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A comunidade Gülen no Brasil: configurações locais de um movimento religioso
turco transnacional1
Liza Dumovich – PPGA/UFF/RJ
INTRODUÇÃO
Esse artigo se fundamenta no trabalho de campo que realizo há cerca de um ano e
meio para o meu doutorado em Antropologia, na comunidade Gülen2 no Brasil. A tese
trata da relação íntima entre a prática de diversas atividades dentro e fora da comunidade
e a experiência corporificada pelos seus membros. A análise enfoca a dimensão da
experiência na corporificação de disposições morais pelos sujeitos, para além da
experiência unicamente religiosa, pois essas disposições corporificadas são compostas
pelas noções de conhecimento científico, modernidade, exemplaridade e
responsabilidade, por exemplo, além da noção de valores morais islâmicos. A pesquisa
trata, portanto, das situações, ações e relações em que os membros da comunidade Gülen
no Brasil se envolvem e levanta a questão de como os selfs se engajam nessas experiências
distintas, embora conectadas, e as articulam na construção de sujeitos morais.
A comunidade Gülen no Brasil se caracteriza por fazer parte do Movimento
Hizmet3 (“serviço”, em turco) ou Movimento Gülen, extensamente estudado por
pesquisadores de vários países na última década, inclusive por acadêmicos ligados a ele.
As definições do movimento presentes nos textos acadêmicos variam conforme a ênfase
dada ao seu pertencimento religioso ou ao seu projeto educacional, como atestam os
exemplos a seguir: “movimento educacional islâmico” (Agai, 2007, p. 149); “movimento
islâmico de orientação civil” (Vicini, 2014, p. 1); “movimento missionário-educacional
transnacional” (cf. Vicini, 2013, p. 24); “movimento educacional de inspiração religiosa”
(Yavuz, 2003, p. 19); e ainda “uma rede turco-muçulmana educacional e ativista baseada
na caridade” ou “movimento educacional modernista turco sunita” (Tittensor, 2012, p.
163) etc. A caracterização do movimento também inclui o reformismo islâmico, o
transnacionalismo e, às vezes, o aspecto missionário. Apesar de variadas, as definições
dadas pelos diversos pesquisadores do Movimento Hizmet compartilham dois pontos
básicos: o islã como fundamento e a atuação através de instituições de educação secular.
1 Trabalho apresentado na 30ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto
de 2016, João Pessoa/PB. 2 A comunidade Gülen é nomeada segundo o seu mentor, o líder religioso turco Fethullah Gülen, e se refere
aos seus seguidores, reunidos em torno de uma missão educacional-religiosa, como será esclarecido a
seguir. 3Hizmet ou Hizmet Hareketi é como os membros da comunidade Gülen no Brasil se referem ao movimento
de que fazem parte, como será esclarecido a seguir.
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Partindo do princípio de que a pesquisa etnográfica recai sobre as relações entre
os agentes religiosos, as suas práticas e a interação com a sociedade brasileira, ao invés
de incidir sobre o Movimento Hizmet de forma geral, aqui usarei a expressão
“comunidade Gülen”, segundo a definição de Max Weber (2000, p. 25), para quem a
relação comunitária se constitui quando e na medida em que a relação social envolva o
“sentimento subjetivo dos participantes de pertencer (afetiva ou tradicionalmente) ao
mesmo grupo.” Quando me referir à ideia de “serviço” a Deus ou à humanidade, de acordo
com a interpretação nativa, usarei o termo hizmet, com “h” minúsculo. Ao usar Hizmet,
com “H” maiúsculo, estarei fazendo menção à categoria nativa usada pela comunidade
para se referir ao Movimento de forma geral.
A comunidade Gülen começou a se formar no final da década de 1970, a partir de
um círculo de estudantes reunidos em torno do líder religioso carismático Fethullah
Gülen, e hoje é considerado por alguns acadêmicos, mesmo os que não são ligados a ele,
o maior e mais poderoso grupo islâmico na Turquia, onde sua presença é substancial nos
setores econômicos, midiáticos e educacionais, e o mais influente movimento turco-
islâmico no mundo (Vicini, 2013; Agai, 2007). Esse poder lhe rendeu a oposição ferrenha
do Presidente da Turquia Recep Tayyip Erdogan, antes um forte aliado, que, após 2014,
passou a usar o termo “Estado paralelo” ou “estrutura paralela” para se referir aos
seguidores de Fethullah Gülen.
Com o colapso da União Soviética, em 1991, seguidores de Gülen expandiram
seu modelo de educação para os territórios da Ásia Central (como o Turcomenistão e o
Uzbequistão) que se vinculam histórica e culturalmente à Turquia, e também para os
Bálcãs. O empreendimento bem-sucedido dentro e fora da Turquia estimulou a abertura
de escolas em mais de 100 países pelos cinco continentes. De acordo com Fabio Vicini
(2013, p. 24), a comunidade Gülen é conhecida mundialmente como um “movimento
missionário-educacional transnacional”, devido aos seus centros culturais e escolas –
instituições seculares que adotam o currículo nacional onde quer que estejam –
espalhados por vários países, embora na Turquia a comunidade Gülen esteja presente em
diversos setores econômicos/financeiros, midiáticos e culturais, além dos educacionais.
