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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER Teresina - PI 2014

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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ

PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ÉTICA E EPISTEMOLOGIA

ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA

A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER

Teresina - PI

2014

ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA

A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí – UFPI. Orientador: Prof. Dr. Luizir de Oliveira.

Teresina - PI

2014

ANA PAULA DE ARAÚJO LIMA

A COMPAIXÃO COMO UMA ÉTICA DO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER

Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo programa de Pós-Graduação em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí - UFPI.

BANCA EXAMINADORA

Aprovada por:___/___/___

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Luizir de Oliveira/UFPI (Orientador-Presidente)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Ruy de Carvalho Rodrigues Júnior – UECE (Examinador)

_______________________________________________________________

Prof. Dr. Wellistony Carvalho Viana – PPGEE/ICESPI (Examinador)

AGRADECIMENTOS

Agradecimentos especiais ao meu orientador Luizir de Oliveira, pela

confiança e ensinamentos, e aos professores José Iran Nobre de Sena, Vicente de

Paula, Luiz Carlos Rodrigues Cruz Puscas, Alejandro Labale, Ranieri Ribas,

Flamarion Caldeira Ramos, Daniel Arruda, José Airton, Rosilene Pereira, Zoraida

Lopes, Maria Cristina Sparano, Padre Amadeu Matias, Emerson Carlos Valcarenghi,

Jorge Lubenow. Agradeço profundamente ao meu filho Guilherme Bruno de Araújo

Lima, uma pessoa única, que me incentivou e principalmente acreditou que eu

chegaria até o final. Essa pesquisa é fruto da contribuição inestimável de todos.

Aos colegas de estudo, pelas trocas de conhecimento e amizade, em

especial, José Luis Guimarães pelo apoio e ajuda intelectual, Alan, André, Aline

Galvão, Bia, Francisco Reis, Marcos Vaz, Nayara Barros, Claúdia Raquel, Cleide

Couto, Dasto, Dayvidi Magalhães, Francílio do Vale, Medina, Sol, Maria, Marléia

Uchôa, Pedro, Layane Veloso, João Farias, Eliane Rodrigues, Lorena, Vinicius, João

Caetano, Hellen Lopes, Helís Cristine, Elielton, Gilcelane, Márcia Damasceno, Elis,

Enoisa Veras, Fabiana, Francinete, Gardênia, Islânia, Jandira, Janice, Joaquim e

Cintya, Lais, Loise Ana, Luis Gomes, Ramon, Luziane, Sullivan, Mariana, Jaziel,

Ornela Fortes, Wilker Marques, Zélia, Fátima e aos colaboradores da UFPI.

Ao Programa de Bolsas CAPES, pelo apoio financeiro que tornou possível

esta pesquisa.

À minha família, em especial, Vanda Maria de Azevedo, Alan de Azevedo.

RESUMO

Este trabalho apresenta um estudo do fenômeno ético originário no âmbito da filosofia moral schopenhaueriana, ou seja, a compaixão, levando em consideração que Schopenhauer analisa os diferentes modos de agir dos indivíduos, pois para Schopenhauer, é por intermédio das ações humanas que podemos identificar as ações dotadas ou não de valor moral. Podemos reconhecer a compaixão como a única ação dotada de valor moral, pois esta é destituída de qualquer interesse. Desse modo, nosso percurso se deu de forma a elucidar esse fenômeno espontâneo e genuíno e também analisar de que modo ele pode atuar em cada um de nós, visto que é intuitivo e imediato e que o sofrimento é uma chave para se entender o reconhecimento entre os agentes que são dotados de motivações do tipo morais e antimorais na teoria moral de Schopenhauer. Palavras-chave: Schopenhauer. Sofrimento. Compaixão. Reconhecimento.

ABSTRACT

This paper presents a study of the originating ethical phenomenon in the context of Schopenhauer's moral philosophy, namely, compassion, considering that Schopenhauer examines the different modes of action of individuals, as for Schopenhauer, is through human actions that we can identify gifted or not the actions of moral value. We recognize compassion as the only action endowed with moral value, since it is devoid of any interest. Thus, our route took in order to elucidate this spontaneous phenomenon and genuine and also consider how it can work in each of us, as it is intuitive and immediate, and that suffering is a key to understanding the recognition between agents who are endowed with moral motivations and antimoral in moral theory Schopenhauer. Keywords: Schopenhauer, Suffering, Compassion, Recognition.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 8

1. OS ELEMENTOS EPISTÊMICOS E METAFÍSICOS DA FILOSOFIA MORAL SCHOPENHAUERIANA ............................................................................................. 18

1.1. O princípio de razão suficiente .......................................................................... 20

1.1.1. As quatro raízes do princípio de razão suficiente ................................. 24

1.2. Os conceitos de representação e vontade .............................................. 30

1.2.1. Do mundo como representação ........................................................... 30

1.2.2. Do mundo como Vontade ..................................................................... 43

1.3. A doutrina dos caracteres: inteligível, empírico e adquirido .................... 48

2. A SIGNIFICAÇÃO ÉTICA DA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER: AS MOTIVAÇÕES ANTIMORAIS E MORAIS ....................................................... 55

2.1. O egoísmo e a maldade .......................................................................... 57

2.2. A compaixão como fundamento da moral ............................................... 61

2.2.1. A virtude da justiça e da caridade ........................................................ 66

2.3. A abordagem empírica da compaixão ..................................................... 72

2.4. A explicação metafísica do fenômeno da compaixão .............................. 76

3. DO SOFRIMENTO AO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER ...... 85

3.1. O sofrimento do mundo em Schopenhauer ............................................. 86

3.2. Reconhecimento: a metáfora do senhor e do escravo em Hegel ............ 95

3.3. A possibilidade de se pensar uma ética do reconhecimento em Schopenhauer por meio da compaixão .......................................................... 103

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................... 110

REFERÊNCIAS .............................................................................................. 115

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INTRODUÇÃO

Na modernidade tentar responder aos questionamentos acerca das

ações humanas não é tarefa fácil. Isso nos remete a pensar a moralidade em

Schopenhauer, tendo em vista que o mesmo tratou do tema da ética, mais

especificamente, da compaixão como um fundamento para a moralidade.

Nossa pretensão é explicar de que maneira o filósofo alemão Arthur

Schopenhauer discorreu sobre as ações humanas e até que ponto elas

interferem em nossas vidas. Isso acarreta, na filosofia de Schopenhauer, a

elaboração de uma reflexão única que trouxe a possibilidade de se pensar uma

ética pautada em um fenômeno ético, espontâneo e genuíno, denominado

compaixão.

A compaixão pode, ao que parece, garantir certa legitimidade para que

se possa compreender que, mesmo por uma via intuitiva, podemos nos

compadecer com outro que sofre. Visto que essa é uma ação moral

desinteressada, livre de quaisquer motivos, a compaixão está no fundamento

schopenhaueriano, pois a ação moral está diretamente ligada ao modo

comportamental dos homens. Para Schopenhauer, entre suas investigações,

aquela voltada para o agir humano é a mais séria dentro do seu arcabouço

teórico. Para ele, suas verificações sobre a natureza humana “[...] afetam de

maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou

indiferente” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353).

Espera-se encontrar nas obras O mundo como vontade e como

representação e Sobre o fundamento da moral a chave para analisar de que

maneira a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do

reconhecimento em Schopenhauer, objetivando estabelecer o ponto de partida

da nossa pesquisa, pois é através da compaixão que se enseja encontrar nos

escritos do filósofo da Vontade a chave de explicação para o enigma do

mundo.

Os escritos de Schopenhauer nos oferecem uma análise

pormenorizada das ações dotadas ou não de valor moral. O itinerário de

Schopenhauer partiu de uma imbricação entre os temas referenciados em sua

obra clássica, O mundo como vontade e como representação, quais sejam:

epistemologia, metafísica, estética e ética. Segundo Schopenhauer, “quando se

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levam em conta os diferentes lados desse pensamento único a ser

comunicado, ele se mostra como aquilo que se nomeou seja Metafísica, seja

Ética, seja Estética” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 19).

Para Schopenhauer seu pensamento deve ser entendido como um

todo coeso, posto que as discussões em torno do seu pensamento único têm

como finalidade oferecer ao leitor o entendimento do mundo, visto sob o prisma

ora da representação, ora da Vontade. Para ele, sua filosofia deve ser

entendida como um pensamento orgânico, no qual cada parte mantém sua

particularidade e ao mesmo tempo integra um projeto unitário maior porque

compõe um todo. Segundo Schopenhauer, para que se entenda seu

pensamento único, deve-se levar em consideração seu projeto filosófico

presente em suas principais obras: O Mundo como vontade e como

representação e Sobre o fundamento da moral, obras primordiais para o

desenvolvimento desta pesquisa.

Seguindo essa linha de pensamento, o filósofo alemão divide O mundo

como vontade e como representação em quatro livros e um apêndice. Nessa

obra são apresentadas as quatro faces distintas da tese. Faz-se necessário

abordar de maneira geral o entendimento do filósofo em relação ao seu

arcabouço teórico. Para isso, seguimos o procedimento do filósofo de

descrever a importância dos quatro livros e do apêndice sobre a crítica à

filosofia kantiana presente em O mundo como vontade e como representação.

No entanto, apesar de discorrermos sobre os quatro livros, o horizonte

da nossa pesquisa gira em torno do livro quatro, uma vez que este trata

especificamente do tema da ética. Nas palavras do próprio Schopenhauer, a

quarta parte é certamente a mais importante, pois é por seu intermédio que

abordamos a importância de se entender seu fundamento único, a compaixão.

Esse fenômeno serviu para fundamentar a problemática ética, na qual

Schopenhauer analisa de modo detido os elementos necessários para se

chegar a esse sentimento genuíno, imediato e espontâneo. Schopenhauer

complementa seu tratado ético com a obra Sobre o fundamento da moral,

publicada em 1839. Na mesma época o autor publica Os dois problemas

fundamentais da ética e um Ensaio sobre a liberdade da vontade. Logo depois,

em 1844, surge a segunda edição de O mundo como vontade e como

representação.

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Seu ensaio Sobre o fundamento da moral é uma obra posterior ao seu

escrito principal O mundo como vontade e como representação, publicada em

1819. Em 1839, ele retoma a tese sobre o fundamento da moral e a apresenta

à Sociedade Real da Dinamarca para apreciação. O referido ensaio tinha como

meta responder sobre a fonte e o fundamento da moral. Para Schopenhauer,

esse trabalho poderia levar ao reconhecimento da inconstância e fragilidade

dos sistemas morais vislumbrados naquela época. Nesse mesmo período,

Schopenhauer aprimorou a tese e apontou a necessidade de se apoiar a ética

em um fundamento que fosse verdadeiro e genuíno, ou seja, a compaixão.

Contudo, mesmo percebendo as fragilidades dos sistemas

precedentes, Schopenhauer sofreu influências do idealismo kantiano e da

teoria platônica. Tais influências tornam-se visíveis em suas obras,

principalmente no que diz respeito à teoria das Ideias platônicas, bem como a

coisa em si kantiana. A última serviu de reflexão para que Schopenhauer

delimitasse a dimensão da Vontade, tendo em vista que o que Kant chamou de

coisa em si, Schopenhauer chamou de Vontade, e o que aquele chamou de

fenômeno, esse chamou de representação. No entanto, mesmo sendo adepto

de alguns conceitos kantianos, Schopenhauer construiu seu próprio

pensamento.

A teoria filosófica de Schopenhauer não toma como pressuposto

nenhuma teoria prescritiva, deontológica ou teleológica. Em sua teoria não

existe apelo a sistemas que prescrevem regras de conduta para os indivíduos,

haja vista que seu pensamento segue uma via analítica e o seu método de

explicação para acessar o enigma do mundo não tem uma finalidade de tornar

homens melhores devido a tais prescrições.

A compaixão (Mitleid) está na base de sua teoria moral, vista como

algo intuitivo e que não precisa de nenhuma explicação racional. Em razão

dessa perspectiva, Schopenhauer rompe com o idealismo clássico vigente na

época, pois o filósofo encara a compaixão como um sentimento espontâneo

que rompe a barreira da individualidade. Mesmo discordando dos sistemas

precedentes, Schopenhauer ainda é considerado o último dos idealistas, visto

que ainda carrega traços de um idealismo transcendental e parte da realidade

fenomênica para explicar o mundo e a realidade na qual estão circunscritos os

indivíduos e, consequentemente, a maneira como os mesmos agem. Desse

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modo, o ponto de partida da teoria schopenhaueriana é o próprio mundo, visto

de dois modos, quais sejam: representação e Vontade. Assim, ele busca

decifrar o mundo partindo do próprio mundo. Para Schopenhauer, a compaixão

é certamente o maior mistério da ética. Para ele, esse sentimento, livre de

qualquer interesse, é a única e verdadeira motivação dotada de valor moral.

Para Schopenhauer, a compaixão é a base de uma ação moralmente

livre e desinteressada. Sendo livre não precisa de nenhuma casuística, pois os

motivos que vem de fora não a afetam. Nesse aspecto, Schopenhauer tenta

ligar teoria e prática. É importante perceber que, em meio ao seu pensamento

único, Schopenhauer faz uma panorâmica acerca dos quatro livros presentes

em sua obra principal, O mundo como vontade e como representação.

Seguindo seu próprio procedimento, faremos uma breve exposição dos quatro

livros presentes na referida obra.

Quando Schopenhauer inicia o seu primeiro livro enunciando que o

mundo é representação, ele já está anunciando o seu ponto de partida sobre

uma explicação unilateral do mundo. Para Schopenhauer, o mundo fenomênico

se constitui a partir das categorias de tempo e de espaço. Ele vê a causalidade

como terceira categoria que, junto com as outras duas, formam as variantes do

princípio de razão suficiente. Schopenhauer utiliza-se do conceito de

representação para mostrar que o horizonte de seu pensamento se refere ao

mundo da vida, mundo este que está circunscrito pelo olhar daquele que

representa, intui, abstrai e conceitua: o sujeito.

Percebe-se que, no primeiro livro de O mundo como vontade e como

representação, existe uma vertente epistemológica na teoria filosófica de

Schopenhauer que está presente nos livros seguintes. Também observamos

que, ao escrever sua tese de doutorado Sobre a raiz quádrupla do princípio de

razão suficiente (1813), em sua primeira versão, o autor trata do conhecimento

e isso pode ser vislumbrado também no primeiro livro de sua obra clássica,

referenciada no inicio desse parágrafo. Existe, ao nosso ver, uma relação de

complementaridade entre essas obras. E ainda podemos observar reflexos de

uma obra na outra, de forma que, para o entendimento da proposta filosófica

de Schopenhauer é necessário um retrocesso à raiz quádrupla, o que será

abordado no primeiro capítulo desta dissertação.

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No segundo livro, Schopenhauer faz sua primeira apreciação sobre o

mundo como Vontade. A partir desse conceito, o autor mostra que a Vontade

como coisa em si se objetiva em fenômenos. De acordo com a filosofia

schopenhaueriana, toda a natureza, passando pelo reino mineral até o animal,

é manifestação do Em-si do mundo. Essa objetivação da Vontade, segundo

Schopenhauer, traz consigo uma luta constante entre os indivíduos, tendo

como finalidade a afirmação da espécie. Isso mostra a importância que

Schopenhauer alude ao tema do corpo tanto do ponto de vista da

representação, como da Vontade1, que é um dos conceitos importantes deste

trabalho, o qual iremos abordar de maneira mais detalhada no primeiro capítulo

desta dissertação. Assim, abordaremos o tema do corpo na medida em que

esse puder contribuir para um melhor entendimento a respeito do conceito de

representação e Vontade.

Para Schopenhauer, o ponto de partida para o conhecimento dá-se por

meio do nosso organismo: é a partir das funções cerebrais que captamos os

dados do mundo exterior e que os sintetizamos na percepção, de forma que

sem os sentidos não seríamos capazes de recolher, através do entendimento,

as categorias necessárias para entender a finitude humana. Para Barboza

(1997, p. 33), “de que adianta um cérebro sem olhos, braços e pernas, ou

braços e pernas e olhos sem cérebro?”, o mundo não poderia existir sem essas

funções, pois quem representa o mundo é o sujeito; Ele diz ainda: “não somos

cabeças de anjo aladas, espíritos vaporosos destituídos de corpo, mas

possuímos intricadas ramificações nervosas e uma central no crânio que as

coordena” (BARBOZA, 1997, p. 33).

Schopenhauer afirma que é por meio do corpo que podemos conhecer

o núcleo da nossa própria essência, assim como a de outros corpos que se

objetivam mediante os atos da Vontade: “A ação do corpo nada mais é senão o

ato da vontade objetivado, isto é, que apareceu na intuição.”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 157). Assim, o corpo é, para Schopenhauer, a

própria vontade manifestada, ímpeto cego que se torna visível através da

vontade de vida (Wille zum Leben).

1 Doravante, o termo Vontade com maiúscula, indica a essência do mundo inteiro, enquanto

que, o termo vontade com minúscula, indica a particularidade de cada indivíduo, isto é, o núcleo de cada individualidade.

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Desse modo, para Schopenhauer, a Vontade é potência que se

manifesta na natureza e desejo que move os homens. Contudo, antes de se

objetivar em variados fenômenos ou na pluralidade dos indivíduos, a Vontade é

considerada por Schopenhauer como imutável, ou seja, não está condicionada

ao tempo, ao espaço, pois, estando fora destas categorias, ela pode ser

considerada como formas de Ideias platônicas. Essas formas são arquétipos

das coisas particulares, ou melhor, essas formas formam um intermédio entre a

Vontade una e a pluralidades dos indivíduos. Para Schopenhauer, a Ideia em

seu primeiro momento é apenas objetidade imediata e por esse motivo é

adequada à coisa em si, sendo nesse momento precisamente Vontade na

medida em que ainda não se tornou representação.

Portanto, aquilo que Platão chamou de eidos ou Ideia, Schopenhauer

irá chamar de primeiro grau da objetivação da Vontade. Assim, o autor faz uma

diferenciação entre os termos objetidade e objetividade. O primeiro termo,

objetidade, está relacionado à Vontade que ainda não se objetivou, ou seja,

não se tornou representação. Por esse motivo ela pode ser comparada à coisa

em si kantiana. Nesse momento, não temos acesso ao seu verdadeiro núcleo.

Quando o autor usa o segundo termo, objetividade, podemos inferir que é por

meio do princípio de razão que é possível conhecer as concreções particulares

dos indivíduos. Esses termos, objetidade e objetividade, serão melhor

esclarecidos quando estivermos desenvolvendo os conceitos de representação

e Vontade, posto que o tema do corpo liga-se diretamente a tais conceitos, pois

o corpo é, para Schopenhauer, um objeto entre objetos, visto também como um

veículo de ligação entre as vontades particulares.

No terceiro livro, Schopenhauer continua sua elaboração filosófica,

mostrando que a Vontade é mediada por meio da percepção, nossa única via

de aproximação à coisa em si se dá por meio da manifestação da Vontade, de

maneira espontânea, imediata, mediada pela intuição, onde se pode de

maneira desinteressada via contemplação estética contemplar aquilo que está

para além dos fenômenos, das aparências, livre de enganos e independente do

princípio de razão suficiente.

Schopenhauer expõe, ainda no terceiro livro, que o objeto a ser

vislumbrado é a experiência estética, que tem como cerne a contemplação das

Ideias como uma atividade fundamental para vislumbrar o belo em suas mais

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variadas formas. Esta experiência estética, que pode ser intuída em sua pureza

por meio da arte, serviu para impactar artistas, músicos, poetas, arquitetos e

escultores. Segundo o autor, “o espectador se funde à natureza e desaparece”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 14). Noutras palavras, a contemplação estética

não se prende a conceitos, abstrações e a representações que são produzidas

pela racionalidade e, como tal, são independentes do princípio de razão.

Portanto, “a Ideia, ao contrário, não se submete a esse princípio; por

conseguinte não lhe cabem pluralidade nem mudança” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 236).

No momento da contemplação do belo, o indivíduo liga-se diretamente

ao objeto, e, contemplando este, se livra de sua individualidade e atinge as

Ideias, arquétipos imutáveis, mas isso só acontece em pequenos espasmos de

segundos, onde ambos, contemplador e contemplado, tornam-se um. Nesse

movimento, ambos não se reconhecem, isto é, estão livres em relação aos atos

movidos por motivos. Nesse ponto, o contemplador, se compararmos ao

prisioneiro da caverna de Platão, livra-se das amarras, e sua visão não mais

turvada percebe que existe algo que pode ser vislumbrado para além das

sombras. Esta unidade pode ser comparada à verdadeira Ideia, em contato

com a qual nos tornamos puro sujeito do conhecimento. Assim, para Marie

José Pernin:

Mas Schopenhauer permanece atento ao Platão da contemplação mística, devoto da Unidade, [...] que descreve como as asas da alma se expandem diante de um belo objeto, ao Platão que nos julga aprisionados no mundo com a nossa cumplicidade e que nos propõe a libertação. (PERNIN, 1995, p. 22)

Portanto, é neste ponto que Schopenhauer é adepto da metafísica do

belo, bem como à apreensão da doutrina das Ideias que são propriamente o

objeto da arte. Nesse sentido, a arte seria o primeiro meio de supressão da

vontade de um modo geral, ela nos afasta do mundo fenomênico, mesmo que

temporariamente, considerando que é por meio da contemplação artística que

podemos suspender a individualidade. Negando a vontade, neutralizamos a

torrente do sofrimento. Nesse momento, o querer individual é suspenso em

função de um querer maior e universal.

O quarto livro da obra, em relação aos três primeiros livros, é para o

autor o mais importante. Nele Schopenhauer trata o tema da ética, ou seja, sua

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proposta é descrever o modo de agir dos indivíduos. Esse livro retoma o

mundo como vontade, todavia, passa a descrever o momento da negação ou

afirmação das vontades. Nessa perspectiva, Schopenhauer entra em contato

com a imagem do herói, e, em seguida, com a do asceta, momento de renúncia

e abnegação da vontade. O autor esclarece que essa abordagem não terá

como objetivo analisar ou estabelecer um recurso universal. Contudo, o que

importa é a relação entre a ética e as ações do homem. Nas palavras de

Schopenhauer:

// A última parte de nossa consideração proclama a si mesma como a mais séria de todas, pois concerne às ações do homem, objeto que afeta de maneira imediata cada um de nós e a ninguém pode ser algo alheio ou indiferente. Muito pelo contrário, referir tudo o mais à ação é tão conforme à natureza do homem, que ele, em toda investigação sistemática, sempre considerará a parte relacionada ao agir como resultado da totalidade do conteúdo da investigação, pelo menos na medida em que este o interessa, e, assim, dedicará a essa parte, mesmo às expensas de outras, a sua mais séria atenção. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353)

Para Schopenhauer, sua investigação sobre as ações humanas segue

em conformidade com seu pensamento único, mas a última parte de sua

investigação não tem como meta prescrever regras de conduta, nem ao menos

falar de um dever ser. Para Schopenhauer, não existe um mandamento, uma

lei universal que determine a maneira como os indivíduos devem agir. Desse

modo, a filosofia para Schopenhauer deve sempre permanecer teórica, deve

manter uma postura contemplativa, não importa qual seja seu objeto de

investigação. Para ele, a filosofia deve sempre inquirir ao invés de prescrever

regras de conduta. Isso mostra que sua doutrina é descritiva e não prescritiva.

Não se deve esperar ou criar expectativas em relação a qualquer sistema

moral, pois esses não podem criar caracteres nobres ou virtuosos. Ao

contrário, Schopenhauer se propõe a mostrar que os nossos atos são espelhos

daquilo que nós mesmos somos, de modo que analisar as ações humanas é

uma forma de tentar entender o próprio homem.

Tendo essas breves considerações em nosso horizonte, estruturamos

nosso trabalho como se segue. No primeiro capítulo, analisamos a tese de

doutorado de Schopenhauer, A quádrupla raiz do princípio de razão suficiente

(1813), tendo em vista que esta obra foi propedêutica para a elaboração de sua

obra máxima, O mundo como vontade e como representação. Em sua tese,

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Schopenhauer discorre acerca da realidade fenomênica e usa as categorias de

tempo, espaço e causalidade para explicar, por meio da representação, a

utilidade do princípio em relação às ciências. Schopenhauer analisa o princípio

de razão e suas quatro raízes distintas, enumerando-as da seguinte maneira:

a) ser; b) conhecer; c) devir e d) agir. A partir de sua tese, Da quádrupla raiz do

princípio de razão suficiente, Schopenhauer segue uma veia epistemológica,

que servirá de embasamento para a elaboração de seu pensamento único, pois

os conceitos de representação e Vontade podem ser melhor entendidos ao se

levar em consideração seu trabalho introdutório.

Na tese, Schopenhauer discorre sobre a raiz do agir que nos guiou por

se tratar do tema da ética apresentado em suas obras O mundo como vontade

e como representação e Sobre o fundamento da moral. Nelas, o autor irá

aprimorar de maneira bem mais detalhada alguns conceitos que foram

trabalhados em sua tese. Seguindo o mesmo itinerário, no primeiro capítulo

apresentamos os tipos de caracteres inteligível, empírico e adquirido. Esses

foram de grande importância para se pensar sobre o que é uma ação dotada

de valor moral e o que são ações que não são dotadas de nenhum valor moral,

ou seja, ações que são motivadas. Schopenhauer considera que o caráter nos

segue do nascimento até a morte. Para o autor, é por meio do caráter que

podemos distinguir a natureza individual de cada ser, uma vez que o tema do

caráter tem fortes imbricações com o modo de agir.

No segundo capítulo, procuramos analisar o percurso da teoria moral

de Schopenhauer sobre a compaixão, ou seja, trabalhamos a compaixão de

maneira mais pormenorizada. Para isso, foi necessário discorrer sobre as

potências antimorais, egoísmo e maldade, tendo em vista que, para o autor,

elas não têm nenhum valor moral. O egoísmo e a maldade, conforme

Schopenhauer, são as duas potências antimorais de maior força. Essas, na

visão de Schopenhauer, turvam os olhos dos indivíduos. Para Schopenhauer, a

única ação que não é motivada é a compaixão e que, portanto, é o que

fundamenta uma ação dotada de valor moral, diferindo-se das potências

antimorais que carregam como axiomas “prejudique a todos se puderes ou aja

somente em benefício próprio”.

Em seguida, abordamos a compaixão como um fenômeno metafísico,

visto que a compaixão aos olhos de Schopenhauer é algo raro e misterioso,

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mas que certamente pode brotar em cada um de nós. Ela é considerada um

enigma, visto que, do ponto de vista da metafísica, vai além do mero fenômeno

da experiência, abarcando todos os seres humanos e animais. O agente

compassivo deve então ir além de todo o individualismo, romper com o véu de

maia e exclamar a fórmula tat tvam asi2, que diz “isto é tu”. Ao pronunciar tal

fórmula, a inseparabilidade entre todos os seres não mais existe, rompe-se

com o véu da ilusão e com o principium individuationis. Nesse momento, não

se faz mais distinção entre eu e o Outro. Surge assim o verdadeiro

reconhecimento que é sentido via sofrimento.

O terceiro e ultimo capítulo inicia-se com a abordagem acerca do

sofrimento, que é de suma importância na teoria schopenhaueriana. O

sofrimento é uma porta de acesso à compaixão e consequentemente ao tema

do reconhecimento. Para Schopenhauer, é por meio do sofrimento que a

compaixão brota em cada um de nós de maneira desinteressada e, em

seguida, liga-se ao reconhecimento, por perceber no Outro ou nos animais

seus sofrimentos.

Em seguida, abordamos o reconhecimento em Hegel, relacionando-o

com a metáfora do senhor e do escravo, elementos necessários para sua

dialética. O reconhecimento em Hegel é um tipo de reconhecimento social, pois

irá servir para marcar traços históricos que, partindo da relação de dominação,

devem ser superados de modo a chegar ao espírito absoluto, ponto de

chegada do reconhecimento social. Esse tipo de reconhecimento tem como

objetivo superar momentos iniciais que, conforme Hegel, são necessários para

que as relações existentes entre dominantes e dominados sejam superadas.

Tal superação ao certo deve chegar ao espírito absoluto. Posto que

nesse momento, o escravo não é mais tutelado. A categoria trabalho lhe deu

garantias para que ele se reconhecesse enquanto sujeito ativo em relação ao

seu senhor. O escravo não é mais visto como coisa e, nesse momento, ele se

torna senhor. Nesse momento, as relações de dominação começam a ser

superadas e surge a sociedade civil, encarregada de abrigar seu povo

garantindo-lhe direitos. A partir dessa relação de mediação, surge o Estado,

2 A expressão “tat tvam asi” foi retirada do livro sagrado dos vedas que significa “isto é tu”.

Explica o rompimento do véu da ilusão (Maia), que insere todos os seres no mesmo macrocosmo.

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soberano, último momento da dialética hegeliana, que abriga e abarca todos os

momentos anteriores, formando assim os processos históricos que movidos por

uma relação dialética compõem o movimento da história.

Em contrapartida, o reconhecimento vislumbrado nesse trabalho tem

outra perspectiva, qual seja: reconhecer o outro indivíduo que sofre por uma via

que é intuitiva e imediata, que conforme Schopenhauer brota em cada um de

nós de modo desinteressado. Este é o fenômeno diário da compaixão. O tipo

de reconhecimento que estamos mostrando é aquele que por meio do

sofrimento o outro se compadece e reconhece esse Outro como se fosse ele

mesmo. É o sofrer com, sofrer junto, e desse modo, a compaixão pode ser

vislumbrada como uma ética do reconhecimento em Schopenhauer.

O reconhecimento implícito em Schopenhauer pelo viés do sofrimento

é diferente do reconhecimento hegeliano. No reconhecimento, tal como vê

Schopenhauer, não há momentos a serem superados, nem um movimento

histórico dialético. O que de fato existe é um “eu” que se compadece e um

“Outro” que sofre. Uma outra diferença, entre o reconhecimento em Hegel e o

reconhecimento em Schopenhauer, é em relação aos animais, pois, para

Hegel, o reconhecimento é entre consciências, e nesse sentido, sendo os

animais desprovidos de consciência, eles não podem ser reconhecidos na

teoria hegeliana. Diferentemente, Schopenhauer que reconhece não só o

sofrimento entre iguais, mas reconhece também o sofrimento dos animais.

Portanto, Schopenhauer foi crítico do sistema hegeliano, tanto do ponto

de vista dialético como do ponto de vista político. Além disso, Schopenhauer

não racionalizou nenhum sistema de pensamento. Embora seu pensamento

seja concebido como unitário, ele segue um via diferente dos seus

contemporâneos, que colocaram a razão como aquela que daria conta de

todas as inquietações e responderia a todos os questionamentos advindos das

incertezas em que passava a humanidade naquela época.

1. OS ELEMENTOS EPISTÊMICOS E METAFÍSICOS DA FILOSOFIA

MORAL SCHOPENHAUERIANA

Este trabalho tem como objetivo analisar a teoria moral

schopenhaueriana por meio das suas obras: O mundo como vontade e como

19

representação (2005), dando ênfase ao livro IV, pois é nele que o autor

apresenta-nos de modo mais amplo as suas considerações acerca do

fenômeno ético, e Sobre o fundamento da moral (2001), escrito em que

Schopenhauer defende a asserção de que a compaixão é o alicerce metafísico

das ações genuinamente morais.

Utilizaremos também como aporte teórico a sua tese de doutorado,

intitulada Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), pelo

fato das ações humanas também terem sido objeto de estudo de

Schopenhauer quando ele discorre sobre a quarta face do princípio, que

permite com que o sujeito entenda os fenômenos do mundo moral: a raiz do

agir. Esse último conceito permite-nos explicar, a partir da relação entre

motivos e caráter, o porquê de as ações humanas acontecerem por

necessidade e não por liberdade na ótica do “pai do pessimismo”.

