a câmara nupcial como chave hermenêutica do evangelho de tomé

184
1 UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE LETRAS A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé Ricardo Gomes Tese orientada pelo Prof. Doutor José Augusto Ramos, especialmente elaborada para a obtenção do grau de Mestre em História e Cultura das Religiões. 2019

Upload: others

Post on 26-Jun-2022

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé

1

UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS

A cacircmara nupcial como chave hermenecircutica

do

Evangelho de Tomeacute

Ricardo Gomes

Tese orientada pelo Prof Doutor Joseacute Augusto Ramos

especialmente elaborada para a obtenccedilatildeo do grau de Mestre em

Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

2019

2

3

4

5

6

7

8

9

Resumo

O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido

literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao

seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e

significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias

e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao

desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental

nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees

qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos

sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo

as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de

Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica

do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de

Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir

da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura

de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo

antigo

Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico

figura de Jesus cristianismo primitivo

10

Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have

been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its

reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings

to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a

research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of

the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development

of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to

answer the following questions what was the historical context of this gospel its social

space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message

and what are the specific characteristics of language and experience in the early

Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the

historical understanding of the development of the Christian mental space in the first

century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a

new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian

movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social

contexts and geographical spaces of the ancient world

Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of

Jesus primitive Christianity

11

Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como

misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute

Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A

sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu

intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu

sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave

minha tatildeo doce Virgem Maria

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades

maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza

ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus

e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado

com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele

o guarde eternamente

Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a

iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e

imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o

uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os

exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo

racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela

vontade do Pairdquo

Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2

12

Iacutendice

Introduccedilatildeo 14

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20

Literatura Profeacutetica 21

Literatura Sapiencial Judaica 21

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24

Uniatildeo Nupcial no Templo 24

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36

Os Manuscritos 37

A Liacutengua Original de Tomeacute 37

A Data de Tomeacute 38

A Origem do Evangelho de Tomeacute 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65

A Gloacuteria do Trono 69

O Templo 70

A Merkavaacute 72

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92

6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo

simboacutelico 95

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97

Eacuteden 100

13

O Grande Mar 102

A Fonte da Vida 106

Os Rios do Paraiacuteso 108

O Veacuteu 110

Por Detraacutes do Veacuteu 114

A Grande Luz 118

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122

A Imagem e a Luz 125

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138

7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143

As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150

8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154

9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166

Bibliografia 175

14

Introduccedilatildeo

ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10

O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar

a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona

os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside

nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos

alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico

para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute

Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos

por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses

evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado

Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o

simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave

hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia

cristologia e protologia apresentada por Tomeacute

Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente

interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees

simboacutelicas do texto

Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o

panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem

valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual

Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma

linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial

no Evangelho de Tomeacute

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese

apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico

No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a

metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da

cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo

pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas

do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute

15

Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para

contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve

discussatildeo dos conceitos religiosos do documento

No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na

histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no

espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que

influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma

importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais

judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento

No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a

compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da

linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do

proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio

Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo

fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um

mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos

dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas

satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais

da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1

Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal

a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia

humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se

manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por

este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do

evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso

de presenccedila interior

Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as

temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia

religiosa do evangelho de Tomeacute

1 Lohuizen Wali Van (2011) 3

16

No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico

que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria

forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as

realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos

cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos

siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o

processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho

eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser

humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas

afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma

produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave

sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo

O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo

no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute

a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas

atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um

gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere

facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica

Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de

Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta

exegese

Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios

mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto

de Tomeacute

Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma

realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta

conclusatildeo

Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomeacute

O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no

pensamento do judaiacutesmo de II Templo

Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao

ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a

17

compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento

judaico e no Evangelho de Tomeacute

Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e

aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do

seu contexto

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco

O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva

dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem

teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos

enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomeacute

Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda

na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo

cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro

O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da

doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta

opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios

reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador

Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de

Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de

Ahiqar e textos sapienciais de Qumran

Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo

substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino

da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio

posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a

caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento

filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute

18

Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no

periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de

interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de

Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a

versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute

recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As

obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo

completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc

As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana

assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e

devidamente identificadas nas passagens traduzidas

19

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia

As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa

seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos

influenciaram a textualidade de Tomeacute

Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute

Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo

Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos

de Joatildeo e Filipe

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando

historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes

tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute

A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia

Hebraica e na Literatura Sapiencial

Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns

dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos

posteriores

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como

Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos

pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos

Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos

textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais

no Evangelho de Tomeacute

20

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre

Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que

envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano

As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar

num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico

Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como

marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma

realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o

retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do

matrimoacutenimo com o divino

Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O

que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa

leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de

Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo

da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino

Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a

imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano

uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se

com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4

Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo

recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de

Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos

inserem-se neste mesmo padratildeo

Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria

Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado

ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que

se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano

2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem

21

Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num

evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido

no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor

nas vidas das geraccedilotildees subsequentes

A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-

humano no final da histoacuteria

Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios

da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai

o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos

Literatura Profeacutetica

Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns

profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute

direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo

intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino

do Norte6

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma

uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica

da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos

preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel

para com o proacuteximo

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da

Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus

identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora

Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas

vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e

6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26

22

amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma

sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante

A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial

apresentada pela literatura sapiencial

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do

casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido

Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora

Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos

Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da

crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de

cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela

A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela

Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo

antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos

Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo

com o homem

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave

cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas

dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre

Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a

uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial

Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no

tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura

Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento

no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e

pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico

dos Cacircnticos

Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara

Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe

9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29

23

Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo

ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel

fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente

transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo

para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11

Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de

simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado

com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal

redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia

sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da

eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente

associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais

frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da

criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por

Cristo o novo Adatildeo

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o

Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os

temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro

casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13

Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os

nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com

que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao

estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes

no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de

Tomeacute

11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem

24

Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o

significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia

destas tradiccedilotildees

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai

Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por

um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo

do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel

No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio

pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo

Uniatildeo Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo

nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai

eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de

Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se

relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos

do batismo e da eucaristia

Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo

lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto

nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo

O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado

Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo

Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo

Testamento

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no

templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do

Sinai

25

miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos

do batismo e da eucaristia15

Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara

Nupcial

Os templos de vaacuterios povos antigos

consideravam o Templo especialmente o

Santo dos Santos como o lugar

simboacutelico que representava a Cacircmara

Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como uma

atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai

O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para

perpetuar a teofania do Monte Sinai entre

o povo de Israel

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo

de simbolismo coacutesmico sendo

considerado um microcosmos que

representava o universo inteiro Tambeacutem

eacute relevante a ideia antiga do homem

como microcosmo e templo uma ideia

encontrada no Novo Testamento onde o

fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o

ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece

entre o humano e o divino

O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a

fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar

onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do

divino na terra

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo

Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a

traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem

Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos

necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial

As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma

ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento

A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o

capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em

todas as ressonacircncias

15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56

26

O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura

personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se

a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte

feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina

Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica

O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo

da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos

tempos

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria

encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)

ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo

Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca

ela se exalta diante do seu Poder

lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens

Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste

eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira

reinei sobre todos os povos e naccedilotildees

Junto de todos estes procurei onde pousar

e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo

Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico

da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma

ψυχὴν αὐτῆς)17

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo

de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na

tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios

No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem

em Deus e a sua universalidade

Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo

Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a

palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde

17 Cf Villeneuve A (2016) 57

27

como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria

ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando

ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn

12)

O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica

que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19

Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central

do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e

terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma

reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu

O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna

que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo

e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22

A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave

coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23

Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as

mentes que estudam a virtuderdquo24

Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a

nuvem como uma ponte entre as duas esferas

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua

identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a

paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de

sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas

caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25

Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens

primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo

A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo

18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na

referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl

987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19

28

O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o

termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a

escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo

(Gn 12)26

Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando

presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27

O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o

universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os

dois elementos do mar e da terra

Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar

especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo

Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo

dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos

de nota28

A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o

universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela

deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos

limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte

Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora

Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel

A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)

ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem

aquele que me criou armou a minha tenda e disse

lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo

Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio

e para sempre natildeo deixarei de existir

Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei

deste modo estabeleci-me em Siatildeo

e na cidade amada encontrei repouso

26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59

29

meu poder estaacute em Jerusaleacutem

Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria

no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo

Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o

ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens

Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da

sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de

Israel

No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que

habitasse em Israel

O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-

se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao

fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu

reino sobre a esfera espacial

ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo

(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu

processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo

Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)

ldquoCresci como o cedro do Liacutebano

Como o cipreste no monte Hermon

Cresci como a palmeira em Engadi

Como roseira em Jericoacute

Como formosa oliveira na planiacutecie

Cresci como plaacutetano

Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume

Como a mirra escolhida exalei bom odor

Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque

Como o vapor do incenso na Tenda

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da

criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a

um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas

por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21

30

Estendi os meus ramos como o terebinto

Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila

Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos

E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado

A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra

de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos

Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva

localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos

Cacircnticos

No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o

palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)

associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413

A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do

rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)

Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se

trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute

associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30

A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)

tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a

noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)

Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no

Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica

O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)

Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)

As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios

satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)

A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora

Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden

30Cf Villeneuve A (2016) 63

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)

ldquoVinde a mim todos os que me desejais

Fartai-vos de meus frutos

Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel

Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel

Os que me comem teratildeo ainda fome

Os que me bebem teratildeo ainda sede

Quem me obedece natildeo se envergonharaacute

Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo

Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete

sumptuoso para comerem os frutos que ela produz

Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o

vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu

vinho31

O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo

universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden

Monte Sinai e no Templo32

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos

Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros

pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no

primeiro seacuteculo da era comum

As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que

datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do

fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu

amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de

Deus participante na sua imortalidade

31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73

32

ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)

Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o

Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal

verdadeiramente seraacute imortalrdquo

Ode de Salomatildeo 35-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser

humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana

para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi

considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)

Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou

beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do

Espiacuterito Santo33

ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro

de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)

Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o

jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre

aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa

nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-

9)

Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como

sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos

escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de

aacuteguas vivas

As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura

mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste

contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo

Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel

procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo

Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34

33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279

33

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute

Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder

a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute

Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados

e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns

elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e

posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver

O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho

de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo

textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico

reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute

Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio

unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de

um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si

Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira

encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados

(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem

hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que

eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que

se orerdquo

A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e

antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua

mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela

perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o

mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na

cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida

Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da

existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees

Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute

ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema

existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o

Reino dos Ceacuteus

34

Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma

identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser

fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho

o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e

responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo

natural do divino na consciecircncia)

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em

termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz

A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das

palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte

Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano

espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua

boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos

melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos

revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando

colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto

Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e

o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canoacutenicos

Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos

canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o

retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar

em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada

E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso

O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus

Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos

do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo

entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz

e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios

Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque

para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo

interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por

este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial

35

No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada

um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico

Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na

eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo

duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de

comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o

disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica

eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus

Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do

misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo

menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval

A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou

divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre

dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de

duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos

sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais

simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo

A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso

trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na

experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves

manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de

misticismo mais tardias como a unio mystica

O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado

para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um

processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se

entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro

conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura

inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e

o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino

e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

36

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo35

A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a

explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica

no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo

completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo

de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra

nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem

Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com

profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que

acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute

O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo

Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra

O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua

reflexatildeo na audiecircncia que os escutava

A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa

investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode

ser interpretado legitimamente como tal36

A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos

gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel

defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute

Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe

Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito

No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de

Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -

ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo

Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto

35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43

37

O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do

cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de

Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente

heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem

num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta

termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados

gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic

publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os

Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma

coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido

por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe

O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do

seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um

evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente

proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38

Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto

de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um

tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39

A Liacutengua Original de Tomeacute

A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta

onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo

do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria

dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41

38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by

Stevan

Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91

38

Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos

textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes

num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a

frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que

reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil

uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42

O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo

alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo

Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta

encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o

texto

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos

manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a

liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em

manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de

Tomeacute

A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os

evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo

relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute

O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os

documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o

Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de

Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas

siriacuteacos43

Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de

manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem

originais siriacuteacos ou aramaicos

A Data de Tomeacute

41Cf Idem 91

42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97

39

Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa

complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser

datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito

onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo

em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta

e cinco dC

Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de

acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de

Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos

dC

Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave

confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71

O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos

de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila

para atestarmos esta dataccedilatildeo

A Origem do Evangelho de Tomeacute

Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute

A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito

Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em

Edessa

Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a

origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades

de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura

siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute

O nome Judas Tomeacute

44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria

40

Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo

aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute

Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma

particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo

eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo

geacutemeo de Jesus48

Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco

Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo

em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram

o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113

com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde

ocidental

O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria

da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5

Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em

siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49

O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo

encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego

aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um

apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50

Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido

provavelmente na Siacuteria

A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo

e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel

nalguma literatura maniqueiacutesta

Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos

As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca

48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10

41

ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os

vossos vestidos e os colocardes sob

os vossos peacuteshelliprdquo

Evangelho de Tomeacute 37b

As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes

nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as

Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma

literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande

Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se

na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de

ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)

O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que

Jesus disse a Judas Tomeacute

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma

problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o

seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo

do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de

radicalismo social51

Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um

misticismo unitivo ou um produto valentiano

No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada

escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das

lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios

termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees

O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a

sua teologia central

51Cf Gathercole Simon (2014) 144

ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto

que o manto da vergonha me foi

tiradordquo

Atos de Tomeacute 14

42

Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent

Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo

significativo agrave leitura de Tomeacute

A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da

linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior

ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53

Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto

pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a

ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente

seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1

Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do

judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade

tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras

continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em

Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia

Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes

divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas

da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem

No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros

disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para

lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo

A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte

onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel

desvelar novas realidades

Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente

na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos

tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as

instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai

A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21

vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o

como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)

52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145

43

O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg

57 76 96-99 133)

Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534

Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente

de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)

estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)

Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39

6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)

Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o

reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)

Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence

aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas

(lg 22 46)55

Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se

encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)

A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56

Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos

no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn

1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por

um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58

Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa

matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo

O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda

desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que

eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um

divisor (lg 72)

55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11

44

A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo

valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis

Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do

eleito

Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao

corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62

Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)

Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o

ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao

conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um

misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo

No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e

vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos

corpos

Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro

motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos

deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade

entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De

Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer

apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de

Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio

(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)

Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute

necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica

que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da

criaccedilatildeo65

O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada

acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute

repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute

62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148

45

O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que

proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para

cimardquo)

O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma

ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no

mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia

acrescentando ldquoespada e guerrardquo

Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual

os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg

110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo

O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o

reino se expande (lg 113)

O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo

contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro

Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu

maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma

posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)

Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla

dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem

fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)

Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma

oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute

A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute

encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como

ldquocarnerdquo (lg 28)

Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo

nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia

Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg

55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito

(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)

Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser

espiritual feminino (lg 105)

66Cf Idem 151

46

Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica

fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)

O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo

para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta

revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio

para escapar da morte

O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias

variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias

20 possuem um significado teoloacutegico68

Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As

referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado

defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees

psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo

do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70

A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no

Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais

como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de

ldquorepousordquo

Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg

59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)

A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica

assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute

O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das

tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado

Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento

religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia

de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos

comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este

evangelho

Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por

estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo

67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152

47

oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo

a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou

juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original

que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre

deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes

encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino

Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para

Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens

materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72

Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou

forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua

linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas

com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde

Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de

ensinamento religioso fornecido por Tomeacute

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo

O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua

composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o

misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar

quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal

heleniacutestico

A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar

iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso

Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do

sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno

do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito

assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo

O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas

mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo

71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)

48

Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os

Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o

Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as

elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da

Greacutecia claacutessica

Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os

nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas

cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma

profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com

a conquista islacircmica75

A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no

comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade

As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees

extensas incluindo franjas do deserto76

Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da

Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus

que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este

periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia

cultural persiste ateacute hoje

O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a

nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova

dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico

surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77

Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute

oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo

helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo

A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos

sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o

estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79

75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem

49

Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar

e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que

posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas

vezes esoteacutericas e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que

viaja com o viajante

De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste

meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma

revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual

Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e

traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do

Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como

eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas

religiosos deste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do

Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos

velhas crenccedilas e suposiccedilotildees

O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os

primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na

histoacuteria do livro ateacute Gutenberg

Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex

foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma

nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade

reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de

Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o

texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81

Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas

Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste

periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como

divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas

nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo

80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30

50

O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a

destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC

A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos

dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico

Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo

sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo

foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas

O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado

por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era

chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus

Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio

de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido

pela igreja dos primeiros seacuteculos

Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram

substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta

dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma

atitude miacutestica e interior da busca do divino

Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e

presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos

rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes

O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da

individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa

exegese interior

A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser

intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de

ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas

oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal

Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia

do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo

e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada

82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39

51

Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas

significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo

encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica

Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos

estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos

Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas

evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova

perspetiva sobre as tradiccedilotildees

A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original

natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria

original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado

ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a

narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo

O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da

histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os

evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute

O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes

documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as

comunidades tinham da figura de Jesus

Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando

recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu

kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria

Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus

num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de

ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do

impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam

relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e

ressurreiccedilatildeo

Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado

Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao

Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio

Eufrates

83Cf Patterson J S (2013) 10

52

A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos

que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser

completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84

Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo

comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se

encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute

parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na

grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a

norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura

literaacuteria antes do advento do cristianismo85

Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas

poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da

Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a

subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua

submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio

Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86

A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser

pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado

durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que

Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua

semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87

A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades

siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de

Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos

fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a

organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da

sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma

84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem

53

evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos

Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve

raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do

cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades

semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel

estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos

importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa

tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram

recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de

Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial

das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do

primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e

se misturaram90

Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria

ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos

primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura

intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo

de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto

oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas

feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial

do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros

ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de

quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os

pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo

Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um

entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da

tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida

88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42

54

como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu

manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da

sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos

poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta

experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram

no ocidente no outro lado do Eufrates

Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de

convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores

Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a

ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e

as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo

presentes em Tomeacute

Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes

para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a

leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso

natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica

entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de

violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus

se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente

harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos

O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de

cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que

desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da

vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e

valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo

O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de

interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel

da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o

futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da

identidade cristatilde

A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se

claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um

95 Cf Patterson J S (2013) 25

55

martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no

qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus

Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado

dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como

dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa

para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma

experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar

verdadeiramente a vida de Jesus97

No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo

um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos

pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes

eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o

Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este

Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o

ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se

encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado

A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-

se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia

de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar

da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si

proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante

diferente

O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do

segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu

pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e

cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da

criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da

crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de

pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do

periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os

quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil

96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30

56

O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que

esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais

unificadores99

O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo

A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e

o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos

cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma

platoacutenica100

Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute

notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia

centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo

geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as

vivecircncias em ambos os contextos

Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo

assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo

sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102

A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas

de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo

Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta

apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de

sabedoria

A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em

concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento

platoacutenico103

98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15

57

A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de

voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha

corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute

O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades

de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica

Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a

Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto

interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da

Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105

Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se

estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas

judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros

dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que

prosperava nestas cidades107

Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse

filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia

entre Platatildeo e Geacutenesis

Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1

na textualidade de Tomeacute

Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas

helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era

masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado

unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres

voltariam (lg 22)109

Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia

platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa

mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma

104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278

58

centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano

mortal (lg 29)110

Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido

dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e

para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111

O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao

reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo

originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)

ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg

50)112

O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no

ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma

perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e

perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres

passageiros113

O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de

vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria

contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo

Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e

os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de

Jesus em Edessa114

A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por

vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o

autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a

identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz

divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida

freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115

ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo

110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37

59

ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na

filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas

correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti

proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima

agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta

interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma

no iacutentimo do ser humano

Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de

Deus

Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois

seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e

Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o

iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte

divina ele conhecia o divino116

Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo

ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino

dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem

consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo

grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender

como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele

possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117

Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este

entendimento acerca da mesma maacutexima

ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi

feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os

fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do

universordquo118

116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)

60

Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos

platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os

aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada

Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-

se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as

perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-

se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus

suacutebditos

ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez

mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute

ouvidos a ti mesmorsquordquo 119

Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a

manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico

mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos

noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se

retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o

mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute

contemplaccedilatildeo daquele que eacute

Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este

ldquocasco de courordquo122

Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro

eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do

corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para

superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos

dois primeiros seacuteculos

Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o

risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute

Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem

O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo

empregando os termos teacutecnicos do platonismo123

119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477

61

Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de

descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam

tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente

O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute

Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza

humana e o seu destino

O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do

pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute

ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o

corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124

Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os

estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia

aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo

era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os

nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo

tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de

ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no

platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma

A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor

antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por

que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era

miseraacutevel

O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo

morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um

corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo

Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E

esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute

123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus

ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the

universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation

to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies

(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material

bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)

62

Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do

mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo

A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o

disciacutepulo mais digno do que o mundo

A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no

pensamento platoacutenico126

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo

A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese

apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a

investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um

montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho

judaico-cristatildeo127

Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo

apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de

Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde

(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos

judaico-cristatildeos

(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos

incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas

(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere

uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo

(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e

no cristianismo judaico

(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios

Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre

o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo

126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes

(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have

already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are

corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the

borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be

Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp

DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200

63

As seguintes passagens

(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV

963

(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145

(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad

Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3

(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514

Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da

Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute

a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada

Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de

Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute

Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos

estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute

O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do

nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras

de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado

como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128

Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto

porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9

(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo

ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)

Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c

7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio

Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo

Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho

Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o

judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos

128Cf Luomanen Petri (2012) 202

64

Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no

proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo

seacuteculo

A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e

duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e

quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo

Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma

cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos

Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma

exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso

A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra

aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o

repouso em Jesus

ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos

lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo

quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele

e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria

descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na

eternidaderdquo129

A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo

Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo

aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos

Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde

Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus

seguidores

Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma

voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter

dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho

dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus

129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322

65

ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-

me para a grande colina o Taborrdquo131

O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)

geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de

Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao

Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de

Jesus e a sua matildee verdadeira

ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132

Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente

nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma

teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute

- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e

ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas

Lg 24b

O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias

associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e

culturas

Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram

utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo

lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para

descreverem as suas experiecircncias133

Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas

experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou

lsquorevelaccedilatildeorsquo

A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como

visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma

131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2

66

viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas

preparaccedilotildees e rituais serem realizados

O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e

cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros

angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134

Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do

nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades

antigas para investigarmos a sua religiosidade

O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos

para denotar o fenoacutemeno cristatildeo

Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de

misticismo135

O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao

judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar

antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia

extaacutetica ou como praacutetica provocada

No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas

expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo

Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por

eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo

de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo

O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo

interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus

Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de

Tomeacute

Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque

pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um

texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute

presente no Judaiacutesmo do II Templo

A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria

do texto do Evangelho de Tomeacute136

134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7

67

O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios

ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica

Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros

trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica

Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos

formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do

templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a

realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees

As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na

literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria

na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da

Palestina de Yohanan ben Zakkai137

Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e

da especulaccedilatildeo hekhalot138

Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas

de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios

Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da

literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo

hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes

representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades

muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do

II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo

A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos

fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que

levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que

iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial

os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu

numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que

vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos

esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da

Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos

palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica

e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2

68

cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas

biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma

autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos

tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma

audiecircncia contemporacircnea

Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas

ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo

a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras

A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que

podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute

Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus

conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo

situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos

Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e

revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias

encobertas no interior das suas escrituras sagradas

Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia

Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica

A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta

tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10

40-48 Dn 7 e Is 6

Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura

produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos

A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e

na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos

Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de

temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da

evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em

textos de eacutepocas diferentes

139Cf De Conick A (2006) 7

69

Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta

as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute

associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140

A Gloacuteria do Trono

A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central

desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo

Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente

secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada

ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo

com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)

de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas

escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142

Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial

feito por dois querubins

No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute

apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos

Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias

histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute

sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos

O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite

brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo

assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta

veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado

Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras

cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co

44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus

que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-

140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8

70

23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do

templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144

O Templo

A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de

Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os

Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do

que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia

Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete

parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais

sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145

E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das

mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do

templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146

A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis

desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas

natildeo realizadas

As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da

criaccedilatildeo da humanidade

Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e

ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de

luz147

Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo

percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no

Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As

tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser

Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148

144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem

71

Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o

primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter

sido um reflexo da Kavod

Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico

Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do

que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de

encher todo o universo de um extremo ao outro150

ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]

pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel

b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o

despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro

lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse

Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a

oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do

pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos

cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave

transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos

conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da

ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e

tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de

forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152

Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da

morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente

Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os

Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as

epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades

envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no

momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na

149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21

72

liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias

ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153

Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais

antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute

15 19 37 50 59 83 84 108)

As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da

esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma

experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de

transfiguraccedilatildeo

Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os

ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees

de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de

uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no

trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154

A Merkavaacute

O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo

que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo

miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos

Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim

de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca

O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como

as fontes esoteacutericas mais tardias referem155

Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de

Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico

de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se

movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel

1014-15 com o querubim do Templo

153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30

73

Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave

presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-

se ao templo por outros meios156

A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel

encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe

mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma

ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25

Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em

duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio

de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos

Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus

identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser

vivente do profeta Ezequiel

A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus

o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o

universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-

se presente nesta literatura157

Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o

mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte

mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas

como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158

Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e

a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e

descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo

concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute

156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo

tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)

com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos

trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o

cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea

dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos

sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos

Santos

74

O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da

arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem

alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em

Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que

em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la

caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo

Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que

rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160

Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de

Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas

maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos

que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161

Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas

natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de

cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162

Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de

hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos

Cacircnticos do Sabbat163

Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e

recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era

necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos

que eram inscritos com os nomes secretos de Deus

As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o

templo e o cosmos eram estruturas opostas

As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo

a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para

o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande

santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas

planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e

da Sumeacuteria

160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170

163Cf Idem

75

Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo

era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem

quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F

Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com

a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos

praticantes de hekhalot

ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de

certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos

anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo

nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e

canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras

interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse

viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166

Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no

Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I

seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um

rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167

A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se

bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168

A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O

Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo

assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas

do caos no terceiro dia169

Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi

criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo

164Cf Idem 171

165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and

Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21

76

ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)

Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo

O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo

assim tu faraacutes o tabernaacuteculo

De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas

bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo

fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo

as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de

terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do

corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas

na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo

uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo

os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio

do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o

firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as

aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170

Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem

documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o

pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute

O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do

homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos

vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos

poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios

corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu

proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava

Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute

estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram

compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano

O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do

corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos

escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas

estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e

angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute

170Cf Midrash bereshit rabbati

77

frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome

divino171

Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o

miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na

presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se

entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem

Divina da Gloacuteria

O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o

autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo

este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica

No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com

este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na

atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o

puacuteblico a que se destinava

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute

O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e

interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite

definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica

Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por

si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda

Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo

primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no

final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis

descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim

Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

(Lg18)

A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo

que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial

que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas

dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que

171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175

78

representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias

a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos

primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)

Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses

por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia

de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que

estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para

ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se

ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)

Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais

respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se

vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu

de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem

sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem

qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)

Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia

visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus

disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco

aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas

caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)

Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos

miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa

esta realidade no jardim do Eacuteden

Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma

crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas

crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino

Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o

exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e

o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo (Lg 22)

79

Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as

vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um

tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco

No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os

disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te

revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como

as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo

temereisrdquo (Lg 37)

O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do

corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos

natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu

ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)

A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que

a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes

no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas

quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)

Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia

platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas

simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem

Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial

do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo

Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus

O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara

Nupcial

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37

ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos

Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos

vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os

espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo

80

Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que

apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais

1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver

o Filho de Deus sem ter medo

Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao

ceacuteu numa linguagem encratita172

Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora

comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo

baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321

Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de

peles e eles vestiram-nasrdquo

Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173

Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou

ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o

sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco

Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute

difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo

Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de

pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo

Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos

neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da

carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo

O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute

um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175

Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se

revestir destardquo176

Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9

que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas

E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra

172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem

81

E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim

E o Senhor renovou-me com a sua roupa

E me possuiu com a sua luz

E do alto me deu descanso imortal

E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos

E eu despi-me da escuridatildeo

E vesti a luz

E ateacute eu mesmo adquiri membros

Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento

E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito

E eu removi de mim as minhas vestes de pele

Porque a tua matildeo direita me ressuscitou

E fez com que a doenccedila passasse de mim177

Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um

ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de

libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus

Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica

Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de

pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo

A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus

anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou

selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando

vestida torna aceitaacutevel diante de Deus

Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo

com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal

No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de

Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o

ldquoselordquo no Nome178

Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-

se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo

ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E

eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo

177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126

82

Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e

transformado num anjo da face

ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele

[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para

ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181

Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram

uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA

nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do

corpordquo183

O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm

que ser despidas sem vergonha

O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis

Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e

Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os

olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha

Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que

ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se

sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos

O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito

especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que

o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu

ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma

criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era

controlado pelos impulsos sexuais184

A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual

deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-

caiacutedo ausente de vergonha

179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134

83

Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as

vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma

pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda

daacute outro elemento sobre o ser assexuado

ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o

interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num

soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando

fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de

um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como

sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo

Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que

era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a

idade adulta em primeiro lugar186

Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento

ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187

De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo

periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188

Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era

uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo

foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189

Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que

renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico

preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190

Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada

pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam

185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes

a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do

campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e

devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos

Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135

84

As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a

experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o

objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus

Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de

Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191

Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De

mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a

existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte

e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio

Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto

retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a

essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo

Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o

homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave

esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo

material

Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde

Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque

despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo

Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias

estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193

O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos

gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do

rosto de meu Deus para sempre194

Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas

ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar

o seu corpo

191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por

Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a

Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as

conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas

materiaisrdquo

192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10

85

O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu

nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia

visionaacuteria

No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque

que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes

celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico

Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-

escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra

sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho

de Filipe 1 34-35

ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo

Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo

total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta

forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho

transformando a sua alma

ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo

sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo

No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o

mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada

encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa

experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave

entidade divina que tinha visto

O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma

crenccedila antiga presente no mundo antigo196

195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42

86

Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua

experiecircncia religiosa

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50

ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz

procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens

Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se

vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um

repousordquo

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um

fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na

interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis

perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria

Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se

manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era

segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz

A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada

primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo

Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn

13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus

tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja

luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus

sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes

da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham

o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a

sua proacutepria luz198

Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes

da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da

imagem do Logos

197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66

87

A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus

explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse

sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo

De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz

primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis

O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se

aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos

seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos

Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos

anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como

os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl

82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um

de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn

127)rdquo

O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o

homem agrave imagem dos anjosrdquo

Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126

que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva

Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante

tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de

ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo

A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma

forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no

nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200

Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse

ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma

substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e

tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se

assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto

como a forma do invisiacutevelrdquo201

199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443

88

O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas

letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado

de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas

eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer

1141 Epiph Pan 34 47)

Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome

divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial

manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram

pronunciados agrave sua imagem202

O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de

Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo

ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a

luz do universo

No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de

lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno

de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos

o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo

Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma

realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo

alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior

Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do

Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem

trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto

estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-

me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo

(12827-30)

O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo

filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo

regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)

Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176

89

Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que

regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser

porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no

Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo

O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de

Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco

aacutervores

Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do

Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204

Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que

constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute

o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco

virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo

alcanccedila virtude e imortalidade

As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando

vestes de luz

E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor

Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram

Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal

E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna

Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra

imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver

nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores

como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da

ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso

Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes

com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o

autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo

domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205

204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83

90

Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do

paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da

imortalidade

Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim

comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma

aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito

de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica

de coisas legiacutetimasrdquo (198)206

As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a

alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do

pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e

corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves

virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas

leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda

adacircmica

E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute

existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma

com as virtudes paradisiacuteacas

O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque

vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada

ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os

eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis

novamenterdquo

No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e

manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16

ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai

contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios

(monachos)rdquo

O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este

ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com

a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos

206Idem 85

91

Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo

diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207

Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos

ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus

Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono

celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe

ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade

Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma

situaccedilatildeo num hino samaritano lemos

Ele Deus permanece para sempre

Ele existe ateacute a eternidade

De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio

Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como

Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208

Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes

se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser

angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina

Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto

angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz

aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute

paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar

uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden

Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e

inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e

adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus

e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo

ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado

angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na

natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte

207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718

92

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59

Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica

encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a

manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o

miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o

A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem

cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este

encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser

alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo

desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria

ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o

vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo

(lg 83)

A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos

que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele

prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo

Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial

e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque

224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209

O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica

presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da

humanidade

Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir

por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo

209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a

93

relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido

no ventre de uma mulher

ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos

humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a

luz gera-se a si mesma

O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a

imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto

que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod

escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na

tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que

se revelava aos miacutesticos211

Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos

anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah

A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus

esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da

ldquoGrande Gloacuteriardquo

A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum

dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo

flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212

Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio

soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213

Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou

Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a

aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)

A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse

visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e

trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo

Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7

ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33

De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e

incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no

211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104

94

entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto

ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute

cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214

Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era

abrangida pela sua luz

Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte

verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma

alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo

pode ser percebida diretamente

Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg

83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute

oculta na sua proacutepria luz215

No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica

que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do

disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)

Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos

devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos

Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus

durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a

imortalidade

Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas

homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo

Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta

uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta

imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a

imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e

aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto

nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do

214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105

95

Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado

esquerdordquo (Hom306)216

Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute

paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma

experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como

diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria

luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu

interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um

corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve

ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o

conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre

as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino

5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no

seu mundo simboacutelico

Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara

Nupcial

Lg 75

Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas

ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em

Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia

visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o

conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto

A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o

maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente

levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta

Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de

Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um

fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem

216 Cf Maloney G A (1992) 191-192

96

O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de

Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e

cristatildeos numa fase emergente

As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as

encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de

Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar

Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a

natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo

Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a

sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o

peso e a grandeza desta memoacuteria

Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas

que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada

sem excessos ou divagaccedilotildees

Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas

uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial

Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a

investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as

mensagens contidas nos outros logia

A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos

do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico

A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do

Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden

O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do

percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado

nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial

Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos

que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas

Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam

as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos

Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus

criador e personagens com nomes hebraicos

Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas

questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos

97

Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que

antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de

Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental

As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave

obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao

Templo de Jerusaleacutem

O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do

Templo a niacutevel simboacutelico

O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era

transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram

os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes

conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo

deste processo revolucionaram as suas religiotildees

Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta

influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo

apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a

simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem

Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos

questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo

olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos

ciclos da vida

A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o

encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a

adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217

A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num

calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas

formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218

O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas

combinadas e sincronizadas

217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem

98

A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do

sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do

ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-

calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal

preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e

ciclo sacrificial221

A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais

complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute

traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito

memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222

Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do

Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento

simboacutelico da realidade do Templo

Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de

modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica

do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e

terrestre pelo serviccedilo sagrado223

O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do

Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos

escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se

Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e

reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa

Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo

fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo

ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos

ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a

redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade

centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224

219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio

vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de

cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6

99

Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da

inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-

se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de

tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do

calendaacuterio

A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo

canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do

Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria

viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e

Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque

Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos

anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada

dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou

sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua

marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que

descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos

sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos

soprar o shofar e prostrarem-se227

O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam

os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se

vivas

ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras

espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo

vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas

225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos

ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute

descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da

terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual

com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre

a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute

ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados

antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica

e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os

sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do

ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos

perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13

100

cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as

cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos

Santos (hellip)

As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das

maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da

cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas

com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo

vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta

dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-

todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228

Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o

cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos

separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O

espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de

uma realidade eterna

Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que

aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente

Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa

forma simboacutelica e narrativa229

Eacuteden

O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais

interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim

como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o

paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)

Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a

partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do

Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma

humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da

mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo

estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes

228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57

101

na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes

do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem

criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se

manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do

outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe

ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a

Origem do Mundo)230

A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute

a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao

Eacuteden

Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai

Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria

Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila

do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico

Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais

antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos

aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231

Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo

como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo

gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito

da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico

neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos

gnoacutesticos

Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos

constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram

Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que

tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram

Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o

significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem

deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)

230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103

102

O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser

considerado bom como o Eacuteden inicial

O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter

especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo

havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo

poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual

O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas

sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da

textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o

sentimento hebreu para com o Eacuteden

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim

Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o

iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e

natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)

ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa

expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai

estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os

israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era

apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma

descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido

O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar

do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente

considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo

unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da

montanha coacutesmica

O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o

firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze

enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da

largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente

representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio

103

era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair

que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos

Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita

para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232

Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o

mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o

maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b

Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio

Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem

afirmou que o paacutetio exterior representava o mar

Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e

entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos

Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos

Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos

homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)

Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo

associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel

que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon

de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior

O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade

estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo

2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece

entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do

criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees

que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os

mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)

sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu

povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve

o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)

mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema

natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da

criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste

232Citado em Barker Margaret (1990) 61

104

para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo

(Ecircxodo1517)

Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento

hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo

do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo

a partir dos mares primitivos

Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos

primordial233

O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das

visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel

de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de

entronizaccedilatildeo

Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas

surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram

autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)

Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus

antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e

derrotado (Isaiacuteas 519)

O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em

tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo

nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4

Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na

qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da

montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor

O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui

aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se

encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono

celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute

que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao

redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)

Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do

Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)

233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522

105

ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado

com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu

nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse

152)

O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o

firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo

O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o

jardim de Deus no livro de Ezequiel

Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal

do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim

seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em

mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo

material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre

necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia

O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era

frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado

Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha

sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em

que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro

Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa

(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o

poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234

Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas

explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade

disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo

quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)

Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua

vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do

Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no

Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava

simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira

como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo

234Cf Barker Margaret (1990) 61-69

106

De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios

querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e

uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo

Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do

templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo

numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras

(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel

4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-

12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em

outras partes da Biacuteblia Hebraica

A Fonte da Vida

Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz

Salmo 367-9

Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e

ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a

construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde

e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se

sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes

cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos

varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de

ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que

tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material

lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em

todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista

o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes

recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus

poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era

235Cf Ginzberg Louis (2003) 162

107

devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o

santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua

ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo

em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o

mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o

mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado

para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao

ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no

segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que

estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o

mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia

no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como

alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O

candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua

criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o

Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no

quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No

sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o

seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante

de seu Senhor e criadorrdquo236

A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo

VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado

em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes

colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para

o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor

dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)

Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da

fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade

ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem

prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)

236Cf Ginzberg Louis (2003) 150

108

Os Rios do Paraiacuteso

Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em

quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas

vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre

associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo

O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do

Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a

um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos

Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica

no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias

semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na

montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele

que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute

um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em

majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas

visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a

fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da

sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo

no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro

de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo

isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da

porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e

tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores

cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para

eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da

fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade

com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta

oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda

do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica

a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem

metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no

veratildeo como no inverno

109

E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome

um (Zacarias 148-9)

O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os

Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu

cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam

No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de

Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a

aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas

da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)

Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos

paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio

No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos

Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando

ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da

festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a

mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de

aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber

(Joatildeo 737 -9)

O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios

serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a

simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era

quase sinoacutenimo do Espiacuterito

Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham

adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de

Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis

12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria

foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)

Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a

com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele

(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de

especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum

onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)

A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e

como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o

110

Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a

luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)

Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea

para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e

como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o

meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar

(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios

do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque

confirmam esta associaccedilatildeo

Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono

Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada

completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho

do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante

ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque

dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem

de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele

(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor

descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e

vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)

O Veacuteu

ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos

dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a

esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram

reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser

tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]

antes do templo sagradordquo

Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono

dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo

que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas

Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da

experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido

111

uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como

saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido

As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente

tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu

representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as

vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava

Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da

encarnaccedilatildeo

O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o

lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo

visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade

As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como

parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos

e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia

do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo

Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado

Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos

dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos

alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do

templo

O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8

mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de

puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)

Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da

mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido

Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1

ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado

Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se

havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-

sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o

comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o

primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia

entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de

duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de

112

modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi

colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado

norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua

esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas

grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de

espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia

vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de

vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em

cada ano (Mishnah Shekalim 85)

Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e

sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila

forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para

a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este

veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de

Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias

descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia

haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada

por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)

Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade

viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus

despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que

a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde

um rabino do segundo seacuteculo a viu

Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose

Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas

satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)

No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado

ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica

com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma

habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico

tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da

terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo

113

Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma

que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama

dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)

Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual

Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave

sabedoria do templo ou era algo antigo

A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi

coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim

foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada

espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que

poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas

(Antiguidades Judaicas III124 126)

As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o

linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez

que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o

carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)

Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade

cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo

(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este

simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute

como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de

toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais

166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO

que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo

siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo

feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais

excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador

de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de

[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre

Ecircxodo 1185)

Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que

separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um

palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas

quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao

114

dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este

veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo

sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos

transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal

como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E

satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e

inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis

(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)

A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu

(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da

cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram

vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos

elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra

azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina

tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3

Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo

Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi

descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O

veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a

invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de

como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem

do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os

elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa

compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da

vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da

realidade subjacente ao tempo237

Por Detraacutes do Veacuteu

Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar

onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era

237Cf Barker Margaret (1990) 104-107

115

eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz

lm

Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram

apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores

descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu

toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele

O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto

que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha

sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente

Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial

Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do

Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo

impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar

ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo

da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir

Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel

quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees

ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)

O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma

visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu

ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava

Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o

verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das

vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o

escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do

veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)

Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do

veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus

Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os

profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica

da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos

agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para

um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

116

pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1

Henoque 873-4)

A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre

como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu

posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute

e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a

visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda

visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda

espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)

Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram

patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado

simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio

Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o

paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)

O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos

Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do

segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o

santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)

As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre

o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou

retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti

e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque

34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o

mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido

deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e

se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as

extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que

estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)

A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de

Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da

Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no

modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-

lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o

117

nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo

das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)

O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material

e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da

presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do

Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais

esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute

chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar

que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que

fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)

Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel

para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O

debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi

construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses

mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238

ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e

o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)

Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano

Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees

simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o

proacuteprio Jesus

No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais

iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos

celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus

misteacuteriosrdquo (lg 62)

O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do

veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o

imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da

cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido

por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos

falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por

traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe

238Cf Barker Margaret (1990) 127-128

118

Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que

ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro

Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem

semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)

O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros

lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o

nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah

12b)

A Grande Luz

ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo

proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai

a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)

ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute

privado do Todordquo (loacuteg 67)

No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas

como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na

criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se

oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de

Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de

Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute

vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta

expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa

para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre

os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os

disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza

com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente

239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram

por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo

vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que

morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo

119

O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz

do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo

deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como

expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave

figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria

criando iluminando e penetrando todas as coisas

Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm

a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave

sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia

Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor

da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua

bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em

Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num

movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga

o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo

regressa

Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que

atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma

imanecircncia divina no mundo e no homem

Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a

procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado

para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um

aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da

criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31

Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca

primordial o tempo antes do tempo

A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que

encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg

19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido

242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26

120

O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o

termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2

da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244

A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee

mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que

existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e

77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as

coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser

humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no

interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de

Deus (lg 3)

A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida

em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em

que este se situa e estaacute presente

Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo

judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser

concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute

Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com

siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo

Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes

pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino

podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no

Evangelho de Tomeacute

O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz

em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute

244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute

necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de

um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros

do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o

Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios

entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos

conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3

121

O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do

Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor

lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que

Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo

(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-

nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)

Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que

andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque

vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo

cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua

gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)

A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma

das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC

Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo

(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute

desoladordquo (Daniel917)

A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os

raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono

dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este

simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao

templo

A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel

veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou

com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada

para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do

Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora

quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para

iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)

Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os

meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e

evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente

nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute

248Cf Barker Margaret (1990) 148-150

122

diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes

detentoras do conhecimento

Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo

encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute

tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo

Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos

pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes

da religiatildeo do primeiro templo

O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os

profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das

visotildees dos profetas

Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No

Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como

emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse

Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo

haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1

A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no

livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249

Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia

grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo

apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees

generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)