De fato, o setor educacional é onde a presença da comunidade, pelos quatro cantos do
mundo, se faz de forma mais difundida e vigorosa, pois é através da educação que ela
pretende implementar seu “projeto de reforma sociocultural” (Fabio Vicini, 2013, p. 24).
Apesar de haver uma profícua produção acadêmica sobre o Hizmet e os
ensinamentos do líder religioso Fethullah Gülen, dentro e fora da Turquia, a maioria dos
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trabalhos nas Ciências Sociais tende a se referir às dimensões ideológicas do Movimento
ou aos seus efeitos políticos nos contextos locais e globais. Eu espero contribuir para essa
discussão com uma perspectiva antropológica, como alguns já fazem, como o
antropólogo Fabio Vicini (2013; 2014), permitindo uma visão para dentro da comunidade
Gülen no Brasil. Essa aproximação nos mostrará que a organização, as atividades e a
própria vida em comunidade são o resultado de constantes negociações com a realidade
cultural e social local. Desse modo, meu argumento é que o Hizmet enquanto um
movimento transnacional de fundo religioso somente pode ser entendido a partir de uma
articulação entre o que é comum ao Movimento e as particularidades das comunidades
que se formam e atuam em diferentes contextos políticos, econômicos e socioculturais.
Eu estou em contato com a comunidade Gülen no Brasil desde 2012, quando
iniciei o curso de língua turca na UFF, ministrado por um dos professores da comunidade.
Em 2013, eu fiz uma viagem para a Turquia com um grupo de acadêmicos, organizada
pelo Centro Cultural Brasil-Turquia, instituição central da comunidade, e continuei em
contato com alguns dos seus membros, sobretudo, os estudantes e as estudantes do Rio
de Janeiro, por morar lá. Porém, comecei o trabalho de campo sistemático no início de
2015, quando eu passei a visitar frequentemente a comunidade em São Paulo, onde ela
está concentrada.
Primeiro, delinearei brevemente o contexto brasileiro onde a comunidade Gülen
se insere. Depois, farei uma descrição da organização, das instituições e atividades
comunitárias, assim como da sua articulação com indivíduos e grupos da sociedade local.
Por fim, farei uma análise preliminar da construção dos sujeitos morais a partir das
múltiplas disposições por eles corporificadas.
O CONTEXTO LOCAL
No final do século XIX e início do século XX, os milhares de imigrantes do
Oriente Médio que aportaram no Brasil foram denominados “turcos” pelas autoridades
locais, por serem súditos do Império Otomano, como mostravam seus documentos. No
entanto, esses “turcos” não eram de fala nem cultura turcas, e sim árabes e, mais tarde,
com o colapso do Império Otomano e a formação dos Estados-nação no Oriente Médio,
seriam reconhecidos como libaneses, sírios e palestinos. Porém essa categoria “turco”
ainda aparece em determinadas situações nos dias de hoje (Pinto, 2010a).
Pesquisas acadêmicas sobre as comunidades libanesas, sírias e palestinas no Brasil
revelam uma enorme diversidade entre elas, inclusive de confissões religiosas – sejam
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elas cristãs (católicos romanos, maronitas, ortodoxos antioquinos e melquitas) ou
muçulmanas (sunitas, xiitas, drusas e alauítas) (Pinto, 2010a, 2010b e 2011; Chagas,
2006; Ferreira, 2007; Dumovich, 2012). Portanto, a maioria dos muçulmanos no Brasil é
constituída por árabes e seus descendentes, além do crescente número de brasileiros sem
ascendência árabe convertidos ao islã, através de diferentes trajetórias pessoais,
sobretudo, a partir do ano 2000. Assim, as comunidades muçulmanas estudadas ou eram
majoritariamente árabes ou tinham os árabes ocupando os cargos de liderança religiosa e,
portanto, informando o quadro interpretativo do islã dominante entre os seus membros.
Nos últimos anos, muçulmanos africanos também passaram a fazer parte desse campo
religioso multicultural e multiétnico, onde a comunidade Gülen se insere como mais uma
porta de entrada do islã no país.
A COMUNIDADE GÜLEN NO BRASIL
A chegada
Foi em 1999 que um seguidor de Fethullah Gülen veio, pela primeira vez, da
Turquia para o Brasil. Ele ensinava língua turca para estudantes universitários como parte
de um acordo internacional entre a Fatih University, em Istambul, e a Universidade de
São Paulo, até que, no ano seguinte, ele comprou uma escola com a ajuda de empresários
turcos. Porém, tudo era muito difícil àquela época, pois a escola já tinha dívidas
anteriores, nem ele nem os quatro estudantes turcos que vieram compor esse primeiro
grupo, falavam português, e eles não sabiam como abordar os brasileiros – ou seja, eles
ainda não tinham formado uma rede local que pudesse apoiá-los e orientá-los. Assim,
pouco tempo depois, a escola foi fechada e todos retornaram à Turquia. Entretanto, um
dos estudantes voltou ao Brasil para se casar com uma jovem brasileira, de mãe libanesa
e pai turco, que ele havia conhecido aqui no Brasil, se tornando o primeiro e único
seguidor de Gülen a se fixar no país até 2004, quando chegaram mais dois turcos para
iniciar atividades ligadas ao Movimento. Dessa vez, eles contavam com um membro
falante do português, com sua família brasileira e uma pequena rede local.