A reflexão moral filosófica apresentada por Schopenhauer nas obras

citadas acima nos permitirá compreender em que medida a significação ética

proposta pelo filósofo - mediante o sentimento de compaixão que pode brotar

espontaneamente no sujeito moral ao se deparar com o sofrimento alheio - vê

o outro como uma categoria axiológica fundamental. Nesse sentido, a nossa

investigação irá procurar identificar se a filosofia moral schopenhaueriana pode

ser vista essencialmente como uma ética do reconhecimento, embora tal termo

não faça parte do seu vocabulário filosófico como, por exemplo, o de seu

grande opositor: Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831).

É digno de nota que as abordagens contemporâneas que

desenvolveram a problemática da eticidade tendo como fio condutor a ideia de

reconhecimento, como Ricoeur e Axel Honneth, apenas a título de ilustração,

possuem a filosofia hegeliana como ponto de partida para a elaboração de sua

proposta moral. Pelo fato de o autor de A fenomenologia do Espírito ter

abordado o outro como uma peça central de sua ética e de ter sido

inegavelmente o filósofo que aprofundou tal temática, é que destinaremos um

tópico do terceiro capítulo de nosso trabalho à ética de Hegel.

É com base nessa linha de pensamento que acreditamos que a

alternativa proposta pelo autor da metafísica da Vontade pode contribuir para a

nossa ampliação acerca daquilo que se entende por reconhecimento no

escopo da discussão ética contemporânea. Por essas razões é que

20

utilizaremos a reflexão moral filosófica schopenhaueriana com a intenção de

ressignificar metafisicamente o mundo do ethos.

Para tanto, é interessante que esclareçamos inicialmente ao leitor o

que Schopenhauer entende por princípio de razão suficiente, conceito que é

desenvolvido em sua tese de doutoramento, bem como os dois conceitos

constituintes de seu pensamento único, a saber, de que o mundo é Vontade e

Representação. O último ponto que discutiremos neste capítulo diz respeito ao

estudo schopenhaueriano de inspiração kantiana acerca do caráter.

A concatenação dessas noções epistêmicas e metafísicas elencadas

acima nos habilitará depreender um tipo de ação trabalhada na ética de

Schopenhauer: as ações interessadas ou antimorais. Nesse tipo de ação, o

agente, mesmo não promovendo nenhum mal a outrem, não reconhece o outro

como um ser em si mesmo, apropriando-se de uma expressão kantiana, mas

apenas como um meio para atingir o seu interesse particular.

1.1. O princípio de razão suficiente

Em 1813, Schopenhauer escreveu sua tese de doutorado, intitulada A

quádrupla raiz do princípio de razão suficiente; essa escrita ocorreu ainda em

sua fase da juventude, ou seja, cinco anos mais cedo do que sua obra prima

posterior publicada em 1819, O mundo como vontade e como representação.

Essa tese de doutoramento é considerada pelo próprio autor um estudo

propedêutico daquilo que é desenvolvido no primeiro livro de sua obra máxima,

haja vista que os escritos (a tese e o livro I) abordam o aspecto da realidade

que pode ser apreendido pelo sujeito cognoscente, em outras palavras, do

mundo como representação.

O princípio de razão suficiente, na concepção de Schopenhauer

(2008), pode ser considerado como o fundamento de todas as ciências, tendo

em vista que ela (a ciência) é um sistema de conhecimentos que apresenta

conceitualmente um conjunto de verdades encadeadas da realidade

fenomênica, ou seja, do aspecto material do mundo. Assim, tudo aquilo que se

encontra no tempo e no espaço (formas puras de todo objeto) pode ser

apreendido pelo intelecto. A causalidade inteira, que por sua vez refere-se aos

estados de alterações da matéria, está condicionada à atuação deste princípio.

21

Ademais, como reforça Schopenhauer, o princípio de razão suficiente

em relação à noção de causalidade é uma verdade eterna, isto é, todos os

demais princípios estão subordinados àquele, a inteligência, o mundo, e, de

certo modo, tanto os fenômenos da natureza, quanto os fenômenos morais.

Levando em consideração essa linha de pensamento, podemos dizer que as

alterações sofridas pelo lado da realidade constituído de matéria, que são

analisadas pela ciência a partir da relação de causa e efeito, mantém uma

relação de dependência como a atuação do princípio de razão suficiente. Toda

a análise com relação aos átomos e os movimentos, por exemplo, estão

subordinados ao princípio de razão suficiente.

Deve-se ressaltar que essa investigação acerca do princípio, que é

responsável por explicar o porquê das coisas, não é inovação da filosofia

schopenhaueriana. Em sua tese de doutorado, inclusive, há uma apresentação

do modo como os diversos autores da história da filosofia, da Antiguidade

Clássica aos Modernos, trabalharam tal conceito. Em razão da explicação do

princípio schopenhaueriano possuir elo com a crítica que o filósofo alemão fez

às abordagens de outros autores, é que reproduziremos as mesmas avaliações

feitas por Schopenhauer aos filósofos que tornaram o princípio de razão objeto

de estudo.

Platão e Aristóteles teriam apresentado o princípio como uma verdade

evidente por si mesma. Essa conceituação dada pela filosofia platônica e

aristotélica era ingênua e pouco clara3, uma vez que tal definição não

apresentava maiores explicações de como se dava o processo de atuação de

tal princípio na realidade.

De acordo com a filosofia schopenhaueriana, os primeiros filósofos que

efetivamente delimitaram o princípio de razão suficiente com maior clareza

foram Wolff e Leibniz. Os autores em questão determinaram de forma mais

precisa a diferença efetiva do princípio de razão suficiente, haja vista que

ambos deram um estatuto epistemológico ao princípio. Isso significa dizer que

o conhecimento do mundo, seja ele empírico ou racional, pressupõe o

princípio. Para Schopenhauer, Leibniz foi o primeiro que estabeleceu o

3Cf: La cuádruple raiz del principio de razón suficiente. Tradução e prólogo: Eduardo Ovejero y

Maury. Buenos Aires: Editora Losada, 2008, pp. 43-44.

22

princípio de razão suficiente como sendo fundamental para todo conhecimento,

embora este último tenha tomado o princípio no âmbito da física e metafísica.

Leibniz foi o primeiro que formulou o princípio de razão suficiente como um princípio fundamental de todos os conhecimentos e ciências. [...] Em determinadas situações parece indicar a distinção de suas principais significações; porém, não a manifesta expressamente nem a explica com clareza. (SCHOPENHAUER, 2008, p. 57, tradução nossa)

No entanto, Schopenhauer, no § 5 de sua tese de doutorado (2008),

demonstra que o princípio de razão suficiente é uma expressão comum a

muitos conhecimentos dados a priori. Assim, o autor indica a necessidade de

enunciá-lo por meio de uma fórmula, e diz que prefere empregar a wolffiana

como a mais generalizada: “Nihil est sine ratione cur potius sit, quam non sit”,

que se lê: “Nada existe sem uma razão de ser” (SHOPENHAEUR, 2008, p. 41,

tradução nossa).

Se Leibniz foi o primeiro a reconhecer que o princípio é uma peça

fundamental para conhecermos o mundo, para Schopenhauer, Wolff foi o

primeiro filósofo que separou expressamente as duas principais significações

do princípio, a saber, em principium essendi (princípio de ser) e em ratio

essendi (causa). Porém, apesar de tal separação, ele não delimitou de forma

suficiente o princípio de razão suficiente no âmbito da lógica e o restringiu

apenas ao campo ontológico, muito embora Wolff tenha dito “que não se deve

confundir o princípio de razão suficiente do conhecimento com a causa e efeito”

(SCHOPENHAUER, 2008, p. 58).

Em contrapartida, Schopenhauer se afasta de Wolff em relação ao

principium essendi - condição formal de todo e qualquer fenômeno - em

decorrência de ter havido uma determinação incorreta na abordagem wollfiana

no que diz respeito aos “objetos” que são próprios do princípio ontológico

(princípio de razão de ser) com a reação aos objetos que são apreendidos a

partir da relação de causa e efeito (princípio de razão de devir). Wolff, segundo

a perspectiva schopenhaueriana, teria vinculado o vir-a-ser, ou seja, a

mudança, o fluxo e o transitório, com a ratio essendi que, por sua vez, se refere

àquilo que não aceita qualquer mudança, a saber, de tempo e espaço.

Expressando-se em outros termos, ser e devir são princípios distintos, todavia,

Wolff defendeu uma relação equivocada entre ambos.

23

Essa confusão conceitual estabelecida pela filosofia wolffiana, na visão

de Schopenhauer, fez com que os racionalistas que trabalharam com o

princípio de razão suficiente incorressem em dois grandes erros: I – De pensar

que todo juízo para ser verdadeiro precisa sempre de uma razão; II – De

acreditar que toda mudança dos objetos devem ter sempre uma causa.

Com a intenção de evidenciar o equívoco das duas assertivas acima,

Schopenhauer elabora o seguinte questionamento: Por que os lados de um

triângulo são iguais? Em resposta, ele afirma que a igualdade dos ângulos é a

causa da igualdade dos lados. Não se tem nenhuma variação por não se tratar

de nenhum efeito cujas causas devemos investigar.

Nesse sentido, trata-se apenas de um princípio do conhecimento.

Schopenhauer conclui ainda que a igualdade dos ângulos não é a

demonstração da igualdade dos lados, assim como não é a mera razão de um

juízo, ou seja, dos conceitos puros não se deduz que os ângulos são iguais.

Assim, podemos deduzir que o conceito de igualdade dos ângulos não está

contido na igualdade dos lados. Nesse exemplo dos triângulos, não existe

nenhuma relação de necessidade entre conceitos e juízos, somente entre lados

e ângulos, ou seja, a igualdade dos ângulos não é uma razão imediata da

igualdade dos lados, mas somente mediata.

Porém, alerta-nos Schopenhauer, se nos perguntamos por que o

passado é absolutamente irreparável e o futuro inevitável, isso não pode ser

evidente por um encadeamento puramente lógico, ou seja, por meros

conceitos, nem tampouco é obra do princípio de causalidade, pois este

somente impera sobre o movimento das coisas no tempo, não sobre o tempo

mesmo. Isso não se deduz por conceitos, pelo contrário, tal compreensão dá-

se apenas imediata e intuitivamente. Assim, em todos os casos que se aplica o

princípio de razão suficiente, se pode referir o conceito lógico do princípio e sua

consequência natural com a relação de causa e efeito.

Para Schopenhauer, a faculdade cognitiva se manifesta como

sensibilidade exterior e interior (receptividade). A inteligência se decompõe em

sujeito e objeto e nada há fora dessa dimensão, pois todas as representações

são objetos para o sujeito, bem como todos os objetos são representações

daquele que intui. “Ser objeto para o sujeito e ser nossa representação é o

mesmo” (SCHOPENHAUER, 2008, p. 69, tradução nossa). Se no começo do

24

primeiro livro de sua obra, O mundo como vontade e como representação

(2005), o autor afirma que o mundo é representação do sujeito, então existe

pelo menos uma verdade que podemos afirmar a priori: sujeito e objeto formam

uma relação indissociável.

Para Schopenhauer (2008), o princípio de razão suficiente é o mais

geral, pois ele torna o conhecimento mais evidente, servindo, assim, para

fundamentar as representações. Por acreditar que existem tipos distintos de

representação, as intuitivas e as abstratas (que explicaremos quando

estivermos a tratar especificamente do conceito de representação), o filósofo

divide o princípio de razão suficiente em quatro modalidades diferentes e o

delimita em raízes que são: (a) do devir, (b) do conhecer, (c) do ser e (d) do

agir.

É importante salientar que se trata de um mesmo princípio que se

apresenta de modo distinto na realidade fenomênica, dependendo do tipo de

representação que se torna objeto do conhecer humano. Os princípios do agir

e do conhecer possuem uma relevância em especial para a abordagem ética

que estamos a fazer da filosofia schopenhaueriana, em razão de a primeira

explicar “as causas” (motivos) do agir, e de a segunda ser exclusividade dos

homens: o conhecimento abstrato. As ações humanas geralmente seguem a lei

da motivação e os motivos apresentam-se in abstrato nos homens. Daí a

necessidade da exposição do princípio antes de adentramos efetivamente nas

suas considerações morais.

1.1.1. As quatro raízes do princípio de razão suficiente

Na acepção mais geral do princípio de razão suficiente, Schopenhauer

(2008) expõe que tudo que ocorre no mundo material deve ter uma causa ou

um motivo, ou seja, devemos indagar a razão pela qual algo efetivamente

acontece. Podemos dizer, nesse sentido, que tal abordagem é um

questionamento acerca da própria razão do conhecer, tendo em vista que o

conhecimento pergunta pelos porquês do mundo.

Para responder a esse questionamento, Schopenhauer (2008)

apresenta a primeira classe de objetos para o sujeito e a forma como eles se

apresentam para ampliarmos o nosso entendimento acerca do princípio de

25

razão suficiente. Ele toma como ponto de partida a faculdade cognitiva, que

constitui as representações intuitivas, em oposição ao que é meramente

pensado, ou seja, aos conceitos abstratos.

Schopenhauer reformula a epistemologia kantiana e mantêm apenas

tempo e espaço em decorrência de os mesmos explicarem as formas das

representações mediante a sensibilidade interior (tempo) e sensibilidade

exterior (espaço), que mediante a sua atuação simultânea produzem a

causalidade. São essas formas puras da sensibilidade que, dadas

imediatamente ao sujeito, formam o entendimento. As 12 categorias

apresentadas na segunda sessão da Crítica da razão pura, denominada por

Kant de Analítica transcendental, são descartadas pela epistemologia

schopenhaueriana. Nas palavras do filósofo:

Peço, portanto, que atiremos onze categorias janela afora e conservemos tão-somente a de causalidade, porém reconhecendo que sua atividade já é condição da intuição, a qual portanto não é meramente sensual, mas intelectual, e que o objeto assim intuído, o objeto da experiência, é uno com a representação, da qual ainda deve ser distinguida só da coisa-em-si. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 562)

No parágrafo 23 de sua tese, Schopenhauer refuta a demonstração da

aprioridade do conceito de causalidade dada por Kant que expõe a tese da

aplicação universal da lei de causalidade a experiência, vale dizer, do mundo

material. O autor das três críticas apresenta uma distinção entre causalidade e

matéria que, na perspectiva schopenhaueriana, é arbitrária.

Na ótica schopenhaueriana, causalidade e matéria são termos

sinônimos. É necessário que exista uma sucessão em que A é causa e B o

efeito de A, e nunca o contrário, pois B não pode ser causa de A, se assim o

fosse, cairíamos em um círculo vicioso. Para Schopenhauer, “a lei de

causalidade refere-se exclusivamente às mudanças de estado da matéria”

(SCHOPENHAUER, 1988, p. 40, tradução nossa). Isso mostra que a lei de

causalidade refere-se a uma relação entre eventos, ou seja, trata-se do próprio

fazer efeito da matéria. Schopenhauer em Sobre a quádrupla raiz do princípio

de razão suficiente (1813), mais especificamente nos parágrafos 21 e 23, relata

de maneira pormenorizada a lei de causalidade. Em suas palavras:

Pois a independência do conhecimento da causalidade de toda experiência, isto é, sua aprioridade, só pode ser evidenciada a partir

26

da dependência de toda experiência dela; o que, por seu turno, só pode ser demonstrado da maneira aqui indicada, e desenvolvida nas passagens antes citadas, ou seja, o conhecimento da causalidade já está contido na intuição em geral, em cujo domínio reside a experiência; e consiste na referência a priori à experiência, é esta pressuposta como condição e não a pressupõe. Todavia, isso não pode ser demonstrado da maneira ensaiada por Kant, e por mim criticada no ensaio sobre o princípio de razão, § 23. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 55)

Nessa passagem é notório como se dá o alcance da lei de causalidade:

essa tem como característica principal o seu fazer-efeito, no qual há uma

precedência temporal da causa em relação aos seus efeitos, ou seja, o

primeiro dos estados é nomeado causa e o segundo efeito. Para tanto, a

causalidade é definida como categoria espaço-temporal, sinônimo de matéria,

que participa do princípio de razão suficiente. Para Safranski (2011, p. 285):

A categoria da causalidade é, portanto, o autêntico ponto de transição para as coisas e, em consequência, a “condição de todas as experiências” (Bedingung aller Erfahrung). [...] É somente através da categoria de causalidade que nos tornamos capazes de reconhecer os objetos como coisas reais (wirklich), isto é, capaz de realizar (wirkend) uma ação sobre nós mesmos.

Schopenhauer irá delimitar no parágrafo 20 de Sobre a quádrupla raiz

do princípio de razão suficiente (1813) a primeira classe de leitura da realidade

fenomênica e a descreve como “princípio de razão suficiente do devir”

(principium rationis sufficientis fiendi). A este princípio estão submetidas às

representações da realidade de modo objetivo, em referência a toda

experiência.

Desse modo, o princípio de razão suficiente do devir é responsável por

explicar que todos os objetos estão dispostos no tempo e no espaço, estando

sujeitos a mudanças. Isso significa que, quando um ou vários objetos se

apresentam em um novo estado, é necessário que esse tenha sido precedido

por um estado anterior do qual advém uma regularidade. Isso é o que a

filosofia schopenhaueriana chama de sucessão.

Schopenhauer lança mão do seguinte exemplo para esclarecer o que

explicamos acima: se um corpo queima, é necessário que o estado de

combustão tenha sido precedido de outro estado, ou seja, é necessário que o

mesmo tenha entrado em contato com o oxigênio permitindo que essas

circunstâncias produzam necessariamente a combustão.

27

Esse processo é caracterizado como uma mudança de um estado

anterior para um posterior. Tais sucessões percebidas pelo intelecto formam

uma cadeia de acontecimentos. A lei de causalidade, isto é, o fazer-efeito da

matéria, deve carecer de um princípio segundo o qual o aparecimento de um

novo estado é consequência de um estado anterior e assim sucessivamente

até o infinito.

Do mesmo modo, quem compreendeu a figura do princípio de razão que rege o conteúdo daquelas formas // (tempo e espaço), da sua perceptibilidade, isto é, a matéria, portanto a causalidade, também compreendeu a essência inteira da matéria como tal, pois esta é por completo apenas causalidade, do que cada um se convence tão logo reflita sobre isso. O ser da matéria é o seu fazer-efeito. Nenhum outro ser lhe é possível nem sequer pensável. Apenas como fazer-efeito ele preenche o espaço e o tempo. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 49-50)

Portanto, o “fazer-efeito” é a relação entre os estados sucessivos da

matéria em constante permanência, pois a essência da matéria consiste na

unificação do tempo e do espaço, e isso só é possível por meio da causalidade,

“(...) causalidade, matéria, efetividade - é algo uno, e o correlato desse uno é o

entendimento” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 590).

Dando continuidade, Schopenhauer denomina a segunda classe de

representações de “princípio da razão suficiente do conhecer” (principium

rationis sufficientis cognoscendi). Essa classe é responsável pela abstração,

uma vez que ela se dá por meio de conceitos na consciência tornando possível

a própria linguagem. Tal princípio é exclusividade dos seres humanos. Os

juízos que emitimos sobre o mundo são derivados do princípio de razão

suficiente do conhecer. Vale ressaltar que Schopenhauer apresenta quatro

tipos de juízos, cuja verdade pode variar.

A primeira verdade disposta é caracterizada como uma verdade lógica

ou formal. Esse primeiro tipo de verdade demonstra que um juízo pode ter por

fundamento outro juízo. Em vista disso, a fundamentação de um juízo por outro

nasce sempre por comparação, conversão, contraposição, ou mesmo por

adjunção de um terceiro juízo. Noutras palavras, para se operar por meio de

silogismos é necessário que um juízo seja o fundamento de outro, tendo como

auxílio um terceiro, pois os mesmos sempre serão relação de conceitos. Por

ser o silogismo apenas um conjunto de regras extraídos do princípio do

28

conhecer que se relacionam entre si, devemos chamar tais juízos bem

concatenados de verdades lógicas.

A segunda verdade, que também pode ser extraída do princípio de

razão suficiente do conhecer, é denominada pelo autor de empírica. Ele (o

juízo) é adquirido por intermédio dos sentidos, por possuir como ponto de apoio

a experiência. Isto comprova que as apreciações conceituais que emitimos

sobre o mundo, a partir da apreensão imediata que o intelecto faz da realidade,

têm sua base na verdade material. Essa verdade, apesar de mediada pelos

sentidos, apoia-se também em conhecimentos abstratos e discursivos, estando

localizada entre a inteligência e a razão. Para Schopenhauer (2005, p. 53),

“toda intuição é intelectual”.

O terceiro tipo de verdade abordado pela filosofia schopenhaueriana é

denominada de transcendental. Trata-se das formas intuitivas residentes na

inteligência e na pura sensibilidade que são as condições de possibilidade de

toda e qualquer experiência possível. Diferentemente de Kant, que postulou na

Crítica da razão pura que as intuições sem conceitos são cegas, Schopenhauer

diria que não há conceitos sem que o sujeito intua primariamente o mundo.

Assim, podemos defender a assertiva que todo e qualquer juízo de verdade

transcendental possui como suporte a experiência. Essa última é determinada

pelas formas a priori do tempo, do espaço e da causalidade.

A última verdade que Schopenhauer descreve nesta seção da Raiz

quádrupla é a verdade metalógica, cujas condições de possibilidade são

formais e que reside, contudo, na razão; ela também pode ser o fundamento de

um juízo. De modo geral, observa-se que todas essas verdades explicitadas

pelo autor são derivadas do princípio de razão suficiente do conhecer.

O terceiro aspecto do princípio de razão suficiente está relacionado

com as formas puras da aritmética e da geometria, denominado de “princípio

de razão suficiente de ser” (principium rationis sufficientis essendi), sendo que,

na aritmética encontramos a noção de tempo e na geometria a noção de

espaço. Nesse ponto, Schopenhauer define a essência do tempo e do espaço

(forma de todo objeto), que podem ser respectivamente entendidas como

sucessão e posição.

No tempo, é necessário que se faça uma relação com o momento

anterior, isto é, aquele momento é condição indispensável para o momento

29

posterior, pois assim sendo, só podemos chegar ao momento seguinte quando

o primeiro desapareceu. Percebemos esse fluxo temporal quando estamos

tratando dos números. Para chegarmos ao número dez, por exemplo, temos,

que ter passado pelo seu antecessor, e assim, sucessivamente. Em

contrapartida, na geometria não encontramos sucessão, mas apenas formas

que se posicionam em um determinado lugar. Ambas as formas são dadas

aprioristicamente ao sujeito para que o seu entendimento apreenda os estados

de alteração da matéria.

O quarto e último aspecto do princípio de razão suficiente relaciona-se

com as ações humanas e seus motivos, pois em todas as resoluções se

pergunta os porquês de um determinado acontecimento moral, ou seja,

pergunta-se pelos motivos que impulsionaram os indivíduos a agirem de uma

determinado modo na relação com os outros humanos em um mundo que lhe é

próprio, o mundo da moralidade. Este princípio recebe a denominação de

“princípio da razão suficiente do agir” (principium rationis sufficientis agendi).

Schopenhauer faz uma interpretação da realidade a partir dos motivos

(circunstâncias externas) e das próprias percepções internas com relação aos

atos volitivos. Dito de outro modo, o princípio de razão suficiente do agir atua

no mundo do ethos para explicar as “causas” externas (os motivos) que,

conectadas ao caráter – conceito que esclareceremos no último tópico deste

capítulo – produzem necessariamente um determinado tipo de ação. Percebe-

se com nitidez que a atuação deste último princípio está ligada ao problema da

ética e seus desdobramentos na teoria moral schopenhaueriana em virtude do

sujeito querente marcar a sua efetividade interna em relação ao seu agir.

Destarte, é por intermédio das quatro raízes do princípio de razão

suficiente que se pode entender a realidade. Trata-se de um princípio soberano

dentro da esfera fenomênica, seja pela atividade perceptiva do sujeito, seja de

um modo prático e científico, seja pra entender as ações humanas. Só duas

coisas escapam de sua jurisdição: ele mesmo, pelo fato de já ser pressuposto

para explicar toda a realidade fenomênica, e a coisa em si. Dada essa

apresentação propedêutica da filosofia schopenhaueriana, no que toca a

exposição do princípio, podemos passar agora para os dois conceitos que são,

segundo Schopenhauer, os dois lados inseparáveis do mundo: Representação

e Vontade.

30

1.2. Os conceitos de representação e vontade

Neste tópico, temos por objetivo analisar os conceitos que juntos

constituem a totalidade do mundo na ótica schopenhaueriana: primeiro, sob o

prisma daquilo que se mostra enquanto imagem ao sujeito, aquilo que está

inserido no tempo e no espaço e na causalidade que, por sua vez, forma o

princípio de razão suficiente, ou seja, apresentaremos o mundo sob a

perspectiva do fenômeno kantiano, noutras palavras, da representação.

No segundo momento, abordaremos o aspecto imaterial e imanente do

mundo, aquilo a que não cabe nenhuma forma, o pulso cego, irracional e

desprovido de finalidade que pode ser encontrado em toda natureza, a saber,

trataremos da Vontade. Trata-se respectivamente do conceito de fenômeno e

coisa em si kantiana, redefinidos sob a ótica da visão de mundo

schopenhaueriana. Faz-se necessário continuarmos a apresentar a

epistemologia do autor de Sobre o fundamento da moral bem como o aspecto

metafísico de seu pensamento, uma vez que é a partir desses pontos que

adentramos aos meandros de sua ética.

1.2.1. Do mundo como Representação

A frase de abertura da obra magna de Schopenhauer diz respeito à sua

primeira grande tese: “o mundo é minha representação”. Trata-se de uma

verdade tão certa e clara. Verdade essa de que todo o mundo se apresenta

para o indivíduo quando o mesmo abre os olhos, embora seja apenas o

homem o único que consegue abstrair essa realidade, que tal assertiva não

necessita de prova. Toda a realidade empírica que aparece enquanto imagem

ao sujeito cognoscente existe apenas enquanto sua representação.

Torna-se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão que toca a terra. Que o mundo a cercá-lo existe apenas como representação, isto é, tão-somente a outrem, aquele que representa, ou seja, ele mesmo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43)

O mundo que nos cerca existe somente como representação pelo fato

de o sujeito ser o sustentáculo do mundo, posto que a realidade inteira existe

31

em uma relação indissociável com o sujeito: “Tudo o que pertence e pode

pertencer ao mundo está inevitavelmente investido desse estar-condicionado

pelo sujeito, existindo apenas para este. O mundo é representação”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 44).

Segundo essa linha de pensamento, o sujeito é aquele que dá sentido

ao mundo e que deve interagir com os objetos pertencentes a este, pois o

mundo é representação de quem conhece e representa, ou seja, o sujeito.

Portanto, o mundo como representação depende tanto do sujeito, como do

objeto. Estas duas metades são indissociáveis, possuindo sentido uma em

relação à outra. Como afirma Schopenhauer:

Contudo, caso aquele único ser desaparecesse, então o mundo como representação não mais existiria. Tais metades são, em consequência, inseparáveis, mesmo para o pensamento: cada uma delas possui significação e existência apenas por e para a outra; cada uma existe com a outra e desaparece com ela. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 46)

Essa inseparabilidade é necessária para vislumbrar o mundo como

representação e como Vontade, ou seja, é necessário entender que o sujeito

do conhecimento é operante. Só ele possui as três formas puras do

conhecimento – que são dadas a priori, isto é, tempo, espaço e causalidade –

que unidas formam o princípio de razão suficiente. O mundo como

representação existe apenas em relação ao sujeito. Nas palavras de

Schopenhauer:

Aquele que tudo conhece mas não é conhecido por ninguém é o SUJEITO. Este é, por conseguinte, o sustentáculo do mundo, a condição universal e sempre pressuposta de tudo que aparece, de todo objeto, pois tudo o que existe, existe para o sujeito. Cada um encontra-se a si mesmo como esse sujeito, todavia, somente na medida em que conhece, não na medida em que é objeto do conhecimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45, grifo do autor)

Deve-se ter em mente que o sujeito, aquele que conhece e não é

conhecido por ninguém, apreende toda a realidade empírica por intermédio do

“corpo”. Tal conceito é fundamental para compreendermos as considerações

epistêmicas schopenhauerianas, em razão de haver uma precedência do corpo

sobre o próprio entendimento. Ao discorrermos sobre a apreensão da realidade

fenomênica, a partir das formas puras do objeto (tempo e espaço), já

pressupomos a existência de um corpo que também é considerado objeto,

32

porque também sofre as alterações da matéria como qualquer outro fenômeno.

No entanto, trata-se de um tipo especial de objeto, a saber, objeto imediato.

Neste sentido digo que o corpo é CONHECIDO imediatamente, é OBJETO IMEDIATO. Todavia, aqui não se deve tomar o conceito de objeto no sentido estrito do termo, pois, por meio do conhecimento imediato do corpo, que precede o uso do entendimento e é mera sensação dos sentidos, o corpo mesmo não se dá propriamente como OBJETO, mas, antes, os corpos que fazem efeito sobre ele. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 63, grifos do autor)

Trata-se de um objeto imediato pelo fato de o corpo sentir as próprias

modificações sofridas pelos estados de alterações da matéria, isto é, o seu

fazer-efeito, sem a necessidade de intermediação do entendimento. Nesse

sentido, podemos afirmar que o corpo é o próprio ponto de partida para que o

sujeito intua o mundo, pois “[...] os corpos animais são OBJETOS IMEDIATOS

do sujeito; a intuição de todos os outros objetos é intermediada por eles”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 53, grifos do autor).

É por essas razões mencionadas acima que Schopenhauer apresenta

o corpo como uma condição necessária para que o sujeito possa vir a

representar o mundo à sua volta. Mas o que vem a ser representação na ótica

schopenhaueriana? Ela é tudo que aparece como imagem para o

entendimento. Em outras palavras, trata-se de uma figura que o intelecto capta

de modo imediato quando o indivíduo abre os olhos. É digno de nota que o

conceito de representação possui alguns sinônimos que lhe são correlatos.

Quando Schopenhauer usa termos como objeto, fenômeno e

aparência, por exemplo, devemos ter em mente que é sobre o aspecto

representacional do mundo que o autor está a dissertar. Tal cognoscibilidade é

regida pelo princípio de razão suficiente e suas quatro raízes, já trabalhadas

nos tópicos 1.1 e 1.2 deste trabalho.

Ao se referir ao mundo como representação, Schopenhauer mostra

que existem dois lados essenciais, que são inseparáveis e necessários, um

desses lados é o objeto, cuja forma é dada no tempo e no espaço e que tem

como decorrência a pluralidade. O outro lado é o sujeito que não está

circunscrito nem ao tempo e nem ao espaço, pois é o único que representa o

mundo. Isso mostra que, para Schopenhauer, esses dois lados (sujeito e

objeto) são inseparáveis, isto é, cada uma dessas partes possui existência

somente por e para outra.

33

Segundo Schopenhauer, “onde começa o objeto, termina o sujeito”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 46). Essas partes se limitam imediatamente,

sendo que esse limite pode ser mostrado por meio do tempo, espaço e

causalidade. Tais partes podem ser conhecidas partindo do sujeito, sem o

conhecimento do objeto, uma vez que já se encontram a priori em nossa

consciência4. Não há uma primazia do sujeito para com o objeto e nem do

segundo para com o primeiro. O que existe é uma relação de coexistência

entre ambos para que exista a possibilidade de falarmos em mundo.

Não se pode deixar de evidenciar que Schopenhauer classifica as

representações em dois tipos, a saber, intuitivas e abstratas. As

representações abstratas constituem-se através dos conceitos que só o

homem pode trazer à sua consciência por intermédio da razão; isso é o que

diferencia, na face da terra, os homens dos animais. Já as representações

intuitivas têm como requisito essencial abranger todo o mundo visível, ou a

experiência em sua totalidade ao lado das suas condições de possibilidade.

