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a sexta-feira Santa não se come carne vermelha. Em casa de judeu o porco não faz parte do cardápio. Já na dieta Hare Krishna, somente o leite e o vegetal têm espaço. Em período de Ebó, limpeza espiritual, o que é para o santo não se come. Quando se trata de fé, a comida deixa de ser apenas um alimento para o corpo e assume um papel espiritual. Dogmas nas diversas religiões trazem proibições, per- missões e atribuem funções que vão além do caráter nutricional e prazeroso da refeição. Segundo a Bíblia, Jesus Cristo, na véspera do dia de sua morte, reuniu os seus apóstolos numa refeição festiva, a ceia pascal, e nela fundamentou o simbolismo do pão e do vinho. Seu corpo, preso na cruz, é representado pelo pão, e o sangue que ele der- ramou, o vinho consagrado em cada missa. A partir daí, o próprio acontecimento daquela sexta-feira de Páscoa é o que leva os católicos a abdicarem da carne vermelha. Já no Judaísmo, as restrições alimentares buscam relacionar o bem estar físico e espiritual. A carne de boi só é consumida quando se tem certeza de que o animal não sofreu durante o processo de abate. Dessa forma, rabinos acompanham a exe- cução do animal, quando não são eles mesmos que realizam todo esse procedimento. Todo esse método é realizado de forma que o animal não sofra, evitando CHRISTIANE ALVES, GABRIELA OLIVEIRA, LEANDRO CURY E MARIANA MENDES A comida e o sagrado Quer um pedacinho? 5 O alimento que satisfaz o corpo e o espírito Não-ruminantes, como o porco, são considerados animais impróprios para o consumo

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a sexta-feira Santanão se come carn ev e rmelha. Em casade judeu o porco não

faz parte do cardápio. Já na dietaHare Krishna, somente o leite e ovegetal têm espaço. Em períodode Ebó, limpeza espiritual, o queé para o santo não se come.Quando se trata de fé, a comidadeixa de ser apenas um alimentopara o corpo e assume um papelespiritual. Dogmas nas diversasreligiões trazem proibições, per-missões e atribuem funções quevão além do caráter nutricional eprazeroso da refeição.

Segundo a Bíblia, Jesus Cristo,na véspera do dia de sua morte,reuniu os seus apóstolos numarefeição festiva, a ceia pascal, enela fundamentou o simbolismodo pão e do vinho. Seu corpo,p reso na cruz, é re p re s e n t a d opelo pão, e o sangue que ele der-ramou, o vinho consagrado emcada missa. A partir daí, o

próprio acontecimento daquelasexta-feira de Páscoa é o que levaos católicos a abdicarem dacarne vermelha.

Já no Judaísmo, as restriçõesalimentares buscam relacionar obem estar físico e espiritual. Ac a rne de boi só é consumidaquando se tem certeza de que oanimal não sofreu durante oprocesso de abate. Dessa forma,rabinos acompanham a exe-cução do animal, quando nãosão eles mesmos que realizamtodo esse procedimento. To d oesse método é realizado de formaque o animal não sofra, evitando

CHRISTIANE ALVES, GABRIELA OLIVEIRA, LEANDRO CURY E MARIANA MENDES

A comida e o sagrado

Quer um pedacinho?5

O alimento que satisfaz o corpo e o espírito

Não-ruminantes, como o porco,

são considerados animais impróprios

para o consumo

uma descarga de adrenalina quefuturamente viria a ser consumi-da pelo ser humano. Para osjudeus, esse hormônio gera naspessoas reações agressivas quecolaboram com o mal estar dasociedade. Por isso, pretende-sematar o boi de forma instan-tânea (normalmente com umafacada letal) evitando assim, aprodução da adrenalina.

Além disso, outros animais nãofazem parte da dieta judaica.Não-ruminantes, como o porco,são considerados animais im-próprios para o consumo, porquealém de se alimentarem sem sele-cionar a comida, eles não dige-rem o alimento como os rumi-nantes, que repetem o processode digestão mais de uma vez.Doris Acher, gerente de uma lojade artigos judaicos no Leblon,explica que alguns animais mar-inhos também não são consumi-dos pelos judeus, como o siri, ocaranguejo e o camarão, “porque

eles comem qualquer coisa”.Para fazer parte da refeição, opeixe deve ter barbatanas e esca-mas, já que estes são considera-dos os mais limpos.

Já no Hare Krishna, além dospeixes, qualquer outro tipo dec a rne animal é excluída doc a rdápio. Para os praticantesdessa religião, o ser humano é,na sua essência, vegetariano. Porisso, alimentar-se de qualquertipo de animal gera o desequi-líbrio do corpo, além de conta-miná-lo com hormônios prejudi-ciais liberados no abate. Sendoassim, nenhum desses alimentospode ser ofertado para o deusKrishna. Todo animal é conside-rado sagrado, no entanto a vaca

assume uma posição especial porser tida como uma segunda mãedo ser humano. Ela assume essafunção por alimentar-nos comseu leite durante toda a vidahumana.