Organização
Desse modo, desde 2004, a comunidade Gülen no Brasil tem se estabelecido em
quatro das maiores cidades do país: São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e Belo Horizonte.
A sua configuração organizacional inclui um centro cultural e uma câmara de comércio
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em cada cidade, um centro islâmico, também chamado de mesquita por alguns, e um
colégio internacional. Além de instituições próprias, a comunidade tem estabelecido
parcerias com instituições brasileiras privadas e públicas, principalmente educacionais e
culturais, como universidades, escolas e museus, por exemplo. Hoje, a comunidade Gülen
no Brasil conta com cerca de 240 membros, incluindo as crianças, sendo
aproximadamente 38 famílias, 15 estudantes mulheres e 40 estudantes homens, cujas
famílias permanecem na Turquia. Esses números são apenas aproximações, porque não
são fixos, há sempre alguém chegando, alguém partindo e crianças nascendo.
A fim de entender como a comunidade Gülen no Brasil se organiza e opera no
contexto local, eu proponho um olhar mais aproximado da comunidade de São Paulo,
onde ela é mais numerosa. Como é impossível descrever todas as suas atividades, pois a
comunidade é extremamente ativa e produtiva, eu vou descrever uma imagem sua um
tanto limitada.
Instituições
O CCBT
A instituição central da comunidade Gülen no Brasil é o CCBT (Centro Cultural
Brasil-Turquia), com matriz em São Paulo: um centro cultural que promove inúmeras
atividades direcionadas a diferentes nichos da sociedade brasileira, como cursos de língua
e cultura turcas, culinária turca, arte Ebru, música turca, palestras e apresentações sobre
a Turquia, sua história e atualidades, sobre o próprio Movimento Hizmet; promove
também o que eu chamo aqui de jantares “informativos” para apresentar as ideias e os
objetivos do Movimento, viagens guiadas à Turquia etc. As atividades do CCBT são
majoritariamente direcionadas aos brasileiros, como acadêmicos, educadores, jornalistas,
políticos, e pessoas ligadas ao mundo da arte e cultura. Recentemente, o CCBT teve suas
esferas de ação divididas em 4 plataformas específicas: a plataforma de jovens, a de
mídia, a de mulheres e a de responsabilidade social. Através dessas cada vez mais
diversificadas atividades, laços pessoais e institucionais são formados e uma rede de
relações sociais é constantemente construída e ampliada.
Uma importante ação do CCBT é a doação de toneladas de carne helal a
comunidades carentes na comemoração da Festa do Sacrifício. Desde 2011, seus
dirigentes organizam essa distribuição de carne em parceria com as autoridades oficiais
locais. Eu tive a oportunidade de participar de algumas delas. Eles encomendam uma
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grande quantidade de carne bovina (já que no Brasil a carne de carneiro não é algo
comum) a um abatedouro de São Paulo que segue os preceitos islâmicos de abate e
distribuem as peças de carne diretamente dos caminhões do fornecedor para as pessoas,
previamente selecionadas nessas comunidades carentes. Junto à mercadoria, vai um papel
com uma explicação sobre a Festa do Sacrifício e o significado dessa distribuição para o
islã, fazendo uma conexão com as outras religiões abraâmicas, de forma a criar uma
aproximação entre o cristianismo, fortemente presente nessas comunidades carentes, e o
islã. A doação da carne helal é feita por empresários turcos, que eventualmente vêm ao
Brasil para participar da distribuição e conhecer a comunidade local.
Outra atividade que contribui bastante para a visibilidade da comunidade Gülen
no Brasil é a comemoração do Dia da Turquia, no 29 de maio. Em 2015, por iniciativa da
comunidade, com o respaldo de um vereador de São Paulo, foi incluído esse dia na
legislação referente a datas comemorativas do Município, reconhecendo assim a presença
do recente grupo de imigrantes turcos na cidade brasileira considerada a mais cosmopolita
de todas, por abrigar uma enorme diversidade de grupos étnicos, nacionais e mesmo
religiosos; e, no presente ano, esse reconhecimento foi oficialmente estendido ao Estado.
A data é marcada por eventos comemorativos que incluem solenidades na Câmara
Municipal e na Assembleia Legislativa de São Paulo, premiações, exposições culturais e
palestras em universidades, fundações e associações, tanto públicas quanto privadas.
O CCITB
A Câmara de Comércio e Indústria Turco-Brasileira é uma instituição direcionada
a promover e facilitar as relações comerciais entre os dois países e possui, virtualmente,
filiais em todas as cidades onde há CCBT, com quem divide o espaço físico. Porém,
recentemente, a CCITB de São Paulo passou a ocupar uma casa, com quadro de pessoal
próprio. A ela se ligam instituições financeiras e comerciais vinculadas à comunidade
Gülen global, atuantes em diversos ramos.