A diferença capital entre todas as nossas representações é a entre intuitivas e abstratas. Estas últimas constituem apenas UMA classe de representações, os conceitos – que são sobre a face da terra exclusividade do homem, cuja capacidade para formulá-los os distingue dos animais –, e desde sempre foi nomeado Razão [...] Porém, falaremos exclusivamente das REPRESENTAÇÕES INTUITIVAS. Estas abrangem todo o mundo visível, ou a experiência inteira, ao lado de suas condições de possibilidade [...] Intuição que não é como um fantasma, extraído por // repetição da experiência, mas tão independente desta que, ao contrário, a experiência tem que ser pensada como dependente desta, visto que as propriedades do espaço e tempo, conhecidas a priori pela intuição, valem para toda a experiência como leis com as quais, na experiência, tudo tem de concordar. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 47, grifo do autor)

Nesse trecho de O mundo como vontade e como representação

(2005), Schopenhauer remete o leitor ao apêndice dessa obra, intitulado de

Crítica à filosofia kantiana, o qual evidencia o seu grande ponto de discordância

com Kant. Se, para o autor das três críticas, a intuição apreende apenas

impressões difusas da realidade fenomênica, pelo fato de os dados da

realidade necessitarem de conceitos para ser devidamente categorizados

4Schopenhauer afirma que tempo, espaço e causalidade podem ser encontrados e

completamente conhecidos partindo do sujeito, sem o devido conhecimento do objeto, ou seja, na linguagem kantiana, eles residem a priori em nossa consciência. O autor afirma ainda que esse foi um dos méritos de Kant. Cf. SCHOPENHAUER, 2005, p. 46.

34

(afinal, as intuições são “cegas”), para Schopenhauer, ao contrário, a intuição é

intelectual.

Não há nenhuma mediação da razão e muito menos a necessidade de

conceitos para que os animais não humanos ou uma criança que ainda não

adquiriu linguagem, por exemplo, possam representar o mundo à sua volta. A

realidade que aparece ao sujeito (seja ele provido de racionalidade ou não) é

imediata. Os conceitos são apenas representações de representações e, sendo

assim, são oriundos das representações intuitivas. Para que os homens

possam categorizar conceitualmente o mundo representacional é condição

necessária que se tenha tido anteriormente representações intuitivas.

Essa diferença conceitual estabelecida entre representações intuitivas

e abstratas que, segundo Schopenhauer, Kant não soube diferenciar, nos

permite compreender uma diferença metodológica na construção da filosofia de

ambos os autores. Enquanto a filosofia kantiana parte do conhecimento

mediato, refletido, dando à razão um tratamento superior ao que é intuído para

a construção de seu edifício filosófico; o filósofo da metafísica da Vontade parte

do conhecimento intuitivo e imediato para fundamentar a sua visão de mundo.

Percebemos ao ler a filosofia schopenhaueriana que o autor reconhece

que uma das mais importantes descobertas de Kant foi ter pensado um

elemento comum a todos os fenômenos, ou seja, tempo e espaço como as

condições de possibilidade de toda experiência possível. Ambas as categorias

supracitadas podem ser pensadas em abstrato por si e separadas do seu

conteúdo. No entanto, tempo e espaço podem ser intuídos de maneira

imediata. A intuição, como bem enfatiza Schopenhauer, não é extraída por

repetições da experiência, mas é independente desta.

Seguindo essa linha de raciocínio, podemos defender a tese de que a

experiência é dependente da intuição. Tempo e espaço, apesar de serem a

forma de todo objeto, também são considerados um tipo especial de

representações pelo fato de existirem por si mesmas. Em razão de essas

categorias serem desprovidas de conteúdo, tais peças do vocabulário

schopenhaueriano são representadas apenas na intuição. Dito de outro modo:

o sujeito não precisa da experiência para tornar a temporalidade e

espacialidade os objetos puros de sua própria representação.

35

Neste sentido, o que marca a diferença entre o kantismo e a filosofia de

Schopenhauer é a questão sobre como ambos concebem o que é a

experiência. Kant leva para dentro da intuição o pensar quando expõe a

assertiva de que um objeto não pode ser representado. “Schopenhauer se

contrapõe à soberania de uma faculdade de pensar, incapaz de conferir

realidade às intuições, que não pode ser, portanto, o autor da experiência”

(CACCIOLA, 1994, p. 36).

Isso mostra que existe uma diferença no método dos dois filósofos, ou

seja, Kant tem como ponto de partida o que é mediato e Schopenhauer, em

oposição, mostra que seu ponto de partida é a intuição. A partir dessa

afirmação, Kant teria transformado o pensamento racional para garantir a

legalidade de todo conhecimento intuitivo. Nas palavras de Cacciola:

Isolado todo o essencial dos conceitos como tais e abstraído do seu conteúdo, para observar, através dessas formas assim encontradas de todo pensamento, o que seria essencial a todo conhecimento intuitivo, por conseguinte ao mundo dos fenômenos em geral; e, porque este seria encontrado a priori, por causa da necessidade daquelas formas de pensamento, seriam então de origem subjetiva e levaria, justamente, aos fins de Kant. (CACCIOLA, 1994, p. 37)

Em relação a isso, Kant teria reduzido a experiência ao conhecimento

abstrato atribuindo à racionalidade um papel que, na perspectiva

schopenhaueriana, é da intuição. Desse modo, Schopenhauer afirma que o

criticismo kantiano teria deixado de lado a experiência como sendo a única

fonte inexaurível do conhecimento em virtude da sobreposição e da

importância que Kant atribuiu aos conceitos advindos da razão.

Todavia, como alerta-nos Schopenhauer, ainda no âmbito da

representação, sujeito e objeto são termos correlatos e, por conseguinte,

constituem a forma da representação. Levando em conta essa perspectiva, ele

critica as teorias filosóficas que defendem a tese de que existe um sujeito

independentemente do objeto ou mesmo um objeto que independa do sujeito.

Entre tais correntes estão o dogmatismo, o ceticismo, o idealismo de seus

contemporâneos (Fiche, Schelling e Hegel) bem como a própria filosofia da

Natureza.

Primeiramente, Schopenhauer tece críticas ao dogmatismo, o qual,

segundo o filósofo, coloca o objeto como causa e o sujeito como efeito

daquele, partindo, portanto, só de uma perspectiva. Isso se deve ao fato de

36

que, para o dogmatismo, a relação causal pressupõe uma distinção entre

sujeito e objeto. Para Schopenhauer, não deve haver uma separação entre

sujeito e objeto como queria o dogmatismo. Na perspectiva schopenhaueriana,

o ceticismo também incorreu no mesmo erro. Segundo Cacciola:

Tanto contra o realismo dogmático quanto contra o ceticismo adverte Schopenhauer que: em primeiro lugar a lei da causalidade não deriva da experiência; em segundo, objeto e representação não se distinguem; e, ainda, que o ser dos objetos é seu próprio agir (Wirken), já que matéria e causalidade são sinônimas. (CACCIOLA, 1994, p. 30)

Schopenhauer também criticou as teorias filosóficas que partiram

apenas do objeto, isto é, as filosofias da natureza em suas quatro modalidades,

que correspondem às classificações do princípio de razão suficiente. Podemos

confirmar essa linha de pensamento no fragmento abaixo:

Assim, pode-se dizer que, da primeira daquelas classes, ou do mundo real, partiram Tales e os jônicos, Demócrito e Epicuro, Giordano Bruno e os materialistas franceses; da segunda, ou dos conceitos abstratos, Espinosa (valer dizer, do conceito de substância, meramente abstrato e que existe unicamente em sua definição) e, anteriormente, os eleatas; da terceira classe, vale dizer, do tempo, por conseguinte dos números, os pitagóricos e a filosofia chinesa do I-Ching; por fim, da quarta classe, isto é, do ato da vontade motivado pelo conhecimento, partiram os escolásticos, que ensinavam uma // criação a partir do nada, mediante o ato da vontade de um ser pessoal extramundano. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 71)

Para Schopenhauer, dentre estas vertentes filosóficas, o Materialismo

é o mais problemático, posto que, nessa perspectiva, a matéria, incluindo

tempo e espaço, adquire, em sentido próprio, uma independência em relação

ao sujeito. Logo, o materialismo se dispõe a partir de um estado primitivo da

matéria, que por sua vez obedece à lei de causalidade. Neste sentido, “o

materialismo é contestado, porque a existência objetiva de que ele parte já está

condicionada como objeto pelo sujeito e nada mais é que representação”

(CACCIOLA, 1994, p. 31). Contudo, para Schopenhauer, o conhecimento que

se dá por uma modificação da matéria é um erro, pois toda matéria pode ser

modificada pelo sujeito enquanto sua representação.

Renuncio à profunda sabedoria contida nesta construção. Ora, como me é vedada por completo a intuição-da-razão, todas as exposições que a pressupõem têm de ser para mim um livro com sete selos. A coisa vai tão longe que (e isso é estranho confessar), no contato com aquelas doutrinas de profunda sabedoria, sempre me dá a impressão

37

de ouvir somente horríveis discursos vazios e, decerto, extremamente tediosos. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 70-71)

Conforme as considerações acima em relação tanto ao dogmatismo

como ao materialismo, Schopenhauer os vê como problemáticos, como já

explicitamos acima. Isso pressupõe que Schopenhauer não aceita tais teorias,

em virtude da matéria não poder ser dada de maneira incondicional e

independente em relação ao sujeito. Como enuncia Christopher Janaway:

A oposição de Schopenhauer ao materialismo decorre diretamente a partir da discussão entre sujeito e objeto. [...] A falsidade inescapável do materialismo consiste [...] principalmente em seu início em uma petição de princípio, ou seja, a partir de pressupostos de que a matéria é uma coisa simples e incondicionalmente dada, algo presente independentemente, e, portanto, na verdade uma coisa em si. (JANAWAY, 1989, pp. 175-176, tradução nossa)

Diante do exposto, a crítica ao materialismo desempenha um papel

importante na teoria schopenhaueriana, tendo em vista que as analises são

unilaterais por levarem em consideração apenas um aspecto da realidade: o

mundo como representação. Porém, sabemos que existe um aspecto da

realidade metafísica que tais filosofias não levaram em consideração, a saber,

a Vontade: “Assim, o pseudodado objetivo, ponto de partida do materialismo,

nada mais é que uma representação” (CACCIOLA, 1994, p. 32). Schopenhauer

usa a mesma distinção para refutar as teorias que partem apenas do sujeito.

A teoria schopenhaueriana se diferencia tanto das teorias que partem

somente do sujeito bem como as que partem apenas dos objetos. É

exatamente esse ponto que faz de Schopenhauer um filósofo crítico para com

o idealismo transcendental bem como para a filosofia da natureza. Em relação

à sua crítica ao idealismo, é necessário situar as vertentes que surgiram depois

do idealismo de Kant, ou seja, os filósofos pós-kantianos. Nessa envergadura

podemos citar Fichte, Schelling e Hegel.

Para Schopenhauer, sujeito e objeto são termos correlatos em virtude

de os olhos do sujeito serem os intermediadores indispensáveis para o

conhecimento: sem sujeito, o mundo não seria concebido. Schopenhauer

enuncia: “pois o mundo é absolutamente representação, e precisa, enquanto

tal, do sujeito que conhece como sustentáculo de sua existência”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 75).

38

Fichte, primeiro e mais importante discípulo de Kant, também foi alvo

de críticas de Schopenhauer. A filosofia fichteana parte de uma refomulação do

criticismo kantiano no que diz respeito ao conceito de coisa em si, trabalhado

pelo seu mestre na Crítica da razão pura, para a formulação de um dos

principais conceitos. Fichte, na visão de Schopenhauer, concebeu que o “Eu”

poderia dar conta de toda a realidade, seja ela espiritual ou material; trata-se

de um “eu” puro, universal, transcendental ou absoluto. Cada individualidade,

ou seja, cada eu empírico em sua particularidade desenvolver-se-ia a partir de

um Eu puro, no qual poderia existir uma divindade infinita.

Tal processo de absolutilização do “eu” faz parte de uma cadeia infinita,

sendo um processo ascendente que não finda, porque caso se findasse

apagar-se-ia a vida dessa divindade infinita e só restaria o nada. Porém, Fichte,

ao propor essa idealidade infinita, justifica por meio do “eu” o mundo material.

Segundo a visão de Schopenhauer, Fichte estaria contrariando a própria teoria

kantiana no que diz respeito à impossibilidade de se falar em Deus, Alma e

Mundo. Noutras palavras, é racionalmente inconcebível dentro de um sistema

de idealismo absoluto que tudo possa ser justificado racionalmente. Desse

modo, Schopenhauer enuncia:

[...] que é a doutrina-do-eu de Fichte e, por consequência, em conformidade com o princípio de razão, faz o objeto ser produzido ou tecido fio a fio a partir do sujeito; e a filosofia da natureza, que, semelhantemente, faz o sujeito surgir aos poucos a partir do objeto mediante o uso de um método denominado construção [...]. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 70)

A contestação schopenhaueriana em relação à doutrina de Fichte é o

fato deste filósofo partir apenas do sujeito. Para Schopenhauer “[...] quando o

sujeito é dado, também é dado de imediato o objeto, e vice-versa”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 78). E ainda:

A filosofia fichtiana, de resto indigna de menção, nos é interessante aqui apenas como real oposição tardiamente surgida ao velho materialismo, que foi a mais consequente filosofia que parte do objeto, como a fichtiana que parte do sujeito. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 79)

Conforme Schopenhauer, Fichte teria colocado o sujeito como algo

essencial, cometendo o mesmo erro dos dogmáticos bem como dos

materialistas que partiram de um único fundamento, seja a partir do sujeito ou a

39

partir do objeto. A crítica schopenhaueriana a Schelling e a Hegel segue a

mesma linha de raciocínio, tendo em vista que ambos os filósofos construíram

os seus sistemas a partir da noção de absoluto.

No entanto, iremos delimitar algumas particularidades do sistema de

Schelling. É importante observar que Schelling assume em seu sistema uma

concepção romântica, pois para ele a natureza é espiritualizada e o espírito

humano atinge a essência do mundo por meio da intuição estética.

Aqui percebemos uma aproximação entre Schopenhauer e Schelling

do que um distanciamento. No entanto, a filosofia da identidade descrita em

sua primeira fase tem um fundamento mais fecundo, esse fundamento é

anterior ao “eu” e ao “não-eu” (referindo-se a Fichte), posto que, o que

Schelling toma como ponto de partida é uma unificação da identidade absoluta,

que se transpõe do eu para o não-eu, para o sujeito, para o objeto, para o

espírito e para a natureza, formando uma unidade indissociável. Essas

considerações aparecem na filosofia da identidade de Schelling, escrito

proveniente da juventude do autor.

Na segunda fase de seus escritos, Schelling aborda o caráter teológico

e coloca Deus em seu sistema como sendo um ser absoluto, a própria auto-

revelação que não se diferencia pelo seu aspecto irracional. Para ele, Deus é a

possibilidade da vontade inconsciente que aspira racionalidade. De acordo com

essa linha de raciocínio, não se pode explicar a passagem de Deus do mundo

ideal ao mundo empírico e contingente por meio de uma proposição lógica,

tendo em vista que ele seria neste caso uma essência heterogênea entre o

perfeito, o temporal, o imutável e o universal.

A passagem de Deus ao mundo ideal só poderá ser explicada por uma

via irracional. Tal mediação só pode ser concebida através de uma concepção

que é explicada mediante um ato irracional da vontade. Por conseguinte, o que

é racional para Schelling é o mundo das ciências, das ideias. Para ele, o

mundo da existência e da realidade é irracional, logo, o primeiro, ou seja, o

mundo das ciências, só é possível através do conhecimento racional, e o

segundo, por ser descrito unicamente tendo como base a experiência.

Segundo Bernadette Siqueira Abrão (2004, p. 343), é necessário que

Schelling diga “que a natureza seja o espírito visível, e o espírito, a natureza

invisível”. Desse modo, Schelling pretende desvincular o “eu” do absoluto,

40

elaborando uma filosofia da identidade, pretendendo, com esta, sanar a

problemática da diferença, tendo em vista que a pluralidade dos seres finitos

será introduzida no recôndito da identidade absoluta, caracterizada por

Schelling como sendo Deus:

Com isso, o que Schelling pretende é solucionar o problema da diferença – a pluralidade dos seres finitos – introduzindo-a no interior da própria identidade absoluta. Esta é agora denominada Deus, que tem nele mesmo a diferença entre sua existência e seu fundamento, sua natureza. Diferença na identidade, esse fundamento se destaca do próprio Deus: é o “fundo sem fundo”, o mundo sensível e finito, o homem e sua liberdade – em suma, o mal. Mas, alcançada essa situação, é possível o bem, isto é, o regresso ao absoluto. (ABRÃO, 2004, p. 345)

Portanto, o sistema de Schelling abarca duas fases. A primeira condiz

com sua filosofia da identidade e a segunda com a sua filosofia da liberdade,

isto é, o espírito, o sujeito e o eu são o princípio de tudo. Desse modo,

Schelling continua adepto do idealismo. É por esse motivo que seu idealismo

pode ser considerado estético, pois a unidade, a identidade profunda entre

natureza e espírito, pode ser apreendida por uma intuição estética expressa

através de uma obra de arte pelo gênio que é o único capaz de captar a

essência da arte e, assim, atingir e revelar a verdadeira realidade absoluta.

Nesse caso, não existe uma separação entre natureza e espírito, objeto e

sujeito, que são unidades de uma multiplicidade.

Como base no que foi acima citado, podemos inferir que em algum

momento Schopenhauer se identifica com o idealismo estético de Schelling em

relação à natureza estética e a não separação entre sujeito e objeto quando se

dá a fruição do belo. Assim, o sistema que parte apenas do sujeito é

inadequado, de onde provém sua crítica a Fichte. Para Schelling, vida e

liberdade constituem a verdadeira realidade. Schelling entende que a filosofia

transcendental e a filosofia da natureza são complementares, pressupondo que

é possível percorrer o caminho nessas duas direções, pois assim pode-se

construir a unidade sujeito-objeto tanto em um polo como em outro.

O terceiro alvo das críticas de Schopenhauer é Hegel. Com ele,

Schopenhauer é mais duro e severo. No prefácio da segunda edição de O

mundo como vontade e como representação, ele aponta que Hegel é um

‘charlatão’, pois, nessa época, brilhava como herói que articulava em sua teoria

aspectos históricos.

41

Para se entender o absoluto hegeliano, é necessário que o espírito

retorne para o em si, para sua autoconsciência, para, posteriormente, desvelar-

se por meio da cultura, da ciência, da religião, da arte e da filosofia. Nesse

sentido, o que consiste o absoluto hegeliano? Para Hegel (1997), o absoluto é

a afirmação dos processos históricos, a razão como eixo central, o Estado

como condição de superação do indivíduo e da sociedade civil: “É assim que

este nosso tratado sobre ciência do Estado nada mais quer representar senão

uma tentativa para conceber o Estado como algo racional em si” (HEGEL,

1997, p. 37). Noutras palavras, essa consideração hegeliana sugere uma

imbricação entre o real e o racional; isto implica que o filósofo considera tanto o

universo espiritual como o natural. Nas palavras de Hegel:

Com efeito o racional, que é sinônimo de Ideia, adquire, ao entrar com a sua realidade na existência exterior, uma riqueza infinita de formas, de aparências e de manifestações, envolve-se, como as sementes, num caroço onde a consciência primeiro se abriga mas que o conceito acaba por penetrar para surpreender a pulsação interna e senti-la bater debaixo da aparência exterior.(HEGEL, 1997, p. 36)

Portanto, a filosofia hegeliana tem um caráter dialético, que está

subordinado à história. Esse é um dos aspectos criticados por Schopenhauer

no sistema hegeliano. O autor de O mundo como vontade e como

representação critica a atitude de Hegel de colocar a razão como princípio

norteador e absoluto que explica o mundo da vida, tomando como base a

historicidade. Para Schopenhauer, a tentativa de legitimar o progresso numa

apreensão totalizante da história de forma sistemática é um erro. Em

concordância com Schopenhauer, Maurício Garcia Chiarello enuncia:

O ardil da razão hegeliana deve ser compreendido como astúcia do próprio sistema de pensamento que justifica racionalmente o mundo, e não como a verdade da realidade cuja história, ao contrário de culminar no Espírito absoluto, continua sendo dominada pela contradição, pelo negativo e pela dor. (CHIARELLO, 2001, p. 188)

Sob esse ponto de vista, Schopenhauer acredita ultrapassar o sistema

hegeliano, uma vez que tal sistema parece reforçar uma ilusão de se pensar

uma vida feliz que abarque a totalidade do sistema, encontrando, assim, a

universalidade do conceito no espírito absoluto.

Em relação aos idealistas Fichte, Schelling e Hegel, iremos colocar

uma citação na íntegra encontrada na obra Fragmentos sobre a história da

42

filosofia, para fins de entender porque Schopenhauer é tão severo com os

filósofos supracitados:

Digno do seu antecessor, Schelling logo seguiu os passos de Fichte, que, no entanto, abandonou, a fim de anunciar sua própria descoberta, a absoluta identidade do subjetivo e do objetivo ou do ideal e do real [...] Schelling foi sucedido por uma criatura filosófica e ministral: HEGEL, que, com propósitos políticos e equivocados, foi qualificado de cima a baixo de grande filósofo. Um charlatão trivial, insípido, repugnante, repulsivo e ignorante, que, com atrevimento sem igual, garatujou loucuras e disparates, divulgados por seus seguidores mercenários como sabedoria imortal e aceitos como tal por néscios, o que deu origem a um perfeito coro de admiração tão completo como nunca se ouvira antes. (SCHOPENHAUER, 2007, pp. 140-141, grifo do autor)

A citação acima é um indicativo forte da crítica de Schopenhauer aos

idealistas alemães, em especial os que já nos referimos acima. Contudo, suas

críticas giram em torno de se priorizar um absoluto, levando em consideração,

a razão. Por conseguinte, a razão, tão priorizada pelos idealistas é, para a

filosofia schopenhaueriana, secundária, sendo, apenas do ponto de vista

representacional, a ‘maquinaria’ própria do humano capaz de criar conceitos.

Schopenhauer, mesmo sendo o último dos idealistas, marca uma

diferença crucial entre a sua filosofia e a de seus contemporâneos no tocante à

importância que os seus contemporâneos deram à racionalidade, à qual

Schopenhauer opõe-se, pois tinha como ponto de partida a própria apreensão

imediata e intuitiva do mundo como representação, uma vez que o mundo, para

existir, deve estar em constante interação com o sujeito: “Eles se limitam

imediatamente: onde começa o objeto termina o sujeito” (SCHOPENHAUER,

2005, p. 46).

Toda a discussão anterior mostrou que, para Schopenhauer, não existe

um sistema que tenha tido êxito partindo somente de um ponto de vista, ora

partindo do sujeito, ora do objeto, ou até mesmo de um absoluto. Essas

explicações anteriores têm sua abordagem dentro do campo da representação.

Nesse sentido, as prerrogativas exigidas pelo autor para a construção de um

sistema filosófico adequado epistemologicamente têm que levar em conta de

que maneira o mundo se apresenta, seja na perspectiva do sujeito ou na do

objeto.

Todavia, como já pontuamos neste trabalho, o aspecto

representacional do mundo constitui apenas um lado da realidade. O próprio

43

autor afirma que sua exposição acerca da realidade fenomênica, apresentada

de maneira isolada no primeiro Iivro de O mundo como vontade e como

representação, é unilateral e arbitrária. É nesse momento que Schopenhauer

anuncia que o mundo também é Vontade, “pois assim como este é, de um

lado, inteiramente REPRESENTAÇÃO, é, de outro, inteiramente VONTADE”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 45, grifos do autor).

Essa exposição do aspecto metafísico do mundo, ou seja, do mundo

enquanto Vontade, servirá como explicação complementar da abordagem que

estamos fazendo das ações humanas, tendo em vista que é importante que se

compreendam os ímpetos irrefreáveis que conduzem o homem no momento do

agir: o querer. A abordagem das inclinações e disposições volitivas dos

indivíduos que, de maneira muito simplificada, diz respeito ao próprio caráter

dos homens (afinal de contas o querer “determina” aquilo que o indivíduo é), é

um elemento fundamental da ética schopenhaueriana.

1.2.2. Do mundo como Vontade

A segunda grande tese schopenhaueriana, que é a sua correspondente

para aquilo que seria a coisa em si kantiana, é de que o mundo em sua

totalidade também é Vontade. Toda a natureza, passando do reino inorgânico

ao orgânico, é apenas um reflexo do Em-si do mundo que se apresenta à

realidade fenomênica de inúmeras e incontáveis formas. Porém, enfatiza

Schopenhauer, a pluralidade que encontramos no aspecto representacional do

mundo não pode ser atribuída à própria Vontade em razão de ela ser alheia às

leis causais da quais os seus fenômenos estão submetidos. Ela (a Vontade)

não está submetida ao princípio de razão suficiente da qual é o seu fenômeno.

Podemos confirmar essa linha de pensamento no trecho abaixo:

De tudo que foi dito segue que a Vontade como coisa-em-si encontra-se fora do domínio do princípio de razão suficiente e suas quatro figuras, e, por conseguinte, é absolutamente sem fundamento, embora cada um de seus fenômenos esteja por inteiro submetido ao princípio de razão. Ela é, pois, livre de toda PLURALIDADE, apesar de seus fenômenos no espaço e no tempo serem inumeráveis. Ela é una, todavia, não no sentido de que um objeto é uno, cuja unidade é conhecida apenas em oposição à pluralidade [..,] a Vontade é una como aquilo que se encontra fora do tempo e do espaço, exterior ao principium individuationis, isto é, da possibilidade de pluralidade. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 171-172, grifos do autor)

44

A Vontade, essa força cega, una e desprovida de finalidade que

permeia toda a natureza, é o aspecto metafísico que marca ontologicamente

todos os seres existentes na natureza. O homem, considerado o grau mais

bem elaborado do substrato do mundo, pelo fato de ser provido de

racionalidade e de conseguir abstrair a realidade para além da imediatez das

representações intuitivas, também é considerado um “animal metafísico”. Por

ser a Vontade a coisa em si kantiana, como bem enfatiza Schopenhauer, e por

ela estar fora das determinações do princípio de razão suficiente em suas

quatro figuras, podemos afirmar que ela (a Vontade) também não pode ser

apreendida pelo intelecto bem com o númeno kantiano.

Porém, o leitor atento poderia fazer o seguinte questionamento: se a

Vontade não pode ser apreendida pelo intelecto humano por não aparecer

como imagem ao sujeito cognoscente, como Schopenhauer chega à conclusão

de que a coisa em si kantiana e a Vontade são sinônimas? Resposta: por meio

do corpo. Se no livro I de O mundo como vontade e como representação, parte

que trabalhamos no tópico 1.3.1 deste trabalho, o corpo foi apresentado como

objeto imediato do conhecimento, agora ele é apresentado como objetidade da

Vontade. Nas palavras do próprio Schopenhauer:

Ao sujeito do conhecimento que entra em cena como indivíduo mediante a sua identidade com o corpo, este corpo é dado de duas maneiras completamente diferentes: uma vez como representação na intuição do entendimento, como objeto entre objetos e submetido às leis destes; outra vez de maneira completamente outra, a saber, como aquilo conhecido imediatamente por cada um e indicado pela palavra VONTADE. Todo ato verdadeiro de sua vontade é simultânea e inevitavelmente também movimento de seu corpo [...] O ato da vontade e ação do corpo não são dois estados diferentes, conhecidos objetivamente e vinculados pelo nexo da causalidade; nem se encontram na relação de causa e efeito; mas são uma única e mesma coisa, apenas dados de duas maneiras totalmente diferentes, uma vez imediatamente e outra na intuição do entendimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 157, grifos do autor)

Nesse olhar metafísico, desenvolvido no livro II de sua obra magna,

Schopenhauer afirma que o corpo é uma espécie de ‘veículo’ no qual as

volições humanas manifestam-se em ações corpóreas imediatas e irrefletidas.

O indivíduo sente os ímpetos (que estão para além de espaço e tempo e da lei

de causalidade) pulsarem desmedidamente através dos órgãos corporais. Com

45

isso se torna possível compreender porque “a Vontade é apreendida, deste

modo, no corpo e através do corpo” (SCHONDORF, 1982, p. 186).

Nesse sentido, o corpo é “vontade” e “representação”; é o elemento

que permite que o indivíduo decifre o “enigma do mundo”. Trata-se de uma

explicação do corpo por duas vias: externa e interna. A primeira diz respeito ao

corpo enquanto objeto que está entre objetos e que sofre as determinações

temporais, espaciais e causais. A segunda refere-se ao ímpeto que, na maior

parte das vezes, conduz as ações humanas: o querer – pois “querer e corpo

são unos ou, ademais de ser representação, o corpo é Vontade” (BARBOZA,

2003, p. 31). É por isso que se pode dizer que a vontade é o conhecimento

apriorístico que o individuo possui do próprio corpo, assim como o corpo é o

conhecimento a posteriori da própria vontade.

Por conseguinte, o corpo, que no livro precedente e no meu ensaio sobre o princípio de razão chamei de OBJETO IMEDIATO, conforme o ponto de vista unilateral (da representação) ali intencionalmente adotado, aqui, de outro ponto de vista, é denominado OBJETIDADE DA VONTADE. Por isso, em certo sentido, também se pode dizer: a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade. (SCHOPENHAUER, 2005, p, 157, grifos do autor)

Pelo fato de os atos da vontade (vontade pensada aqui como mola

impulsora do querer interior) não diferirem dos atos do próprio corpo é que

Schopenhauer defende a tese que o conhecimento que o indivíduo possui de

si, ou seja, da sua própria existência enquanto um organismo vivo é imediato.

Essa compreensão, que é anterior ao próprio principio de razão suficiente, só o

sujeito é capaz de ter. Isso explica o porquê de as ações humanas, quase que

em sua maioria, não reconhecerem o outro no momento de agir, pois este

último será apenas apreendido como “objeto mediato do conhecimento” nunca

como manifestação da coisa em si.

Dito de outro modo, no que diz respeito ao nosso próprio ser, temos a

compreensão completa de que somos vontade e representação. No que diz

respeito ao outro, o nosso entendimento será “unilateral”, tendo em vista que a

apreensão ocorre apenas de maneira mediata, pois “[...] Só ele é ao mesmo

tempo vontade e representação, já os restantes, ao contrário, são meras

representações, vale dizer, meros fantasmas” (SCHOPENHAUER, 2005, p,

161).

46

Porém, como veremos no segundo capítulo deste trabalho, existe a

possibilidade de os indivíduos agirem de maneira desinteressada para com o

outro ser, reconhecendo assim o outro não como uma representação, um

fantasma, mas como uma manifestação da própria Vontade que, assim como

qualquer organismo vivo, pode sentir carência, sofrimento. Tal prática, porém,

só acontece quando o Véu de maia, ou seja, o princípio de razão suficiente,

não mais encobre os olhos daquele que passa a enxergar o mundo como uno,

em outras palavras, como Vontade. As dicotomias sujeito e objeto, eu e outro,

indivíduo e mundo, são suspensas temporariamente quando o agente

reconhece o sofrimento de outrem como seu.

Todavia, voltemos ao ponto da relação da vontade, abordada aqui

como esse pulso cego e irrefreável existente em cada ser existente na

natureza, com os atos do próprio corpo. As manifestações individuadas da

Vontade agem porque o meio externo (a causalidade) atua sobre os corpos

promovendo desconforto, satisfação e dor no organismo vivo.

Enquadra-se nessa linha de raciocínio duas objetivações

particularizadas do em-si do mundo: os animais e os homens. Os primeiros

agem por meio de excitações, tendo em vista que as ações do corpo não

acompanham o conhecimento, os segundos, por sua vez, agem na maior parte

das vezes por motivações pelo fato das ações virem acrescidas de

conhecimento abstrato. Conforme Schopenhauer:

O pássaro de um ano não tem representação alguma dos ovos pra o qual constrói o seu ninho; nem a jovem aranha tem da presa para qual tece uma teia; nem a formiga-leão da formiga para a qual cava um buraco pela primeira vez [...] Nas ações desses animais, bem como em outras, a Vontade é sem dúvidas ativa; porém se trata de uma atividade cega [...] Portanto, tudo aquilo que nele ocorre tem de ocorrer mediante Vontade, embora aqui a Vontade não seja conduzida por conhecimento, não seja determinada por motivos, mas atue cegamente segundo causas, neste caso chamadas EXCITAÇÕES. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 173-174, grifos do autor).

