
para o Brasil, se bem explorada.
Em qualquer um dos cenários, o Brasil não está em posição de perder influência na
questão antártica, por questões geográficas, climáticas, hídricas e comerciais. A possibilidade de
criar uma parceria geoestratégica forte o suficiente para confrontar interesses de outros Estados
altamente presentes na Antártica deve começar agora.
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