O Colégio
Na comunidade Gülen em São Paulo, todas as crianças a partir de três anos
frequentam o Colégio Belo Futuro Internacional, pertencente à comunidade. Por isso, as
famílias com crianças acima dessa idade moram no mesmo bairro onde está o Colégio.
Ademais, alguns membros da comunidade lá trabalham como professores, coordenadores
ou diretores. No entanto, a maioria dos professores, assim como dos estudantes, são
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brasileiros. O Colégio é bilíngue português/inglês e a língua turca é ensinada apenas em
dois tempos de aula e em cursos extracurriculares. Como a língua é um elemento
fundamental da identidade turca na comunidade Gülen no Brasil, as duas horas semanais
da disciplina são complementadas por encontros lúdicos aos sábados em outra de suas
instituições, o CIDI (Centro Islâmico e de Diálogo Inter-religioso e Intercultural) , onde
as crianças da comunidade desenvolvem diversas atividades em que se fala somente o
turco.
O Colégio não oferece qualquer instrução religiosa, seguindo o padrão dos
colégios ligados da comunidade Gülen fora da Turquia, país onde o currículo geralmente
contém uma disciplina de religião por semana, como afirma Bekim Agai (2007). Os
princípios morais fundamentados na tradição islâmica são transmitidos aos estudantes
através da performance moral dos professores, durante as constantes interações entre eles,
nas diversas atividades extracurriculares, dentro e fora do Colégio.
O projeto pedagógico da comunidade vai além do espaço físico das suas
instituições e abrange um tempo maior que o horário estritamente escolar ou comercial.
Ele visa a construção de relações entre professores e estudantes, inclusive com seus
familiares, de modo a proporcionar aos jovens uma convivência efetiva com um quadro
moral e ético baseado no islã, transmitido pelas atitudes e condutas de seus professores.
A exemplaridade dos professores e das professoras é, além de um caminho pedagógico,
um discurso religioso específico à comunidade Gülen (Vicini, 2013). Todavia, é
importante frisar que o princípio da exemplaridade informa não apenas esse tipo de
interação, mas todas as relações dos membros da comunidade entre si e deles com os
brasileiros. Essa “pedagogia da exemplaridade” (Vicini, 2013) é claramente percebida na
relação entre as mulheres casadas e as estudantes universitárias da comunidade, mas pode
também ser verificada na relação das estudantes mais velhas com as mais novas.
O CIDI
O Centro Islâmico e de Diálogo Inter-religioso e Intercultural conta com um
espaço oficial que funciona como mesquita para a comunidade, sobretudo às sextas-
feiras, ao meio-dia, quando os homens se reúnem para a oração coletiva; e conta também
com um espaço de apoio, também chamado de “casa de hóspedes”, que abriga alguns dos
estudantes e serve de pouso para visitantes turcos vindos de outras comunidades Gülen.
Antes da existência do CIDI, os homens casados e os estudantes costumavam ir a uma
das mesquitas de São Paulo, frequentadas, majoritariamente, por árabes e seus
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descendentes, além de alguns brasileiros convertidos. No entanto, após a aquisição de um
espaço próprio, os homens turcos deixaram de recorrer às mesquitas de caráter árabe para
a realização de suas práticas religiosas.
Atividades pedagógicas também são realizadas nesses dois espaços, como os
sábados lúdicos com as crianças, quando se fala somente o turco, se realizam aulas de
religião e de leitura de Alcorão e se transmitem valores morais baseados no quadro
normativo do islã, segundo a interpretação de Fethullah Gülen.
O CIDI também é responsável por eventos voltados para o diálogo inter-religioso
promovidos mensalmente, o que confere à comunidade uma visibilidade dentro do campo
religioso brasileiro; por atividades beneficentes, como o recolhimento e doação de roupas
e outros artigos para refugiados sírios, por exemplo; e por receber e orientar muçulmanos
brasileiros convertidos que chegam até a comunidade por intermédio da rede de relações
sociais ou do site do CCBT. Esses muçulmanos convertidos, homens e mulheres,
participam de aulas de religião, de leitura de Alcorão e de atividades sociais, como
jantares, lanches e comemorações dentro da comunidade.
Contudo, é necessário frisar que não há uma atividade de proselitismo dentro da
comunidade, que recebe convertidos e aspirantes à conversão, oferece aulas de Alcorão e
de religião, mas não tem como um de seus objetivos a conversão de brasileiros ao islã.