Segundo Paravyoma Dasa, mem-b ro do Hare Krishna, todo ali-mento pertence ao Deus, e porisso é sempre oferecido a Ele:

– Como o ser humano é vege-tariano por natureza, automati-camente Krishna não aceita ofer-ta de carne nem de ovos. Lo-gicamente, Deus não precisa decomida, ele não precisa se ali-mentar, mas ele quer a nossadevoção. Ele se alimenta da nos-sa devoção porque Deus temtudo, só não tem uma coisa: onosso amor.

Ao contrário do Hare Krishna,nas religiões afro-brasileiras, osorixás precisam ser alimentados.Segundo a psicóloga MoniqueAugras, essas religiões se ba-seiam em um sistema de trocas ecirculação de energia. Por isso, osalimentos são oferecidos paraque os orixás re c u p e rem suasenergias depois de, por exemplo,dançar dentro do terreiro. Toda aenergia dos orixás utilizada pelosfiéis, deve ser reposta atravésdessas oferendas de comida.

A galinha d´angola é conside-rada o animal mais sagrado e,por isso, é oferecida em rituaisespeciais. Em quase todas as ce-rimônias, deve-se oferecer a co-mida determinada àquela enti-dade, e o “filho” que a oferecenão deve ingerir os mesmos ali-mentos durante todo o período depreparo (pois são as “comidas dosanto”). É comum nesses casos ojejum parcial e temporário por

Janeiro/Junho 20066

No Hare Krishna todo alimento é oferecido ao Deus

A vaca assume uma posição especial

por ser tida comouma segunda mãe

do ser humano

carnes, grãos e bebidas alcoólicasde acordo com cada uma dasentidades. De acordo com o can-domblecista Gilberto Corrêa, 41anos, é fundamental manter-seem abstinência durante os ritu-ais: “No período de Ebó, você nãopode comer qualquer alimentoofertado, pois aquela comida é,por um tempo, exclusiva do seuorixá. Vale o sacrifício”.

Sacrifício também acontece comanimais. Mortos para trabalhos eo f e rendas, galinhas e pombosbrancos, cabras e coelhos sãovendidos regularmente em casasespecializadas. De acordo comAntônio de Souza, 47 anos, donode uma loja de animais noMercadão de Madureira, no Riode Janeiro, a grande maioria deseus clientes compram os bichospara rituais: “tem cliente aquique gasta dois mil reais com-prando frango branco, galinhad´angola e outros tipos de ani-mais”. A loja oferece inclusiveserviço de entrega domiciliar.

Mas, como nas outras religiões,existem suas proibições (quizilas)e permissões (recomendações) nodia-a-dia. No caso do candomblée de umbanda, os orixás estãodiretamente ligados a um deter-minado elemento da nature z a(ar, terra, fogo e água), e por issoseus ‘filhos’ não devem ingeriralimentos do grupo estipulado.Por exemplo: quem tem um orixá

de fogo, não deve comer pimen-ta; quem é filho de Obaluaê,orixá da terra, não poderá comercaranguejo.

A comida satisfaz o corpo e oespírito. A fé sempre norteou desdesimples hábitos alimentares do dia-a-dia até rituais sagrados. O prazer,muitas vezes, é deixado de ladopara a obtenção de uma graça ouem sinal de respeito à cre n ç a .

Quer um pedacinho?7

Misturando catolicismo popular e religiões afro-brasileiras,esse ritual desperta curiosidade e é repleto de simbolismo. Nosterreiros, durante aproximadamente três dias, ao som de tam-bores, o banquete acontece provocando uma grande inversãosimbólica. Os cães são servidos por fiéis, como se fossem sereshumanos.

O processo consiste em servir os pratos no chão sobre umatoalha bordada, como uma mesa, e na cabeceira é colocadauma imagem do santo homenageado. Serve-se norm a l m e n t ea rroz, carne, macarrão, galinha e salada, entre outras. Essa mesma comida é servida às pessoas que par-ticipam do ritual, e estas se alimentam somente depois dos cães, servindo-se do mesmo tipo de alimento.Alguns pro m e s s e i ros chegam a comer na posição de cachorro, sem talheres e com a boca no prato. Há casosaté em que o cão e o fiel comem no mesmo prato.

A origem do ritual não é conhecida, mas ele é organizado por devotos de São Lázaro e São Roque (ambosos santos são associados aos animais, principalmente aos cães) e pro m e s s e i ros que queiram reconhecer umagraça alcançada. Realizado em sítios, casa ou terre i ros de culto afro, esse ritual consiste em agradar umacriatura que teve uma importância na vida desses homens. Agradando-se aos cães, agrada-se ao santo.

Banquete dos cachorros

A cabra é um dos animais sacrificados em trabalhos e oferendas.

Affonso