Tal nomenclatura, a saber, a excitação, é usada para explicar os atos

da Vontade nos animais desprovidos de consciência em razão de os mesmos

não terem a capacidade de representar abstratamente a realidade fenomênica.

Nas ações dos animais, a vontade é completamente ativa, tendo em vista que

47

os mesmos irão agir por impulso para manter o seu corpo vivo; porém, trata-se

de um ato cego, desprovido de conhecimento.

Nos seres humanos, ao contrário, embora as suas ações sejam, em

algum momento, movidas por impulsos, as ações acontecem por motivações.

Isso acontece por duas razões: a primeira possui relação com o fato de o

homem ser a única Objetidade da Vontade dotada da faculdade que produz as

representações abstratas, denominada em todos os tempos pelos filósofos da

razão. Isso permite que os seres humanos, ou seja, as manifestações

particularizadas da Vontade possam dissimular, ou seja, mentir, para conseguir

algo que é de seu interesse. Os animais nesse sentido agem apenas por

instinto, nunca por interesse. Tal característica é própria dos seres dotados de

conhecimento.

A segunda razão possui relação com o fato de o homem ser o único

entre os seres da natureza que possui uma individualidade bem constituída por

possuir características que o distinguem dos demais indivíduos da sua própria

espécie. As ações humanas, que podem ser entendidas como as ações da

vontade particular expressas pelo corpo, são produzidas por motivações que

aparecem à consciência do sujeito cognoscente em uma dada circunstância.

Assim, assinala Schopenhauer, cada fenômeno provido de racionalidade

possui uma marca “cravada” pela própria Vontade:

No grau mais alto de objetidade da Vontade, especialmente no homem, vemos aparecer significativamente a individualidade em grande diversidade de caracteres individuais, noutros termos, como personalidade completa, expressa exteriormente por fisionomia individual fortemente acentuada que abarca toda a corporização. Nenhum animal possui uma individualidade assim em alto grau [...] Na espécie humana, ao contrário, cada indivíduo tem de ser estudado e fundamentado por si mesmo [...] Portanto, cada homem deve ser visto como um fenômeno particularmente determinado e característico da Vontade, em certa medida até mesmo como uma Ideia própria. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 193)

Essa ‘Ideia própria’ existente em cada ser humano é o que

Schopenhauer chama de caráter. De maneira bem simplificada, podemos dizer

que o caráter, embora não possa ser absolutamente conhecido, como veremos

adiante, corresponde à vontade particular do indivíduo.

Deve-se ressaltar que o homem, mesmo sendo a manifestação mais

bem elaborada da Vontade, é apenas mais uma ‘peça’ na natureza. E, na ótica

48

schopenhaueriana, toda a natureza é um reflexo do substrato do mundo,

sendo, portanto, representação. Nesse sentido, podemos inferir que o homem,

mesmo sendo provido de caráter, também segue as determinações causais

(mediante as motivações que incitam o seu querer) como qualquer ser

existente no mundo fenomênico. Confirmam isso as palavras do próprio

Schopenhauer:

Ora, assim como cada coisa na natureza tem suas forças e qualidades que reagem de determinada maneira em face de determinada impressão, e constituem o seu caráter, também o homem possui o seu CARÁTER, em virtude do qual os motivos produzem as suas ações com necessidade. Nesse modo mesmo de agir manifesta-se o seu caráter empírico; por seu turno, neste manifesta-se de novo o seu caráter inteligível, a vontade em si, da qual aquele é o fenômeno determinado. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 372-373)

A consequência direta disso é que, no plano das ações humanas, o

indivíduo não age por liberdade, sequer por uma deliberação da sua

consciência (analisando racionalmente os prós e os contras daquilo que a ação

pode acarretar para si ou para outrem), mas por necessidade. Portanto, toda e

qualquer ação humana, pensada no plano individual, sempre será determinada

pelo seu caráter, que se manifestou a partir das circunstâncias dadas, que

atuaram como motivos para que a ação aconteça.

A fim de verticalizar essa discussão, Schopenhauer apresenta-nos, no

livro IV de O mundo como vontade e como representação, uma análise moral

acerca das três faces do caráter: inteligível, empírico e adquirido. Pelo fato de

as ações humanas, na maior parte das vezes, seguirem a lei de motivação é

que o estudo caracterológico schopenhaueriano torna-se uma peça importante

em nossa investigação.

1.3. A doutrina dos caracteres: inteligível, empírico e adquirido

A doutrina dos caracteres em Schopenhauer é de origem kantiana.

Schopenhauer considera que Kant realizou um grande feito quando apresentou

o seu estudo caracterológico, expondo a relação entre liberdade e necessidade

já presentes em suas obras: Crítica da razão pura, Crítica da razão prática,

bem como na Fundamentação da metafísica dos Costumes. Essas obras foram

importantes para Schopenhauer porque trouxeram fortes contribuições acerca

49

da doutrina dos caracteres. Apesar de o tema da liberdade e o da necessidade

não serem o escopo central de nossa discussão, faremos uma breve ilustração

acerca dos mesmos pela relação direta que tais conceitos possuem com a

noção de caráter, desenvolvida por Schopenhauer, de traços kantianos:

Considero esta doutrina de Kant da coexistência da liberdade com a

necessidade como a maior das realizações da profundeza humana. Ela e a Estética Transcendental são os dois diamantes na coroa da fama kantiana que nunca esmaecerá. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 95)

A partir dessa consideração feita por Kant5 sobre as questões

concernentes à liberdade e à necessidade, Schopenhauer irá delimitar seu

território em relação à doutrina kantiana. Schopenhauer afirma que não existe

liberdade no mundo fenomênico. Para ele, a verdadeira liberdade encontra-se

no âmbito da coisa em si, ou seja, na Vontade. Assim sendo, só a Vontade é

livre, não estando condicionada ao mundo fenomênico. Por ser o homem

apenas mais uma manifestação da Vontade individuada na realidade, ele

também sofre as mesmas determinações causais como todo e qualquer

fenômeno da natureza. Ora, se o homem é um objeto entre outros objetos

presentes no mundo com todas as suas carências, desejos, sempre motivado

por causas exteriores, então onde reside sua liberdade? Schopenhauer opera

nesse sentido com um conceito negativo de liberdade, pois a liberdade só

poderá ser alcançada num aspecto da essencialidade, não circunscrita no

mundo empírico. O mundo tomado como representação está ligado ao princípio

de razão suficiente e à lei de causalidade, estando, por sua vez, inserido no

reino da necessidade. Nesse sentido, o indivíduo encontra-se impossibilitado

de ser livre. É esse determinismo que condiciona o homem a uma não

liberdade. Em relação a esse determinismo, Schopenhauer no parágrafo 55 de

O mundo como vontade e como representação (2005), exemplifica:

5 A questão da liberdade em Kant é bastante ampla, aplicada ao campo da observação da

terceira e quarta antinomia que são para Schopenhauer tautológicas. Em relação à terceira antinomia, Schopenhauer afirma que essa merece uma atenção especial, pois seu objeto é justamente a ideia de liberdade, uma vez que nesse momento Kant se detém a falar da coisa-em-si apenas como pano de fundo. Para Schopenhauer, entretanto, essa explicação kantiana não é compreensível, visto que Kant não relaciona a coisa-em-si com a Vontade, sendo essa a única que terá como pressuposto a liberdade, e ainda mostra que a coisa-em-si Kantiana seria um árvore sem raiz. Cf: O mundo como vontade e como representação. SCHOPENHAUER, 2005, p. 614.

50

Porém aqui se passa como no exemplo de uma vara posta em posição vertical, em relação à qual, tirada de seu equilíbrio e oscilando de um e outro lado, disséssemos sobre ela: “Pode cair para a direita ou para esquerda”. Ora, o “PODE” possui tão-só uma significação subjetiva e em realidade diz “no que tange aos dados conhecidos por nós”. Pois objetivamente a direção da queda já está determinada de um modo necessário, desde o começo da oscilação. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 376, grifo do autor)

Assim, não se pode falar em liberdade no âmbito fenomênico. Se, para

Schopenhauer, só a Vontade é livre, o homem só poderá ser livre quando

participar da Ideia de humanidade. Essa Ideia pode ser comparada à mesma

de Platão como um arquétipo imutável fora da esfera mundana. “[...] as Ideias

eternas platônicas e as coisas-em-si mesmas estão fora do espaço e do

tempo” (CACCIOLA, 1994, p. 102).

Dessa forma, Schopenhauer compartilha dessa imutabilidade para

relatar o aspecto imutável do caráter inteligível, pois esse caráter “deve ser

considerado como um ato extratemporal, indivisível e imutável da Vontade”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 375). Para explicar melhor a sua doutrina do

caráter, Schopenhauer enuncia que cada pessoa possui um caráter inalterado

e constante. É por intermédio dessa assertiva que se passa a discutir a

maneira como o homem representa o mundo e como essas imagens se dão

em graus variados. Na verdade, se existisse um mundo no qual todos agissem

de igual modo, o mundo não seria um devir constante e diferenciado, seria

apenas, ao que parece, totalmente bom ou ruim e não haveria pluralidade nas

ações humanas.

A partir dessa perspectiva, o autor estabelece a diferença entre os

caracteres e começa delimitando o que seria o caráter inteligível. Trata-se de

uma característica única, algo inato, pois, ao nascer, o homem já traz uma

marca deixada pela própria Vontade individuada, uma essência que é imutável.

Como relata Schopenhauer:

O conjunto de seus atos, de acordo com suas manifestações exteriores, determinadas pelos motivos, não poderia acontecer nunca de outro modo, senão de acordo com este caráter individual imutável: como alguém é, assim tem de agir. Por isso, para um indivíduo dado, em cada caso individual dado, é possível simplesmente só uma ação: “operari sequitur esse”. A liberdade não pertence ao caráter empírico, mas tão-somente ao inteligível. O “operari” de um homem dado é determinado, necessariamente, a partir do exterior pelos motivos e a partir do interior pelo seu caráter. Por isso, tudo o que ele faz

51

acontece necessariamente. Mas no seu “esse”, aí está a liberdade. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 96)

Diante do exposto, Schopenhauer transfere a liberdade para a

Vontade. Assim, infere-se que o indivíduo enquanto fenômeno não é livre, visto

que está preso às mesmas leis que sofre toda e qualquer manifestação

fenomênica da Vontade. Dessa forma, não é possível falar em liberdade no

campo representacional, tampouco faz sentido afirmar que o homem é uma

folha de papel em branco ou que seu caráter pode ser moldado com a

experiência. Para Schopenhauer (2005), o caráter inteligível coincide com o ato

originário da Vontade – que é sem fundamento, inalterável, podendo ser

comparado à coisa em si –, ao qual não se tem acesso em razão de não poder

ser representado pela pluralidade em que se manifestam os fenômenos. Ele é

livre de sucessão e não está ligado ao princípio de razão suficiente.

A coisa-em-si que está no seu fundamento, como estando fora do espaço, livre de toda sucessão e da multiplicidade dos atos, é una e imutável. Sua natureza em-si é o caráter inteligível que está presente igualmente em todos os atos do indivíduo e impresso em todos eles. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 94, grifo do autor)

Schopenhauer afirma, em sua obra Sobre o fundamento da moral

(2001), que Kant expôs de modo inapropriado a diferença entre o caráter

inteligível e empírico quando ele explicitou que existe um nexo causal entre

ambos os caracteres. Schopenhauer entende o caráter individual, reconhecido

por sua essência, como aquele que é inato, invariável. Em sua obra

Contestação ao livre arbítrio, Schopenhauer esclarece:

Uma vontade livre, dissemos nós, seria uma vontade que não seria determinada por nenhuma razão, isto é, por nada, visto que qualquer coisa que determine outra é uma razão ou uma causa: uma vontade, cujas manifestações individuais (vontades) brotariam ao acaso e sem qualquer solicitação, independentemente de qualquer ligação causal e de qualquer regra lógica. (SCHOPENHAUER, 2002, pp. 13-14)

Na concepção de Schopenhauer (2005), não existe causalidade no

caráter inteligível, pois ele coincide com a Ideia, como antes já explicitado, ou

mais, especificamente, com o ato da Vontade em si, portanto não se liga a

nenhuma lei de causalidade. Uma questão emblemática surge a partir dessa

constatação, qual seja: a problemática da liberdade.

Para tanto, só adentramos na questão da liberdade para esclarecer a

diferença da concepção do caráter inteligível em Kant e em Schopenhauer, os

52

quais divergem porque Schopenhauer recusa a dedução que Kant fez em

relação ao caráter inteligível, uma vez que o último atrelou o caráter inteligível

como fundamento do sensível, por meio da lei de causalidade. Para

Schopenhauer (segundo Cacciola):

A exposta liberdade transcendental da Vontade não é, de nenhum modo, a causalidade incondicionada de uma causa que a tese afirma, porque uma causa tem de ser essencialmente fenômeno e não alguma coisa toto genere distinta que fique além de todo fenômeno. (CACCIOLA, 1994, p.103)

Schopenhauer refere-se ao caráter inteligível como aquele que tem por

referencial a Vontade e não a razão, já que ele é a manifestação de uma

Vontade livre. Isso mostra que as questões que concernem à doutrina dos

caracteres em Schopenhauer ligam-se diretamente a problemática da

liberdade, deste modo, tudo está interligado em seu pensamento.

Tendo em vista que o caráter inteligível é livre, pois não se submete ao

princípio de razão suficiente, podemos inferir que nele também existe uma

liberdade absoluta. Assim, existem duas possibilidades em que a liberdade é

intransponível, são elas: (a) a Vontade e (b) o caráter inteligível. Nessas

categorias, Schopenhauer mostra que existe uma liberdade para além dos

fenômenos, pois o caráter inteligível é manifestação da Vontade que, por sua

vez, é livre.

Assim, a liberdade, do contrário jamais se mostrando no fenômeno, pois pertence exclusivamente à coisa-em-si, pode neste caso entrar em cena no próprio fenômeno, ao suprimir a essência subjacente ao seu fundamento, embora ele mesmo perdure no tempo; surge daí uma contradição do fenômeno consigo mesmo [...] Que a Vontade enquanto tal seja LIVRE segue-se naturalmente da nossa visão, que a considera como a Coisa-em-si, o conteúdo de qualquer // fenômeno. Este, entretanto, conhecemo-lo como inteiramente submetido ao princípio de razão em suas quatro figuras. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 371-373, grifo do autor)

Ainda em relação ao caráter inteligível, o autor apresenta algumas

particularidades, pois ele é atemporal, livre. Em contrapartida, o caráter

empírico, embora seja um desdobramento do caráter inteligível, apresenta

algumas peculiaridades que são contrárias ao caráter inteligível. O autor

apresenta três particularidades do caráter empírico, que são o fato de ser: (a)

temporal, (b) plural e (c) espacial, ou seja, de estar ligado ao princípio de razão

suficiente. Portanto, o caráter empírico liga-se ao campo fenomênico. Mas,

53

Schopenhauer elucida, esse último caráter é absolutamente determinado pelo

caráter inteligível.

O caráter empírico é absolutamente determinado pelo caráter inteligível, o qual é sem-fundamento, isto é, não está enquanto coisa em si, Vontade, submetido ao princípio de razão (forma do fenômeno). O caráter empírico tem de fornecer no decurso da vida a imagem-cópia do caráter inteligível, e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência deste último. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 224)

O argumento de Schopenhauer em relação ao caráter empírico segue

o mesmo argumento do caráter inteligível, pois o último é a orientação

constante em que se fundamenta o primeiro, segundo o filósofo. Noutras

palavras, já que o caráter empírico é o desdobramento temporal de um ato

extratemporal, portanto, imutável, isso mostra que a nossa conduta moral no

decorrer da vida já é determinada e não se modifica em essência, embora

possa ter uma diversidade de aparências.

Contudo, para Schopenhauer, “o que o homem quer em geral sempre

quererá em particular” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 378). Nesta conjectura, os

acontecimentos que ocorrem ao longo de nossas vidas estão ligados ao

destino de cada um, sendo este o motivo pelo qual nossas ações se dão de

acordo com o nosso caráter inalterado, inteligível. Então, só por meio da

experiência é que podemos aprender a conhecer a nós mesmos, posto que

“[...] nossos atos serão um espelho de nós mesmos” (SCHOPENHAUER, 2005,

p. 390).

Em consequência do caráter, a tendência de algumas pessoas é agir

de maneira boa ou má, e isto é o resultado daquilo que ela carrega em sua

particularidade, ou seja, o modo de agir é o reflexo daquilo que se é em relação

ao seu caráter. Por intermédio da conduta diante da vida, pode-se conhecer a

si mesmo e aos outros; isso ocorre a posteriori por meio da própria experiência

de vida.

Para Schopenhauer, o caráter de cada um se revela nas ações, ou

seja, em cada homem, suas ações são predeterminadas por sua índole, o que

lhe é de mais íntimo, o caráter inteligível e só na sucessão do tempo é que o

caráter empírico se revela e mostra a real essência de cada ser. Assim, o

caráter se revela no agir determinado pela lei de motivação. Em contrapartida,

como testemunho complementar em relação à constância do caráter, pode-se

54

também reconhecer que algumas pessoas são as mesmas, mesmo passados

muitos anos de sua vida, agindo sempre da mesma maneira, sem alteração de

sua conduta.

Schopenhauer (2005) desenvolve em sua teoria o último caráter, o qual

ele chamou de adquirido, este consiste no conhecimento do caráter empírico,

ou seja, no conhecimento da individualidade no tempo. Por intermédio do

caráter adquirido pode-se ter uma melhor compreensão de si mesmo. Apesar

de a Vontade não mudar, pode-se, no decorrer do tempo, melhorar a conduta

por meio desse caráter. Schopenhauer é bastante claro sobre esta questão:

Ao lado do caráter inteligível e do empírico, deve-se ainda mencionar um terceiro, diferente dos dois anteriores, a saber, o CARÁTER ADQUIRIDO, o qual se obtém na vida pelo comércio com o mundo e ao qual é feita referência quando se elogia uma pessoa por ter caráter, ou se a censura por não ter. – Talvez se pudesse naturalmente supor que, como o caráter empírico, enquanto fenômeno do inteligível, é inalterável, e, tanto quanto qualquer fenômeno natural, é em si consequente, o homem também sempre teria de aparecer igual a si mesmo e consequente, com o que não seria necessário adquirir artificialmente, por experiência e reflexão, um caráter . Mas não é o caso. Embora sempre sejamos as mesmas pessoas, nem sempre nos compreendemos. Amiúde nos desconhecemos, até que, em certo grau adquirimos autoconhecimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 391, grifo do autor)

O caráter adquirido pode ser entendido como aquele que terá como

prioridade o autoconhecimento, pois este pode favorecer as escolhas do

homem no decorrer da vida por meio de uma reflexão apurada em relação ao

seu modo agir. Expressando-se em outros termos, é como lapidar e

transformar uma essência bruta de uma determinada matéria em algo valioso.

De forma análoga, se estaria moldando as ações e, consequentemente, o

caráter, o que só se faz possível examinando a vida.

Noutras palavras, as experiências que o homem tem em relação ao

mundo da vida, sejam elas boas ou ruins, devem ser avaliadas. Podemos até

entrar no templo de Delfos, consultar uma deusa, pensar a própria conduta

para, então, buscar o autoconhecimento, e quando isso acontece podemos

conhecer melhor a nós mesmos (alusão ao preceito socrático). Nas palavras de

Schopenhauer:

Mas se finalmente aprendemos, então alcançamos o que no mundo se chama caráter, o CARÁTER ADQUIRIDO. Este nada mais é senão o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 393-394, grifo do autor)

55

Portanto, a busca pelo autoconhecimento impulsiona a descobrir uma

receita própria e particular para conduzir a vida. Apesar de Schopenhauer

(2005) considerar a razão como secundária, ela é importante, pois se torna um

móvel determinante; isto é, sem a razão, não seriamos capazes de abstrair

conceitos, e, por conseguinte, refletir sobre eles. Este processo de

racionalização não intervém no caráter inato (inteligível), no entanto, pode

auxiliar a manifestação de tal caráter no mundo fenomênico.

É o suficiente sobre o CARÁTER ADQUIRIDO, que é importante não tanto para a ética como para a vida no mundo. Sua discussão, entretanto, deve ser justaposta àquela sobre o caráter inteligível e o caráter empírico, como uma terceira espécie entre eles. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 396, grifo do autor)

Assim, a doutrina dos caracteres é uma porta de acesso para o

entendimento da ética schopenhaueriana, tendo em vista que as ações

interessadas, denominadas pelo autor de antimorais, atuam sobre a

personalidade do indivíduo que, por sua vez, representa o mundo sob as vias

do princípio de razão suficiente do agir. As ações que seguem esse princípio

geralmente são autodirigidas, ou seja, levam em consideração motivações

egoístas que são denominadas pelo autor de antimorais.

Em contrapartida, há um tipo de ação que é desprovida de interesse

particular, a saber, o ato compassivo. Nessa última abordagem, Schopenhauer

traça um caminho que nos permite reconhecer o outro, diminuindo as barreiras

entre o “eu” e o “tu” mediante a capacidade de empatia para com outro ser.

Assim, abordaremos as potências antimorais e morais trabalhadas por

Schopenhauer ao longo de seus escritos filosóficos nos quais a ética é seu

objeto de estudo.

2. A SIGNIFICAÇÃO ÉTICA DA FILOSOFIA DE SCHOPENHAUER: AS

MOTIVAÇÕES ANTIMORAIS E MORAIS

Nesse capítulo iremos adentrar efetivamente no escopo da discussão

ética schopenhaueriana. Agora que sabemos que as ações humanas são

explicadas a partir da relação entre o querer interior do indivíduo (denominado

por Schopenhauer de caráter) e as motivações externas, que aparecem

56

abstratamente na consciência do sujeito cognoscente em uma determinada

circunstância, é interessante que analisemos os tipos de motivações elencadas

pelo autor ao longo de seus escritos em que a moral tornou-se objeto de

estudo.

De acordo com a descrição ética schopenhaueriana, podemos

classificar as ações em antimorais e morais. As primeiras estão submetidas à

atuação do princípio de razão suficiente do agir e levam em consideração

interesses particulares. Mesmo que a ação de um determinado agente não

promova nenhum mal a outrem, ou seja, que o seu ato não “cause” nenhum

dano ao organismo de outro ser, que sente dor e luta diariamente pela

sobrevivência, para Schopenhauer, se a ação for interessada, ela será

desprovida de “propriedades morais”. A base dessas ações é o egoísmo. O

que está em jogo nesse primeiro tipo de motivação, a saber, a egoística e o

próprio bem-estar do indivíduo.

Porém, alerta-nos Schopenhauer, a incapacidade de enxergar o mundo

para além das representações ilusórias impostas pelo princípio de razão

suficiente faz com que os indivíduos tenham a maldade como outra motivação

antimoral. Aqui o agente possui como fim último promover carência, sofrimento

e dor a outro ser, ou seja, o mal alheio é aquilo que impulsiona o indivíduo a

agir.

Em contrapartida, as ações morais (seja por meio da justiça ou da

caridade) possuem apenas a compaixão como fundamento. Isso acontece

porque o interesse particular é suspenso momentaneamente para promover o

bem-estar alheio. No que diz respeito a essas três motivações (duas antimorais

e uma moral), que elencamos acima, Schopenhauer afirma que:

Há em suma apenas três motivações fundamentais das ações humanas, e só por meio do estimulo delas é que agem todos os outros motivos possíveis. Elas são: a) egoísmo, que quer seu próprio bem (é ilimitado); b) maldade, que quer o mal alheio (chega até a mais extrema crueldade); c) compaixão, que quer o bem-estar alheio (chega até a nobreza moral e a generosidade). (SCHOPENHAUER, 2001, p. 137)

É interessante que o leitor compreenda de maneira detalhada as

justificativas filosóficas apresentas por Schopenhauer, no que diz respeito às

motivações (sejam elas antimorais ou morais) que impulsionam o indivíduo a

agir no mundo do ethos, a fim de saber como se dá o processo de

57

reconhecimento do outro no ato moral. Diante disso, faremos a explanação do

egoísmo e da maldade que acompanham cada ser com sua capacidade de

querer o bem-estar de si e o mal-estar do outro, bem como apresentaremos a

ação genuinamente destituída de interesse particular em prol do

reconhecimento do sofrimento alheio: a compaixão.

2.1. O egoísmo e a maldade

Para Schopenhauer, a principal motivação que impulsiona os homens a

agirem no mundo é o egoísmo. Assim como toda e qualquer objetivação da

Vontade provida de corpo, a ação egoística deve ser vista inicialmente como

um impulso natural que possui como finalidade a manutenção da sobrevivência

do organismo, bem como o seu próprio bem-estar. Porém, essa disposição se

apresenta no homem com maior intensidade em razão de os mesmos agirem

por interesse. Os animais, por exemplo, por mais que procurem agir para

manter o seu bem-estar, agem apenas por instinto.

No homem, assinala Schopenhauer, o egoísmo é ilimitado, visto que os

indivíduos querem manter incondicionalmente sua existência, bem como se

livrar de toda dor oriunda da carência e privação do seu querer, pois o homem

quer o maior bem-estar possível resultante sempre da satisfação momentânea

da sua vontade. Essa linha de pensamento é justificada porque intuitivamente o

indivíduo sabe que o mundo é sua representação e que toda a existência do

mundo empírico (que por vezes lhe põe resistência) depende da sobrevivência

do seu corpo. Daí o fato de Schopenhauer defender a tese de que

naturalmente estamos dispostos a ‘aniquilar o mundo’ para satisfazer apenas o

nosso querer interior.

[...] faz, no entanto, de si mesmo o centro do universo antepondo a própria existência e o bem-estar a tudo o mais, sim, do ponto de vista natural está preparado a sacrificar qualquer coisa, até mesmo a aniquilar o mundo, simplesmente para conservar mais um pouco o próprio si-mesmo, esta gota no meio do oceano. Eis aí a mentalidade do EGOÍSMO, o qual é essencial a cada coisa na natureza. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 426-427, grifo do autor)

Essa disposição egoística possui relação direta com o instinto de

sobrevivência existente em cada ser vivo, uma vez que o sujeito sabe que,

para que o mundo exista, ele precisa continuar existindo. Além disso, os

58

homens sabem que todo sofrimento, quer seja físico ou espiritual, é produzido

pela insaciabilidade da vontade. Daí as ações humanas que possuem como

ponto de partida o egoísmo serem interessadas, haja vista que a manutenção

de seu bem-estar está em primeiro plano.

É por essas razões que a filosofia schopenhaueriana defende a

asserção que o egoísmo é dotado de uma fonte inesgotável de ausência de

valor moral, em razão de poder causar todos os tipos de transgressões. Como

bem reforça Schopenhauer, “o egoísta sente-se acuado por fenômenos

estranhos e hostis e toda a sua esperança repousa sobre o seu bem-estar”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 475). Entretanto, segundo o autor, a máxima do

mais profundo egoísmo é oposta à máxima da compaixão, tendo em vista que

essa última possui como motivação ajudar os seres que sofrem. Ao contrário,

para o homem egoísta, se preciso for, ele deve prejudicar a todos para

alcançar o que lhe causa prazer e excitação. Em suas palavras:

Eis por que cada um quer tudo para si, quer tudo possuir, ao menos dominar, e assim deseja aniquilar tudo aquilo que lhe opõe resistência. Acresce ao dito o fato de que, no ser cognoscente, o indivíduo é sustentáculo do sujeito que conhece e este é sustentáculo do mundo. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 426)

Para Schopenhauer, o egoísmo é a primeira potência antimoral,

todavia não é a única que a moralidade tem a combater. Quando

Schopenhauer expõe suas convicções sobre o egoísmo, ele as expõe de duas

maneiras: o egoísmo do tipo natural proporcionado pelo nosso ser biológico

que, de certa forma, é necessário à própria sobrevivência; e o egoísmo que

colide com outra vontade como sendo uma afirmação autoegoísta. Em relação

ao egoísmo Schopenhauer esclarece:

O egoísmo, de acordo com a sua natureza, é sem limites: o homem quer conservar incondicionalmente sua existência, a quer incondicionalmente livre da dor à qual também pertence toda penúria e privação, quer a maior soma possível de bem-estar, quer todo o gozo de que é capaz e procura, ainda, desenvolver em si outras aptidões de gozo. Tudo o que se opõe ao esforço de seu egoísmo excita sua má vontade, ira e ódio; procurará aniquilá-lo como a seu inimigo. Quer, o quanto possível, desfrutar tudo. Porém, como isto é impossível, quer pelo menos, dominar tudo. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 121)

Diante disso, cada um quer ser o centro do mundo. Assim, se os

homens fossem capazes de escolher isto, preservar a si mesmos ao invés de

59

preservar o mundo, a tendência seria preservar a si próprio. É por intermédio

dessa escolha que os homens tornam-se capazes de refletir sobre suas ações

e perseguir sua mira de modo planejado.

Assim, no momento em que o autor expõe que o egoísmo é algo

‘colossal’6 (sendo o mundo comandado por esse), o que está em voga em

primeiro plano é sua própria sobrevivência. Entretanto, o egoísta está inclinado

a querer tudo para si e nada para o outro, imperando sua vontade em relação à

vontade de outros indivíduos.

Assim a diferença entre o ‘eu’ e o ‘outro’, torna os outros indivíduos

meras aparições7. Isso sempre foi evidente nos grandes feitos de povos que

tinham como motivação a destruição e o aniquilamento de outros: “Cada um

traz em si o único mundo que conhece e de que se sabe como representação,

e por isso esse mundo é o seu centro” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 122). A

importância que o homem dá a si mesmo como sendo o dono de toda a

realidade mostra que ele não vislumbra o mundo como sendo um grande

macrocosmo no qual estão inseridos todos os seres presentes na natureza.

Diante desse fato surgem as outras potências antimorais:

[...] do egoísmo a avidez, a glutonaria, a intemperança, a luxúria, o interesse próprio, a avareza, a cobiça, a injustiça, a dureza de coração, o orgulho, a vaidade etc., - e do ódio o ciúme, a inveja, a malevolência, a maldade, a alegria maligna, a curiosidade indiscreta, a maledicência, a insolência, a petulância, o ódio, a ira, a traição, o rancor, o espírito de vingança, a crueldade etc. (SCHOPENHAUER, 2001, pp.126-127)

É digno de nota que os homens que agem por motivações egoístas são

capazes de cometer os mais variados crimes, pois estão sempre preparados

para cometer assassinatos, somente para desfrutar de prazeres, gozos,

prestígio. Assim, por exemplo, aconteceu na guerra de Tróia: “Agamenon

sacrifica sua filha; um avaro dá esmolas por puro egoísmo na esperança de um

retorno cem vezes maior, e assim por diante” (SCHOPENHAUER, 2005, p.

217). Tais fatos analisados por Schopenhauer são importantes para entender o

egoísmo, tendo em vista que:

6 Cf. Sobre o fundamento da moral (2001, p. 121).

7 O que chamamos de meras aparições, Schopenhauer chama de fantasmas. Cf:

Schopenhauer, 2001, p. 122.

60

O egoísmo é a primeira e a mais importante potência, embora não seja a única, que a motivação moral tem de combater. Já se vê por aí que o motivo moral, para apresentar-se contra tal opositor, tem de ser algo real, ao invés de uma sutileza aguda ou de uma bolha de sabão apriorística. Entretanto é na guerra que primeiro se reconhece o inimigo. (SCHOPENHAUER, 2001, p.124)

Schopenhauer analisa que o egoísmo se manifesta de variados modos

em todos os seres, mas no homem ele aparece com maior intensidade quando

procura sugar do outro aquilo que ele mesmo deseja, a saber, a vontade,

ímpeto cego, que se sustenta por querer destituir do outro. Isso estabelece

uma relação íntima com a outra potência antimoral denominada de maldade;

essa procura superar o egoísmo, causando injúria e dor a outros indivíduos.

