a construção das práticas de consultoria em psicologia organizacional e do trabalho

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL VANISE GRASSI A CONSTRUÇÃO DAS PRÁTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO PORTO ALEGRE 2006

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organizacional

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM PSICOLOGIA SOCIAL E INSTITUCIONAL

    VANISE GRASSI

    A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO

    PORTO ALEGRE 2006

  • 2

    VANISE GRASSI

    A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO

    Dissertao apresentada como requisito

    parcial para a obteno do grau de Mestre

    em Psicologia Social e Institucional.

    Programa de Ps Graduao em

    Psicologia Social e Institucional. Instituto

    de Psicologia. Universidade Federal do

    Rio Grande do Sul.

    Orientadora: Prof Dr Maria da Graa Corra Jacques

    PORTO ALEGRE

    2006

  • 3

    TERMO DE APROVAO

    VANISE GRASSI A Comisso Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao A CONSTRUO DAS PRTICAS DE CONSULTORIA EM PSICOLOGIA ORGANIZACIONAL E DO TRABALHO, como requisito parcial para obteno do Grau de Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Dissertao defendida e aprovada em: 07/04/2006 Comisso Examinadora:

    _________________________________________________________________

    ANA MARIA JAC-VILELA Doutora em Psicologia - UERJ

    _________________________________________________________________

    JAQUELINE TITTONI Doutora em Sociologia UFRGS

    _________________________________________________________________

    VERA SUZANA LASSANCE MOREIRA Doutora em Administrao - UFRGS

  • 4

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo aos meus pais, Valmor (in memorian) e Marlise, pela ddiva da vida.

    Em especial minha me pelo apoio incondicional e exemplo de integridade,

    coragem e competncia.

    Aos meus irmos, Marcos e Giovani, que colaboraram das mais diversas

    maneiras para que eu conclusse mais essa etapa da minha formao.

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pela oportunidade de estudo e

    aperfeioamento.

    professora Dr Maria da Graa Corra Jacques, que acreditou nas minhas

    possibilidades e foi grande incentivadora durante toda a minha trajetria no

    Mestrado em Psicologia Social e Institucional.

    A todos os professores do curso de Mestrado em Psicologia Social e Institucional

    da UFRGS, em especial professora Jaqueline Tittoni, que impulsionou a

    realizao desse estudo.

    professora Cleonice Bosa, por despertar o interesse pelos desafios da

    pesquisa.

    A todos os funcionrios do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do

    Sul, pela disponibilidade em auxiliar na construo desse estudo.

    Aos meus colegas de curso, em especial Ticiana Schossler, pela solidariedade

    e incentivo.

    Priscilla e Aline, pelo apoio precioso na transcrio das entrevistas.

  • 5

    A todos os participantes do estudo, que pela sua receptividade e colaborao,

    possibilitaram a concretizao dessa pesquisa.

  • 6

    No creio que seja necessrio saber exatamente

    quem sou. O principal interesse na vida e no trabalho

    consiste em chegar a ser algum diferente do inicial.

    Se, ao comear um livro, voc souber o que vai dizer no

    final, acredita que teria valor escrev-lo?

    (Foucault, 1990, p. 45)

  • 7

    RESUMO

    Este estudo teve como objetivo descrever a trajetria de empresas

    pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho no

    Rio Grande do Sul, investigando as relaes entre as prticas de consultoria e as

    configuraes polticas, histricas e socioeconmicas do contexto de trabalho das

    ltimas dcadas. A pesquisa foi desenvolvida dentro da abordagem qualitativa,

    fundamentada pelas orientaes do estudo de caso. A primeira etapa da pesquisa

    consistiu na realizao de um levantamento sobre os registros de pessoa jurdica

    do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul (CRPRS), investigando

    dados referentes s atividades desenvolvidas pelas empresas e ao tempo de

    atuao no mercado. Foram escolhidas para estudo de caso duas empresas,

    pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho,

    criadas na dcada de 1970 e que ainda se dedicam ao mesmo campo de

    atividades. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com os proprietrios

    das duas empresas e com os demais funcionrios que trabalham com atividades

    vinculadas psicologia. Procedeu-se ainda o exame de documentos das

    empresas, como material publicitrio impresso, manuais de treinamento e sites na

    internet. Constatou-se que a prestao de servios em psicologia clnica o ramo

    de atividades escolhido pela maioria dos proprietrios das empresas em psicologia

    com registro no CRPRS. Entre as empresas pioneiras, registradas na dcada de

    1970, apenas duas se dedicam prestao de servios em psicologia

  • 8

    organizacional e do trabalho e continuam atualmente em atividade na mesma

    rea. As empresas estudadas surgem no mesmo perodo, na mesma cidade, com

    proprietrios com a mesma formao acadmica e assumem trajetrias distintas.

    No existe um processo linear de construo das prticas dos profissionais

    dessas empresas, embora possam ser identificadas algumas regularidades nas

    suas trajetrias. As prticas de recrutamento e seleo predominavam entre os

    servios disponibilizados na dcada de 1970, amplamente favorecidas pelo

    contexto poltico e socioeconmico do perodo do milagre brasileiro. Nos ltimos

    anos, as transformaes no contexto produtivo promoveram o fortalecimento das

    prticas de consultoria, que assumem, para os participantes do estudo,

    concepes bastante diversificadas. Ambas as empresas apresentam

    funcionamento familiar, mas permanecem profundamente vinculadas imagem e

    ao trabalho dos fundadores, psiclogos do sexo masculino. A questo de gnero

    aparece como um fator importante para a longevidade das empresas no mercado.

    A adaptao ao mercado, atravs da diversificao de atividades e da reproduo

    dos processos de enxugamento e terceirizao de servios tambm figuram como

    estratgias importantes para a sobrevivncia das organizaes.

    Palavras-chave: consultoria; psicologia organizacional e do trabalho; estudo de

    caso.

  • 9

    ABSTRACT

    This study aimed at describing the path of pioneering enterprises in the

    offering of organizational and work psychology services in Rio Grande do Sul,

    investigating the relationship between the consulting practices and the political,

    historical and social-economical configurations of the working environment in the

    last decades. The research was developed in the qualitative approach based on a

    case study. The first stage of the research consisted of the gathering of the

    registrations of juridical person in the Regional Council of Psychology of Rio

    Grande do Sul (CRPRS), investigating data related to the activities developed by

    the enterprises and the time they are in the market. Two pioneering companies in

    organizational and work psychology were chosen for the case study. Both

    established themselves in the decade of 1970, and still are devoted to the same

    field of activities. Semi-structured interviews were done with the owners of the two

    companies, as well as with the employees that work with activities linked to

    psychology. Documents of the enterprises as advertising material, training

    manuals, web sites were examined. It was verified that services in clinical

    psychology were chosen by most of the enterprises in psychology with registration

    in CRPRS. Among the pioneering enterprises, registered in the decade of 1970,

    only two are devoted to the services in organizational and work psychology and still

    continue their activity in this area. The studied companies appeared in the same

    period, in the same city, the owners with the same academic formation and

    assume different paths. There is not a linear construction process of the

  • 10

    professionals practices in these companies, although may be identified some

    regularities in their paths. The recruitment and selection practices prevailed among

    the services available in the decade of 1970, thoroughly favored by the political

    and social economical context of the Brazilian miracle period. Lately, the last

    transformations in the productive context promoted the development of the

    consulting practices, that assume, for the participants of the study, quite diversified

    conceptions. Both enterprises present family operation, but they stay deeply linked

    to the image and to the work of the founders, male psychologists. The gender

    appears as an important factor for the longevity of the companies in the market.

    The adaptation to the market, through the diversification of activities and the

    reproduction of the compressing processes and out source services are also

    important strategies for the survival of the organizations.

    Key words: consultancy; organizational and work psychology; case study.

  • 11

    SUMRIO

    CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA............................................................. 12

    OBJETIVOS DO ESTUDO................................................................................. 19

    PERCURSO METODOLGICO........................................................................ 21

    DESCRIO DAS EMPRESAS......................................................................... 33

    A CONSTITUIO DO CAMPO DE SABER PSICOLGICO........................... 43

    AS CONFIGURAES DO TRABALHO CONTEMPORNEO......................... 58

    CONSIDERAES FINAIS............................................................................... 102

    REFERNCIAS.................................................................................................. 108

    APNDICES....................................................................................................... 114

    ANEXOS............................................................................................................. 117

  • 12

    CONTEXTUALIZAO DA TEMTICA

    A ltima coisa que se encontra ao fazer uma obra o que se deve colocar em primeiro lugar (Pascal, Pense, frase n 73).

    As tentativas de problematizar a prtica em psicologia no so uma

    novidade no espao acadmico (COSTA, 2000; SALDANHA, 2004, por exemplo)

    e, certamente, no se esgotam com o conhecimento produzido at hoje. Persistem

    dvidas inquietantes sobre que propostas de trabalho oferecer em diferentes

    contextos e sobre como as integrar ao campo de conhecimento da psicologia.

    O surgimento da psicologia como rea de conhecimento vem sendo tema

    de estudo de diversos autores (PATTO, 1984; FIGUEIREDO, 1996a, 1996b, 1997;

    JAC-VILELA, 2001; CANGUILHEM, 1968; FARR, 1998; FOUCAULT, 2002, entre

    outros). Um dos focos de preocupao desses estudiosos delinear com

    profundidade o contexto filosfico e cultural no qual a psicologia surge como

    conjunto de saberes passveis de profissionalizao. Este estudo empreender a

    tarefa de revisar de forma sucinta as razes da psicologia contempornea em

    busca da filiao histrica e socioeconmica de um campo especfico de

    conhecimento: a psicologia organizacional e do trabalho1.

    Os sculos XVII e XVIII, marcados pelo impacto do Iluminismo e pela

    consolidao do sistema mercantil-capitalista de produo, abrem as portas para a

    1 A terminologia psicologia organizacional e do trabalho foi escolhida nesse estudo por representar a tendncia atual de denominao da especialidade, anteriormente referida como psicologia industrial e/ou psicologia organizacional.

  • 13

    emergncia de uma psicologicidade (DUARTE, 2001, p. 35), termo utilizado para

    caracterizar a busca por um saber sistemtico sobre a interioridade. A cultura

    ocidental moderna buscava a substituio das tradies histricas por um saber

    coeso, que produzisse sistemas representacionais aptos ao exerccio da previso,

    manipulao e controle do comportamento humano (FIGUEIREDO, 1996b).

    Segundo Patto (1984), a perspectiva adaptacionista atravessa a consolidao da

    psicologia como cincia autnoma, na Europa do sculo XIX. Pontua a autora:

    (...) ideologia adaptacionista como concepo que norteia a ao do psiclogo,

    colocando-o pari passu com a ideologia poltica dominante num mundo industrial

    oligrquico2 (p. 92).