Distinções: gênero e estado civil
A vida em comunidade é organizada de acordo com o gênero e o estado civil dos
indivíduos. A primeira distinção se dá entre homens e mulheres, os dois gêneros
reconhecidos dentro do grupo. Embora essa distinção também informe as interações entre
os indivíduos da comunidade Gülen e indivíduos considerados do gênero oposto de fora
da comunidade, é dentro dela que a segregação se dá de forma mais marcada, sobretudo,
entre os meninos e as meninas estudantes. Se, na universidade, uma certa interação entre
os/as estudantes da comunidade e os/as estudantes brasileiros de outros gêneros é tolerada
e mesmo inevitável, dentro da comunidade Gülen, a interação entre meninos e meninas é
fortemente evitada. Eles e elas não se cruzam e muitas vezes nem se conhecem; um grupo
nada sabe do outro, e mesmo irmãos e irmãs pouco se vêem. Apenas em eventos
específicos promovidos pela comunidade, pode acontecer de algumas meninas
participarem para ajudar na organização e, por isso, estarem no mesmo recinto que os
meninos, por sua vez, sempre presentes nos eventos. Porém, mesmo nessas ocasiões, não
há interação, e qualquer troca de olhares é forçosamente evitada.
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As regras de segregação de gênero também são observadas pelos membros
casados da comunidade: homens casados para um lado e suas respectivas esposas para
outro, quando em coletividade, como nos numerosos eventos e atividades organizados
pela comunidade. Nessas ocasiões, os convidados brasileiros, se houver, são posicionados
segundo a mesma separação espacial intergênero.
O estado civil também informa a organização da vida coletiva, ao determinar a
posição do indivíduo dentro do sistema hierárquico e os possíveis papéis a cumprir dentro
da comunidade. A regra geral é que os homens e as mulheres só se casem após terminarem
a faculdade, o que pode acontecer imediatamente após a formatura ou um pouco depois.
No caso dos homens, há estudantes de pós-graduação solteiros e casados; no entanto, no
caso das mulheres, há muitas que almejam continuar os estudos, mas se veem obrigadas
a adiar seus planos por ocasião do nascimento de filhos.
Os Abis
Os homens se dividem em dois grupos, os homens casados, ou Abiler (plural de
Abi, irmão mais velho, em turco), e os estudantes do gênero masculino, ainda solteiros.
Os Abis, a forma aportuguesada do plural de Abi, são os líderes da comunidade, tanto no
sentido administrativo-burocrático quanto no sentido religioso. Eles ocupam a maioria
dos cargos nas instituições, sobretudo, os de maior responsabilidade, tomam as decisões
relativas às famílias e aos estudantes, estimulam o cumprimento das práticas religiosas
pelos membros da comunidade e indicam os padrões de interação, tanto na esfera
institucional quanto na individual, dos membros da comunidade com a sociedade
brasileira. São também os Abis os maiores responsáveis pela construção de uma ampla
rede de relações sociais com as instituições e os indivíduos brasileiros, diversificando as
atividades e alargando o seu alcance de modo cada vez mais eficaz. A prática de
networking subjaz a maioria das atividades promovidas pelos CCBTs no Brasil.
Os estudantes
Os estudantes do gênero masculino, às vezes carinhosamente chamados pelas
mulheres de “meninos”, apesar de não tomarem decisões nem ocuparem cargos altos,
desempenham um papel crucial na comunidade. Eles realizam as mais diversas tarefas de
apoio às atividades promovidas pelo CCBT, pelo CIDI e mesmo pelo Colégio. Além de
serem estudantes universitários, fazem aulas de português com brasileiros, dão aulas de
português para os Abis ou os recém-chegados da Turquia, dão aulas de turco para
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brasileiros, trabalham na organização dos eventos da comunidade e são os Abis dos filhos
de seus Abis, ou seja, constituem o exemplo de conduta moral mais próximo dessas
crianças, no sentido geracional. Delas, eles são os professores de religião, de leitura do
Alcorão e de língua turca ou portuguesa, porém é nos momentos de sociabilidade, das
brincadeiras, dos jogos e do compartilhamento de refeições e chás (claro, o chá turco está
em todas) que as crianças são socializadas nos princípios morais da tradição islâmica
segundo a sistematização das normas e das práticas religiosas produzida pelo líder
religioso Fethullah Gülen.
As Ablas
A organização das mulheres da comunidade segue esse mesmo padrão, embora
sua participação nas atividades promovidas pelas instituições da comunidade se configure
de forma diferente e mais restrita. Elas se dividem em dois grupos, o das Ablalar (plural
de Abla, irmã mais velha, em turco), e o das estudantes ou “meninas”, como as Ablalar
também as chamam. As Ablas, forma aportuguesada do plural de Abla, são esposas e, em
sua grande maioria, mães. Quase todas possuem graduação e muitas pretendem continuar
seus estudos. Dentre elas, há seis mulheres brasileiras, que conheceram seus maridos
turcos no Brasil, em contextos variados. Dessas, quatro se converteram ao islã, algumas
antes e outras depois de conhecerem seus respectivos esposos; uma é muçulmana de
nascimento; uma nunca se converteu.
As Ablas são as responsáveis, embora não as únicas, pelos banquetes oferecidos
pelo CCBT a grupos de brasileiros e convidados internacionais, pelo Colégio a grupos de
pais e alunos etc. Como os jantares são bastante frequentes, as Ablas dividem o trabalho
e se revezam no preparo dos pratos típicos que serão servidos, de modo a não
sobrecarregar ninguém. Há também uma cozinheira brasileira que trabalha na sede social
e cultural do CCBT e ajuda na preparação de determinados jantares.