Schopenhauer prossegue sua investigação identificando que o

egoísmo tem uma raiz mais animal, enquanto que a maldade tem uma raiz

mais ‘diabólica’, pois o autor afirma que há sempre uma predominância de uma

ou de outra na natureza humana. Isso se revela com maior clareza quando

Schopenhauer analisa o caráter dos indivíduos, o que foi explicitado no

primeiro capítulo quando tratamos dos caracteres inteligível, empírico e

adquirido.

Em relação à maldade, ela segue o mesmo percurso do egoísmo,

porém de uma maneira mais severa, pois a ação má pode levar o homem para

a mais profunda crueldade, visando não apenas o seu bem-estar, mas o mal-

estar dos outros. Aqui podemos inferir que a máxima da maldade conforme

Schopenhauer é trazer o maior número de prejuízos a outros indivíduos, sendo

que o malévolo vai além do egoísta, satisfazendo-se com o sofrimento alheio. A

malevolência é a segunda potência antimoral que brota das colisões dos

egoísmos. Conforme Schopenhauer:

[...] numa tal pessoa exprime-se uma vontade de vida veemente ao extremo, que muito ultrapassa a afirmação do próprio corpo. Seu conhecimento inteiramente entregue ao princípio de razão e estrito ao principium individuationis, // prende-se à diferença estabelecida por esse último entre a própria pessoa e todas as demais [...] Essas duas características são os elementos básicos do mau caráter. [...] Até mesmo a alegria desinteressada no sofrimento alheio, nascida não somente no mero egoísmo, e que é propriamente a MALDADE, a qual cresce até a CRUELDADE. Para essa o sofrimento alheio não é mais meio para atingir os fins da própria vontade, mas fim em si mesmo. (SCHOPENHAUER, 20005, pp. 462-463, grifos do autor)

É interessante ressaltar que, embora Schopenhauer apresente o

egoísmo e a maldade como motivações antimorais, tendo em vista que em

61

nenhum momento o outro é reconhecido nesses atos, ele não está

estabelecendo nenhuma prescrição ética de como devemos agir para sermos

reconhecidos enquanto autênticos agentes morais. Trata-se apenas de uma

descrição do comportamento humano a partir das possíveis motivações que

levam os indivíduos a agirem no mundo da vida.

As ações que levam em consideração o próprio bem-estar e o

sofrimento alheio, chegando a promover até mesmo danos físicos e psíquicos a

outrem, possuem a mesma explicação epistêmica: o não desprendimento do

princípio de razão suficiente. Enxergar o mundo por essa ótica representacional

ilusória é perceber a realidade apenas do ponto de vista da pluralidade, da

separação entre sujeito e mundo, do distanciamento entre o ‘eu’ e o ‘outro’, da

impossibilidade de reconhecimento de outrem.

Porém, assinala Schopenhauer, esse olhar ilusório que diariamente

lançamos sobre o mundo pode ser rompido quando intuitivamente passamos a

sentir o sofrimento do outro ser como se fosse nosso. Nesse instante, a

individualidade do agente é suprimida momentaneamente pelo fato de o

mesmo possuir como ‘fim último’ da ação apenas o bem alheio. Para o autor de

Sobre o fundamento da moral, isso só ocorre quando o ser humano é tocado

pelo fenômeno da compaixão.

Na visão de mundo schopenhaueriana, essa é a única motivação

genuinamente moral. Para que possamos identificar se existe a possibilidade

ou não de se formular uma ética do reconhecimento em Schopenhauer, faz-se

necessário um esclarecimento detalhado sobre as razões metafísicas que

fazem o autor estabelecer a compaixão como fundamento da moral.

2.2. A compaixão como fundamento da moral

Neste tópico, abordaremos o lado ético de Schopenhauer e suas

considerações concernentes às ações humanas e seus desdobramentos. Para

tanto, devemos considerar que toda a realidade na filosofia schopenhaueriana

é Vontade e representação, não existindo absolutamente nada para além

dessa imanência. Fora dessas perspectivas, nossas percepções da realidade

não teriam uma complementaridade.

62

No capítulo anterior ressaltamos que os conceitos de representação e

Vontade são fundamentais para a explicação da teoria ética schopenhaueriana,

tendo em vista que é por intermédio deles que compreendemos a relação entre

motivos e impulsos, relação essa que permite que nós entendamos a

necessidade de uma ação na realidade. As ações que seguem a lei de

motivação, ou seja, que surgem com a atuação do princípio de razão suficiente

do agir, situam-se no campo empírico, pois partem das experiências de cada

indivíduo descrevendo seu modo de agir, posto que tais indivíduos sentem,

desejam e efetivam seus atos no cotidiano.

No livro Sobre o fundamento da moral8 (2001), Schopenhauer justifica

os meios por ele utilizados para fundar uma ética tendo como fundamento a

compaixão, sendo esse um dos motivos pelos quais Schopenhauer parte da

realidade fenomênica como condição indispensável para analisar tal

fundamento. Isso leva a crer que ele irá abordar detalhadamente certas

motivações que irão delimitar o campo de atuação da compaixão.

Em 1837 foi feito um concurso pela Sociedade Real Dinamarquesa de

Ciências no qual se formulou o seguinte questionamento, “[...] a fonte e o

fundamento da filosofia moral devem ser buscados numa ideia de moralidade

contida na consciência imediata e em outras noções fundamentais que dela

derivam ou em outro princípio do conhecimento”? (SCHOPENHAUER, 2001, p.

52). Então Schopenhauer se inscreveu para participar do referido concurso

tentando apresentar uma resposta, isto é, se a compaixão é possível como um

fundamento que parte da experiência imediata. Para responder essa pergunta,

explica Schopenhauer:

Tendo em vista que a ideia originária da moralidade ou do conceito principal da lei moral suprema surge com uma necessidade que lhe é própria, embora não seja de modo algum lógica, não só na ciência que tem por objetivo expor o conhecimento do ético, mas também na vida real, na qual ela se apresenta, em parte no juízo da consciência sobre nossas próprias ações, em parte em nossos juízos morais sobre o comportamento dos outros –, e tendo em vista, além disso, que vários conceitos morais principais, nascidos daquela ideia e dela inseparáveis, como, por exemplo, o conceito de dever ou de

8 Para esclarecer melhor ao leitor sobre a compaixão como sendo o fundamento da moral, nos

basearemos na obra Sobre o fundamento da moral, edições de 1995/2001, bem como em sua obra O mundo como vontade e como representação (2005), em especial o livro quatro, parágrafos § 66/67, pois consideramos essas obras como basilares para o desenvolvimento do tema. Fundamentaremo-nos também em outros comentadores de Schopenhauer que se debruçam sobre o tema.

63

imputabilidade, fazem-se valer com a mesma necessidade e no mesmo âmbito – e, ainda, que nos caminhos que seguem a pesquisa filosófica de nosso tempo parece muito importante investigar de novo este objeto. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 4)

O sentimento da compaixão surge como fenômeno espontâneo que

extrapola o egoísmo enraizado na vontade. Isso leva o filósofo a crer que a

compaixão é a principal motivação que pode garantir que o homem aja

moralmente. Desse modo, Schopenhauer se compromete em esclarecer,

detidamente, o verdadeiro e genuíno incentivo moral, a compaixão. Em relação

a essas explicações sobre a compaixão, deveremos acompanhar a

caracterização feita por Schopenhauer em dois níveis: (I) um empírico (II) e

outro metafísico. Sobre isso, faremos uma abordagem mais adiante.

Schopenhauer enuncia que é preciso repensar os fundamentos da

moral, visto que as teorias éticas de seu tempo possuem como parâmetros

somente dogmas que não possuem eficácia alguma, haja vista que as

prescrições e regras nascem do conhecimento abstrato produzido pela

racionalidade. A ação genuinamente moral, desprovida de qualquer interesse

particular, ou seja, que não incita o querer, nasce no agente moral a partir de

um conhecimento absolutamente intuitivo, imediato. Essa linha de pensamento

pode ser confirmada no fragmento abaixo:

Uma moral sem fundação, portanto, um simples moralizar, não pode fazer efeito, pois não motiva. Uma moral, entretanto, QUE motiva, só pode fazê-lo atuando sobre o amor próprio. O que, entretanto, nasce daí não tem valor moral algum. Segue-se assim que, mediante moral e conhecimento abstrato em geral, nenhuma virtude autêntica pode fazer efeito, mas esta tem de brotar do conhecimento intuitivo, o qual reconhece no outro indivíduo a mesma essência que a própria. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 468, grifo do autor)

Nesse sentido, a compaixão para Schopenhauer não brota de

conceitos abstratos, dogmas ou prescrições religiosas. Isso seria tratar sua

filosofia sob uma perspectiva puramente conceitual. Embora a filosofia

schopenhaueriana reconheça o valor prático da racionalidade no que diz

respeito a uma melhor compreensão do próprio caráter, como o autor

apresenta no parágrafo 16 de sua obra magna, ela (a racionalidade) não possui

nenhum valor eminentemente moral. Além disso, a razão possui a capacidade

prática de fazer com que o sujeito entenda os melhores meios para se alcançar

o resultado desejado no momento da ação.

64

Em um exemplo da obra Sobre o fundamento da moral, essa linha de

pensamento pode ser confirmada:

Nesse sentido, um experiente jogador de bilhar pode ter apenas no entendimento, só para a intuição imediata, um conhecimento completo das leis de choque dos corpos elásticos entre si, o que lhe é inteiramente suficiente; em contrapartida, apenas quem é versado em mecânica tem o saber propriamente dito daquelas leis, isto é, um conhecimento in abstracto delas. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 105)

Diante do exposto, o saber teórico torna-se necessário na medida em

que avaliamos por meio dos conceitos a maneira pela qual podemos realizar as

nossas ações e, consequentemente, a maneira como agimos em relação a

outros indivíduos. Todavia, a racionalidade possui apenas um papel secundário

nas ações genuinamente compassivas. Se o sentimento da compaixão brota

espontaneamente no momento da ação, o conhecimento teórico que

adquirimos para melhor executar uma ação estará a serviço do próprio

interesse. Nesse sentido, a racionalidade, diferentemente da concepção de

reconhecimento existente na filosofia moral hegeliana, como abordaremos no

terceiro capítulo, para Schopenhauer, não pode ser vista em momento algum

como fundamento das ações morais.

Em contrapartida, Schopenhauer ressalta que o conhecimento intuitivo,

imediato, espontâneo não pode levar os indivíduos à aquisição de resultados

melhores do que aqueles que são obtidos via reflexão. Essas ponderações

servem para ilustrar a diferença do uso teórico e prático da filosofia moral de

Schopenhauer em relação ao uso da razão e do conhecimento intuitivo.

Conforme Schopenhauer:

Por isso homens selvagens e toscos, muito pouco habituados a pensar, realizam diversos exercícios corporais, lutam contra feras, manejam arcos e coisas semelhantes, com uma segurança e rapidez nunca alcançável por um europeu que reflete, justamente porque a ponderação torna o europeu indeciso e hesitante [...]. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 106)

Com essa diferenciação sucinta, Schopenhauer analisa o fenômeno da

compaixão que se manifesta intuitivamente e brota em cada indivíduo de

maneira desinteressada, pois é por meio dela que nós podemos aliviar a dor e

o sofrimento dos outros. Para que um ato seja compassivo é necessário que o

indivíduo desprenda-se das representações ilusórias e intua a própria essência

65

íntima do mundo da qual participam todas as manifestações da Vontade, sejam

seres humanos ou mesmo animais.

Isso é reflexo de uma ‘consciência sentida’ que nos possibilita

participar da dor de outros como se fosse nossa. Essa capacidade que o

agente moral possui de sentir o sofrimento alheio como o seu próprio é uma

prática completamente imediata e intuitiva.

Portanto, a autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pura nobreza não se originam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um conhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado via raciocínios. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 470-471)

Schopenhauer esclarece que a compaixão não requer nenhum saber

abstrato, pois não pode ser comunicada, tendo em vista que deve brotar em

cada um de maneira natural. Ainda em relação à compaixão, Schopenhauer

aponta para dois níveis da mesma: um negativo e o outro positivo. O primeiro

possui como pressuposto não causar dor e sofrimento para os outros sem que

haja a necessidade de inibir certas motivações antimorais que habitam cada

indivíduo. Já o segundo procura agir diretamente para suprir a carência a fim

de ajudá-lo: “É aqui, portanto, nesta participação imediata que não se apoia em

nenhuma argumentação, nem dela precisa, que está a única clara origem da

caridade” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160).

Com base nessa linha de raciocínio, podemos examinar que agir

moralmente depende de uma ‘consciência boa’, que nos permite ir de maneira

despretensiosa ao encontro daqueles que sofrem. Noutras palavras, isso só

será possível se esse sentimento for espontâneo. Nesse momento ocorrerá a

supressão do ‘eu’ para agir em favor do outro, pois “só então a situação do

outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus”

(SCHOPENHAUER, 2001, p. 163). Portanto, a compaixão é um canal de

acesso para a saída infindável e desenfreada do curso da Vontade.

Para que ampliemos a nossa compreensão acerca do fundamento da

moral é interessante que o leitor tenha como horizonte as duas virtudes

cardeais abordadas por Schopenhauer que, por sua vez, são desdobramentos

da compaixão: a justiça e a caridade. Isso nos permitirá verticalizar a discussão

acerca das ações morais.

66

2.2.1. A virtude da justiça e da caridade

Para Schopenhauer, a justiça e a caridade são virtudes cardeais por

excelência e ambas tem sua origem na compaixão natural. Isso mostra que

Schopenhauer considera a justiça como uma virtude genuína e livre, embora os

homens, de certa maneira, estejam sempre inclinados à violência e injustiças

das mais diversas formas, estando também propensos a cometer atos injustos

apenas para obter lucros, satisfações, desejos, que podem, ao certo, causar

sofrimento em outros indivíduos.

A virtude da justiça possui um duplo papel, por se tratar de uma ação

espontânea e por também estar ligada à positividade das leis. Assim, a virtude

da justiça serve para inibir algumas atitudes que as pessoas possam cometer,

por exemplo, roubo, assassinato, invasão de propriedade. Essa mesma justiça

é responsável não somente por coibir atos que são infracionários, de acordo

com a lei, mas também atos que por ventura venham a causar danos a outros

indivíduos. Pautados na virtude da justiça, os indivíduos serão mais cautelosos

no que diz respeito a causar algum mal a outras pessoas. Schopenhauer nos

esclarece:

Consequentemente, agredirei tão pouco a propriedade quanto a pessoa do outro, tão pouco causar-lhe-ei sofrimento, seja espiritual, seja corporal, e portanto não me absterei apenas de toda ofensa física, mas também de, por via espiritual, causar-lhe dor, através de humilhação, inquietação, desgosto ou calúnia. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 143)

Noutras palavras, a justiça é um tribunal da consciência, seja de modo

jurídico ou psicológico, ela faz com que possamos racionalizar nossas ações e,

consequentemente, nos impede de agir de maneira errônea com os nossos

semelhantes. Desse modo, a justiça permite-nos refletir sobre as ações

humanas. Para Schopenhauer:

[...] embora princípios e conhecimento abstratos não sejam de modo nenhum a fonte originária ou o primeiro fundamento da moralidade, são indispensáveis para levar uma vida moral. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 144)

Neste ínterim, a reflexão racional serve para que se formulem axiomas

em relação à virtude da justiça, com ‘não matarás’, ‘não causarás dano ao

patrimônio alheio’, ‘não humilharás teus semelhantes’.

67

A injustiça ou o injusto consistem, pois, sempre na ofensa de um outro. Por isso o conceito de injusto é positivo, precedendo o de direito como aquele que é negativo e que indica meramente as ações que se podem exercer sem ofender aos outros, isto é, sem cometer injustiça. (SCHOPENHAUER, 2001, pp. 146-147)

Para Schopenhauer, quando os indivíduos cometem atos injustos,

causando danos a outrem, eles estão se colocando em oposição à compaixão,

pois tais sujeitos visam somente o seu próprio bem-estar. A compaixão, nesse

sentido, segue uma lógica inversa a dos atos injustos. Em relação aos danos

que os indivíduos podem cometer, Schopenhauer cita alguns exemplos, que

podem até ser considerados ‘simplórios’, mas servem para se pensar a

respeito das ações justas e injustas.

Um dos exemplos é referente a um homem que, estando perto da

morte por não ter como se alimentar, resolve roubar um pão. Mesmo que todo

roubo seja considerado injusto, perante a situação de fome e desespero em

que se encontra tal homem, como podemos avaliar sua ação? Para

Schopenhauer essa injustiça é pequena, pois diante de outras injustiças esse

homem faminto não pode ser julgado como um injusto, pelo menos em relação

a esse fato em particular. Como elucida Schopenhauer:

O rico, quando paga seus empregados, age justamente, mas quão pequena é esta justiça diante da de um pobre que devolve espontaneamente ao rico a bolsa de ouro encontrada. A medida dessa diferença tão significativa na quantidade da justiça e da injustiça (em qualidades sempre iguais) não é porém direta e absoluta como a da escala métrica, mas mediata e relativa como a do seno e da tangente. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 150)

Devemos ressaltar que, para o filósofo, a justiça e injustiça estão

sempre relacionadas com atos que causamos a outrem e que, ao certo, podem

ser diferenciados em menor ou maior grau. Nesse sentido, o conceito de

injustiça está ligado ao fato de que quando negamos a justiça estamos de certa

forma, impelidos pela violência. Essa métrica explicada na citação acima é um

recurso para inferir o tamanho do dano que se causa a outra pessoa:

[...] o tamanho da injustiça da minha ação é igual ao tamanho do mal que com ela infligi a outrem, dividida pelo tamanho da vantagem que consegui com ela; e o tamanho da justiça da minha ação é igual ao tamanho da vantagem que me traria o dano de outrem dividido pelo tamanho do prejuízo que ele sofreria com ela. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 150)

68

Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e como

representação (2005), mais especificamente no parágrafo 63, faz uma

explanação sobre dois tipos de justiça, uma temporal e outra eterna. A

primeira, conforme o autor, tem como locus o Estado, que tem a função de

punir os atos ligados à conduta humana. Isso leva o autor a analisar tal justiça

no âmbito do direito positivo, pois é através das leis que atos injustos são

analisados e julgados, sejam esses físicos ou morais. Portanto, é dever do

Estado punir tais arbitrariedades. Isso se mostra com maior clareza dentro dos

tribunais, cadeias, quando os indivíduos perante a pena ou delito são julgados

e penalizados pelos seus atos. Essa justiça está relacionada à esfera estatal,

pois ”o Estado não passa de uma máquina social que, na melhor das

hipóteses, é capaz de equilibrar o egoísmo coletivo com o interesse coletivo da

sobrevivência” (SAFRANSKI, 2011, p. 421).

Em contrapartida, temos a justiça eterna; essa não pode ser regida

pelas instituições estatais. Noutras palavras, não se encontra no campo

fenomênico. É um tipo de justiça bastante diferente, não pode ser retaliadora e

nem ao menos punitiva, ou seja, não está circunscrita ao tempo. Como afirma

Schopenhauer, “tal justiça eterna efetivamente reside na essência do mundo”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 449); sendo, portanto, independente do Estado,

não pode submeter-se “ao acaso, ao engano, sem ser incerta, oscilante, sem

errar, mas infalível, firme e certa” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 448).

Schopenhauer diz que na justiça dos homens, a terrena, encontramos

casos nos quais as instituições punitivas erram em seus julgamentos, às vezes

oscilam em seus juízos de valor e por essa inconstância podem cometer

graves erros. Assim, se o destino dos homens fosse apenas permeado por

mazelas, privações, desgraças e mortes, então o que seria desses homens se

a justiça eterna não prevalecesse?

Portanto, o mundo é julgado por si mesmo e seu tribunal é ele próprio.

Se fosse cabível, conforme Schopenhauer, que alguém pudesse “colocar toda

penúria do mundo em UM prato da balança, e toda a culpa no outro, o fiel

permaneceria no meio” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 450, grifo do autor).

É pertinente expor que Schopenhauer faz alusão à justiça eterna não

por uma via religiosa, pois o autor se afasta de explicações teológicas,

deontológicas e teleológicas. Schopenhauer apenas cita alguns casos de

69

pessoas que suspenderam a vontade em busca de uma vida mais serena e

apartada da própria individualidade. Nesse caso, as observações feitas por

Schopenhauer em relação a algumas religiões são exemplos hipotéticos e isso

ajuda a expor de maneira mais clara sua visão de mundo como um todo.

Assim, a justiça eterna em Schopenhauer tem seu lugar de destaque

na própria essência do mundo, ou seja, na coisa em si. Ela tem um caráter

metafísico, não considera o mundo dos fenômenos, bem como não alude de

maneira individual ao sofrimento de cada indivíduo. A justiça eterna não está

circunscrita ao mundo fenomênico. Nesse sentido, podemos inferir que essa

justiça não cede espaço para a finitude, nem para os sofrimentos e dores que

atormentam os homens. Para que os indivíduos possam assimilar o que é, de

fato, a justiça eterna na concepção schopenhaueriana é necessário que os

homens se libertem de sua própria individualidade.

O conhecimento vivido da justiça eterna, do fiel da balança que une inseparavelmente o malum culpae ao malum poenae

9 exige uma

elevação completa sobre a individualidade e o princípio que a possibilita. Tal conhecimento, portanto, permanecerá inacessível à maioria dos homens, como o permanecerá o conhecimento puro e distinto da essência de toda virtude. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 453)

Para Schopenhauer, todo o mal que o homem pratica neste mundo

será expiado em uma vida posterior; todos os sofrimentos que o homem imputa

a outros indivíduos ou até mesmo aos animais será experienciado de maneira

igual por ele mesmo. Ainda, segundo o filósofo, são poucos os indivíduos que

conseguem abandonar sua individualidade, para apreender o verdadeiro

significado da justiça eterna.

Schopenhauer faz alusão ao mito da transmigração das almas. O autor

esclarece que os sofrimentos que causamos a outros indivíduos nesta vida

serão expiados em uma vida posterior e que os sofrimentos que causamos a

alguém terão graves consequências quando renascermos. Segundo

Schopenhauer, alguns indivíduos podem renascer de diversas maneiras e isso

irá depender do grau de maldade que porventura eles tenham ocasionado aos

outros em vida. Para Schopenhauer, essas pessoas poderão vir como seres

inferiores, doentes, etc.

9 Esse termo é explicado na nota de rodapé 53 da obra O mundo como vontade e como

representação, p. 453, que significa “mal da culpa” “mal da pena”. Conforme (N. T.).

70

Em contrapartida, esse mito também indica que se os indivíduos

praticam boas ações nessa vida, eles serão recompensados em outra vida,

podendo renascer como homens nobres e excelentes. Para Schopenhauer,

“nunca houve, nem nunca haverá um mito tão intimamente ligado à verdade

filosófica” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 455). O fato de o mito se fundar na

justiça eterna é apenas para clarificar o conteúdo ético e regulador que aquele

(o mito) possui, posto que, em épocas remotas, o homem explicava o mundo

recorrendo a esse tipo de alegoria.

Portanto, apesar de Schopenhauer fazer referências a algumas

religiões, isso não quer dizer, a nosso ver, que ele era um religioso.

Observamos que Schopenhauer era, de fato, um apreciador da sabedoria dos

povos indianos que expressam esses conhecimentos nos Vedas, via

Upanixades10. Isso serviu para ilustrar algumas referências feitas por

Schopenhauer em sua teoria ética.

Por fim, após os esclarecimentos feitos sobre justiça temporal e eterna,

analisaremos a virtude da caridade. A caridade surge também da compaixão e

apesar de não ser devidamente reconhecida por filósofos da antiguidade,

sempre se fez presente em todas as épocas.

A caridade existiu prática e faticamente em todos os tempos. Mas foi trazida à baila teoricamente e estabelecida como a maior de todas, estendendo-se mesmo aos inimigos, em primeiro lugar pelo cristianismo, cujo maior mérito consiste nisto, embora só em relação à Europa. Pois, na Ásia, já a milhares de anos antes, o amor ilimitado do próximo era objeto tanto da doutrina e prescrição quanto da prática, pois os Vedas e Dharma-Sastra, Itihasa e Purana, como também a doutrina de Buda Sakiamuni, não se cansavam de pregá-la. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 159)

Mediante o que foi acima demonstrado, a virtude da caridade sempre

esteve presente em todos os tempos, muito embora os filósofos da antiguidade

não a tenham estabelecido como virtude. Schopenhauer (1995, p. 151) afirmou

sobre Platão que ele “que mais alto se eleva na moral, chegou apenas à justiça

espontânea e desinteressada”. Apesar de existir em todos os lugares, a

10

Não adentraremos nessas questões, que alguns podem entender como míticas ou religiosas, pois, para Schopenhauer, o apelo a tais doutrinas é apenas para ilustrar que através de tais ensinamentos podemos clarificar o nosso pensamento em relação aos seres viventes e não viventes, o que é pronunciado pela fórmula tat twam asi, ou seja, “isto és tu”, de modo que não deve existir nenhuma barreira entre o “eu” e o “não eu”. As Upanixades são escritos védicos que serviram parcialmente de leitura para Schopenhauer, demonstrando a importância de certas religiões orientais.

71

caridade foi trazida teoricamente como a maior de todas as virtudes pelo

cristianismo, aparecendo mais, especificamente, no novo testamento, como

sendo uma virtude eminentemente cristã: “A justiça é o conteúdo ético total do

velho testamento, e a caridade a do novo” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 164).

A caridade é uma virtude que se produz de maneira diferente da virtude

da justiça. Enquanto que, na última, os indivíduos lutam para não causar

nenhum mal a outrem ou para impedir algum ato injusto, na virtude da caridade

o homem é impelido a ajudar seus semelhantes. Essa virtude eminentemente

humana é analisada por Schopenhauer como sendo uma virtude que leva os

indivíduos a ajudarem seus semelhantes de maneira desinteressada.

Isso pressupõe, porém, que eu tenha me identificado com o outro numa certa medida e, consequentemente, que a barreira entre o eu e o não-eu tenha sido, por um momento suprimida. Só então a situação do outro, sua precisão, sua necessidade e seu sofrimento tornar-se-ão meus. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 163)

Para Schopenhauer, a virtude da caridade visa, em primeiro lugar, o

bem-estar alheio de maneira imediata e direta, destituída de qualquer interesse

egoísta, pois quem carrega no peito esse sentimento de ser caritativo é

despertado pelo regozijo interior, que Schopenhauer chamou de “consciência

boa, pacificada e aprovadora” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160). Isso mostra

que o olhar do caridoso em relação a si mesmo é digno de apreço e reverência.

É importante ressaltar que a virtude da caridade possui um caráter

positivo, diferindo da justiça, porque, na primeira, o sofrimento alheio não serve

apenas como quietivo da nossa vontade para não causarmos danos ao outro,

mas nos impulsiona a agir em favor do outro para suprir a carência e a

necessidade que aquela pessoa possui nas circunstâncias que aparecem de

imediato. O sofrimento e a necessidade alheia assaltam-nos à consciência de

maneira tão intuitiva e imediata que acabamos dispondo de nossas forças

físicas e de nossas capacidades intelectivas para agir em favor do outro.

Dependendo da situação que se configura, arrisca-se a própria vida e se

dispõe a sofrer injustiças para que o outro não as sofra:

O segundo grau em que o processo da compaixão, apesar de ser secreto conforme sua origem, transforma o sofrimento alheio no próprio e, como tal, no meu motivo separa-se nitidamente do primeiro através do caráter positivo das ações que dela surgem. Pois, então, a compaixão não apenas me impele de causar dano a outrem, mas

72

também me impele a ajudá-lo. De acordo com isso, sou movido, em parte porque a minha participação é vivida e profundamente sentida, em parte porque a necessidade alheia é grande e urgente, através daquele motivo puramente moral, a fazer um grande ou pequeno sacrifício a carência ou a necessidade do outro, que pode consistir num esforço em seu favor de minhas forças corporais e espirituais, da minha propriedade, da minha saúde, da minha liberdade, e, até mesmo, da minha vida. (SCHOPENHAUER, 2001, p.152)

Diante do exposto, podemos afirmar que a caridade pode ser

encontrada em uma ação ativa do indivíduo frente à dor e à necessidade que o

outro sofre quando não consegue objetivar o seu querer em face às

circunstâncias que lhe aparecem. Por ser uma prática completamente intuitiva,

tal ação não necessita da razão e de todo o conhecimento que adquirimos

abstratamente com a atuação do princípio de razão. Aqui temos um

desdobramento positivo da compaixão, tendo em vista que o sofrimento do

outro é sentido pelo agente de maneira tão forte que ele chegar a arriscar a sua

própria integridade física para suprir a carência desse outro.

Portanto, é no fenômeno da compaixão que suprimimos a barreira da

individualidade e do egoísmo, embora isso não aconteça a todo instante. É um

ato enigmático da natureza humana e que surge nos corações daqueles que

carregam em si um reconhecimento do outro. Segundo Safranski, “A

compaixão é uma autoexpêriencia da vontade, que se produz em um instante

fugaz, durante o qual essa cessa de afirmar temporariamente sua

individualidade” (SAFRANSKI, 2011, p. 429).

Diante do exposto podemos afirmar que a compaixão, a justiça e a

caridade carregam em si algo de comum e isso é notório, pois aqueles que

trazem em sua natureza essas características estão sempre prontos a ajudar

seus semelhantes, são destituídos de maldade e agem sem nenhum motivo ou

interesse em recompensas futuras.

Para melhor compreendermos a proposta schopenhaueriana é

interessante que voltemos a discutir especificamente o conceito de compaixão,

haja vista que o filósofo apresenta a capacidade de se compadecer com o

sofrimento alheio do ponto de vista empírico, bem como do ponto de vista

metafísico. Deve-se ressaltar que essas duas abordagens não são

antagônicas, mas sim complementares.

2.3. A abordagem empírica da compaixão

73

Adentraremos de fato na proposta ética schopenhaueriana da

compaixão com o intuito de explicar de que forma a compaixão, sendo um

fenômeno, pode influenciar no comportamento humano. Schopenhauer trata a

compaixão em um primeiro momento dento do campo empírico. É por

intermédio desse que o autor irá discorrer de maneira descritiva sobre o seu

modo de ver o mundo sem estabelecer nenhum pressuposto normativo,

nenhuma norma de conduta. A sua tentativa é apenas mostrar como a

compaixão aparece cotidianamente na ação dos indivíduos. A moral da

compaixão aparece como um acontecimento espontâneo que ultrapassa a

individualidade e se funde no reconhecimento do outro via sofrimento, além de

ultrapassar as barreiras do egoísmo e da maldade, como já explicado em um

dos tópicos anteriores.

Assim, reforcemos, a ética de Schopenhauer começa pelo campo

empírico. Nele, o autor investiga primeiro as ações humanas, a compaixão

como o oposto das potências antimorais. Segundo ele, “tanto o ético quanto o

filósofo têm de contentar-se com a explicação e com o esclarecimento do dado,

portanto, com o que é” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 23). Isso mostra que a

compaixão tende a ser confirmada pela experiência.

A verdade agora expressa de que a compaixão é a única motivação não egoísta e a única genuinamente moral é, de um modo estranho e quase incompreensível, paradoxal. Quero por isso tentar mudar as convicções do leitor, demonstrando que ela é confirmada pela experiência e pelas expressões do sentimento geral humano. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 165)

Schopenhauer explica que a compaixão tem sua comprovação na

experiência cotidiana. O filósofo afirma que “A ausência de toda motivação

egoísta é, portanto, o critério de uma ação dotada de valor moral”

(SCHOPENHAUER, 2001, p. 131). Esse critério estabelecido por

Schopenhauer explicita que o único incentivo dotado de valor moral é a ação

compassiva.