    Tambm no Brasil, a preocupao com o controle do comportamento

    humano est presente em todas as etapas iniciais de desenvolvimento da

    psicologia, mas foi, sobretudo, a preocupao com o controle do fator humano no

    trabalho que impulsionou a profissionalizao da cincia psicolgica. Carvalho e

    Santos (2003) retomam o ponto de vista de Bergamini3 para ilustrar essa

    tendncia:

    notvel o crescente interesse das empresas brasileiras na procura de novas tcnicas especializadas em avaliao, desenvolvimento, adaptao e compensao de seus recursos humanos. (...) Essas aspiraes dos homens de empresas esto vitalizando o desenvolvimento da rea mais nova de especializao em Psicologia, aquela que diz respeito aos aspectos psicolgicos da organizao empresarial (p. 383).

    2 Grifos da autora. 3 BERGAMINI, C. W. Funes do psiclogo na empresa moderna. Arquivos Brasileiros de Psicologia Aplicada, v. 24. n. 3, 1972. p.17.

  • 14

    curioso que a mesma rea que teve papel importante na legitimao da

    psicologia como profisso h algumas dcadas seja atualmente considerada uma

    das reas menos legtimas de interveno do psiclogo. A questo da

    desvalorizao da atuao do psiclogo organizacional e do trabalho tema da

    anlise de Codo (2001). Caracterizado como um executor de atividades

    intrinsecamente reacionrias, o anteriormente denominado psiclogo industrial

    colocar-se-ia a servio da indstria como instrumento adicional de explorao e

    alienao do trabalhador, ao invs de transformar a estrutura produtiva para que

    esta venha a satisfazer as necessidades do ser humano.

    Um argumento freqentemente utilizado para explicar a classificao

    depreciativa das prticas desenvolvidas pela psicologia nas empresas a idia da

    aplicao indevida das teorias psicolgicas. De acordo com essa argumentao, o

    corpo terico da psicologia, supostamente descomprometido e de carter

    essencialmente humanitrio, sofreria uma distoro na sua aplicao em

    organizaes privadas. Uma anlise um pouco mais aprofundada denuncia a

    fragilidade dessa argumentao. A nfase na classificao depreciativa da

    psicologia organizacional e do trabalho ignora que o conhecimento produzido pela

    cincia psicolgica como um todo sempre esteve profundamente comprometido

    com interesses socieconmicos e polticos especficos de seu tempo. Como Codo

    (2001) refere, comum que tal desvalorizao produza apenas a no interveno

    no contexto da organizao privada. So crticas que no transformam esse

    mesmo contexto, apenas desestimulam a produo intelectual na rea, abrindo

    caminho para prticas no reflexivas.

  • 15

    Essa proposta de pesquisa comeou a ser construda ainda durante minha

    formao acadmica no curso de Psicologia da Universidade Federal do Rio

    Grande do Sul. A experincia de estgio em uma consultoria em psicologia

    organizacional e do trabalho confrontou-me com a desvalorizao do psiclogo

    que atua em organizaes privadas e, principalmente, com as intensas

    contradies entre minha formao acadmica e as demandas de uma empresa

    privada. Embora outras experincias de estgio j indicassem que o exerccio da

    profisso exigiria a construo de novos conhecimentos e estratgias alm

    daqueles consolidados na formao acadmica, a prtica em psicologia

    organizacional e do trabalho evidenciou de forma incontestvel o tensionamento

    entre as concepes construdas em minha formao universitria e a

    possibilidade de transform-las em intervenes coerentes no cotidiano de uma

    empresa de capital privado.

    Esse tensionamento foi amplamente discutido durante o estgio curricular,

    tanto no contexto acadmico quanto na prpria consultoria onde a prtica

    supervisionada de psicologia organizacional e do trabalho era desenvolvida,

    despertando meu interesse pelo estudo da prtica do psiclogo nas organizaes.

    Consultando bases de dados em psicologia (PsycINFO4; IndexPsi5) e o acervo das

    bibliotecas de diversas instituies de ensino superior do Rio Grande do Sul

    (UFRGS, PUCRS e UNISINOS), percebi que existe uma vasta bibliografia

    nacional (JACQUES, 1989, 1999; SPINK, 1996; CODO, 2001, entre outros)

    4 Base de dados que contm referncias e resumos de artigos de peridicos, captulos de livros, livros e relatrios tcnicos, bem como referncias de dissertaes e teses, todos na rea de psicologia. Disponvel em http://www.psicologia.ufrgs.br/biblioteca/base. Acesso em 05 out. 2004. 5 Base de dados que contm referncias e resumos de artigos de peridicos nacionais da rea de psicologia. Disponvel em http://www.psicologia.ufrgs.br/biblioteca/base. Acesso em 10 out. 2004.

  • 16

    resgatando a trajetria histrica da psicologia organizacional e do trabalho atravs

    de reflexes tericas e conceituais. Entretanto, os estudos empricos que

    investigam o contexto de ao de consultorias em psicologia organizacional e do

    trabalho, particularmente no Rio Grande do Sul, so escassos (MANCIA, 1997;

    MARTINS, 2002), sendo que uma das pesquisas que faz referncia ao tema

    (MARTINS, 2002) ainda no teve seus resultados publicados na ntegra.

    Contrastando com a escassez de estudos na rea e com sua classificao

    depreciativa, as atividades de consultoria em psicologia organizacional e do

    trabalho se constituem como um dos campos de atuao mais promissores em

    termos de mercado de trabalho. A demanda pelas denominadas consultorias de

    recursos humanos vem aumentando consideravelmente (OLIVEIRA, 1999) em um

    contexto caracterizado pela crescente terceirizao de servios, uma das

    tendncias resultantes das recentes transformaes no mundo do trabalho.

    As relaes de trabalho contemporneas esto inseridas em um intenso

    processo de transformao dos modelos de gesto e organizao da dinmica

    produtiva. A globalizao - termo utilizado para aludir a uma multiplicidade de

    fenmenos sociais, culturais, econmicos, tecnolgicos e financeiros que ocorrem

    desde a dcada de 1970 vem redefinindo as configuraes das relaes

    internacionais (SCHERER, 1997). Com ampla influncia nos padres de consumo,

    o fenmeno da globalizao fortemente evidenciado nas relaes de trabalho. O

    foco no mercado internacional, a descentralizao do processo produtivo e a

    implementao de tecnologia de ponta tornaram-se estratgias comumente

    associadas sobrevivncia das empresas em um cenrio de competitividade

    crescente.

  • 17

    Tais estratgias, que permitem um fluxo gil de materiais e informaes,

    tambm transformam em uma velocidade surpreendente as relaes e vnculos de

    trabalho. Um estilo de gesto de resposta imediata ao mercado somente pode ser

    implementado com alteraes profundas no processo de trabalho. Atualmente, tais

    alteraes costumam se dar, principalmente, atravs da busca pela flexibilidade

    interna ou externa (CASTEL, 1998). Na primeira situao, as empresas recorrem

    ao treinamento de funcionrios para que estes se tornem mais flexveis e

    polivalentes. O trabalhador das organizaes just in time precisa estar

    imediatamente disponvel para se adaptar s flutuaes de demanda, pois a no-

    adaptao freqentemente torna-se sinnimo de desemprego. No segundo caso,

    as empresas descentralizam as atividades, atribuindo s empresas-satlites as

    etapas acessrias do processo de produo. nesse contexto de flexibilidade

    externa que as consultorias em diversos campos de conhecimento, incluindo a

    psicologia, vm se tornando uma opo de trabalho cada vez mais freqente.

    A escassez de estudos e reflexes sobre o tema frente crescente

    demanda por atividades de consultoria a principal justificativa para esta proposta

    de pesquisa. Esse estudo busca a articulao entre elementos empricos e

    pressupostos tericos, de modo a problematizar as prticas de consultoria em

    psicologia organizacional e do trabalho como um fenmeno atravessado por

    determinaes histricas, polticas e socieconmicas. Parte da questo: como os

    profissionais que atuam em consultoria em psicologia organizacional e do trabalho

    constroem suas prticas frente s modificaes nos processos e relaes

    laborais? Conhecer a trajetria de consultorias gachas e compreender suas

    prticas inseridas nas complexas configuraes do cenrio de trabalho

  • 18

    contemporneo so os principais objetivos do estudo, que sero detalhados no

    captulo seguinte.

    Os procedimentos e recursos metodolgicos tambm sero apresentados

    em sees subseqentes. As opes metodolgicas sero descritas e discutidas,

    tendo em vista sua adequao a uma pesquisa com abordagem qualitativa.

    A apresentao dos dados empricos ser articulada junto aos fundamentos

    tericos da pesquisa, que esto organizados em dois grandes eixos. O primeiro

    eixo contempla a reviso bibliogrfica de estudos referentes histria da

    constituio da psicologia como campo de saber. Neste contexto de estudo, ser

    abordada a filiao terica da psicologia organizacional e do trabalho aos

    pressupostos da psicologia social e da administrao de recursos humanos.

    O segundo eixo terico norteador traz para anlise e reflexo as discusses

    sobre as configuraes contemporneas dos processos e relaes de trabalho. O

    posicionamento terico de alguns autores sobre temticas como desemprego,

    precarizao e flexibilizao dos vnculos laborais sero abordados,

    contextualizando a constituio das prticas de consultoria. Essa abordagem

    buscar ampliar o entendimento das imbricaes socioeconmicas, polticas e

    conceituais que norteiam essas prticas.

    As temticas emergentes do estudo sero analisadas ao final da

    dissertao. Questes de empresa familiar e gnero sero discutidas a partir dos

    pressupostos tericos norteadores e serviro como subsdios para complementar

    a construo das consideraes finais de pesquisa.