A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica

abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro

249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o

pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeus e Parmeacutenides

123

diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash

que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252

Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que

descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus

declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o

vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e

61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da

condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo

ldquodivididardquo privada da imagem divina

Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11

e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial

anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo

As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam

bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253

252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem

Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo

Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70

Para traccedilarmos a exegese do Evangelho

de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo

presentes em Geacutenesis devemos procurar

ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a

hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo

dispostos de forma aleatoacuteria

No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele

que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o

poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes

(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute

recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo

(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco

a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram

atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os

governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos

como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com

a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg

4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete

diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia

da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer

(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo

um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente

concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e

relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha

com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos

como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo

humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando

Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser

124

Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a

luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda

a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz

manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que

fala na primeira pessoa com uma voz humana

Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em

simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por

todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute

uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o

protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254

A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de

modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A

atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do

espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso

divino no seacutetimo dia

Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus

atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende

aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se

encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior

254Cf Pagels E H (1999) 484

singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o

homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e

fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo

causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando

chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas

eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia

presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a

unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz

125

ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os

disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta

dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute

ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas

oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela

sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo

conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor

pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico

que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a

humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina

Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos

duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo

A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a

fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos

era bastante comum no seu tempo

A Imagem e a Luz

ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Lg 22

A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas

da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada

pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida

Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho

de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes

conceitos

Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma

experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu

sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo

Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um

corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser

255Cf Idem

126

humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns

pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original

arquetiacutepica

Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no

com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido

o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257

Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de

Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele

argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo

sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos

evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do

judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem

quanto suportareisrdquo259

O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado

primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a

existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da

pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um

objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser

humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento

divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia

afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino

Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois

Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem

celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem

criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da

Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11

Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam

256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158

127

ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo

natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou

com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim

do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job

1420)rdquo

De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre

Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu

mudei261

Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como

cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo

brilhante que ateacute superou o brilho do sol262

Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus

criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da

queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda

Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b

O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O

espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele

O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a

Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263

Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que

foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem

(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma

interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a

sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo

luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que

imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado

No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe

uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem

De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden

entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo

261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18

128

tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz

eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo

Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou

no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso

63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e

viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem

estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante

delardquo266

Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que

encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente

vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que

tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do

pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que

estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido

da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute

perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja

claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva

Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267

O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um

processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como

resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem

Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica

um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava

retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106

ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois

um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial

A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem

ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma

ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos

265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223

Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do

trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais

antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o

homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160

129

dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a

Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se

depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e

adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268

Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim

necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem

quanto suportareisrdquo270

ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser

digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271

Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute

Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as

imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo

num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo

manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272

O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo

relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)

numa imagem (imagem) para entrar no Reino

No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem

da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das

imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo

pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-

nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo

inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo

Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees

coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se

268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63

130

manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a

imagem dessa luz273

Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes

conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos

que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)

esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as

outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser

humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a

luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que

falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e

condenado a provar a morte274

O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa

imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84

menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas

beatitudes nas lg 18b e 19a

ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a

morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276

Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial

ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277

ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na

Cacircmara Nupcialrdquo278

A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de

Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e

retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo

subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de

Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que

273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63

275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75

131

interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da

lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas

proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta

do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)

Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que

ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus

responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que

borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha

boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-

lhe-atildeo reveladasrdquo280

Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as

palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara

Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)

estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute

designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo

representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104

e cada alma unir-se-agrave a ele

Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um

estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado

por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial

estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o

casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa

o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da

histoacuteria

Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem

simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o

jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o

final dos tempos

Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do

estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em

279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487

132

que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis

saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)

Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de

unidade

Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e

por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs

grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo

transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute

a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a

uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de

Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre

o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem

procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas

Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial

primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e

ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute

natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se

oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o

disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas

se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle

disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz

e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)

Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz

oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial

O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento

salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante

Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos

lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que

estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem

Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da

experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo

de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de

preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe

instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais

133

No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura

analisada e aos evangelhos sinoacuteticos

O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora

acessiacuteveis a todos os que as buscarem

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo

Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave

porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca

de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles

transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)

134

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho

carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo

interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo

entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284

ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que

vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam

como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que

estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim

consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu

Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo

Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da

imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na

presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em

fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos

pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda

Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a

carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila

para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285

283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162

135

Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon

sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu

uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou

consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os

raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que

gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex

227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex

240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos

luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de

Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo

Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma

ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente

meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas

ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas

de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de

nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos

ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao

redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o

queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo

Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus

hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal

Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104

Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o

olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo

traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo

causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo

acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de

fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do

sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio

286Cf Idem 106

136

ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode

recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a

imortalidade (αθανασίας) (104)

No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda

muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim

conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente

transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento

esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por

meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia

Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser

deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287

Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave

experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem

natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do

que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que

a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas

sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288

Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus

estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o

fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa

Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se

encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute

perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial

Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento

central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos

Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute

ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da

imagem da luz do Pai

Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz

da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na

presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus

ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder

287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108

137

transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores

estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila

judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam

esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus

O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma

de misticismo transformacional

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289

Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a

revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos

como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte

da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os

sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os

justos os santos e os escolhidosrdquo

Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos

santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os

segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria

ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila

pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a

injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291

Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147

em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles

estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras

tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem

recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do

conhecimentordquo292

Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no

lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293

289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81

138

A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a

aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave

linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo

em 4 Esdras 1438-41

ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a

beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida

estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi

e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a

minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a

minha boca foi aberta e jamais fechadardquo

Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire

conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para

descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca

eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do

fogo

Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a

condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84

explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras

palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si

mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe

eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294

A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar

fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino

Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes

tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me

intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa

ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se

natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296

294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93

139

As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia

comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que

emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si

mesmo297

Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano

no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298

Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da

existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos

conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima

intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem

do corpo no Evangelho de Tomeacute299

O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e

antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus

supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito

O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte

de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se

aprisionada no corpo humano

O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na

qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica

interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes

(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em

Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo

Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo

sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo

cultural heleacutenico

Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta

temaacutetica

A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente

com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que

encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma

297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54

140

compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e

enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento

Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg

568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)

O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento

afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida

Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e

ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na

exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de

contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute

ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo

(Lg 112)

ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que

depende destes doisrdquo (Lg 87)

O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne

sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)

ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos

alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os

nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos

que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do

corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo

Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de

escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e

Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma

Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que

ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira

afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo

seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute

ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301

Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como

uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia

300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59

141

resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria

entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da

filosofia greco-romana302

O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma

condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo

que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois

corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta

interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303

Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um

corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever

Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de

Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural

Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma

plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende

do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo

universal

A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um

indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do

asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias

restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior

Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a

descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do

mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas

lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma

compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo

experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores

sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si

mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de

Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo

pessoal

ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que

conheceram o Pai em verdade

302 Cf Idem 60 303 Cf Idem

142

Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o

tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)

Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos

inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a

vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente

Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304

O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento

preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-

se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos

ldquomovimentos de Jesusrdquo

Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o

homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo

apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de

perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe

que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados

De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que

encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e

reinaraacute sobre o Todordquo

Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando

sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais

notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus

existem na sua forma concreta como um texto escrito

A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo

por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete

repetidamente no seu significado

ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo

corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)

304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273

143

Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo

Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual

seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo

esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta

eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a

realidade fiacutesica em termos de origem307

Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o

homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de

vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29

corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que

o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave

animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a

prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que

atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a

lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310

Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos

eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase

em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e

guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social

(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo

autorizadas

6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no

evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido

na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus

iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas

espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita

existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que

explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo

de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era

144

gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de

gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria

Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia

gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo

interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode

salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de

Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312

O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro

autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia

gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo

eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia

Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o

conhecimento de Deus

Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas

disponiacuteveis em Nag Hammadi

ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu

a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313

ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde

e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo

o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso

O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de

onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da

sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314

A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser

humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua

realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino

considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a

sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo

contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos

estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo

religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 149

145

Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a

iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as

realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo

O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees

no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo

de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as

ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo

Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como

a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de

escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas

geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes

que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes

livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de

interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram

deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315

Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas

uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual

As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram

comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da

antiguidade

Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental

influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel

transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado

apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas

Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como

verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees

O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em

concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos

leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega

315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus

146

Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a

novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo

da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido

Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no

autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender

que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo

Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros

revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam

entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam

assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual

A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual

gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute

agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a

difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento

distintas

Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica

Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita

no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se

encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma

ortodoxia definida

Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a

experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior

de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e

adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro

de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras

sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes

Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que

surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros

contextos

Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o

gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo

signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se

assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem

147

Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo

se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316

seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que

possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da

experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta

temaacutetica317

O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas

doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais

abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual

do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo

apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e

como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma

questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma

exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com

revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender

As variedades da experiecircncia gnoacutestica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem

pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do

conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do

segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito

(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a

interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a

descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da

histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador

dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos

Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o

gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem

algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da

mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no

pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo

316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)

148

este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a

alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento

evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas

Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma

conotaccedilatildeo positiva318

O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este

adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e

operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o

conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo

Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que

alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de

Deus e das verdades superiores

O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter

trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade

de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como

ldquoa gnose que nos foi dadardquo321

Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os

acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes

uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica

definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada

chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322

Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios

fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro

lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -

falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir

que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia

perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de

Valentino e a sua escola

318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem

149

Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos

valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as

doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325

Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo

especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos

O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma

designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria

Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo

num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria

Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo

ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo

era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes

conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus

Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento

gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque

preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais

corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as

manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos

gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326

No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos

espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo

mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro

lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se

a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327

A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por

gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim

como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328

Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de

situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade

foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a

325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12

150

designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos

orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo

perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados

para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma

particular de viver a vida

Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas

respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana

Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo

para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo

Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os

gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu

tempo

Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees

entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica

Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos

sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico

geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses

conhecimentos esoteacutericos

Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e

espiritualmente conhecimentos superiores

O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos

primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas

escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era

comum

Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico

isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o

gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329Cf Idem

151

problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava

separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens

deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar

de libertaccedilatildeo

Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos

tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso

O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o

conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas

No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano

nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a

salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus

Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm

conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em

Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente

A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos

descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para

voltar ao estado da imagem divina no corpo humano

No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz

gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de

iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto

perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo

Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito

gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico

O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de

pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de

conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente

O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a

lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura

encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza

gnoacutestica do evangelho de Tomeacute

O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem

humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino

satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico

152

Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou

na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu

pensamento

ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou

Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos

onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o

que constitui um renascimento [real]rdquo

- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782

Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos

do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo

A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua

mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve

em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas

Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332

ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes

da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial

apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do

antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde

todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo

330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash

Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e

dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo

encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma

criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos

apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de

Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo

primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio

metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-

lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o

pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim

e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis

153

de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo

com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que

chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz

primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo

retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua

substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que

superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)

recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos

(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo

humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu

no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo

estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de

facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira

pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos

os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma

emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e

a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos

disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um

movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos

inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis

dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que

interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina

dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar

Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a

questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o

procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e

ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24

154

o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo

146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a

luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao

homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua

imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem

divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos

nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo

para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma

parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a

forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no

quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo

pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a

exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335

Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua

ideologia religiosa

7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute

Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica

sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do

evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente

considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias

diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de

natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico

descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases

fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute

A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute

e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e

metafiacutesica entre o ser humano e o divino

335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27

155

A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos

tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos

fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do

nosso pensamento

No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da

unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por

excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma

correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e

antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia

ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o

conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades

superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser

unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que

natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo

aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da

gnose338

O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de

Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da

experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade

antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade

metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339

Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da

perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo

reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os

fenoacutemenos da existecircncia

Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus

quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial

Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas

vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de

gnose

337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem

156

Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de

solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o

processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a

solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo

dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral

Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo

gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa

Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a

um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute

os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o

conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial

Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado

atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os

temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo

associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial

A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute

eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)

Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de

pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este

padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho

O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da

tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de

Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal

No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema

da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus

correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340

Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico

essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus

Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que

a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a

Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma

mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria

340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817

157

ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo

abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis

A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e

penetrardquo342

Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita

com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a

Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela

aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do

Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e

transcendentes

A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria

e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da

qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu

aspeto de Sabedoria343

Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo

miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas

O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante

agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes

faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata

obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes

tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga

eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano

Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute

esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da

racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores

ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a

imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344

342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817

158

Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no

coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do

seu interior

Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor

da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes

exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna

possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar

a sabedoria e o conhecimento de Deus

O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura

intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado

idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia

paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de

separaccedilatildeo entre o divino e o humano

Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a

humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria

humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo

deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento

religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai

eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante

deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu

papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o

sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e

do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel

e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo

Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no

pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento

Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute

de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de

Tomeacute

Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu

pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a

escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma

realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse

159

Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro

estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas

doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como

conclusatildeo

Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos

as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de

Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora

nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses

A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial

assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo

Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da

linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca

Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-

existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo

(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e

fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)

Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de

todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa

evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo

eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara

nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser

humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No

dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que

fareisrdquo347

A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos

disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348

345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18

160

Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento

de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo349

Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar

no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu

pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio

A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se

alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave

eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos

atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no

conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente

A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o

inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da

compreensatildeo

A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua

lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino

conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade

Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da

interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio

Jesus Vivente

Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo

da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do

corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como

intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um

conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que

inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento

Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que

inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo

Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da

leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave

consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos

349 Log 1

161

Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos

duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede

de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria

Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um

reino de luz primordial em que o ser humano era majestade

O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o

humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se

unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24

61)

Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve

os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo

Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a

imagem e a luz

Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo

menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente

Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da

cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro

estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando

analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto

do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido

Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai

receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo

tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350

A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos

seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica

Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram

revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua

imortalidade

A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria

assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar

mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo

350 Log 19

162

mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma

interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo

A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir

para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o

casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade

Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar

forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do

divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de

pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as

implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias

Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente

em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo

como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu

interior o disciacutepulo salva-se (log 70)

Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o

exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece

sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade

alinha-se em conformidade com essa luz primordial

No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como

ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de

Israel

Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de

Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia

ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do

templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria

Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo

miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas

realidades celestiais

Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o

momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica

Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a

uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a

unir-se com o divino

163

No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos

evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas

religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do

saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351

A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais

sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades

a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma

privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do

Reino

O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido

como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos

laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os

que conheceram o pai de verdaderdquo352

O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo

ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353

A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita

a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o

terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua

memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de

unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica

expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua

organizaccedilatildeo

Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no

coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)

Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda

reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do

mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo

que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma

351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59

164

meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo

visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai

A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no

Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os

elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados

em Tomeacute

Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se

encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades

interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo

Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo

o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial

O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio

concreto onde ela se localize

Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute

um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de

quem a aborda ela expande-se ou contrai-se

Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da

minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas

ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354

A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia

o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo

A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo

que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem

Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de

Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591

165

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos

nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara

e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e

entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no

Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios

O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na

divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a

distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo357

356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82

166

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358

A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de

experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos

miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel

contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos

que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma

como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o

divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia

interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo

comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num

desejo de transcendecircncia

8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute

A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada

sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia

dos vaacuterios resultados apresentados

Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma

hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos

entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns

na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da

existecircncia humana a sua origem e o seu destino final

Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo

metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do

secreto

A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da

tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo

358Cf Deconick D April (1996) 105

167

Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o

evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na

Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da

literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas

Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso

sapiencial da Sabedoria

Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do

Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute

O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por

parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a

forma como o mesmo mito era interpretado

O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para

as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden

Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de

gnoacutesticos

A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis

aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois

mundos que convergiam neste debate

O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do

adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo

mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo

mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu

mestre

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)

Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus

A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste

loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos

de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila

divina interpretada com o simbolismo do templo

Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o

santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas

Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a

se transfigurar na mesma

168

A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes

da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese

facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do

significado da cacircmara nupcial no evangelho

Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde

existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua

redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em

Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo

celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto

encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do

evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do

templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica

Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental

na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na

tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em

oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do

evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a

sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada

como base ideoloacutegica360

No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne

onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era

impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o

proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade

Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens

afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra

Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como

uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)

Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na

cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde

tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio

poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai

tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um

359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274

169

reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas

teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como

Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto

Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para

entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos

Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso

de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza

divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino

Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos

outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute

A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a

unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus

A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para

integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo

A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion

22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o

de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino

natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de

um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em

lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da

transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362

Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo

com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma

imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363

No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a

Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas

seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a

imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que

361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os

humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres

humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser

divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente

fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438

170

concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem

divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que

Cristo eacute

Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg

22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho

natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser

assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser

transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)

A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no

evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos

dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um

chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma

natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no

seio da luz (lg 11)

Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa

situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave

identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute

estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a

derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o

mestre

ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele

e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito

ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de

Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica

da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que

entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)

O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira

instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos

ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de

traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes

leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida

Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente

descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que

Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores

171

Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho

por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes

Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de

compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus

textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees

orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que

estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos

apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos

Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de

Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque

Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo

grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus

textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden

que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem

Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe

permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam

despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se

ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que

prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos

processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que

era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute

A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria

possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma

que estes leitores consideravam adequada

No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na

variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira

interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364

Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon

descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras

ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo

Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e

isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo

364 Cf Levison (1999) 38

172

Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o

propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da

atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65

ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou

impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio

do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das

profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem

o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo

Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento

as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente

humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar

conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo

O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates

Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)

O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave

inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366

Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)

reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo

a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates

era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do

espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates

corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom

profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados

inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes

como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo

(2187)367

De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria

iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter

recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra

elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins

365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46

173

ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria

alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este

pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute

realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a

soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo

misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua

soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da

soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas

destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher

27-29)

A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor

afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com

estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua

experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior

expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior

dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento

elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)

as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala

(Som 2252)368

Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis

onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas

revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que

afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia

sobre os detalhesrdquo (588C)

A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o

inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo

sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de

revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem

naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca

pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da

368Levison (1999) 50

174

verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares

de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das

vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos

antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion

Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia

de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do

filho da luz

175

Bibliografia

Fontes Primaacuterias

Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston

Brill

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics

of Western Spirituality

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co

Ludgate Hill

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa

Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros

Textos Gnoacutesticos Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman

Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings

James Clarke amp Co Louisville

176

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos

1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e

grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas

o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees

Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das

paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas

a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias

indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos

Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20

3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em

etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim

In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507

Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto

de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem

documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de

interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC

nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem

em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos

tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os

pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o

symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram

eco nestes manuscritos

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute

relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

177

A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas

antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias

camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento

importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar

onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em

termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo

simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por

exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316

ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais

associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco

Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos

e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Outros autores judeus

Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se

fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no

evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia

178

Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os

significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas

associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que

Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao

longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo

corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha

responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra

judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho

no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do

elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos

fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Textos Rabiacutenicos

Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo

literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que

permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o

interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos

eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei

oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos

A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo

releeituras das tradiccedilotildees anteriores

Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo

da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a

sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados

homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo

sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico

que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave

escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos

179

Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford

Midrashim

Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do

quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de

pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente

textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso

destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma

circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese

responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos

ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para

explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua

antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo

histoacuterico em discussatildeo

Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The

Soncino Press

Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma

exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o

capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado

TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London

Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da

Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que

tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma

complete no seacuteculo doze

TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo

anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios

180

celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose

desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da

memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria

elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute

lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano

ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute

transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de

hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos

produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a

literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm

com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais

autoinduzidas

Davila R Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation Brill Boston

Bibliografia e Fontes Secundaacuterias mencionadas no texto

A Seth C (2014) Know Yourself and You Will Be Known The Gospel of Thomas and Middle

Platonism Paper 92

A E C (2000) The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity Studies in

Language and Tradition Sheffield Academic Press

AFJKlijn (1962) The Single One in the Gospel of Thomas In Journal of Biblical Literature

(pp 271-278)

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Barker M (1990) The Gate of Heaven The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem

Spck Dallas Theological Seminary

Barnard L (1968) The Origins And Emergence Of The Church In Edessa During The First Two

Centuries AD Nort-Holland Publishing Co

Caroline Johnson Hodge S M (2013) The One Who Sows Bountifully Essays in Honor of

Stanley K Stowers Brown Judaic Studies

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Christopher J-M R (2006) The Temple Within In Paradise Now Essays on Early Jewish and

Christian Mysticism (pp 145-179) Society of Biblical Literature

181

Colson F amp Whitaker G (1934) On Flight and Finding On The Change of Names On Dreams

Loeb Classical Library

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dan J (2002) The Heart And The Fountain Oxford University Press

Danby T H (1933) The Mishna Oxford Oxford

Davies S (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom New York The Seabury Press

Davies S L (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom The Seabury Press

Davies S L (1992) The Christology and Protology of the Gospel of Thomas 111

Davies S (nd) The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible Retrieved Abril 13 2017

from Oxford Biblical Studies Online

httpwwwoxfordbiblicalstudiescomarticleoprt280e73

Davila J R (2001) Descenders to the Chariot Boston Brill

Davila J R (2013) Hekhalot Literature in Translation Boston Bril

DeConick A (2006) Paradise Now Essays On Early Jewish and Christian Mysticism Society of

Biblical Literature

Deconick A D (1996) Seek to See Him Ascent Ascent and Vision Mysticism In The Gospel Of

Thomas EJ Brill

Deconick A D (2001) Voices of the Mystics Journal for the Study of the New Testament

Supplement Series 157 Sheffield Academic Press

DeConick A D (2014) Histories of the Hidden God New York Routledge

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston Brill

Elior R (2004) The Three Temples On the Emergence of Jewish Mysticism The Littman Library

of Jewish Civilization

Elior R (2009) ) From Priestly (And Early Christian) Mount Zion to Rabbinic Temple Mount In

Where Heaven and Earth Meet Jerusalems Sacred Esplanade

Fossum A D (1991) Stripped Before God A New Interpretation of Logion 37 In The Gospel of

Thomas In Vigiliae Christianae 45 E J Brill

Fossum J (1985) JsJ In Gen126 and 27 in Judaism Samaritanism and Gnosticism (pp 202-

239)

Gathercole S (2014) The Gospel of Thomas introduction and commentary Texts and editions

for New Testament Study Koninklijke Brill NV

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

Halperin D (1988) The Face of the Chariot Early Jewish Responses to Ezekiels Vision

Tubingen Mohr

Hartin P (1999) The search for the true self in the Gospel of Thomas the Book of Thomas and

the Hymn of the Pearl HTS

182

Hayward C T (1996) The Jewish Temple London Routledge

Hayward C T (1996) The Jewish Temple A Non-biblical Sourcebook Routledge

Heine R E (1989) Commentary on the Gospel of John Books 1-10 Washington Catholic

University America

Himmelfarb M (1993) Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses Oxford

University Press

Himmelfarb M (2013) Between Temple and Torah Essays on Priests Scribes and Visionaries

in the Second Temple Period and Beyond Tuumlbingen Mohr Siebeck

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Janowitz N (1989) The Poetics of Ascent Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text

State University New York Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet Edition

Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Levison J R (1999) Of Two Minds North Richland Hills Texas Bibal Press

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University

Press Association

Luomanen P (2012) Recovering Jewish-Christian sects and gospels Supplements to Vigiliae

Christianae

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text Verlag

Algred Toperlmann

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics of Western

Spirituality

Mattanyah I S (2007) Hellenism Dominates the Near East and Unites East and West in

Climate Change ndash Environment and History of the Near East 2nd Edition Springer

Millar F (1993) The Roman Near East 31 BC- AD 337 Harvard University Press

Najman H amp Newman J (2004) The Idea of Biblical Interpretation Essays in Honor of James

LKugel Leiden Brill

Neusner J (1965) A History of Jews in Babylonia vol 1 The Parthian Period LeidenBrill

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Pagels E (1999) Exegesis of Genesis 1 In the Gospels of Thomas and John Journal of Biblical

Literature pp 477-496

Patterson J (2013) The Gospel of Thomas and Christian Origins Leiden Koninklijke Brill NV

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co Ludgate Hill

183

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros Textos Gnoacutesticos

Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Ross S (2011) Roman Edessa Routledge

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings James

Clarke amp Co Louisville

Scholem G (1965) Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 2nd ed

Jewish Theological Seminary of America

Segal P (1990) Paul the Converte The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee Yale

University Press

Sheck T P (2015) Commentary on Isaiah Homilies 1-9 On Isaiah New York The Newman

Press

Simon H F (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The Soncino Press

Smith D C (2010) The Kabbalistic Mirror of Genesis Rochester Inner Traditions

Strecker P V (1991) ldquoJewish-Christian Gospelsrdquo New Testament Apocrypha Vol 1 Gospels

and Related Writings James Clarke amp Co

Stroumsa G G (2015) The Making of the Abrahamic Religions in Late Antiquity Oxford

University Press

Stroumsa M B (2010) Paradise in Antiquity Cambridge Cambridge University Press

Uro R (2003) Thomas Seeking The Historical Context Of The Gospel of Thomas TampT Clark

Valantasis R (2007) The Gospel of Thomas Routledge

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Villeneuve A (2016) Nuptial Symbolism in Second Temple Writings the New Testament and

Rabbinic Literature Brill

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New York Tampt

Clark

184

Page 2: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé

2

3

4

5

6

7

8

9

Resumo

O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido

literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao

seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e

significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias

e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao

desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental

nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees

qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos

sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo

as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de

Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica

do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de

Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir

da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura

de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo

antigo

Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico

figura de Jesus cristianismo primitivo

10

Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have

been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its

reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings

to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a

research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of

the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development

of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to

answer the following questions what was the historical context of this gospel its social

space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message

and what are the specific characteristics of language and experience in the early

Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the

historical understanding of the development of the Christian mental space in the first

century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a

new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian

movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social

contexts and geographical spaces of the ancient world

Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of

Jesus primitive Christianity

11

Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como

misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute

Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A

sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu

intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu

sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave

minha tatildeo doce Virgem Maria

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades

maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza

ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus

e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado

com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele

o guarde eternamente

Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a

iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e

imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o

uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os

exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo

racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela

vontade do Pairdquo

Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2

12

Iacutendice

Introduccedilatildeo 14

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20

Literatura Profeacutetica 21

Literatura Sapiencial Judaica 21

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24

Uniatildeo Nupcial no Templo 24

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36

Os Manuscritos 37

A Liacutengua Original de Tomeacute 37

A Data de Tomeacute 38

A Origem do Evangelho de Tomeacute 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65

A Gloacuteria do Trono 69

O Templo 70

A Merkavaacute 72

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92

6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo

simboacutelico 95

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97

Eacuteden 100

13

O Grande Mar 102

A Fonte da Vida 106

Os Rios do Paraiacuteso 108

O Veacuteu 110

Por Detraacutes do Veacuteu 114

A Grande Luz 118

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122

A Imagem e a Luz 125

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138

7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143

As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150

8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154

9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166

Bibliografia 175

14

Introduccedilatildeo

ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10

O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar

a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona

os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside

nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos

alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico

para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute

Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos

por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses

evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado

Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o

simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave

hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia

cristologia e protologia apresentada por Tomeacute

Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente

interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees

simboacutelicas do texto

Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o

panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem

valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual

Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma

linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial

no Evangelho de Tomeacute

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese

apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico

No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a

metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da

cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo

pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas

do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute

15

Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para

contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve

discussatildeo dos conceitos religiosos do documento

No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na

histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no

espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que

influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma

importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais

judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento

No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a

compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da

linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do

proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio

Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo

fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um

mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos

dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas

satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais

da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1

Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal

a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia

humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se

manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por

este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do

evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso

de presenccedila interior

Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as

temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia

religiosa do evangelho de Tomeacute

1 Lohuizen Wali Van (2011) 3

16

No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico

que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria

forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as

realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos

cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos

siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o

processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho

eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser

humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas

afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma

produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave

sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo

O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo

no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute

a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas

atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um

gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere

facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica

Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de

Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta

exegese

Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios

mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto

de Tomeacute

Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma

realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta

conclusatildeo

Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomeacute

O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no

pensamento do judaiacutesmo de II Templo

Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao

ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a

17

compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento

judaico e no Evangelho de Tomeacute

Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e

aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do

seu contexto

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco

O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva

dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem

teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos

enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomeacute

Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda

na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo

cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro

O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da

doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta

opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios

reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador

Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de

Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de

Ahiqar e textos sapienciais de Qumran

Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo

substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino

da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio

posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a

caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento

filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute

18

Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no

periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de

interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de

Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a

versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute

recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As

obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo

completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc

As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana

assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e

devidamente identificadas nas passagens traduzidas

19

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia

As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa

seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos

influenciaram a textualidade de Tomeacute

Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute

Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo

Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos

de Joatildeo e Filipe

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando

historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes

tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute

A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia

Hebraica e na Literatura Sapiencial

Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns

dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos

posteriores

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como

Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos

pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos

Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos

textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais

no Evangelho de Tomeacute

20

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre

Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que

envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano

As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar

num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico

Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como

marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma

realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o

retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do

matrimoacutenimo com o divino

Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O

que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa

leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de

Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo

da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino

Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a

imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano

uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se

com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4

Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo

recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de

Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos

inserem-se neste mesmo padratildeo

Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria

Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado

ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que

se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano

2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem

21

Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num

evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido

no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor

nas vidas das geraccedilotildees subsequentes

A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-

humano no final da histoacuteria

Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios

da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai

o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos

Literatura Profeacutetica

Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns

profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute

direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo

intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino

do Norte6

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma

uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica

da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos

preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel

para com o proacuteximo

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da

Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus

identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora

Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas

vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e

6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26

22

amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma

sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante

A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial

apresentada pela literatura sapiencial

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do

casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido

Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora

Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos

Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da

crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de

cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela

A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela

Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo

antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos

Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo

com o homem

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave

cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas

dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre

Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a

uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial

Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no

tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura

Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento

no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e

pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico

dos Cacircnticos

Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara

Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe

9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29

23

Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo

ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel

fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente

transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo

para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11

Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de

simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado

com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal

redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia

sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da

eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente

associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais

frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da

criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por

Cristo o novo Adatildeo

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o

Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os

temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro

casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13

Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os

nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com

que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao

estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes

no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de

Tomeacute

11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem

24

Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o

significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia

destas tradiccedilotildees

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai

Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por

um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo

do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel

No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio

pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo

Uniatildeo Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo

nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai

eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de

Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se

relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos

do batismo e da eucaristia

Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo

lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto

nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo

O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado

Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo

Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo

Testamento

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no

templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do

Sinai

25

miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos

do batismo e da eucaristia15

Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara

Nupcial

Os templos de vaacuterios povos antigos

consideravam o Templo especialmente o

Santo dos Santos como o lugar

simboacutelico que representava a Cacircmara

Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como uma

atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai

O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para

perpetuar a teofania do Monte Sinai entre

o povo de Israel

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo

de simbolismo coacutesmico sendo

considerado um microcosmos que

representava o universo inteiro Tambeacutem

eacute relevante a ideia antiga do homem

como microcosmo e templo uma ideia

encontrada no Novo Testamento onde o

fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o

ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece

entre o humano e o divino

O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a

fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar

onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do

divino na terra

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo

Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a

traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem

Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos

necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial

As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma

ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento

A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o

capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em

todas as ressonacircncias

15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56

26

O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura

personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se

a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte

feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina

Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica

O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo

da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos

tempos

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria

encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)

ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo

Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca

ela se exalta diante do seu Poder

lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens

Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste

eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira

reinei sobre todos os povos e naccedilotildees

Junto de todos estes procurei onde pousar

e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo

Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico

da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma

ψυχὴν αὐτῆς)17

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo

de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na

tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios

No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem

em Deus e a sua universalidade

Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo

Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a

palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde

17 Cf Villeneuve A (2016) 57

27

como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria

ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando

ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn

12)

O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica

que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19

Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central

do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e

terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma

reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu

O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna

que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo

e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22

A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave

coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23

Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as

mentes que estudam a virtuderdquo24

Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a

nuvem como uma ponte entre as duas esferas

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua

identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a

paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de

sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas

caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25

Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens

primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo

A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo

18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na

referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl

987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19

28

O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o

termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a

escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo

(Gn 12)26

Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando

presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27

O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o

universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os

dois elementos do mar e da terra

Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar

especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo

Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo

dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos

de nota28

A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o

universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela

deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos

limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte

Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora

Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel

A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)

ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem

aquele que me criou armou a minha tenda e disse

lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo

Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio

e para sempre natildeo deixarei de existir

Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei

deste modo estabeleci-me em Siatildeo

e na cidade amada encontrei repouso

26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59

29

meu poder estaacute em Jerusaleacutem

Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria

no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo

Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o

ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens

Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da

sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de

Israel

No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que

habitasse em Israel

O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-

se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao

fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu

reino sobre a esfera espacial

ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo

(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu

processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo

Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)

ldquoCresci como o cedro do Liacutebano

Como o cipreste no monte Hermon

Cresci como a palmeira em Engadi

Como roseira em Jericoacute

Como formosa oliveira na planiacutecie

Cresci como plaacutetano

Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume

Como a mirra escolhida exalei bom odor

Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque

Como o vapor do incenso na Tenda

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da

criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a

um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas

por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21

30

Estendi os meus ramos como o terebinto

Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila

Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos

E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado

A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra

de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos

Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva

localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos

Cacircnticos

No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o

palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)

associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413

A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do

rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)

Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se

trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute

associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30

A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)

tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a

noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)

Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no

Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica

O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)

Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)

As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios

satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)

A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora

Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden

30Cf Villeneuve A (2016) 63

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)

ldquoVinde a mim todos os que me desejais

Fartai-vos de meus frutos

Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel

Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel

Os que me comem teratildeo ainda fome

Os que me bebem teratildeo ainda sede

Quem me obedece natildeo se envergonharaacute

Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo

Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete

sumptuoso para comerem os frutos que ela produz

Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o

vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu

vinho31

O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo

universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden

Monte Sinai e no Templo32

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos

Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros

pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no

primeiro seacuteculo da era comum

As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que

datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do

fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu

amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de

Deus participante na sua imortalidade

31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73

32

ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)

Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o

Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal

verdadeiramente seraacute imortalrdquo

Ode de Salomatildeo 35-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser

humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana

para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi

considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)

Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou

beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do

Espiacuterito Santo33

ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro

de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)

Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o

jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre

aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa

nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-

9)

Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como

sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos

escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de

aacuteguas vivas

As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura

mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste

contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo

Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel

procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo

Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34

33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279

33

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute

Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder

a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute

Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados

e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns

elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e

posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver

O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho

de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo

textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico

reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute

Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio

unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de

um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si

Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira

encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados

(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem

hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que

eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que

se orerdquo

A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e

antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua

mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela

perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o

mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na

cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida

Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da

existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees

Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute

ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema

existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o

Reino dos Ceacuteus

34

Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma

identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser

fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho

o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e

responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo

natural do divino na consciecircncia)

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em

termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz

A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das

palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte

Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano

espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua

boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos

melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos

revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando

colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto

Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e

o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canoacutenicos

Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos

canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o

retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar

em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada

E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso

O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus

Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos

do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo

entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz

e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios

Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque

para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo

interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por

este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial

35

No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada

um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico

Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na

eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo

duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de

comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o

disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica

eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus

Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do

misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo

menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval

A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou

divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre

dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de

duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos

sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais

simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo

A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso

trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na

experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves

manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de

misticismo mais tardias como a unio mystica

O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado

para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um

processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se

entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro

conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura

inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e

o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino

e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

36

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo35

A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a

explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica

no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo

completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo

de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra

nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem

Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com

profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que

acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute

O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo

Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra

O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua

reflexatildeo na audiecircncia que os escutava

A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa

investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode

ser interpretado legitimamente como tal36

A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos

gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel

defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute

Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe

Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito

No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de

Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -

ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo

Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto

35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43

37

O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do

cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de

Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente

heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem

num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta

termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados

gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic

publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os

Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma

coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido

por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe

O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do

seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um

evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente

proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38

Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto

de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um

tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39

A Liacutengua Original de Tomeacute

A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta

onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo

do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria

dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41

38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by

Stevan

Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91

38

Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos

textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes

num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a

frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que

reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil

uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42

O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo

alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo

Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta

encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o

texto

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos

manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a

liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em

manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de

Tomeacute

A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os

evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo

relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute

O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os

documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o

Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de

Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas

siriacuteacos43

Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de

manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem

originais siriacuteacos ou aramaicos

A Data de Tomeacute

41Cf Idem 91

42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97

39

Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa

complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser

datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito

onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo

em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta

e cinco dC

Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de

acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de

Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos

dC

Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave

confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71

O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos

de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila

para atestarmos esta dataccedilatildeo

A Origem do Evangelho de Tomeacute

Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute

A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito

Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em

Edessa

Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a

origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades

de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura

siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute

O nome Judas Tomeacute

44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria

40

Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo

aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute

Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma

particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo

eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo

geacutemeo de Jesus48

Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco

Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo

em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram

o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113

com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde

ocidental

O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria

da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5

Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em

siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49

O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo

encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego

aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um

apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50

Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido

provavelmente na Siacuteria

A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo

e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel

nalguma literatura maniqueiacutesta

Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos

As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca

48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10

41

ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os

vossos vestidos e os colocardes sob

os vossos peacuteshelliprdquo

Evangelho de Tomeacute 37b

As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes

nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as

Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma

literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande

Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se

na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de

ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)

O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que

Jesus disse a Judas Tomeacute

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma

problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o

seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo

do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de

radicalismo social51

Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um

misticismo unitivo ou um produto valentiano

No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada

escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das

lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios

termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees

O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a

sua teologia central

51Cf Gathercole Simon (2014) 144

ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto

que o manto da vergonha me foi

tiradordquo

Atos de Tomeacute 14

42

Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent

Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo

significativo agrave leitura de Tomeacute

A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da

linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior

ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53

Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto

pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a

ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente

seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1

Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do

judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade

tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras

continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em

Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia

Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes

divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas

da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem

No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros

disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para

lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo

A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte

onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel

desvelar novas realidades

Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente

na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos

tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as

instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai

A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21

vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o

como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)

52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145

43

O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg

57 76 96-99 133)

Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534

Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente

de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)

estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)

Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39

6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)

Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o

reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)

Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence

aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas

(lg 22 46)55

Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se

encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)

A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56

Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos

no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn

1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por

um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58

Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa

matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo

O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda

desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que

eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um

divisor (lg 72)

55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11

44

A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo

valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis

Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do

eleito

Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao

corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62

Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)

Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o

ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao

conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um

misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo

No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e

vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos

corpos

Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro

motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos

deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade

entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De

Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer

apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de

Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio

(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)

Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute

necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica

que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da

criaccedilatildeo65

O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada

acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute

repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute

62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148

45

O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que

proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para

cimardquo)

O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma

ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no

mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia

acrescentando ldquoespada e guerrardquo

Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual

os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg

110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo

O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o

reino se expande (lg 113)

O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo

contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro

Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu

maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma

posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)

Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla

dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem

fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)

Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma

oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute

A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute

encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como

ldquocarnerdquo (lg 28)

Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo

nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia

Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg

55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito

(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)

Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser

espiritual feminino (lg 105)

66Cf Idem 151

46

Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica

fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)

O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo

para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta

revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio

para escapar da morte

O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias

variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias

20 possuem um significado teoloacutegico68

Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As

referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado

defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees

psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo

do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70

A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no

Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais

como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de

ldquorepousordquo

Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg

59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)

A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica

assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute

O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das

tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado

Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento

religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia

de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos

comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este

evangelho

Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por

estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo

67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152

47

oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo

a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou

juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original

que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre

deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes

encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino

Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para

Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens

materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72

Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou

forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua

linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas

com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde

Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de

ensinamento religioso fornecido por Tomeacute

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo

O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua

composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o

misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar

quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal

heleniacutestico

A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar

iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso

Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do

sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno

do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito

assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo

O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas

mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo

71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)

48

Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os

Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o

Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as

elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da

Greacutecia claacutessica

Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os

nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas

cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma

profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com

a conquista islacircmica75

A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no

comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade

As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees

extensas incluindo franjas do deserto76

Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da

Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus

que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este

periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia

cultural persiste ateacute hoje

O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a

nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova

dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico

surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77

Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute

oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo

helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo

A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos

sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o

estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79

75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem

49

Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar

e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que

posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas

vezes esoteacutericas e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que

viaja com o viajante

De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste

meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma

revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual

Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e

traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do

Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como

eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas

religiosos deste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do

Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos

velhas crenccedilas e suposiccedilotildees

O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os

primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na

histoacuteria do livro ateacute Gutenberg

Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex

foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma

nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade

reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de

Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o

texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81

Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas

Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste

periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como

divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas

nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo

80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30

50

O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a

destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC

A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos

dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico

Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo

sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo

foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas

O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado

por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era

chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus

Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio

de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido

pela igreja dos primeiros seacuteculos

Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram

substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta

dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma

atitude miacutestica e interior da busca do divino

Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e

presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos

rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes

O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da

individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa

exegese interior

A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser

intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de

ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas

oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal

Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia

do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo

e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada

82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39

51

Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas

significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo

encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica

Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos

estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos

Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas

evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova

perspetiva sobre as tradiccedilotildees

A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original

natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria

original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado

ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a

narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo

O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da

histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os

evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute

O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes

documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as

comunidades tinham da figura de Jesus

Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando

recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu

kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria

Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus

num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de

ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do

impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam

relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e

ressurreiccedilatildeo

Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado

Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao

Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio

Eufrates

83Cf Patterson J S (2013) 10

52

A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos

que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser

completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84

Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo

comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se

encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute

parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na

grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a

norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura

literaacuteria antes do advento do cristianismo85

Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas

poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da

Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a

subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua

submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio

Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86

A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser

pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado

durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que

Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua

semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87

A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades

siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de

Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos

fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a

organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da

sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma

84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem

53

evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos

Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve

raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do

cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades

semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel

estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos

importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa

tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram

recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de

Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial

das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do

primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e

se misturaram90

Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria

ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos

primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura

intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo

de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto

oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas

feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial

do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros

ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de

quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os

pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo

Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um

entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da

tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida

88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42

54

como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu

manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da

sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos

poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta

experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram

no ocidente no outro lado do Eufrates

Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de

convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores

Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a

ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e

as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo

presentes em Tomeacute

Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes

para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a

leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso

natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica

entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de

violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus

se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente

harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos

O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de

cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que

desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da

vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e

valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo

O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de

interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel

da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o

futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da

identidade cristatilde

A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se

claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um

95 Cf Patterson J S (2013) 25

55

martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no

qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus

Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado

dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como

dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa

para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma

experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar

verdadeiramente a vida de Jesus97

No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo

um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos

pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes

eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o

Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este

Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o

ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se

encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado

A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-

se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia

de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar

da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si

proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante

diferente

O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do

segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu

pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e

cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da

criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da

crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de

pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do

periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os

quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil

96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30

56

O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que

esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais

unificadores99

O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo

A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e

o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos

cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma

platoacutenica100

Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute

notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia

centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo

geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as

vivecircncias em ambos os contextos

Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo

assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo

sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102

A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas

de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo

Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta

apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de

sabedoria

A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em

concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento

platoacutenico103

98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15

57

A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de

voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha

corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute

O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades

de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica

Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a

Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto

interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da

Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105

Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se

estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas

judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros

dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que

prosperava nestas cidades107

Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse

filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia

entre Platatildeo e Geacutenesis

Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1

na textualidade de Tomeacute

Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas

helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era

masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado

unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres

voltariam (lg 22)109

Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia

platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa

mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma

104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278

58

centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano

mortal (lg 29)110

Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido

dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e

para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111

O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao

reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo

originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)

ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg

50)112

O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no

ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma

perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e

perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres

passageiros113

O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de

vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria

contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo

Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e

os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de

Jesus em Edessa114

A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por

vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o

autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a

identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz

divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida

freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115

ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo

110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37

59

ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na

filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas

correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti

proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima

agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta

interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma

no iacutentimo do ser humano

Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de

Deus

Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois

seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e

Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o

iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte

divina ele conhecia o divino116

Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo

ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino

dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem

consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo

grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender

como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele

possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117

Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este

entendimento acerca da mesma maacutexima

ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi

feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os

fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do

universordquo118

116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)

60

Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos

platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os

aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada

Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-

se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as

perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-

se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus

suacutebditos

ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez

mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute

ouvidos a ti mesmorsquordquo 119

Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a

manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico

mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos

noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se

retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o

mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute

contemplaccedilatildeo daquele que eacute

Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este

ldquocasco de courordquo122

Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro

eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do

corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para

superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos

dois primeiros seacuteculos

Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o

risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute

Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem

O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo

empregando os termos teacutecnicos do platonismo123

119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477

61

Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de

descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam

tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente

O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute

Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza

humana e o seu destino

O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do

pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute

ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o

corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124

Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os

estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia

aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo

era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os

nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo

tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de

ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no

platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma

A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor

antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por

que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era

miseraacutevel

O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo

morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um

corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo

Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E

esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute

123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus

ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the

universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation

to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies

(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material

bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)

62

Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do

mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo

A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o

disciacutepulo mais digno do que o mundo

A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no

pensamento platoacutenico126

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo

A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese

apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a

investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um

montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho

judaico-cristatildeo127

Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo

apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de

Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde

(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos

judaico-cristatildeos

(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos

incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas

(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere

uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo

(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e

no cristianismo judaico

(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios

Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre

o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo

126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes

(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have

already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are

corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the

borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be

Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp

DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200

63

As seguintes passagens

(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV

963

(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145

(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad

Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3

(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514

Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da

Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute

a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada

Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de

Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute

Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos

estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute

O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do

nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras

de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado

como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128

Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto

porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9

(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo

ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)

Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c

7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio

Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo

Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho

Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o

judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos

128Cf Luomanen Petri (2012) 202

64

Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no

proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo

seacuteculo

A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e

duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e

quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo

Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma

cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos

Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma

exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso

A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra

aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o

repouso em Jesus

ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos

lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo

quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele

e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria

descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na

eternidaderdquo129

A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo

Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo

aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos

Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde

Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus

seguidores

Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma

voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter

dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho

dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus

129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322

65

ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-

me para a grande colina o Taborrdquo131

O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)

geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de

Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao

Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de

Jesus e a sua matildee verdadeira

ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132

Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente

nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma

teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute

- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e

ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas

Lg 24b

O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias

associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e

culturas

Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram

utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo

lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para

descreverem as suas experiecircncias133

Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas

experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou

lsquorevelaccedilatildeorsquo

A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como

visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma

131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2

66

viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas

preparaccedilotildees e rituais serem realizados

O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e

cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros

angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134

Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do

nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades

antigas para investigarmos a sua religiosidade

O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos

para denotar o fenoacutemeno cristatildeo

Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de

misticismo135

O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao

judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar

antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia

extaacutetica ou como praacutetica provocada

No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas

expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo

Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por

eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo

de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo

O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo

interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus

Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de

Tomeacute

Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque

pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um

texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute

presente no Judaiacutesmo do II Templo

A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria

do texto do Evangelho de Tomeacute136

134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7

67

O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios

ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica

Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros

trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica

Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos

formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do

templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a

realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees

As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na

literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria

na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da

Palestina de Yohanan ben Zakkai137

Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e

da especulaccedilatildeo hekhalot138

Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas

de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios

Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da

literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo

hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes

representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades

muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do

II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo

A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos

fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que

levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que

iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial

os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu

numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que

vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos

esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da

Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos

palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica

e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2

68

cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas

biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma

autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos

tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma

audiecircncia contemporacircnea

Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas

ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo

a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras

A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que

podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute

Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus

conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo

situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos

Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e

revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias

encobertas no interior das suas escrituras sagradas

Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia

Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica

A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta

tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10

40-48 Dn 7 e Is 6

Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura

produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos

A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e

na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos

Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de

temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da

evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em

textos de eacutepocas diferentes

139Cf De Conick A (2006) 7

69

Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta

as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute

associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140

A Gloacuteria do Trono

A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central

desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo

Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente

secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada

ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo

com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)

de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas

escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142

Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial

feito por dois querubins

No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute

apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos

Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias

histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute

sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos

O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite

brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo

assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta

veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado

Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras

cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co

44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus

que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-

140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8

70

23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do

templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144

O Templo

A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de

Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os

Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do

que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia

Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete

parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais

sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145

E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das

mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do

templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146

A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis

desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas

natildeo realizadas

As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da

criaccedilatildeo da humanidade

Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e

ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de

luz147

Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo

percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no

Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As

tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser

Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148

144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem

71

Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o

primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter

sido um reflexo da Kavod

Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico

Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do

que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de

encher todo o universo de um extremo ao outro150

ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]

pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel

b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o

despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro

lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse

Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a

oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do

pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos

cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave

transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos

conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da

ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e

tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de

forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152

Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da

morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente

Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os

Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as

epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades

envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no

momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na

149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21

72

liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias

ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153

Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais

antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute

15 19 37 50 59 83 84 108)

As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da

esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma

experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de

transfiguraccedilatildeo

Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os

ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees

de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de

uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no

trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154

A Merkavaacute

O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo

que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo

miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos

Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim

de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca

O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como

as fontes esoteacutericas mais tardias referem155

Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de

Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico

de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se

movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel

1014-15 com o querubim do Templo

153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30

73

Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave

presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-

se ao templo por outros meios156

A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel

encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe

mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma

ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25

Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em

duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio

de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos

Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus

identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser

vivente do profeta Ezequiel

A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus

o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o

universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-

se presente nesta literatura157

Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o

mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte

mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas

como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158

Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e

a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e

descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo

concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute

156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo

tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)

com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos

trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o

cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea

dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos

sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos

Santos

74

O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da

arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem

alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em

Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que

em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la

caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo

Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que

rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160

Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de

Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas

maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos

que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161

Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas

natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de

cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162

Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de

hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos

Cacircnticos do Sabbat163

Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e

recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era

necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos

que eram inscritos com os nomes secretos de Deus

As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o

templo e o cosmos eram estruturas opostas

As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo

a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para

o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande

santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas

planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e

da Sumeacuteria

160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170

163Cf Idem

75

Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo

era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem

quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F

Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com

a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos

praticantes de hekhalot

ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de

certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos

anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo

nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e

canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras

interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse

viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166

Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no

Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I

seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um

rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167

A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se

bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168

A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O

Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo

assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas

do caos no terceiro dia169

Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi

criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo

164Cf Idem 171

165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and

Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21

76

ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)

Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo

O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo

assim tu faraacutes o tabernaacuteculo

De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas

bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo

fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo

as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de

terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do

corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas

na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo

uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo

os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio

do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o

firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as

aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170

Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem

documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o

pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute

O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do

homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos

vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos

poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios

corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu

proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava

Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute

estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram

compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano

O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do

corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos

escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas

estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e

angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute

170Cf Midrash bereshit rabbati

77

frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome

divino171

Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o

miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na

presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se

entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem

Divina da Gloacuteria

O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o

autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo

este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica

No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com

este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na

atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o

puacuteblico a que se destinava

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute

O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e

interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite

definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica

Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por

si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda

Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo

primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no

final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis

descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim

Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

(Lg18)

A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo

que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial

que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas

dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que

171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175

78

representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias

a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos

primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)

Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses

por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia

de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que

estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para

ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se

ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)

Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais

respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se

vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu

de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem

sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem

qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)

Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia

visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus

disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco

aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas

caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)

Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos

miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa

esta realidade no jardim do Eacuteden

Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma

crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas

crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino

Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o

exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e

o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo (Lg 22)

79

Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as

vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um

tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco

No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os

disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te

revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como

as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo

temereisrdquo (Lg 37)

O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do

corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos

natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu

ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)

A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que

a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes

no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas

quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)

Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia

platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas

simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem

Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial

do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo

Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus

O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara

Nupcial

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37

ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos

Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos

vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os

espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo

80

Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que

apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais

1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver

o Filho de Deus sem ter medo

Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao

ceacuteu numa linguagem encratita172

Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora

comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo

baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321

Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de

peles e eles vestiram-nasrdquo

Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173

Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou

ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o

sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco

Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute

difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo

Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de

pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo

Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos

neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da

carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo

O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute

um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175

Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se

revestir destardquo176

Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9

que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas

E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra

172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem

81

E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim

E o Senhor renovou-me com a sua roupa

E me possuiu com a sua luz

E do alto me deu descanso imortal

E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos

E eu despi-me da escuridatildeo

E vesti a luz

E ateacute eu mesmo adquiri membros

Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento

E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito

E eu removi de mim as minhas vestes de pele

Porque a tua matildeo direita me ressuscitou

E fez com que a doenccedila passasse de mim177

Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um

ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de

libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus

Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica

Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de

pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo

A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus

anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou

selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando

vestida torna aceitaacutevel diante de Deus

Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo

com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal

No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de

Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o

ldquoselordquo no Nome178

Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-

se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo

ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E

eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo

177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126

82

Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e

transformado num anjo da face

ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele

[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para

ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181

Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram

uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA

nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do

corpordquo183

O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm

que ser despidas sem vergonha

O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis

Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e

Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os

olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha

Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que

ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se

sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos

O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito

especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que

o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu

ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma

criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era

controlado pelos impulsos sexuais184

A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual

deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-

caiacutedo ausente de vergonha

179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134

83

Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as

vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma

pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda

daacute outro elemento sobre o ser assexuado

ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o

interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num

soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando

fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de

um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como

sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo

Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que

era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a

idade adulta em primeiro lugar186

Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento

ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187

De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo

periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188

Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era

uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo

foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189

Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que

renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico

preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190

Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada

pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam

185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes

a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do

campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e

devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos

Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135

84

As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a

experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o

objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus

Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de

Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191

Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De

mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a

existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte

e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio

Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto

retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a

essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo

Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o

homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave

esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo

material

Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde

Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque

despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo

Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias

estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193

O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos

gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do

rosto de meu Deus para sempre194

Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas

ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar

o seu corpo

191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por

Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a

Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as

conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas

materiaisrdquo

192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10

85

O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu

nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia

visionaacuteria

No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque

que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes

celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico

Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-

escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra

sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho

de Filipe 1 34-35

ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo

Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo

total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta

forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho

transformando a sua alma

ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo

sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo

No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o

mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada

encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa

experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave

entidade divina que tinha visto

O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma

crenccedila antiga presente no mundo antigo196

195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42

86

Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua

experiecircncia religiosa

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50

ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz

procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens

Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se

vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um

repousordquo

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um

fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na

interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis

perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria

Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se

manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era

segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz

A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada

primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo

Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn

13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus

tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja

luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus

sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes

da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham

o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a

sua proacutepria luz198

Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes

da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da

imagem do Logos

197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66

87

A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus

explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse

sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo

De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz

primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis

O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se

aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos

seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos

Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos

anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como

os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl

82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um

de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn

127)rdquo

O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o

homem agrave imagem dos anjosrdquo

Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126

que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva

Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante

tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de

ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo

A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma

forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no

nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200

Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse

ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma

substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e

tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se

assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto

como a forma do invisiacutevelrdquo201

199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443

88

O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas

letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado

de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas

eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer

1141 Epiph Pan 34 47)

Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome

divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial

manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram

pronunciados agrave sua imagem202

O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de

Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo

ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a

luz do universo

No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de

lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno

de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos

o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo

Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma

realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo

alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior

Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do

Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem

trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto

estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-

me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo

(12827-30)

O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo

filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo

regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)

Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176

89

Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que

regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser

porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no

Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo

O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de

Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco

aacutervores

Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do

Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204

Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que

constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute

o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco

virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo

alcanccedila virtude e imortalidade

As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando

vestes de luz

E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor

Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram

Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal

E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna

Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra

imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver

nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores

como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da

ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso

Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes

com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o

autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo

domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205

204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83

90

Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do

paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da

imortalidade

Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim

comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma

aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito

de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica

de coisas legiacutetimasrdquo (198)206

As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a

alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do

pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e

corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves

virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas

leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda

adacircmica

E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute

existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma

com as virtudes paradisiacuteacas

O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque

vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada

ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os

eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis

novamenterdquo

No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e

manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16

ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai

contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios

(monachos)rdquo

O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este

ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com

a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos

206Idem 85

91

Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo

diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207

Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos

ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus

Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono

celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe

ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade

Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma

situaccedilatildeo num hino samaritano lemos

Ele Deus permanece para sempre

Ele existe ateacute a eternidade

De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio

Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como

Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208

Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes

se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser

angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina

Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto

angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz

aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute

paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar

uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden

Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e

inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e

adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus

e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo

ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado

angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na

natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte

207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718

92

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59

Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica

encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a

manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o

miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o

A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem

cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este

encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser

alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo

desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria

ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o

vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo

(lg 83)

A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos

que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele

prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo

Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial

e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque

224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209

O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica

presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da

humanidade

Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir

por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo

209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a

93

relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido

no ventre de uma mulher

ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos

humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a

luz gera-se a si mesma

O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a

imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto

que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod

escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na

tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que

se revelava aos miacutesticos211

Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos

anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah

A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus

esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da

ldquoGrande Gloacuteriardquo

A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum

dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo

flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212

Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio

soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213

Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou

Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a

aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)

A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse

visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e

trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo

Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7

ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33

De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e

incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no

211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104

94

entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto

ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute

cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214

Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era

abrangida pela sua luz

Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte

verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma

alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo

pode ser percebida diretamente

Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg

83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute

oculta na sua proacutepria luz215

No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica

que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do

disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)

Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos

devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos

Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus

durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a

imortalidade

Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas

homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo

Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta

uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta

imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a

imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e

aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto

nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do

214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105

95

Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado

esquerdordquo (Hom306)216

Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute

paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma

experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como

diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria

luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu

interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um

corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve

ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o

conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre

as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino

5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no

seu mundo simboacutelico

Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara

Nupcial

Lg 75

Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas

ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em

Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia

visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o

conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto

A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o

maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente

levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta

Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de

Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um

fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem

216 Cf Maloney G A (1992) 191-192

96

O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de

Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e

cristatildeos numa fase emergente

As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as

encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de

Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar

Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a

natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo

Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a

sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o

peso e a grandeza desta memoacuteria

Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas

que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada

sem excessos ou divagaccedilotildees

Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas

uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial

Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a

investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as

mensagens contidas nos outros logia

A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos

do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico

A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do

Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden

O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do

percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado

nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial

Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos

que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas

Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam

as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos

Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus

criador e personagens com nomes hebraicos

Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas

questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos

97

Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que

antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de

Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental

As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave

obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao

Templo de Jerusaleacutem

O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do

Templo a niacutevel simboacutelico

O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era

transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram

os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes

conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo

deste processo revolucionaram as suas religiotildees

Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta

influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo

apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a

simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem

Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos

questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo

olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos

ciclos da vida

A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o

encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a

adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217

A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num

calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas

formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218

O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas

combinadas e sincronizadas

217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem

98

A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do

sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do

ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-

calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal

preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e

ciclo sacrificial221

A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais

complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute

traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito

memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222

Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do

Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento

simboacutelico da realidade do Templo

Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de

modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica

do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e

terrestre pelo serviccedilo sagrado223

O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do

Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos

escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se

Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e

reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa

Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo

fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo

ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos

ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a

redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade

centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224

219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio

vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de

cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6

99

Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da

inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-

se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de

tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do

calendaacuterio

A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo

canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do

Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria

viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e

Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque

Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos

anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada

dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou

sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua

marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que

descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos

sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos

soprar o shofar e prostrarem-se227

O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam

os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se

vivas

ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras

espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo

vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas

225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos

ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute

descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da

terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual

com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre

a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute

ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados

antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica

e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os

sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do

ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos

perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13

100

cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as

cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos

Santos (hellip)

As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das

maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da

cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas

com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo

vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta

dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-

todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228

Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o

cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos

separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O

espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de

uma realidade eterna

Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que

aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente

Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa

forma simboacutelica e narrativa229

Eacuteden

O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais

interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim

como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o

paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)

Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a

partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do

Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma

humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da

mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo

estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes

228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57

101

na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes

do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem

criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se

manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do

outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe

ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a

Origem do Mundo)230

A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute

a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao

Eacuteden

Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai

Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria

Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila

do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico

Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais

antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos

aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231

Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo

como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo

gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito

da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico

neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos

gnoacutesticos

Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos

constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram

Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que

tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram

Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o

significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem

deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)

230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103

102

O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser

considerado bom como o Eacuteden inicial

O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter

especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo

havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo

poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual

O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas

sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da

textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o

sentimento hebreu para com o Eacuteden

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim

Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o

iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e

natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)

ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa

expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai

estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os

israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era

apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma

descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido

O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar

do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente

considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo

unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da

montanha coacutesmica

O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o

firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze

enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da

largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente

representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio

103

era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair

que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos

Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita

para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232

Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o

mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o

maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b

Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio

Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem

afirmou que o paacutetio exterior representava o mar

Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e

entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos

Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos

Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos

homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)

Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo

associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel

que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon

de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior

O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade

estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo

2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece

entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do

criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees

que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os

mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)

sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu

povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve

o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)

mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema

natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da

criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste

232Citado em Barker Margaret (1990) 61

104

para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo

(Ecircxodo1517)

Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento

hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo

do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo

a partir dos mares primitivos

Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos

primordial233

O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das

visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel

de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de

entronizaccedilatildeo

Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas

surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram

autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)

Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus

antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e

derrotado (Isaiacuteas 519)

O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em

tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo

nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4

Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na

qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da

montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor

O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui

aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se

encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono

celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute

que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao

redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)

Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do

Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)

233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522

105

ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado

com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu

nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse

152)

O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o

firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo

O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o

jardim de Deus no livro de Ezequiel

Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal

do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim

seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em

mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo

material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre

necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia

O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era

frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado

Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha

sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em

que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro

Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa

(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o

poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234

Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas

explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade

disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo

quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)

Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua

vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do

Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no

Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava

simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira

como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo

234Cf Barker Margaret (1990) 61-69

106

De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios

querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e

uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo

Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do

templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo

numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras

(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel

4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-

12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em

outras partes da Biacuteblia Hebraica

A Fonte da Vida

Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz

Salmo 367-9

Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e

ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a

construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde

e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se

sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes

cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos

varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de

ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que

tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material

lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em

todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista

o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes

recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus

poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era

235Cf Ginzberg Louis (2003) 162

107

devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o

santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua

ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo

em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o

mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o

mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado

para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao

ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no

segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que

estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o

mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia

no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como

alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O

candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua

criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o

Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no

quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No

sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o

seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante

de seu Senhor e criadorrdquo236

A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo

VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado

em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes

colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para

o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor

dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)

Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da

fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade

ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem

prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)

236Cf Ginzberg Louis (2003) 150

108

Os Rios do Paraiacuteso

Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em

quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas

vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre

associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo

O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do

Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a

um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos

Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica

no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias

semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na

montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele

que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute

um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em

majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas

visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a

fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da

sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo

no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro

de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo

isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da

porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e

tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores

cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para

eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da

fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade

com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta

oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda

do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica

a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem

metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no

veratildeo como no inverno

109

E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome

um (Zacarias 148-9)

O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os

Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu

cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam

No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de

Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a

aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas

da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)

Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos

paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio

No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos

Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando

ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da

festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a

mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de

aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber

(Joatildeo 737 -9)

O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios

serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a

simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era

quase sinoacutenimo do Espiacuterito

Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham

adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de

Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis

12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria

foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)

Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a

com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele

(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de

especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum

onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)

A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e

como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o

110

Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a

luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)

Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea

para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e

como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o

meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar

(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios

do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque

confirmam esta associaccedilatildeo

Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono

Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada

completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho

do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante

ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque

dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem

de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele

(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor

descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e

vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)

O Veacuteu

ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos

dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a

esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram

reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser

tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]

antes do templo sagradordquo

Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono

dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo

que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas

Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da

experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido

111

uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como

saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido

As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente

tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu

representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as

vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava

Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da

encarnaccedilatildeo

O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o

lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo

visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade

As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como

parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos

e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia

do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo

Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado

Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos

dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos

alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do

templo

O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8

mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de

puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)

Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da

mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido

Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1

ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado

Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se

havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-

sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o

comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o

primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia

entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de

duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de

112

modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi

colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado

norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua

esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas

grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de

espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia

vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de

vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em

cada ano (Mishnah Shekalim 85)

Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e

sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila

forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para

a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este

veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de

Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias

descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia

haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada

por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)

Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade

viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus

despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que

a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde

um rabino do segundo seacuteculo a viu

Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose

Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas

satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)

No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado

ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica

com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma

habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico

tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da

terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo

113

Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma

que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama

dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)

Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual

Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave

sabedoria do templo ou era algo antigo

A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi

coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim

foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada

espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que

poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas

(Antiguidades Judaicas III124 126)

As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o

linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez

que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o

carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)

Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade

cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo

(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este

simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute

como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de

toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais

166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO

que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo

siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo

feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais

excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador

de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de

[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre

Ecircxodo 1185)

Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que

separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um

palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas

quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao

114

dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este

veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo

sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos

transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal

como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E

satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e

inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis

(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)

A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu

(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da

cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram

vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos

elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra

azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina

tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3

Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo

Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi

descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O

veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a

invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de

como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem

do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os

elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa

compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da

vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da

realidade subjacente ao tempo237

Por Detraacutes do Veacuteu

Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar

onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era

237Cf Barker Margaret (1990) 104-107

115

eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz

lm

Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram

apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores

descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu

toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele

O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto

que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha

sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente

Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial

Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do

Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo

impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar

ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo

da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir

Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel

quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees

ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)

O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma

visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu

ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava

Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o

verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das

vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o

escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do

veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)

Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do

veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus

Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os

profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica

da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos

agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para

um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

116

pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1

Henoque 873-4)

A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre

como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu

posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute

e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a

visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda

visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda

espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)

Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram

patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado

simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio

Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o

paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)

O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos

Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do

segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o

santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)

As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre

o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou

retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti

e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque

34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o

mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido

deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e

se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as

extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que

estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)

A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de

Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da

Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no

modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-

lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o

117

nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo

das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)

O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material

e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da

presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do

Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais

esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute

chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar

que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que

fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)

Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel

para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O

debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi

construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses

mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238

ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e

o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)

Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano

Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees

simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o

proacuteprio Jesus

No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais

iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos

celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus

misteacuteriosrdquo (lg 62)

O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do

veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o

imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da

cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido

por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos

falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por

traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe

238Cf Barker Margaret (1990) 127-128

118

Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que

ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro

Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem

semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)

O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros

lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o

nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah

12b)

A Grande Luz

ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo

proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai

a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)

ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute

privado do Todordquo (loacuteg 67)

No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas

como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na

criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se

oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de

Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de

Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute

vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta

expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa

para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre

os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os

disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza

com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente

239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram

por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo

vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que

morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo

119

O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz

do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo

deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como

expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave

figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria

criando iluminando e penetrando todas as coisas

Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm

a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave

sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia

Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor

da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua

bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em

Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num

movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga

o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo

regressa

Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que

atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma

imanecircncia divina no mundo e no homem

Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a

procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado

para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um

aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da

criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31

Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca

primordial o tempo antes do tempo

A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que

encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg

19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido

242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26

120

O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o

termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2

da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244

A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee

mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que

existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e

77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as

coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser

humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no

interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de

Deus (lg 3)

A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida

em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em

que este se situa e estaacute presente

Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo

judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser

concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute

Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com

siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo

Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes

pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino

podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no

Evangelho de Tomeacute

O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz

em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute

244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute

necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de

um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros

do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o

Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios

entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos

conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3

121

O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do

Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor

lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que

Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo

(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-

nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)

Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que

andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque

vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo

cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua

gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)

A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma

das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC

Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo

(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute

desoladordquo (Daniel917)

A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os

raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono

dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este

simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao

templo

A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel

veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou

com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada

para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do

Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora

quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para

iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)

Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os

meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e

evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente

nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute

248Cf Barker Margaret (1990) 148-150

122

diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes

detentoras do conhecimento

Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo

encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute

tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo

Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos

pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes

da religiatildeo do primeiro templo

O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os

profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das

visotildees dos profetas

Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No

Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como

emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse

Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo

haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1

A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no

livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249

Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia

grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo

apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees

generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)

A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica

abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro

249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o

pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeus e Parmeacutenides

123

diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash

que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252

Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que

descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus

declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o

vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e

61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da

condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo

ldquodivididardquo privada da imagem divina

Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11

e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial

anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo

As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam

bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253

252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem

Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo

Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70

Para traccedilarmos a exegese do Evangelho

de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo

presentes em Geacutenesis devemos procurar

ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a

hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo

dispostos de forma aleatoacuteria

No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele

que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o

poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes

(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute

recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo

(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco

a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram

atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os

governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos

como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com

a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg

4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete

diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia

da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer

(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo

um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente

concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e

relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha

com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos

como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo

humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando

Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser

124

Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a

luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda

a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz

manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que

fala na primeira pessoa com uma voz humana

Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em

simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por

todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute

uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o

protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254

A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de

modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A

atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do

espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso

divino no seacutetimo dia

Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus

atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende

aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se

encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior

254Cf Pagels E H (1999) 484

singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o

homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e

fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo

causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando

chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas

eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia

presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a

unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz

125

ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os

disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta

dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute

ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas

oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela

sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo

conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor

pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico

que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a

humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina

Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos

duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo

A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a

fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos

era bastante comum no seu tempo

A Imagem e a Luz

ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Lg 22

A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas

da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada

pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida

Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho

de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes

conceitos

Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma

experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu

sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo

Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um

corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser

255Cf Idem

126

humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns

pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original

arquetiacutepica

Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no

com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido

o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257

Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de

Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele

argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo

sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos

evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do

judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem

quanto suportareisrdquo259

O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado

primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a

existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da

pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um

objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser

humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento

divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia

afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino

Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois

Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem

celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem

criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da

Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11

Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam

256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158

127

ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo

natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou

com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim

do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job

1420)rdquo

De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre

Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu

mudei261

Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como

cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo

brilhante que ateacute superou o brilho do sol262

Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus

criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da

queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda

Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b

O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O

espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele

O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a

Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263

Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que

foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem

(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma

interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a

sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo

luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que

imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado

No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe

uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem

De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden

entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo

261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18

128

tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz

eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo

Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou

no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso

63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e

viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem

estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante

delardquo266

Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que

encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente

vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que

tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do

pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que

estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido

da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute

perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja

claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva

Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267

O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um

processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como

resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem

Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica

um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava

retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106

ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois

um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial

A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem

ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma

ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos

265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223

Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do

trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais

antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o

homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160

129

dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a

Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se

depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e

adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268

Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim

necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem

quanto suportareisrdquo270

ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser

digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271

Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute

Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as

imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo

num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo

manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272

O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo

relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)

numa imagem (imagem) para entrar no Reino

No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem

da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das

imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo

pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-

nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo

inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo

Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees

coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se

268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63

130

manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a

imagem dessa luz273

Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes

conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos

que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)

esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as

outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser

humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a

luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que

falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e

condenado a provar a morte274

O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa

imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84

menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas

beatitudes nas lg 18b e 19a

ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a

morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276

Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial

ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277

ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na

Cacircmara Nupcialrdquo278

A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de

Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e

retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo

subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de

Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que

273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63

275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75

131

interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da

lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas

proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta

do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)

Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que

ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus

responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que

borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha

boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-

lhe-atildeo reveladasrdquo280

Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as

palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara

Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)

estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute

designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo

representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104

e cada alma unir-se-agrave a ele

Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um

estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado

por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial

estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o

casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa

o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da

histoacuteria

Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem

simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o

jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o

final dos tempos

Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do

estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em

279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487

132

que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis

saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)

Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de

unidade

Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e

por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs

grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo

transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute

a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a

uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de

Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre

o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem

procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas

Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial

primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e

ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute

natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se

oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o

disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas

se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle

disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz

e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)

Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz

oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial

O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento

salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante

Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos

lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que

estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem

Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da

experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo

de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de

preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe

instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais

133

No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura

analisada e aos evangelhos sinoacuteticos

O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora

acessiacuteveis a todos os que as buscarem

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo

Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave

porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca

de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles

transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)

134

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho

carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo

interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo

entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284

ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que

vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam

como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que

estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim

consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu

Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo

Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da

imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na

presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em

fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos

pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda

Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a

carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila

para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285

283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162

135

Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon

sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu

uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou

consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os

raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que

gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex

227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex

240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos

luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de

Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo

Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma

ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente

meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas

ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas

de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de

nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos

ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao

redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o

queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo

Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus

hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal

Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104

Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o

olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo

traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo

causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo

acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de

fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do

sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio

286Cf Idem 106

136

ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode

recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a

imortalidade (αθανασίας) (104)

No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda

muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim

conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente

transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento

esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por

meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia

Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser

deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287

Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave

experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem

natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do

que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que

a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas

sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288

Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus

estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o

fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa

Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se

encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute

perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial

Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento

central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos

Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute

ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da

imagem da luz do Pai

Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz

da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na

presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus

ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder

287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108

137

transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores

estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila

judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam

esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus

O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma

de misticismo transformacional

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289

Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a

revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos

como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte

da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os

sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os

justos os santos e os escolhidosrdquo

Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos

santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os

segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria

ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila

pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a

injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291

Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147

em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles

estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras

tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem

recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do

conhecimentordquo292

Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no

lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293

289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81

138

A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a

aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave

linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo

em 4 Esdras 1438-41

ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a

beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida

estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi

e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a

minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a

minha boca foi aberta e jamais fechadardquo

Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire

conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para

descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca

eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do

fogo

Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a

condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84

explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras

palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si

mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe

eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294

A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar

fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino

Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes

tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me

intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa

ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se

natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296

294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93

139

As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia

comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que

emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si

mesmo297

Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano

no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298

Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da

existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos

conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima

intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem

do corpo no Evangelho de Tomeacute299

O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e

antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus

supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito

O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte

de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se

aprisionada no corpo humano

O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na

qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica

interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes

(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em

Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo

Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo

sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo

cultural heleacutenico

Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta

temaacutetica

A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente

com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que

encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma

297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54

140

compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e

enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento

Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg

568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)

O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento

afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida

Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e

ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na

exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de

contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute

ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo

(Lg 112)

ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que

depende destes doisrdquo (Lg 87)

O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne

sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)

ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos

alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os

nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos

que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do

corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo

Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de

escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e

Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma

Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que

ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira

afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo

seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute

ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301

Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como

uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia

300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59

141

resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria

entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da

filosofia greco-romana302

O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma

condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo

que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois

corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta

interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303

Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um

corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever

Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de

Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural

Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma

plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende

do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo

universal

A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um

indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do

asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias

restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior

Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a

descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do

mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas

lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma

compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo

experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores

sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si

mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de

Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo

pessoal

ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que

conheceram o Pai em verdade

302 Cf Idem 60 303 Cf Idem

142

Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o

tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)

Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos

inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a

vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente

Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304

O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento

preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-

se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos

ldquomovimentos de Jesusrdquo

Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o

homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo

apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de

perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe

que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados

De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que

encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e

reinaraacute sobre o Todordquo

Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando

sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais

notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus

existem na sua forma concreta como um texto escrito

A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo

por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete

repetidamente no seu significado

ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo

corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)

304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273

143

Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo

Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual

seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo

esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta

eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a

realidade fiacutesica em termos de origem307

Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o

homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de

vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29

corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que

o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave

animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a

prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que

atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a

lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310

Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos

eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase

em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e

guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social

(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo

autorizadas

6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no

evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido

na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus

iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas

espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita

existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que

explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo

de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era

144

gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de

gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria

Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia

gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo

interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode

salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de

Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312

O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro

autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia

gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo

eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia

Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o

conhecimento de Deus

Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas

disponiacuteveis em Nag Hammadi

ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu

a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313

ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde

e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo

o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso

O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de

onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da

sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314

A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser

humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua

realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino

considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a

sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo

contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos

estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo

religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 149

145

Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a

iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as

realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo

O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees

no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo

de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as

ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo

Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como

a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de

escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas

geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes

que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes

livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de

interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram

deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315

Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas

uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual

As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram

comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da

antiguidade

Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental

influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel

transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado

apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas

Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como

verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees

O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em

concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos

leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega

315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus

146

Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a

novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo

da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido

Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no

autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender

que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo

Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros

revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam

entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam

assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual

A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual

gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute

agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a

difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento

distintas

Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica

Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita

no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se

encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma

ortodoxia definida

Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a

experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior

de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e

adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro

de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras

sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes

Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que

surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros

contextos

Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o

gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo

signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se

assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem

147

Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo

se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316

seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que

possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da

experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta

temaacutetica317

O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas

doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais

abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual

do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo

apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e

como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma

questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma

exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com

revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender

As variedades da experiecircncia gnoacutestica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem

pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do

conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do

segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito

(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a

interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a

descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da

histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador

dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos

Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o

gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem

algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da

mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no

pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo

316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)

148

este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a

alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento

evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas

Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma

conotaccedilatildeo positiva318

O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este

adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e

operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o

conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo

Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que

alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de

Deus e das verdades superiores

O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter

trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade

de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como

ldquoa gnose que nos foi dadardquo321

Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os

acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes

uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica

definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada

chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322

Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios

fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro

lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -

falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir

que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia

perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de

Valentino e a sua escola

318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem

149

Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos

valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as

doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325

Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo

especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos

O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma

designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria

Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo

num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria

Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo

ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo

era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes

conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus

Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento

gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque

preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais

corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as

manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos

gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326

No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos

espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo

mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro

lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se

a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327

A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por

gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim

como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328

Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de

situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade

foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a

325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12

150

designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos

orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo

perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados

para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma

particular de viver a vida

Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas

respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana

Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo

para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo

Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os

gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu

tempo

Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees

entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica

Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos

sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico

geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses

conhecimentos esoteacutericos

Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e

espiritualmente conhecimentos superiores

O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos

primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas

escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era

comum

Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico

isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o

gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329Cf Idem

151

problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava

separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens

deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar

de libertaccedilatildeo

Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos

tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso

O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o

conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas

No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano

nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a

salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus

Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm

conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em

Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente

A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos

descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para

voltar ao estado da imagem divina no corpo humano

No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz

gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de

iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto

perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo

Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito

gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico

O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de

pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de

conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente

O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a

lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura

encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza

gnoacutestica do evangelho de Tomeacute

O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem

humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino

satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico

152

Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou

na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu

pensamento

ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou

Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos

onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o

que constitui um renascimento [real]rdquo

- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782

Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos

do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo

A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua

mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve

em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas

Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332

ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes

da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial

apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do

antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde

todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo

330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash

Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e

dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo

encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma

criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos

apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de

Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo

primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio

metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-

lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o

pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim

e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis

153

de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo

com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que

chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz

primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo

retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua

substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que

superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)

recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos

(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo

humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu

no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo

estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de

facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira

pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos

os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma

emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e

a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos

disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um

movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos

inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis

dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que

interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina

dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar

Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a

questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o

procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e

ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24

154

o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo

146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a

luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao

homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua

imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem

divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos

nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo

para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma

parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a

forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no

quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo

pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a

exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335

Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua

ideologia religiosa

7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute

Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica

sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do

evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente

considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias

diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de

natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico

descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases

fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute

A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute

e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e

metafiacutesica entre o ser humano e o divino

335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27

155

A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos

tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos

fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do

nosso pensamento

No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da

unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por

excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma

correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e

antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia

ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o

conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades

superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser

unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que

natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo

aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da

gnose338

O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de

Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da

experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade

antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade

metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339

Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da

perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo

reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os

fenoacutemenos da existecircncia

Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus

quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial

Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas

vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de

gnose

337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem

156

Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de

solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o

processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a

solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo

dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral

Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo

gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa

Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a

um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute

os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o

conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial

Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado

atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os

temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo

associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial

A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute

eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)

Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de

pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este

padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho

O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da

tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de

Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal

No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema

da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus

correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340

Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico

essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus

Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que

a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a

Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma

mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria

340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817

157

ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo

abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis

A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e

penetrardquo342

Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita

com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a

Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela

aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do

Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e

transcendentes

A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria

e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da

qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu

aspeto de Sabedoria343

Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo

miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas

O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante

agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes

faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata

obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes

tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga

eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano

Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute

esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da

racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores

ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a

imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344

342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817

158

Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no

coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do

seu interior

Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor

da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes

exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna

possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar

a sabedoria e o conhecimento de Deus

O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura

intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado

idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia

paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de

separaccedilatildeo entre o divino e o humano

Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a

humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria

humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo

deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento

religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai

eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante

deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu

papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o

sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e

do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel

e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo

Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no

pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento

Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute

de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de

Tomeacute

Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu

pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a

escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma

realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse

159

Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro

estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas

doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como

conclusatildeo

Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos

as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de

Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora

nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses

A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial

assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo

Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da

linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca

Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-

existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo

(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e

fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)

Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de

todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa

evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo

eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara

nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser

humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No

dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que

fareisrdquo347

A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos

disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348

345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18

160

Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento

de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo349

Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar

no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu

pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio

A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se

alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave

eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos

atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no

conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente

A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o

inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da

compreensatildeo

A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua

lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino

conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade

Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da

interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio

Jesus Vivente

Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo

da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do

corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como

intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um

conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que

inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento

Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que

inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo

Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da

leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave

consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos

349 Log 1

161

Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos

duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede

de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria

Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um

reino de luz primordial em que o ser humano era majestade

O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o

humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se

unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24

61)

Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve

os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo

Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a

imagem e a luz

Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo

menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente

Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da

cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro

estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando

analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto

do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido

Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai

receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo

tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350

A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos

seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica

Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram

revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua

imortalidade

A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria

assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar

mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo

350 Log 19

162

mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma

interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo

A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir

para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o

casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade

Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar

forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do

divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de

pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as

implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias

Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente

em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo

como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu

interior o disciacutepulo salva-se (log 70)

Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o

exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece

sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade

alinha-se em conformidade com essa luz primordial

No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como

ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de

Israel

Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de

Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia

ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do

templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria

Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo

miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas

realidades celestiais

Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o

momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica

Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a

uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a

unir-se com o divino

163

No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos

evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas

religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do

saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351

A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais

sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades

a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma

privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do

Reino

O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido

como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos

laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os

que conheceram o pai de verdaderdquo352

O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo

ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353

A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita

a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o

terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua

memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de

unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica

expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua

organizaccedilatildeo

Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no

coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)

Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda

reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do

mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo

que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma

351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59

164

meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo

visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai

A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no

Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os

elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados

em Tomeacute

Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se

encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades

interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo

Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo

o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial

O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio

concreto onde ela se localize

Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute

um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de

quem a aborda ela expande-se ou contrai-se

Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da

minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas

ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354

A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia

o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo

A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo

que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem

Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de

Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591

165

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos

nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara

e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e

entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no

Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios

O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na

divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a

distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo357

356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82

166

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358

A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de

experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos

miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel

contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos

que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma

como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o

divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia

interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo

comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num

desejo de transcendecircncia

8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute

A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada

sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia

dos vaacuterios resultados apresentados

Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma

hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos

entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns

na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da

existecircncia humana a sua origem e o seu destino final

Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo

metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do

secreto

A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da

tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo

358Cf Deconick D April (1996) 105

167

Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o

evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na

Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da

literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas

Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso

sapiencial da Sabedoria

Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do

Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute

O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por

parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a

forma como o mesmo mito era interpretado

O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para

as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden

Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de

gnoacutesticos

A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis

aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois

mundos que convergiam neste debate

O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do

adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo

mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo

mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu

mestre

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)

Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus

A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste

loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos

de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila

divina interpretada com o simbolismo do templo

Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o

santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas

Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a

se transfigurar na mesma

168

A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes

da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese

facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do

significado da cacircmara nupcial no evangelho

Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde

existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua

redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em

Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo

celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto

encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do

evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do

templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica

Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental

na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na

tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em

oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do

evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a

sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada

como base ideoloacutegica360

No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne

onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era

impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o

proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade

Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens

afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra

Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como

uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)

Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na

cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde

tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio

poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai

tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um

359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274

169

reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas

teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como

Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto

Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para

entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos

Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso

de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza

divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino

Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos

outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute

A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a

unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus

A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para

integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo

A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion

22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o

de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino

natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de

um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em

lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da

transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362

Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo

com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma

imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363

No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a

Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas

seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a

imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que

361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os

humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres

humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser

divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente

fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438

170

concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem

divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que

Cristo eacute

Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg

22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho

natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser

assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser

transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)

A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no

evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos

dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um

chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma

natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no

seio da luz (lg 11)

Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa

situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave

identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute

estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a

derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o

mestre

ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele

e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito

ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de

Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica

da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que

entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)

O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira

instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos

ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de

traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes

leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida

Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente

descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que

Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores

171

Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho

por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes

Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de

compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus

textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees

orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que

estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos

apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos

Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de

Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque

Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo

grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus

textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden

que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem

Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe

permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam

despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se

ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que

prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos

processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que

era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute

A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria

possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma

que estes leitores consideravam adequada

No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na

variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira

interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364

Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon

descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras

ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo

Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e

isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo

364 Cf Levison (1999) 38

172

Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o

propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da

atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65

ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou

impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio

do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das

profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem

o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo

Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento

as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente

humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar

conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo

O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates

Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)

O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave

inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366

Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)

reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo

a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates

era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do

espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates

corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom

profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados

inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes

como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo

(2187)367

De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria

iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter

recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra

elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins

365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46

173

ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria

alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este

pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute

realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a

soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo

misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua

soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da

soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas

destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher

27-29)

A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor

afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com

estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua

experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior

expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior

dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento

elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)

as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala

(Som 2252)368

Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis

onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas

revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que

afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia

sobre os detalhesrdquo (588C)

A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o

inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo

sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de

revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem

naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca

pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da

368Levison (1999) 50

174

verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares

de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das

vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos

antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion

Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia

de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do

filho da luz

175

Bibliografia

Fontes Primaacuterias

Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston

Brill

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics

of Western Spirituality

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co

Ludgate Hill

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa

Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros

Textos Gnoacutesticos Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman

Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings

James Clarke amp Co Louisville

176

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos

1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e

grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas

o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees

Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das

paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas

a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias

indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos

Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20

3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em

etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim

In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507

Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto

de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem

documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de

interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC

nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem

em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos

tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os

pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o

symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram

eco nestes manuscritos

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute

relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

177

A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas

antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias

camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento

importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar

onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em

termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo

simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por

exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316

ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais

associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco

Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos

e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Outros autores judeus

Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se

fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no

evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia

178

Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os

significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas

associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que

Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao

longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo

corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha

responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra

judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho

no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do

elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos

fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Textos Rabiacutenicos

Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo

literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que

permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o

interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos

eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei

oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos

A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo

releeituras das tradiccedilotildees anteriores

Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo

da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a

sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados

homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo

sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico

que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave

escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos

179

Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford

Midrashim

Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do

quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de

pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente

textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso

destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma

circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese

responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos

ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para

explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua

antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo

histoacuterico em discussatildeo

Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The

Soncino Press

Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma

exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o

capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado

TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London

Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da

Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que

tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma

complete no seacuteculo doze

TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo

anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios

180

celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose

desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da

memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria

elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute

lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano

ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute

transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de

hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos

produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a

literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm

com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais

autoinduzidas

Davila R Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation Brill Boston

Bibliografia e Fontes Secundaacuterias mencionadas no texto

A Seth C (2014) Know Yourself and You Will Be Known The Gospel of Thomas and Middle