Devido à marcada segregação de gênero, sobretudo, entre os solteiros e entre as
meninas e os homens casados, as Ablas servem de mediadoras entre as estudantes e seus
respectivos maridos, para o repasse das bolsas de estudo advindas do CCBT.
Embora as Ablas atuem majoritariamente na esfera privada, elas são a fundação e
os alicerces da comunidade e das várias áreas de atuação da comunidade na sociedade
brasileira. Elas são mulheres, esposas, mães, professoras, donas-de-casa, amigas,
responsáveis pelas estudantes, cozinheiras, anfitriãs de constantes convidados brasileiros
em suas casas – inclusive a antropóloga – e, finalmente, muçulmanas devotas e estudiosas
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do Alcorão e dos ensinamentos de Fethullah Gülen. Incansáveis, as Ablas desejam
continuar seus estudos e ser bem-sucedidas profissionalmente, o que é encorajado pela
sua família e pela comunidade, uma vez que o conhecimento e a sua transmissão são
valores bastante caros a essa comunidade. Geralmente, quando seus filhos completam os
três anos e passam a frequentar o Colégio Belo Futuro Internacional, elas retomam seus
estudos ou se engajam em alguma atividade dentro da comunidade. Elas trabalham,
sobretudo, na e para a comunidade.
Outro importante papel das Ablas é servir de exemplo para as estudantes da
comunidade, através do seu comportamento e conduta moral. A Abla responsável pelas
estudantes em cada cidade é considerada um modelo de mulher muçulmana e exemplo de
esposa e mãe, de acordo com os princípios morais islâmicos da comunidade. No entanto,
como a exemplaridade pressupõe carisma, a Abla considerada modelo de conduta pelas
estudantes pode variar, dependendo das suas próprias subjetividades, mas também de suas
experiências pessoais com cada uma das Ablas.
As estudantes
As 15 estudantes estão divididas em três grupos, um em São Paulo, um no Rio de
Janeiro e outro em Brasília. Em cada uma dessas cidades, elas dividem um apartamento
(isik evleri, as casas de luz) e são agenciadas pela Abla responsável pelo seu bem-estar
geral e pelo cumprimento dos seus deveres religiosos. Cada grupo tem uma líder que, por
seu turno, é a Abla da casa e, portanto, é encarregada das suas companheiras e de se
reportar à Abla responsável. Algumas das suas funções são administrar as contas da casa,
assegurar que as tarefas domésticas sejam desempenhadas por todas, que os deveres
religiosos sejam cumpridos ao longo da semana e também que as visitas, brasileiras ou
turcas, sejam devidamente recebidas e atendidas em suas casas. A Abla da casa pode e
deve mudar ao longo do tempo, para que todas passem pela experiência de gerir uma casa
e servir de exemplo para as suas companheiras.
Como os meninos, as estudantes também constituem a engrenagem das atividades
promovidas pelas instituições da comunidade. Além de estudarem e fazerem curso de
português, dão aula de turco ou de arte Ebru para brasileiros e ajudam na organização de
determinados eventos. Elas também contribuem com a preparação de pratos típicos da
culinária turca para os numerosos encontros no CCBT que acontecem ao longo da semana
e ajudam as Ablas de várias maneiras, seja ensinando-lhes português ou dando aula de
religião e de leitura do Alcorão para as suas filhas, de quem são as Ablas, ou seja, o
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exemplo de conduta moral mais próximo delas, no sentido geracional. Porém, como
acontece entre os estudantes e as crianças do gênero masculino, são nos momentos de
sociabilidade – das conversas espontâneas, brincadeiras, convivialidade à mesa, a hora do
chá etc. – que essas crianças são socializadas nos princípios morais da tradição islâmica
segundo a sistematização das normas e práticas religiosas produzida pelo líder religioso
Fethullah Gülen. Desse modo, o princípio da exemplaridade está presente em todas as
relações que se estabelecem entre os membros da comunidade, sejam homens ou
mulheres, solteiros ou casados, estudantes universitários ou crianças.
Contudo, a categoria Abla/Abi não é fixa, mostrando que as posições dos sujeitos
sãorelacionais. Uma mulher casada sempre será uma Abla para as estudantes, mesmo
quando aquela for mais nova, possuir menos conhecimento religioso ou estar a menos
tempo na comunidade do que essas. Ao mesmo tempo, a menina mais velha da casa
sempre será chamada de Abla pelas mais novas, como uma forma de expressar respeito,
ainda que a diferença de idade seja de apenas 1 ou 2 anos. A menina apontada como a
responsável pela casa será sempre a Abla da casa, embora possa ser mais nova do que
suas companheiras. De qualquer maneira, essa forma de tratamento reflete a relação
verticalizada entre os membros da comunidade e indica quais são os exemplos imediatos
a serem seguidos.
Outra categoria comumente utilizada entre as Ablas casadas é a de Hocam, que
significa “minha professora” (também serve para “meu professor”, no caso dos Abis),
usada para se endereçar a uma mulher que seja professora, uma profissão bastante
valorizada por toda a comunidade.