  • 19

    OBJETIVOS DO ESTUDO

    OBJETIVOS GERAIS

    Sistematizar e disponibilizar informaes sobre empresas com registro de

    pessoa jurdica no Conselho Regional de Psicologia, Regio 07 (CRP 07),

    enfatizando dados referentes ao tempo de atuao e s atividades

    desenvolvidas pelas empresas;

    conhecer a trajetria de empresas gachas pioneiras na prestao de

    servios em psicologia organizacional e do trabalho;

    identificar e analisar as relaes entre a construo das prticas de

    empresas em psicologia organizacional e do trabalho e as configuraes

    histricas, socioeconmicas e polticas do contexto laboral;

    OBJETIVOS ESPECFICOS

    Identificar as condies histricas e socioeconmicas de surgimento das

    empresas pioneiras na prestao de servios em psicologia organizacional

    e do trabalho no Rio Grande do Sul;

    contextualizar o surgimento dessas empresas gachas na trajetria da

    psicologia brasileira;

    explicitar as possveis transformaes ocorridas nos servios

    disponibilizados pelas empresas referidas, desde seu surgimento at o

    momento atual;

  • 20

    identificar as prticas dos profissionais que exercem atividades de

    consultoria em psicologia organizacional e do trabalho no contexto atual e

    os pressupostos tericos que as fundamentam;

    investigar as estratgias utilizadas para manter a insero das empresas no

    mercado de trabalho ao longo dos anos;

    conhecer a avaliao dos participantes do estudo sobre sua formao e o

    espao de interlocuo com o meio acadmico;

    contribuir para a reflexo sobre a formao acadmica e suas relaes com

    as prticas em psicologia organizacional e do trabalho;

  • 21

    PERCURSO METODOLGICO

    A abordagem metodolgica utilizada nesse estudo foi a da pesquisa

    qualitativa. De acordo com Vctora, Knauth e Hassen (2000), o referencial

    qualitativo especialmente adequado para a compreenso em profundidade do

    contexto em estudo. Entre os pressupostos da pesquisa qualitativa est a

    concepo de que ... a realidade social no um todo unitrio, mas uma

    multiplicidade de processos sociais que atuam simultaneamente, em

    temporalidades diferenciadas (p. 34). Nessa perspectiva, a produo cientfica

    torna-se possvel a partir do reconhecimento e da anlise aprofundada desses

    processos e seus significados histricos.

    Outro pressuposto que fundamentou a escolha pela abordagem qualitativa

    o seu carter permanentemente inacabado. O processo de produo de

    conhecimento na pesquisa qualitativa est sempre aberto para fatores emergentes

    e os resultados so momentos parciais que se integram constantemente a outras

    perguntas e abrem novos caminhos produo cientfica (REY, 2002).

    Inserido na perspectiva qualitativa, o estudo de caso tem se mostrado uma

    estratgia frtil de produo de conhecimento nas cincias humanas e sociais.

    Vem sendo amplamente utilizado em diversas reas de conhecimento (sociologia,

    psicologia, medicina, administrao, entre outras) como recurso de ensino e

    registro. Entretanto, esses tipos de estudo de caso diferem de seu uso em

    pesquisa. Quando utilizado para fins de ensino, por exemplo, o estudo de caso

  • 22

    prope-se a estabelecer uma estrutura de discusso e debate que envolva os

    estudantes no processo de aprendizagem, sem a preocupao de apresentar uma

    interpretao completa e aprofundada dos dados. Aqueles que se destinam

    pesquisa devem preocupar-se justamente como o maior rigor na apresentao e

    discusso dos dados empricos (YIN, 2001).

    O estudo de caso especialmente adequado para as pesquisas que

    elaboram questes do tipo como ou por que sobre um conjunto contemporneo

    de acontecimentos sobre o qual o pesquisador tem pouco ou nenhum controle

    (YIN, 2001, p. 28). O autor destaca que esse tipo de estudo surge da necessidade

    de compreender e estabelecer relaes entre fenmenos6 sociais complexos.

    Essa caracterstica um dos aspectos que o diferencia de outras estratgias de

    investigao, como o experimento, por exemplo. Nos experimentos, o fenmeno a

    ser estudado propositalmente isolado do seu contexto com o objetivo de analisar

    apenas algumas variveis. No estudo de caso, os aspectos contextuais so

    fundamentais para a compreenso do objeto de estudo, o que exige o uso de uma

    ampla variedade de fontes de dados de pesquisa.

    recomendado que a pesquisa emprica no estudo de caso combine vrias

    estratgias de coleta de dados, que incluem entrevistas, observaes, anlise de

    documentos, uso de dirios de campo e tcnicas de histria de vida. O estudo de

    caso pode ser nico ou mltiplo e se aplica tanto a indivduos, quanto a grupos,

    instituies/organizaes, eventos ou pases (ROESCH, 1999). Uma das

    dificuldades do estudo de caso, apontada por Goldenberg (2000), traar os

    6 Expresso utilizada pelo autor.

  • 23

    limites do que deve ou no ser pesquisado, pois o objeto de estudo uma

    abstrao cientfica construda em funo de um problema a ser investigado.

    O estudo de caso nico prefervel quando o fenmeno em questo

    constituir-se como um caso raro ou incomum, um caso crtico (decisivo para

    avaliar uma teoria j formulada) ou revelador (previamente inacessvel

    investigao cientfica). Os estudos de casos mltiplos, por sua vez, so

    considerados fontes de dados mais convincentes para que se estabeleam

    relaes com as proposies tericas adotadas pelo pesquisador. Tanto o estudo

    de caso nico quanto mltiplos prope-se a uma generalizao analtica, ou seja,

    quando o pesquisador est tentando generalizar um conjunto particular de

    resultados a alguma teoria mais abrangente (YIN, 2001, p. 58).

    A pesquisa que fundamenta a presente dissertao seguiu as orientaes

    metodolgicas do estudo de caso, investigando o conjunto de processos

    socioeconmicos, histricos e polticos que atravessam a construo das prticas

    de consultoria em empresas pioneiras no campo da psicologia organizacional e do

    trabalho no Rio Grande do Sul. Foram escolhidas duas empresas para estudo,

    cujos critrios de escolha sero detalhados na seqncia do texto. A escolha de

    organizaes como unidades de anlise uma modalidade de estudo muito

    freqente no campo da administrao. Originou-se h cerca de 90 anos na

    Universidade de Harvard (EUA) e seu uso est consolidado em diversas

    universidades do mundo. A principal vantagem desse tipo de pesquisa a

    possibilidade de compreender processos sociais medida que se desenrolam nas

    organizaes: permite, entre outros, uma anlise processual, contextual e

    longitudinal de vrias aes e significados que se manifestam e so construdos

  • 24

    dentro das organizaes (ROESCH, 1999, p. 197-198). Em sntese, permite a

    anlise das relaes entre processos histricos e o funcionamento das

    organizaes estudadas.

    O procedimento que auxiliou na definio das empresas escolhidas para o

    estudo foi a realizao de um levantamento de dados, detalhado a seguir.

    Levantamento junto ao Conselho Regional de Psicologia do Rio

    Grande do Sul

    O primeiro procedimento da pesquisa consistiu na realizao de um

    levantamento sobre todas as empresas que possuem registro de pessoa jurdica

    no Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul - Regio 07 (CRPRS).

    Esse levantamento, autorizado pelo rgo referido, fornece um panorama geral,

    caracterizando as empresas cadastradas no perodo de janeiro de 1979 a

    dezembro de 2004.

    De 1979 a 2004, foram registradas 347 empresas no CRPRS. Destas, 269

    (77,5%) continuam em atividade. As empresas com registros inativos somam 76

    (21,9%) e o restante dos arquivos (duas empresas, correspondentes a 0,6% do

    total) no foi localizado (ver figura 1). Tendo em vista os objetivos da pesquisa,

    foram consultados somente os registros de empresas que continuam em

    atividade. Destes, pde-se ter acesso a 224 arquivos (64,5% do total de registros),

    pois o restante (45 arquivos, correspondentes a 13% do total de empresas) no

    estava disponvel para consulta. Todos os dados discutidos a seguir referem-se a

    esses 224 registros de empresas ativas.

  • 25

    ATIVOS INATIVOS NO LOCALIZADOS

    269 (77,5% do total)

    Arquivos

    Consultados

    Arquivos no

    consultados

    224 (64,5% do total)

    (83,3% dos ativos)

    45 (13% do total)

    (16,7% dos ativos)

    76 (21,9% do total)

    02 (0,6% do total)

    TOTAL: 347 (Empresas registradas at o dia 31/12/2004)

    Figura 1 REGISTROS DE PESSOA JURDICA DO CRPRS: ATIVOS E INATIVOS

    Os arquivos do CRPRS disponibilizam, entre outros, dois dados

    fundamentais sobre as empresas cadastradas: a data de incio da atividade da

    empresa e a data de registro de pessoa jurdica no Conselho Regional de

    Psicologia. Em parte dos arquivos, estas datas no coincidem, o que ocorre

    devido a duas circunstncias diferentes: a empresa ter iniciado sua atividade

    comercial antes da criao do CRPRS (em 1974); ou a empresa ter sido

    cadastrada em ano posterior ao de incio da atividade (ver figura 2). Assim sendo,

    nem todas as empresas que comearam a prestar servios em 1995, por exemplo,

    registraram-se no mesmo ano. A convergncia das duas datas (incio de atividade

    e registro no CRPRS) uma tendncia recente, possivelmente impulsionada pela

    consolidao do Conselho Regional de Psicologia como rgo responsvel pela

    regulamentao da atividade profissional em psicologia.

  • 26

    INCIO DA ATIVIDADE REGISTRO DE PESSOA JURDICA NO CRPRS

    ANO

    NMERO DE EMPRESAS

    PERCENTUAL NMERO DE EMPRESAS

    PERCENTUAL

    1959 01 0,4% - - 1960 - - - - 1961 - - - - 1962 - - - - 1963 01 0,4% - - 1964 - - - - 1965 - - - - 1966 - - - - 1967 - - - - 1968 - - - - 1969 01 0,4% - - 1970 - - - - 1971 - - - - 1972 02 0,9% - - 1973 01 0,4% - - 1974 01 0,4% - - 1975 - - - - 1976 02 0,9% - - 1977 01 0,4% - - 1978 01 0,4% - - 1979 02 0,9% 04 1,9% 1980 02 0,9% 03 1,3% 1981 02 0,9% - - 1982 01 0,4% 01 0,4% 1983 01 0,4% 04 1,9% 1984 04 1,9% - - 1985 05 2,2% 05 2,2% 1986 04 1,9% 06 2,7% 1987 05 2,2% 04 1,9% 1988 02 0,9% 04 1,9% 1989 04 1,9% 02 0,9% 1990 02 0,9% 03 1,3% 1991 03 1,3% 03 1,3% 1992 08 3,6% 02 0,9% 1993 07 3,1% 03 1,3% 1994 06 2,8% 05 2,2% 1995 10 4,5% 03 1,3% 1996 14 6,2% 09 4,0% 1997 21 9,4% 27 12,0% 1998 08 3,6% 13 5,8% 1999 11 4,9% 12 5,3% 2000 19 8,5% 18 8,0% 2001 11 4,9% 16 7,1% 2002 19 8,5% 23 10,3% 2003 15 6,7% 31 13,8% 2004 07 3,1% 23 10,3% No

    especificado 20 8,9% - -

    TOTAL 224 100% 224 100% Figura 2 PERODO DE INCIO DE ATIVIDADE E REGISTRO NO CRPRS

  • 27

    Embora a profisso de psiclogo tenha sido regulamentada pela Lei Federal

    4.119, em 27/08/1962, os Conselhos Federal (CFP) e Regionais (CRPs) foram

    criados quase 10 anos depois, atravs da Lei 5.766 (em 20/12/1971), e

    efetivamente instalados em 27/08/19747. As polticas de gesto dos Conselhos,

    rgos responsveis pela orientao e fiscalizao da atividade do psiclogo, tm

    impacto relevante nas prticas da categoria profissional regulamentada. Ao longo

    do levantamento de dados, surgiram alguns indicativos dessa influncia como, por

    exemplo, o aumento no nmero de registros de pessoa jurdica no ano de 1997.