Platonism Paper 92

A E C (2000) The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity Studies in

Language and Tradition Sheffield Academic Press

AFJKlijn (1962) The Single One in the Gospel of Thomas In Journal of Biblical Literature

(pp 271-278)

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Barker M (1990) The Gate of Heaven The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem

Spck Dallas Theological Seminary

Barnard L (1968) The Origins And Emergence Of The Church In Edessa During The First Two

Centuries AD Nort-Holland Publishing Co

Caroline Johnson Hodge S M (2013) The One Who Sows Bountifully Essays in Honor of

Stanley K Stowers Brown Judaic Studies

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Christopher J-M R (2006) The Temple Within In Paradise Now Essays on Early Jewish and

Christian Mysticism (pp 145-179) Society of Biblical Literature

181

Colson F amp Whitaker G (1934) On Flight and Finding On The Change of Names On Dreams

Loeb Classical Library

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dan J (2002) The Heart And The Fountain Oxford University Press

Danby T H (1933) The Mishna Oxford Oxford

Davies S (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom New York The Seabury Press

Davies S L (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom The Seabury Press

Davies S L (1992) The Christology and Protology of the Gospel of Thomas 111

Davies S (nd) The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible Retrieved Abril 13 2017

from Oxford Biblical Studies Online

httpwwwoxfordbiblicalstudiescomarticleoprt280e73

Davila J R (2001) Descenders to the Chariot Boston Brill

Davila J R (2013) Hekhalot Literature in Translation Boston Bril

DeConick A (2006) Paradise Now Essays On Early Jewish and Christian Mysticism Society of

Biblical Literature

Deconick A D (1996) Seek to See Him Ascent Ascent and Vision Mysticism In The Gospel Of

Thomas EJ Brill

Deconick A D (2001) Voices of the Mystics Journal for the Study of the New Testament

Supplement Series 157 Sheffield Academic Press

DeConick A D (2014) Histories of the Hidden God New York Routledge

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston Brill

Elior R (2004) The Three Temples On the Emergence of Jewish Mysticism The Littman Library

of Jewish Civilization

Elior R (2009) ) From Priestly (And Early Christian) Mount Zion to Rabbinic Temple Mount In

Where Heaven and Earth Meet Jerusalems Sacred Esplanade

Fossum A D (1991) Stripped Before God A New Interpretation of Logion 37 In The Gospel of

Thomas In Vigiliae Christianae 45 E J Brill

Fossum J (1985) JsJ In Gen126 and 27 in Judaism Samaritanism and Gnosticism (pp 202-

239)

Gathercole S (2014) The Gospel of Thomas introduction and commentary Texts and editions

for New Testament Study Koninklijke Brill NV

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

Halperin D (1988) The Face of the Chariot Early Jewish Responses to Ezekiels Vision

Tubingen Mohr

Hartin P (1999) The search for the true self in the Gospel of Thomas the Book of Thomas and

the Hymn of the Pearl HTS

182

Hayward C T (1996) The Jewish Temple London Routledge

Hayward C T (1996) The Jewish Temple A Non-biblical Sourcebook Routledge

Heine R E (1989) Commentary on the Gospel of John Books 1-10 Washington Catholic

University America

Himmelfarb M (1993) Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses Oxford

University Press

Himmelfarb M (2013) Between Temple and Torah Essays on Priests Scribes and Visionaries

in the Second Temple Period and Beyond Tuumlbingen Mohr Siebeck

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Janowitz N (1989) The Poetics of Ascent Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text

State University New York Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet Edition

Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Levison J R (1999) Of Two Minds North Richland Hills Texas Bibal Press

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University

Press Association

Luomanen P (2012) Recovering Jewish-Christian sects and gospels Supplements to Vigiliae

Christianae

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text Verlag

Algred Toperlmann

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics of Western

Spirituality

Mattanyah I S (2007) Hellenism Dominates the Near East and Unites East and West in

Climate Change ndash Environment and History of the Near East 2nd Edition Springer

Millar F (1993) The Roman Near East 31 BC- AD 337 Harvard University Press

Najman H amp Newman J (2004) The Idea of Biblical Interpretation Essays in Honor of James

LKugel Leiden Brill

Neusner J (1965) A History of Jews in Babylonia vol 1 The Parthian Period LeidenBrill

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Pagels E (1999) Exegesis of Genesis 1 In the Gospels of Thomas and John Journal of Biblical

Literature pp 477-496

Patterson J (2013) The Gospel of Thomas and Christian Origins Leiden Koninklijke Brill NV

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co Ludgate Hill

183

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros Textos Gnoacutesticos

Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Ross S (2011) Roman Edessa Routledge

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings James

Clarke amp Co Louisville

Scholem G (1965) Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 2nd ed

Jewish Theological Seminary of America

Segal P (1990) Paul the Converte The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee Yale

University Press

Sheck T P (2015) Commentary on Isaiah Homilies 1-9 On Isaiah New York The Newman

Press

Simon H F (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The Soncino Press

Smith D C (2010) The Kabbalistic Mirror of Genesis Rochester Inner Traditions

Strecker P V (1991) ldquoJewish-Christian Gospelsrdquo New Testament Apocrypha Vol 1 Gospels

and Related Writings James Clarke amp Co

Stroumsa G G (2015) The Making of the Abrahamic Religions in Late Antiquity Oxford

University Press

Stroumsa M B (2010) Paradise in Antiquity Cambridge Cambridge University Press

Uro R (2003) Thomas Seeking The Historical Context Of The Gospel of Thomas TampT Clark

Valantasis R (2007) The Gospel of Thomas Routledge

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Villeneuve A (2016) Nuptial Symbolism in Second Temple Writings the New Testament and

Rabbinic Literature Brill

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New York Tampt

Clark

184

Page 3: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé

3

4

5

6

7

8

9

Resumo

O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido

literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao

seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e

significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias

e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao

desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental

nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees

qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos

sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo

as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de

Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica

do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de

Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir

da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura

de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo

antigo

Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico

figura de Jesus cristianismo primitivo

10

Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have

been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its

reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings

to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a

research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of

the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development

of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to

answer the following questions what was the historical context of this gospel its social

space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message

and what are the specific characteristics of language and experience in the early

Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the

historical understanding of the development of the Christian mental space in the first

century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a

new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian

movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social

contexts and geographical spaces of the ancient world

Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of

Jesus primitive Christianity

11

Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como

misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute

Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A

sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu

intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu

sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave

minha tatildeo doce Virgem Maria

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades

maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza

ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus

e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado

com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele

o guarde eternamente

Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a

iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e

imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o

uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os

exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo

racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela

vontade do Pairdquo

Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2

12

Iacutendice

Introduccedilatildeo 14

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20

Literatura Profeacutetica 21

Literatura Sapiencial Judaica 21

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24

Uniatildeo Nupcial no Templo 24

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36

Os Manuscritos 37

A Liacutengua Original de Tomeacute 37

A Data de Tomeacute 38

A Origem do Evangelho de Tomeacute 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65

A Gloacuteria do Trono 69

O Templo 70

A Merkavaacute 72

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92

6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo

simboacutelico 95

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97

Eacuteden 100

13

O Grande Mar 102

A Fonte da Vida 106

Os Rios do Paraiacuteso 108

O Veacuteu 110

Por Detraacutes do Veacuteu 114

A Grande Luz 118

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122

A Imagem e a Luz 125

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138

7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143

As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150

8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154

9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166

Bibliografia 175

14

Introduccedilatildeo

ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10

O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar

a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona

os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside

nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos

alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico

para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute

Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos

por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses

evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado

Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o

simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave

hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia

cristologia e protologia apresentada por Tomeacute

Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente

interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees

simboacutelicas do texto

Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o

panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem

valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual

Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma

linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial

no Evangelho de Tomeacute

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese

apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico

No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a

metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da

cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo

pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas

do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute

15

Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para

contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve

discussatildeo dos conceitos religiosos do documento

No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na

histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no

espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que

influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma

importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais

judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento

No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a

compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da

linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do

proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio

Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo

fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um

mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos

dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas

satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais

da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1

Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal

a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia

humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se

manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por

este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do

evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso

de presenccedila interior

Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as

temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia

religiosa do evangelho de Tomeacute

1 Lohuizen Wali Van (2011) 3

16

No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico

que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria

forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as

realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos

cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos

siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o

processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho

eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser

humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas

afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma

produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave

sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo

O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo

no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute

a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas

atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um

gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere

facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica

Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de

Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta

exegese

Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios

mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto

de Tomeacute

Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma

realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta

conclusatildeo

Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomeacute

O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no

pensamento do judaiacutesmo de II Templo

Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao

ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a

17

compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento

judaico e no Evangelho de Tomeacute

Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e

aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do

seu contexto

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco

O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva

dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem

teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos

enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomeacute

Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda

na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo

cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro

O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da

doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta

opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios

reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador

Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de

Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de

Ahiqar e textos sapienciais de Qumran

Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo

substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino

da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio

posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a

caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento

filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute

18

Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no

periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de

interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de

Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a

versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute

recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As

obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo

completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc

As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana

assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e

devidamente identificadas nas passagens traduzidas

19

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia

As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa

seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos

influenciaram a textualidade de Tomeacute

Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute

Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo

Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos

de Joatildeo e Filipe

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando

historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes

tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute

A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia

Hebraica e na Literatura Sapiencial

Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns

dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos

posteriores

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como

Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos

pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos

Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos

textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais

no Evangelho de Tomeacute

20

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre

Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que

envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano

As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar

num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico

Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como

marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma

realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o

retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do

matrimoacutenimo com o divino

Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O

que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa

leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de

Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo

da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino

Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a

imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano

uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se

com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4

Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo

recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de

Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos

inserem-se neste mesmo padratildeo

Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria

Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado

ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que

se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano

2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem

21

Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num

evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido

no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor

nas vidas das geraccedilotildees subsequentes

A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-

humano no final da histoacuteria

Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios

da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai

o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos

Literatura Profeacutetica

Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns

profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute

direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo

intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino

do Norte6

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma

uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica

da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos

preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel

para com o proacuteximo

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da

Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus

identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora

Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas

vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e

6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26

22

amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma

sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante

A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial

apresentada pela literatura sapiencial

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do

casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido

Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora

Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos

Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da

crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de

cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela

A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela

Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo

antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos

Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo

com o homem

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave

cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas

dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre

Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a

uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial

Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no

tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura

Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento

no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e

pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico

dos Cacircnticos

Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara

Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe

9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29

23

Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo

ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel

fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente

transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo

para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11

Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de

simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado

com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal

redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia

sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da

eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente

associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais

frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da

criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por

Cristo o novo Adatildeo

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o

Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os

temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro

casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13

Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os

nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com

que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao

estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes

no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de

Tomeacute

11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem

24

Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o

significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia

destas tradiccedilotildees

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai

Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por

um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo

do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel

No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio

pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo

Uniatildeo Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo

nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai

eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de

Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se

relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos

do batismo e da eucaristia

Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo

lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto

nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo

O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado

Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo

Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo

Testamento

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no

templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do

Sinai

25

miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos

do batismo e da eucaristia15

Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara

Nupcial

Os templos de vaacuterios povos antigos

consideravam o Templo especialmente o

Santo dos Santos como o lugar

simboacutelico que representava a Cacircmara

Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como uma

atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai

O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para

perpetuar a teofania do Monte Sinai entre

o povo de Israel

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo

de simbolismo coacutesmico sendo

considerado um microcosmos que

representava o universo inteiro Tambeacutem

eacute relevante a ideia antiga do homem

como microcosmo e templo uma ideia

encontrada no Novo Testamento onde o

fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o

ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece

entre o humano e o divino

O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a

fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar

onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do

divino na terra

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo

Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a

traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem

Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos

necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial

As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma

ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento

A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o

capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em

todas as ressonacircncias

15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56

26

O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura

personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se

a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte

feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina

Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica

O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo

da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos

tempos

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria

encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)

ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo

Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca

ela se exalta diante do seu Poder

lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens

Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste

eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira

reinei sobre todos os povos e naccedilotildees

Junto de todos estes procurei onde pousar

e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo

Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico

da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma

ψυχὴν αὐτῆς)17

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo

de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na

tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios

No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem

em Deus e a sua universalidade

Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo

Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a

palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde

17 Cf Villeneuve A (2016) 57

27

como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria

ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando

ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn

12)

O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica

que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19

Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central

do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e

terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma

reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu

O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna

que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo

e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22

A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave

coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23

Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as

mentes que estudam a virtuderdquo24

Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a

nuvem como uma ponte entre as duas esferas

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua

identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a

paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de

sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas

caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25

Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens

primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo

A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo

18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na

referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl

987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19

28

O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o

termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a

escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo

(Gn 12)26

Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando

presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27

O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o

universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os

dois elementos do mar e da terra

Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar

especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo

Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo

dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos

de nota28

A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o

universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela

deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos

limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte

Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora

Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel

A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)

ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem

aquele que me criou armou a minha tenda e disse

lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo

Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio

e para sempre natildeo deixarei de existir

Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei

deste modo estabeleci-me em Siatildeo

e na cidade amada encontrei repouso

26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59

29

meu poder estaacute em Jerusaleacutem

Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria

no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo

Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o

ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens

Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da

sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de

Israel

No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que

habitasse em Israel

O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-

se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao

fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu

reino sobre a esfera espacial

ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo

(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu

processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo

Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)

ldquoCresci como o cedro do Liacutebano

Como o cipreste no monte Hermon

Cresci como a palmeira em Engadi

Como roseira em Jericoacute

Como formosa oliveira na planiacutecie

Cresci como plaacutetano

Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume

Como a mirra escolhida exalei bom odor

Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque

Como o vapor do incenso na Tenda

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da

criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a

um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas

por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21

30

Estendi os meus ramos como o terebinto

Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila

Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos

E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado

A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra

de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos

Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva

localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos

Cacircnticos

No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o

palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)

associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413

A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do

rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)

Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se

trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute

associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30

A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)

tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a

noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)

Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no

Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica

O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)

Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)

As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios

satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)

A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora

Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden

30Cf Villeneuve A (2016) 63

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)

ldquoVinde a mim todos os que me desejais

Fartai-vos de meus frutos

Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel

Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel

Os que me comem teratildeo ainda fome

Os que me bebem teratildeo ainda sede

Quem me obedece natildeo se envergonharaacute

Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo

Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete

sumptuoso para comerem os frutos que ela produz

Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o

vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu

vinho31

O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo

universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden

Monte Sinai e no Templo32

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos

Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros

pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no

primeiro seacuteculo da era comum

As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que

datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do

fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu

amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de

Deus participante na sua imortalidade

31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73

32

ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)

Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o

Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal

verdadeiramente seraacute imortalrdquo

Ode de Salomatildeo 35-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser

humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana

para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi

considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)

Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou

beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do

Espiacuterito Santo33

ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro

de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)

Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o

jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre

aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa

nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-

9)

Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como

sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos

escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de

aacuteguas vivas

As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura

mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste

contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo

Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel

procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo

Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34

33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279

33

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute

Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder

a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute

Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados

e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns

elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e

posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver

O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho

de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo

textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico

reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute

Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio

unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de

um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si

Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira

encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados

(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem

hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que

eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que

se orerdquo

A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e

antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua

mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela

perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o

mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na

cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida

Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da

existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees

Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute

ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema

existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o

Reino dos Ceacuteus

34

Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma

identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser

fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho

o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e

responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo

natural do divino na consciecircncia)

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em

termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz

A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das

palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte

Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano

espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua

boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos

melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos

revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando

colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto

Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e

o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canoacutenicos

Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos

canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o

retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar

em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada

E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso

O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus

Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos

do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo

entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz

e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios

Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque

para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo

interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por

este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial

35

No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada

um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico

Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na

eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo

duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de

comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o

disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica

eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus

Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do

misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo

menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval

A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou

divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre

dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de

duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos

sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais

simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo

A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso

trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na

experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves

manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de

misticismo mais tardias como a unio mystica

O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado

para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um

processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se

entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro

conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura

inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e

o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino

e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

36

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo35

A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a

explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica

no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo

completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo

de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra

nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem

Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com

profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que

acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute

O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo

Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra

O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua

reflexatildeo na audiecircncia que os escutava

A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa

investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode

ser interpretado legitimamente como tal36

A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos

gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel

defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute

Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe

Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito

No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de

Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -

ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo

Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto

35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43

37

O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do

cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de

Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente

heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem

num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta

termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados

gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic

publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os

Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma

coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido

por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe

O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do

seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um

evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente

proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38

Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto

de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um

tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39

A Liacutengua Original de Tomeacute

A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta

onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo

do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria

dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41

38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by

Stevan

Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91

38

Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos

textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes

num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a

frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que

reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil

uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42

O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo

alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo

Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta

encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o

texto

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos

manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a

liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em

manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de

Tomeacute

A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os

evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo

relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute

O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os

documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o

Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de

Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas

siriacuteacos43

Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de

manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem

originais siriacuteacos ou aramaicos

A Data de Tomeacute

41Cf Idem 91

42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97

39

Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa

complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser

datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito

onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo

em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta

e cinco dC

Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de

acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de

Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos

dC

Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave

confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71

O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos

de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila

para atestarmos esta dataccedilatildeo

A Origem do Evangelho de Tomeacute

Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute

A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito

Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em

Edessa

Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a

origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades

de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura

siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute

O nome Judas Tomeacute

44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria

40

Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo

aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute

Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma

particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo

eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo

geacutemeo de Jesus48

Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco

Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo

em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram

o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113

com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde

ocidental

O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria

da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5

Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em

siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49

O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo

encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego

aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um

apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50

Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido

provavelmente na Siacuteria

A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo

e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel

nalguma literatura maniqueiacutesta

Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos

As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca

48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10

41

ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os

vossos vestidos e os colocardes sob

os vossos peacuteshelliprdquo

Evangelho de Tomeacute 37b

As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes

nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as

Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma

literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande

Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se

na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de

ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)

O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que

Jesus disse a Judas Tomeacute

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma

problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o

seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo

do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de

radicalismo social51

Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um

misticismo unitivo ou um produto valentiano

No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada

escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das

lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios

termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees

O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a

sua teologia central

51Cf Gathercole Simon (2014) 144

ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto

que o manto da vergonha me foi

tiradordquo

Atos de Tomeacute 14

42

Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent

Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo

significativo agrave leitura de Tomeacute

A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da

linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior

ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53

Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto

pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a

ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente

seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1

Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do

judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade

tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras

continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em

Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia

Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes

divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas

da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem

No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros

disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para

lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo

A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte

onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel

desvelar novas realidades

Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente

na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos

tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as

instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai

A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21

vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o

como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)

52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145

43

O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg

57 76 96-99 133)

Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534

Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente

de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)

estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)

Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39

6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)

Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o

reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)

Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence

aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas

(lg 22 46)55

Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se

encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)

A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56

Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos

no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn

1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por

um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58

Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa

matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo

O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda

desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que

eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um

divisor (lg 72)

55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11

44

A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo

valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis

Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do

eleito

Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao

corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62

Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)

Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o

ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao

conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um

misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo

No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e

vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos

corpos

Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro

motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos

deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade

entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De

Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer

apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de

Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio

(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)

Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute

necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica

que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da

criaccedilatildeo65

O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada

acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute

repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute

62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148

45

O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que

proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para

cimardquo)

O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma

ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no

mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia

acrescentando ldquoespada e guerrardquo

Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual

os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg

110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo

O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o

reino se expande (lg 113)

O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo

contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro

Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu

maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma

posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)

Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla

dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem

fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)

Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma

oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute

A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute

encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como

ldquocarnerdquo (lg 28)

Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo

nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia

Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg

55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito

(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)

Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser

espiritual feminino (lg 105)

66Cf Idem 151

46

Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica

fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)

O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo

para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta

revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio

para escapar da morte

O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias

variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias

20 possuem um significado teoloacutegico68

Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As

referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado

defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees

psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo

do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70

A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no

Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais

como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de

ldquorepousordquo

Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg

59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)

A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica

assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute

O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das

tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado

Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento

religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia

de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos

comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este

evangelho

Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por

estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo

67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152

47

oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo

a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou

juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original

que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre

deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes

encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino

Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para

Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens

materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72

Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou

forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua

linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas

com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde

Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de

ensinamento religioso fornecido por Tomeacute

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo

O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua

composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o

misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar

quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal

heleniacutestico

A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar

iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso

Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do

sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno

do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito

assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo

O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas

mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo

71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)

48

Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os

Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o

Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as

elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da

Greacutecia claacutessica

Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os

nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas

cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma

profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com

a conquista islacircmica75

A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no

comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade

As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees

extensas incluindo franjas do deserto76

Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da

Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus

que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este

periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia

cultural persiste ateacute hoje

O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a

nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova

dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico

surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77

Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute

oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo

helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo

A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos

sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o

estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79

75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem

49

Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar

e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que

posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas

vezes esoteacutericas e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que

viaja com o viajante

De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste

meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma

revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual

Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e

traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do

Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como

eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas

religiosos deste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do

Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos

velhas crenccedilas e suposiccedilotildees

O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os

primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na

histoacuteria do livro ateacute Gutenberg

Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex

foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma

nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade

reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de

Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o

texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81

Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas

Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste

periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como

divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas

nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo

80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30

50

O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a

destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC

A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos

dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico

Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo

sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo

foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas

O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado

por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era

chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus

Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio

de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido

pela igreja dos primeiros seacuteculos

Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram

substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta

dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma

atitude miacutestica e interior da busca do divino

Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e

presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos

rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes

O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da

individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa

exegese interior

A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser

intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de

ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas

oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal

Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia

do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo

e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada

82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39

51

Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas

significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo

encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica

Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos

estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos

Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas

evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova

perspetiva sobre as tradiccedilotildees

A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original

natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria

original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado

ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a

narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo

O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da

histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os

evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute

O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes

documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as

comunidades tinham da figura de Jesus

Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando

recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu

kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria

Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus

num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de

ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do

impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam

relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e

ressurreiccedilatildeo

Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado

Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao

Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio

Eufrates

83Cf Patterson J S (2013) 10

52

A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos

que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser

completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84

Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo

comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se

encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute

parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na

grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a

norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura

literaacuteria antes do advento do cristianismo85

Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas

poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da

Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a

subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua

submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio

Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86

A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser

pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado

durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que

Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua

semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87

A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades

siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de

Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos

fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a

organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da

sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma

84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem

53

evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos

Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve

raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do

cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades

semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel

estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos

importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa

tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram

recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de

Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial

das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do

primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e

se misturaram90

Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria

ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos

primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura

intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo

de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto

oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas

feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial

do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros

ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de

quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os

pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo

Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um

entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da

tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida

88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42

54

como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu

manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da

sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos

poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta

experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram

no ocidente no outro lado do Eufrates

Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de

convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores

Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a

ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e

as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo

presentes em Tomeacute

Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes

para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a

leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso

natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica

entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de

violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus

se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente

harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos

O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de

cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que

desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da

vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e

valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo

O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de

interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel

da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o

futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da

identidade cristatilde

A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se

claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um

95 Cf Patterson J S (2013) 25

55

martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no

qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus

Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado

dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como

dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa

para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma

experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar

verdadeiramente a vida de Jesus97

No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo

um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos

pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes

eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o

Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este

Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o

ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se

encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado

A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-

se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia

de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar

da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si

proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante

diferente

O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do

segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu

pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e

cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da

criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da

crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de

pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do

periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os

quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil

96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30

56

O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que

esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais

unificadores99

O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo

A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e

o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos

cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma

platoacutenica100

Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute

notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia

centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo

geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as

vivecircncias em ambos os contextos

Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo

assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo

sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102

A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas

de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo

Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta

apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de

sabedoria

A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em

concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento

platoacutenico103

98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15

57

A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de

voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha

corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute

O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades

de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica

Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a

Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto

interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da

Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105

Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se

estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas

judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros

dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que

prosperava nestas cidades107

Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse

filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia

entre Platatildeo e Geacutenesis

Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1

na textualidade de Tomeacute

Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas

helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era

masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado

unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres

voltariam (lg 22)109

Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia

platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa

mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma

104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278

58

centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano

mortal (lg 29)110

Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido

dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e

para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111

O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao

reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo

originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)

ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg

50)112

O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no

ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma

perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e

perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres

passageiros113

O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de

vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria

contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo

Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e

os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de

Jesus em Edessa114

A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por

vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o

autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a

identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz

divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida

freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115

ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo

110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37

59

ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na

filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas

correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti

proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima

agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta

interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma

no iacutentimo do ser humano

Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de

Deus

Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois

seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e

Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o

iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte

divina ele conhecia o divino116

Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo

ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino

dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem

consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo

grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender

como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele

possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117

Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este

entendimento acerca da mesma maacutexima

ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi

feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os

fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do

universordquo118

116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)

60

Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos

platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os

aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada

Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-

se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as

perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-

se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus

suacutebditos

ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez

mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute

ouvidos a ti mesmorsquordquo 119

Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a

manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico

mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos

noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se

retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o

mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute

contemplaccedilatildeo daquele que eacute

Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este

ldquocasco de courordquo122

Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro

eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do

corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para

superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos

dois primeiros seacuteculos

Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o

risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute

Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem

O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo

empregando os termos teacutecnicos do platonismo123

119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477

61

Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de

descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam

tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente

O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute

Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza

humana e o seu destino

O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do

pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute

ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o

corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124

Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os

estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia

aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo

era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os

nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo

tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de

ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no

platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma

A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor

antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por

que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era

miseraacutevel

O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo

morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um

corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo

Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E

esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute

123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus

ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the

universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation

to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies

(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material

bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)

62

Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do

mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo

A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o

disciacutepulo mais digno do que o mundo

A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no

pensamento platoacutenico126

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo

A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese

apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a

investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um

montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho

judaico-cristatildeo127

Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo

apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de

Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde

(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos

judaico-cristatildeos

(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos

incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas

(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere

uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo

(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e

no cristianismo judaico

(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios

Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre

o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo

126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes

(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have

already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are

corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the

borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be

Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp

DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200

63

As seguintes passagens

(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV

963

(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145

(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad

Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3

(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514

Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da

Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute

a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada

Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de

Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute

Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos

estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute

O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do

nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras

de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado

como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128

Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto

porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9

(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo

ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)

Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c

7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio

Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo

Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho

Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o

judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos

128Cf Luomanen Petri (2012) 202

64

Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no

proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo

seacuteculo

A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e

duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e

quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo

Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma

cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos

Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma

exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso

A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra

aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o

repouso em Jesus

ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos

lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo

quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele

e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria

descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na

eternidaderdquo129

A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo

Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo

aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos

Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde

Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus

seguidores

Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma

voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter

dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho

dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus

129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322

65

ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-

me para a grande colina o Taborrdquo131

O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)

geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de

Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao

Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de

Jesus e a sua matildee verdadeira

ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132

Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente

nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma

teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute

- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e

ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas

Lg 24b

O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias

associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e

culturas

Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram

utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo

lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para

descreverem as suas experiecircncias133

Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas

experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou

lsquorevelaccedilatildeorsquo

A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como

visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma

131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2

66

viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas

preparaccedilotildees e rituais serem realizados

O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e

cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros

angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134

Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do

nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades

antigas para investigarmos a sua religiosidade

O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos

para denotar o fenoacutemeno cristatildeo

Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de

misticismo135

O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao

judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar

antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia

extaacutetica ou como praacutetica provocada

No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas

expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo

Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por

eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo

de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo

O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo

interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus

Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de

Tomeacute

Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque

pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um

texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute

presente no Judaiacutesmo do II Templo

A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria

do texto do Evangelho de Tomeacute136

134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7

67

O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios

ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica

Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros

trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica

Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos

formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do

templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a

realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees

As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na

literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria

na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da

Palestina de Yohanan ben Zakkai137

Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e

da especulaccedilatildeo hekhalot138

Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas

de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios

Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da

literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo

hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes

representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades

muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do

II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo

A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos

fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que

levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que

iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial

os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu

numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que

vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos

esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da

Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos

palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica

e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2

68

cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas

biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma

autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos

tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma

audiecircncia contemporacircnea

Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas

ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo

a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras

A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que

podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute

Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus

conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo

situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos

Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e

revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias

encobertas no interior das suas escrituras sagradas

Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia

Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica

A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta

tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10

40-48 Dn 7 e Is 6

Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura

produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos

A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e

na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos

Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de

temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da

evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em

textos de eacutepocas diferentes

139Cf De Conick A (2006) 7

69

Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta

as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute

associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140

A Gloacuteria do Trono

A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central

desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo

Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente

secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada

ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo

com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)

de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas

escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142

Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial

feito por dois querubins

No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute

apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos

Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias

histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute

sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos

O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite

brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo

assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta

veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado

Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras

cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co

44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus

que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-

140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8

70

23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do

templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144

O Templo

A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de

Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os

Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do

que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia

Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete

parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais

sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145

E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das

mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do

templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146

A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis

desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas

natildeo realizadas

As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da

criaccedilatildeo da humanidade

Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e

ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de

luz147

Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo

percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no

Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As

tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser

Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148

144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem

71

Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o

primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter

sido um reflexo da Kavod

Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico

Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do

que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de

encher todo o universo de um extremo ao outro150

ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]

pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel

b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o

despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro

lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse

Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a

oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do

pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos

cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave

transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos

conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da

ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e

tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de

forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152

Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da

morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente

Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os

Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as

epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades

envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no

momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na

149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21

72

liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias

ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153

Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais

antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute

15 19 37 50 59 83 84 108)

As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da

esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma

experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de

transfiguraccedilatildeo

Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os

ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees

de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de

uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no

trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154

A Merkavaacute

O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo

que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo

miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos

Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim

de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca

O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como

as fontes esoteacutericas mais tardias referem155

Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de

Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico

de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se

movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel

1014-15 com o querubim do Templo

153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30

73

Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave

presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-

se ao templo por outros meios156

A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel

encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe

mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma

ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25

Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em

duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio

de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos

Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus

identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser

vivente do profeta Ezequiel

A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus

o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o

universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-

se presente nesta literatura157

Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o

mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte

mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas

como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158

Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e

a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e

descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo

concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute

156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo

tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)

com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos

trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o

cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea

dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos

sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos

Santos

74

O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da

arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem

alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em

Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que

em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la

caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo

Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que

rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160

Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de

Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas

maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos

que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161

Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas

natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de

cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162

Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de

hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos

Cacircnticos do Sabbat163

Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e

recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era

necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos

que eram inscritos com os nomes secretos de Deus

As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o

templo e o cosmos eram estruturas opostas

As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo

a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para

o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande

santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas

planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e

da Sumeacuteria

160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170

163Cf Idem

75

Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo

era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem

quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F

Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com

a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos

praticantes de hekhalot

ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de

certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos

anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo

nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e

canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras

interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse

viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166

Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no

Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I

seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um

rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167

A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se

bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168

A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O

Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo

assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas

do caos no terceiro dia169

Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi

criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo

164Cf Idem 171

165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and

Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21

76

ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)

Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo

O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo

assim tu faraacutes o tabernaacuteculo

De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas

bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo

fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo

as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de

terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do

corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas

na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo

uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo

os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio

do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o

firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as

aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170

Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem

documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o

pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute

O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do

homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos

vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos

poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios

corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu

proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava

Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute

estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram

compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano

O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do

corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos

escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas

estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e

angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute

170Cf Midrash bereshit rabbati

77

frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome

divino171

Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o

miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na

presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se

entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem

Divina da Gloacuteria

O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o

autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo

este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica

No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com

este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na

atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o

puacuteblico a que se destinava

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute

O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e

interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite

definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica

Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por

si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda

Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo

primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no

final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis

descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim

Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

(Lg18)

A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo

que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial

que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas

dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que

171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175

78

representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias

a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos

primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)

Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses

por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia

de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que

estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para

ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se

ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)

Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais

respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se

vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu

de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem

sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem

qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)

Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia

visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus

disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco

aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas

caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)

Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos

miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa

esta realidade no jardim do Eacuteden

Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma

crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas

crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino

Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o

exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e

o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo (Lg 22)

79

Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as

vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um

tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco

No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os

disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te

revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como

as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo

temereisrdquo (Lg 37)

O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do

corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos

natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu

ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)

A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que

a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes

no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas

quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)

Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia

platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas

simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem

Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial

do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo

Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus

O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara

Nupcial

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37

ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos

Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos

vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os

espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo

80

Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que

apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais

1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver

o Filho de Deus sem ter medo

Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao

ceacuteu numa linguagem encratita172

Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora

comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo

baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321

Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de

peles e eles vestiram-nasrdquo

Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173

Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou

ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o

sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco

Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute

difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo

Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de

pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo

Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos

neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da

carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo

O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute

um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175

Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se

revestir destardquo176

Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9

que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas

E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra

172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem

81

E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim

E o Senhor renovou-me com a sua roupa

E me possuiu com a sua luz

E do alto me deu descanso imortal

E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos

E eu despi-me da escuridatildeo

E vesti a luz

E ateacute eu mesmo adquiri membros

Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento

E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito

E eu removi de mim as minhas vestes de pele

Porque a tua matildeo direita me ressuscitou

E fez com que a doenccedila passasse de mim177

Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um

ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de

libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus

Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica

Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de

pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo

A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus

anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou

selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando

vestida torna aceitaacutevel diante de Deus

Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo

com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal

No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de

Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o

ldquoselordquo no Nome178

Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-

se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo

ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E

eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo

177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126

82

Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e

transformado num anjo da face

ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele

[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para

ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181

Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram

uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA

nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do

corpordquo183

O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm

que ser despidas sem vergonha

O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis

Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e

Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os

olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha

Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que

ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se

sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos

O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito

especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que

o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu

ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma

criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era

controlado pelos impulsos sexuais184

A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual

deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-

caiacutedo ausente de vergonha

179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134

83

Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as

vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma

pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda

daacute outro elemento sobre o ser assexuado

ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o

interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num

soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando

fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de

um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como

sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo

Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que

era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a

idade adulta em primeiro lugar186

Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento

ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187

De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo

periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188

Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era

uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo

foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189

Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que

renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico

preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190

Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada

pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam

185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes

a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do

campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e

devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos

Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135

84

As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a

experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o

objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus

Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de

Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191

Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De

mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a

existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte

e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio

Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto

retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a

essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo

Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o

homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave

esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo

material

Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde

Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque

despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo

Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias

estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193

O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos

gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do

rosto de meu Deus para sempre194

Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas

ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar

o seu corpo

191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por

Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a

Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as

conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas

materiaisrdquo

192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10

85

O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu

nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia

visionaacuteria

No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque

que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes

celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico

Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-

escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra

sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho

de Filipe 1 34-35

ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo

Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo

total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta

forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho

transformando a sua alma

ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo

sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo

No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o

mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada

encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa

experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave

entidade divina que tinha visto

O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma

crenccedila antiga presente no mundo antigo196

195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42

86

Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua

experiecircncia religiosa

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50

ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz

procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens

Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se

vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um

repousordquo

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um

fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na

interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis

perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria

Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se

manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era

segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz

A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada

primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo

Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn

13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus

tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja

luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus

sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes

da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham

o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a

sua proacutepria luz198

Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes

da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da

imagem do Logos

197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66

87

A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus

explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse

sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo

De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz

primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis

O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se

aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos

seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos

Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos

anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como

os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl

82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um

de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn

127)rdquo

O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o

homem agrave imagem dos anjosrdquo

Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126

que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva

Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante

tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de

ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo

A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma

forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no

nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200

Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse

ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma

substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e

tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se

assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto

como a forma do invisiacutevelrdquo201

199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443

88

O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas

letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado

de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas

eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer

1141 Epiph Pan 34 47)

Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome

divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial

manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram

pronunciados agrave sua imagem202

O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de

Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo

ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a

luz do universo

No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de

lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno

de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos

o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo

Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma

realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo

alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior

Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do

Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem

trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto

estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-

me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo

(12827-30)

O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo

filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo

regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)

Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176

89

Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que

regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser

porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no

Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo

O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de

Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco

aacutervores

Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do

Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204

Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que

constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute

o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco

virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo

alcanccedila virtude e imortalidade

As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando

vestes de luz

E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor

Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram

Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal

E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna

Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra

imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver

nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores

como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da

ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso

Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes

com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o

autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo

domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205

204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83

90

Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do

paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da

imortalidade

Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim

comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma

aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito

de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica

de coisas legiacutetimasrdquo (198)206

As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a

alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do

pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e

corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves

virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas

leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda

adacircmica

E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute

existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma

com as virtudes paradisiacuteacas

O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque

vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada

ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os

eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis

novamenterdquo

No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e

manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16

ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai

contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios

(monachos)rdquo

O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este

ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com

a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos

206Idem 85

91

Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo

diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207

Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos

ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus

Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono

celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe

ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade

Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma

situaccedilatildeo num hino samaritano lemos

Ele Deus permanece para sempre

Ele existe ateacute a eternidade

De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio

Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como

Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208

Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes

se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser

angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina

Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto

angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz

aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute

paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar

uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden

Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e

inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e

adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus

e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo

ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado

angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na

natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte

207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718

92

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59

Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica

encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a

manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o

miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o

A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem

cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este

encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser

alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo

desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria

ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o

vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo

(lg 83)

A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos

que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele

prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo

Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial

e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque

224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209

O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica

presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da

humanidade

Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir

por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo

209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a

93

relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido

no ventre de uma mulher

ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos

humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a

luz gera-se a si mesma

O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a

imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto

que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod

escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na

tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que

se revelava aos miacutesticos211

Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos

anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah

A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus

esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da

ldquoGrande Gloacuteriardquo

A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum

dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo

flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212

Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio

soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213

Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou

Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a

aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)

A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse

visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e

trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo

Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7

ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33

De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e

incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no

211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104

94

entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto

ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute

cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214

Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era

abrangida pela sua luz

Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte

verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma

alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo

pode ser percebida diretamente

Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg

83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute

oculta na sua proacutepria luz215

No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica

que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do

disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)

Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos

devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos

Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus

durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a

imortalidade

Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas

homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo

Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta

uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta

imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a

imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e

aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto

nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do

214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105

95

Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado

esquerdordquo (Hom306)216

Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute

paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma

experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como

diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria

luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu

interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um

corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve

ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o

conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre

as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino

5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no

seu mundo simboacutelico

Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara

Nupcial

Lg 75

Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas

ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em

Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia

visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o

conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto

A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o

maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente

levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta

Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de

Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um

fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem

216 Cf Maloney G A (1992) 191-192

96

O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de

Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e

cristatildeos numa fase emergente

As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as

encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de

Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar

Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a

natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo

Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a

sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o

peso e a grandeza desta memoacuteria

Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas

que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada

sem excessos ou divagaccedilotildees

Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas

uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial

Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a

investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as

mensagens contidas nos outros logia

A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos

do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico

A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do

Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden

O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do

percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado

nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial

Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos

que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas

Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam

as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos

Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus

criador e personagens com nomes hebraicos

Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas

questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos

97

Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que

antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de

Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental

As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave

obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao

Templo de Jerusaleacutem

O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do

Templo a niacutevel simboacutelico

O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era

transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram

os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes

conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo

deste processo revolucionaram as suas religiotildees

Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta

influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo

apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a

simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem

Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos

questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo

olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos

ciclos da vida

A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o

encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a

adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217

A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num

calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas

formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218

O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas

combinadas e sincronizadas

217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem

98

A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do

sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do

ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-

calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal

preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e

ciclo sacrificial221

A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais

complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute

traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito

memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222

Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do

Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento

simboacutelico da realidade do Templo

Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de

modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica

do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e

terrestre pelo serviccedilo sagrado223

O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do

Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos

escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se

Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e

reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa

Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo

fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo

ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos

ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a

redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade

centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224

219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio

vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de

cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6

99

Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da

inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-

se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de

tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do

calendaacuterio

A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo

canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do

Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria

viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e

Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque

Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos

anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada

dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou

sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua

marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que

descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos

sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos

soprar o shofar e prostrarem-se227

O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam

os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se

vivas

ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras

espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo

vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas

225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos

ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute

descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da

terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual

com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre

a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute

ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados

antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica

e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os

sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do

ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos

perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13

100

cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as

cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos

Santos (hellip)

As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das

maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da

cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas

com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo

vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta

dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-

todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228

Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o

cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos

separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O

espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de

uma realidade eterna

Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que

aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente

Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa

forma simboacutelica e narrativa229

Eacuteden

O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais

interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim

como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o

paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)

Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a

partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do

Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma

humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da

mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo

estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes

228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57

101

na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes

do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem

criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se

manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do

outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe

ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a

Origem do Mundo)230

A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute

a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao

Eacuteden

Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai

Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria

Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila

do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico

Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais

antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos

aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231

Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo

como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo

gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito

da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico

neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos

gnoacutesticos

Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos

constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram

Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que

tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram

Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o

significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem

deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)

230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103

102

O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser

considerado bom como o Eacuteden inicial

O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter

especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo

havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo

poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual

O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas

sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da

textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o

sentimento hebreu para com o Eacuteden

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim

Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o

iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e

natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)

ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa

expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai

estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os

israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era

apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma

descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido

O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar

do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente

considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo

unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da

montanha coacutesmica

O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o

firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze

enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da

largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente

representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio

103

era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair

que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos

Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita

para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232

Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o

mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o

maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b

Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio

Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem

afirmou que o paacutetio exterior representava o mar

Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e

entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos

Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos

Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos

homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)

Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo

associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel

que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon

de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior

O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade

estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo

2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece

entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do

criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees

que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os

mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)

sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu

povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve

o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)

mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema

natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da

criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste

232Citado em Barker Margaret (1990) 61

104

para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo

(Ecircxodo1517)

Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento

hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo

do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo

a partir dos mares primitivos

Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos

primordial233

O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das

visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel

de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de

entronizaccedilatildeo

Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas

surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram

autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)

Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus

antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e

derrotado (Isaiacuteas 519)

O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em

tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo

nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4

Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na

qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da

montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor

O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui

aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se

encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono

celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute

que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao

redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)

Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do

Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)

233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522

105

ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado

com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu

nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse

152)

O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o

firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo

O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o

jardim de Deus no livro de Ezequiel

Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal

do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim

seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em

mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo

material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre

necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia

O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era

frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado

Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha

sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em

que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro

Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa

(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o

poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234

Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas

explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade

disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo

quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)

Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua

vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do

Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no

Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava

simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira

como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo

234Cf Barker Margaret (1990) 61-69

106

De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios

querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e

uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo

Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do

templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo

numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras

(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel

4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-

12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em

outras partes da Biacuteblia Hebraica

A Fonte da Vida

Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz

Salmo 367-9

Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e

ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a

construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde

e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se

sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes

cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos

varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de

ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que

tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material

lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em

todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista

o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes

recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus

poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era

235Cf Ginzberg Louis (2003) 162

107

devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o

santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua

ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo

em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o

mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o

mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado

para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao

ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no

segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que

estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o

mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia

no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como

alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O

candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua

criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o

Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no

quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No

sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o

seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante

de seu Senhor e criadorrdquo236

A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo

VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado

em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes

colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para

o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor

dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)

Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da

fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade

ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem

prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)

236Cf Ginzberg Louis (2003) 150

108

Os Rios do Paraiacuteso

Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em

quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas

vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre

associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo

O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do

Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a

um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos

Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica

no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias

semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na

montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele

que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute

um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em

majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas

visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a

fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da

sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo

no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro

de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo

isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da

porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e

tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores

cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para

eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da

fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade

com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta

oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda

do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica

a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem

metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no

veratildeo como no inverno

109

E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome

um (Zacarias 148-9)

O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os

Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu

cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam

No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de

Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a

aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas

da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)

Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos

paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio

No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos

Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando

ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da

festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a

mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de

aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber

(Joatildeo 737 -9)

O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios

serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a

simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era

quase sinoacutenimo do Espiacuterito

Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham

adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de

Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis

12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria

foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)

Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a

com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele

(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de

especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum

onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)

A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e

como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o

110

Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a

luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)

Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea

para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e

como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o

meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar

(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios

do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque

confirmam esta associaccedilatildeo

Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono

Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada

completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho

do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante

ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque

dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem

de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele

(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor

descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e

vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)

O Veacuteu

ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos

dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a

esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram

reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser

tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]

antes do templo sagradordquo

Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono

dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo

que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas

Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da

experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido

111

uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como

saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido

As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente

tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu

representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as

vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava

Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da

encarnaccedilatildeo

O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o

lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo

visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade

As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como

parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos

e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia

do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo

Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado

Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos

dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos

alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do

templo

O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8

mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de

puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)

Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da

mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido

Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1

ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado

Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se

havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-

sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o

comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o

primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia

entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de

duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de

112

modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi

colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado

norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua

esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas

grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de

espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia

vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de

vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em

cada ano (Mishnah Shekalim 85)

Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e

sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila

forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para

a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este

veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de

Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias

descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia

haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada

por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)

Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade

viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus

despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que

a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde

um rabino do segundo seacuteculo a viu

Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose

Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas

satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)

No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado

ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica

com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma

habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico

tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da

terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo

113

Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma

que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama

dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)

Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual

Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave

sabedoria do templo ou era algo antigo

A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi

coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim

foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada

espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que

poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas

(Antiguidades Judaicas III124 126)

As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o

linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez

que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o

carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)

Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade

cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo

(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este

simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute

como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de

toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais

166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO

que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo

siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo

feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais

excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador

de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de

[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre

Ecircxodo 1185)

Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que

separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um

palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas

quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao

114

dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este

veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo

sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos

transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal

como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E

satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e

inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis

(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)

A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu

(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da

cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram

vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos

elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra

azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina

tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3

Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo

Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi

descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O

veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a

invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de

como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem

do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os

elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa

compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da

vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da

realidade subjacente ao tempo237

Por Detraacutes do Veacuteu

Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar

onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era

237Cf Barker Margaret (1990) 104-107

115

eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz

lm

Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram

apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores

descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu

toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele

O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto

que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha

sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente

Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial

Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do

Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo

impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar

ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo

da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir

Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel

quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees

ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)

O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma

visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu

ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava

Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o

verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das

vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o

escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do

veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)

Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do

veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus

Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os

profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica

da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos

agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para

um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

116

pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1

Henoque 873-4)

A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre

como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu

posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute

e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a

visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda

visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda

espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)

Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram

patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado

simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio

Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o

paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)

O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos

Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do

segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o

santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)

As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre

o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou

retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti

e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque

34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o

mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido

deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e

se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as

extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que

estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)

A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de

Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da

Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no

modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-

lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o

117

nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo

das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)

O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material

e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da

presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do

Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais

esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute

chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar

que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que

fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)

Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel

para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O

debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi

construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses

mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238

ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e

o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)

Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano

Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees

simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o

proacuteprio Jesus

No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais

iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos

celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus

misteacuteriosrdquo (lg 62)

O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do

veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o

imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da

cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido

por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos

falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por

traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe

238Cf Barker Margaret (1990) 127-128

118

Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que

ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro

Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem

semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)

O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros

lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o

nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah

12b)

A Grande Luz

ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo

proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai

a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)

ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute

privado do Todordquo (loacuteg 67)

No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas

como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na

criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se

oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de

Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de

Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute

vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta

expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa

para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre

os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os

disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza

com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente

239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram

por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo

vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que

morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo

119

O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz

do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo

deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como

expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave

figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria

criando iluminando e penetrando todas as coisas

Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm

a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave

sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia

Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor

da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua

bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em

Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num

movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga

o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo

regressa

Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que

atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma

imanecircncia divina no mundo e no homem

Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a

procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado

para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um

aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da

criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31

Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca

primordial o tempo antes do tempo

A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que

encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg

19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido

242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26

120

O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o

termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2

da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244

A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee

mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que

existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e

77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as

coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser

humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no

interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de

Deus (lg 3)

A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida

em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em

que este se situa e estaacute presente

Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo

judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser

concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute

Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com

siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo

Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes

pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino

podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no

Evangelho de Tomeacute

O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz

em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute

244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute

necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de

um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros

do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o

Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios

entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos

conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3

121

O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do

Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor

lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que

Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo

(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-

nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)

Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que

andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque

vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo

cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua

gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)

A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma

das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC

Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo

(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute

desoladordquo (Daniel917)

A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os

raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono

dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este

simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao

templo

A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel

veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou

com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada

para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do

Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora

quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para

iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)

Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os

meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e

evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente

nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute

248Cf Barker Margaret (1990) 148-150

122

diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes

detentoras do conhecimento

Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo

encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute

tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo

Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos

pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes

da religiatildeo do primeiro templo

O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os

profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das

visotildees dos profetas

Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No

Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como

emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse

Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo

haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1

A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no

livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249

Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia

grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo

apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees

generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)

A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica

abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro

249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o

pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeus e Parmeacutenides

123

diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash

que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252

Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que

descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus

declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o

vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e

61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da

condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo

ldquodivididardquo privada da imagem divina

Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11

e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial

anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo

As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam

bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253

252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem

Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo

Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70

Para traccedilarmos a exegese do Evangelho

de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo

presentes em Geacutenesis devemos procurar

ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a

hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo

dispostos de forma aleatoacuteria

No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele

que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o

poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes

(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute

recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo

(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco

a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram

atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os

governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos

como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com

a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg

4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete

diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia

da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer

(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo

um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente

concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e

relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha

com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos

como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo

humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando

Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser

124

Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a

luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda

a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz

manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que

fala na primeira pessoa com uma voz humana

Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em

simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por

todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute

uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o

protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254

A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de

modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A

atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do

espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso

divino no seacutetimo dia

Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus

atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende

aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se

encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior

254Cf Pagels E H (1999) 484

singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o

homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e

fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo

causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando

chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas

eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia

presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a

unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz

125

ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os

disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta

dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute

ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas

oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela

sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo

conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor

pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico

que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a

humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina

Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos

duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo

A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a

fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos

era bastante comum no seu tempo

A Imagem e a Luz

ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Lg 22

A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas

da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada

pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida

Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho

de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes

conceitos

Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma

experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu

sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo

Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um

corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser

255Cf Idem

126

humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns

pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original

arquetiacutepica

Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no

com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido

o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257

Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de

Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele

argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo

sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos

evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do

judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem

quanto suportareisrdquo259

O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado

primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a

existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da

pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um

objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser

humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento

divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia

afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino

Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois

Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem

celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem

criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da

Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11

Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam

256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158

127

ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo

natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou

com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim

do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job

1420)rdquo

De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre

Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu

mudei261

Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como

cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo

brilhante que ateacute superou o brilho do sol262

Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus

criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da

queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda

Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b

O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O

espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele

O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a

Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263

Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que

foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem

(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma

interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a

sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo

luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que

imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado

No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe

uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem

De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden

entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo

261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18

128

tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz

eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo

Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou

no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso

63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e

viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem

estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante

delardquo266

Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que

encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente

vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que

tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do

pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que

estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido

da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute

perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja

claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva

Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267

O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um

processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como

resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem

Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica

um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava

retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106

ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois

um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial

A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem

ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma

ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos

265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223

Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do

trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais

antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o

homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160

129

dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a

Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se

depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e

adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268

Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim

necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem

quanto suportareisrdquo270

ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser

digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271

Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute

Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as

imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo

num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo

manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272

O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo

relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)

numa imagem (imagem) para entrar no Reino

No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem

da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das

imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo

pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-

nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo

inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo

Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees

coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se

268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63

130

manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a

imagem dessa luz273

Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes

conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos

que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)

esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as

outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser

humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a

luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que

falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e

condenado a provar a morte274

O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa

imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84

menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas

beatitudes nas lg 18b e 19a

ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a

morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276

Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial

ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277

ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na

Cacircmara Nupcialrdquo278

A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de

Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e

retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo

subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de

Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que

273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63

275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75

131

interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da

lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas

proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta

do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)

Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que

ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus

responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que

borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha

boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-

lhe-atildeo reveladasrdquo280

Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as

palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara

Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)

estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute

designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo

representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104

e cada alma unir-se-agrave a ele

Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um

estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado

por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial

estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o

casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa

o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da

histoacuteria

Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem

simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o

jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o

final dos tempos

Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do

estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em

279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487

132

que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis

saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)

Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de

unidade

Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e

por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs

grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo

transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute

a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a

uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de

Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre

o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem

procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas

Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial

primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e

ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute

natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se

oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o

disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas

se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle

disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz

e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)

Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz

oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial

O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento

salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante

Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos

lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que

estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem

Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da

experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo

de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de

preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe

instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais

133

No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura

analisada e aos evangelhos sinoacuteticos

O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora

acessiacuteveis a todos os que as buscarem

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo

Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave

porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca

de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles

transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)

134

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho

carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo

interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo

entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284

ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que

vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam

como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que

estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim

consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu

Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo

Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da

imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na

presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em

fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos

pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda

Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a

carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila

para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285

283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162

135

Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon

sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu

uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou

consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os

raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que

gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex

227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex

240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos

luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de

Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo

Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma

ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente

meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas

ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas

de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de

nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos

ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao

redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o

queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo

Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus

hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal

Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104

Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o

olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo

traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo

causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo

acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de

fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do

sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio

286Cf Idem 106

136

ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode

recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a

imortalidade (αθανασίας) (104)

No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda

muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim

conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente

transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento

esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por

meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia

Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser

deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287

Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave

experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem

natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do

que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que

a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas

sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288

Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus

estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o

fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa

Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se

encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute

perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial

Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento

central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos

Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute

ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da

imagem da luz do Pai

Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz

da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na

presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus

ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder

287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108

137

transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores

estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila

judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam

esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus

O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma

de misticismo transformacional

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289

Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a

revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos

como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte

da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os

sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os

justos os santos e os escolhidosrdquo

Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos

santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os

segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria

ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila

pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a

injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291

Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147

em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles

estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras

tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem

recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do

conhecimentordquo292

Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no

lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293

289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81

138

A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a

aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave

linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo

em 4 Esdras 1438-41

ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a

beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida

estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi

e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a

minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a

minha boca foi aberta e jamais fechadardquo

Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire

conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para

descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca

eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do

fogo

Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a

condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84

explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras

palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si

mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe

eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294

A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar

fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino

Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes

tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me

intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa

ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se

natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296

294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93

139

As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia

comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que

emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si

mesmo297

Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano

no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298

Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da

existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos

conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima

intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem

do corpo no Evangelho de Tomeacute299

O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e

antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus

supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito

O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte

de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se

aprisionada no corpo humano

O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na

qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica

interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes

(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em

Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo

Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo

sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo

cultural heleacutenico

Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta

temaacutetica

A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente

com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que

encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma

297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54

140

compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e

enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento

Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg

568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)

O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento

afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida

Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e

ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na

exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de

contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute

ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo

(Lg 112)

ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que

depende destes doisrdquo (Lg 87)

O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne

sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)

ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos

alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os

nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos

que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do

corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo

Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de

escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e

Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma

Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que

ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira

afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo

seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute

ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301

Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como

uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia

300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59

141

resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria

entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da

filosofia greco-romana302

O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma

condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo

que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois

corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta

interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303

Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um

corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever

Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de

Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural

Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma

plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende

do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo

universal

A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um

indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do

asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias

restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior

Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a

descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do

mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas

lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma

compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo

experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores

sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si

mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de

Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo

pessoal

ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que

conheceram o Pai em verdade

302 Cf Idem 60 303 Cf Idem

142

Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o

tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)

Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos

inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a

vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente

Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304

O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento

preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-

se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos

ldquomovimentos de Jesusrdquo

Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o

homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo

apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de

perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe

que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados

De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que

encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e

reinaraacute sobre o Todordquo

Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando

sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais

notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus

existem na sua forma concreta como um texto escrito

A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo

por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete

repetidamente no seu significado

ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo

corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)

304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273

143

Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo

Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual

seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo

esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta

eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a

realidade fiacutesica em termos de origem307

Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o

homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de

vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29

corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que

o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave

animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a

prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que

atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a

lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310

Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos

eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase

em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e

guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social

(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo

autorizadas

6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no

evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido

na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus

iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas

espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita

existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que

explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo

de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era

144

gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de

gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria

Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia

gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo

interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode

salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de

Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312

O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro

autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia

gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo

eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia

Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o

conhecimento de Deus

Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas

disponiacuteveis em Nag Hammadi

ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu

a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313

ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde

e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo

o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso

O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de

onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da

sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314

A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser

humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua

realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino

considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a

sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo

contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos

estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo

religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 149

145

Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a

iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as

realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo

O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees

no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo

de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as

ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo

Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como

a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de

escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas

geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes

que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes

livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de

interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram

deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315

Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas

uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual

As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram

comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da

antiguidade

Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental

influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel

transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado

apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas

Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como

verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees

O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em

concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos

leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega

315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus

146

Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a

novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo

da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido

Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no

autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender

que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo

Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros

revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam

entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam

assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual

A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual

gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute

agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a

difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento

distintas

Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica

Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita

no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se

encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma

ortodoxia definida

Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a

experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior

de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e

adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro

de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras

sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes

Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que

surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros

contextos

Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o

gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo

signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se

assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem

147

Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo

se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316

seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que

possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da

experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta

temaacutetica317

O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas

doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais

abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual

do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo

apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e

como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma

questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma

exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com

revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender

As variedades da experiecircncia gnoacutestica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem

pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do

conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do

segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito

(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a

interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a

descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da

histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador

dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos

Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o

gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem

algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da

mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no

pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo

316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)

148

este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a

alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento

evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas

Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma

conotaccedilatildeo positiva318

O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este

adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e

operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o

conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo

Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que

alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de

Deus e das verdades superiores

O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter

trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade

de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como

ldquoa gnose que nos foi dadardquo321

Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os

acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes

uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica

definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada

chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322

Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios

fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro

lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -

falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir

que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia

perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de

Valentino e a sua escola

318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem

149

Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos

valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as

doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325

Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo

especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos

O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma

designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria

Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo

num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria

Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo

ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo

era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes

conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus

Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento

gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque

preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais

corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as

manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos

gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326

No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos

espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo

mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro

lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se

a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327

A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por

gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim

como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328

Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de

situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade

foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a

325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12

150

designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos

orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo

perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados

para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma

particular de viver a vida

Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas

respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana

Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo

para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo

Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os

gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu

tempo

Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees

entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica

Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos

sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico

geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses

conhecimentos esoteacutericos

Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e

espiritualmente conhecimentos superiores

O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos

primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas

escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era

comum

Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico

isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o

gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329Cf Idem

151

problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava

separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens

deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar

de libertaccedilatildeo

Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos

tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso

O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o

conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas

No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano

nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a

salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus

Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm

conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em

Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente

A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos

descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para

voltar ao estado da imagem divina no corpo humano

No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz

gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de

iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto

perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo

Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito

gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico

O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de

pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de

conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente

O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a

lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura

encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza

gnoacutestica do evangelho de Tomeacute

O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem

humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino

satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico

152

Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou

na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu

pensamento

ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou

Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos

onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o

que constitui um renascimento [real]rdquo

- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782

Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos

do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo

A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua

mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve

em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas

Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332

ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes

da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial

apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do

antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde

todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo

330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash

Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e

dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo

encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma

criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos

apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de

Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo

primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio

metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-

lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o

pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim

e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis

153

de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo

com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que

chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz

primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo

retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua

substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que

superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)

recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos

(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo

humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu

no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo

estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de

facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira

pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos

os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma

emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e

a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos

disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um

movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos

inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis

dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que

interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina

dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar

Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a

questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o

procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e

ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24

154

o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo

146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a

luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao

homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua

imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem

divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos

nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo

para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma

parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a

forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no

quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo

pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a

exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335

Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua

ideologia religiosa

7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute

Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica

sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do

evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente

considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias

diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de

natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico

descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases

fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute

A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute

e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e

metafiacutesica entre o ser humano e o divino

335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27

155

A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos

tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos

fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do

nosso pensamento

No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da

unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por

excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma

correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e

antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia

ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o

conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades

superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser

unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que

natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo

aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da

gnose338

O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de

Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da

experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade

antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade

metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339

Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da

perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo

reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os

fenoacutemenos da existecircncia

Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus

quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial

Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas

vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de

gnose

337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem

156

Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de

solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o

processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a

solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo

dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral

Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo

gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa

Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a

um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute

os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o

conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial

Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado

atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os

temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo

associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial

A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute

eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)

Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de

pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este

padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho

O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da

tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de

Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal

No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema

da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus

correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340

Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico

essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus

Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que

a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a

Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma

mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria

340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817

157

ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo

abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis

A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e

penetrardquo342

Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita

com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a

Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela

aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do

Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e

transcendentes

A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria

e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da

qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu

aspeto de Sabedoria343

Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo

miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas

O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante

agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes

faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata

obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes

tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga

eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano

Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute

esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da

racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores

ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a

imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344

342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817

158

Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no

coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do

seu interior

Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor

da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes

exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna

possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar

a sabedoria e o conhecimento de Deus

O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura

intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado

idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia

paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de

separaccedilatildeo entre o divino e o humano

Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a

humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria

humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo

deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento

religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai

eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante

deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu

papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o

sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e

do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel

e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo

Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no

pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento

Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute

de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de

Tomeacute

Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu

pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a

escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma

realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse

159

Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro

estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas

doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como

conclusatildeo

Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos

as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de

Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora

nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses

A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial

assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo

Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da

linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca

Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-

existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo

(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e

fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)

Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de

todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa

evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo

eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara

nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser

humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No

dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que

fareisrdquo347

A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos

disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348

345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18

160

Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento

de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo349

Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar

no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu

pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio

A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se

alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave

eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos

atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no

conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente

A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o

inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da

compreensatildeo

A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua

lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino

conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade

Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da

interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio

Jesus Vivente

Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo

da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do

corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como

intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um

conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que

inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento

Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que

inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo

Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da

leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave

consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos

349 Log 1

161

Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos

duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede

de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria

Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um

reino de luz primordial em que o ser humano era majestade

O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o

humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se

unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24

61)

Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve

os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo

Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a

imagem e a luz

Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo

menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente

Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da

cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro

estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando

analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto

do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido

Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai

receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo

tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350

A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos

seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica

Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram

revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua

imortalidade

A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria

assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar

mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo

350 Log 19

162

mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma

interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo

A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir

para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o

casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade

Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar

forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do

divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de

pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as

implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias

Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente

em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo

como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu

interior o disciacutepulo salva-se (log 70)

Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o

exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece

sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade

alinha-se em conformidade com essa luz primordial

No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como

ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de

Israel

Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de

Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia

ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do

templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria

Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo

miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas

realidades celestiais

Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o

momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica

Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a

uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a

unir-se com o divino

163

No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos

evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas

religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do

saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351

A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais

sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades

a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma

privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do

Reino

O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido

como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos

laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os

que conheceram o pai de verdaderdquo352

O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo

ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353

A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita

a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o

terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua

memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de

unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica

expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua

organizaccedilatildeo

Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no

coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)

Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda

reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do

mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo

que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma

351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59

164

meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo

visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai

A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no

Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os

elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados

em Tomeacute

Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se

encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades

interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo

Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo

o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial

O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio

concreto onde ela se localize

Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute

um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de

quem a aborda ela expande-se ou contrai-se

Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da

minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas

ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354

A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia

o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo

A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo

que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem

Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de

Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591

165

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos

nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara

e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e

entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no

Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios

O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na

divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a

distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo357

356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82

166

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358

A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de

experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos

miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel

contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos

que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma

como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o

divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia

interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo

comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num

desejo de transcendecircncia

8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute

A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada

sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia

dos vaacuterios resultados apresentados

Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma

hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos

entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns

na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da

existecircncia humana a sua origem e o seu destino final

Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo

metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do

secreto

A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da

tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo

358Cf Deconick D April (1996) 105

167

Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o

evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na

Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da

literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas

Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso

sapiencial da Sabedoria

Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do

Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute

O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por

parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a

forma como o mesmo mito era interpretado

O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para

as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden

Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de

gnoacutesticos

A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis

aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois

mundos que convergiam neste debate

O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do

adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo

mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo

mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu

mestre

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)

Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus

A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste

loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos

de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila

divina interpretada com o simbolismo do templo

Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o

santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas

Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a

se transfigurar na mesma

168

A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes

da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese

facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do

significado da cacircmara nupcial no evangelho

Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde

existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua

redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em

Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo

celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto

encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do

evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do

templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica

Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental

na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na

tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em

oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do

evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a

sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada

como base ideoloacutegica360

No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne

onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era

impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o

proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade

Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens

afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra

Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como

uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)

Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na

cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde

tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio

poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai

tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um

359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274

169

reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas

teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como

Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto

Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para

entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos

Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso

de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza

divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino

Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos

outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute

A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a

unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus

A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para

integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo

A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion

22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o

de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino

natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de

um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em

lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da

transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362

Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo

com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma

imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363

No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a

Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas

seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a

imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que

361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os

humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres

humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser

divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente

fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438

170

concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem

divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que

Cristo eacute

Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg

22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho

natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser

assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser

transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)

A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no

evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos

dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um

chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma

natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no

seio da luz (lg 11)

Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa

situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave

identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute

estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a

derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o

mestre

ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele

e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito

ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de

Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica

da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que

entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)

O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira

instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos

ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de

traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes

leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida

Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente

descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que

Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores

171

Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho

por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes

Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de

compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus

textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees

orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que

estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos

apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos

Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de

Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque

Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo

grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus

textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden

que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem

Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe

permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam

despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se

ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que

prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos

processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que

era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute

A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria

possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma

que estes leitores consideravam adequada

No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na

variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira

interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364

Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon

descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras

ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo

Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e

isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo

364 Cf Levison (1999) 38

172

Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o

propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da

atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65

ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou

impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio

do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das

profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem

o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo

Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento

as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente

humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar

conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo

O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates

Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)

O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave

inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366

Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)

reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo

a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates

era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do

espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates

corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom

profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados

inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes

como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo

(2187)367

De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria

iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter

recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra

elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins

365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46

173

ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria

alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este

pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute

realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a

soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo

misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua

soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da

soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas

destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher

27-29)

A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor

afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com

estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua

experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior

expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior

dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento

elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)

as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala

(Som 2252)368

Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis

onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas

revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que

afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia

sobre os detalhesrdquo (588C)

A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o

inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo

sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de

revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem

naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca

pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da

368Levison (1999) 50

174

verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares

de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das

vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos

antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion

Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia

de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do

filho da luz

175

Bibliografia

Fontes Primaacuterias

Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston

Brill

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics

of Western Spirituality

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co

Ludgate Hill

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa

Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros

Textos Gnoacutesticos Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman

Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings

James Clarke amp Co Louisville

176

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos

1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e

grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas

o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees

Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das

paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas

a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias

indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos

Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20

3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em

etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim

In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507

Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto

de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem

documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de

interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC

nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem

em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos

tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os

pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o

symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram

eco nestes manuscritos

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute

relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

177

A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas

antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias

camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento

importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar

onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em

termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo

simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por

exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316

ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais

associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco

Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos

e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Outros autores judeus

Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se

fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no

evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia

178

Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os

significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas

associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que

Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao

longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo

corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha

responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra

judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho

no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do

elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos

fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Textos Rabiacutenicos

Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo

literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que

permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o

interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos

eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei

oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos

A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo

releeituras das tradiccedilotildees anteriores

Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo

da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a

sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados

homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo

sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico

que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave

escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos

179

Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford

Midrashim

Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do

quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de

pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente

textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso

destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma

circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese

responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos

ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para

explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua

antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo

histoacuterico em discussatildeo

Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The

Soncino Press

Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma

exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o

capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado

TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London

Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da

Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que

tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma

complete no seacuteculo doze

TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo

anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios

180

celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose

desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da

memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria

elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute

lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano

ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute

transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de

hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos

produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a

literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm

com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais

autoinduzidas

Davila R Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation Brill Boston

Bibliografia e Fontes Secundaacuterias mencionadas no texto

A Seth C (2014) Know Yourself and You Will Be Known The Gospel of Thomas and Middle

Platonism Paper 92

A E C (2000) The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity Studies in

Language and Tradition Sheffield Academic Press

AFJKlijn (1962) The Single One in the Gospel of Thomas In Journal of Biblical Literature

(pp 271-278)

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Barker M (1990) The Gate of Heaven The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem

Spck Dallas Theological Seminary

Barnard L (1968) The Origins And Emergence Of The Church In Edessa During The First Two

Centuries AD Nort-Holland Publishing Co

Caroline Johnson Hodge S M (2013) The One Who Sows Bountifully Essays in Honor of

Stanley K Stowers Brown Judaic Studies

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Christopher J-M R (2006) The Temple Within In Paradise Now Essays on Early Jewish and

Christian Mysticism (pp 145-179) Society of Biblical Literature

181

Colson F amp Whitaker G (1934) On Flight and Finding On The Change of Names On Dreams

Loeb Classical Library

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dan J (2002) The Heart And The Fountain Oxford University Press

Danby T H (1933) The Mishna Oxford Oxford

Davies S (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom New York The Seabury Press

Davies S L (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom The Seabury Press

Davies S L (1992) The Christology and Protology of the Gospel of Thomas 111

Davies S (nd) The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible Retrieved Abril 13 2017

from Oxford Biblical Studies Online

httpwwwoxfordbiblicalstudiescomarticleoprt280e73

Davila J R (2001) Descenders to the Chariot Boston Brill

Davila J R (2013) Hekhalot Literature in Translation Boston Bril

DeConick A (2006) Paradise Now Essays On Early Jewish and Christian Mysticism Society of

Biblical Literature

Deconick A D (1996) Seek to See Him Ascent Ascent and Vision Mysticism In The Gospel Of

Thomas EJ Brill

Deconick A D (2001) Voices of the Mystics Journal for the Study of the New Testament

Supplement Series 157 Sheffield Academic Press

DeConick A D (2014) Histories of the Hidden God New York Routledge

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston Brill

Elior R (2004) The Three Temples On the Emergence of Jewish Mysticism The Littman Library

of Jewish Civilization

Elior R (2009) ) From Priestly (And Early Christian) Mount Zion to Rabbinic Temple Mount In

Where Heaven and Earth Meet Jerusalems Sacred Esplanade

Fossum A D (1991) Stripped Before God A New Interpretation of Logion 37 In The Gospel of

Thomas In Vigiliae Christianae 45 E J Brill

Fossum J (1985) JsJ In Gen126 and 27 in Judaism Samaritanism and Gnosticism (pp 202-

239)

Gathercole S (2014) The Gospel of Thomas introduction and commentary Texts and editions

for New Testament Study Koninklijke Brill NV

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

Halperin D (1988) The Face of the Chariot Early Jewish Responses to Ezekiels Vision

Tubingen Mohr

Hartin P (1999) The search for the true self in the Gospel of Thomas the Book of Thomas and

the Hymn of the Pearl HTS

182

Hayward C T (1996) The Jewish Temple London Routledge

Hayward C T (1996) The Jewish Temple A Non-biblical Sourcebook Routledge

Heine R E (1989) Commentary on the Gospel of John Books 1-10 Washington Catholic

University America

Himmelfarb M (1993) Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses Oxford

University Press

Himmelfarb M (2013) Between Temple and Torah Essays on Priests Scribes and Visionaries

in the Second Temple Period and Beyond Tuumlbingen Mohr Siebeck

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Janowitz N (1989) The Poetics of Ascent Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text

State University New York Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet Edition

Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Levison J R (1999) Of Two Minds North Richland Hills Texas Bibal Press

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University

Press Association

Luomanen P (2012) Recovering Jewish-Christian sects and gospels Supplements to Vigiliae

Christianae

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text Verlag

Algred Toperlmann

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics of Western

Spirituality

Mattanyah I S (2007) Hellenism Dominates the Near East and Unites East and West in

Climate Change ndash Environment and History of the Near East 2nd Edition Springer

Millar F (1993) The Roman Near East 31 BC- AD 337 Harvard University Press

Najman H amp Newman J (2004) The Idea of Biblical Interpretation Essays in Honor of James

LKugel Leiden Brill

Neusner J (1965) A History of Jews in Babylonia vol 1 The Parthian Period LeidenBrill

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Pagels E (1999) Exegesis of Genesis 1 In the Gospels of Thomas and John Journal of Biblical

Literature pp 477-496

Patterson J (2013) The Gospel of Thomas and Christian Origins Leiden Koninklijke Brill NV

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co Ludgate Hill

183

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros Textos Gnoacutesticos

Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Ross S (2011) Roman Edessa Routledge

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings James

Clarke amp Co Louisville

Scholem G (1965) Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 2nd ed

Jewish Theological Seminary of America

Segal P (1990) Paul the Converte The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee Yale

University Press

Sheck T P (2015) Commentary on Isaiah Homilies 1-9 On Isaiah New York The Newman

Press

Simon H F (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The Soncino Press

Smith D C (2010) The Kabbalistic Mirror of Genesis Rochester Inner Traditions

Strecker P V (1991) ldquoJewish-Christian Gospelsrdquo New Testament Apocrypha Vol 1 Gospels

and Related Writings James Clarke amp Co

Stroumsa G G (2015) The Making of the Abrahamic Religions in Late Antiquity Oxford

University Press

Stroumsa M B (2010) Paradise in Antiquity Cambridge Cambridge University Press

Uro R (2003) Thomas Seeking The Historical Context Of The Gospel of Thomas TampT Clark

Valantasis R (2007) The Gospel of Thomas Routledge

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Villeneuve A (2016) Nuptial Symbolism in Second Temple Writings the New Testament and

Rabbinic Literature Brill

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New York Tampt

Clark

184

Page 4: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé

4

5

6

7

8

9

Resumo

O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido

literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao

seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e

significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias

e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao

desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental

nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees

qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos

sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo

as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de

Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica

do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de

Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir

da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura

de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo

antigo

Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico

figura de Jesus cristianismo primitivo

10

Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have

been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its

reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings

to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a

research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of

the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development

of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to

answer the following questions what was the historical context of this gospel its social

space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message

and what are the specific characteristics of language and experience in the early

Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the

historical understanding of the development of the Christian mental space in the first

century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a

new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian

movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social

contexts and geographical spaces of the ancient world

Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of

Jesus primitive Christianity

11

Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como

misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute

Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A

sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu

intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu

sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave

minha tatildeo doce Virgem Maria

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades

maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza

ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus

e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado

com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele

o guarde eternamente

Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a

iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e

imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o

uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os

exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo

racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela

vontade do Pairdquo

Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2

12

Iacutendice

Introduccedilatildeo 14

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20

Literatura Profeacutetica 21

Literatura Sapiencial Judaica 21

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24

Uniatildeo Nupcial no Templo 24

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36

Os Manuscritos 37

A Liacutengua Original de Tomeacute 37

A Data de Tomeacute 38

A Origem do Evangelho de Tomeacute 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65

A Gloacuteria do Trono 69

O Templo 70

A Merkavaacute 72

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92

6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo

simboacutelico 95

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97

Eacuteden 100

13

O Grande Mar 102

A Fonte da Vida 106

Os Rios do Paraiacuteso 108

O Veacuteu 110

Por Detraacutes do Veacuteu 114

A Grande Luz 118

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122

A Imagem e a Luz 125

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138

7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143

As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150

8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154

9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166

Bibliografia 175

14

Introduccedilatildeo

ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10

O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar

a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona

os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside

nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos

alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico

para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute

Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos

por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses

evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado

Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o

simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave

hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia

cristologia e protologia apresentada por Tomeacute

Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente

interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees

simboacutelicas do texto

Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o

panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem

valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual

Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma

linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial

no Evangelho de Tomeacute

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese

apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico

No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a

metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da

cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo

pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas

do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute

15

Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para

contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve

discussatildeo dos conceitos religiosos do documento

No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na

histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no

espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que

influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma

importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais

judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento

No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a

compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da

linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do

proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio

Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo

fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um

mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos

dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas

satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais

da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1

Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal

a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia

humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se

manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por

este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do

evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso

de presenccedila interior

Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as

temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia

religiosa do evangelho de Tomeacute

1 Lohuizen Wali Van (2011) 3

16

No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico

que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria

forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as

realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos

cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos

siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o

processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho

eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser

humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas

afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma

produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave

sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo

O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo

no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute

a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas

atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um

gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere

facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica

Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de

Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta

exegese

Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios

mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto

de Tomeacute

Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma

realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta

conclusatildeo

Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomeacute

O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no

pensamento do judaiacutesmo de II Templo

Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao

ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a

17

compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento

judaico e no Evangelho de Tomeacute

Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e

aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do

seu contexto

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco

O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva

dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem

teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos

enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomeacute

Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda

na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo

cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro

O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da

doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta

opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios

reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador

Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de

Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de

Ahiqar e textos sapienciais de Qumran

Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo

substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino

da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio

posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a

caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento

filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute

18

Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no

periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de

interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de

Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a

versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute

recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As

obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo

completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc

As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana

assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e

devidamente identificadas nas passagens traduzidas

19

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia

As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa

seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos

influenciaram a textualidade de Tomeacute

Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute

Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo

Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos

de Joatildeo e Filipe

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando

historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes

tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute

A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia

Hebraica e na Literatura Sapiencial

Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns

dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos

posteriores

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como

Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos

pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos

Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos

textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais

no Evangelho de Tomeacute

20

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre

Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que

envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano

As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar

num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico

Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como

marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma

realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o

retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do

matrimoacutenimo com o divino

Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O

que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa

leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de

Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo

da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino

Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a

imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano

uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se

com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4

Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo

recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de

Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos

inserem-se neste mesmo padratildeo

Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria

Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado

ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que

se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano

2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem

21

Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num

evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido

no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor

nas vidas das geraccedilotildees subsequentes

A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-

humano no final da histoacuteria

Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios

da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai

o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos

Literatura Profeacutetica

Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns

profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute

direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo

intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino

do Norte6

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma

uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica

da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos

preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel

para com o proacuteximo

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da

Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus

identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora

Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas

vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e

6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26

22

amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma

sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante

A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial

apresentada pela literatura sapiencial

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do

casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido

Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora

Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos

Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da

crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de

cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela

A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela

Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo

antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos

Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo

com o homem

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave

cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas

dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre

Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a

uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial

Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no

tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura

Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento

no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e

pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico

dos Cacircnticos

Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara

Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe

9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29

23

Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo

ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel

fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente

transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo

para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11

Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de

simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado

com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal

redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia

sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da

eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente

associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais

frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da

criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por

Cristo o novo Adatildeo

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o

Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os

temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro

casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13

Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os

nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com

que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao

estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes

no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de

Tomeacute

11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem

24

Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o

significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia

destas tradiccedilotildees

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai

Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por

um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo

do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel

No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio

pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo

Uniatildeo Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo

nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai

eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de

Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se

relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos

do batismo e da eucaristia

Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo

lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto

nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo

O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado

Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo

Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo

Testamento

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no

templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do

Sinai

25

miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos

do batismo e da eucaristia15

Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara

Nupcial

Os templos de vaacuterios povos antigos

consideravam o Templo especialmente o

Santo dos Santos como o lugar

simboacutelico que representava a Cacircmara

Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como uma

atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai

O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para

perpetuar a teofania do Monte Sinai entre

o povo de Israel

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo

de simbolismo coacutesmico sendo

considerado um microcosmos que

representava o universo inteiro Tambeacutem

eacute relevante a ideia antiga do homem

como microcosmo e templo uma ideia

encontrada no Novo Testamento onde o

fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o

ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece

entre o humano e o divino

O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a

fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar

onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do

divino na terra

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo

Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a

traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem

Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos

necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial

As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma

ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento

A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o

capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em

todas as ressonacircncias

15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56

26

O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura

personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se

a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte

feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina

Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica

O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo

da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos

tempos

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria

encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)

ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo

Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca

ela se exalta diante do seu Poder

lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens

Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste

eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira

reinei sobre todos os povos e naccedilotildees

Junto de todos estes procurei onde pousar

e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo

Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico

da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma

ψυχὴν αὐτῆς)17

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo

de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na

tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios

No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem

em Deus e a sua universalidade

Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo

Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a

palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde

17 Cf Villeneuve A (2016) 57

27

como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria

ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando

ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn

12)

O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica

que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19

Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central

do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e

terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma

reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu

O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna

que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo

e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22

A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave

coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23

Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as

mentes que estudam a virtuderdquo24

Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a

nuvem como uma ponte entre as duas esferas

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua

identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a

paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de

sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas

caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25

Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens

primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo

A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo

18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na

referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl

987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19

28

O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o

termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a

escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo

(Gn 12)26

Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando

presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27

O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o

universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os

dois elementos do mar e da terra

Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar

especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo

Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo

dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos

de nota28

A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o

universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela

deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos

limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte

Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora

Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel

A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)

ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem

aquele que me criou armou a minha tenda e disse

lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo

Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio

e para sempre natildeo deixarei de existir

Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei

deste modo estabeleci-me em Siatildeo

e na cidade amada encontrei repouso

26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59

29

meu poder estaacute em Jerusaleacutem

Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria

no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo

Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o

ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens

Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da

sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de

Israel

No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que

habitasse em Israel

O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-

se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao

fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu

reino sobre a esfera espacial

ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo

(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu

processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo

Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)

ldquoCresci como o cedro do Liacutebano

Como o cipreste no monte Hermon

Cresci como a palmeira em Engadi

Como roseira em Jericoacute

Como formosa oliveira na planiacutecie

Cresci como plaacutetano

Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume

Como a mirra escolhida exalei bom odor

Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque

Como o vapor do incenso na Tenda

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da

criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a

um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas

por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21

30

Estendi os meus ramos como o terebinto

Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila

Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos

E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado

A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra

de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos

Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva

localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos

Cacircnticos

No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o

palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)

associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413

A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do

rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)

Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se

trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute

associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30

A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)

tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a

noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)

Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no

Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica

O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)

Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)

As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios

satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)

A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora

Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden

30Cf Villeneuve A (2016) 63

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)

ldquoVinde a mim todos os que me desejais

Fartai-vos de meus frutos

Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel

Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel

Os que me comem teratildeo ainda fome

Os que me bebem teratildeo ainda sede

Quem me obedece natildeo se envergonharaacute

Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo

Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete

sumptuoso para comerem os frutos que ela produz

Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o

vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu

vinho31

O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo

universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden

Monte Sinai e no Templo32

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos

Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros

pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no

primeiro seacuteculo da era comum

As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que

datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do

fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu

amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de

Deus participante na sua imortalidade

31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73

32

ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)

Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o

Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal

verdadeiramente seraacute imortalrdquo

Ode de Salomatildeo 35-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser

humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana

para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi

considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)

Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou

beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do

Espiacuterito Santo33

ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro

de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)

Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o

jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre

aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa

nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-

9)

Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como

sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos

escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de

aacuteguas vivas

As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura

mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste

contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo

Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel

procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo

Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34

33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279

33

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute

Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder

a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute

Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados

e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns

elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e

posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver

O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho

de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo

textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico

reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute

Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio

unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de

um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si

Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira

encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados

(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem

hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que

eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que

se orerdquo

A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e

antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua

mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela

perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o

mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na

cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida

Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da

existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees

Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute

ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema

existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o

Reino dos Ceacuteus

34

Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma

identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser

fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho

o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e

responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo

natural do divino na consciecircncia)

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em

termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz

A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das

palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte

Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano

espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua

boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos

melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos

revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando

colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto

Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e

o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canoacutenicos

Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos

canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o

retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar

em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada

E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso

O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus

Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos

do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo

entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz

e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios

Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque

para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo

interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por

este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial

35

No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada

um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico

Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na

eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo

duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de

comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o

disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica

eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus

Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do

misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo

menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval

A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou

divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre

dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de

duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos

sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais

simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo

A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso

trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na

experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves

manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de

misticismo mais tardias como a unio mystica

O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado

para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um

processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se

entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro

conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura

inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e

o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino

e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

36

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo35

A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a

explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica

no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo

completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo

de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra

nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem

Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com

profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que

acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute

O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo

Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra

O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua

reflexatildeo na audiecircncia que os escutava

A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa

investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode

ser interpretado legitimamente como tal36

A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos

gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel

defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute

Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe

Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito

No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de

Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -

ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo

Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto

35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43

37

O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do

cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de

Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente

heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem

num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta

termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados

gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic

publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os

Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma

coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido

por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe

O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do

seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um

evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente

proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38

Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto

de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um

tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39

A Liacutengua Original de Tomeacute

A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta

onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo

do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria

dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41

38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by

Stevan

Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91

38

Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos

textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes

num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a

frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que

reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil

uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42

O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo

alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo

Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta

encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o

texto

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos

manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a

liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em

manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de

Tomeacute

A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os

evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo

relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute

O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os

documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o

Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de

Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas

siriacuteacos43

Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de

manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem

originais siriacuteacos ou aramaicos

A Data de Tomeacute

41Cf Idem 91

42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97

39

Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa

complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser

datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito

onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo

em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta

e cinco dC

Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de

acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de

Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos

dC

Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave

confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71

O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos

de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila

para atestarmos esta dataccedilatildeo

A Origem do Evangelho de Tomeacute

Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute

A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito

Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em

Edessa

Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a

origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades

de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura

siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute

O nome Judas Tomeacute

44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria

40

Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo

aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute

Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma

particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo

eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo

geacutemeo de Jesus48

Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco

Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo

em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram

o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113

com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde

ocidental

O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria

da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5

Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em

siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49

O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo

encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego

aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um

apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50

Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido

provavelmente na Siacuteria

A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo

e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel

nalguma literatura maniqueiacutesta

Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos

As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca

48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10

41

ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os

vossos vestidos e os colocardes sob

os vossos peacuteshelliprdquo

Evangelho de Tomeacute 37b

As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes

nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as

Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma

literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande

Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se

na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de

ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)

O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que

Jesus disse a Judas Tomeacute

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma

problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o

seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo

do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de

radicalismo social51

Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um

misticismo unitivo ou um produto valentiano

No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada

escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das

lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios

termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees

O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a

sua teologia central

51Cf Gathercole Simon (2014) 144

ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto

que o manto da vergonha me foi

tiradordquo

Atos de Tomeacute 14

42

Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent

Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo

significativo agrave leitura de Tomeacute

A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da

linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior

ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53

Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto

pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a

ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente

seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1

Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do

judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade

tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras

continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em

Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia

Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes

divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas

da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem

No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros

disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para

lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo

A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte

onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel

desvelar novas realidades

Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente

na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos

tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as

instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai

A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21

vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o

como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)

52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145

43

O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg

57 76 96-99 133)

Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534

Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente

de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)

estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)

Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39

6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)

Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o

reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)

Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence

aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas

(lg 22 46)55

Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se

encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)

A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56

Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos

no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn

1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por

um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58

Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa

matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo

O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda

desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que

eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um

divisor (lg 72)

55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11

44

A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo

valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis

Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do

eleito

Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao

corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62

Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)

Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o

ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao

conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um

misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo

No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e

vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos

corpos

Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro

motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos

deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade

entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De

Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer

apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de

Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio

(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)

Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute

necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica

que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da

criaccedilatildeo65

O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada

acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute

repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute

62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148

45

O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que

proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para

cimardquo)