O papel de líder ou guia no “processo de maturação espiritual” (Vicini, 2013, p.
381) dos membros da comunidade é desempenhado de maneira informal, ou seja, não há
um cargo formal a ocupar, nem um nome além de Abla ou Abi usado para se referir à líder
ou ao líder. Apesar de haver nítidas distinções entre os membros da comunidade segundo
alguns critérios, como o gênero, a idade, o estado civil, o comportamento moral, a
dedicação ao hizmet e a experiência no Hizmet, há uma forte evitação em apontar posições
hierárquicas ou mesmo funções específicas entre eles; pelo contrário, todos têm a ideia
de igualdade em alta estima e a consideram basilar à estrutura do grupo.
As práticas religiosas
Além da dedicação ao ativismo social e da emulação como modos de engajamento
individual no hizmet, ou serviço (seja a Deus ou à humanidade), há ainda as práticas
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religiosas, individuais e coletivas. Dentre as práticas devocionais coletivas, estão as
leituras do Alcorão e do Cevşen (uma compilação de súplicas, em árabe)4, a exibição de
vídeos com sermões de Fethullah Gülen e o ritual da oração, seguido da recitação em voz
alta do Tesbihat5. O tesbihat se assemelha ao ritual do zikir, ao reunir os nomes e atributos
de Allah e diversas súplicas, inclusive passagens do Alcorão, em árabe. Zikir, do árabe
dhikr, é o ritual de evocação mística dos nomes e atributos de Allah, presente na tradição
islâmica em geral, mas sobretudo na tradição sufi. Ele pode ser feito internamente, ou
seja, em silêncio, ou em voz alta.
O Tesbihat praticado na comunidade Gülen no Brasil é feito em voz alta quando
coletivo (sempre de forma privada) e, geralmente, em silêncio quando individual,
dependendo de onde a pessoa estiver. Assim, a forma da performance ritual do Tesbihat
se adequa à situação em que o membro da comunidade se encontra, enfatizando a
importância da performance coletiva e em voz alta do ritual, que soa como um coro, para
a construção do sentimento de pertencimento à comunidade. Além disso, a forma em voz
alta aponta para a pedagogização da prática ritual, pois permite o seu aprendizado e
memorização por todos os membros, assim como as eventuais correções da pronúncia das
palavras em árabe pelos mais experientes.
Como o zikir é um ritual que aponta para as vias místicas da tradição sufi – cada
via mística (tariqa) é caracterizada por um conjunto próprio de doutrinas, formas de
afiliação coletiva e rituais, de que o zikir faz parte – ele não é assim designado pelos
membros da comunidade Gülen no Brasil, que preferem evitar qualquer conexão direta
com formas institucionalizadas da tradição normativa islâmica. Dentre as práticas
individuais estão, além de orações, seguidas do Tesbihat e de súplicas, a leitura da obra
de Fethullah Gülen e de outros autores considerados sábios muçulmanos. Os encontros
coletivos são separados por gênero e situação civil e são realizados sob a orientação de
uma Abla, entre as mulheres, e de um Abi, entre os homens.
A pedagogização das práticas rituais e do conhecimento religioso exige a
objetificação e a racionalização6 da tradição islâmica. Aqui, o termo objetificação é usado
4 Büyük Cevşen é a tradução turca do árabe jawshan al-kabir e reúne dois tipos de súplicas: as que rogam
proteção e as que pedem coisas boas. As que rogam proteção teriam sido reveladas ao Profeta, através do
anjo Gabriel durante a Batalha de Uhud, a fim de garantir proteção a ele próprio e aos seus seguidores. 5 Tanto o cevşen quanto o tesbihat são compilações montadas por Said Nursi e complementadas por
Fethullah Gülen. 6 O processo de racionalização das diversas esferas da vida social foi apontado por Max Weber (2000)
como a tendência inexorável do mundo contemporâneo e tem como efeito a organização burocrática.
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segundo a definição de Eickelman e Piscatori (2004), para quem a tomada de consciência
dos fieis em relação à sua religião a transforma em objeto de reflexão e questionamento.
Assim, “a religião se torna um sistema independente que os crentes podem descrever,
caracterizar e distinguir de outros sistemas de crença” (Eickelman e Piscatori, 2004, p.
38) e abstrair dos contextos culturais e locais em que é vivenciado. No caso da
comunidade Gülen, o processo de objetificação é acentuado, uma vez que as doutrinas e
práticas religiosas, fundamentadas no sufismo, são configuradas e organizadas como um
subsistema religioso próprio por Fethullah Gülen, a partir do sistema mais amplo da
tradição sufi. Além disso, esse subsistema religioso, por sua forte constituição textual, se
coaduna com o projeto de reforma social baseado em valores modernos de educação e
intelectualidade.