    Esse aspecto foi discutido com funcionrios do CRPRS, que associaram o

    incremento no nmero de inscries mudana de gestores do Conselho

    Regional de Psicologia, ocorrida no ano de 1996. A nova poltica de gesto do

    CRPRS, caracterizada pela intensificao na fiscalizao das atividades das

    empresas cadastradas e na regularizao das empresas que funcionavam sem

    registro, foi apontada por funcionrios do CRPRS como causa principal para o

    significativo aumento no nmero de cadastros em 1997.

    Os registros do CRPRS tambm permitem identificar a(s) rea(s) de

    atuao das empresas cadastradas, atravs dos objetivos definidos no contrato

    social. importante salientar que a maior parte dos proprietrios indica mais de

    uma rea de atuao dentre os objetivos da empresa, englobando uma ampla

    gama de servios disponibilizados, o que dificulta a sistematizao dos dados. No

    presente estudo, os critrios utilizados para a classificao das reas de atuao

    em psicologia foram os mesmos que servem de parmetro para delimitar as

    especialidades institudas para pessoas fsicas. O credenciamento de psiclogos 7 Dados disponveis em www.crp07.org.br (acesso em 30/09/2005).

  • 28

    por especialidades, institudo pelo Conselho Federal de Psicologia (Resoluo

    n02/01)8, estabelece um conjunto de atribuies especficas a cada especialidade

    (psicologia clnica, escolar, psicomotricidade, entre outras). Com base nessa

    descrio, foi realizada a classificao de rea de atuao das empresas ativas

    cadastradas no CRPRS (ver figura 3). O percentual total supera os cem por cento

    devido j referida conexo entre diversas reas de atuao presente nos

    objetivos de uma mesma empresa.

    O vnculo dos profissionais de psicologia com a rea clnica um aspecto

    interessante que emerge do levantamento de dados. Ao definir a rea de atuao

    da empresa, nos objetivos do contrato social, os proprietrios da maioria das

    empresas em atividade (40,6%) optaram pela prestao de servios em psicologia

    clnica. As prticas em psicologia organizacional e do trabalho, e

    ensino/pesquisa/formao tambm ocupam posio de destaque na preferncia

    dos profissionais, com 37% e 31,7% dos registros, respectivamente. Outro fator de

    destaque a formao de sociedade entre psiclogos e profissionais das mais

    diversas reas de atuao (medicina, fisioterapia, pedagogia, administrao,

    engenharia, entre outros) na constituio das pessoas jurdicas.

    8 Dados disponveis em www.crp07.org.br (acesso em 10/11/2004).

  • 29

    REA NMERO DE EMPRESAS

    PERCENTUAL

    Psicologia Clnica 91 40,6%

    Psicologia Organizacional e do

    Trabalho

    83 37%

    Ensino/Pesquisa/Formao 71 31,7%

    rea no especificada9 56 25%

    rea da sade/social10 42 18,7%

    Comrcio/Representaes

    comerciais

    25 11,2%

    Psicologia Escolar/Educacional 14 6,2%

    Outros11 11 4,9%

    Psicopedagogia 10 4,5%

    Psicologia Social/Comunitria 07 3,1%

    rea administrativa/financeira12 04 1,9%

    Psicologia Hospitalar 03 1,3%

    Psicologia Jurdica 02 0,9%

    Psicologia do Esporte 01 0,4%

    Psicomotricidade 01 0,4% Figura 3 REA DE ATUAO DAS EMPRESAS

    Com base no levantamento realizado no CRPRS, foram escolhidas trs

    empresas para realizao de estudo de caso. Os critrios de escolha foram:

    9 rea no especificada: O objetivo descrito no contrato social no especifica a rea da psicologia qual a empresa se dedica. Por exemplo: Prestao de servios em psicologia. 10 rea da sade/social: Servios em medicina; fisioterapia; fonoaudiologia; nutrio; terapia ocupacional; assistncia social. 11 Outros: Servios em engenharia eltrica; formao de condutores; processos qumicos industriais; fotografia; atividades artsticas. 12 rea administrativa/financeira: Assessoria econmica/financeira; pesquisas de mercado; comrcio exterior.

  • 30

    - principal rea de atuao da empresa: a prestao de servios em

    psicologia organizacional e do trabalho foi a atividade selecionada, em coerncia

    com o tema de pesquisa. A definio dos servios especficos da rea de

    psicologia organizacional e do trabalho foi realizada de acordo com a resoluo

    02/2001 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), em conjunto com o Catlogo

    Brasileiro de Ocupaes do Ministrio do Trabalho (ver Anexo I);

    - perodo de incio da atividade e tempo de atuao no mercado: foram

    selecionadas as empresas que iniciaram suas atividades na dcada de 1970 e

    que permanecem em atividade na rea de psicologia organizacional e do trabalho.

    As trs empresas escolhidas efetuaram registro de pessoa jurdica entre 1970 e

    1979 e so as nicas (nesse perodo) em cujos contratos sociais constam

    atividades relacionadas rea de psicologia organizacional e do trabalho.

    Ao entrar em contato com os proprietrios das empresas, constatou-se que

    uma delas no presta mais servios nessa rea, restringindo suas atividades

    principais prtica clnica. Esse fato indica a possibilidade de que outras

    empresas cadastradas tenham mudado sua rea de atuao ao longo dos anos e

    no tenham atualizado o contrato social. Os estudos de caso foram realizados,

    portanto, somente com as outras duas empresas, que permaneceram prestando

    servios em psicologia organizacional e do trabalho, ambas com registro efetuado

    em 1972. O tempo de atuao no mercado de trabalho foi um critrio decisivo na

    escolha das empresas, pois permite maior riqueza de dados referentes aos

    processos histricos, polticos e socioeconmicos que marcaram a trajetria

    dessas organizaes.

  • 31

    Os participantes do estudo foram os proprietrios das duas empresas

    escolhidas para pesquisa e os profissionais que nelas exercem atividades

    relacionadas psicologia. Aps a escolha das empresas, foi realizado um primeiro

    contato com os participantes, com o propsito de explicar os objetivos do estudo e

    a metodologia de trabalho utilizada. O termo de consentimento livre e esclarecido

    (ver Apndice I) foi obtido a partir desse contato inicial.

    A realizao de entrevistas semi-estruturadas foi a principal fonte de dados

    empricos da pesquisa. Embora partissem de eixos norteadores (ver Apndice II),

    as entrevistas assumiram caractersticas singulares, de acordo com o profissional

    entrevistado. Como afirma Goldenberg (2000), citando Becker13: No possvel

    formular regras precisas sobre as tcnicas de pesquisa qualitativa porque cada

    entrevista ou observao nica: depende do tema, do pesquisador e de seus

    pesquisados (p. 57). As entrevistas foram transcritas e posteriormente

    disponibilizadas a todos os participantes do estudo para que estes as

    reformulassem ou confirmassem o contedo expresso nas transcries dos

    depoimentos.

    Outra fonte de informaes para pesquisa foi a anlise de documentos das

    empresas. Estes documentos incluram, alm dos arquivos do CRPRS, todo o

    material publicitrio impresso (em perodos anteriores e atualmente), assim como

    as informaes disponveis nos sites das empresas na internet. Alm dos

    documentos referidos, tambm foram analisados manuais de treinamento

    utilizados pelas empresas e publicaes referentes a servios prestados, todos

    disponibilizados pelos proprietrios ou funcionrios vinculados s organizaes. A 13 BECKER, H. Mtodos de pesquisa em cincias sociais. So Paulo: Hucitec, 1994.

  • 32

    observao da rotina de trabalho dos participantes, etapa da coleta de dados

    prevista no projeto de pesquisa, no pde ser realizada devido s restries de

    acesso percebidas durante o trabalho de campo.

    A anlise dos dados foi baseada nos pressupostos gerais para estudo de

    caso, referidos por Yin (2001). O autor salienta que existem poucas estratgias

    definidas para anlise no estudo de caso e que a produo de conhecimento est

    intimamente vinculada ao estilo de pensar do pesquisador, apresentao

    cuidadosa dos dados e anlise acurada de possveis interpretaes alternativas

    para os dados. Como estratgias gerais para auxiliar a anlise dos dados

    empricos, o autor prope duas alternativas.

    A primeira, e mais importante, seguir as proposies tericas que

    fundamentam o estudo de caso, estabelecendo relaes e novas interpretaes a

    partir dos pressupostos tericos norteadores. A orientao terica serviria,

    portanto, como guia de anlise para o estudo de caso, auxiliando o pesquisador a

    definir os seus focos de ateno e os dados que sero deixados em segundo

    plano. A segunda estratgia consiste em desenvolver uma descrio do(s) caso(s)

    que organize o estudo, servindo de base para estabelecer nexos futuros com as

    proposies tericas.

    Esse estudo partiu de uma descrio sucinta da trajetria e da estrutura

    organizacional das duas empresas escolhidas para estudo de caso, seguindo-se

    uma anlise em que se discutem os dados empricos e suas conexes com os

    pressupostos tericos norteadores do estudo.

  • 33

    DESCRIO DAS EMPRESAS

    EMPRESA ALFA*

    Em maro de 1972, surgia a empresa Alfa. Pioneira na prestao de

    servios em psicologia industrial (hoje denominada psicologia organizacional e do

    trabalho), a empresa surge da sociedade entre um psiclogo e um administrador

    de empresas. Esse psiclogo, graduado pela Pontifcia Universidade Catlica do

    Rio Grande do Sul (PUCRS), tambm realizou formao no Instituto de Seleo e

    Orientao Profissional da Fundao Getlio Vargas (ISOP/FGV), em perodo

    anterior graduao.

    Embora inclua no contrato social a prestao de servios em psicologia

    clnica, a Alfa tem sua trajetria marcada pelo campo organizacional. No princpio,

    os servios prestados pela empresa podiam ser sintetizados em quatro atividades

    principais: recrutamento, seleo de pessoal, treinamento e poltica de salrios.