Isso pressupõe que a compaixão é real. Por certo, ninguém está isento

de senti-la, até os mais duros de coração podem, em um determinado

momento, ser compassivos. É interessante que se tenha em mente que a

compaixão, segundo a abordagem schopenhaueriana, não pode ser ensinada

74

independentemente da vontade de quem a sente, o ato de agir

compassivamente independe da reflexão ou intelectualidade, pois até o homem

mais rudimentar pode senti-la de forma imediata. Para Schopenhauer, é por

meio da compaixão que podemos nos comover com a dor e o sofrimento de

outrem.

Schopenhauer alerta-nos que, embora algumas pessoas ajam com

bondade, justiça ou benevolência, tais atitudes não provam que estes

indivíduos trouxeram em seu íntimo traços de um verdadeiro e genuíno

fundamento moral, que seria a compaixão. Essa linha de pensamento

confirma-se em razão de os indivíduos não conseguirem apreender os atos

intencionais de um determinado agente no momento da ação.

Nesse sentido, não se pode prever o que de fato impulsionou uma

pessoa a agir de maneira boa ou ruim. Mas existem, contudo, pessoas que “[...]

fazem e renunciam sem ter outro intuito em seu coração que o de ajudar a

outrem cuja necessidade eles veem” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 130). Para

comprovar que a compaixão está inserida no campo empírico, embora seja

algo misterioso e até mesmo difícil de explicar, Schopenhauer esclarece:

Em contrapartida, para despertar a compaixão comprovada como a única fonte de ações altruístas e por isso como a verdadeira base da moralidade, não é preciso nenhum conhecimento abstrato, mas apenas o intuitivo, a mera apreensão do caso concreto, no qual a compaixão logo se revela sem maiores mediações de pensamento [...] Portanto, a autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pura nobreza não se originam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimento, a saber, de um conhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou eliminado por raciocínios. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 470-471-175)

Schopenhauer aponta para dois graus da compaixão, o primeiro grau

como sendo apenas negativo, que carrega a máxima “não causar injustiça aos

outros”. Esse caráter negativo servirá para inibir que não se cause danos a

outrem. O segundo grau da compaixão é visto como positivo, por meio dele,

podemos reconhecer o sofrimento e a dor de outrem e nos dispomos de certa

maneira a ajudá-los. Isso mostra que, sendo a compaixão um sentimento

imediato, os indivíduos ao participarem das dores e sofrimentos de outros não

podem esperar nenhuma restituição ou recompensa futura. A compaixão é

destituída de qualquer interesse.

75

Desse modo, Schopenhauer identifica toda ação que se desvela sobre

um ato caritativo, na doação de si ao outro, o que, nas palavras do filósofo,

“parece uma sentença paradoxal”, mas que na verdade representa a expressão

máxima de seu pensamento, ou seja, “todo amor (ágape, caritas) é compaixão”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 476). Assim, podemos inferir que, diferentemente

das ações que seguem o princípio de razão suficiente do devir, abordados no

primeiro capítulo deste trabalho, para Schopenhauer toda ação moral é livre de

qualquer motivo que possa causar dano a outrem, pois o ato compassivo é

desinteressado e visa tão somente o bem-estar dos outros seres que sofrem.

Para Schopenhauer, a compaixão é o que está na base de toda ação dotada

de valor moral.

O processo aqui analisado não é sonhado ou apanhado no ar, mas algo bem real e de nenhum modo raro: é o fenômeno diário da compaixão, quer dizer, a participação totalmente imediata, independente de qualquer outra consideração, no sofrimento de um outro e, portanto, no impedimento ou supressão deste sofrimento, como sendo aquilo em que consiste todo o contentamento e todo o bem-estar e felicidade. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 136)

A compaixão é o solo efetivo de uma ação moral. É por seu intermédio

que as pessoas compassivas suprimem a barreira do egoísmo e encontram a

necessidade de reconhecimento do outro como sendo a própria extensão do

seu ‘eu’. Para Schopenhauer esse fenômeno foi descrito em épocas remotas

por intermédio dos atos de caridade. “A compaixão está ainda mais evidente no

fundamento da caridade do que no da justiça” (SCHOPENHAUER, 2001, p.

172), sendo a justiça e a caridade virtudes cardeais11 por excelência que

brotam da compaixão, elas se tornam também evidentes no fenômeno da

compaixão.

Para Schopenhauer, a compaixão (Mitleid) é a joia de sua coroa. Esse

processo por ele analisado não é algo inventado ou imaginado, pelo contrário,

é genuíno, espontâneo. Noutras palavras, a compaixão abre caminho para a

essência última das coisas. A ação genuinamente compassiva permite com

que o sujeito entre em uma unidade com a coisa em si a ponto de o indivíduo

suspender absolutamente, mesmo que seja por um breve momento, a sua

individualidade. Percebemos aqui que a abordagem da compaixão como um

11

Sobre as virtudes justiça e caridade, foi feita uma análise no tópico 2.2.1 desse trabalho.

76

fenômeno cotidiano e natural necessita de um complemento, a saber, de sua

abordagem metafísica, pois a compaixão nos conduz a uma inseparabilidade

dos seres, então a compaixão “não é somente a ratio essendi da moralidade,

bem como a ratio cognoscendi da Vontade” (ROGER, 2013, p. 20).

Nessa perspectiva, o que fizemos foi demonstrar a compaixão como

um fato que se apoia sobre algo que é efetivo e que pode ser analisado por

intermédio do mundo exterior e da consciência humana. Isso não basta para

que o espírito dos homens encontre seu júbilo e regozijo. Assim, Schopenhauer

defende a tese de que o fenômeno da compaixão também deve ser

apresentado sob a perspectiva metafísica, tendo em vista que o princípio de

razão suficiente não consegue explicar – embora possa identificar na realidade

fenomênica os possíveis atos compassivos – o porquê de tais condutas

desinteressadas acontecerem.

Entretanto, vejo muito bem que o espírito humano ainda não encontra aí o seu contentamento e repouso. Como no final de toda pesquisa e de toda ciência real, também aqui o espírito está diante de um fenômeno originário que esclarece tudo o que é compreendido sob ele e o que dele se segue, mas ele próprio permanece inexplicável e apresenta-se como um enigma. Portanto, aqui também coloca-se a exigência de uma metafísica, isto é, de um último esclarecimento do fenômeno originário como tal é, se tomando na sua totalidade, do mundo. (SCHOPENHAUER, 2001, pp. 205-206)

Abordaremos, a seguir, a compaixão sob o ponto de vista metafísico,

pois tal explicação faz-se fundamental e urgente para que a significação da

compaixão se estenda para além do mero fenômeno. Tal abordagem nos abrirá

as portas para identificarmos se a significação ética proposta por

Schopenhauer, a partir da tese que a compaixão é fundamento genuíno da

moralidade, pode ser entendida efetivamente como uma ética do

reconhecimento.

2.4. A explicação metafísica do fenômeno da compaixão

Em sua obra Sobre o fundamento da moral, Schopenhauer procura

esclarecer seu posicionamento de que a compaixão tem como alicerce a

77

metafísica imanente, procurando agora uma explicação para além dos

fenômenos. O próprio autor diz na última parte da obra supracitada que esse

fenômeno por ele explicitado é o suficiente para fundar a ética, sendo algo

efetivo que pode ser demonstrável, seja no mundo exterior ou na consciência

do indivíduo.

Schopenhauer pretende verificar em sua ética que o enigma do mundo

tem que provir do próprio mundo e que a empreitada da metafísica é sobrevoar

a experiência na qual o mundo se apresenta diante dos nossos olhos. Nesse

caso para entender o seu fundamento não é preciso anular a metafísica e sim

redirecioná-la.

Nosso percurso até o presente momento foi demonstrar que a

verdadeira motivação moral, a compaixão, é o baluarte da ética

schopenhaueriana. Pois, sendo a compaixão fato inexplicável, acontece

diariamente e se apresenta em variados lugares e em todas as épocas sem

muita reflexão. Em suas palavras:

Na ética, a necessidade de uma fundamentação metafísica é bem mais urgente, já que os sistemas filosóficos e religiosos concordam em relação ao fato de que a significação ética das ações teria de ter, ao mesmo tempo, uma significação metafísica, quer dizer, ir além do mero fenômeno das coisas e, assim, de toda possibilidade da experiência, estando portanto em íntima relação com toda a existência do mundo e com o destino do homem; pois o último cume a que em geral acede o significado da existência é indubitavelmente o ético. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 206)

Schopenhauer esclarece que deve existir um suporte para fundar a

metafísica como algo urgente, sem interdições em buscar um significado para

além dos fenômenos, ou seja, sua metafísica tem uma relação estreita com a

totalidade da existência do mundo e com o próprio destino do homem. É por

meio dessas explicações que Schopenhauer aponta certos casos expostos ao

longo de suas obras O mundo como vontade e como representação e Sobre o

fundamento da moral.

Como aponta Janaway, “A compaixão é uma coisa boa não apenas

porque tende a reduzir a quantidade de sofrimento no mundo como porque é a

personificação de um quadro metafísico mais verdadeiro” (JANAWAY, 2003, p.

121). E ele continua, afirmando que isso “supõe que a compaixão motive ações

que se têm de realizar como indivíduo com relação a outros indivíduos”

(JANAWAY, 2003, p.123). Noutras palavras, a compaixão só é praticável

78

quando, em certa medida, eu me identifico com as dores e sofrimentos de

outros indivíduos, tendo em vista que a consequência dessa identificação

suprime a barreira existente entre o eu e o não-eu, ou seja, “só se eu partilhar

de seu sofrimento, sentindo-o de certa forma como meu, pode seu bem-estar e

o alívio de sua aflição virem a me motivar”(JANAWAY, 2003, p.121).

Desse modo, atentemos para o caso hipotético sobre o qual

Schopenhauer discorre, no qual ele coloca o experimentum crucis, designado

por ele de uma prova decisiva. Tendo como parâmetro o episódio de dois

jovens, Caio e Tito, que estando ambos apaixonados, cada um por uma jovem,

resolvem mandar seus rivais para o ‘inferno’, ou seja, aniquilar absolutamente a

vontade de vida desses indivíduos. Contudo, ambos, estando prestes a realizar

o crime, desistem depois de uma implacável luta com sua essência interior.

Em relação à desistência de ambos, no que se refere a aniquilar a

existência de outro ser, Schopenhauer afirma que os indivíduos podem ter

cometido a ação por dois motivos distintos: um de maneira interessada e o

outro de maneira desinteressada. Nessa situação hipotética, Schopenhauer

atribui o interesse (ação antimoral) a Caio, e a ação desinteressa (ação moral)

a Tito. Para que os casos possam ficar mais claros, prosseguiremos com as

explicações dos mesmos.

A explicação do primeiro caso é sobre o jovem Caio, a qual deve ser

pensada pelo próprio leitor, pois ele pode ter pautado sua ação no temor a

Deus ou até em algum castigo ou penalidade que poderia sofrer, entre outras

possibilidades. A decisão de Tito, por sua vez, tomou outro rumo: ele sentiu

pena e não teve coragem de cometer tal ato. Assim, disse Tito, “fui tomado por

um ato compassivo e misericordioso”. Desse modo, Schopenhauer lança a

seguinte pergunta: “qual deles é o melhor homem? “[...] Quem foi impedido

pelo motivo mais puro? Onde está de acordo com isso o fundamento da

moral”? (SCHOPENHAUER, 1995, pp.157-158).

No primeiro caso, o de Caio, ele agiu de maneira interesseira, os

motivos que fizeram com que ele desistisse foram relativos a deveres,

prescrições e normas. Tito, ao contrário, desistiu do ato, é o que sugere

Schopenhauer, por pura compaixão: apelou para o seu coração, teve pena e

não teve coragem de praticar tal ato sórdido. O autor diz: “nada revolta mais

profundamente nosso sentimento moral do que a crueldade”

79

(SCHOPENHAUER, 1995, p. 159). Aqui houve a desistência de um ato cruel

pelo fato de a compaixão ser o oposto da crueldade.

Quando por meio do testemunho de alguém, na televisão ou no rádio,

tomamos conhecimento de casos de extrema crueldade, ficamos perplexos.

Destarte, podemos pensar que na história da humanidade sempre existiram

feitos cruéis, ou seja, sempre existiram pessoas que agiram de modo malévolo

e que não carregavam em seu caráter nenhum valor moral. Para

Schopenhauer, a moral do cristianismo é um exemplo claro da falta de

compaixão e os efeitos da religião em relação à moralidade são mínimos.

Schopenhauer exemplifica12:

Mas até mesmo a longa relação de crueldade inumanas que acompanhou o cristianismo poderia se encarregar de fazer prender a balança em desfavor do dele: as crueldades nas inúmeras guerras de religião, as Cruzadas irresponsáveis, o extermínio de uma grande parte dos habitantes originários das Américas e o povoamento desta parte do mundo por escravos negros, condenados a infinitos trabalhos forçados, roubados da África, arrancados sem direito [...] as perseguições aos heréticos, os tribunais da Inquisição que gritam aos céus [...] a execução de dezoito mil holandeses pelo Duque de Alba etc. (SCHOPENHAUER, 1995, pp.161-162)

Para Schopenhauer, nada pode nos deixar tão atônitos quanto a

crueldade de alguns indivíduos. Para ele nada é mais desumano do que a

crueldade. É por esse motivo que a compaixão não precisa ser ensinada, pois

é um sentimento espontâneo e natural que pode brotar no espírito de qualquer

ser humano. Assim, perante as alusões acima, Schopenhauer menciona mais

dois casos de extrema crueldade: o caso de uma mãe que torturou e

assassinou seus próprios filhos e um argelino que feriu um espanhol com

requintes de pura crueldade em uma atitude totalmente contrária à compaixão.

Quando tomamos conhecimento de um ato muito cruel – como, por exemplo, o que agora mesmo os jornais noticiaram de uma mãe que assassinou o filho de quinze anos derramando-lhe óleo na garganta e o filho mais novo, enterrando-o vivo; ou o que nos foi comunicado da Argélia: que, depois de uma briga e uma luta casuais entre um espanhol e um argelino, este sendo mais forte, arrancou o maxilar inferior daquele e levou como troféu, deixando o espanhol vivo -, então seríamos tomados de horror e exclamaríamos: Como é possível fazer algo desse tipo? Qual o sentido dessa pergunta? (SCHOPENHAUER, 2001, p.167)

12

A citação é somente para ilustrar que os casos relacionados aos crimes cometidos durante a era cristã vão de encontro da proposta ética de Schopenhauer em relação ao seu fundamento genuíno, a compaixão. Não adentraremos por esse viés religioso em nosso trabalho.

80

Decerto que essas são apenas amostras entre diversos casos. Em sua

obra Sobre o fundamento da moral (2001), o autor relata vários casos,

compassivos e cruéis, pois para se chegar ao verdadeiro fundamento da moral,

é necessário descrever minuciosamente as ações interessadas e desprovidas

de interesse. Nesse sentido, como podemos entender que uma pessoa, uma

mãe, possa matar seus próprios filhos? Ficamos estarrecidos diante de tal fato,

contudo, são fatos verídicos e sobre os quais, de certa maneira, precisamos

refletir.

Outro exemplo ilustrado por Schopenhauer, em O mundo como

vontade e como representação (2005), é o seguinte: um homem, de nome

Raimundo Lúlio, há anos guardava no peito um forte carinho por uma dama.

Surge então a oportunidade que ele tanto esperava e ele consegue ser

adentrar no quarto daquela mulher amada, que, contudo, estava acometida por

um aterrorizante câncer. Repentinamente, Lúlio entra no quarto cheio de

expectativas quando de repente a dama abre o seu corselete e mostra seu

peito carcomido por um câncer. Ele olha para si e se sente como se estivesse a

‘caminho do inferno’. Diante de tal fato, aquele homem se converteu,

abandonou sua corte e foi se penitenciar no deserto. Esse exemplo serve para

retratar o quanto a compaixão abre espaço para o caminho da abnegação de

todas as nossas vontades.

// Ora, quanto mais veemente a vontade, tanto mais flagrante é o fenômeno de seu conflito, logo, tanto mais intenso é o sofrimento. Um mundo que fosse o fenômeno de uma Vontade incomparavelmente mais veemente que a atual, exibiria sofrimentos tão mais intensos que em verdade, seria um INFERNO. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 501)

Até aqui exemplificamos somente casos que mostram a relação entre

semelhantes. A seguir, iremos retratar outro exemplo13. Esse irá mostrar a

compaixão não somente entre homens, mas também direcionada aos

animais14. Schopenhauer cita o caso que lhe causou profunda tristeza de um

13

Ao exemplificarmos tais casos nos quais o homem age por crueldade ou por compaixão, podemos até parecer repetitivos, mas o próprio Schopenhauer exemplifica de maneira exaustiva esses casos para que o leitor possa compreender o caminho para explicar a compaixão com maior clareza. Embora pareça repetitivo, existe uma preocupação, a nosso ver, de Schopenhauer para que não fiquem lacunas no entendimento da compaixão. 14

Embora nossa pesquisa não se refira diretamente à compaixão para com os animais, iremos retratar um exemplo, somente para mostrar ao leitor que Schopenhauer tinha um grande apreço pelos animais. Esse tema será desenvolvido em outro momento quando

81

caçador entre os anos de 1836 e 1837. Wilhelm Harris saiu para mais uma de

suas caçadas em solo africano, somente para se distrair e gozar dos prazeres

da caça (esse caso foi levado a público em 1838). Esse caçador faz

detidamente todo o relato de sua aventura descrevendo que, depois de ter

matado sua primeira caça, um elefante fêmea, e retornando na manhã seguinte

para procurar pelo cadáver do animal, percebeu que ao seu lado estava o

filhote. Ele veio ao encontro do caçador com um olhar que demonstrava um

sofrer inexplicável. O relato conta que o filhote enlaçou o caçador em sua

tromba pedindo ajuda. Naquele momento os outros elefantes já tinham se

evadido do local.

Assim, Harris relata que, naquele momento, sentiu um remorso terrível,

sentiu como se tivesse cometido um assassinato e, realmente, cometera. Foi a

partir daquele momento que o mesmo foi tomado de súbito por um

arrependimento profundo. Na obra Sobre o fundamento da moral (2001), o

autor comenta “a compaixão para com os animais liga-se tão estritamente com

a bondade de caráter que se pode afirmar confiantemente que quem é cruel

com os animais não pode ser uma boa pessoa” (SCHOPENHAUER, 2001, p.

179). Isso mostra que a compaixão como ato inegável da natureza humana é

estendida também para os animais15.

Nossa explanação, embora sucinta, tem o intuito de esclarecer a

preocupação de Schopenhauer também em relação aos animais. Além disso,

deve-se ressaltar que aqui há o reconhecimento para com o outro ser que

sofre, independentemente de o mesmo ser provido de racionalidade ou não.

Podemos dizer que na filosofia schopenhaueriana não há necessidade de uma

relação entre consciências, como pressupõe Hegel, por exemplo, haja vista

que os seres humanos (únicos dotados de racionalidade) também podem se

compadecer com o sofrimento de outras manifestações da Vontade, como por

exemplo, os animais. A maneira que Schopenhauer inseriu os animais na

prosseguiremos com o estudo das obras de Schopenhauer de maneira mais detalhada, mas, por enquanto, nos atentaremos somente a um exemplo. 15

A título de ilustração, diz Schopenhauer: “Na Ásia, as religiões garantem aos animais proteção suficiente e, por isso, lá ninguém pensa em tais associações, Todavia, também na Europa, desperta cada vez mais o sentido pelo direito dos animais, na medida em que, aos poucos, desvanecem e desaparecem os estranhos conceitos de um mundo animal que veio à existência apenas para a utilidade e o deleite do homem, de acordo com o que se trata os animais como coisas, pois estas são as fontes do tratamento rude e desconsiderado dos animais na Europa” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 180).

82

discussão ética serviu como um passo bastante importante para ultrapassar o

abismo criado entre homens e animais. Ressaltamos que Schopenhauer pode

ter sido um precursor de uma ética voltada para os animais.

Aqui existe mais uma diferença entre a moral kantiana e a moral

schopenhaueriana, pois, para Kant, a moral era destinada apenas para os

homens, por sua capacidade racional de pensar. No entanto, Schopenhauer

estende a moral para os animais, sendo que os casos acima relacionados não

só têm como suporte a experiência empírica, mas também a experiência

metafísica, haja vista que a crueldade estende-se não só aos homens, como

para os seres em geral. É por esse motivo que Schopenhauer alude à

compaixão para com os animais: ele reconhece a mesma essência em cada

ser racional (homem) ou irracional (animal) que sofre.

Para Schopenhauer, todos os seres dotados ou não de racionalidade

têm com suporte a mesma fonte, isto é, a Vontade, então é possível entender

como é possível um homem sentir compaixão por seres não iguais, como os

animais. Para Schopenhauer, o homem não possui um lugar de destaque

frente a outros seres que coabitam a terra. Na visão dele, tal prelúdio errôneo

foi trazido à baila por certas religiões que negam a igualdade entre os seres,

dando ao homem um lugar de relevância em relação aos outros seres que

coabitam o mesmo mundo. Por esse motivo, explicitamos a história de Wilhelm

Harris, o caçador. Portanto, o fundamento metafísico traz em sua essência e

identificação com todos os seres.

Schopenhauer vai além do campo sólido da experiência, pois o autor

entende que a ética precisa de um fundamento metafísico. Para tanto, o que

evidenciamos foi uma alteração no conhecimento a partir do qual o indivíduo

que age eticamente considera o mundo ao seu redor, bem como os seus

semelhantes. Desse modo, a compaixão ilimitada não precisa de uma ampla

sucessão de raciocínios, pois ela se dá subitamente, e de acordo com o autor

“não precisa de nenhuma casuística” (SCHOPENHAUER, 1995, p. 163).

Para dar-se a compaixão, é então necessária a identificação entre os

indivíduos, que esses ajam levando em consideração que o outro é sua

extensão. Conforme Wilmar Debona (2010, p. 96) “Esse (re)conhecimento de

que o essencial de todos os seres é o mesmo não pode se dar de modo algum

quando situado na multiplicidade das formas do mundo empírico”.

83

Isso demonstra que os agentes quando situados apenas no mundo

empírico, baseando-se somente no conhecimento via raciocínios, não terão

visão macro em relação aos outros seres, ou seja, o homem nesse estado

ainda não apreendeu o essencial, que é perceber que todos os seres possuem

uma mesma essência, ou seja, são manifestações de uma única e mesma

Vontade macrocósmica, isto é, que todos fazem parte de uma mesma cadeia,

sendo esse um dos motivos pelo qual o autor constata que não devemos nos

diferenciar; temos que superar a barreira do princípio de individualidade.

Tendo essa concepção como fundamental, Schopenhauer analisa as

suas vias de acesso empírico e metafísico: a primeira ligada à multiplicidade

dos fenômenos e a segunda existindo como um suplemento, indispensável

para se pensar a verdadeira essência da existência para com todos os seres

de modo geral. Os conhecimentos ora mencionados referem-se aos dois lados

do mundo. Mas o segundo talvez seja o mais admirável de todos, pois é por

intermédio do mesmo que suprimimos a barreira do não reconhecimento.

Aquele que reconhece o sofrer de outros de maneira imediata, como se

fora o nosso próprio sofrimento, é digno de respeito e admiração. É como um

gênio que ao contemplar uma obra de arte esquece toda a sua individualidade,

pois daí já não se sabe quem é sujeito e quem é objeto, uma vez que o homem

que contempla funde-se com o objeto de admiração no momento em que as

relações desaparecem.

Como a teoria ética de Schopenhauer é descritiva, o autor está sempre

retrocedendo para explicar e aclarar melhor seus conceitos, de modo que seu

pensamento é recorrente. Esse retroceder é importante para que o leitor

entenda a organicidade de seu pensamento único, sobre o qual já nos

referimos na introdução do nosso trabalho. A nosso ver, seu intento é

demonstrar aquilo que para certos filósofos precedentes não fora mencionado

de modo autêntico. Schopenhauer foi um pensador que refletiu sobre o mundo

e suas dores e que, ao certo, pôde enunciar um pensamento coerente e

mostrar aos seus leitores os dois lados da moeda e não somente um lado que

carrega em si traços meramente racionais.

Para ilustrar ainda mais a ética de Schopenhauer é interessante que

entendamos a sua exposição em relação ao choro. Na perspectiva

schopenhaueriana, o choro está relacionado ao ato compassivo, tanto em

84

relação à pessoa que sente compaixão, quanto em relação à pessoa que se

reconhece no sofrer de quem desperta o compadecimento.

Diante do exposto, abordaremos a seguir, de maneira sucinta, a

exposição de Schopenhauer a respeito do choro, mais especificamente no

parágrafo 67 de sua obra O mundo como vontade e como representação. O

choro, conforme Schopenhauer, não é de modo algum somente o reflexo de

uma dor sentida: ela primeiro chega ao cérebro para tomarmos conhecimento

da mesma via reflexão.

Assim, no ato da compaixão, o choro muitas vezes é inevitável para

ambos os lados (para quem se compadece e para o alvo desse

compadecimento). Muitas vezes, nós mesmos somos dignos de compaixão

quando expressamos nossos sentimentos em relação à dor do outro, pois, às

vezes, as lágrimas caem e não conseguimos segurá-las. “O CHORO é, por

conseguinte, COMPAIXÃO CONSIGO MESMO ou, a compaixão que retornou

ao seu ponto de partida” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 479, grifos do autor).

Portanto, o choro é um elemento que até as pessoas mais duras de

coração podem demonstrar; ele é sempre visto e sentido em maior grau por

pessoas mais vulneráveis que carregam em si traços de um ser compassivo,

destituído de egoísmo e maldade. Apesar de que algumas pessoas têm uma

predisposição para chorar de forma imediata quando vê outra pessoa sofrer,

esse sentimento é revelado pela compaixão: ela desce até o âmago do ser de

cada pessoa quando sente que a dor do outro compromete os seus próprios

sentimentos.

O choro é um desdobramento da compaixão. Todavia, não só sentimos

compaixão por outros indivíduos; às vezes sentimos por nós mesmos e nos

pegamos chorando. Algumas pessoas choram em virtude de uma dor sofrida

ou quando sofrem um acidente, não em virtude da dor em si, mas de sua

representação. Quando nos compadecemos e de súbito as lágrimas descem e

não mais fazemos distinção entre o ‘eu’ e o ‘outro’, nos colocamos no lugar

daquele que sofre e subitamente começamos a chorar. Essa manifestação

física corporal talvez seja a melhor forma de reconhecer a dor e o sofrimento

de outrem. Em certos casos, sentimos vergonha de chorar na frente de outra

pessoa, mesmo sentindo vontade, o egoísmo nos toma de assalto e

simplesmente nos recusamos em deixar aflorar tal sentimento.

85

O autor cita um exemplo bastante familiar: alguém sofre a perda de um

parente ou pessoa próxima e essa pessoa já tem uma idade avançada ou uma

doença grave. Aquele que sofre a perda é quem cuidava da pessoa que

faleceu e já estava cansada de carregar o fardo por algum tempo. Apesar do

alívio, “[...] ainda assim sua morte é chorada intensamente”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 480).

Nas palavras de Schopenhauer: “Após essa digressão sobre a

identidade entre o amor puro e a compaixão – sendo que o retorno desta última

ao próprio indivíduo ocasiona o sintoma do choro” (SCHOPENHAUER, 2005, p.

480). Observamos que o choro está ligado ao ato compassivo de ambos os

lados: por aquele que sofre e, por conseguinte, por aquele que sente

compaixão; ambos são pegos de súbito por esse sentimento físico. A

compaixão é um fenômeno inexplicável, pois, para o agente compassivo, tudo

lhe é igualmente próximo:

Todos os tormentos alheios que vê e raramente consegue aliviar, todos os tormentos dos quais apenas sabe indiretamente, inclusive os que conhece só como possíveis, fazem efeito sobre o seu espírito como se fossem seus. Não é mais a alternância entre o bem e o mal-estar de sua pessoa que tem diante dos olhos, como no caso do homem ainda envolvido pelo egoísmo, mas ao ver através do principium individuationis, tudo lhe é igualmente próximo // conhece o todo, apreende o seu ser e encontra o mundo entregue a um perecer constante, em esforço vão, em conflito íntimo e sofrimento contínuo. Vê para onde olha, a humanidade e os animais sofredores. Vê um mundo que desaparece. E tudo isso lhe é agora tão próximo quanto para o egoísta a própria pessoa. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481)

Portanto, a compaixão é um elemento que transforma as ações

humanas, agindo de modo operante em relação à dor e ao sofrimento de

outros. O agente compassivo raramente deixa de se colocar no lugar daqueles

que sofrem, pois enxerga que o outro é a extensão de si mesmo, ou seja,

vivencia uma forma de reconhecimento. É por meio da compaixão que

tentaremos demonstrar, em nosso terceiro capítulo, se a mesma é possível

como uma ética do reconhecimento em Schopenhauer.

3. DO SOFRIMENTO AO RECONHECIMENTO EM SCHOPENHAUER

Com base na exposição metafísico-epistêmica apresentada no primeiro

capítulo, a fim de compreender os aspectos internos (vontade) e externos

86

(motivos) que justificam as ações interessadas ou antimorais, bem como na

exposição do segundo capítulo que teve a intenção de evidenciar a compaixão

como o único fundamento da ação moral, entraremos na questão central deste

trabalho: Na significação ética apresentada a partir da visão de mundo

schopenhaueriana, podemos ou não extrair a categoria do reconhecimento

pelo víeis da compaixão? No ato compassivo, o agente moral reconhece o

outro? Quem é esse outro para Schopenhauer?

Para respondermos tais questionamentos, faz-se necessário

abordarmos pormenorizadamente o problema do sofrimento a partir da

metafísica da Vontade schopenhaueriana, tendo em vista que é por intermédio

do sofrimento de um determinado ser que brota a compaixão no coração dos

homens. Por ser um elemento comum a todos os indivíduos, afinal de contas, o

sofrer brota da insaciabilidade do querer, é que o filósofo identifica o outro

como um ser que sofre.

Além disso, também optamos por destinar um tópico desta nossa

exposição à ética do reconhecimento apresentada por Hegel a partir da

metáfora do senhor e do escravo na Fenomenologia do espírito. Pelo fato de a

categoria do reconhecimento estar explícita na abordagem ética de Hegel e por

esse ser, indubitavelmente, um autor que desenvolveu a problemática em

questão, é que o grande ‘opositor’ de Schopenhauer será devidamente

abordado por nós. Por fim, retornaremos ao tema da compaixão, tendo como

horizonte a problemática do sofrimento, bem como da abordagem do

reconhecimento via Hegel e responderemos se é possível ou não uma ética do

reconhecimento em Schopenhauer a partir de uma compreensão intuitiva

desse fenômeno denominado compaixão.

3.1. O sofrimento do mundo em Schopenhauer

Temos como objetivo, neste capítulo, trabalhar a compaixão como uma

ética do reconhecimento e se é possível estabelecer a partir do sofrimento um

suporte para tal comprovação, tendo em vista que é por meio dessa que

87

reconhecemos o sofrimento de outros indivíduos. Para que possamos verificar

a possibilidade de uma ética da compaixão pelo viés do sofrimento é

necessário traçar o mesmo percurso em torno dos livros O mundo como

vontade e como representação (2005), especificamente o livro IV, e Sobre o

fundamento da moral, assim como em outras obras de comentadores que

porventura possam nos auxiliar em nossa trajetória. Nas obras supracitadas,

Schopenhauer circunscreve de maneira pormenorizada o tema da ética,

expondo a necessidade de se fundamentar uma ética através do seu

fundamento moral, a compaixão.

Schopenhauer afirma que seus esclarecimentos a respeito das ações

humanas se apresentam com maior gravidade em função do teor abordado.

Nesse sentido, o autor ressalta que sua abordagem ao tratar sobre as ações

humanas tem como apoio uma relação direta com a filosofia prática em

oposição à filosofia teórica, a qual ele aborda no decorrer de todo o seu

arcabouço conceitual.