O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma

ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no

mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia

acrescentando ldquoespada e guerrardquo

Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual

os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg

110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo

O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o

reino se expande (lg 113)

O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo

contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro

Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu

maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma

posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)

Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla

dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem

fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)

Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma

oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute

A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute

encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como

ldquocarnerdquo (lg 28)

Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo

nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia

Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg

55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito

(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)

Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser

espiritual feminino (lg 105)

66Cf Idem 151

46

Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica

fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)

O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo

para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta

revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio

para escapar da morte

O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias

variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias

20 possuem um significado teoloacutegico68

Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As

referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado

defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees

psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo

do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70

A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no

Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais

como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de

ldquorepousordquo

Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg

59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)

A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica

assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute

O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das

tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado

Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento

religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia

de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos

comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este

evangelho

Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por

estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo

67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152

47

oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo

a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou

juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original

que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre

deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes

encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino

Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para

Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens

materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72

Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou

forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua

linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas

com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde

Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de

ensinamento religioso fornecido por Tomeacute

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo

O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua

composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o

misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar

quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal

heleniacutestico

A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar

iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso

Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do

sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno

do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito

assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo

O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas

mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo

71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)

48

Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os

Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o

Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as

elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da

Greacutecia claacutessica

Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os

nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas

cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma

profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com

a conquista islacircmica75

A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no

comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade

As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees

extensas incluindo franjas do deserto76

Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da

Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus

que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este

periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia

cultural persiste ateacute hoje

O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a

nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova

dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico

surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77

Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute

oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo

helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo

A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos

sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o

estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79

75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem

49

Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar

e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que

posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas

vezes esoteacutericas e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que

viaja com o viajante

De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste

meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma

revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual

Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e

traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do

Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como

eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas

religiosos deste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do

Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos

velhas crenccedilas e suposiccedilotildees

O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os

primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na

histoacuteria do livro ateacute Gutenberg

Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex

foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma

nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade

reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de

Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o

texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81

Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas

Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste

periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como

divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas

nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo

80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30

50

O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a

destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC

A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos

dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico

Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo

sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo

foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas

O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado

por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era

chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus

Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio

de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido

pela igreja dos primeiros seacuteculos

Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram

substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta

dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma

atitude miacutestica e interior da busca do divino

Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e

presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos

rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes

O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da

individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa

exegese interior

A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser

intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de

ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas

oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal

Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia

do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo

e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada

82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39

51

Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas

significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo

encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica

Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos

estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos

Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas

evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova

perspetiva sobre as tradiccedilotildees

A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original

natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria

original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado

ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a

narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo

O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da

histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os

evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute

O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes

documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as

comunidades tinham da figura de Jesus

Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando

recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu

kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria

Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus

num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de

ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do

impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam

relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e

ressurreiccedilatildeo

Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado

Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao

Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio

Eufrates

83Cf Patterson J S (2013) 10

52

A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos

que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser

completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84

Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo

comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se

encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute

parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na

grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a

norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura

literaacuteria antes do advento do cristianismo85

Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas

poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da

Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a

subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua

submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio

Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86

A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser

pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado

durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que

Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua

semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87

A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades

siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de

Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos

fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a

organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da

sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma

84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem

53

evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos

Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve

raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do

cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades

semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel

estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos

importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa

tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram

recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de

Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial

das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do

primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e

se misturaram90

Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria

ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos

primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura

intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo

de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto

oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas

feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial

do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros

ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de

quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os

pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo

Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um

entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da

tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida

88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42

54

como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu

manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da

sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos

poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta

experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram

no ocidente no outro lado do Eufrates

Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de

convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores

Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a

ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e

as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo

presentes em Tomeacute

Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes

para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a

leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso

natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica

entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de

violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus

se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente

harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos

O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de

cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que

desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da

vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e

valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo

O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de

interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel

da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o

futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da

identidade cristatilde

A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se

claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um

95 Cf Patterson J S (2013) 25

55

martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no

qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus

Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado

dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como

dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa

para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma

experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar

verdadeiramente a vida de Jesus97

No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo

um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos

pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes

eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o

Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este

Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o

ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se

encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado

A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-

se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia

de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar

da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si

proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante

diferente

O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do

segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu

pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e

cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da

criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da

crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de

pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do

periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os

quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil

96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30

56

O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que

esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais

unificadores99

O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo

A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e

o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos

cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma

platoacutenica100

Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute

notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia

centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo

geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as

vivecircncias em ambos os contextos

Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo

assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo

sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102

A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas

de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo

Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta

apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de

sabedoria

A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em

concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento

platoacutenico103

98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15

57

A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de

voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha

corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute

O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades

de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica

Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a

Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto

interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da

Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105

Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se

estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas

judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros

dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que

prosperava nestas cidades107

Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse

filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia

entre Platatildeo e Geacutenesis

Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1

na textualidade de Tomeacute

Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas

helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era

masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado

unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres

voltariam (lg 22)109

Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia

platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa

mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma

104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278

58

centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano

mortal (lg 29)110

Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido

dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e

para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111

O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao

reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo

originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)

ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg

50)112

O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no

ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma

perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e

perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres

passageiros113

O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de

vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria

contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo

Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e

os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de

Jesus em Edessa114

A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por

vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o

autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a

identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz

divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida

freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115

ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo

110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37

59

ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na

filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas

correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti

proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima

agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta

interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma

no iacutentimo do ser humano

Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de

Deus

Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois

seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e

Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o

iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte

divina ele conhecia o divino116

Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo

ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino

dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem

consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo

grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender

como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele

possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117

Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este

entendimento acerca da mesma maacutexima

ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi

feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os

fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do

universordquo118

116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)

60

Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos

platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os

aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada

Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-

se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as

perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-

se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus

suacutebditos

ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez

mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute

ouvidos a ti mesmorsquordquo 119

Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a

manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico

mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos

noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se

retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o

mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute

contemplaccedilatildeo daquele que eacute

Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este

ldquocasco de courordquo122

Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro

eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do

corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para

superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos

dois primeiros seacuteculos

Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o

risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute

Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem

O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo

empregando os termos teacutecnicos do platonismo123

119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477

61

Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de

descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam

tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente

O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute

Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza

humana e o seu destino

O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do

pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute

ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o

corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124

Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os

estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia

aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo

era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os

nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo

tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de

ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no

platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma

A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor

antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por

que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era

miseraacutevel

O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo

morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um

corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo

Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E

esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute

123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus

ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the

universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation

to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies

(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material

bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)

62

Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do

mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo

A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o

disciacutepulo mais digno do que o mundo

A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no

pensamento platoacutenico126

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo

A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese

apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a

investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um

montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho

judaico-cristatildeo127

Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo

apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de

Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde

(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos

judaico-cristatildeos

(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos

incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas

(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere

uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo

(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e

no cristianismo judaico

(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios

Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre

o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo

126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes

(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have

already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are

corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the

borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be

Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp

DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200

63

As seguintes passagens

(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV

963

(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145

(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad

Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3

(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514

Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da

Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute

a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada

Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de

Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute

Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos

estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute

O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do

nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras

de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado

como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128

Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto

porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9

(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo

ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)

Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c

7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio

Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo

Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho

Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o

judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos

128Cf Luomanen Petri (2012) 202

64

Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no

proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo

seacuteculo

A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e

duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e

quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo

Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma

cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos

Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma

exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso

A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra

aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o

repouso em Jesus

ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos

lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo

quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele

e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria

descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na

eternidaderdquo129

A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo

Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo

aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos

Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde

Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus

seguidores

Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma

voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter

dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho

dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus

129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322

65

ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-

me para a grande colina o Taborrdquo131

O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)

geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de

Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao

Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de

Jesus e a sua matildee verdadeira

ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132

Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente

nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma

teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute

- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e

ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas

Lg 24b

O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias

associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e

culturas

Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram

utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo

lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para

descreverem as suas experiecircncias133

Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas

experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou

lsquorevelaccedilatildeorsquo

A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como

visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma

131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2

66

viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas

preparaccedilotildees e rituais serem realizados

O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e

cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros

angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134

Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do

nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades

antigas para investigarmos a sua religiosidade

O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos

para denotar o fenoacutemeno cristatildeo

Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de

misticismo135

O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao

judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar

antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia

extaacutetica ou como praacutetica provocada

No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas

expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo

Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por

eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo

de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo

O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo

interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus

Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de

Tomeacute

Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque

pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um

texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute

presente no Judaiacutesmo do II Templo

A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria

do texto do Evangelho de Tomeacute136

134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7

67

O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios

ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica

Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros

trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica

Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos

formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do

templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a

realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees

As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na

literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria

na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da

Palestina de Yohanan ben Zakkai137

Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e

da especulaccedilatildeo hekhalot138

Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas

de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios

Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da

literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo

hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes

representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades

muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do

II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo

A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos

fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que

levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que

iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial

os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu

numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que

vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos

esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da

Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos

palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica

e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2

68

cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas

biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma

autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos

tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma

audiecircncia contemporacircnea

Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas

ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo

a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras

A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que

podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute

Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus

conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo

situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos

Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e

revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias

encobertas no interior das suas escrituras sagradas

Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia

Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica

A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta

tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10

40-48 Dn 7 e Is 6

Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura

produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos

A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e

na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos

Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de

temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da

evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em

textos de eacutepocas diferentes

139Cf De Conick A (2006) 7

69

Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta

as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute

associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140

A Gloacuteria do Trono

A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central

desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo

Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente

secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada

ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo

com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)

de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas

escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142

Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial

feito por dois querubins

No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute

apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos

Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias

histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute

sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos

O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite

brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo

assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta

veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado

Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras

cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co

44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus

que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-

140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8

70

23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do

templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144

O Templo

A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de

Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os

Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do

que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia

Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete

parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais

sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145

E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das

mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do

templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146

A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis

desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas

natildeo realizadas

As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da

criaccedilatildeo da humanidade

Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e

ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de

luz147

Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo

percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no

Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As

tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser

Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148

144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem

71

Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o

primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter

sido um reflexo da Kavod

Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico

Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do

que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de

encher todo o universo de um extremo ao outro150

ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]

pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel

b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o

despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro

lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse

Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a

oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do

pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos

cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave

transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos

conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da

ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e

tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de

forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152

Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da

morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente

Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os

Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as

epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades

envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no

momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na

149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21

72

liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias

ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153

Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais

antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute

15 19 37 50 59 83 84 108)

As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da

esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma

experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de

transfiguraccedilatildeo

Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os

ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees

de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de

uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no

trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154

A Merkavaacute

O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo

que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo

miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos

Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim

de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca

O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como

as fontes esoteacutericas mais tardias referem155

Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de

Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico

de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se

movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel

1014-15 com o querubim do Templo

153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30

73

Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave

presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-

se ao templo por outros meios156

A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel

encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe

mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma

ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25

Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em

duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio

de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos

Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus

identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser

vivente do profeta Ezequiel

A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus

o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o

universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-

se presente nesta literatura157

Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o

mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte

mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas

como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158

Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e

a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e

descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo

concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute

156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo

tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)

com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos

trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o

cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea

dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos

sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos

Santos

74

O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da

arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem

alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em

Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que

em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la

caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo

Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que

rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160

Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de

Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas

maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos

que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161

Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas

natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de

cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162

Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de

hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos

Cacircnticos do Sabbat163

Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e

recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era

necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos

que eram inscritos com os nomes secretos de Deus

As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o

templo e o cosmos eram estruturas opostas

As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo

a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para

o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande

santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas

planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e

da Sumeacuteria

160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170

163Cf Idem

75

Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo

era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem

quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F

Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com

a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos

praticantes de hekhalot

ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de

certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos

anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo

nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e

canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras

interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse

viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166

Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no

Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I

seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um

rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167

A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se

bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168

A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O

Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo

assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas

do caos no terceiro dia169

Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi

criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo

164Cf Idem 171

165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and

Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21

76

ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)

Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo

O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo

assim tu faraacutes o tabernaacuteculo

De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas

bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo

fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo

as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de

terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do

corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas

na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo

uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo

os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio

do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o

firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as

aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170

Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem

documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o

pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute

O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do

homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos

vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos

poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios

corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu

proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava

Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute

estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram

compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano

O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do

corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos

escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas

estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e

angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute

170Cf Midrash bereshit rabbati

77

frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome

divino171

Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o

miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na

presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se

entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem

Divina da Gloacuteria

O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o

autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo

este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica

No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com

este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na

atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o

puacuteblico a que se destinava

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute

O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e

interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite

definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica

Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por

si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda

Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo

primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no

final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis

descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim

Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

(Lg18)

A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo

que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial

que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas

dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que

171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175

78

representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias

a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos

primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)

Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses

por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia

de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que

estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para

ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se

ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)

Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais

respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se

vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu

de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem

sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem

qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)

Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia

visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus

disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco

aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas

caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)

Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos

miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa

esta realidade no jardim do Eacuteden

Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma

crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas

crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino

Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o

exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e

o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo (Lg 22)

79

Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as

vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um

tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco

No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os

disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te

revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como

as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo

temereisrdquo (Lg 37)

O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do

corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos

natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu

ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)

A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que

a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes

no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas

quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)

Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia

platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas

simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem

Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial

do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo

Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus

O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara

Nupcial

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37

ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos

Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos

vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os

espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo

80

Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que

apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais

1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver

o Filho de Deus sem ter medo

Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao

ceacuteu numa linguagem encratita172

Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora

comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo

baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321

Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de

peles e eles vestiram-nasrdquo

Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173

Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou

ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o

sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco

Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute

difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo

Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de

pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo

Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos

neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da

carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo

O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute

um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175

Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se

revestir destardquo176

Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9

que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas

E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra

172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem

81

E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim

E o Senhor renovou-me com a sua roupa

E me possuiu com a sua luz

E do alto me deu descanso imortal

E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos

E eu despi-me da escuridatildeo

E vesti a luz

E ateacute eu mesmo adquiri membros

Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento

E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito

E eu removi de mim as minhas vestes de pele

Porque a tua matildeo direita me ressuscitou

E fez com que a doenccedila passasse de mim177

Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um

ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de

libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus

Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica

Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de

pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo

A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus

anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou

selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando

vestida torna aceitaacutevel diante de Deus

Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo

com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal

No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de

Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o

ldquoselordquo no Nome178

Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-

se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo

ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E

eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo

177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126

82

Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e

transformado num anjo da face

ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele

[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para

ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181

Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram

uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA

nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do

corpordquo183

O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm

que ser despidas sem vergonha

O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis

Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e

Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os

olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha

Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que

ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se

sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos

O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito

especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que

o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu

ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma

criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era

controlado pelos impulsos sexuais184

A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual

deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-

caiacutedo ausente de vergonha

179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134

83

Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as

vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma

pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda

daacute outro elemento sobre o ser assexuado

ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o

interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num

soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando

fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de

um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como

sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo

Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que

era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a

idade adulta em primeiro lugar186

Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento

ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187

De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo

periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188

Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era

uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo

foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189

Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que

renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico

preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190

Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada

pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam

185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes

a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do

campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e

devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos

Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135

84

As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a

experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o

objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus

Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de

Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191

Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De

mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a

existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte

e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio

Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto

retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a

essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo

Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o

homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave

esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo

material

Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde

Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque

despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo

Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias

estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193

O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos

gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do

rosto de meu Deus para sempre194

Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas

ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar

o seu corpo

191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por

Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a

Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as

conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas

materiaisrdquo

192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10

85

O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu

nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia

visionaacuteria

No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque

que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes

celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico

Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-

escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra

sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho

de Filipe 1 34-35

ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo

Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo

total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta

forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho

transformando a sua alma

ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo

sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo

No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o

mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada

encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa

experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave

entidade divina que tinha visto

O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma

crenccedila antiga presente no mundo antigo196

195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42

86

Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua

experiecircncia religiosa

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50

ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz

procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens

Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se

vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um

repousordquo

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um

fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na

interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis

perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria

Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se

manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era

segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz

A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada

primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo

Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn

13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus

tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja

luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus

sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes

da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham

o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a

sua proacutepria luz198

Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes

da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da

imagem do Logos

197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66

87

A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus

explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse

sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo

De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz

primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis

O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se

aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos

seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos

Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos

anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como

os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl

82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um

de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn

127)rdquo

O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o

homem agrave imagem dos anjosrdquo

Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126

que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva

Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante

tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de

ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo

A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma

forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no

nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200

Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse

ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma

substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e

tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se

assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto

como a forma do invisiacutevelrdquo201

199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443

88

O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas

letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado

de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas

eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer

1141 Epiph Pan 34 47)

Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome

divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial

manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram

pronunciados agrave sua imagem202

O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de

Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo

ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a

luz do universo

No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de

lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno

de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos

o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo

Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma

realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo

alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior

Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do

Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem

trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto

estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-

me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo

(12827-30)

O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo

filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo

regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)

Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176

89

Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que

regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser

porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no

Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo

O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de

Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco

aacutervores

Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do

Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204

Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que

constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute

o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco

virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo

alcanccedila virtude e imortalidade

As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando

vestes de luz

E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor

Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram

Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal

E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna

Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra

imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver

nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores

como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da

ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso

Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes

com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o

autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo

domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205

204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83

90

Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do

paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da

imortalidade

Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim

comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma

aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito

de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica

de coisas legiacutetimasrdquo (198)206

As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a

alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do

pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e

corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves

virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas

leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda

adacircmica

E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute

existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma

com as virtudes paradisiacuteacas

O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque

vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada

ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os

eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis

novamenterdquo

No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e

manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16

ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai

contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios

(monachos)rdquo

O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este

ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com

a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos

206Idem 85

91

Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo

diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207

Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos

ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus

Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono

celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe

ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade

Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma

situaccedilatildeo num hino samaritano lemos

Ele Deus permanece para sempre

Ele existe ateacute a eternidade

De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio

Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como

Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208

Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes

se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser

angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina

Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto

angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz

aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute

paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar

uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden

Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e

inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e

adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus

e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo

ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado

angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na

natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte

207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718

92

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59

Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica

encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a

manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o

miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o

A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem

cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este

encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser

alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo

desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria

ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o

vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo

(lg 83)

A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos

que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele

prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo

Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial

e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque

224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209

O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica

presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da

humanidade

Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir

por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo

209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a

93

relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido

no ventre de uma mulher

ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos

humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a

luz gera-se a si mesma

O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a

imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto

que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod

escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na

tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que

se revelava aos miacutesticos211

Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos

anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah

A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus

esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da

ldquoGrande Gloacuteriardquo

A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum

dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo

flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212

Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio

soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213

Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou

Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a

aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)

A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse

visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e

trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo

Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7

ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33

De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e

incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no

211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104

94

entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto

ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute

cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214

Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era

abrangida pela sua luz

Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte

verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma

alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo

pode ser percebida diretamente

Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg

83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute

oculta na sua proacutepria luz215

No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica

que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do

disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)

Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos

devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos

Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus

durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a

imortalidade

Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas

homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo

Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta

uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta

imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a

imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e

aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto

nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do

214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105

95

Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado

esquerdordquo (Hom306)216

Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute

paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma

experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como

diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria

luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu

interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um

corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve

ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o

conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre

as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino

5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no

seu mundo simboacutelico

Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara

Nupcial

Lg 75

Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas

ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em

Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia

visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o

conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto

A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o

maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente

levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta

Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de

Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um

fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem

216 Cf Maloney G A (1992) 191-192

96

O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de

Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e

cristatildeos numa fase emergente

As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as

encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de

Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar

Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a

natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo

Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a

sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o

peso e a grandeza desta memoacuteria

Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas

que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada

sem excessos ou divagaccedilotildees

Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas

uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial

Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a

investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as

mensagens contidas nos outros logia

A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos

do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico

A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do

Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden

O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do

percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado

nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial

Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos

que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas

Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam

as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos

Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus

criador e personagens com nomes hebraicos

Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas

questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos

97

Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que

antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de

Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental

As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave

obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao

Templo de Jerusaleacutem

O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do

Templo a niacutevel simboacutelico

O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era

transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram

os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes

conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo

deste processo revolucionaram as suas religiotildees

Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta

influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo

apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a

simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem

Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos

questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo

olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos

ciclos da vida

A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o

encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a

adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217

A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num

calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas

formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218

O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas

combinadas e sincronizadas

217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem

98

A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do

sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do

ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-

calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal

preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e

ciclo sacrificial221

A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais

complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute

traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito

memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222

Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do

Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento

simboacutelico da realidade do Templo

Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de

modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica

do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e

terrestre pelo serviccedilo sagrado223

O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do

Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos

escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se

Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e

reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa

Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo

fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo

ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos

ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a

redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade

centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224

219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio

vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de

cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6

99

Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da

inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-

se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de

tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do

calendaacuterio

A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo

canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do

Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria

viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e

Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque

Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos

anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada

dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou

sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua

marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que

descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos

sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos

soprar o shofar e prostrarem-se227

O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam

os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se

vivas

ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras

espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo

vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas

225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos

ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute

descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da

terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual

com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre

a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute

ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados

antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica

e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os

sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do

ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos

perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13

100

cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as

cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos

Santos (hellip)

As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das

maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da

cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas

com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo

vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta

dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-

todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228

Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o

cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos

separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O

espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de

uma realidade eterna

Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que

aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente

Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa

forma simboacutelica e narrativa229

Eacuteden

O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais

interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim

como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o

paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)

Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a

partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do

Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma

humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da

mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo

estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes

228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57

101

na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes

do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem

criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se

manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do

outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe

ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a

Origem do Mundo)230

A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute

a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao

Eacuteden

Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai

Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria

Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila

do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico

Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais

antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos

aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231

Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo

como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo

gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito

da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico

neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos

gnoacutesticos

Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos

constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram

Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que

tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram

Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o

significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem

deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)

230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103

102

O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser

considerado bom como o Eacuteden inicial

O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter

especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo

havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo

poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual

O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas

sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da

textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o

sentimento hebreu para com o Eacuteden

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim

Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o

iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e

natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)

ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa

expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai

estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os

israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era

apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma

descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido

O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar

do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente

considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo

unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da

montanha coacutesmica

O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o

firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze

enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da

largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente

representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio

103

era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair

que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos

Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita

para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232

Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o

mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o

maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b

Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio

Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem

afirmou que o paacutetio exterior representava o mar

Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e

entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos

Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos

Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos

homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)

Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo

associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel

que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon

de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior

O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade

estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo

2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece

entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do

criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees

que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os

mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)

sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu

povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve

o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)

mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema

natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da

criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste

232Citado em Barker Margaret (1990) 61

104

para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo

(Ecircxodo1517)

Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento

hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo

do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo

a partir dos mares primitivos

Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos

primordial233

O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das

visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel

de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de

entronizaccedilatildeo

Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas

surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram

autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)

Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus

antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e

derrotado (Isaiacuteas 519)

O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em

tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo

nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4

Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na

qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da

montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor

O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui

aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se

encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono

celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute

que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao

redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)

Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do

Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)

233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522

105

ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado

com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu

nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse

152)

O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o

firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo

O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o

jardim de Deus no livro de Ezequiel

Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal

do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim

seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em

mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo

material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre

necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia

O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era

frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado

Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha

sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em

que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro

Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa

(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o

poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234

Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas

explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade

disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo

quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)

Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua

vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do

Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no

Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava

simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira

como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo

234Cf Barker Margaret (1990) 61-69

106

De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios

querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e

uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo

Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do

templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo

numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras

(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel

4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-

12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em

outras partes da Biacuteblia Hebraica

A Fonte da Vida

Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz

Salmo 367-9

Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e

ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a

construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde

e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se

sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes

cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos

varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de

ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que

tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material

lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em

todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista

o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes

recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus

poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era

235Cf Ginzberg Louis (2003) 162

107

devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o

santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua

ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo

em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o

mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o

mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado

para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao

ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no

segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que

estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o

mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia

no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como

alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O

candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua

criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o

Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no

quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No

sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o

seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante

de seu Senhor e criadorrdquo236

A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo

VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado

em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes

colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para

o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor

dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)

Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da

fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade

ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem

prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)

236Cf Ginzberg Louis (2003) 150

108

Os Rios do Paraiacuteso

Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em

quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas

vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre

associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo

O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do

Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a

um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos

Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica

no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias

semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na

montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele

que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute

um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em

majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas

visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a

fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da

sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo

no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro

de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo

isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da

porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e

tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores

cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para

eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da

fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade

com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta

oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda

do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica

a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem

metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no

veratildeo como no inverno

109

E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome

um (Zacarias 148-9)

O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os

Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu

cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam

No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de

Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a

aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas

da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)

Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos

paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio

No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos

Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando

ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da

festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a

mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de

aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber

(Joatildeo 737 -9)

O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios

serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a

simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era

quase sinoacutenimo do Espiacuterito

Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham

adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de

Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis

12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria

foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)

Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a

com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele

(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de

especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum

onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)

A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e

como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o

110

Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a

luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)

Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea

para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e

como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o

meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar

(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios

do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque

confirmam esta associaccedilatildeo

Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono

Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada

completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho

do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante

ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque

dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem

de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele

(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor

descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e

vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)

O Veacuteu

ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos

dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a

esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram

reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser

tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]

antes do templo sagradordquo

Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono

dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo

que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas

Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da

experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido

111

uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como

saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido

As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente

tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu

representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as

vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava

Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da

encarnaccedilatildeo

O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o

lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo

visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade

As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como

parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos

e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia

do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo

Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado

Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos

dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos

alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do

templo

O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8

mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de

puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)

Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da

mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido

Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1

ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado

Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se

havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-

sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o

comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o

primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia

entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de

duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de

112

modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi

colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado

norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua

esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas

grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de

espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia

vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de

vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em

cada ano (Mishnah Shekalim 85)

Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e

sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila

forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para

a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este

veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de

Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias

descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia

haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada

por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)

Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade

viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus

despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que

a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde

um rabino do segundo seacuteculo a viu

Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose

Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas

satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)

No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado

ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica

com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma

habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico

tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da

terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo

113

Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma

que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama

dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)

Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual

Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave

sabedoria do templo ou era algo antigo

A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi

coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim

foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada

espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que

poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas

(Antiguidades Judaicas III124 126)

As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o

linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez

que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o

carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)

Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade

cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo

(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este

simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute

como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de

toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais

166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO

que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo

siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo

feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais

excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador

de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de

[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre

Ecircxodo 1185)

Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que

separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um

palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas

quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao

114

dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este

veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo

sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos

transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal

como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E

satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e

inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis

(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)

A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu

(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da

cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram

vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos

elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra

azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina

tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3

Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo

Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi

descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O

veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a

invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de

como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem

do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os

elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa

compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da

vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da

realidade subjacente ao tempo237

Por Detraacutes do Veacuteu

Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar

onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era

237Cf Barker Margaret (1990) 104-107

115

eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz

lm

Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram

apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores

descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu

toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele

O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto

que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha

sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente

Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial

Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do

Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo

impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar

ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo

da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir

Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel

quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees

ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)

O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma

visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu

ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava

Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o

verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das

vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o

escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do

veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)

Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do

veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus

Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os

profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica

da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos

agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para

um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

116

pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1

Henoque 873-4)

A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre

como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu

posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute

e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a

visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda

visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda

espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)

Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram

patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado

simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio

Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o

paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)

O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos

Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do

segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o

santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)

As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre

o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou

retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti

e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque

34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o

mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido

deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e

se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as

extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que

estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)

A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de

Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da

Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no

modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-

lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o

117

nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo

das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)

O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material

e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da

presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do

Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais

esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute

chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar

que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que

fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)

Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel

para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O

debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi

construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses

mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238

ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e

o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)

Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano

Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees

simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o

proacuteprio Jesus

No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais

iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos

celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus

misteacuteriosrdquo (lg 62)

O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do

veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o

imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da

cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido

por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos

falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por

traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe

238Cf Barker Margaret (1990) 127-128

118

Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que

ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro

Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem

semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)

O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros

lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o

nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah

12b)

A Grande Luz

ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo

proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai

a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)

ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute

privado do Todordquo (loacuteg 67)

No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas

como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na

criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se

oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de

Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de

Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute

vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta

expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa

para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre

os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os

disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza

com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente

239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram

por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo

vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que

morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo

119

O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz

do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo

deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como

expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave

figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria

criando iluminando e penetrando todas as coisas

Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm

a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave

sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia

Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor

da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua

bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em

Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num

movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga

o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo

regressa

Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que

atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma

imanecircncia divina no mundo e no homem

Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a

procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado

para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um

aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da

criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31

Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca

primordial o tempo antes do tempo

A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que

encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg

19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido

242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26

120

O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o

termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2

da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244

A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee

mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que

existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e

77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as

coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser

humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no

interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de

Deus (lg 3)

A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida

em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em

que este se situa e estaacute presente

Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo

judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser

concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute

Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com

siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo

Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes

pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino

podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no

Evangelho de Tomeacute

O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz

em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute

244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute

necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de

um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros

do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o

Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios

entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos

conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3

121

O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do

Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor

lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que

Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo

(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-

nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)

Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que

andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque

vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo

cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua

gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)

A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma

das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC

Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo

(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute

desoladordquo (Daniel917)

A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os

raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono

dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este

simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao

templo

A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel

veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou

com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada

para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do

Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora

quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para

iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)

Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os

meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e

evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente

nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute

248Cf Barker Margaret (1990) 148-150

122

diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes

detentoras do conhecimento

Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo

encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute

tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo

Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos

pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes

da religiatildeo do primeiro templo

O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os

profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das

visotildees dos profetas

Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No

Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como

emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse

Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo

haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1

A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no

livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249

Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia

grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo

apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees

generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)

A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica

abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro

249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o

pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeus e Parmeacutenides

123

diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash

que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252

Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que

descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus

declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o

vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e

61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da

condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo

ldquodivididardquo privada da imagem divina

Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11

e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial

anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo

As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam

bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253

252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem

Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo

Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70

Para traccedilarmos a exegese do Evangelho

de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo

presentes em Geacutenesis devemos procurar

ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a

hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo

dispostos de forma aleatoacuteria

No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele

que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o

poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes

(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute

recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo

(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco

a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram

atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os

governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos

como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com

a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg

4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete

diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia

da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer

(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo

um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente

concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e

relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha

com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos

como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo

humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando

Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser

124

Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a

luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda

a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz

manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que

fala na primeira pessoa com uma voz humana

Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em

simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por

todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute

uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o

protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254

A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de

modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A

atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do

espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso

divino no seacutetimo dia

Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus

atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende

aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se

encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior

254Cf Pagels E H (1999) 484

singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o

homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e

fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo

causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando

chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas

eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia

presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a

unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz

125

ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os

disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta

dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute

ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas

oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela

sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo

conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor

pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico

que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a

humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina

Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos

duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo

A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a

fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos

era bastante comum no seu tempo

A Imagem e a Luz

ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Lg 22

A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas

da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada

pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida

Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho

de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes

conceitos

Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma

experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu

sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo

Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um

corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser

255Cf Idem

126

humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns

pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original

arquetiacutepica

Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no

com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido

o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257

Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de

Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele

argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo

sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos

evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do

judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem

quanto suportareisrdquo259

O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado

primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a

existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da

pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um

objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser

humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento

divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia

afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino

Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois

Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem

celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem

criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da

Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11

Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam

256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158

127

ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo

natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou

com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim

do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job

1420)rdquo

De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre

Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu

mudei261

Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como

cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo

brilhante que ateacute superou o brilho do sol262

Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus

criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da

queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda

Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b

O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O

espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele

O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a

Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263

Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que

foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem

(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma

interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a

sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo

luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que

imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado

No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe

uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem

De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden

entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo

261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18

128

tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz

eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo

Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou

no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso

63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e

viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem

estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante

delardquo266

Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que

encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente

vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que

tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do

pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que

estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido

da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute

perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja

claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva

Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267

O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um

processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como

resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem

Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica

um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava

retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106

ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois

um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial

A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem

ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma

ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos

265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223

Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do

trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais

antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o

homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160

129

dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a

Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se

depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e

adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268

Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim

necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem

quanto suportareisrdquo270

ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser

digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271

Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute

Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as

imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo

num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo

manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272

O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo

relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)

numa imagem (imagem) para entrar no Reino

No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem

da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das

imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo

pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-

nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo

inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo

Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees

coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se

268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63

130

manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a

imagem dessa luz273

Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes

conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos

que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)

esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as

outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser

humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a

luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que

falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e

condenado a provar a morte274

O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa

imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84

menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas

beatitudes nas lg 18b e 19a

ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a

morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276

Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial

ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277

ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na

Cacircmara Nupcialrdquo278

A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de

Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e

retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo

subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de

Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que

273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63

275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75

131

interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da

lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas

proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta

do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)

Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que

ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus

responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que

borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha

boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-

lhe-atildeo reveladasrdquo280

Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as

palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara

Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)

estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute

designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo

representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104

e cada alma unir-se-agrave a ele

Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um

estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado

por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial

estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o

casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa

o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da

histoacuteria

Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem

simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o

jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o

final dos tempos

Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do

estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em

279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487

132

que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis

saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)

Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de

unidade

Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e

por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs

grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo

transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute

a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a

uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de

Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre

o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem

procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas

Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial

primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e

ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute

natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se

oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o

disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas

se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle

disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz

e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)

Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz

oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial

O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento

salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante

Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos

lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que

estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem

Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da

experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo

de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de

preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe

instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais

133

No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura

analisada e aos evangelhos sinoacuteticos

O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora

acessiacuteveis a todos os que as buscarem

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo

Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave

porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca

de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles

transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)

134

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho

carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo

interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo

entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284

ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que

vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam

como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que

estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim

consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu

Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo

Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da

imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na

presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em

fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos

pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda

Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a

carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila

para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285

283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162

135

Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon

sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu

uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou

consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os

raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que

gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex

227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex

240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos

luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de

Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo

Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma

ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente

meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas

ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas

de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de

nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos

ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao

redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o

queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo

Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus

hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal

Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104

Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o

olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo

traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo

causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo

acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de

fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do

sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio

286Cf Idem 106

136

ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode

recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a

imortalidade (αθανασίας) (104)

No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda

muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim

conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente

transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento

esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por

meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia

Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser

deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287

Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave

experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem

natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do

que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que

a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas

sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288

Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus

estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o

fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa

Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se

encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute

perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial

Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento

central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos

Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute

ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da

imagem da luz do Pai

Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz

da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na

presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus

ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder

287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108

137

transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores

estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila

judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam

esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus

O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma

de misticismo transformacional

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289

Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a

revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos

como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte

da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os

sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os

justos os santos e os escolhidosrdquo

Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos

santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os

segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria

ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila

pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a

injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291

Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147

em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles

estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras

tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem

recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do

conhecimentordquo292

Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no

lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293

289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81

138

A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a

aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave

linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo

em 4 Esdras 1438-41

ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a

beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida

estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi

e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a

minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a

minha boca foi aberta e jamais fechadardquo

Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire

conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para

descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca

eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do

fogo

Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a

condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84

explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras

palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si

mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe

eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294

A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar

fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino

Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes

tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me

intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa

ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se

natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296

294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93

139

As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia

comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que

emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si

mesmo297

Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano

no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298

Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da

existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos

conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima

intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem

do corpo no Evangelho de Tomeacute299

O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e

antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus

supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito

O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte

de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se

aprisionada no corpo humano

O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na

qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica

interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes

(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em

Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo

Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo

sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo

cultural heleacutenico

Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta

temaacutetica

A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente

com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que

encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma

297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54

140

compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e

enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento

Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg

568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)

O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento

afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida

Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e

ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na

exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de

contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute

ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo

(Lg 112)

ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que

depende destes doisrdquo (Lg 87)

O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne

sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)

ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos

alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os

nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos

que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do

corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo

Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de

escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e

Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma

Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que

ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira

afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo

seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute

ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301

Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como

uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia

300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59

141

resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria

entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da

filosofia greco-romana302

O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma

condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo

que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois

corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta

interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303

Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um

corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever

Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de

Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural

Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma

plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende

do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo

universal

A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um

indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do

asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias

restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior

Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a

descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do

mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas

lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma

compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo

experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores

sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si

mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de

Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo

pessoal

ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que

conheceram o Pai em verdade

302 Cf Idem 60 303 Cf Idem

142

Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o

tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)

Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos

inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a

vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente

Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304

O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento

preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-

se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos

ldquomovimentos de Jesusrdquo

Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o

homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo

apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de

perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe

que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados

De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que

encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e

reinaraacute sobre o Todordquo

Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando

sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais

notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus

existem na sua forma concreta como um texto escrito

A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo

por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete

repetidamente no seu significado

ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo

corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)

304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273

143

Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo

Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual

seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo

esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta

eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a

realidade fiacutesica em termos de origem307

Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o

homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de

vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29

corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que

o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave

animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a

prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que

atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a

lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310

Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos

eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase

em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e

guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social

(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo

autorizadas

6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no

evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido

na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus

iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas

espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita

existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que

explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo

de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era

144

gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de

gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria

Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia

gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo

interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode

salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de

Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312

O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro

autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia

gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo

eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia

Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o

conhecimento de Deus

Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas

disponiacuteveis em Nag Hammadi

ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu

a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313

ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde

e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo

o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso

O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de

onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da

sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314

A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser

humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua

realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino

considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a

sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo

contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos

estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo

religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 149

145

Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a

iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as

realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo

O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees

no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo

de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as

ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo

Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como

a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de

escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas

geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes

que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes

livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de

interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram

deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315

Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas

uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual

As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram

comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da

antiguidade

Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental

influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel

transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado

apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas

Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como

verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees

O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em

concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos

leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega

315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus

146

Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a

novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo

da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido

Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no

autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender

que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo

Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros

revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam

entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam

assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual

A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual

gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute

agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a

difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento

distintas

Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica

Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita

no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se

encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma

ortodoxia definida

Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a

experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior

de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e

adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro

de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras

sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes

Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que

surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros

contextos

Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o

gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo

signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se

assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem

147

Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo

se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316

seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que

possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da

experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta

temaacutetica317

O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas

doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais

abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual

do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo

apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e

como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma

questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma

exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com

revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender

As variedades da experiecircncia gnoacutestica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem

pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do

conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do

segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito

(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a

interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a

descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da

histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador

dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos

Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o

gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem

algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da

mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no

pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo

316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)

148

este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a

alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento

evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas

Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma

conotaccedilatildeo positiva318

O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este

adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e

operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o

conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo

Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que

alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de

Deus e das verdades superiores

O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter

trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade

de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como

ldquoa gnose que nos foi dadardquo321

Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os

acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes

uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica

definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada

chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322

Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios

fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro

lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -

falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir

que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia

perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de

Valentino e a sua escola

318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem

149

Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos

valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as

doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325

Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo

especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos

O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma

designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria

Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo

num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria

Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo

ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo

era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes

conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus

Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento

gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque

preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais

corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as

manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos

gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326

No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos

espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo

mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro

lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se

a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327

A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por

gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim

como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328

Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de

situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade

foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a

325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12

150

designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos

orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo

perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados

para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma

particular de viver a vida

Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas

respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana

Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo

para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo

Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os

gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu

tempo

Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees

entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica

Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos

sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico

geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses

conhecimentos esoteacutericos

Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e

espiritualmente conhecimentos superiores

O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos

primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas

escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era

comum

Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico

isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o

gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329Cf Idem

151

problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava

separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens

deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar

de libertaccedilatildeo

Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos

tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso

O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o

conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas

No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano

nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a

salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus

Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm

conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em

Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente

A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos

descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para

voltar ao estado da imagem divina no corpo humano

No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz

gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de

iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto

perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo

Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito

gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico

O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de

pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de

conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente

O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a

lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura

encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza

gnoacutestica do evangelho de Tomeacute

O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem

humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino

satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico

152

Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou

na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu

pensamento

ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou

Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos

onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o

que constitui um renascimento [real]rdquo

- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782

Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos

do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo

A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua

mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve

em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas

Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332

ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes

da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial

apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do

antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde

todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo

330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash

Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e

dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo

encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma

criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos

apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de

Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo

primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio

metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-

lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o

pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim

e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis

153

de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo

com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que

chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz

primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo

retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua

substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que

superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)

recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos

(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo

humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu

no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo

estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de

facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira

pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos

os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma

emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e

a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos

disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um

movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos

inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis

dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que

interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina

dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar

Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a

questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o

procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e

ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24

154

o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo

146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a

luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao

homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua

imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem

divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos

nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo

para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma

parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a

forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no

quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo

pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a

exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335

Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua

ideologia religiosa

7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute

Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica

sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do

evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente

considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias

diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de

natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico

descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases

fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute

A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute

e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e

metafiacutesica entre o ser humano e o divino

335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27

155

A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos

tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos

fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do

nosso pensamento

No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da

unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por

excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma

correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e

antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia

ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o

conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades

superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser

unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que

natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo

aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da

gnose338

O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de

Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da

experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade

antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade

metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339

Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da

perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo

reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os

fenoacutemenos da existecircncia

Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus

quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial

Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas

vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de

gnose

337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem

156

Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de

solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o

processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a

solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo

dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral

Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo

gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa

Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a

um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute

os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o

conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial

Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado

atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os

temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo

associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial

A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute

eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)

Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de

pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este

padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho

O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da

tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de

Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal

No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema

da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus

correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340

Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico

essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus

Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que

a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a

Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma

mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria

340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817

157

ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo

abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis

A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e

penetrardquo342

Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita

com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a

Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela

aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do

Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e

transcendentes

A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria

e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da

qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu

aspeto de Sabedoria343

Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo

miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas

O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante

agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes

faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata

obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes

tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga

eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano

Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute

esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da

racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores

ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a

imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344

342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817

158

Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no

coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do

seu interior

Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor

da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes

exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna

possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar

a sabedoria e o conhecimento de Deus

O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura

intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado

idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia

paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de

separaccedilatildeo entre o divino e o humano

Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a

humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria

humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo

deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento

religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai

eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante

deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu

papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o

sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e

do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel

e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo

Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no

pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento

Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute

de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de

Tomeacute

Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu

pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a

escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma

realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse

159

Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro

estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas

doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como

conclusatildeo

Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos

as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de

Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora

nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses

A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial

assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo

Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da

linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca

Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-

existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo

(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e

fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)

Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de

todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa

evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo

eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara

nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser

humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No

dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que

fareisrdquo347

A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos

disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348

345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18

160

Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento

de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo349

Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar

no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu

pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio

A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se

alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave

eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos

atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no

conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente

A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o

inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da

compreensatildeo

A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua

lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino

conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade

Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da

interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio

Jesus Vivente

Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo

da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do

corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como

intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um

conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que

inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento

Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que

inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo

Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da

leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave

consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos

349 Log 1

161

Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos

duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede

de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria

Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um

reino de luz primordial em que o ser humano era majestade

O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o

humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se

unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24

61)

Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve

os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo

Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a

imagem e a luz

Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo

menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente

Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da

cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro

estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando

analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto

do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido

Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai

receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo

tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350

A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos

seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica

Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram

revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua

imortalidade

A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria

assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar

mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo

350 Log 19

162

mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma

interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo

A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir

para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o

casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade

Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar

forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do

divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de

pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as

implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias

Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente

em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo

como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu

interior o disciacutepulo salva-se (log 70)

Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o

exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece

sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade

alinha-se em conformidade com essa luz primordial

No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como

ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de

Israel

Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de

Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia

ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do

templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria

Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo

miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas

realidades celestiais

Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o

momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica

Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a

uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a

unir-se com o divino

163

No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos

evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas

religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do

saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351

A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais

sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades

a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma

privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do

Reino

O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido

como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos

laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os

que conheceram o pai de verdaderdquo352

O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo

ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353

A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita

a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o

terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua

memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de

unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica

expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua

organizaccedilatildeo

Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no

coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)

Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda

reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do

mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo

que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma

351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59

164

meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo

visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai

A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no

Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os

elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados

em Tomeacute

Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se

encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades

interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo

Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo

o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial

O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio

concreto onde ela se localize

Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute

um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de

quem a aborda ela expande-se ou contrai-se

Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da

minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas

ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354

A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia

o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo

A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo

que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem

Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de

Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591

165

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos

nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara

e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e

entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no

Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios

O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na

divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a

distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo357

356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82

166

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358

A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de

experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos

miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel

contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos

que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma

como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o

divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia

interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo

comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num

desejo de transcendecircncia

8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute

A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada

sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia

dos vaacuterios resultados apresentados

Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma

hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos

entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns

na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da

existecircncia humana a sua origem e o seu destino final

Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo

metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do

secreto

A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da

tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo

358Cf Deconick D April (1996) 105

167

Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o

evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na

Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da

literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas

Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso

sapiencial da Sabedoria

Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do

Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute

O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por

parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a

forma como o mesmo mito era interpretado

O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para

as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden

Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de

gnoacutesticos

A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis

aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois

mundos que convergiam neste debate

O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do

adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo

mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo

mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu

mestre

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)

Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus

A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste

loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos

de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila

divina interpretada com o simbolismo do templo

Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o

santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas

Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a

se transfigurar na mesma

168

A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes

da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese

facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do

significado da cacircmara nupcial no evangelho

Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde

existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua

redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em

Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo

celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto

encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do

evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do

templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica

Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental

na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na

tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em

oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do

evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a

sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada

como base ideoloacutegica360

No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne

onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era

impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o

proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade

Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens

afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra

Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como

uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)

Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na

cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde

tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio

poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai

tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um

359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274

169

reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas

teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como

Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto

Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para

entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos

Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso

de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza

divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino

Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos

outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute

A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a

unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus

A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para

integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo

A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion

22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o

de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino

natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de

um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em

lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da

transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362

Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo

com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma

imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363

No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a

Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas

seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a

imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que

361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os

humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres

humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser

divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente

fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438

170

concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem

divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que

Cristo eacute

Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg

22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho

natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser

assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser

transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)

A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no

evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos

dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um

chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma

natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no

seio da luz (lg 11)

Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa

situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave

identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute

estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a

derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o

mestre

ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele

e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito

ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de

Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica

da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que

entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)

O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira

instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos

ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de

traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes

leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida

Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente

descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que

Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores

171

Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho

por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes

Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de

compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus

textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees

orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que

estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos

apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos

Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de

Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque

Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo

grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus

textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden

que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem

Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe

permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam

despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se

ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que

prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos

processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que

era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute

A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria

possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma

que estes leitores consideravam adequada

No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na

variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira

interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364

Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon

descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras

ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo

Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e

isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo

364 Cf Levison (1999) 38

172

Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o

propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da

atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65

ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou

impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio

do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das

profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem

o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo

Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento

as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente

humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar

conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo

O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates

Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)

O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave

inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366

Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)

reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo

a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates

era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do

espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates

corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom

profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados

inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes

como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo

(2187)367

De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria

iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter

recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra

elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins

365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46

173

ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria

alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este

pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute

realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a

soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo

misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua

soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da

soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas

destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher

27-29)

A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor

afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com

estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua

experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior

expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior

dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento

elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)

as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala

(Som 2252)368

Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis

onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas

revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que

afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia

sobre os detalhesrdquo (588C)

A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o

inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo

sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de

revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem

naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca

pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da

368Levison (1999) 50

174

verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares

de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das

vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos

antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion

Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia

de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do

filho da luz

175

Bibliografia

Fontes Primaacuterias

Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston

Brill

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics

of Western Spirituality

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co

Ludgate Hill

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa

Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros

Textos Gnoacutesticos Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman

Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings

James Clarke amp Co Louisville

176

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos

1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e

grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas

o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees

Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das

paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas

a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias

indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos

Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20

3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em

etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim

In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507

Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto

de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem

documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de

interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC

nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem

em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos

tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os

pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o

symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram

eco nestes manuscritos

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute

relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

177

A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas

antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias

camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento

importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar

onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em

termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo

simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por

exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316

ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais

associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco

Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos

e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Outros autores judeus

Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se

fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no

evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia

178

Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os

significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas

associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que

Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao

longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo

corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha

responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra

judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho

no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do

elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos

fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Textos Rabiacutenicos

Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo

literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que

permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o

interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos

eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei

oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos

A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo

releeituras das tradiccedilotildees anteriores

Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo

da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a

sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados

homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo

sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico

que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave

escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos

179

Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford

Midrashim

Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do

quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de

pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente

textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso

destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma

circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese

responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos

ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para

explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua

antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo

histoacuterico em discussatildeo

Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The

Soncino Press

Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma

exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o

capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado

TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London

Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da

Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que

tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma

complete no seacuteculo doze

TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo

anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios

180

celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose

desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da

memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria

elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute

lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano

ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute

transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de

hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos

produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a

literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm

com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais

autoinduzidas

Davila R Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation Brill Boston

Bibliografia e Fontes Secundaacuterias mencionadas no texto

A Seth C (2014) Know Yourself and You Will Be Known The Gospel of Thomas and Middle

Platonism Paper 92

A E C (2000) The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity Studies in

Language and Tradition Sheffield Academic Press

AFJKlijn (1962) The Single One in the Gospel of Thomas In Journal of Biblical Literature

(pp 271-278)

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Barker M (1990) The Gate of Heaven The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem

Spck Dallas Theological Seminary

Barnard L (1968) The Origins And Emergence Of The Church In Edessa During The First Two

Centuries AD Nort-Holland Publishing Co

Caroline Johnson Hodge S M (2013) The One Who Sows Bountifully Essays in Honor of

Stanley K Stowers Brown Judaic Studies

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Christopher J-M R (2006) The Temple Within In Paradise Now Essays on Early Jewish and

Christian Mysticism (pp 145-179) Society of Biblical Literature

181

Colson F amp Whitaker G (1934) On Flight and Finding On The Change of Names On Dreams

Loeb Classical Library

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dan J (2002) The Heart And The Fountain Oxford University Press

Danby T H (1933) The Mishna Oxford Oxford

Davies S (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom New York The Seabury Press

Davies S L (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom The Seabury Press

Davies S L (1992) The Christology and Protology of the Gospel of Thomas 111

Davies S (nd) The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible Retrieved Abril 13 2017

from Oxford Biblical Studies Online

httpwwwoxfordbiblicalstudiescomarticleoprt280e73

Davila J R (2001) Descenders to the Chariot Boston Brill

Davila J R (2013) Hekhalot Literature in Translation Boston Bril

DeConick A (2006) Paradise Now Essays On Early Jewish and Christian Mysticism Society of

Biblical Literature

Deconick A D (1996) Seek to See Him Ascent Ascent and Vision Mysticism In The Gospel Of

Thomas EJ Brill

Deconick A D (2001) Voices of the Mystics Journal for the Study of the New Testament

Supplement Series 157 Sheffield Academic Press

DeConick A D (2014) Histories of the Hidden God New York Routledge

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston Brill

Elior R (2004) The Three Temples On the Emergence of Jewish Mysticism The Littman Library

of Jewish Civilization

Elior R (2009) ) From Priestly (And Early Christian) Mount Zion to Rabbinic Temple Mount In

Where Heaven and Earth Meet Jerusalems Sacred Esplanade

Fossum A D (1991) Stripped Before God A New Interpretation of Logion 37 In The Gospel of

Thomas In Vigiliae Christianae 45 E J Brill

Fossum J (1985) JsJ In Gen126 and 27 in Judaism Samaritanism and Gnosticism (pp 202-

239)

Gathercole S (2014) The Gospel of Thomas introduction and commentary Texts and editions

for New Testament Study Koninklijke Brill NV

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

Halperin D (1988) The Face of the Chariot Early Jewish Responses to Ezekiels Vision

Tubingen Mohr

Hartin P (1999) The search for the true self in the Gospel of Thomas the Book of Thomas and

the Hymn of the Pearl HTS

182

Hayward C T (1996) The Jewish Temple London Routledge

Hayward C T (1996) The Jewish Temple A Non-biblical Sourcebook Routledge

Heine R E (1989) Commentary on the Gospel of John Books 1-10 Washington Catholic

University America

Himmelfarb M (1993) Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses Oxford

University Press

Himmelfarb M (2013) Between Temple and Torah Essays on Priests Scribes and Visionaries

in the Second Temple Period and Beyond Tuumlbingen Mohr Siebeck

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Janowitz N (1989) The Poetics of Ascent Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text

State University New York Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet Edition

Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Levison J R (1999) Of Two Minds North Richland Hills Texas Bibal Press

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University

Press Association

Luomanen P (2012) Recovering Jewish-Christian sects and gospels Supplements to Vigiliae

Christianae

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text Verlag

Algred Toperlmann

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics of Western

Spirituality

Mattanyah I S (2007) Hellenism Dominates the Near East and Unites East and West in

Climate Change ndash Environment and History of the Near East 2nd Edition Springer

Millar F (1993) The Roman Near East 31 BC- AD 337 Harvard University Press

Najman H amp Newman J (2004) The Idea of Biblical Interpretation Essays in Honor of James

LKugel Leiden Brill

Neusner J (1965) A History of Jews in Babylonia vol 1 The Parthian Period LeidenBrill

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Pagels E (1999) Exegesis of Genesis 1 In the Gospels of Thomas and John Journal of Biblical

Literature pp 477-496

Patterson J (2013) The Gospel of Thomas and Christian Origins Leiden Koninklijke Brill NV

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co Ludgate Hill

183

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros Textos Gnoacutesticos

Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Ross S (2011) Roman Edessa Routledge

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings James

Clarke amp Co Louisville

Scholem G (1965) Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 2nd ed

Jewish Theological Seminary of America

Segal P (1990) Paul the Converte The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee Yale

University Press

Sheck T P (2015) Commentary on Isaiah Homilies 1-9 On Isaiah New York The Newman

Press

Simon H F (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The Soncino Press

Smith D C (2010) The Kabbalistic Mirror of Genesis Rochester Inner Traditions

Strecker P V (1991) ldquoJewish-Christian Gospelsrdquo New Testament Apocrypha Vol 1 Gospels

and Related Writings James Clarke amp Co

Stroumsa G G (2015) The Making of the Abrahamic Religions in Late Antiquity Oxford

University Press

Stroumsa M B (2010) Paradise in Antiquity Cambridge Cambridge University Press

Uro R (2003) Thomas Seeking The Historical Context Of The Gospel of Thomas TampT Clark

Valantasis R (2007) The Gospel of Thomas Routledge

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Villeneuve A (2016) Nuptial Symbolism in Second Temple Writings the New Testament and

Rabbinic Literature Brill

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New York Tampt

Clark

184

Page 5: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé

5

6

7

8

9

Resumo

O evangelho de Tomeacute tem sido lido e relido ao longo dos seacuteculos as leituras tecircm sido

literais figurativas ou simboacutelicas Desde os seus primoacuterdios este texto apresenta-se ao

seu leitor envolto numa aura de misteacuterio e enigma com mensagens por desvelar e

significados por desvendar No acircmbito do mestrado de Histoacuteria e Cultura das Religiotildees

foi desenvolvido um esforccedilo de investigaccedilatildeo que teraacute como objetivo situar as vivecircncias

e mentalidades do evangelho de Tomeacute Vivecircncias estas diretamente associadas ao

desenvolvimento do cristianismo primitivo no espaccedilo geograacutefico da Siacuteria oriental

nomeadamente em Edessa Esta investigaccedilatildeo procura responder agraves seguintes questotildees

qual foi o contexto histoacuterico deste evangelho o seu espaccedilo social os seus viacutenculos

sociais e as suas vivecircncias e mentalidades qual eacute o nuacutecleo da sua mensagem e quais satildeo

as carateriacutesticas especiacuteficas da linguagem e da experiecircncia no cristianismo primitivo de

Edessa a leste do Eufrates Espera-se assim dar um contributo agrave compreensatildeo histoacuterica

do desenvolvimento do espaccedilo mental cristatildeo no primeiro seacuteculo O evangelho de

Tomeacute em especial a sua cristologia e antropologia forma uma nova perspetiva a partir

da qual seraacute possiacutevel observar as origens do movimento cristatildeo e a forma como a figura

de Jesus foi retratada nos diferentes contextos sociais e espaccedilos geograacuteficos do mundo

antigo

Palavras Chave Evangelho de Tomeacute mentalidades vivecircncias espaccedilo simboacutelico

figura de Jesus cristianismo primitivo

10

Abstract

The gospel of Thomas has been read and re-read over the centuries the readings have

been literal figurative or symbolic From its beginnings this text presents itself to its

reader wrapped in an aura of mystery and enigma with messages to unveil and meanings

to unveil In the framework of the Master degree of History and Culture of Religions a

research effort was developed that will aim to situate the experiences and mentalities of

the Gospel of Thomas These experiences are directly associated with the development

of early Christianity in Eastern Europe especially in Edessa This research seeks to

answer the following questions what was the historical context of this gospel its social

space its social ties and its experiences and mentalities what is the core of his message

and what are the specific characteristics of language and experience in the early

Christianity of Edessa east of the Euphrates It is hoped therefore to contribute to the

historical understanding of the development of the Christian mental space in the first

century The Gospel of Thomas especially its christology and anthropology forms a

new perspective from which it will be possible to observe the origins of the Christian

movement and the way in which the figure of Jesus was portrayed in the different social

contexts and geographical spaces of the ancient world

Key words Gospel of Thomas mentalities experiences symbolic space figure of

Jesus primitive Christianity

11

Agradecimentos

Dedico este trabalho primeiramente а Deus pоr ser essencial na minha vida como

misteacuterio e enigma como deslumbre e amor Agradeccedilo ao meu orientador professor Joseacute

Augusto Ramos pelo seu papel decisivo e determinante na conclusatildeo deste projeto A

sua paixatildeo pelo mundo biacuteblico e pela beleza do mundo antigo contagiaram o meu

intelecto para buscar estar entre os melhores Agradeccedilo agrave minha matildee o seu apoio e o seu

sonho de me levar longe um obrigado tambeacutem agrave minha noiva e uma homenagem agrave

minha tatildeo doce Virgem Maria

Poderei apenas dizer que me senti rodeado de olhares femininos e de sensibilidades

maternais nada foi duro ou difiacutecil com estas tremendas fontes de inspiraccedilatildeo e beleza

ldquoOacute misteacuterios verdadeiramente santos Oacute luz diaacutefana Levo tochas para contemplar Deus

e os ceacuteus torno-me santo ao ser iniciado o Senhor eacute o hierofante e marca o iniciado

com o sinal da cruz conduzindo-o agrave luz e apresenta ao Pai aquele que creu para que Ele

o guarde eternamente

Essas satildeo as festas baacutequicas dos meus misteacuterios se tu o queres recebe tu tambeacutem a

iniciaccedilatildeo e tomaraacutes parte com os anjos em torno do Deus uacutenico e verdadeiro incriado e

imortal enquanto o Logos de Deus se uniraacute a nossos hinos Esse eacute o eterno Jesus o

uacutenico e sumo sacerdote do Deus uacutenico tambeacutem seu pai ele roga pelos homens e os

exorta Escutai tribos inumeraacuteveis ou melhor todos os que dentre os homens satildeo

racionais baacuterbaros e gregos eu conclamo toda a raccedila humana sendo eu o criador pela

vontade do Pairdquo

Clemente de Alexandria Exortaccedilatildeo aos Gregos 121-2

12

Iacutendice

Introduccedilatildeo 14

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia 19

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo 20

Literatura Profeacutetica 21

Literatura Sapiencial Judaica 21

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial 22

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden 23

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai 24

Uniatildeo Nupcial no Templo 24

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo 25

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos 31

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute 33

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute 36

Os Manuscritos 37

A Liacutengua Original de Tomeacute 37

A Data de Tomeacute 38

A Origem do Evangelho de Tomeacute 39

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute 41

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo 47

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates 52

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo 62

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute 65

A Gloacuteria do Trono 69

O Templo 70

A Merkavaacute 72

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute 77

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37 79

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico 85

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50 86

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59 92

6 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no seu mundo

simboacutelico 95

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem 97

Eacuteden 100

13

O Grande Mar 102

A Fonte da Vida 106

Os Rios do Paraiacuteso 108

O Veacuteu 110

Por Detraacutes do Veacuteu 114

A Grande Luz 118

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1 122

A Imagem e a Luz 125

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial 130

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa 138

7 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 143

As variedades da experiecircncia gnoacutestica 147

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico 150

8 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute 154

9 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute 166

Bibliografia 175

14

Introduccedilatildeo

ldquoJesus disse Lancei fogo sobre o mundo (kosmos) e reparai conservo-o ateacute que se alumierdquo Log 10

O Evangelho de Tomeacute expressa-se por enigmas figuras e conceitos convidando o olhar

a uma reflexatildeo para laacute da leitura Dividido em 114 ditos este evangelho natildeo menciona

os milagres a morte e a ressurreiccedilatildeo de Jesus A chave para a salvaccedilatildeo da alma reside

nos ensinamentos misteacutericos que Jesus transmitiu e quem interpretar estes ensinos

alcanccedila a vida eterna Vaacuterios estudos e leituras tecircm sido propostos no mundo acadeacutemico

para uma interpretaccedilatildeo mais adequada dos ditos de Tomeacute

Numa fase inicial natildeo estabelecemos linhas comparativas com os evangelhos canoacutenicos

por motivos de forccedila maior nomeadamente a questatildeo entre a escatologia desses

evangelhos e a protologia do evangelho que seraacute nesta tese estudado

Vaacuterias das metaacuteforas nupciais devem ser lidas com a maior das atenccedilotildees uma vez que o

simbolismo a estas associado natildeo proveacutem do mesmo espaccedilo simboacutelico

Como proposta de trabalho para esta tese de mestrado seraacute proposta uma chave

hermenecircutica para interpretar vaacuterios ditos do evangelho que aludem agrave cosmologia

cristologia e protologia apresentada por Tomeacute

Seratildeo apresentados os vaacuterios elementos simboacutelicos da narrativa de Tomeacute devidamente

interpretados de forma a confluiacuterem numa nova leitura mais consciente das dimensotildees

simboacutelicas do texto

Deste modo esta tese eacute um esforccedilo de trabalho exegeacutetico e hermenecircutico a todo o

panorama textual apresentado pelo evangelho de Tomeacute e pelos textos que agreguem

valor a esta linha de interpretaccedilatildeo e de busca de sentido textual

Designaremos esta abordagem de grelha simboacutelica e optamos por desenvolver uma

linha orientadora que prepare o leitor agrave compreensatildeo do simbolismo da cacircmara nupcial

no Evangelho de Tomeacute

Assim sendo o nosso trabalho desenvolve-se em sete toacutepicos que num esforccedilo de siacutentese

apresentam as vaacuterias conclusotildees no oitavo toacutepico

No primeiro toacutepico apresentamos o tratamento das nossas diversas fontes histoacutericas e a

metodologia que iremos utilizar No segundo toacutepico abordaremos o simbolismo da

cacircmara nupcial na literatura do Segundo Templo culminando com uma questatildeo

pertinente acerca do papel da tradiccedilatildeo sapiencial judaica nas representaccedilotildees simboacutelicas

do gnosticismo presente na textualidade de Tomeacute

15

Em terceiro lugar seratildeo apresentados os vaacuterios elementos histoacutericos necessaacuterios para

contextualizar devidamente o documento concluindo essa secccedilatildeo com uma breve

discussatildeo dos conceitos religiosos do documento

No quarto toacutepico aprofundaremos o toacutepico anterior natildeo estamos focados apenas na

histoacuteria material do texto mas sim na sua histoacuteria imaterial situando o documento no

espaccedilo e no tempo Desenvolvendo o toacutepico das mentalidades e da estrutura social que

influenciou a forma como o evangelho foi redigido Este toacutepico conclui-se com uma

importante reflexatildeo comparativa entre o evangelho de Tomeacute e os fragmentos do

Evangelho Judaico-Cristatildeo Comparaccedilatildeo esta que atesta a antiguidade do documento e

serve como argumento base para sustentar a nossa busca por referecircncias documentais

judaicas como fontes de interpretaccedilatildeo para os ditos do nosso documento

No quinto toacutepico este trabalho introduzira uma reflexatildeo fundamental para toda a

compreensatildeo desta tese primeiramente analisaremos a experiecircncia miacutestica da

linguagem no evangelho de Tomeacute e abordaremos com vaacuterios exemplos tirados do

proacuteprio evangelho o fenoacutemeno do misticismo visionaacuterio

Para que o leitor natildeo tome posiccedilotildees precipitadas quanto ao uso do termo laquomisticismoraquo

fica desde jaacute assente a nossa definiccedilatildeo de misticismo ldquoJesus eacute um miacutestico e um

mensageiro Seu misticismo como a maioria dos misticismos eacute caracterizado pelos

dois conceitos de Presenccedila e Transformaccedilatildeo Os logia de Jesus como palavras sagradas

satildeo a chave para vaacuterias portas para entender a boa mensagem Alguns termos cruciais

da loacutegica devem ser entendidos em diferentes niacuteveis de compreensatildeordquo1

Conforme as palavras deste autor o fenoacutemeno do misticismo eacute uma realidade transversal

a qualquer experiecircncia religiosa e que remete aquilo que eacute miacutestico agrave consciecircncia

humana A capacidade de perceccedilatildeo da presenccedila divina e a transformaccedilatildeo que se

manifesta pela perceccedilatildeo dessa presenccedila satildeo a definiccedilatildeo de misticismo assumida por

este trabalho Uma vez que se enquadra naturalmente nas demandas do leitor do

evangelho de Tomeacute aumentar a sua perceccedilatildeo em relaccedilatildeo ao divino e alcanccedilar um senso

de presenccedila interior

Seratildeo evidenciados os paralelismos existentes entre a literatura selecionada e as

temaacuteticas de experiecircncias do foro miacutestico de interioridade visionaacuteria na experiecircncia

religiosa do evangelho de Tomeacute

1 Lohuizen Wali Van (2011) 3

16

No sexto toacutepico seratildeo apresentados os siacutembolos que constituem o panorama simboacutelico

que permitiraacute ao leitor compreender o significado inerente a alguns ditos e ateacute agrave proacutepria

forma como o evangelho de Tomeacute foi redigido Seratildeo aqui naturalmente mencionadas as

realidades cosmoloacutegicas do Templo de Jerusaleacutem e como estas influenciaram os ditos

cosmoloacutegicos de Jesus em Tomeacute Apoacutes redigirmos um comentaacuterio a cada um dos

siacutembolos e ao significado geral do Templo no espaccedilo mental dos escribas Iniciaremos o

processo de reconstruccedilatildeo textual do pensamento de Tomeacute provando que este evangelho

eacute uma exegese tiacutepica de uma forma tiacutepica de interpretar a histoacuteria da criaccedilatildeo do ser

humano em Geacutenesis 1 Vaacuterias evidecircncias seratildeo reunidas para fundamentar estas

afirmaccedilotildees assim o leitor teraacute facilidade em compreender o texto de Tomeacute como uma

produccedilatildeo literaacuteria unificada Com temas unificados em torno de siacutembolos transversais agrave

sua realidade mas convergentes com vaacuterias tradiccedilotildees exegeacuteticas do seu tempo

O nosso seacutetimo toacutepico abriraacute a discussatildeo sobre o papel e o significado do gnosticismo

no evangelho de Tomeacute procuraacutemos antes de mais explanar de forma sintetizada o que eacute

a experiecircncia gnoacutestica por si soacute explorando as variedades desta experiecircncia e as suas

atitudes para com o conhecimento Concluiacutemos que aqui o gnosticismo de Tomeacute eacute um

gnosticismo tipicamente seu centrado na sua textualidade e que natildeo se insere

facilmente noutras escolas gnoacutesticas por ausecircncia de mitologia gnoacutestica

Por fim a nossa conclusatildeo vai apresentar o tema da cacircmara nupcial no evangelho de

Tomeacute e vai sintetizar toda a conclusatildeo ateacute aqui reunida desta hermenecircutica e desta

exegese

Podemos afirmar que esta tese eacute um esforccedilo de enquadramento histoacuterico dos meios

mentais e criativos assim como hermenecircuticos e exegeacuteticos do autor que compocircs o texto

de Tomeacute

Um percurso de comentaacuterios e anaacutelises aparentemente isoladas de alguns temas satildeo uma

realidade de forccedila maior se quisermos compor o quadro que se desenha no fim desta

conclusatildeo

Unir estes temas eacute uma tarefa importante para unificarmos a mensagem do Evangelho

de Tomeacute

O tema proposto como chave hermenecircutica seraacute a Cacircmara Nupcial temaacutetica presente no

pensamento do judaiacutesmo de II Templo

Repensar o texto a partir das suas principais ideias daraacute originalidade a este trabalho ao

ser estudado as vaacuterias relaccedilotildees entre as diferentes correntes de tradiccedilotildees biacuteblicas e a

17

compreensatildeo da dimensatildeo histoacuterica do simbolismo nupcial no antigo pensamento

judaico e no Evangelho de Tomeacute

Este estudo intertextual interpretaraacute os significados miacutesticos de vaacuterios ditos e

aprofundaraacute a linguagem simboacutelica comparando-o com vaacuterias realidades textuais do

seu contexto

Uma vez que procuramos explorar e situar historicamente o quadro mental do

Evangelho de Tomeacute pareceu-nos necessaacuterio sublinhar o enquadramento e receccedilatildeo deste

texto na literatura primitiva do cristianismo siriacuteaco

O Evangelho de Tomeacute enquadra-se na agenda teoloacutegica da literatura siriacuteaca primitiva

dos seacuteculos II-III dC partilhando perspetivas teoloacutegicas simbolismos e linguagem

teacutecnica Alguns dos textos que surgem na mesma linha de tradiccedilatildeo e no qual podemos

enquadrar Tomeacute satildeo Odes de Salomatildeo Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de

Taciano e Livro de Tomeacute

Existem dois pontos de interseccedilatildeo na tradiccedilatildeo de Tomeacute que podem ser de grande ajuda

na sua interpretaccedilatildeo a tradiccedilatildeo da sabedoria personificada por um lado e a tradiccedilatildeo

cristatilde siriacuteaca de redentor divino por outro

O Evangelho de Tomeacute corresponde a uma camada primitiva do desenvolvimento da

doutrina cristatilde que surge na teologia dos textos siriacuteacos tardios Para suportar esta

opiniatildeo podemos aferir que Tomeacute se apresenta como uma coleccedilatildeo de ditos aleatoacuterios

reunidos sem um plano de composiccedilatildeo unificador

Os paralelos literaacuterios mais proacuteximos satildeo o livro de Proveacuterbios o tratado mishnaacuteico de

Pirkei Avot com coleccedilotildees similares a aparecerem no livro de Ben Siraacute Sabedoria de

Ahiqar e textos sapienciais de Qumran

Durante o segundo seacuteculo estes geacuteneros de composiccedilotildees foram gradualmente sendo

substituiacutedos por geacuteneros literaacuterios mais elaborados como os Hinos de Salomatildeo e o Hino

da Peacuterola que datam aproximadamente do 3 seacuteculo ec refletindo assim um estaacutegio

posterior no desenvolvimento da literatura siriacuteaca

Como metodologia iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute tendo como suporte a

caraterizaccedilatildeo histoacuterica da sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

Definindo a questatildeo literaacuteria e social iremos ainda procurar enquadrar o pensamento

filosoacutefico que inspirou a textualidade de Tomeacute

18

Como hipoacutetese apresentamos metodologicamente a exegese do judaiacutesmo helenista no

periacuteodo intertestamental a partir da qual iremos estabelecer um quadro comparativo de

interpretaccedilatildeo do pensamento filosoacutefico de Tomeacute

Em termos de trabalho de documental optamos por utilizar a traduccedilatildeo da Biacuteblia de

Jerusaleacutem em todas as passagens citadas nalguns casos no capiacutetulo 5 utilizamos a

versatildeo do Geacutenesis traduzida por Andreacute Chouraqui quanto ao evangelho de Tomeacute

recorremos agrave traduccedilatildeo presenta na Biblioteca de Nag Hammadi da ediccedilatildeo Eacutesquilo As

obras de Fiacutelon de Alexandria foram traduzidas do inglecircs por mim a partir da publicaccedilatildeo

completa The Works of Philo Complete and Unabridged da Hendrickson Publishers Inc

As restantes passagens de apoacutecrifos deuterocanoacutenicos literatura rabiacutenica e samaritana

assim como gnoacutestica foram traduzidas por mim de fontes publicadas em inglecircs e

devidamente identificadas nas passagens traduzidas

19

1 Tratamento de Fontes Histoacutericas e Metodologia

As fontes histoacutericas propostas para a anaacutelise comparativa deste projeto consistem numa

seleccedilatildeo de textos cujo pensamento filosoacutefico e os termos linguiacutesticos e simboacutelicos

influenciaram a textualidade de Tomeacute

Estes textos estatildeo presentes na literatura sapiencial judaica do II Templo Ben Siraacute

Sabedoria de Salomatildeo Outros textos da literatura siriacuteaca primitiva Odes de Salomatildeo

Hino da Peacuterola Atos de Tomeacute Ad graecos de Taciano Livro de Tomeacute e os Evangelhos

de Joatildeo e Filipe

Metodologicamente iremos situar as linhas de pensamento da literatura produzida nesta

eacutepoca histoacuterica de forma a interpretarmos a mensagem de Tomeacute caraterizando

historicamente a sociedade de Edessa onde o evangelho teraacute sido escrito

O simbolismo da cacircmara nupcial seraacute o elo de ligaccedilatildeo necessaacuterio entre as diferentes

tradiccedilotildees para uma compreensatildeo do siacutembolo dentro do texto de Tomeacute

A nossa investigaccedilatildeo inicial iraacute tratar da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia

Hebraica e na Literatura Sapiencial

Esta breve anaacutelise tornaraacute possiacutevel realizar o resto do estudo que teraacute como foco alguns

dos textos nupciais mais relevantes do Periacuteodo do Segundo Templo e periacuteodos rabiacutenicos

posteriores

Inicialmente iremos realizar um estudo textual sincroacutenico de textos selecionados como

Ben Siraacute 24 o texto de Fiacutelon de Alexandria agrave figura do Querubim no Templo textos

pseudepiacutegrafos e algumas exegeses rabiacutenicas ao Cacircntico dos Cacircnticos

Apoacutes realizarmos um estudo temaacutetico que organize os motivos observados nos nossos

textos iremos desenhar uma siacutentese que seraacute utilizada para interpretar os temas nupciais

no Evangelho de Tomeacute

20

2 O Simbolismo da Cacircmara Nupcial na Literatura do Segundo Templo

A metaacutefora do casamento divino baseado na fidelidade amorosa no pacto entre

Deus e Israel cresceu no feacutertil solo mitoloacutegico de vaacuterios mitos do mundo antigo que

envolviam uniotildees sexuais entre divindades ou casamentos entre o divino e o humano

As tradiccedilotildees biacuteblicas apresentam um modelo uacutenico no sentido divino escolher entrar

num casamento exclusivo e assente na fidelidade com um povo especiacutefico

Na literatura profeacutetica2 Deus eacute marido de Israel a sua noiva e esposa Como

marido ele eacute monogacircmico mesmo quando a sua noiva eacute infiel A poligamia era uma

realidade comum mas quando a noiva era infiel o marido permanecia fiel e esperava o

retorno da sua noiva arrependida a fim de a poder restaurar agrave fidelidade do

matrimoacutenimo com o divino

Mas qual o papel da imageacutetica nupcial nos antigos textos judaico-cristatildeos O

que eacute que eles pretendiam retratar na sua essecircncia profunda Seraacute plausiacutevel a nossa

leitura os tratar como mera metaacutefora uma descriccedilatildeo alegoacuterica e ilustrativa do amor de

Deus pelo seu povo Ou seraacute como alguns autores sugerem3 uma tentativa de descriccedilatildeo

da uniatildeo miacutestica substancial e metafisica entre o humano e o divino

Vaacuterias evidecircncias mostram que nalguns ciacuterculos no periacuteodo do Segundo Templo a

imagem nupcial representava um ato de ldquofusatildeo espiritualrdquo entre Deus e o ser humano

uma ldquotransfusatildeo da energia divina para o mundordquo por meio de que o noivo ao unir-se

com a humanidade levantou-a para o ceacuteu de onde ele procedeu4

Desde a literatura sapiencial aos escritos paulinos e rabiacutenicos parece surgir um padratildeo

recorrente onde o redentor se une ao profano de forma a tornaacute-lo santo O Evangelho de

Tomeacute a Exegese da Alma e o Evangelho de Filipe catalogados como textos gnoacutesticos

inserem-se neste mesmo padratildeo

Segundo o autor Andreacute Villeneuve5 os textos nupciais retratam esta uniatildeo como um

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos da histoacuteria

Os textos nupciais recordam um estado idiacutelico primitivo que foi perdido um estado

ldquonupcialrdquo existente no momento paradiacutesiaco da existecircncia humana Momento este que

se perdeu dando lugar a um estado de separaccedilatildeo entre o divino e o humano

2 Oseias Jeremias e Ezequiel 3 Cf Villeneuve A (2016) 3 4Idem 5 Cf Idem

21

Este estado foi recuperado por um momento singular um terceiro estaacutegio salviacutefico num

evento de redenccedilatildeo uacutenico retratado como casamento Este evento nupcial eacute estendido

no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica recordando e reencenando o casamento redentor

nas vidas das geraccedilotildees subsequentes

A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa a final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-

humano no final da histoacuteria

Estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem simbolicamente a quatro estaacutegios

da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai

o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o final dos tempos

Literatura Profeacutetica

Na literatura profeacutetica a metaacutefora nupcial foi usada no culto de Iahweh por alguns

profetas de Israel (Oseias Jeremias Ezequiel e Isaiacuteas) Nestes textos o casamento eacute

direcionado para uma restauraccedilatildeo futura com a esperanccedila de retornarem a uma perfeiccedilatildeo

intocada O registo mais antigo a niacutevel biacuteblico da metaacutefora nupcial encontra-se em

Oseias 1-3 e foi redigido por volta do seacuteculo VIII aC pouco antes da queda do Reino

do Norte6

O casamento entre Iahweh e Israel nos profetas hebraicos nunca parece representar uma

uniatildeo miacutestica percetiacutevel com o divino Permanece sempre como uma alegoria simboacutelica

da alianccedila entre Deus e o seu povo vivida nos paracircmetros da fidelidade religiosa aos

preceitos da lei a observacircncia apropriada do culto no Templo e uma eacutetica irrepreensiacutevel

para com o proacuteximo

Literatura Sapiencial Judaica

No livro de Proveacuterbios eacute relatada a origem divina da Sabedoria7 No livro da

Sabedoria de Salomatildeo Ela (a Sabedoria) assume a forma de uma emanaccedilatildeo de Deus

identificada com o espiacuterito divino8 Neste tipo de literatura a relaccedilatildeo da Senhora

Sabedoria com o homem eacute descrita frequentemente numa linguagem nupcial muitas

vezes reminiscecircncia do Cacircntico dos Cacircnticos a sua beleza eacute exaltada ela eacute desejada e

6 Cf Villeneuve A (2016) 5 7Pr 822-31 8Sb 725-26

22

amada como uma noiva Ela corteja os seus seguidores convidando-os de forma

sedutora para comerem agrave sua mesa prometendo riquezas honras e vida abundante

A imagem nupcial apresentada pela literatura profeacutetica difere da imagem nupcial

apresentada pela literatura sapiencial

Enquanto para os profetas hebraicos a noiva era Israel e a figura masculina do

casamento era o proacuteprio Deus retratado como marido

Na literatura sapiencial a protagonista feminina eacute a quase divina figura da Senhora

Sabedoria e os humanos que ela corteja satildeo implicitamente masculinos

Eacute importante sublinharmos estas diferenccedilas a fim de compreendermos a evoluccedilatildeo da

crenccedila onde a coletividade tiacutepica dos profetas hebreus deu lugar agrave individualidade de

cada pessoa que eacute chamada pela Sabedoria para ter comunhatildeo com ela

A metaacutefora nupcial conteacutem um triacircngulo amoroso peculiar9 constituiacutedo por Deus pela

Sabedoria e pelo ser humano Jaacute natildeo existe uma relaccedilatildeo direta entre Deus e o seu povo

antes a Sabedoria age como intermediaacuteria entre Deus e os seres humanos

Eacute uma espeacutecie de delegada divina que medeia o papel do divino que procura comunhatildeo

com o homem

Conforme foi apontado pelo autor10 a literatura sapiencial judaica deu espaccedilo agrave

cristalizaccedilatildeo do papel da Sabedoria como figura mediadora casada com Deus nas

dimensotildees celestiais e simultaneamente ligada ao reino terrestre

Convidando o ser humano a casar-se com ela a relaccedilatildeo nupcial com Sophia imitava a

uniatildeo de Deus com ela e isto era a experiecircncia pessoal do saacutebio com o divino

Os Quatro Estaacutegios da Cacircmara Nupcial

Esta breve introduccedilatildeo permite-nos discernir uma certa convergecircncia temaacutetica no

tratamento histoacuterico da metaacutefora nupcial nos profetas da Biacuteblia Hebraica e na Literatura

Sapiencial abrindo o caminho para um estudo aprofundando no seu desenvolvimento

no livro de Ben Siraacute nalguns textos do Novo Testamento em textos apoacutecrifos e

pseudepiacutegrafos selecionados bem como em alguma exegese rabiacutenica antiga do Cacircntico

dos Cacircnticos

Atraveacutes desta anaacutelise podemos detetar quais os pontos comuns da doutrina da Cacircmara

Nupcial e como esta pode permitir reler os textos dos Evangelhos de Tomeacute e de Filipe

9Cf Villeneuve A (2016) 33-34 10Cf Idem 29

23

Nas fontes judaicas a metaacutefora nupcial associa-se frequentemente agrave histoacuteria da salvaccedilatildeo

ao apresentar a criaccedilatildeo (Eacuteden) ao protoacutetipo ideal do casamento entre Deus e Israel

fundamentado na experiecircncia singular do Ecircxodo e na revelaccedilatildeo no Sinai liturgicamente

transportada atraveacutes do tempo para a adoraccedilatildeo no tabernaacuteculo e no templo tendendo

para o cumprimento escatoloacutegico no final dos tempos na Idade Messiacircnica11

Na literatura neotestamentaacuteria eacute possiacutevel discernirmos um padratildeo semelhante de

simbolismo nupcial o casamento entre Cristo e a Igreja eacute frequentemente relacionado

com a tipologia de Adatildeo e Eva Este casamento fundamenta-se no sacrifiacutecio pascal

redentor de Cristo Eacute aplicada agrave vida do fiel ou da igreja coletiva atraveacutes da tipologia

sacrificial e do templo sendo manifesta atraveacutes dos sacramentos do batismo e da

eucaristia Por fim aguarda a sua consumaccedilatildeo plena na eternidade12

O Simbolismo Nupcial e o Jardim do Eacuteden

Nos textos judaicos antigos o amor entre Deus e Israel eacute frequentemente

associado ao jardim do Eacuteden No Novo Testamento as passagens nupciais

frequentemente estatildeo associadas agrave tipologia de Adatildeo e Eva descrevendo a ordem da

criaccedilatildeo ateacute ao dano causado pelo pecado de Adatildeo e de como este foi reparado por

Cristo o novo Adatildeo

Apesar das fontes judaicas enfatizarem uma situaccedilatildeo geograacutefica o proacuteprio Eacuteden e o

Novo Testamento apontar para uma situaccedilatildeo antropoloacutegica (Adatildeo e Eva) ambos os

temas se referem agrave mesma tradiccedilatildeo edeacutenica de um ideal primordial O primeiro

casamento da criaccedilatildeo seguido da rotura e da desordem13

Algumas questotildees devem tomar lugar como pontos de partida para interligarmos os

nossos textos Foi o casamento de Cristo (novo Adatildeo) e da Igreja (nova Eva) algo com

que os autores do novo testamento tencionavam retratar a restauraccedilatildeo da humanidade ao

estado primordial do Eacuteden Como eacute que esta ideia se relaciona com ideias semelhantes

no Judaiacutesmo do Segundo Templo e a antropologia apresentada pelo Evangelho de

Tomeacute

11 Idem 35 12Villeneuve A (2016) 35 13Idem

24

Poderemos discernir uma relaccedilatildeo intertextual entre estes textos que nos esclareccedila o

significado da cacircmara nupcial como metaacutefora explicativa da antropologia e cosmologia

destas tradiccedilotildees

O Simbolismo Nupcial no Tempo do Ecircxodo e no Sinai

Nas tradiccedilotildees cristatildes e judaicas o casamento entre Deus e o seu povo foi selado por

um uacutenico momento na histoacuteria da redenccedilatildeo Na tradiccedilatildeo judaica esse tempo foi o tempo

do Ecircxodo14 considerado o momento do noivado e casamento de Deus com Israel

No Novo Testamento o evento que marca a redenccedilatildeo para a alianccedila nupcial eacute o misteacuterio

pascal sacrificial de Jesus inspirado na narrativa do Ecircxodo

Uniatildeo Nupcial no Templo

Seguindo este fio condutor por meio de um uacutenico evento redentor o simbolismo

nupcial eacute perpetuado na histoacuteria do povo de Deus atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica

Na literatura judaica antiga o casamento celebrado entre Deus e Israel formado no Sinai

eacute reencontrado na histoacuteria da naccedilatildeo no Tabernaacuteculo do deserto e o Templo de

Jerusaleacutem enquanto no Novo Testamento o casamento entre Cristo e a Igreja se

relaciona com a tipologia sacrificial e do Templo ganhando expressatildeo nos sacramentos

do batismo e da eucaristia

Em ambas as tradiccedilotildees o templo quer seja fiacutesico ou espiritual eacute uma extensatildeo

lituacutergica uma comemoraccedilatildeo e atualizaccedilatildeo ao longo do tempo do verdadeiro pacto

nupcial (selado no Sinai ou no Goacutelgota) entre Deus e o seu amado povo

O templo eacute o lugar de antecipaccedilatildeo da consumaccedilatildeo escatoloacutegica do casamento sagrado

Ao compreendermos o papel do templo como espaccedilo do casamento miacutestico no Antigo

Israel torna-se mais percetiacutevel a mistagogia do simbolismo nupcial do Novo

Testamento

A maneira como se acreditava que o casamento entre Deus e Israel era celebrado no

templo poderaacute lanccedilar algumas luzes na forma como se acreditava que o casamento

14 A literatura rabiacutenica sempre deu ecircnfase aqui aacute travessia do mar Vermelho e a teofania do

Sinai

25

miacutestico entre Cristo e a Igreja (ou a alma) era experimentado atraveacutes dos ritos lituacutergicos

do batismo e da eucaristia15

Temas Simboacutelicos da Cacircmara Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como Cacircmara

Nupcial

Os templos de vaacuterios povos antigos

consideravam o Templo especialmente o

Santo dos Santos como o lugar

simboacutelico que representava a Cacircmara

Nupcial

O Tabernaacuteculo e o Templo como uma

atualizaccedilatildeo perpeacutetua da liturgia do Sinai

O Tabernaacuteculo e o Templo serviram para

perpetuar a teofania do Monte Sinai entre

o povo de Israel

O Templo como microcosmos O Templo de Jerusaleacutem estava imbuiacutedo

de simbolismo coacutesmico sendo

considerado um microcosmos que

representava o universo inteiro Tambeacutem

eacute relevante a ideia antiga do homem

como microcosmo e templo uma ideia

encontrada no Novo Testamento onde o

fiel eacute o Templo do Espirito Santo e o

ldquolugarrdquo onde a uniatildeo nupcial acontece

entre o humano e o divino

O Templo como o Jardim do Eacuteden O Templo de Jerusaleacutem era considerado a

fonte da becircnccedilatildeo divina edeacutenica o lugar

onde habitava a Shekinaacuteh a presenccedila do

divino na terra

Ben Siraacute 24 ldquoO Cacircntico da Senhora Sabedoriardquo

Neste capiacutetulo iremos seguir maioritariamente a exegese do autor16 utilizando a

traduccedilatildeo da Biacuteblia de Jerusaleacutem

Este eacute um texto onde encontramos a base de toda a riqueza de significados simboacutelicos

necessaacuterios para podermos interpretar e compreender o uso da metaacutefora nupcial

As suas interpretaccedilotildees criativas de vaacuterios motivos da Biacuteblia Hebraica tornam-no uma

ponte de ligaccedilatildeo entre esta e a imageacutetica nupcial do Novo Testamento