    A atividade de recrutamento consistia no conjunto de aes destinadas

    divulgao de vagas de trabalho e contato com candidatos dispostos a se

    submeter ao processo seletivo. A seleo de pessoal era a etapa subseqente,

    que consistia na realizao de uma bateria de testes psicolgicos e entrevistas

    para a escolha dos candidatos indicados s vagas. O treinamento englobava uma

    ampla gama de atividades (palestras, trabalhos com grupos, entre outras) cujo

    * O nome foi trocado para preservar a identidade dos participantes.

  • 34

    objetivo principal era promover a capacitao para o trabalho. J a poltica de

    salrios surge como uma proposta de servio especfica do perodo. O psiclogo

    proprietrio caracteriza esse momento:

    (...) o pessoal comeou a gostar muito de pesquisa de salrios, ficou muito em moda na dcada de 60 e poucos, 70.

    Essa atividade consistia basicamente em uma pesquisa realizada pela Alfa

    com empresas de grande, mdio e pequeno porte, da regio metropolitana de

    Porto Alegre. Os gerentes de recursos humanos recebiam formulrios nos quais

    informavam o nome dos cargos da empresa e os salrios pagos aos funcionrios

    que ocupavam tais funes. Os dados eram compilados e serviam de parmetro

    para os empregadores definirem a remunerao dada aos seus empregados, de

    acordo com o mercado. Segundo ele, esse servio foi favorecido

    (...) por um momento de mercado, em que a inflao era muito violenta. O empresrio no tinha condies de aferir se ele estava pagando corretamente, se tava pagando a mais ou se tava pagando a menos. (...) Quem recebia aquele livro (com a pesquisa) podia estabelecer dentro da empresa dele, a praticamente custo zero, todo um plano de cargos e salrios.

    A empresa Alfa, inicialmente localizada no centro de Porto Alegre, contava

    com o trabalho dos proprietrios, de uma auxiliar administrativo (esposa do

    psiclogo proprietrio) e mais duas psiclogas, que elaboravam os laudos para

    seleo de pessoal. Tambm integravam o grupo de funcionrios da empresa uma

    datilgrafa, um office-boy e uma faxineira. A auxiliar administrativo refere que a

    demanda pelo servio de seleo de pessoal naquele perodo era to intensa que

  • 35

    os psiclogos chegavam a elaborar mais de 300 laudos para cargos diversos em

    apenas um ms:

    (...) o que me gravou muito foi realmente l no gabinete que a gente chegou a fazer trezentos e tantos (laudos) por ms. Acho que foi 368 o nmero mximo.

    No final da dcada de 1970, incio dos anos de 1980, a empresa comeou a

    sentir o impacto de uma crise de mercado. A gradativa reduo da demanda pelo

    processo de seleo de pessoal foi um dos principais sinalizadores dessa crise. A

    auxiliar administrativo salienta:

    Uma empresa se no tem dinheiro, como que ela vai se dar ao luxo de fazer uma seleo. Eles j cortam por a, cortam pessoal, cortam... infelizmente isso.

    A reduo da contratao de pessoal nas empresas se refletiu no cotidiano

    da Alfa. Com a queda da demanda por um de seus principais servios, a Alfa foi

    reduzindo o seu quadro funcional at ficar apenas com os scios proprietrios e a

    auxiliar administrativo. Algum tempo depois, o scio administrador recebeu uma

    outra proposta de trabalho e decidiu se afastar da sociedade. Entretanto, o registro

    de pessoa jurdica s foi efetivamente alterado no final dos anos de 1990, quando

    a filha do casal que mantinha a empresa substituiu o administrador na sociedade

    limitada. A filha, que tambm psicloga, refere que, atualmente, no exerce

    atividades dentro da rea de psicologia organizacional e do trabalho. Dedica-se,

    exclusivamente, prtica clnica, de forma independente, embora utilize o espao

    fsico da empresa para os seus atendimentos.

  • 36

    O proprietrio fundador afirma que hoje no contam com nenhum outro

    profissional no quadro fixo da empresa, que est em sua segunda sede. A

    contratao temporria de funcionrios a opo da Alfa quando assume

    compromissos que exijam maior nmero de profissionais. Atual scio majoritrio

    da empresa, ele continua no comando da Alfa, auxiliado por sua esposa. Os

    servios de recrutamento, avaliao psicolgica para seleo e promoo de

    pessoal, e treinamento ainda fazem parte das atividades da empresa. A prtica de

    poltica de salrios, no entanto, foi em grande parte abandonada pela Alfa, pois,

    segundo o proprietrio, esse tipo de servio no tem mais o impacto que tinha no

    perodo de grande inflao. Tal atividade surge apenas como uma das opes do

    extenso pacote de servios disponibilizados pela Alfa atravs da prtica de

    consultoria.

    Embora j fizesse parte das opes de servios da Alfa h muitos anos, a

    consultoria assumiu um papel importante no cotidiano da empresa apenas

    recentemente. O proprietrio caracteriza a consultoria como sendo um trabalho

    (...) lindo, lindo. (...) Ento, voc faz o qu? Voc toma conta de toda a administrao de recursos humanos, a parte tcnica.

    Na parte tcnica, ele inclui a definio da estrutura organizacional, com a

    descrio de funes e hierarquia de cargos (organograma); o treinamento

    semanal de grupos executivos ou de lideranas, que inclui palestras e discusses

    sobre a rotina de trabalho; e o atendimento clnico de funcionrios das empresas

    contratantes:

  • 37

    Ento tudo muito bonito, voc imagina, voc faz psicologia organizacional a mais pura possvel, tu acompanha estratgias da empresa, essa coisa toda, e acompanha o pessoal, d assistncia ao pessoal, enfim, o objetivo dar todo um amparo equipe de funcionrios.

    A paixo e o entusiasmo do scio fundador pela profisso transparecem ao

    longo das entrevistas, assim como o orgulho que sente por ter criado e mantido

    uma empresa pioneira em psicologia organizacional. A continuidade de seu

    trabalho, atravs da filha, a grande esperana do psiclogo:

    E ela (a filha) vai tocar, n. (...) Ento eu tenho uma grande esperana que a Alfa v aos 60 anos, porque ela tem tudo pra continuar.

  • 38

    EMPRESA BETA*

    Foi no ano de 1972 que trs psiclogos tiveram a idia de montar uma

    empresa de prestao de servios em psicologia organizacional e do trabalho. Um

    projeto simples que um dos scios fundadores descreve:

    (...) no houve assim um maior planejamento, claro, a gente planejou os passos mnimos, bsicos: secretria, telefone, instalaes.

    A localizao da primeira sede da empresa no centro de Porto Alegre era

    uma caracterstica comum s empresas criadas naquele perodo:

    E a idia era no centro exatamente porque naquela poca no tinha essa distribuio geogrfica de escritrio, tudo que era escritrio era no centro.

    O comeo da empresa foi difcil, mas compensado pelo intenso ritmo de

    atividades que caracterizaram a segunda metade da dcada de 1970. Os servios

    de recrutamento e seleo, pilares das atividades da Beta naquele perodo, foram

    fortemente favorecidos pelo contexto socioeconmico brasileiro. O mesmo scio

    fundador descreve esse momento:

    Ento com o boom dos anos 70, a segunda virada da dcada de 70, comeou o milagre brasileiro ento tinha muito ingresso de mo-de-obra nas empresas, principalmente nas indstrias, ento ns acompanhamos esse movimento.

    * O nome foi trocado para preservar a identidade dos participantes.

  • 39

    A demanda pelos servios de recrutamento e seleo possibilitou o

    crescimento da Beta. A empresa, que contava inicialmente apenas com a sede em

    Porto Alegre, abriu mais trs filiais, duas na capital gacha e uma na regio

    serrana do estado. A filial na regio serrana era administrada por um dos outros

    scios fundadores da empresa. As duas filiais em Porto Alegre atendiam a

    pblicos diferenciados:

    Tinha uma filial (...) que atendia mo-de-obra de baixo custo e tinha uma filial de executivos.

    No incio da dcada de 1980, ingressaram dois novos scios na Beta: um

    psiclogo e um administrador. Aos poucos, alguns scios foram deixando a

    empresa at que, em 1984, um dos fundadores comprou a parte dos scios que

    restavam e seguiu como nico proprietrio da Beta. A partir de 1988, a empresa

    concentrou suas atividades em apenas um local, onde permanece at hoje.

    Aps a dissoluo da sociedade, a gama de servios disponibilizados pela

    empresa aumentou consideravelmente: alm da avaliao psicolgica, do

    recrutamento e da seleo de pessoal, a empresa passou a oferecer treinamentos

    (abertos e in company) e consultoria organizacional. A viso empreendedora do

    scio remanescente j se manifestava antes da dissoluo da sociedade, quando

    ele comeou a se dedicar, de forma independente, promoo de eventos em

    recursos humanos, atividade que no interessava aos demais proprietrios. Os

    eventos cresceram nos anos seguintes e foram incorporados s atividades da

    empresa.

  • 40

    Na dcada de 1990, a empresa deixa de realizar recrutamento de pessoal,

    opo motivada por fatores que o proprietrio fundador esclarece:

    (...) paramos com o recrutamento porque, primeiro, porque comeou a haver mais desemprego do que emprego e, segundo, que tava assim muito aviltado no mercado, o pessoal j no queria fazer com exclusividade, ento se tornou, em vez de trabalho tcnico, se tornou uma correria pra ver quem chegava primeiro com o candidato. Ento ficou muito pobre em questo de tica e possibilidade de fazer um bom trabalho.

    Atualmente, a coordenao de congressos em recursos humanos e a

    atividade de consultoria so os principais servios disponibilizados pela Beta. O

    atual proprietrio e scio fundador caracteriza a consultoria como o trabalho de

    agentes externos de mudana organizacional:

    (...) s vezes trabalhando a diretoria, s vezes trabalhando com a rea de RH, s vezes trabalhando com as duas ao mesmo tempo, ento, o foco quase sempre em mudana, mudana de comportamento, mudana cultural, pra isso tem que fazer diagnstico, tem que fazer as intervenes. Algumas vezes tem que fazer intervenes de grupo, a gente trabalha muito com dinmica de grupo.

    A diversificao de atividades uma das estratgias s quais o fundador

    atribui o fato de a empresa vir se mantendo no mercado h tantos anos:

    (...) se ainda fosse de recrutamento como ela comeou, ela teria deixado de existir h muito tempo.