Quando se aborda uma teoria que toma como pressupostos a conduta

do homem, é necessário que o tema da ética seja ressaltado, pois o próprio

termo ‘ética’, em sua etimologia, já pressupõe que o indivíduo tenha um

comportamento moral adequado. Essa adequação se refere tanto ao caráter do

indivíduo quanto às regras de convívio que são pré-estabelecidas em uma

determinada cultura, posto que cada povo carrega traços próprios em relação

ao seu modus vivendi. Noutras palavras, as regras da convivência de cada

povo devem ser aceitas por todos, sendo que, para que haja uma aceitação do

acordo em seu sentido mais amplo, se faz necessário que todas as pessoas

comunguem, de maneira recíproca, das mesmas opiniões e que essa

reciprocidade traga benefícios a todos os que estão inseridos nessa

comunidade. Isso garante um acordo pacífico e não conflituoso entre as

pessoas.

Nesse ponto, ao que parece, já estamos vislumbrando um tipo

específico de reconhecimento, o social. Esse engloba determinadas práticas

sociais, tais como: a cultura, a sociedade, a política, entre outros. Embora o

aspecto prático da filosofia moral de Schopenhauer não seja analisado no

campo social, é importante realçar de modo mais geral a dimensão ética para

88

que então se possa observar com maior cautela a relação entre sofrimento,

reconhecimento e compaixão.

Schopenhauer, no parágrafo 148 de Parerga e Paralipomena, descreve

que o sofrimento é o que temos de mais próximo e imediato em nossas vidas e

se assim não fosse nossa vida seria um contrassenso. O autor mostra que o

sofrimento nos acompanha por toda a nossa trajetória de vida: “Nossa

receptividade para a dor é quase infinita” (SCHOPENHAUER, 1985, p. 216).

Schopenhauer afirma que, apesar de a infelicidade particular ser uma exceção,

a infelicidade em geral constitui a regra. Aqui, o autor aumenta o campo do

sofrimento para o todo, é por esse motivo que iremos de um modo geral

verificar qual a métrica do sofrimento.

Para Schopenhauer o sofrimento é algo positivo em relação a toda

felicidade e satisfação, posto que, via de regra, as alegrias estão bem abaixo e

os sofrimentos bem acima das nossas expectativas. Ao inverter a posição do

sofrimento para aquilo que é positivo e a felicidade como algo negativo,

Schopenhauer criticou vários sistemas metafísicos que declaravam que o mal

era algo de negativo. O autor de O mundo como vontade e como

representação afirma:

A história nos mostra a vida dos povos, e nada encontra a não ser guerras e rebeliões para nos relatar; os anos de paz nos parecem apenas curtas pausas, entre-atos, uma vez aqui e ali. E de igual maneira a vida do indivíduo é uma luta contínua, porém não somente metafórica, com a necessidade ou o tédio, mas também realmente com outros. Por toda parte ele encontra opositor, vive em constante luta, e morre de armas em punho. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 217)

Embora Schopenhauer em sua teoria filosófica tenha descrito as ações

humanas de maneira individualizada, visto que o que foi relatado por ele foi o

modo como os indivíduos agem levando em consideração suas motivações

antimorais, tais como egoísmo, maldade, inveja, malevolência (já explicitadas

no segundo capítulo desse trabalho), percebemos que o autor só depois de ter

feito uma panorâmica do mundo de um modo geral, principalmente, em suas

viagens16, as quais serviram também para testemunhar a condição miserável

16

É importante ressaltar, que Schopenhauer viajou por diversos países: França, Holanda, Suíça, Áustria e Inglaterra, em algumas dessas cidades Schopenhauer testemunhou e recolheu relatos de sofrimentos motivados por guerras, e cita a Revolução Francesa como aquela que foi palco das mais horríveis cenas: morte, fuzilamentos em massa, e ainda

89

do ser humano, pôde refletir sobre os acontecimentos, elaborando sua teoria

moral presente em suas obras O mundo como vontade e como representação

e Sobre o fundamento da moral. Segundo Jair Barboza:

No pensamento schopenhaueriano, o essencial das coisas se encontrava na vida individual, nos seus conflitos íntimos, não na abstração chamada povo. O interior da humanidade se revela nas biografias e autobiografias, não nas narrativas históricas repletas de datas de guerra e conquista [contrariamente a Hegel]. “A história nos mostra a humanidade como se nos mostra a visão da natureza a partir de uma alta montanha: vemos muito de uma só vez, amplas extensões, volumosas massas; mas nada se torna nítido, nem é cognoscível segundo toda sua essência propriamente dita. Ao contrário, a vida exposta de uma individualidade mostra o homem tal como se conhecêssemos a natureza ao passearmos por entre suas árvores, plantas, campos e regatos”. (BARBOZA, J, 1997, pp. 21-22, grifo nosso)

Apesar da panorâmica acima citada, Schopenhauer afirma que os

acontecimentos históricos são “sombras pálidas”17. A ordem dos

acontecimentos históricos é um reflexo de um universo originário, submetido a

mudanças, pois a história, ao se dedicar à ordem dos acontecimentos, ou seja,

àquilo que se altera constantemente, não pode, supostamente, ser tomada

como uma ciência verdadeira, porque a contínua transformação de fatos

históricos se modifica ao sabor das circunstâncias. Schopenhauer apesar de

não ser simpático aos acontecimentos históricos, em certa medida, foi tocado

por eles.

Para Schopenhauer, sua filosofia tem o intuito de denunciar as ilusões

múltiplas acerca do mundo. Tocado pelo sofrimento humano, o autor revela o

lado obscuro da vida, pois para ele a raiz das coisas é o mal, alles leben leiden

ist (“toda vida é sofrimento”). Contudo, embora Schopenhauer seja

frequentemente considerado um filósofo pessimista, observamos que seu

pessimismo é marcado somente pelo ponto de vista teórico, visto que ele

transfere esse suposto pessimismo para o lado prático de sua teoria, fundando

assim, uma filosofia do consolo. Isso mostra que Schopenhauer não nega que,

em sua teoria moral, existem momentos que são iluminados, redentores do

viver, que expõem o amor compassivo, a beleza e a santidade. Esses

momentos revelam que os homens podem ascender para um grau mais alto de

acompanhou de perto a conquista de Napoleão sobre a Europa, ou seja, Schopenhauer viu de perto misérias, dores e sofrimentos, mas o autor não era racionalista nem patriótico. 17

Esse termo pode ser comparado às sombras da caverna de Platão.

90

conhecimento, dissolvendo, desse modo, sua individualidade, rompendo com o

véu da ilusão (Maia), pois quando o homem dissolve sua individualidade ele

pode como meta final encontrar uma “união mística” com o todo (BARBOZA, J,

1997, p. 6). Com essa união, a ética schopenhaueriana aborda a essência do

mundo através do sofrimento, visto como mola propulsora para explicar o

mistério no qual vive a humanidade.

Schopenhauer leva em consideração as dores e os sofrimentos que

atingem os homens, visto que o mundo e seus enigmas indicam tanto o lado do

sofrimento, quanto o lado da felicidade, abordando, dessa forma, o caráter de

positividade do sofrimento e a negatividade18 da felicidade. Portanto,

Schopenhauer estabeleceu, em sua ética, uma fusão direta entre os dois polos

sofrimento e compaixão. Para Schopenhauer, as nossas satisfações são

momentâneas, pois acontecem em pequenos intervalos; já o sofrimento segue

o mesmo percurso só que em proporções maiores. Em suas palavras:

Pois todo esforço nasce de uma carência, do descontentamento com o próprio estado e é, portanto, sofrimento pelo tempo em que não for satisfeito; nenhuma satisfação, todavia, é duradoura, mas antes sempre é um ponto de partida de um novo esforço, o qual, por sua vez, vemos travado em toda parte de diferentes maneiras, em toda parte lutando, e assim, portanto, sempre como sofrimento: não há nenhum fim último de esforço, portanto, não há nenhuma medida e fim do sofrimento. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 399)

No homem, o sofrimento se torna mais visível, tendo em vista que esse

é o único capaz de abstrair conceitos, refletir e pensar sobre os acontecimentos

que ocorrem em sua vida e na dos demais. Isso não quer dizer que outros

seres não possam sofrer. Os animais, por meio de suas excitações, também

sofrem, só que a intensidade do seu sofrimento é menor, posto que os animais

não podem abstrair conceitos, nem refletir sobre os mesmos. Para

Schopenhauer, os animais menos complexos tem uma capacidade limitada de

sofrer e sentir dor, por exemplo, os insetos. Apenas nos animais que têm o seu

sistema nervoso completo, os vertebrados, o sofrimento aparece em um grau

mais elevado. Para Schopenhauer, quando a inteligência se desenvolve e a

18

É importante ressaltar que a felicidade só pode ser medida pela ausência de dor, pois só ela tem um caráter negativo, enquanto que a dor tem um caráter positivo. Cf. MÁRQUEZ. P. M. J. Arthur Schopenhauer: Del dolor de La existencia Al cansancio de vivir. Servilla: KRONOS, 2004, p. 77. Tradução nossa.

91

consciência se torna mais elevada, o sofrimento aumenta: “[...] no homem, e

tanto mais, quanto mais ele conhece distintamente, sim, quanto mais

inteligente é. O homem no qual o gênio vive é quem mais sofre”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 400). Essa citação corrobora com a assertiva de

que o gênio, por ser dotado de maior intelectualidade e perceber as coisas com

mais clareza e sensibilidade, tem uma tendência natural ao sofrimento.

O sofrimento, na perspectiva schopenhaueriana, é mais elevado nos

indivíduos devido as suas carências, necessidades e desejos, pois o homem

quer sempre, de modo que na medida em que seu querer aumenta, aumenta

também seu sofrer. Diz Schopenhauer: “quando lhe falta o objeto do querer,

retirado pela rápida e fácil satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 402). Logo, o mundo que nós percebemos é um

mundo de sofrimento e dor. Na concepção de Schopenhauer, os homens são

obrigados a lutar pela sua própria existência. A carência e a falta de meios para

obter determinados fins mobilizam o sofrimento das pessoas. Noutras palavras,

sentimos o peso do sofrimento quando nossas carências, desejos e

necessidades não são satisfeitos. Por isso, a privação dos desejos que não são

satisfeitos é uma forma de sofrer, de modo que “o atingimento de fins nunca faz

que o anseio por fins cesse por completo” (JANAWAY, 2003, p. 127). Essa

insaciabilidade faz com que estejamos sempre em busca de novos desejos, o

que leva a nos sentirmos entediados, posto que estamos sempre empenhados

em sentir novas satisfações.

Esta é a vida da maioria dos homens; eles desejam, sabem que desejam e se empenham pela realização do que desejam com sucesso suficiente para ser protegidos do desespero, bem como fracasso suficiente para preservá-los do tédio e das consequências deste. (JANAWAY, 2003, p. 128)

Assim, toda busca pela felicidade está associada ao sofrimento, devido

à procura incessante do homem pela realização de novos desejos, o que o

torna insaciável: “Imaginar uma existência sem sofrimento é imaginar uma

existência que não é de um indivíduo humano” (JANAWAY, 2003, p. 128). Na

realidade, as carências, os desejos e as necessidades estão atrelados ao

fenômeno da Vontade.

Para Schopenhauer, toda busca de satisfações é caracterizada pelos

atos da Vontade. No homem, ela aparece com maior intensidade, uma vez que

92

o homem luta constantemente pela sua existência, mesmo sabendo que, ao

final, o que lhe resta é a morte, pois “a vida mesma é um mar cheios de

escolhos e arrecifes” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403). O empenho pela

existência e a sociabilidade é o que mantém os homens ocupados tentando

sempre escapar do tédio. Todavia, a vida, na verdade, requer cuidados e

precauções, portanto, é como se estivéssemos à deriva em um barco que a

qualquer momento poderá afundar. Segundo Schopenhauer, “este é o destino

final da custosa viagem e, para ele, pior que todos os escolhos que evitou”

(SCHOPEHAUER, 2005, p. 403). Schopenhauer mostra, assim, que os

indivíduos estão apenas lutando constantemente pela existência, tendo,

entretanto, uma clareza de consciência que ao final serão vencidos.

É notória, na teoria schopenhaueriana, a visão de que os nossos

infortúnios causam sofrimentos e isso faz parte da vida. Em sua obra O mundo

como vontade e como representação (2005), afirma Schopenhauer:

O que mantém todos os viventes ocupados e em movimento é o empenho pela existência. Quando esta lhes é assegurada, não sabem o que fazer com ela. Por conseguinte, a segunda coisa que os coloca em movimento é o empenho para se livrarem do lastro da existência, torná-la não sensível, “matar o tempo”, isto é, escapar ao tédio. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403)

Para Schopenhauer, a manutenção da vida é uma preocupação

humana, já que a maioria dos homens quando se encontram seguros em

relação às misérias e as preocupações e por terem finalmente se livrados de

todos os males que os preocupam, tornam-se um peso para si mesmo. Dessa

forma, os indivíduos percebem cada instante morto como sendo uma

conquista, ou seja, os homens lutam sempre e é de tal manutenção que

depende sua sobrevivência, obtida pelos seus esforços. Isso não quer dizer

“[...] que o tédio é um mal a ser desprezado; por fim ele pinta verdadeiro

desespero no rosto” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403). Assim, o tédio é um

aliado para tornar as pessoas mais sociáveis. Até mesmo o Estado procura

meios para implantar certas medidas que supostamente possam atenuar as

tragédias que assolam a humanidade. Portanto, o homem precisa de panem et

circenese. Por que o homem precisa de pão e circo? A nosso ver, para atenuar

os sofrimentos que afetam o universo humano, já que o sofrimento é algo

93

inerente à própria natureza e quando eliminamos um sofrimento, logo aparece

outra carência e novamente um novo sofrimento19.

As dores da humanidade aparecem de várias maneiras, como

mencionado acima. Apesar de reconhecermos na teoria moral de

Schopenhauer que a dor é inevitável, ela também vem por meio das

eventualidades, dos infortúnios em que ao longo da vida temos que passar.

Portanto, toda satisfação produz saciedade, visto que entre querer alguma

coisa e alcança-la existe um fluxo contínuo que se perpetua sem cessar por

toda a vida dos homens. Nesse sentido, Schopenhauer afirma que a dor é

essencial e inevitável à vida. Por esse motivo, Schopenhauer dá destaque ao

sofrimento humano.

O sofrimento pode nos conduzir a entender as contradições do mundo

e a maneira como agimos quando somos acometidos pela dor, embora na

maioria das vezes o sofrimento seja inevitável, posto que, a Vontade age

cegamente. É pelo intermédio da vontade que em alguns casos não pensamos

nas consequências de nossos atos, mesmo sabendo que a bolha de sabão

pode estourar e, consequentemente, nos remeter novamente a posição inicial,

qual seja, de novamente buscar incessantemente a satisfação de novos

desejos. Segundo Schopenhauer, “só a carência, isto é, a dor nos é dada

imediatamente” (SCHOPENHAUER, 2005, p. 411).

Se para Schopenhauer a felicidade é de natureza negativa e a dor

positiva, isso significa que nós não podemos encontrar satisfação e

contentamento duradouros, pois a cada desejo satisfeito surgem outros novos

e novamente carência, dor, vazio e tédio.

Os esforços infindáveis para acabar com o sofrimento só conseguem a simples mudança de sua figura, que é originariamente carência, necessidade, preocupação com a conservação da vida. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 403)

Assim, Schopenhauer indica que quando mensuramos o sofrimento, ou

seja, quando temos conhecimento de que essa vida não pode conduzir os

homens à satisfação plena, podemos nos apaziguar com nossa existência.

19

Para Schopenhauer, quando nos satisfazemos em intervalos nem muito curtos nem muito longos, nosso sofrimento é reduzido a um grau menor, tornando a vida mais alegre. Isso só acontece na fruição do belo e por intermédio da arte, pois nesse momento nos tornamos puros sujeitos do conhecimento, despidos de qualquer interesse. Nossa existência real é arrancada e o cristalino conhecimento permanece apartado de todo querer.

94

Para Schopenhauer, “[...] o sofrimento é essencial e a satisfação verdadeira é

impossível” (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 410-411).

Na visão de Schopenhauer, as lembranças de episódios tristes que

foram ultrapassados, de algum modo, nos causam prazer. Isso traz à tona um

exemplo exposto no segundo livro De rerum natura por Lucrécio20. Não se deve

negar que o sofrer dos outros às vezes nos propicia certo prazer, no entanto,

esse tipo de prazer encontra-se próximo do egoísmo e da maldade21.

A exposição feita por Schopenhauer acerca do sofrimento é

apresentada de uma maneira singular, visto que, em seus relatos sobre o

sofrimento, o palco principal é o mundo. Para ele, a história da humanidade

mostra como a vida é de fato. Nela, os indivíduos vivem em uma luta perpétua

para assegurar suas existências. Os homens encontram em toda parte

opositores, vivem em constante guerra e, na maioria das vezes, morrem com

suas armas em punho. Em sua obra Parerga e Paralipomena, parágrafo 150,

Schopenhauer relata:

O consolo mais eficaz em toda infelicidade, em todo sofrimento, é observar os outros, que são ainda mais infelizes do que nós: e isto é possível a cada um. Mas o que resulta disto em relação ao todo? Parecemos carneiros a brincar sobre a relva, enquanto o açougueiro já está a escolher um ou outro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que infelicidade justamente agora o destino nos prepara - doença, perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura e morte, etc. (SCHOPENHAUER, 1985, p. 217)

O cenário apresentado por Schopenhauer em relação ao sofrimento é

uma via de acesso para tratar do tema da compaixão. É por intermédio do

sofrimento que iremos abordar de que modo a compaixão22 pode ser tratada

como uma ética do reconhecimento. Para isso, faremos uma abordagem geral

sobre o reconhecimento social em Hegel, que, em sua teoria da consciência e

20

Conforme nota de rodapé número 39 de O mundo como vontade e como representação: “Quando o mar está bravo e os ventos açoitam as ondas, / É agradável assistir em terra os esforços dos marinheiros: / Não que nos agrade assistir aos tormentos dos outros, / Mas é um prazer sabermo-nos livre de um mal.” (N.T) Cf. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 412). 21

Para Schopenhauer, egoísmo e maldade são as duas principais potências antimorais que alguns carregam em sua natureza, as quais, em certos casos, levam os homens a sentirem prazer em ver a infelicidade e o sofrimento de outros. 22

Em nosso segundo capítulo, discorremos sobre a compaixão e seus desdobramentos, mas para abordar o nosso problema em relação ao reconhecimento, faz-se necessário um retorno ao conceito de compaixão, pois assim podemos perceber se de fato ela pode ser traduzida como uma ética do reconhecimento via sofrimento.

95

autoconsciência, tratou da relação entre senhor e escravo para analisar de que

modo o reconhecimento se dava nessa relação.

3.2. Reconhecimento: a metáfora do senhor e do escravo em Hegel

Neste tópico pretendemos apresentar de maneira geral o

reconhecimento em Hegel com o objetivo de traçar um paralelo entre a

perspectiva hegeliana acerca do reconhecimento e a schopenhaueriana, que

nos interessa no presente trabalho. Trataremos, para isso, da metáfora do

senhor e do escravo trazida à luz por Hegel. Para se falar em reconhecimento,

será necessário, em primeiro lugar, fazer um retrocesso à história do

reconhecimento a partir de Hegel. Salientamos que o reconhecimento em

Hegel tem como suporte a dialética da autoconsciência presente na obra

Fenomenologia do Espírito, seção A, do capítulo quatro, no quadro de

desenvolvimento da autoconsciência. Tal parte se estende do parágrafo 178 ao

parágrafo 196. Desse modo, nos deteremos apenas na seção supracitada da

referida obra e em alguns comentários que tratam do mesmo tema.

Para Hegel, existem três momentos para explicar a realização do

espírito. Em primeiro lugar, Hegel trata do espírito subjetivo, em seguida do

efetivo e por fim do absoluto. Esses três momentos são importantes para se

entender de que maneira a temática do reconhecimento foi introduzida na

teoria social hegeliana, visto que o reconhecimento, em primeiro lugar, se dá a

partir do tema da consciência e da relação de independência e dependência da

consciência-de-si. Essa primeira explicação do processo de realização do

espírito pode ser aludida com o exemplo da metáfora do senhor e do escravo,

presente na Fenomenologia do Espírito (1999). A partir dessa metáfora, Hegel

irá mostrar como se dá o primeiro momento do reconhecimento que se

desdobra na consciência-de-si e para si. Posto que a palavra ‘sich’ em alemão

é singular e plural ao mesmo tempo, “assim, significa ‘si mesmo, ele mesmo,

ela mesmo, um ao outro’’’ (INWOOD, M, 1997, p. 109). Esses termos nos

servirão como auxílio de forma a ter uma melhor compreensão da relação

senhor e escravo. Parece paradoxal o entendimento que Hegel expõe na sua

dialética da consciência para a autoconsciência, no entanto, ela se faz

necessária para os desdobramentos de sua teoria.

96

Hegel inicia o parágrafo 178 com a seguinte afirmação: a consciência

de si é como algo que é para si e para o outro. Dessa duplicação surge a ideia

de momentos da consciência, ou seja, a consciência de si é dada por algo que

lhe é exterior, ela se perde e suprassume o outro. Esse termo suprassunção

(Aufhebung), segundo Alexandre de Moura Barbosa (2010, p. 72), comporta

três sentidos: a) de negação; b) de conservação e c) de elevação. Nesse ponto

em específico, quando a consciência-de-si suprassume o outro, adquire sua

essência, apropria-se dela e as duas tornam-se una. Assim, a consciência-de-

si retorna para si, libertando o outro ao trazê-lo para si.

No parágrafo 182, Hegel afirma que as duas consciências firmam-se

independentes e separadas, posto que a primeira consciência já possui o

objeto diante de si. Neste momento de independência e separação, entra em

cena a necessidade de um duplo agir, visto que, nesse momento, a

consciência-de-si firma-se como um termo médio que se decompõe nos

extremos. Então, por causa desse duplo agir, as duas consciências se

reconhecem de maneira recíproca.

Partindo desse pressuposto, a consciência-de-si é ser-para-si simples,

pois ela exclui de si todo o outro, sua essência é o seu próprio Eu e nessa

imediatez ela está em um estágio primitivo. O outro é para ela (a consciência

de si) um objeto inessencial, marcado com sinal ainda negativo, pois ela não é

capaz de reconhecer o outro, mas quando o outro se positiva, surgem então

dois indivíduos e, com eles, um duplo agir, da primeira consciência negativa e

da segunda consciência positiva. Entra em cena a luta entre as duas

consciências-de-si e ocorre, nesse momento, um combate de vida e morte

entre a primeira consciência e a segunda.

Esse é o exato momento que surge a relação entre o senhor e o

escravo, posto que o senhor aparece aqui como a vida e o escravo aparece

somente como coisa, ou seja, objeto. Assim, Hegel afirma no parágrafo 190 da

Fenomenologia, que, sendo o senhor uma consciência para si, o escravo é

aquele que irá fazer uma ligação entre o objeto do desejo do senhor, de modo

que o escravo é, para o senhor, uma coisa que irá satisfazer o desejo e o gozo

senhorial. Nesse sentido, o agir do escravo é totalmente destituído de

essência. É pura negação, posto que seu reconhecimento é dado de forma

unilateral e consequentemente desigual, visto que o senhor não o reconhece.

97

Só o contrário que é possível, ou seja, só o escravo reconhece seu senhor. A

consciência do escravo só se afirma como verdade em relação ao seu senhor.

Em contrapartida, no parágrafo 193 da obra em questão, Hegel mostra

que, embora o senhor tenha uma consciência independente em relação ao

escravo, a sua consciência também se configura como consciência escrava. Já

no parágrafo 194, o autor relata que a consciência escrava teme o seu senhor

e o que ele pode lhe fazer. Percebe-se que existe uma relação de subjugação

do escravo em relação ao senhor. Nesse caso, como é possível o escravo

perceber-se enquanto consciência de si, tendo algo de positivo nesta relação

de dependência? A essa pergunta Hegel responde no parágrafo 195 que o

positivo, o escravo, não tem um ser para si, mas ele pode encontrar-se no

trabalho, pois o trabalho é o desejo reprimido que o escravo sente. Nesse

momento, o senhor entra em crise. O que na verdade está em jogo nessa

metáfora entre senhor e escravo é a relação de dependência do escravo em

relação ao senhor. O que resta para o escravo é o sentimento de medo e

angústia que ele sente em relação ao seu senhor. No entanto, a metáfora não

se encerra aqui: o escravo passa a ser reconhecido pelo senhor e torna-se

senhor. A consciência torna-se consciência-de-si.

Todo esse relato da metáfora do senhor e do escravo foi para mostrar

o caminho percorrido por Hegel, na Fenomenologia, para identificar de que

modo o tema da consciência é relevante. A partir desse caminho traçado por

Hegel houve uma constatação histórica no processo de formação do mundo da

cultura. Os momentos retratados por Hegel em relação à metáfora do senhor e

do escravo fazem parte de um movimento dialético, visto que a consciência-de-

si se dá com a reflexão e com a percepção do mundo. No entanto, antes de

Hegel iniciar seu movimento dialético, o que é anterior a ele é o momento de

puro reconhecer, ou seja, a unidade. Essa unidade, contudo, carrega em si

uma determinidade que lhe é colocada à frente, oposta, que irá se desdobrar

em um reconhecimento, posto que, diante da consciência-de-si e para si existe

outra consciência-de-si. Devendo, desse modo, se reconhecerem

reciprocamente. Isso acarreta uma dupla significação: 1) ela perdeu a si

mesma, por isso se encontra numa outra essência, 2) com isto esta

consciência suprassumiu o outro, posto que não enxerga esse outro como

essência, porém é a si mesma que vê no outro. Portanto, o movimento dialético

98

da consciência só é possível a partir do momento em que a consciência

reconhece outra consciência-de-si.

A primeira consciência-de-si não tem diante de si o objeto, como inicialmente é só para o desejo; o que tem é um objeto independente, para si essente, sobre o qual portanto nada pode fazer para si, se o objeto não fizer em si o mesmo que ela nele faz. O movimento é assim, pura e simplesmente, o duplo movimento das duas consciências-de-si. Cada uma vê a outra fazer o que ela faz; cada uma faz o que ela exige – portanto faz somente enquanto a outra faz o mesmo. (HEGEL, 1999, p.127)

A conclusão que Hegel chega e que arremata a citação acima é que o

agir unilateral de uma consciência é inútil, nesse caso o que deve acontecer só

pode ser efetuado por intermédio de ambas as consciências. O que foi

discutido acima mostra que Hegel, em sua obra Fenomenologia do espírito,

funda a problemática da autoconsciência com a problemática do

reconhecimento propriamente dito. Noutras palavras, somente quando da

verificação de uma consciência e outra.

Assim, é necessário que cada consciência leve para a outra a sua

abstração, mas que em um segundo momento cada uma também suplante tal

abstração para que possa ocorrer o agir no outro. Mas, ao que indica, a

problemática do reconhecimento se dá no momento em que as diferenças

entre as consciências terão de ser superadas, logo, o reconhecimento surge na

luta de vida e morte.

No parágrafo 187 da Fenomenologia do Espírito (1999), Hegel afirma

que nesse momento de rivalidade há um agir duplicado, que implica uma luta

entre as duas consciências de si. Neste momento, ocorre um combate de vida

e morte entre consciência e não consciência. Cada uma tende a matar o outro

para ser apenas ser-para-si. Assim, a morte é a negação da outra consciência

que se quer independente. Confirma Hegel:

Devem travar essa luta, porque precisam elevar à verdade, no Outro e nelas mesmas, sua certeza de ser-para-si. Só mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se conquista]; e se prova que a essência da consciência-de-si não é o ser, nem o modo imediato como ela surge, nem o seu submergir-se na expansão da vida [...] O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma outra consciência-de-si independente. Assim como arrisca sua vida, cada um deve tender à morte do outro; pois para ele o Outro não vale mais que ele próprio. (HEGEL, 1999, pp.128-129)

99

Nessa luta entre vida e morte, temos primeiro uma consciência-de-si

ilustrada pela figura do senhor que, mesmo arriscando sua vida, saiu

vencedora e outra cuja vida foi conservada como coisa, a figura do escravo.

Nesse caso, ambos os momentos são desiguais e contrários. Portanto, mesmo

as consciências sendo desiguais, elas são necessárias para se compreender a

relação entre senhor e escravo, posto que existe uma dependência entre as

duas consciências. A primeira consciência, a do senhor, pelo menos em seu

primeiro momento, é independente, a segunda consciência é dependente.

Assim, “uma é o senhor, outra é o escravo” (HEGEL, 1999, p. 130).

Nessa relação de dependência, o senhor se percebe como consciência

mediada por outra, mesmo que a outra consciência, a do escravo, seja

somente uma coisidade. No entanto, essa coisidade que está relacionada com

o escravo se constitui a partir do desejo essencial para o senhor. No parágrafo

190 da Fenomenologia, Hegel afirma que o escravo é aquele que faz o elo

entre o senhor e o objeto de seu desejo, de modo que o senhor, por meio de

sua independência, realiza o desejo não da morte, mas do gozo. É por meio da

categoria trabalho que o senhor deixa o escravo de lado apenas trabalhando.

Vale ressaltar que o trabalho é o instrumento que faz a mediação

dessa relação dialética entre senhor e escravo, por isso, mesmo o escravo

sendo visto como “coisidade”, ele é essencial para o processo de

reconhecimento, mesmo que esse reconhecimento seja uma relação unilateral,

portanto desigual, posto que somente o escravo reconhece o seu senhor, o

escravo, mesmo como objeto inessencial, é essencial para o reconhecimento.

Nas palavras de Hegel:

[...] o que o escravo faz é justamente o agir do senhor, para o qual somente é o ser-para-si, a essência: ele é a pura potência negativa para a qual a coisa é nada, e é também o puro agir essencial nessa relação. O agir do escravo não é um agir puro, mas um agir inessencial. (HEGEL, 1999, p. 131)

Contudo, é necessário discorrer tanto sobre o momento em que o

senhor opera sobre o escravo quanto sobre o momento em que o escravo

opera sobre si mesmo, pois o que o escravo faz sobre si é o que também faz

sobre o outro, de forma que o reconhecimento, como anteriormente enunciado,

é um reconhecimento desigual e unilateral. A consciência sem essência do

escravo se afirma como a verdade do senhorio, mas também a consciência

100

independente do senhor se configura também como uma consciência servil. É

importante ressaltar que a consciência servil teme pelo que o senhor pode lhe

fazer, logo, sente medo e angústia em relação ao opressor, ao senhor

absoluto. Contudo, a partir do momento em que o escravo encontra-se no

trabalho, pois o trabalho é para ele o seu desejo reprimido, seu senhorio entra

em crise. Ainda existe subjugação, mas, a partir dessa circunstância, se abre

uma porta para o tema da liberdade em Hegel, sobre o qual não trataremos em

nosso trabalho.