Cada menina faz um registro diário das suas práticas religiosas chamado çetele,
uma espécie de tabela onde constam colunas com as práticas obrigatórias – como as
orações, a leitura do Alcorão, a leitura da obra de Fethullah Gülen e a recitação do Cevşen,
por exemplo – e as opcionais – como o jejum e as súplicas. A líder da casa recolhe os
registros ao final do dia e presta contas à Abla responsável pelo grupo uma vez por
semana. A Abla repassa as informações para seu marido, o Abi dos homens, responsável
pelos estudantes e também pela totalidade da comunidade em São Paulo, no aspecto
religioso. Esse método de contabilização/prestação de contas das práticas religiosas é uma
das expressões mais contundentes dos mecanismos disciplinares que moldam os sujeitos
morais na comunidade Gülen no Brasil, ao transferir para o sujeito a responsabilidade
pela aquisição dos princípios e disposições morais islâmicas.
Algumas meninas conseguem acumular muito mais leituras e súplicas numa
semana do que as outras, devido a uma autodisciplina mais desenvolvida, atingindo um
número muito maior de práticas. No entanto, como me explicou uma de minhas
interlocutoras, isso não tem importância, pois o registro não é para competir e o que
importa mesmo é a intenção de fazer o melhor que puder. Por um lado, essa interpretação
vai ao encontro do discurso, que circula na comunidade, de que a sinceridade de intenção
é uma condição para que a ação dentro do hizmet tenha valor religioso. Por outro, reafirma
a ideia de igualdade entre os membros da comunidade, para eles um valor avesso à
competição.
Os conceitos de autocontrole, disciplina e sinceridade constituem parte do
conjunto de disposições emocionais e conceituais incorporadas pelo sujeito moral na
tradição sufi (Pinto, 2009). Embora a comunidade Gülen não se organize segundo um
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quadro normativo e de práticas estritamente sufis, ela guarda algumas semelhanças com
essa tradição. Através do çetele, o método de contabilização/prestação de contas das
práticas religiosas, os membros da comunidade empreendem um processo de
autoobjetificação7, em que conseguem medir o seu desempenho na aquisição de uma
determinada moralidade islâmica. O processo de construção da sinceridade empresta um
sentido existencial a essas práticas e as torna passíveis de uma autorreflexão, promovendo
uma “análise constante até dos impulsos mais secretos da alma e do coração”, para citar
Annemarie Schimmel (1975, p. 54). Assim, a contabilização/prestação de contas e a
sinceridade são a pedra angular do treinamento do self na corporificação dos princípios
islâmicos e disposições morais definidos pela comunidade Gülen.
CONCLUSÃO
A construção dos sujeitos morais na comunidade Gülen no Brasil é um processo
que inclui diversas dimensões experienciais. Ao deixar seu ambiente familiar na Turquia
para viver em outro país, com língua e cultura distintas, as meninas e os meninos entram
numa relação de mão-dupla intensamente constituída por ensino e aprendizagem. Ao
entrar para a comunidade, elas e eles deixam de ser filhas e filhos para serem adultas e
adultos. Além de cursar uma graduação numa língua extremamente distinta da sua,
aprendem a cozinhar, lavar, limpar, gerir uma casa, cuidar de crianças, ser tolerantes uns
com os outros e, finalmente, aprendem a ser mulheres e homens muçulmanos exemplares.
A participação das mulheres na vida comunitária e a mobilização no sentido de se
construírem como sujeitos morais e se tornarem um membro atuante da comunidade vai
de encontro à afirmação de Gisele Chagas sobre o sufismo enquanto “um canal para a
participação religiosa feminina no Oriente Médio” (Chagas, 2011, p. 12). Um olhar sobre
as formas de participação das mulheres na vida religiosa, mas também social, dentro da
comunidade Gülen no Brasil, possibilita compreender os valores, as motivações e os
desejos mobilizados pelos sujeitos nesse processo.
Ser membro de uma das comunidades Gülen, ou seja, parte de um movimento
transnacional de fundo religioso, permite que homens e mulheres, meninos e meninas
saiam das fronteiras da Turquia e vivam diversas experiências culturais, aprofundando o
seu conhecimento, tanto científico quanto religioso, e ampliando a sua visão de mundo.
7 O conceito de objetificação foi usado por Thomas Csordas (2008) na sua pesquisa sobre cura espiritual
em comunidades cristãs. Ele se refere à capacidade do self de se descolar dos seus desejos inconscientes,
isto é, de perceber a si mesmo como objeto de reflexão.
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O trabalho de campo com a comunidade Gülen no Brasil tem revelado que a
prática do hizmet inclui um conjunto de ações, sensibilidades e formas de devoção (Vicini,
2013) que produzem determinado tipo de sujeito moral. Os princípios formadores desses
sujeitos são o conhecimento, tanto o científico quanto o religioso, e valores morais
islamicamente fundamentados. A aquisição e a internalização desses princípios ocorrem
através da prática sincera do hizmet, ou seja, da total devoção interna ao “serviço”,
entendido como um serviço à Turquia, à humanidade e, em última instância, a Deus.
Desse modo, o investimento no conhecimento, a dedicação às atividades comunitárias e
o engajamento nas práticas religiosas aparecem como as três esferas experienciais que
constituem o processo de construção do sujeito moral idealizado pela comunidade.
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