    A Beta foi gradativamente sendo transformada em uma empresa com

    funcionamento familiar. Os atuais proprietrios so, alm do scio fundador, sua

    esposa e dois de seus filhos. A empresa conta em seu quadro fixo com oito

  • 41

    pessoas: o proprietrio fundador; sua filha, que tambm psicloga e atua na

    empresa na rea organizacional; seu filho, responsvel pelo campo de informtica

    na empresa; sua esposa, psicloga que atua na coordenao dos eventos; uma

    psicloga que responsvel pela avaliao psicolgica e tambm trabalha na

    organizao dos eventos; e mais trs funcionrios que auxiliam nas atividades

    administrativas da empresa (secretariado, entre outras). A esposa do fundador

    tambm scia proprietria de outra empresa, que funciona no mesmo endereo

    que a Beta, mas tem sua rea de atuao direcionada ao atendimento em

    psicologia clnica. O filho tambm proprietrio de uma outra empresa no ramo de

    informtica.

    O futuro da Beta um assunto que permanece em aberto na empresa. O

    fundador planeja, a partir da segunda metade de 2006 recuar estrategicamente,

    concentrando suas atividades no servio de consultoria e deixando a gesto geral

    e o futuro da empresa sob a responsabilidade da filha e da esposa. Embora

    considere a hiptese de assumir o comando quando o pai se afastar, a filha

    reconhece que a imagem da Beta ainda est muito associada figura do fundador

    e prefere postergar a discusso da questo sucessria. A esposa e a outra

    psicloga que trabalha na empresa afirmam que esta se mantm devido ao

    empenho do fundador e acreditam que seja pouco provvel que a Beta continue

    existindo sem ele.

    Para facilitar a compreenso do texto, ser utilizada uma nomenclatura

    diferenciada para cada uma das psiclogas que atuam na empresa Beta:

  • 42

    PSICLOGA A: scia-proprietria da Beta, atua na gesto da empresa e

    nas atividades de consultoria; filha do proprietrio fundador.

    PSICLOGA B: scia-proprietria da empresa, atua na organizao dos

    eventos em recursos humanos; esposa do proprietrio fundador.

    PSICLOGA C: no scia-proprietria da Beta e no possui vnculo

    empregatcio com a empresa; atua nos servios de avaliao psicolgica, nos

    cursos abertos e na organizao dos eventos de em recursos humanos.

  • 43

    A CONSTITUIO DO CAMPO DE SABER PSICOLGICO: a

    filiao terica da psicologia organizacional e do trabalho

    A psicologia enquanto rea de saber se constitui como um espao de

    disperso terica e prtica que abriga uma multiplicidade fragmentada de sistemas

    tericos e propostas de interveno (FIGUEIREDO, 1996b). Para compreender

    um campo de tantas divergncias e enfoques conflitantes, diversos psiclogos tm

    buscado uma reflexo sobre o movimento histrico subjacente constituio da

    psicologia e suas implicaes no plano das prticas sociais.

    A busca pelos processos histricos que possibilitaram a emergncia de um

    saber psicolgico exige a imerso nos valores que constituem a cultura ocidental

    moderna. no espao de consolidao da sociedade moderna que o objeto de

    estudo primordial da psicologia, o indivduo, toma forma enquanto categoria do

    esprito humano (MAUSS14 apud JAC-VILELA, 2001, p. 179). A falncia das

    formas de vida coletiva do mundo feudal, reguladas pelas tradies e pela

    obedincia a autoridades inquestionveis, implicou em uma perda dos referenciais

    estveis sobre os quais se estabeleciam existncias relativamente protegidas

    (FIGUEIREDO, 1996b). No sistema feudalista, as pessoas tinham sua identidade

    associada posio na comunidade, aos laos de parentesco, de corporao de

    ofcio ou feudo a que pertenciam. Entretanto, entre os sculos XVI e XVIII, o

    contexto ocidental sofre diversas transformaes, entre as quais se pode destacar

    14 MAUSS, M. Sociologia e Antropologia. So Paulo: EPU/Edusp, 1974.

  • 44

    a quebra da hegemonia catlica, atravs do movimento da Reforma, coexistindo

    com a revoluo cientfica proporcionada pelo modelo cartesiano de produo de

    conhecimento. A consolidao da economia capitalista, baseada na propriedade

    dos meios de produo, e os movimentos polticos liberais (entre os quais se

    destaca a Revoluo Francesa) so outros aspectos fundamentais que marcam

    essa transio (JAC-VILELA, 2001). Nesse contexto, o ser humano antes

    atrelado s amarras servis do mundo feudal, transforma-se em indivduo,

    supostamente livre e soberano.

    O liberalismo aparece como um dos plos centrais na emergncia do

    espao de saber psicolgico. Figueiredo (1996a) argumenta que na articulao

    de trs eixos axiolgicos que a psicologia se constitui como campo de saber: o

    liberalismo e o romantismo em suas diversas verses, e o regime disciplinar, com

    suas propostas de regulamentao e controle da vida e do corpo.

    No plo do liberalismo, os valores e prticas do individualismo reinam

    absolutos, atravs do ideal de um eu soberano, que define, conhece e controla a

    si mesmo, delimitando caractersticas identitrias capazes de permanncia e

    invarincia ao longo do tempo. Ao plo do romantismo, pertencem os valores da

    espontaneidade impulsiva, da singularidade, das identidades atravessadas pelas

    foras da natureza e da histria. E, ao plo do regime disciplinar, que acaba se

    sobrepondo aos demais, pertencem as prticas de poder que se exercem tanto

    sobre as identidades reconhecveis segundo o princpio da razo funcional, quanto

    sobre as identidades constitudas ao sabor das determinaes contextuais. Nas

    relaes de complementaridade e conflito que unem e separam cada um desses

    plos que se configura um espao no qual as experincias individuais e coletivas

  • 45

    ganham outro sentido. Esse cruzamento complexo, que o autor denomina como o

    territrio da ignorncia (FIGUEIREDO, 1996a, p.149), balizava e baliza os

    processos de constituio subjetiva.

    Para este mesmo autor, a falncia das tradies histricas possibilitou a

    instaurao do projeto epistemolgico da modernidade, como uma nova instncia

    para a produo e validao de crenas e fazeres (FIGUEIREDO, 1996b). Com a

    consolidao do positivismo nas cincias naturais, a busca por sistemas coesos,

    aptos ao exerccio dos clculos e s previses exatas, configura-se como a

    estratgia mais legtima de produo de conhecimento cientfico.

    Assim, a psicologia do sculo XIX nasce com a preocupao de alinhar-se

    com as cincias da natureza e encontrar no homem o prolongamento das leis que

    regem os fenmenos naturais (FOUCAULT, 2002). Essa psicologia positivista

    ancorava-se no pressuposto de que o conhecimento cientfico deve passar pelo

    estabelecimento de relaes quantitativas, pela construo de hipteses e pela

    verificao experimental. O mtodo experimental agiria como uma espcie de

    purificador, permitindo a construo de um sujeito epistmico pleno, livre de

    quaisquer determinismos naturais ou sociais (FIGUEIREDO, 1996b). Esse

    conhecedor ideal, cone do liberalismo, seria capaz de construir sistemas

    representacionais lgicos e coesos que se tornariam garantias de certezas sobre o

    mundo.

    O que surgia como promessa de legitimidade, acabou criando um parodoxo

    que marca a produo de conhecimento na psicologia at hoje. Buscando

    reconhecimento, a psicologia se props uma tarefa contraditria: submeter a vida

    interior do indivduo ao domnio tcnico obtido atravs da descoberta de leis e

  • 46

    regularidades, mas partindo do pressuposto de que a subjetividade anti-cientfica

    (senso comum da era moderna). Em outras palavras: se a psicologia no se

    propusesse a controlar seu objeto de estudo, no se caracterizava enquanto

    cincia natural; entretanto, o seu objeto de estudo era justamente aquilo que as

    cincias naturais consideravam hostil prtica imparcial de pesquisa

    (FIGUEIREDO, 1997).

    Controlar, adaptar e racionalizar so os objetivos primordiais de uma

    psicologia que persegue o ideal de rigor e de exatido das cincias da natureza.

    Embora o projeto pioneiro de Wundt englobasse a pesquisa em psicologia

    experimental (parte das Naturwissenschaften15) e a pesquisa em psicologia social

    (parte das Geisteswissenschaften16), a gerao de seus discpulos relega a

    segundo plano os estudos socioculturais do fundador e opera algumas

    transformaes conceituais que marcam todo o desenvolvimento posterior da

    psicologia. Nos estudos subseqentes, os pesquisadores positivistas substituem a

    conscincia pelo organismo como foco de anlise. Essa mudana foi um passo

    importante para se considerar a psicologia como parte das cincias naturais e

    marcar a transio da filosofia para a biologia como disciplina-me da psicologia

    (FARR, 1998). Desse modo, o desenvolvimento posterior da psicologia se d nos

    moldes de uma perspectiva funcionalista, que concebe a adaptabilidade como

    sinalizador de sade mental.

    No mbito do trabalho, o primeiro texto que discute as relaes entre

    psicologia e o contexto laboral data do incio do sculo XX. O livro de Hugo

    15 Corresponde, no mundo de fala inglesa, s cincias naturais. 16 rea de estudo das cincias humanas e sociais.

  • 47

    Mnsterberg17, publicado em 1913, tinha como objetivo apresentar a contribuio

    da psicologia para o campo industrial em expanso (SPINK, 1996). Nesse perodo

    de consolidao da razo cientfica, principalmente nos Estados Unidos, a

    premissa de que para cada problema haveria uma soluo racional se tornou

    ponto de partida para a psicologia aplicada. Ocorreu uma ciso artificial entre a

    construo experimental de uma base conceitual e a aplicao desta a problemas

    especficos. Esse caminho unidirecional que parte da teoria legitimada

    cientificamente para a sua operacionalizao em um mundo que precisa ser

    consertado, aliado a uma supervalorizao da eficincia tcnica em uma

    organizao vista como mquina, contribuem para que a expanso da psicologia

    no mundo dos negcios ocorra sem grandes problemas:

    Qualquer possvel tenso entre os valores do psiclogo e o novo campo em expanso foi aliviada por uma ideologia profissional e gerencial voltada importncia da satisfao pessoal para o indivduo alocado num posto de trabalho que melhor para suas habilidades (SPINK, 1996, p. 179).

    O cenrio no setor produtivo era especialmente favorvel aproximao

    com a psicologia. Os princpios do taylorismo enfatizavam a seleo de homens

    com aptides necessrias cada atividade, a instruo dos trabalhadores eleitos

    a fim de evitar o gesto intil e a perda de tempo, e a estimulao mxima dos

    trabalhadores produo (PATTO, 1984). Seleo, treinamento e motivao so

    as trs noes essenciais para uma atuao sob a perspectiva taylorista, e

    pautada pela lgica da Escola da Administrao Cientfica que a psicologia se

    insere no espao laboral. 17 MNSTERBERG, H. The psychology of industrial efficiency. Boston: Houghton Mifflin, 1913.