Segundo Vittorio Hösle (2007), a obra Fenomenologia do Espírito

analisa de modo sumário a autoconscientização do servo. Nela, Hegel mostra

que, para o servo, o senhor é a essência e de certo modo sua autoconsciência,

todavia, na luta de vida e morte, a limitação do servo é abalada (segundo

momento). Na consciência da morte forma-se no servo o primeiro ser para si,

mesmo que apenas em si mesmo. Para Hegel, quando o trabalho, “desejo

refreado”, entra em cena, o servo reconhece a si mesmo e se torna uma

autoconsciência existente para si. Segundo Hösle:

Por meio desse trabalho formativo o servo ganha então pouco a pouco uma superioridade em face de seu senhor, que apenas goza. Ao trabalhar para um outro, ele se eleva “sobre a singularidade egoísta de sua vontade natural e, nesse sentido, está, segundo o seu valor, mais alto que o senhor, preso ao seu egoísmo, vendo no servo apenas sua vontade imediata, reconhecido de modo formal por uma consciência não livre”[...] Não cabe ao senhor poder reconhecer-se em um outro, com isso, porém, ele permanece preso na contradição em favor de cuja suprassunção ele havia partido para a luta pelo reconhecimento, pois o que significa para ele o reconhecimento de um ser humano que ele mesmo não reconhece? A rigor, esse reconhecimento deveria ser para ele até mesmo desagradável, pois quem é reconhecido por um ser inferior é, ele mesmo, inferior. Em todo caso, ele não pode abstrair dessa relação, pois ele é o que é – senhor – apenas por referência ao servo. (HOSLE, 2007, pp. 417-418)

O tema do reconhecimento na Fenomenologia do Espírito se apresenta

ainda de forma embrionária, pois Hegel, ao abordar a metáfora do senhor e do

escravo como processo necessário de um movimento dialético, procurou

superar os momentos iniciais da relação entre senhor e servo, posto que, ao

discorrer sobre a relação de vida e morte, surge um dos momentos

importantes, o agir duplicado. Nesse momento, cada um tende à morte do

outro; a morte é, portanto, a negação da outra consciência-de-si. No entanto,

se ambos continuarem lutando e, em decorrência dessa luta, uma das

101

consciências perecer, a vitória seria inócua e o momento inicial, ou seja, o

retorno à abstração seria apontado.

Retomando a dialética, infere-se que a vida é essencial no processo de

reconhecimento, pois ambas as consciências (do senhor e do escravo) são

necessárias uma a outra, mesmo que o senhor perceba que o outro é apenas

uma coisidade e se relaciona com ele por meio do desejo, a coisa como tal,

neste caso, é ainda essencial. É importante ressaltar que a categoria trabalho é

a mediadora dessa relação dialética, pois o trabalho transforma a servidão em

forma libertadora.

A consciência subjugada ou consciência servil, inessencial, que foi

tratada como coisidade, é o que marca a mediação entre o senhor e o mundo

da vida. Surge então o vencedor da luta, o escravo, pois somente ocorre um

momento dialético, no qual se dá o reconhecimento, mediante a existência

essencial do escravo. Trabalhando, o escravo sabe de seu valor assim como o

senhor sabe dessa condição. Portanto, no final, quem vence a luta é o escravo.

A dominação se apresenta também inversamente, por isso, o escravo torna-se

um ser independente.

Observamos que Hegel elaborou uma teoria social que foi construída

primeiramente com a independência e dependência da consciência-de-si,

surgindo, a partir daí, a temática da dominação e escravidão apresentada em

sua obra da juventude Fenomenologia do Espírito. Nessa, supostamente

ocorreu o primeiro momento do movimento que Hegel caracterizou como

dialético, ponto de partida para a construção de sua teoria social e para o tema

do reconhecimento.

O movimento realizado por Hegel em suas obras da maturidade irá

terminar no Estado, já que, para ele, o Estado é a suprema instância da

eticidade. Hegel irá delimitar a supremacia do Estado em duas obras:

Enciclopédia e Princípios da Filosofia do Direito. Nessas obras, Hegel dá

andamento ao seu projeto maior em relação ao tema do reconhecimento, visto

que o Estado moderno se faz mediante uma grande pluralidade de

reconhecimentos. Portanto, para Hegel, o Estado como uma unidade suprema

deve proporcionar aos seus cidadãos condições de serem reconhecidos

plenamente.

102

Para Hegel, o reconhecimento tem seu primeiro momento na

abstração, mediada pela relação entre senhor e escravo, e, em seguida,

caminha para a sociedade civil para, por último, chegar ao Estado, o qual, para

Hegel, é a síntese dos momentos históricos antes construídos. Na obra

Princípios da Filosofia do Direito, Hegel divide seu sistema em Direito abstrato,

Moralidade subjetiva e Moralidade objetiva. Nessa terceira e última parte,

Hegel faz uma explanação sobre momentos que podemos considerar também

como dialéticos. Ele começa seu percurso tratando do Direito abstrato, que é a

parte que se ocupa do direito dos indivíduos. Nessa parte, Hegel tratou da

família e suas relações parentais, por exemplo, o amor dos pais. Aí já se

vislumbra a primeira forma de reconhecimento, já que os pais reconhecem no

amor a importância dos filhos.

O segundo momento é a passagem da família para a sociedade civil e,

por fim, dessa para o Estado. Desse modo, observamos que a teoria do Estado

em Hegel segue um percurso dialético-histórico bem construído. “É assim que

este nosso tratado sobre ciência do Estado nada mais quer representar senão

uma tentativa de conceber o Estado como algo de racional em si”, diz Hegel

(1997, p. 37). Isso mostra a importância que Hegel concebeu ao Estado, pois,

para Hegel, superior ao Estado somente o espírito absoluto, tendo em vista que

a arte, a religião e a filosofia, nessa ordem que se segue, já pressupõe um

reconhecimento universal por mérito e dádiva do Estado.

As elucidações feitas em relação ao tema do reconhecimento em

Hegel, em sua obra Fenomenologia do Espírito, mais especificamente na parte

que esse trata da dominação e escravidão, serviram como ponto de apoio em

relação à abordagem do tema desse trabalho, o reconhecimento via compaixão

em Schopenhauer; contudo, o caminho percorrido por Hegel em relação ao

reconhecimento segue uma proposta diferente em relação ao reconhecimento

via sofrimento. Para analisar se é possível a compaixão como uma ética do

reconhecimento em Schopenhauer, é necessário analisar as diferenças entre

os dois autores.

Em Hegel, o reconhecimento é trabalhado via dialética e sua teoria

segue um percurso histórico no qual se agregam momentos necessários para

se chegar a uma teoria social do Estado. Já Schopenhauer não trabalha a

categoria reconhecimento de maneira explícita em suas obras, visto que ele

103

não percorre nenhum caminho dialético e nem aborda nenhuma teoria política

e social no âmbito do Estado como a teoria hegeliana. Pelo contrário,

Schopenhauer foi um critico severo de Hegel.

Tentaremos, agora, verificar a possibilidade de se vislumbrar uma ética

do reconhecimento em Schopenhauer por meio da compaixão. O tema da

compaixão foi trabalhado no capítulo II desse trabalho, portanto, o que faremos

nesse último tópico será uma tentativa de mostrar se é ou não possível uma

ética do reconhecimento pelo viés dos atos compassivos.

3.3. A possibilidade de se pensar uma ética do reconhecimento em

Schopenhauer por meio da compaixão

A compaixão foi apresentada por Schopenhauer como fundamento da

moral por meio da obra Sobre o fundamento da moral e da sua obra principal O

mundo como vontade e como representação, em especial, o livro quatro.

Nelas, o autor analisa a compaixão como um sentimento que surge de maneira

imediata e espontânea, ultrapassando o egoísmo da vontade. Para

Schopenhauer, a compaixão é uma motivação moral por excelência.

Segundo o filósofo, a compaixão é um fenômeno misterioso, que,

entretanto, pode ser vivenciado por todos. Até os mais duros de coração

podem, por meio do sofrimento, sentir compaixão por outrem. É por meio do

sofrimento do outro que a compaixão entra em cena. O agente compassivo se

identifica com o outro que sofre em certa medida. A partir do momento que eu

me identifico com o outro, estou consequentemente desfazendo a barreira

entre o eu e o não eu, mesmo que essa supressão seja apenas momentânea.

Essa supressão é necessária para que ocorra o fenômeno da compaixão:

somente quando olho para outrem e vejo o seu sofrimento, mesmo que esse

alguém seja um estranho ou uma pessoa indiferente, é possível que a dor, a

precisão e a necessidade do outro tornem-se meus. Quando isso ocorre, eu já

não vejo nenhuma diferença entre mim e o outro. Percebemos que é por

intermédio do sofrimento que a compaixão entra em cena.

Schopenhauer, em sua obra Sobre o fundamento da moral (2001),

analisa a compaixão de forma mais detalhada. Para um melhor entendimento

sobre a compaixão, Schopenhauer elabora a seguinte pergunta: como é

104

possível que o sofrimento de outra pessoa que não me diz respeito, possa me

levar diretamente a agir, como se fosse para mim o meu próprio motivo? Em

resposta, ele discorre que é por meio da dor de outrem que a compaixão surge

como algo intuitivo, brotando em cada um. Nesse momento, reconhecemos o

sofrer do outro como se fosse o nosso próprio sofrimento. Isso pressupõe que

eu me identifique com esse outro, que sofra com ele. Nas palavras de

Schopenhauer:

[...] embora sua pele não encerre meus nervos. Só por meio disso o seu mal, a sua necessidade tornam-se motivos para mim. Fora disso, só podem ser motivos os meus próprios. Este processo é, eu repito, misterioso, pois é algo que a razão não pode dar conta diretamente e cujos fundamentos não podem ser descobertos pela caminho da experiência. E, no entanto, é algo cotidiano. (SCHOPENHAUER, 2001, p. 163)

A citação acima esclarece que a compaixão é um processo misterioso

por ser um sentimento que brota de maneira intuitiva e que até mesmo os mais

severos e duros de coração podem sentir. É um processo sem muita reflexão,

que pode alcançar qualquer pessoa, seja ela perversa, maldosa ou egoísta. O

agente compassivo socorre, ajuda e ainda se coloca no lugar do outro, sofre

com ele, o reconhece e muitas vezes arrisca sua própria vida quando vê o

outro em perigo.

Desse modo, a compaixão, como um evento espontâneo que

ultrapassa as vontades egoístas, estabelece uma união entre os seres que

sofrem e o agente compassivo. Assim, a barreira da individualidade é

suprimida: o agente compassivo reconhece no outro suas dores e sofrimentos.

Nesse momento, surgem a autêntica bondade, a virtude desinteressada e a

pura nobreza. Schopenhauer aponta que a compaixão se efetiva de dois

modos distintos. O primeiro momento aparece como negativo e pode ser

traduzido como “não causar injustiça aos outros”. Esse primeiro grau da

compaixão inibe as potências antimorais como o egoísmo e a maldade. O

segundo grau da compaixão, que o autor aponta como positivo, é uma ajuda

ativa. Esse grau consiste em um reconhecimento efetivo. Diante desse

reconhecimento, o agente compassivo se coloca no lugar do outro e exerce

uma ação que tem como finalidade ajudar o outro.

A participação direta no sofrimento de alguém de maneira instintiva é a

única fonte verdadeiramente dotada de valor moral. A compaixão desperta em

105

nós um contentamento íntimo, o qual Schopenhauer chama de “consciência

boa, pacificada e aprovadora” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 160). Em

decorrência dessa participação direta, surge também no observador certa

aprovação, respeito e admiração por si mesmo e esse olhar voltado para si faz

com que, em certa medida, ele se torne também um sujeito digno de

admiração.

Portanto, a boa consciência é respaldada pelo reconhecimento

imediato e desinteressado no sofrer de outrem. O indivíduo que reconhece no

outro suas dores e as toma como se fossem suas tem seu coração dilatado.

Isso mostra que a compaixão é capaz de estreitar o abismo que existe entre os

indivíduos. No momento em que um indivíduo com uma boa disposição de

caráter reconhece o outro como sendo igual a si mesmo, ele certamente não

irá causar nenhum dano ou mal a outros, posto que o sofrimento visto em

outros indivíduos o afeta diretamente. Noutras palavras, esse indivíduo irá

restabelecer o seu equilíbrio, renunciará aos gozos e aceitará privações para

aliviar o sofrimento de outrem. A partir daí, não mais existe uma barreira ou um

abismo entre um homem e outro e até mesmo em relação aos animais.

Confirma Schopenhauer:

O homem nobre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo, pertence a um fenômeno passageiro e ilusório; reconhece imediatamente, sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio, a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive em tudo: sim, que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo, ele também não causará tormento a animal algum. (SCHOPENHAUER, 2005, pp. 473-474, grifos do autor)

Nesse momento de reconhecimento entre homens ou entre homens e

animais a barreira da individualidade foi ultrapassada, o Véu de Maia se torna

transparente. Nesse momento, o homem “reconhece a si mesmo, a sua

vontade, em cada ser, consequentemente também em quem sofre”

(SCHOPENHAUER, 2005, p. 474). Observamos que o processo que viabiliza o

sentimento da compaixão é o sofrimento. Logo, o sofrimento é o caminho que

conduz o homem a se colocar no lugar de outros seres, pois o que causa o

sofrimento são as carências, as necessidades e os desejos que não são

satisfeitos ao longo de toda uma vida. Por isso, o homem sempre está à mercê

dos infortúnios da vida.

106

Em O Pequeno Tratado das Virtudes Grandes, de André Comte-

Sponville (1995), o autor aborda, no capítulo oito, o tema da compaixão e

coloca o seguinte questionamento: se compadecer é sofrer com, e se todo

sofrimento é ruim, como a compaixão poderia ser boa? Considerando que ela

(a compaixão) opõe-se, por exemplo, à crueldade, à maldade, à indiferença e à

dureza de coração, a compaixão pode ser considerada amável, pelo menos do

ponto de vista da caracterização que encontramos nos dicionários. Sponville

nos diz que o quase sinônimo de compaixão é simpatia, que se diz em grego

do mesmo modo que se diz no latim. Já no italiano, compaixão e piedade são

sinônimas.

Porém alguns críticos nas palavras de Sponville tomaram a compaixão

como algo depreciativo, pois, para tais críticos, a compaixão só aumenta a

quantidade de sofrimento no mundo e é por esse motivo que alguns filósofos a

condenam. Em seu tratado, Sponville cita alguns autores que criticaram a

compaixão, partindo dos estóicos a Hannah Arendt, passando por Spinoza e

por Nietzsche. Sponville cita Spinoza que, em relação à compaixão, se

aproxima dos estóicos. Sponville, apresentando a concepção de Spinoza,

relata que “a piedade, num homem que vive sob a condução da razão, é em si

má e inútil” (SPONVILLE, 1995, p. 119).

Para Sponville, os sábios, na medida do possível, se esforçam em não

se deixarem tocar pela piedade. Em relação a Nietzsche que, mesmo

considerando Schopenhauer como seu educador, não deixou passar em vão o

tema da compaixão, Sponville o cita quando este diz que “viveríamos melhor

sem a piedade, pelo menos os que vivem bem viveriam melhor” (SPONVILLE,

1995, p. 122). Em relação a Nietzsche23, suas críticas em relação à compaixão

podem ser encontradas nas obras Além do Bem e do Mal, Assim falou

Zaratustra, Genealogia da Moral e Humano, demasiado humano. Nessas

obras, Nietzsche trata do tema da compaixão de um modo mais específico.

Contudo, para Sponville, foi Schopenhauer que tratou o tema da

compaixão de maneira bem mais profunda, ao analisar a compaixão como o

23

A referência das obras de Nietzsche citadas nesse trabalho tem apenas o intuito de informar ao leitor que as críticas feitas por ele ao tema da compaixão podem ser encontradas nessas obras. Contudo, não abordaremos o conteúdo das obras citadas. Pretendemos, em um momento posterior, fazer uma interface entre Nietzsche e Schopenhauer em relação ao tema da compaixão.

107

móbil por excelência da moralidade, ou seja, seu fundamento. Uma observação

importante feita por Sponville em relação à compaixão em Schopenhauer foi

que este último tratou da compaixão não somente entre iguais, mas também

em relação aos animais. Nas palavras de André Comte-Sponville:

A compaixão, ao contrário, simpatiza universalmente com tudo o que sofre: se temos deveres para com os animais, como acredito, é antes de tudo por ela, ou nela, e é por isso que a compaixão talvez seja a mais universal de nossas virtudes. (SPONVILLE, 2000, p. 123)

Schopenhauer em Sobre o Fundamento da Moral relata que é apenas

por meio do sofrimento, muito embora ele seja dado como algo externo,

meramente por intermédio da intuição ou por notícia, que se pode por simpatia

sentir a dor e o sofrimento de outros. Isso pressupõe que eu me identifique com

o outro, pois só assim haverá reconhecimento.

A compaixão, no entanto, sempre está ligada à infelicidade, ao

sofrimento. Schopenhauer, como já dissemos, considera que a essência da

vida é o sofrimento. Para que se dê o processo de compaixão, é necessário

entender que, no momento do ato compassivo, eu me identifico com o outro

que sofre, mas essa identificação não faz com que eu sinta a sua dor. É

importante ressaltar que:

[...] ele é o sofredor e não nós: e justo na sua pessoa e não na nossa sentimos sua dor, para nossa perturbação. Sofremos com ele, portanto, nele, e sentimos sua dor como sua e não temos a imaginação de que ela seja nossa. E mesmo, quanto mais feliz for o nosso estado e, pois, quanto mais contrasta a consciência dele com a situação do outro, tanto mais sensíveis seremos para a compaixão. (SCHOPENHAUER, 1995, p.133)

No entanto, o fenômeno da compaixão é a maior expressão de uma

motivação não egoísta e a única considerada por Schopenhauer como

genuinamente moral, pois é por meio da compaixão que rompemos com o

principium individuationis e com o véu da ilusão. Para Schopenhauer, esse véu

denominado por ele de Maia, quando rompido, permite que o indivíduo

reconheça a si próprio e se reconheça imediatamente no outro. Confirma

Schopenhauer:

Se aquele Véu de Maia, o principium individuationis, é de tal maneira retirado aos olhos de um homem que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios como se fossem os seus próprios. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481)

108

O principium individuationis é, para Schopenhauer, algo real, visto que

é nele que repousa a diferenciação entre os indivíduos. Mesmo sendo algo

real, cada um pode em algum momento se despir do mesmo, assim como

ultrapassar o véu de Maia. Cada indivíduo carrega em si seu próprio

sustentáculo, ou seja, sua essência, que é o fundamento do seu próprio ser.

Por esse motivo que existem pessoas tão diferentes com traços marcantes e

que, na maioria das vezes, agem movidas pelas suas próprias necessidades,

envoltas numa ilusão que podem encorajar ou coibir certos atos de conduta;

que podem ser: maldosos, egoístas, cruéis ou compassivos. Isso depende

também dos traços de caráter que cada um carrega em si.

Pelo que foi exposto acima, é importante rever a doutrina dos

caracteres em Schopenhauer já enunciadas no segundo capítulo desse

trabalho, mais especificamente no tópico 1.4 do primeiro capítulo. Diante da

doutrina dos caracteres, é importante ressaltar que o homem que carrega em

seu caráter traços de bondade vive num mundo exterior homogêneo. Por isso,

sua relação originária com cada ser é uma relação amigável, tendo em vista

que esse homem bom participa tanto do bem-estar como também do mal-estar

dos seus semelhantes. Então, o que surge dessa participação? Schopenhauer

dirá que surge uma paz interior inabalável: “A partir daí surge a sua profunda

paz interior e aquele humor confiante, tranquilo e satisfeito, em virtude do qual

todos os que lhe estão próximos ficam bem” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 220).

Em contrapartida, o mau caráter não confia na assistência de outros.

Esse é, supostamente, um dos motivos que leva o homem mau a um não

reconhecimento de outros que precisam de ajuda e dele necessitam, já que

sua índole não permite nenhuma forma de assistência para com aqueles que

sofrem. Esse homem de natureza ruim é ainda incapaz de reconhecer a si

mesmo em outro. Schopenhauer nos diz que “é nisto que repousa o caráter

revoltante de toda ingratidão” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 220). Assim, o

homem de bom caráter está sempre em prontidão para prestar ajuda a seus

semelhantes. O homem de má índole, pelo contrário, prioriza a sua

individualidade e isso é o que o torna diferente do bom caráter. Portanto, o

reconhecimento está presente mesmo que implicitamente na teoria moral de

Schopenhauer.

109

Tendo em vista que a compaixão é uma ajuda desinteressada e, ao

mesmo tempo, algo que brota em cada um de nós de maneira intuitiva, visando

exclusivamente a necessidade de outrem, ela, se pesquisada até seu

fundamento último, recai sobre uma ação misteriosa, isto é, uma prática

mística. O homem compassivo, portanto, deve reconhecer no outro sua própria

essência. É por isso que a explicação metafísica do fenômeno da compaixão é

“o maior mistério da ética” (SCHOPENHAUER, 2001, p. 221).

Para Schopenhauer, o homem que consegue olhar sua própria

essência nos demais seres está livre da sua individualidade e

consequentemente livre do véu da ilusão. Nesse caso, todos os que

conseguem fazer essa operação de catarata conseguem visualizar todos os

seres como aqueles que fazem parte de uma mesma essência. Do contrário,

quando os indivíduos ainda estão amarrados apenas na sua individualidade,

eles não podem ir além do conhecimento abstrato, ainda estão subordinados

ao princípio de razão. Noutras palavras, se os indivíduos não conseguem olhar

para os outros e perceberem que a barreira da individualidade não poderá ser

suprimida, tais indivíduos estão ainda envoltos no Véu de Maia.

Porém, se por algum motivo, o sofrimento de outrem se torna o motivo

das minhas ações, torna-se então notável a identificação estabelecida entre

mim e ele, de modo que a barreira do principium individuationis pode ser

suprimida. Frente a esse fato, observamos que a razão e os conceitos não

podem dar conta desse fenômeno originário que brota em cada um de nós de

modo desinteressado. Contudo, a compaixão busca um reconhecimento

imediato através da dor e do sofrimento de outrem via intuição. O grande

mistério da ética, nas palavras de Schopenhauer, é, de fato, a compaixão. Para

tal comprovação é necessário fazer um retrocesso ao segundo capítulo,

quando elencamos o caso de Caio e Tito, bem como o caso do caçador Harris.

Ambos os casos que foram relatados por Schopenhauer, a nosso ver,

trazem uma marca da compaixão. Em especial, o caso de Tito, pois esse, de

fato, foi tomado pelo sentimento da compaixão, posto que, quando chegou a

hora de mandar seu adversário para o ‘inferno’, ele desistiu de tal feito. O que

fez com que o mesmo desistisse de tal ato foi o sentimento de compaixão que

o mesmo sentiu pelo seu oponente. Em contrapartida, Caio somente desistiu

do crime por pensar que poderia ser castigado, por temor a Deus, entre outras

110

possibilidades. No caso relatado, Schopenhauer pergunta, quem seria o melhor

homem?

No segundo caso, do caçador Harris, a compaixão foi tão efetiva que

ao matar sua caça, um elefante fêmea, e tendo na manhã seguinte voltado ao

lugar do assassinato, ele assustou-se quando viu o filhote no local com um

olhar de profunda tristeza e o pequeno animal enrolou sua tromba no caçador

pedindo socorro. Nesse momento, Harris sentiu uma profunda compaixão e,

daquele momento em diante, não mais saiu para caçar. Esses casos retratam a

importância de se colocar no lugar do outro. Podemos observar que houve um

reconhecimento por parte dos protagonistas dessas histórias. O que mais nos

chamou atenção é que o ato compassivo esteve diretamente ligado ao

sofrimento, pois, somente por meio do sofrimento, é que podemos reconhecer

a dor de outrem, tendo em vista que o sofrimento pode ser o caminho para o

reconhecimento.

As ilustrações acima nos levam a pensar se a compaixão é possível

como uma ética do reconhecimento, visto que, nos casos supracitados, o

sentimento da compaixão foi eficaz. Posto isso, fazemos a pergunta: será que

a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do reconhecimento? Ao

nosso entender e diante dos relatos acima abordados, mesmo que

sumariamente, a compaixão é possível como uma ética do reconhecimento,

tendo em vista que, no momento em que eu me compadeço com o outro, a

individualidade cessa e os indivíduos estão livres do véu da ilusão e

consequentemente do princípio de razão suficiente. Assim, se conseguimos

reconhecer a nós mesmos por meio do sofrimento do outro, podemos nos

tornar agentes morais. Essa visão de Schopenhauer é diferente do

reconhecimento em Hegel, que se dá por meio de uma dialética racional da

consciência sem nenhum apelo ao conhecimento intuitivo. Hegel é

severamente criticado pelo filósofo Schopenhauer por defender que a

racionalidade é a mola propulsora de todo o conhecimento. Em Schopenhauer,

o reconhecimento abrange todos os seres, sejam eles racionais ou irracionais.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

111

O propósito deste trabalho foi analisar se é possível a compaixão como

uma ética do reconhecimento em Schopenhauer, tendo em vista que a

compaixão já é para Schopenhauer o fundamento da moral. Buscamos

identificar o percurso percorrido por Schopenhauer, levando em consideração

seu pensamento único presente na obra O mundo como vontade e como

representação. Falamos de pensamento único, pois há uma arquitetônica

coesa na filosofia schopenhaueriana, onde cada uma das suas partes segue

uma simetria e os quatro livros dialogam entre si.

Em seguida, fizemos um percurso através de sua obra Sobre o

fundamento da moral, visto que, nessa, Schopenhauer irá tratar de modo

sumário o tema da compaixão. Ainda foi necessário abordar pontos

importantes do seu primeiro trabalho de Schopenhauer, escrito ainda em sua

juventude, A raiz quádrupla do princípio de razão suficiente, em sua primeira

versão datada de 1813. Essa obra foi uma propedêutica para se entender os

desdobramentos de sua obra principal O mundo como vontade e como

representação.

A obra A raiz quádrupla do princípio de razão suficiente serviu de

embasamento teórico para se entender principalmente o víeis epistemológico

de Schopenhauer, tendo em vista que nessa obra o autor trata de um princípio

que serviu como o mais fundamental para todas as ciências, pois, para

Schopenhauer, as ciências nada mais são que um conjunto de verdades

encandeadas dispostas em quatro modalidades. Para tanto, Schopenhauer

dividiu o referido princípio em quatro raízes, que são: (a) do devir, (b) do

conhecer, (c) do ser e (d) do agir. Essas quatro raízes são apresentadas por

Schopenhauer no decorrer da tese, servindo de suporte para se entender como

o princípio de razão suficiente é importante para as descobertas científicas e

para o agir apresentado por ele em sua última raiz. Trabalhamos também os

conceitos de representação e Vontade, fundamentais para o entendimento

epistêmico e metafísico de seu projeto filosófico. Embora o mundo como

representação seja ligado ao princípio de razão suficiente e o mundo como

Vontade seja apartado desse princípio no que tange a Vontade como coisa em

si, quando as vontades se particularizam, elas também estão atreladas ao

princípio de razão suficiente. Contudo, o mundo para Schopenhauer é

112

representação e Vontade, os quais juntos formam os dois lados da mesma

moeda.

Ainda no mesmo capítulo, de um modo geral, foram citadas as críticas

tecidas por Schopenhauer a Kant, no que se refere a Kant ter dado primazia à

razão. Em contrapartida, Schopenhauer sustentou que a Vontade é primária

em relação à razão, que é secundária. Mesmo tecendo críticas a Kant,

principalmente no apêndice de O mundo como vontade e como representação,

Schopenhauer reconhece que o maior mérito de Kant foi ter distinguido o

fenômeno da coisa em si. Schopenhauer transformou a coisa em si kantiana

em Vontade e o fenômeno em representação. Faremos, agora, uma breve

exposição de que foi trabalhado em cada capítulo.

No primeiro capítulo, ressaltamos a importância de sua epistemologia,

no que tange o princípio de razão e suas quatro raízes. Em seguida,

trabalhamos os conceitos de representação e Vontade, levando em

consideração os dois lados do mundo já enunciados acima e os tipos de

caracteres inteligível, empírico e adquirido. Esse último tópico do primeiro

capítulo faz alusão aos diferentes modos de agir dos indivíduos.

No segundo capítulo, direcionamos nossa atenção às motivações

antimorais (egoísmo e maldade) expostas nas obras O mundo como vontade e

como representação (especialmente o livro quatro) e Sobre o fundamento da

moral. Nesse tópico, discorremos acerca das motivações antimorais ora

referenciadas, tendo em vista que, para Schopenhauer, essas são as

motivações de maior força que a compaixão tende a combater. Seguindo,

tratamos a compaixão como o fundamento da moral para então aludirmos

sobre as virtudes da justiça e da caridade, que, para Schopenhauer, são as

virtudes morais que se desdobram da compaixão. Ainda, nesse capítulo,

discorremos acerca da compaixão então apresentada como um fenômeno

empírico e metafísico.

O fenômeno da compaixão é, para Schopenhauer, considerado como o

maior mistério da ética, pois essa não depende de dogmas, religiões, preceitos.

Vimos que, partindo de alguns axiomas, Schopenhauer chega a identificar a

compaixão como um processo que não é sonhado ou apanhado no ar; é algo

real e não raro, posto que a compaixão é um fenômeno diário que tem como

pano de fundo o impedimento ou supressão de um sofrimento. A compaixão

113

sozinha é encarada por Schopenhauer como a base efetiva de toda justiça livre

e caridade genuína. Somente uma ação que dela surge tem verdadeiro valor

moral. Toda ação que carrega outras motivações externas é destituída de valor

moral.

No terceiro e último capítulo, considerado o mais importante desse

trabalho, prosseguimos com o tema da compaixão, no entanto, atrelado

diretamente ao sofrimento de outrem, pois é por intermédio do sofrimento que

procuramos vislumbrar uma ética do reconhecimento em Schopenhauer. É

necessário esclarecer que Schopenhauer não trabalha este conceito

(reconhecimento) em suas obras. O que se procurou foi tentar observar a

compaixão pelo viés do sofrimento para vislumbrar se é possível uma ética do

reconhecimento seguindo esse itinerário. Portanto, em certa medida, quando

reconhecemos que a dor é o sofrimento de outrem, estamos rompendo com a

barreira da individualidade, denominada por Schopenhauer de Véu de Maia, ou

véu da ilusão, pois, no momento do ato compassivo, estamos suprimindo a

barreira que existe entre o eu e o outro, reconhecendo o outro como extensão

de si mesmo.

Contudo, percebemos, ao longo da pesquisa que, para se tratar do

tema do reconhecimento, seria necessário retornar a Hegel no que se refere à

problemática do reconhecimento. Para isso, discorremos acerca da metáfora

do senhor e do escravo de modo a entender como Hegel entende o tema do

reconhecimento na obra Fenomenologia do espírito, tendo em vista que, nessa

obra, o autor segue uma via dialética para explicar a relação entre dominante e

dominado. Outra motivação que nos levou a retomar o tema do

reconhecimento em Hegel é que o reconhecimento, para esse filósofo, se dá

entre consciências e Schopenhauer vai além, pois, para ele, não só os homens

são dignos de reconhecimento, mas também os animais que, apesar de não

terem consciência, são também dignos de compaixão e reconhecimento.

Percebemos que o reconhecimento em Hegel é somente entre consciências e

não se dá em relação aos animais por ser Hegel um filósofo que vê na

racionalidade toda a veracidade do real, ou seja, do mundo.

Tomamos como ponto de apoio a metáfora do senhor e do escravo, na

qual percebemos que não há nem sofrimento, nem ajuda ativa, nem

compaixão. Hegel, ao tratar sobre o tema do reconhecimento, não aborda a

114

ajuda ativa do senhor em relação ao escravo, ou seja, nessa metáfora, o

senhor não reconhece nenhum tipo de sofrimento no escravo, que é visto como

uma coisidade e não como outro indivíduo que sofre. Noutras palavras, o

escravo está preso ao senhor, é dominado pelo mesmo e não existe nenhuma

possibilidade do senhor sentir compaixão pelo escravo. O tipo de

reconhecimento que existe na filosofia hegeliana segue um percurso diferente

do qual nos propomos analisar. Nesse sentido, nosso percurso foi seguido,

levando em consideração o sofrimento, para se chegar a uma ética do

reconhecimento via sofrimento tendo como suporte a compaixão.

Por fim, procuramos verificar a possibilidade de se pensar uma ética do

reconhecimento aos moldes schopenhauerianos e tentamos descrever alguns

casos que Schopenhauer expôs ao longo de suas obras O mundo como

vontade e como representação e Sobre o fundamento da moral, em especial, o

caso dos jovens Caio e Tito, bem como o caso do caçador Harris. Se tomarmos

esses casos como exemplo, então podemos aferir que, por meio do sofrimento,

a compaixão pode ser vislumbrada como uma ética do reconhecimento em

Schopenhauer.

115

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