  • 48

    A inquestionvel neutralidade da cincia e da tcnica, aliada valorizao

    das competncias individuais, funcionaram como um eficiente instrumento de

    incremento da produtividade e dissociao dos laos de solidariedade entre os

    trabalhadores. Entretanto, o crescente agravamento dos conflitos nas relaes

    laborais, o decrscimo da produo e os altos ndices de absentesmo e

    afastamento por doenas indicavam que ainda faltavam pressupostos que

    garantissem s organizaes uma aparncia mais dinmica, saudvel e produtiva.

    Surge, ento, uma corrente de pensamento, idealizada pelo psiclogo australiano

    Elton Mayo, que apontava para a necessidade de ampliar a compreenso sobre

    os fatores psicolgicos relacionados ao desempenho. Baseada no princpio da

    cooperao entre diversos nveis hierrquicos, a ento chamada Escola das

    Relaes Humanas consolida a participao da psicologia nas organizaes com

    o objetivo de identificar, canalizar e dissolver os conflitos relacionados ao trabalho.

    Segundo Spink (1996), o potencial conflitivo entre a influncia taylorista na

    psicologia e os pressupostos da Escola das Relaes Humanas no aconteceu na

    prtica a as duas tendncias acabaram por coexistir, criando to somente uma

    falsa dicotomia entre os chamados psiclogos tecnicistas e os humanistas.

    a partir do Movimento das Relaes Humanas que a aproximao com a

    produo terica da psicologia social norte-americana se consolida (JACQUES,

    1999). Estudos sobre atitude, motivao, liderana e comportamento grupal

    desenvolvidos por essa vertente da psicologia social foram essenciais s prticas

    da ento chamada psicologia industrial. Os princpios de equilbrio, adaptao e

    cooperao norteiam as atividades propostas e se fundamentam em pressupostos

    associados perspectiva funcionalista da psicologia social e ao modelo biolgico.

  • 49

    Esse modelo inspira o uso da expresso organizao, que se difunde e se

    consolida nas teorias da administrao, expressando a concepo de que

    qualquer sistema em mudana constante sobrevive somente atravs da

    adaptao ao ambiente. O enfoque sistmico alcana o psiclogo, que deixa de

    ser industrial para ser organizacional. A psicologia organizacional amplia seu

    espao de atuao e pela primeira vez assume o formato de consultoria

    empresarial (JACQUES, 1989), que vai adquirir diferentes configuraes conforme

    as demandas do contexto produtivo.

    Tanto o chamado psiclogo industrial quanto o organizacional buscam no

    instrumental da psicologia os recursos para os propsitos de adaptao do

    homem ao trabalho. Perspectiva adaptacionista identificada por Patto (1984) como

    a matriz que homogeniza a heterogeneidade da psicologia em diferentes campos

    de aplicao, e que tambm se faz presente na trajetria histrica da psicologia no

    Brasil.

    no perodo da Repblica Velha (1889-1930) que se criam as condies

    para a primeira tentativa de regulamentao da profisso de psiclogo no Brasil,

    empreendida por Waclaw Radecki. Nessa poca j eram utilizadas tcnicas ditas

    psicolgicas, como os testes para exame de doentes mentais e crianas em

    instituies mdicas e educacionais (ANTUNES, 2004). A incipiente psicologia,

    desenvolvida como auxiliar das prticas mdicas, pedaggicas e jurdicas postula

    o normal, o adequado, o adaptado, ela se inclina sobre os obstaculizadores da

    ordem para melhor os examinar18 (JAC-VILELA, 2001, p. 183).

    18 Grifos da autora.

  • 50

    Em 1924, Radecki inicia seu trabalho de criao de um Laboratrio de

    Psicologia Experimental na Colnia dos Psicopatas do Engenho de Dentro.

    Radecki pretendia transformar o Laboratrio em Instituto de Psicologia, no qual

    deveria funcionar a Escola Superior de Psicologia, destinada formao de

    profissionais da rea. Seu projeto foi concretizado em 1932, quando o Decreto-Lei

    21.173 criou o Instituto de Psicologia, destinado, principalmente, investigao

    experimental do fenmeno psquico (ESCH; JAC-VILELA, 2001). Entretanto, o

    Instituto teve vida curta. Em apenas sete meses, o projeto pioneiro de Radecki foi

    frustrado pela falta de recursos oramentrios e pela presso de grupos mdicos e

    catlicos.

    Ainda na dcada de 1920, surgem as primeiras experincias sistemticas

    de aplicao da psicologia s questes do trabalho no Brasil (ANTUNES, 2003).

    Entretanto, na dcada de 1930 que o desenvolvimento dessa rea se intensifica.

    O crescente processo de industrializao iniciado no governo de Getlio Vargas

    traz novas preocupaes sobre o controle do fator humano, especialmente no que

    diz respeito ao desenvolvimento de aptides e ao aprimoramento tcnico do

    indivduo no trabalho:

    A Psicologia veio inserir-se num panorama em que a preocupao com a maximizao da produo tornava-se um imperativo, contribuindo com a produo de conhecimentos e tcnicas necessrias ao empreendimento da racionalizao do trabalho e da administrao cientfica do processo produtivo (ANTUNES, 2003, p. 88).

    A busca por novas formas de gesto que contivessem o crescente processo

    de organizao operria tornou-se uma preocupao de diversos empresrios

  • 51

    brasileiros. So os princpios tayloristas/fordistas que servem de base e

    justificativa para a implementao de novos regimes disciplinares nas indstrias. O

    vnculo da psicologia com os pressupostos da Escola de Administrao Cientfica

    do processo produtivo podem ser exemplificados pelo depoimento do proprietrio

    da Alfa quando define o que era trabalhar em psicologia em meados da dcada de

    1950:

    (...) trabalhar na rea de psicologia, que seria recrutamento, seleo e treinamento (...) e mais alguma coisa ligada ainda rea de otimizao de servios, racionalizao de servios, estudos de tempos e movimentos, era por a a coisa.

    Como parte desse projeto de modernizao e cientifizao dos processos

    administrativos, houve uma nova iniciativa de regulamentao das prticas

    psicolgicas (ANTUNES, 2003). Myra y Lpez, fundador do Instituto de Seleo e

    Orientao Profissional da Fundao Getlio Vargas (ISOP/FGV), em 1947, um

    dos profissionais que impulsiona a nova tentativa de profissionalizao da

    psicologia (ESCH; JAC-VILELA, 2001). O ISOP funcionava como laboratrio,

    escola e centro irradiador de certa produo psicolgica, ampliando e espectro de

    aplicaes e derivaes tecnolgicas da mesma (ESCH; JAC-VILELA, 2001, p.

    19). Preocupava-se, prioritariamente, em auxiliar os psicotcnicos a encontrar

    solues para problemas de ajustamento dos homens a uma sociedade em pleno

    processo de industrializao. O surgimento do ISOP marca um momento histrico

    no qual a psicologia industrial e organizacional comea a se estabelecer como

    territrio especial de pesquisa e interveno (CARVALHO; SANTOS, 2003).

  • 52

    A formao essencialmente prtica do ISOP salientada pelo proprietrio

    da Alfa, ex-aluno da instituio:

    A preocupao era essencialmente prtica, essencialmente prtica, primeira coisa assim. (...) Eles pegaram todos os testes que tinham dentro do ISOP e ns nos submetamos ao teste, conferamos o teste, vamos porque tnhamos errado e como funcionava o teste. E assim passvamos por todos os testes e depois passamos a aplicar os testes. E assim foi. E a fomos pra personalidade, tudo acompanhado por leitura e reunio de esclarecimento. No havia, no era um curso formal.

    A nfase da formao na psicometria e a superioridade do ensino do ISOP

    na anlise estatstica de testes so referidas pelo proprietrio fundador da Alfa:

    E, por exemplo, eu disse melhor que a nossa faculdade, pelo menos em estatstica. Um dia eles pegaram l e disseram: olha vocs descem vo no arquivo e eu quero que vocs peguem 100 dossis cada um. De fulanos que se submeteram a testes l. (...). E trouxemos os 100 envelopes e a, a partir da, ns aprendemos a fazer distribuio de freqncia, como que funcionava a distribuio de freqncia, clculo de mdia, mediana, moda, estabelecer desvio padro, quartis, decis, percentis. Depois de tudo isso feito, a partamos pra estabelecer o estudo das correlaes, a correlao de um teste de inteligncia verbal com um outro teste que tambm presumidamente mensuraria a inteligncia verbal, ou o fator V. Ento qual o tipo de saturao teria o teste, tem correlao ou no tem correlao. Ento, voc v assim, era muito prtica, muito objetiva, essa foi a formao.

    O mesmo participante tambm destaca a qualidade e a seriedade da

    formao no ISOP:

    Eles tm uma liberdade do aprendizado e com uma coisa assim psico muito difcil de se ensinar. E funciona assim: tem que ler, ler, ler, tem que estudar, isso era o princpio deles.

  • 53

    A tentativa de oficializar a prtica profissional do psiclogo envolve o ISOP

    e o Instituto de Psicologia da Universidade do Brasil. Em 1953, surge o primeiro

    curso de psicologia, na Pontifcia Universidade Catlica do Rio de Janeiro (PUC-

    RJ). Frente s crescentes movimentaes pela regulamentao da profisso, o

    Conselho Nacional de Educao solicita s Associaes e Institutos de Psicologia

    sugestes referentes legalizao do exerccio profissional. Em resposta essa

    solicitao, foi criado, no mesmo ano, o primeiro anteprojeto de Lei de

    normatizao da categoria, elaborado em conjunto pela Associao Brasileira de

    Psicotcnica (ABP) e pelo ISOP (ESCH; JAC-VILELA, 2001).

    Esse projeto tornava evidente a distino entre cincia bsica e aplicada

    em sua proposta de currculo mnimo, refletindo o embate entre os tericos

    (representados pelos profissionais do Instituto de Psicologia da Universidade do

    Brasil e da PUC-RJ) e os prticos (representados pelos profissionais da ISOP).

    Entretanto, o Conselho Nacional de Educao rejeita o projeto de 1953, no

    permitindo a atuao do psicologista na rea clnica sem a superviso de um

    mdico. Aps algumas reformulaes e tentativas de conciliar os interesses

    corporativistas mdicos com a regulamentao da prtica psicolgica, uma nova

    proposta elaborada, substituindo o exerccio da prtica psicoterpica pela

    soluo de problemas de ajustamento como funo do psiclogo. Como refere

    Esch e Jac-Vilela (2001, p. 19):

    Com pequenas reformulaes, este o contedo da Lei 4119, finalmente aprovada em 27 de agosto de 1962. Junto com ela, o Conselho Federal de Educao aprova o parecer 403, que estabelece o currculo mnimo e a durao do curso de Psicologia.

  • 54

    No Rio Grande do Sul, o primeiro curso de psicologia regulamentado foi o

    da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Esse curso

    aparece como a base da formao em psicologia para todos os psiclogos

    entrevistados, de ambas as empresas. Fundado no dia 30 de junho de 1953, foi o

    primeiro curso de psicologia criado na regio sul do pas19 em nvel de ps-

    graduao. Como curso de graduao, passou a funcionar em 1963. Para os

    fundadores das empresas Alfa e Beta, era a nica opo de formao disponvel

    em psicologia naquele perodo. O proprietrio da Alfa relata o dia em que

    descobriu que a PUCRS oferecia o curso de psicologia:

    E a pra total felicidade minha, um dia eu resolvi e fui na PUCRS, que era no Rosrio. E o curso de psicologia era um curso de ps-graduao, eu tinha um curso tcnico (...), ento no podia nem fazer o curso de ps-graduao em psicologia. Ento eu fui na PUCRS pensando, estrategicamente, eu disse: ah, eu vou fazer um curso qualquer de filosofia (...), sei l, um curso que tenha eu fao, que depois eu fao o ps-graduao em psicologia (...). E quando eu cheguei na secretaria do Rosrio, l da PUCRS, eu disse: vim me inscrever num curso e queria fazer psico, mas no tem psico e ele (o secretrio): quem que disse que no tem psico, comeou psico agora e t encerrando (a matrcula) hoje. E por artes do demo, ele aceitou o meu nome e eu entrei no curso de psicologia. (...) Primeira turma.

    Com a regulamentao da profisso no Brasil e com os egressos dos

    primeiros cursos de graduao, a psicologia amplia seu campo de aplicao,

    inserindo-se em diversas reas de trabalho. A industrializao crescente no Brasil

    foi a grande propulsora para o desenvolvimento da chamada psicologia

    organizacional e do trabalho, que se configurou como uma rea historicamente

    importante para a profissionalizao da cincia psicolgica. Entretanto, o vnculo

    19 Disponvel em www.pucrs.br (acesso em 15/02/2006).

  • 55

    da psicologia com o espao industrial/organizacional sempre foi considerado

    problemtico para a interveno do psiclogo. Duas razes principais podem ser

    apontadas para essa dificuldade. Primeiramente, o campo de saber psicolgico se

    configura em estreita conexo com as prticas mdicas e educacionais, da a

    maior legitimidade das intervenes nas reas clnica e de aprendizagem. Aliado a

    isso, nas organizaes privadas os dilemas do capital se apresentam em sua

    forma mais ntida, entrando em choque com os iderios humanistas da psicologia

    (SPINK, 1996).

    Os questionamentos que atingem a psicologia organizacional e do trabalho

    emergem de um movimento crtico que se consolida em meados da dcada de

    1970. Esse movimento, que prope uma reviso dos pressupostos

    epistemolgicos, tericos e metodolgicos que aliceram a prtica legitimada de

    cincia, alcana a psicologia social, especialmente na Amrica Latina. Um dos

    principais reflexos desse processo foi a transformao do olhar direcionado s

    prticas em psicologia, especialmente em psicologia organizacional e do trabalho.

    Embora as crticas possam ser generalizadas a todos os campos de insero do

    psiclogo, a prtica de psicologia organizacional tem sido a mais questionada,

    principalmente pela explicitao de seus componentes ideolgicos (JACQUES,

    1999).

    A anlise crtica aponta que os psiclogos organizacionais tm,

    historicamente, concebido o trabalho como conjunto de categorias simplificadas

    (gesto, tarefa, funo, hierarquia) e se envolvido na administrao de conflitos e

    competncias relacionadas diviso de trabalho (SAMPAIO; CODO, 1995). A

    ltima pesquisa nacional oficial sobre o psiclogo brasileiro indica que a grande

  • 56

    maioria dos psiclogos que atuam na rea organizacional referiu executar as

    atividades de seleo, aplicao de testes, recrutamento, acompanhamento de

    pessoal e treinamento (Conselho Federal de Psicologia, 1988).

    Uma das explicaes para que a prtica do psiclogo organizacional e do

    trabalho se volte ao estudo isolado de temas, sem a problematizao do

    fenmeno social, recai, em parte, na ciso artificial que se estabelece desde as

    primeiras configuraes curriculares: o pressuposto original de que a psicologia

    problematizada onde se teoriza e no onde se aplica nega a possibilidade de uma

    prxis voltada compreenso ativa de um mundo social processual (SPINK,

    1996). justamente atravs do rompimento da imagem negativa de trabalho

    reduzido reproduo do capital, que uma nova aproximao entre a psicologia

    organizacional e a psicologia social crtica se delineia. A nfase no trabalho, como

    constituinte do humano, e a prtica da psicologia organizacional e do trabalho

    como parte do fenmeno do trabalho e no alheio a ele permite uma tentativa de

    reconfigurao do campo. Como refere Spink (1996, p. 183):

    (...) cabe aos psiclogos que militam no campo organizativo a tarefa mais difcil da legitimao do fenmeno do trabalho e das formas que a atividade humana assume com o espao de pesquisa e produo de conhecimento no sobre o trabalho ou sobre as organizaes, mas sobre a psicologia da vida associativa, a psicologia social a psicologia. Cabe a estes rejeitar a falsa separao da teoria e da prtica, do puro e do aplicado e sua hierarquizao profissional implcita. (...) Poder, dominao, ideologia, conflito social e de classe no habitam um espao prprio alheio academia; os campos de saber tambm tm seu cotidiano.

    Dentro da proposta de problematizar a construo das prticas em

    psicologia organizacional e do trabalho como parte do fenmeno do trabalho,

  • 57

    atravessada por configuraes histricas, polticas e socioeconmicas, torna-se

    absolutamente imprescindvel uma anlise das transformaes que marcam os

    processos e relaes laborais nas ltimas dcadas.

  • 58

    AS CONFIGURAES DO TRABALHO CONTEMPORNEO: as

    imbricaes socioeconmicas, histricas e polticas que norteiam

    a prtica em psicologia organizacional e do trabalho

    Falar sobre o trabalho humano um desafio contnuo. A atividade produtiva

    engendra possibilidades de exerccio da subjetividade e de inscrio nas relaes

    sociais, assumindo sempre um significado scio-cultural (TITTONI, 1994). As

    relaes laborais so permanentemente ressignificadas a partir de diferentes

    contextos histricos e socioeconmicos e de diferentes perspectivas de anlise.

    Foi no contexto de fortalecimento das sociedades industriais que a noo

    de trabalho foi associada sua forma institucionalizada, o emprego (LIEDKE,

    1997). A relao social de assalariamento tornou-se o modelo desejvel de

    trabalho, vinculado qualidade e proteo social. Embora o trabalho assalariado

    tenha assumido configuraes diferenciadas de acordo com o grau de

    desenvolvimento das economias e da organizao dos trabalhadores na luta por

    direitos e protees sociais, o perodo posterior segunda guerra mundial

    fortaleceu a viso otimista relacionada ao assalariamento. Aumento de

    produtividade, ampliao do nvel global de emprego, expanso dos servios

    pblicos e polticas de bem-estar social trouxeram dinamismo atividade

    econmica em diversas naes ocidentais (GALEAZZI, 2002).

    Entretanto, a aparente estabilidade capitalista do ps-guerra deu espao a

    um processo de transformao descrito por Harvey (2004, p. 117): So

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    abundantes os sinais e marcas de modificaes radicais em processos de

    trabalho, hbitos de consumo, configuraes geogrficas e geopolticas, poderes e

    prticas do Estado, etc. A concepo que compreende as relaes

    contemporneas de trabalho em um amplo processo de reestruturao,

    impulsionado pelo quadro crtico que envolveu a economia capitalista dos anos de

    1970, parece ser um consenso entre autores diversos (CASTEL, 1998; ANTUNES,

    1999; SINGER, 1999). O contexto de estagnao e recesso na economia,

    agravado pelas presses inflacionrias impostas pelo cartel de exportadores de

    petrleo, deflagrou uma crise profunda em pases que anteriormente ostentavam

    intenso ritmo de crescimento econmico (SINGER, 1999). A concorrncia no livre

    comrcio internacional, caracterizada por disputas intensificadas entre os grandes

    grupos transnacionais e monopolistas, e a necessidade de controlar as lutas

    sociais (em um perodo em que as greves atingiram seu auge) desencadeou uma

    grande reviravolta no processo produtivo, cujo impacto se estende aos dias atuais

    (ANTUNES, 1999). Reviravolta que se caracteriza pelo surgimento de diversas

    estratgias institucionais e organizacionais que objetivam a retomada da

    lucratividade e da produtividade.

    Este conjunto de estratgias definido essencialmente por dois fatores: as

    transformaes na organizao do processo de trabalho e a introduo de

    tecnologia microeletrnica, que possibilitam um ajuste mais rpido s exigncias

    de um mercado instvel e cada vez mais competitivo (BAUMGARTEN, 2002). A

    constituio de formas flexveis de gesto do processo produtivo e a

    implementao intensificada de inovaes tecnolgicas so aspectos importantes

    do processo de reorganizao capitalista, que envolve tambm o desenvolvimento

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    de um aparato ideolgico que centraliza no indivduo o poder de ao

    transformadora, remetendo a atuao coletiva a um plano secundrio (ANTUNES,

    1999).

    Essas mudanas, iniciadas nos anos 70, constituem-se em um tema

    controverso, com diversas possibilidades de compreenso. Antunes (1999) discute

    tal controvrsia quando apresenta as perspectivas de diferentes tericos. Cita

    Sabel e Piore20 como defensores das recentes transformaes na dinmica

    produtiva, caracterizadas por esses autores como uma forma de relao entre

    capital e trabalho mais favorvel do que a do modelo taylorista/fordista. A

    produo flexvel possibilitaria o surgimento de um trabalhador mais qualificado,

    participativo, multifuncional, polivalente e satisfeito com o seu espao de trabalho.

    Contrapondo-se essa perspectiva, Tomaney21 (apud ANTUNES, 1999)

    sinaliza que as mudanas no estariam ocorrendo em direo a uma nova

    concepo das relaes de trabalho, mas sim em prol de uma intensif