A escolha deste capiacutetulo do livro de Ben Siraacute deve-se natildeo somente ao facto de este ser o

capiacutetulo central do livro mas tambeacutem eacute um tempo marcado pelo seu caraacuteter nupcial em

todas as ressonacircncias

15 Cf Villeneuve A (2016) 37 16 Cf Villeneuve A (2016) 56

26

O poema permeado com alusotildees ao Cacircntico dos Cacircnticos descreve a figura

personificada da Senhora Sabedoria que convida sedutoramente os homens a unirem-se

a si numa comunhatildeo iacutentima onde a ldquobebemrdquo e ldquocomemrdquo (vv19-21)

Esta figura assume o papel de mediadora entre Deus e os homens onde ela eacute a parte

feminina da relaccedilatildeo e o ser humano a parte masculina

Como referimos anteriormente esta tendecircncia jaacute aparece na literatura sapiencial judaica

O capiacutetulo ainda apresenta esta figura feminina como uma personagem ativa ao longo

da histoacuteria israelita especialmente presente no Eacuteden no Sinai no Templo e no final dos

tempos

Como mais tarde teremos a oportunidade de aferir a descriccedilatildeo da Senhora Sabedoria

encaixa nos ldquo4 momentosrdquo da histoacuteria da salvaccedilatildeo

A Origem e a universalidade da Senhora Sabedoria (vv1-7)

ldquoA Sabedoria faz o seu proacuteprio elogio ela se exalta no meio de seu povo

Na assembleia do Altiacutessimo abre a boca

ela se exalta diante do seu Poder

lsquoSaiacute da boca do Altiacutessimo e como a neblina cobre a terra

Armei a minha tenda nas alturas e meu trono era coluna de nuvens

Soacute eu rodeei a aboacutebada celeste

eu percorri a profundeza dos abismos as ondas do mar a terra inteira

reinei sobre todos os povos e naccedilotildees

Junto de todos estes procurei onde pousar

e em qual heranccedila pudesse habitarrdquo

Os primeiros dois versos deste poema satildeo uma introduccedilatildeo na terceira pessoa ao cacircntico

da Senhora Sabedoria Ela iraacute elogiar-se a si proacutepria (literalmente ndash elogiar a sua alma

ψυχὴν αὐτῆς)17

O verso situa a Sabedoria no meio de seu povo na assembleia do Altiacutessimo A tradiccedilatildeo

de uma personificaccedilatildeo pessoal da Senhora Sabedoria encontra-se bem enraizada na

tradiccedilatildeo sapiencial mais antiga especialmente os capiacutetulos 8-9 do Livro de Proveacuterbios

No verso 3 inicia-se o cacircntico da Sabedoria nos versos 3-7 ela descreve a sua origem

em Deus e a sua universalidade

Ela procedeu da ldquoboca do Altiacutessimo cobrindo a terra como neblinardquo

Existe aqui uma simboacutelica interessante pois a Sabedoria sugere uma identificaccedilatildeo com a

palavra de Deus associada originalmente agrave profecia18 desenvolvendo-se mais tarde

17 Cf Villeneuve A (2016) 57

27

como o Logos joanino (Jo 11-3) O versiacuteculo 9 afirma que Deus criou a Sabedoria

ldquodesde o princiacutepio e para semprehelliprdquo ela estava presente no tempo da criaccedilatildeo quando

ldquoas trevas cobriam o abismo e um sopro de Deus agitava a superfiacutecie das aacuteguasrdquo (Gn

12)

O tema ldquocomo neblinardquo (ὁμίχλη) a cobrir a terra eacute um reminiscente da escuridatildeo caoacutetica

que reinava no iniacutecio da criaccedilatildeo19

Neste capiacutetulo de Ben Siraacute20 a Sabedoria habitava ldquonas alturasrdquo21devido ao lugar central

do santuaacuterio e do TemploTalvez esta seja uma alusatildeo aos lugares altos celestiais e

terrenos uma vez que o Templo no monte santo de Deus era compreendido como uma

reacuteplica do santuaacuterio no ceacuteu

O trono da Sabedoria localiza-se numa ldquocoluna de nuvensrdquo aludindo agrave mesma coluna

que guiou os israelitas atraveacutes do deserto e pousava acima do santuaacuterio do Tabernaacuteculo

e do Templo como um sinal da presenccedila de Deus22

A ocorrecircncia da expressatildeo στῦλος [τῆς] νεφέλης na Biacuteblia Hebraica refere-se sempre agrave

coluna de nuvens que guiou os israelitas pelo deserto23

Fiacutelon de Alexandria comentou que a nuvem ldquosuavemente derrama sabedoria sobre as

mentes que estudam a virtuderdquo24

Isto confirma a dupla localizaccedilatildeo da habitaccedilatildeo da Sabedoria nos ceacuteus e na terra tendo a

nuvem como uma ponte entre as duas esferas

A imagem da Sabedoria sentada no trono de Deus no ceacuteu e descendo agrave terra e a sua

identificaccedilatildeo com a nuvem surge no livro da Sabedoria de Salomatildeo ldquoAos santos deu a

paga de suas penas guiou-os por um caminho maravilhoso de dia serviu-lhes de

sombra e agrave noite de luz de astros Fecirc-los passar o mar Vermelho conduziu-os por aacuteguas

caudalosas ela afogou seus inimigos e os vomitou das profundezas do abismordquo25

Os versiacuteculos 5 e 6 ressaltam a universalidade coacutesmica da Sabedoria as suas origens

primordiais no tempo e a sua omnipresenccedila no espaccedilo e na criaccedilatildeo

A Sabedoria ldquorodeou a aboacutebada celesterdquo e ldquocaminhou nas profundezas do abismordquo

18 Is 4523 483 5511 19Cf Villeneuve A (2016) 29 20 Especialmente os vv10-11 21 Esta expressatildeo ldquonas alturasrdquo pode ser inspirada ldquonos lugares altosrdquo da passagem de Pr 82 na

referecircncia agravemontanha santa do Senhor ldquoSiatildeo minha montanha sagradardquo (Sl 26) 22Cf Villeneuve A (2016) 58 23 Ex 1321ndash22 1419 24 199 339ndash10 4034ndash38 Nm 125 1414 Dt 3115 Ne 912 19 Sl

987 24Quis rer div heres 24 cf Yonge D (1993) 25Sb 1017-19

28

O termo γῦρονοὐρανοῦ encontra-se em Job 2214 como o lugar onde Deus caminha e o

termo ἄβυσσος eacute a palavra usada na Septuaginta para o termo hebraico ldquoescuridatildeordquo a

escuridatildeo primordial que prevaleceu sobre a terra sem forma no princiacutepio da criaccedilatildeo

(Gn 12)26

Ben Siraacute ainda afirma que a Senhora Sabedoria existe desde o princiacutepio estando

presente em tudo fazendo alusatildeo a Proveacuterbios27

O seu domiacutenio total expressa-se em quatro dimensotildees polares que enquadram todo o

universo verticalmente os dois extremos dos ceacuteus e do abismo e horizontalmente os

dois elementos do mar e da terra

Apesar da sua omnipresenccedila e universalidade coacutesmica a Sabedoria procurou um lugar

especiacutefico onde pudesse habitar num ldquolugar de repousordquo

Este paradoxo eacute uma ponte entre o universalismo dos versiacuteculos 3-6 e o particularismo

dos versiacuteculos 8-12 A tensatildeo e o paradoxo entre estes dois polos diferentes satildeo dignos

de nota28

A Senhora Sabedoria infinita e eterna orgulha-se do seu governo absoluto sobre todo o

universo no espaccedilo e no tempo No entanto a sua ilimitabilidade natildeo a satisfaz e ela

deseja estabelecer a sua morada entre um povo particular limitando-se a si mesma pelos

limites do tempo e do espaccedilo em Israel mais concretamente no Tabernaacuteculo do monte

Siatildeo num ato de auto contraccedilatildeo Num movimento de descida e concentraccedilatildeo a Senhora

Sabedoria caminha numa jornada entre os ceacuteus e a terra da boca de Deus para Israel

A Habitaccedilatildeo da Senhora Sabedoria em Israel (vv 8-12)

ldquoEntatildeo o criador de todas as coisas deu-me uma ordem

aquele que me criou armou a minha tenda e disse

lsquoInstala-te em Jacoacute em Israel recebe a tua heranccedilarsquo

Criou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio

e para sempre natildeo deixarei de existir

Na Tenda Santa em sua presenccedila oficiei

deste modo estabeleci-me em Siatildeo

e na cidade amada encontrei repouso

26Cf Villeneuve A (2016) 59 27Pr 815-16 e 29 Sl 241-2 1042-6 28Cf Villeneuve A (2016) 59

29

meu poder estaacute em Jerusaleacutem

Enraizei-me num povo cheio de gloacuteria

no domiacutenio do Senhor se encontra minha heranccedilardquo

Esta secccedilatildeo retrata metaforicamente a viagem que a Sabedoria fez onde esta deixou o

ceacuteu em busca de um lar numa tenda humilde na terra entre os homens

Os primeiros versos (8-12) descrevem como eacute que a Senhora Sabedoria se contraiu da

sua universalidade sobre toda a criaccedilatildeo e da sua existecircncia eterna agrave limitada esfera de

Israel

No verso 8 Deus designa um local para a ldquotendardquo da Sabedoria ordenando-lhe que

habitasse em Israel

O verso 9 interrompe a descriccedilatildeo do movimento atraveacutes do espaccedilo da Sabedoria e volta-

se para a esfera do tempo afirmando que pela sua existecircncia desde o princiacutepio ateacute ao

fim da criaccedilatildeo o reino da Sabedoria sobre a esfera temporal eacute total assim como o seu

reino sobre a esfera espacial

ldquoCriou-me antes dos seacuteculos desde o princiacutepio e para sempre natildeo deixarei de existirrdquo

(vv9) O verso 10 retoma a jornada da Senhora Sabedoria e a conclusatildeo do seu

processo de tzimtzum29agrave medida que ela se instala no Tabernaacuteculo

Senhora Sabedoria aacutervores e especiarias (vv13-17)

ldquoCresci como o cedro do Liacutebano

Como o cipreste no monte Hermon

Cresci como a palmeira em Engadi

Como roseira em Jericoacute

Como formosa oliveira na planiacutecie

Cresci como plaacutetano

Como a canela e o acanto aromaacutetico exalei perfume

Como a mirra escolhida exalei bom odor

Como o gaacutelbano o ocircnix o estoraque

Como o vapor do incenso na Tenda

29O conceito judaico de tzitzum descreve uma especulaccedilatildeo metafiacutesica acerca do processo da

criaccedilatildeo da realidade Nesta especulaccedilatildeo o ser divino contraiu a sua infinitude para dar lugar a

um espaccedilo conceitual finito A percepccedilatildeo relativa comum aceita a existecircncia das coisas apenas

por causa dos seus limites Cf Smith D (2010) 21

30

Estendi os meus ramos como o terebinto

Meus ramos ramos de gloacuteria e graccedila

Eu como a videira fiz germinar graciosos sarmentos

E minhas flores satildeo frutos de gloacuteria e riquezardquo

A Sabedoria enraizou-se num povo honrado

A descriccedilatildeo das aacutervores a rica vegetaccedilatildeo e especiarias bem como a flora ligada agrave terra

de Israel eacute a linguagem do Cacircntico dos Cacircnticos

Grande parte das metaacuteforas sobre aacutervores e flores assim como a sua respetiva

localizaccedilatildeo geograacutefica ecoam a linguagem apaixonada e amorosa do Cacircntico dos

Cacircnticos

No Cacircntico dos Cacircnticos as vigas da casa dos amantes satildeo feitas de cedro (Ct 117) o

palanquim de Salomatildeo eacute feito de madeira do Liacutebano e o topo de Hermon (Ct 48)

associado ao domiacutenio das aacutervores ciprestes em Sir 2413

A fragracircncia das suas vestes eacute como a fragracircncia do Liacutebano (Ct 411) o semblante do

rei eacute ldquocomo o Liacutebano excelente em cedrosrdquo (Ct 515)

Digno de nota ainda eacute a menccedilatildeo ao terebinto (τερέμινθος τερέβινθος 2416) que se

trata de uma alusatildeo indireta agrave atividade sexual Na literatura biacuteblica o terebinto eacute

associado agrave prostituiccedilatildeo cultual em santuaacuterios idoacutelatras30

A Senhora Sabedoria aparece como ldquoroseirardquo (Sir 2414) e a sua ldquofloraccedilatildeordquo (Sir 2417)

tambeacutem nos lembra as imagens abundantes de flores no Cacircntico dos Cacircnticos onde a

noiva eacute chamada ldquorosa de Saronrdquo e ldquoliacuterio dos valesrdquo (Ct 21-2)

Ben Siraacute 2415 faz eco aos odores e fragracircncias de especiarias e oacuteleos presentes no

Cacircntico dos Cacircnticos acentuando assim a sua insinuaccedilatildeo eroacutetica

O cacircntico menciona logo de iniacutecio a fragracircncia dos bons unguentos da amada (Ct 13)

Ele eacute para a sua noiva a montanha de mirra e a colina de incenso (Ct 113 46)

As suas faces satildeo ldquocanteiros de baacutelsamo e colinas de ervas perfumadasrdquo e os seus laacutebios

satildeo liacuterios com mirra que flui e se derramardquo (Ct513)

A imagem das aacutervores flores e especiarias nestes versiacuteculos evoca o paraiacuteso a Senhora

Sabedoria localizada em Jerusaleacutem prospera como o primeiro jardim do Eacuteden

30Cf Villeneuve A (2016) 63

31

O Banquete da Senhora Sabedoria (vv19-22)

ldquoVinde a mim todos os que me desejais

Fartai-vos de meus frutos

Porque a minha lembranccedila eacute mais doce do que o mel

Minha heranccedila mais doce do que o favo de mel

Os que me comem teratildeo ainda fome

Os que me bebem teratildeo ainda sede

Quem me obedece natildeo se envergonharaacute

Os que trabalham por mim natildeo pecaratildeordquo

Nesta uacuteltima parte a Sabedoria convida ldquotodos os que a desejamrdquo para um banquete

sumptuoso para comerem os frutos que ela produz

Existe uma alusatildeo a Proveacuterbios 91-5 onde a Sabedoria prepara a carne e mistura o

vinho convidando os simples a sentarem-se para comerem o seu patildeo e beberem o seu

vinho31

O amor eroacutetico era frequentemente associado ao comer e festejar sendo um siacutembolo

universal do viacutenculo de amizade e comunhatildeo atividades que tiveram lugar no Eacuteden

Monte Sinai e no Templo32

O Simbolismo Nupcial em Textos Apoacutecrifos e Pseudepiacutegrafos

Na presente secccedilatildeo iremos analisar alguns textos selecionados dos livros

pseudepiacutegrafos cristatildeos e judaicos que abordam a origem do simbolismo nupcial no

primeiro seacuteculo da era comum

As Odes de Salomatildeo (30-150 dC) satildeo uma coleccedilatildeo de hinos judaico-cristatildeos que

datam do primeiro seacuteculo Tratam predominantemente do amor de Deus pelo fiel e do

fiel por Deus Este amor concretiza-se numa uniatildeo entre o amante humano e o seu

amado (Deus) o homem atraveacutes da uniatildeo com o ldquoFilhordquo tambeacutem se torna um filho de

Deus participante na sua imortalidade

31 Cf Sir 114-15 619 152-3 32Cf Villeneuve A (2016) 73

32

ldquoEu amo o Amado e eu mesmo o amo onde estaacute o seu descanso tambeacutem eu estou (hellip)

Eu fui unido a Ele porque o amante encontrou o Amado porque eu amo Aquele que eacute o

Filho eu me tornarei um filho Na verdade aquele que estaacute unido agravequele que eacute imortal

verdadeiramente seraacute imortalrdquo

Ode de Salomatildeo 35-8

A ode 7 fornece mais detalhes acerca desta transmissatildeo de vida divina para o ser

humano recorrendo a uma linguagem incarnacional O Amado assume a forma humana

para unir-se agrave humanidade ldquoEle tornou-se como eu para que o receba Em forma ele foi

considerado como eu para que pudesse colocaacute-lordquo (Ode 74-6)

Este amor vivificante eacute expresso numa linguagem nupcial atraveacutes de um ldquoabraccedilo ou

beijo sagradordquo entre o ser humano e o divino dando vida imortal ao humano atraveacutes do

Espiacuterito Santo33

ldquoE a vida imortal abraccedilou-me e beijou-me E naquela vida estaacute o espiacuterito que estaacute dentro

de mim E natildeo pode morrer porque eacute vidardquo (Ode 287-8)

Noutra instacircncia as odes descrevem a uniatildeo em termos nupciais ldquoEu lancei sobre eles o

jugo do meu amor Como o braccedilo do noivo sobre a noiva tambeacutem eacute o meu jugo sobre

aqueles que me conhecem E como a cacircmara de noiva eacute espalhada para fora pela casa

nupcial do par tambeacutem eacute o meu amor por aqueles que acreditam em mimrdquo (Ode 427-

9)

Noutros lugares a imagem da uniatildeo entre o ser humano e o divino satildeo descritas como

sendo o Paraiacuteso O jardim do Eacuteden eacute assim identificado com o santo dos santos dos

escritos contemporacircneos onde ambos satildeo conhecidos como fontes de correntes de

aacuteguas vivas

As Odes de Salomatildeo descrevem uma uniatildeo miacutestica entre Deus e o fiel atraveacutes da figura

mediadora do messias Esta uniatildeo tem lugar na lsquoCacircmara Nupcialrsquo entendida neste

contexto como sendo o Templo espiritual e o lsquoParaiacutesorsquo

Nesta Cacircmara NupcialTemploParaiacuteso correntes de aacuteguas vivas e fontes de leite e mel

procedem dos lsquolaacutebios do Senhorrsquo

Tocando nos laacutebios dos seus amados matando a sede e concedendo-lhes a vida eterna34

33 Villeneuve A (2016) 277 34Cf Idem 279

33

Uma leitura introdutoacuteria do termo laquocacircmara nupcialraquo no Evangelho de Tomeacute

Apoacutes uma siacutentese nestas tradiccedilotildees apresentadas do simbolismo nupcial iremos proceder

a uma leitura introdutoacuteria do mesmo simbolismo no evangelho de Tomeacute

Apesar da abrangecircncia desta interpretaccedilatildeo ser apresentada nas discussotildees de resultados

e na conclusatildeo do trabalho Eacute importante como ponto de partida estabelecermos alguns

elementos na nossa linha de pensamento que natildeo permitam desvios interpretativos e

posiccedilotildees alienadas com a investigaccedilatildeo que procuramos desenvolver

O tiacutetulo deste trabalho eacute A Cacircmara Nupcial como Chave Hermenecircutica do Evangelho

de Tomeacute soacute pelo tiacutetulo estamos a pressupor que a cacircmara nupcial como expressatildeo

textual como elemento simboacutelico e como conceito filosoacutefico antropoloacutegica e teoloacutegico

reuacutene por si soacute o princiacutepio interpretativo fundamental do evangelho de Tomeacute

Primeiramente o leitor seraacute convidado a ler o evangelho como um documento literaacuterio

unificado com um pensamento subjacente excluiacutemos assim a hipoacutetese que se trata de

um texto com vaacuterios ditos aleatoacuterios que natildeo dispotildee de qualquer ligaccedilatildeo entre si

Existem duas referecircncias agrave cacircmara nupcial nos 114 ditos do evangelho a primeira

encontra-se no log 75 ldquoJesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os unificados

(monachos) satildeo os que entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo E o log 104 ldquoDisseram-lhe Vem

hoje para que oremos e jejuemos Jesus disse Qual foi o pecado que cometi ou em que

eacute que fui vencido Soacute quando o esposo sair da cacircmara nupcial entatildeo que se jejue e que

se orerdquo

A cacircmara nupcial eacute a expressatildeo siacutentese que enquadra o pensamento teoloacutegico e

antropoloacutegico do evangelho de Tomeacute sendo assim a chave interpretativa da sua

mensagem Podemos afirmar que o termo monachos traduzido por unificado revela

perfeitamente a mensagem de Tomeacute Neste evangelho entrar na cacircmara nupcial eacute o

mesmo do que entrar no Reino dos Ceacuteus nos evangelhos canoacutenicos Ao entrar na

cacircmara nupcial o leitor entrava no lugar da salvaccedilatildeo da uniatildeo o lugar da vida

Entrar na cacircmara nupcial era regressar ao Eacuteden ao estado original primordial da

existecircncia e da organizaccedilatildeo do ser idealmente unificado sem conflitos nem divisotildees

Haviam poreacutem certas condiccedilotildees que dificultavam esta entrada o evangelho de Tomeacute

ao contraacuterio dos evangelhos canoacutenicos natildeo parte do pressuposto que o problema

existencial seja o pecado original ou a necessidade de arrependimento para alcanccedilar o

Reino dos Ceacuteus

34

Em Tomeacute o problema da existecircncia humana eacute a sua desintegraccedilatildeo existencial uma

identidade dividida e em constante conflito interior e exterior Daiacute o termo unificado ser

fundamental para compreendermos a hermenecircutica da cacircmara nupcial Neste evangelho

o problema da humanidade eacute a sua eterna divisatildeo constante geradora de conflitos e

responsaacutevel por um estado de ausecircncia de gnose (gnose aqui entendida como a perceccedilatildeo

natural do divino na consciecircncia)

O texto apresenta-nos o problema de a pessoa estar dividida em termos de geacutenero em

termos de interioridade e exterioridade em termos de imagem e luz

A pessoa que transcende estas divisotildees interiores e alcanccedila o verdadeiro significado das

palavras de Jesus alcanccedila a imortalidade e natildeo experimenta a morte

Esta pessoa unificada supera a divisatildeo de geacutenero e eacute uma nova espeacutecie de ser humano

espiritualizado que se tornou como Jesus pois entrou na cacircmara nupcial e bebeu da sua

boca Ao beber da sua boca uniu-se a ele e tornou-se deificado para enquadrarmos

melhor este pensamento eacute justamente a accedilatildeo que ocorre na cacircmara nupcial que nos

revela o outro lado da mensagem do evangelho de Tomeacute Este lado comeccedila quando

colocamos esta questatildeo qual eacute a finalidade ideoloacutegica deste texto

Por vezes lecircmos ou ouvimos certas interpretaccedilotildees que afirmam que o enquadramento e

o discurso ideoloacutegico de Tomeacute natildeo se afastam muito do enquadramento dos evangelhos

canoacutenicos

Para comeccedilar a realidade de uma deificaccedilatildeo eacute completamente absurda nos evangelhos

canoacutenicos para aleacutem disso a finalidade de o disciacutepulo entrar na cacircmara nupcial eacute o

retorno ao paraiacuteso original Ou seja em Tomeacute o disciacutepulo tem um objetivo restaurar

em si a imagem divina que perdeu uma imagem primordial unificada e deificada

E ainda temos a crenccedila de regressar ao iniacutecio ao tempo antes do tempo ao paraiacuteso

O lugar onde a luz procedeu de si mesma esta luz eacute Jesus

Nos evangelhos canoacutenicos o discurso assume os contornos apocaliacutepticos e escatoloacutegicos

do final dos tempos existe a ideia de um julgamento e uma acircnsia por cada disciacutepulo

entrar numa eacutepoca em que o mundo existente cessa e um novo reino instaurado por paz

e justiccedila beneficia os justos e castiga os iacutempios

Temos aqui duas teologias opostas uns sonham em entrar no paraiacuteso nesta vida porque

para eles natildeo existe final natildeo existe desfecho absoluto Para eles existe iluminaccedilatildeo

interior perceccedilatildeo do reino do Pai da luz entre todas as coisas Estatildeo de passagem por

este mundo enquanto buscam entrar na cacircmara nupcial

35

No contexto canoacutenico a finalidade teoloacutegica eacute a perceccedilatildeo do Filho de Deus como cada

um o vai entender e receber vai determinar o seu destino salviacutefico

Evitar o caminho da injusticcedila para beneficiar de um estado de justiccedila e paz na

eternidade eacute a ideia que transparece que o paraiacuteso comeccedila onde termina a terra Satildeo

duas realidades separadas quando existe ainda a questatildeo de abordarmos uma espeacutecie de

comunhatildeo miacutestica na linha da unio mystica dentro da cacircmara nupcial entre Jesus e o

disciacutepulo Vaacuterias dificuldades rapidamente surgem primeiro o objetivo da unio mystica

eacute uma unificaccedilatildeo sacramental em que a alma eacute noiva de Jesus

Este estado de misticismo cristatildeo que eacute definido como o quarto estaacutegio no caminho do

misticismo cristatildeo natildeo existia na eacutepoca em que o evangelho de Tomeacute foi escrito pelo

menos natildeo existia nos termos que assumiu na forma medieval

A finalidade da unio mystica natildeo pressupotildee obrigatoriamente a deificaccedilatildeo ou

divinizaccedilatildeo da alma tornando esta semelhante agrave alma de Jesus A uniatildeo que ocorre

dentro da cacircmara nupcial no evangelho de Tomeacute pressupotildee sem qualquer sombra de

duacutevida este fenoacutemeno que embora estejamos longe de o compreender natildeo devemos

sacrificar a afirmaccedilatildeo do texto para satisfazer a fome por definiccedilotildees acadeacutemicas mais

simples e aparentemente sem sentido no assunto em discussatildeo

A nossa investigaccedilatildeo natildeo nega que o misticismo do mundo antigo definido no nosso

trabalho com a sua vertente visionaacuteria e extaacutetica teve lugar na textualidade e na

experiecircncia hermenecircutica do evangelho de Tomeacute No entanto apenas recorre agraves

manifestaccedilotildees miacutesticas que existiam no seu tempo e natildeo pretende adoptar formas de

misticismo mais tardias como a unio mystica

O conceito de deificaccedilatildeo em Tomeacute no interior da cacircmara nupcial estaacute mais orientado

para a deificaccedilatildeo e esta deve ser entendida de uma forma mais segura como um

processo de iluminaccedilatildeo gnoacutestica Com isto refiro-me agrave aquisiccedilatildeo de gnose se

entendermos que a gnose eacute o verdadeiro conhecimento de Deus e o verdadeiro

conhecimento da identidade pessoal Entatildeo faz sentido pegarmos na nossa leitura

inicial ldquoJesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e

o exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino

e o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja o

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

36

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo35

A unificaccedilatildeo do ser humano no seu iacutentimo e a transcendecircncia da sua essecircncia eacute a

explicaccedilatildeo deste texto e com este texto podemos arriscar propor natildeo uma unio mystica

no interior da cacircmara nupcial Mas uma uniatildeo unificada que leva agrave iluminaccedilatildeo e agrave fusatildeo

completa com Deus se a ideia de Jesus eacute ele ser uma figura que beneficia de algum tipo

de fusatildeo e uniatildeo com o divino que a humanidade comum natildeo possuiacute entatildeo a camacircra

nupcial iria abordar estes benefiacutecios e esta uniatildeo agravequeles que nela entrassem

Soacute me resta afirmar que ao longo do trabalho estes temas seratildeo explorados com

profundidade e que natildeo estamos perto de compreender com toda a certeza o que

acontece dentro da cacircmara nupcial dentro da mentalidade original do autor

3 O Contexto Histoacuterico do Evangelho de Tomeacute

O objetivo do presente capiacutetulo eacute situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo e no tempo

Procurando as sensibilidades filosoacuteficas e culturais que envolveram a sua palavra

O significado dos seus ditos no contexto histoacuterico do segundo seacuteculo e o impacto da sua

reflexatildeo na audiecircncia que os escutava

A perspetiva religiosa de Tomeacute assenta no ambiente da sua composiccedilatildeo A nossa

investigaccedilatildeo pretende assim definir o evangelho como um trabalho unificado que pode

ser interpretado legitimamente como tal36

A unidade textual notada no razoaacutevel grau de semelhanccedilas existentes entre os textos

gregos e coptas e na sua perspetiva religiosa razoavelmente coerente torna possiacutevel

defender uma abordagem baseada na consistecircncia de Tomeacute

Segundo o texto de Piacutestis Sophia37 Jesus apoacutes ter ressuscitado comissionou Filipe

Mateus e Tomeacute a registarem as suas palavras por escrito

No imaginaacuterio da tradiccedilatildeo cristatilde Tomeacute era considerado o fiador dos ensinos orais de

Jesus para poder elaborar um evangelho Um trabalho literaacuterio com o seu nome -

ldquoEvangelho de Tomeacuterdquo - eacute conhecido na tradiccedilatildeo desde o terceiro seacuteculo

Hipoacutelito ano duzentos e trinta e dois dC no seu relato aos Naassenos menciona o

Evangelho de Tomeacute e cita vaacuterias passagens do texto

35 Log 22 36Cf Gathercole Simon (2014) 10 37 Capiacutetulos 42 e 43

37

O seu testemunho foi traduzido depois para o latim por alguns dos ceacutelebres autores do

cristianismo Jeroacutenimo Ambroacutesio e o Veneraacutevel Beda Na liacutengua grega Euseacutebio de

Cesareia situou o Evangelho de Tomeacute no grupo dos apoacutecrifos de caraacuteter puramente

heterodoxo entre o Evangelho de Pedro e de Matatias

Os Manuscritos

O Evangelho de Tomeacute eacute uma coleccedilatildeo de ditos atribuiacutedos a Jesus que existem

num manuscrito copta bem preservado e em trecircs fragmentos gregos O manuscrito copta

termina com a expressatildeo ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo Os manuscritos fragmentados

gregos foram descobertos no Egito no dia 21 de Julho de 1897 o London Daily Graphic

publicou uma notiacutecia de um rapaz de oito anos Sabrrsquo Sair ldquoo rapaz que encontrou os

Logiardquo Estes trecircs fragmentos em grego foram descobertos em Oxyrhynchus

O manuscrito copta foi descoberto em Nag hammadi Egito em 1945 fazia parte de uma

coleccedilatildeo de doze coacutedices O Evangelho eacute o segundo texto do Codex 2 onde eacute precedido

por uma coacutepia do Apoacutecrifo de Joatildeo e do Evangelho de Filipe

O papiro grego data do ano duzentos dC e o documento copta data da metade do

seacuteculo IV dC Existe um consenso que ambas as fontes reunem evidecircncias para um

evangelho escrito mais antigo originalmente em grego ou siriacuteaco provavelmente

proveniente da comunidade judaico-cristatilde falante de grego na Antioquia siriacuteaca38

Meio seacuteculo depois um texto copta completo do mesmo evangelho foi descoberto perto

de Nag hammadi O texto copta divide-se em 114 ditos com um proacutelogo no iniacutecio e um

tiacutetulo - ldquoo Evangelho segundo Tomeacuterdquo - no final39

A Liacutengua Original de Tomeacute

A linguagem de Tomeacute comeccedilou a ser debatida com o surgimento do texto copta

onde alguns acadeacutemicos consideraram que o copta era a liacutengua original da composiccedilatildeo

do evangelho40 Esta proposta foi refutada e as trecircs opccedilotildees mais viaacuteveis para a maioria

dos estudiosos satildeo o aramaico ocidental o siriacuteaco e o grego41

38 Cf Valantasis R (2007) 3 39 Thomas Gospel of In The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible edited by

Stevan

Davies Oxford BiblicalStudies Online (accessed 13-April-2017) 40Cf Gathercole Simon (2014) 91

38

Existem alguns problemas a niacutevel metodoloacutegico para identificarmos semitismos nos

textos gregos e coptas de Tomeacute Primeiro porque muitos semitismos satildeo insignificantes

num argumento para a composiccedilatildeo de uma linguagem semita Seria necessaacuterio que a

frase em questatildeo natildeo fosse meramente escrita no idioma grego ou copta e que

reciprocamente fosse aramaica ou siriacuteaca do periacuteodo da sua composiccedilatildeo Isto eacute difiacutecil

uma vez que existem poucas inscriccedilotildees siriacuteacas dos primeiros dois seacuteculos42

O Evangelho de Tomeacute pode assim ter sido escrito originalmente em grego existindo

alguns pontos que podem sustentar esta afirmaccedilatildeo

Existem 27 palavras gregas nas seccedilotildees paralelas da versatildeo copta No manuscrito copta

encontramos uma densidade consideraacutevel de palavras gregas praticamente por todo o

texto

Podemos ainda considerar o testemunho de Tomeacute e as evidecircncias materiais dos

manuscritos O facto de termos trecircs fragmentos gregos e um manuscrito copta e sendo a

liacutengua grega a liacutengua de origem de muitos trabalhos antigos preservados em

manuscritos coptas indica que o grego pode ser a liacutengua original do Evangelho de

Tomeacute

A maioria dos evangelhos daquele periacuteodo foi composta em grego apenas os

evangelhos tardios comeccedilaram a ser escritos em latim e copta mas esses natildeo satildeo

relevantes para o periacuteodo histoacuterico de Tomeacute

O Evangelho de Marcos Lucas e Joatildeo foram redigidos originalmente em grego e os

documentos relacionados com Tomeacute tambeacutem satildeo considerados originalmente gregos o

Evangelho de Judas o Evangelho de Pedro e o Evangelho de Maria o Evangelho de

Filipe tambeacutem eacute atestado como composiccedilatildeo grega apesar de ter interesses em temas

siriacuteacos43

Podemos assim concluir que a existecircncia de manuscritos gregos e a ausecircncia de

manuscritos semitas fortalece a ideia de que Tomeacute originalmente eacute um texto grego sem

originais siriacuteacos ou aramaicos

A Data de Tomeacute

41Cf Idem 91

42 Cf Idem 92 43 Gathercole Simon (2014) 97

39

Situar o Evangelho de Tomeacute no espaccedilo temporal tem-se revelado uma tarefa

complexa para os acadeacutemicos44 Os dados papiroloacutegicos reunidos ateacute entatildeo tendem a ser

datados ateacute ao terceiro seacuteculo O testemunho histoacuterico mais antigo estaacute em Hipoacutelito

onde ldquoo Evangelho segundo Tomeacute eacute mencionado e uma citaccedilatildeo simples eacute fornecidardquo

em Refutatio 5720-2145 O Refutatio data de duzentos e vinte e dois a duzentos e trinta

e cinco dC

Por estes elementos o Evangelho de Tomeacute situa-se entre duzentos a trezentos dC de

acordo com vaacuterios autores46 o melhor espaccedilo histoacuterico para situar o Evangelho de

Tomeacute encontra-se no tempo apoacutes centro e trinta e cinco dC e antes do ano duzentos

dC

Esta linha temporal estabelece-se devido agraves influecircncias literaacuterias presentes no texto e agrave

confianccedila na natildeo reconstruccedilatildeo do templo no lg 71

O papiro e a menccedilatildeo do Evangelho de Tomeacute em Hipoacutelito fornecem-nos um terminus

ante quem de duzentos dC iniacutecio do terceiro seacuteculo As afinidades de certos elementos

de Tomeacute com outras obras literaacuterias do segundo seacuteculo satildeo tambeacutem pontos de seguranccedila

para atestarmos esta dataccedilatildeo

A Origem do Evangelho de Tomeacute

Iremos agora tratar da proveniecircncia do Evangelho de Tomeacute

A maioria dos acadeacutemicos situa Tomeacute na Siacuteria47 e uma minoria propotildee o Egito

Faremos um breve comentaacuterio situando o evangelho na Siacuteria nomeadamente em

Edessa

Quatro argumentos satildeo essenciais para situar o Evangelho de Tomeacute em Edessa (1) a

origem siriacuteaca do nome lsquoJudas Tomeacutersquo (2) a receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute (3) as afinidades

de Tomeacute com as formas textuais siriacuteacas (4) as afinidades de Tomeacute com a literatura

siriacuteaca como as Odes de Salomatildeo e os Atos de Tomeacute

O nome Judas Tomeacute

44Gathercole Simon (2014) 113 45 Citado em Gathercole Simon (2014) 113 46 Idem 124 47A grande maioria dos acadeacutemicos localizou a origem de Tomeacute na cidade de Edessa na Siacuteria

40

Esta forma particular do nome indica uma proveniecircncia siriacuteaca este nome duplo

aparece nos Atos de Tomeacute e no Livro de Tomeacute

Apesar da diferente natureza destas obras estatildeo relacionadas entre si de uma forma

particular Surgiram na Siacuteria Oriental onde as tradiccedilotildees ligadas ao nome lsquoJudas Tomeacutersquo

eram amadas e as obras literaacuterias assim como as lendas eram associadas a este irmatildeo

geacutemeo de Jesus48

Judas Tomeacute ou Judas o Diacutedimo era uma figura peculiar do Cristianismo Siriacuteaco

Oriental As versotildees siriacuteacas do evangelho de Joatildeo 1422 leem ldquoTomeacute e Judas Tomeacuterdquo

em vez de ldquoJudas natildeo o Iscariotesrdquo Isso demonstra que os escribas siacuterios identificaram

o outro Judas no Evangelho de Joatildeo lsquoJudas o filho de Tiagorsquo em Lc 616 e At 113

com Tomeacute que natildeo tem este nome duplo no Novo Testamento ou na tradiccedilatildeo cristatilde

ocidental

O nome tambeacutem aparece em fontes de origem siriacuteaca como a lenda de Abgar a Histoacuteria

da Igreja de Euseacutebio e a doutrina de Addai 5

Os Atos de Tomeacute tambeacutem originaacuterios da Siacuteria Oriental e provavelmente escritos em

siriacuteaco relatam a histoacuteria do apoacutestolo Judas que eacute descrito como o lsquogeacutemeorsquo de Jesus49

O nome Tomeacute eacute a transliteraccedilatildeo da palavra aramaica que significa lsquogeacutemeorsquo Natildeo

encontramos evidecircncias que este nome era usado como nome proacuteprio no grego

aramaico ou hebraico preacute-cristatildeo e haacute claras indicaccedilotildees que foi entendido como um

apelido na tradiccedilatildeo cristatilde siriacuteaca50

Podemos assim concluir que a tradiccedilatildeo de Judas o irmatildeo geacutemeo de Jesus teraacute nascido

provavelmente na Siacuteria

A niacutevel da receccedilatildeo siriacuteaca de Tomeacute o uso de Tomeacute nos Atos de Tomeacute nos Atos de Joatildeo

e no Evangelho de Filipe testificam que a influecircncia de Tomeacute foi forte e ateacute notaacutevel

nalguma literatura maniqueiacutesta

Existem vaacuterios paralelismos entre Tomeacute e as versotildees siriacuteacas dos evangelhos

As afinidades de Tomeacute com a literatura siriacuteaca

48 Cf Uro R (2003) 9 49 Atos de Tomeacute 31 e 39 50Cf Uro R (2003) 10

41

ldquoQuando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os

vossos vestidos e os colocardes sob

os vossos peacuteshelliprdquo

Evangelho de Tomeacute 37b

As semelhanccedilas teoloacutegicas entre a literatura siacuteriaca e Tomeacute satildeo impressionantes

nos trabalhos de cunho miacutestico e asceacutetico Isto inclui literatura siriacuteaca antiga como as

Odes de Salomatildeo Oratio de Taciano e os Atos de Tomeacute assim como depois alguma

literatura tardia como eacute o exemplo da literatura de Macarius o Grande

Alguns dos traccedilos comuns entre o Evangelho de Tomeacute e os Atos de Tomeacute encontram-se

na figura do apoacutestolo Tomeacute Em ambos os documentos o apoacutestolo teve ldquoo privileacutegio de

ser o confidente dos ensinamentos mais secretos de Jesusrdquo (Atos Tomeacute 1039 47 e 78)

O livro de Tomeacute e o Evangelho de Tomeacute afirmam apresentar as lsquopalavras secretasrsquo que

Jesus disse a Judas Tomeacute

Os Conceitos Religiosos do Evangelho de Tomeacute

Identificar a atmosfera religiosa do Evangelho de Tomeacute tem sido uma

problemaacutetica desafiante entre os acadeacutemicos Isto por causa da brevidade de Tomeacute o

seu conteuacutedo e a sua forma Tomeacute tem sido considerado um documento do gnosticismo

do judaiacutesmo cristatildeo encratita da teologia sapiencial ou ateacute uma expressatildeo de

radicalismo social51

Outros identificam Tomeacute como um produto do cristianismo siriacuteaco primitivo um

misticismo unitivo ou um produto valentiano

No geral a tendecircncia acadeacutemica eacute encaixar o Evangelho de Tomeacute numa determinada

escola de pensamento O problema eacute que Tomeacute natildeo se enquadra em nenhuma das

lsquoheresiasrsquo que chegaram ateacute noacutes Eacute importante observar o documento nos seus proacuteprios

termos na sua proacutepria mensagem mesmo que isso implique existirem limitaccedilotildees

O objetivo do nosso estudo eacute arrumar as crenccedilas e as reflexotildees de Tomeacute apresentando a

sua teologia central

51Cf Gathercole Simon (2014) 144

ldquoNatildeo ficarei mais coberto visto

que o manto da vergonha me foi

tiradordquo

Atos de Tomeacute 14

42

Ao investigar para este projeto deparei-me com uma obra The Poetics of Ascent

Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text52 que apresentou um contributo

significativo agrave leitura de Tomeacute

A teoria da linguagem no contexto miacutestico leva-nos a inquirir o significado da

linguagem e da poeacutetica da palavra na criaccedilatildeo da realidade interior

ldquoE ele disse Aquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo saborearaacute a morterdquo53

Existe logo na sua afirmaccedilatildeo inicial uma ideologia da linguagem apresentada no texto

pois ao interpretar a palavra escrita o leitor encontraraacute a imortalidade o que nos leva a

ponderar a natureza do papel da linguagem no Evangelho de Tomeacute como mais agrave frente

seraacute mostrado este evangelho apresenta uma exegese feita a Geacutenesis 1

Abordando o relato da criaccedilatildeo o evangelho faz alusatildeo agrave narraccedilatildeo mais sagrada do

judaiacutesmo rabiacutenico o relato da criaccedilatildeo Os judeus acreditavam que o nome da divindade

tinha poder acreditavam tambeacutem que quando a divindade falava as suas palavras

continham um poder especial como aquele que aprenderam na histoacuteria da criaccedilatildeo em

Geacutenesis em que a divindade falou e toda a realidade foi trazida agrave existecircncia

Para um escriba familiarizado com estas tradiccedilotildees e estas crenccedilas acerca dos poderes

divinos se Deus criou o mundo atraveacutes do discurso que liccedilotildees poderatildeo tirar os exegetas

da histoacuteria acerca do potencial uso criativo da linguagem

No lg 15 Tomeacute escuta trecircs palavras da boca de Jesus que natildeo pode revelar aos outros

disciacutepulos ldquose eu vos dissesse uma soacute palavra que me disse apanhariacuteeis pedras para

lanccedilaacute-las contra mim e sairia fogo das pedras que vos consumiriardquo

A palavra em Tomeacute transporta o potencial divino que traz a imortalidade e a morte

onde a interpretaccedilatildeo proveniente de uma busca iacutentima e profunda permite ao fiel

desvelar novas realidades

Assim a teologia do Evangelho de Tomeacute eacute fundamentalmente uma soteriologia54 assente

na interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Natildeo se trata apenas da sabedoria comum os eleitos

tecircm a sua origem no reino da luz o Reino do Pai (lg 49-50) e Tomeacute fornece as

instruccedilotildees necessaacuterias para cada um retornar ao reino desse Pai

A figura do Pai eacute uma figura proeminente no Evangelho de Tomeacute sendo mencionada 21

vezes Natildeo eacute caraterizado como um agente em contraste com Jesus o texto carateriza-o

como ldquoum movimento e um repousordquo como o eleito (lg 50)

52Cf Janowitz Naomi (1989) 53Ev Tm lg 2 54Cf Gathercole Simon (2014) 145

43

O Pai tem uma ldquoimagem de luzrdquo (lg 83) ele tem uma ldquovontaderdquo (lg 99) e um Reino (lg

57 76 96-99 133)

Nos evangelhos sinoacuteticos o Reino foi ldquopreparadordquo por Jesus (Mc 1040 Mt 2534

Mc1040 Mt 2023) Tomeacute fala de um Reino paradisiacuteaco de luz preacute-existente ausente

de localizaccedilotildees geograacuteficas no cosmos Este reino eacute associado com a ldquoluzrdquo (lg 49-50)

estando dentro e fora dos eleitos (lg 3) eles vieram e voltaratildeo para laacute (lg 49)

Este reino pode ser achado (lg 27a 49) eacute possiacutevel entrar nele (lg 22 99 114 cf 39

6475) e eacute possiacutevel estar longe dele (lg 82)

Quando os disciacutepulos falam sobre a vinda do reino (lg 113) Jesus respondeu-lhes que o

reino se encontra espalhado por todos os lugares (lg 113)

Em Tomeacute o Reino eacute o paraiacuteso primordial sempre presente (lg 18-19) que natildeo pertence

aos ricos nem aos poderosos mas aos pobres (lg 54) e agravequeles que satildeo como as crianccedilas

(lg 22 46)55

Sendo um lugar de unidade primordial (lg 22) eacute uma realidade visiacutevel embora se

encontre obscurecido pela cegueira das pessoas (lg 113)

A criaccedilatildeo do mundo em Tomeacute estaacute apresentada numa elaborada exegese agraves narrativas

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis56

Nesta primeira abordagem mais literal vamos considerar apenas os fragmentos elusivos

no texto sem considerar os simbolismos e as especulaccedilotildees filosoacuteficas da exegese a Gn

1 Nalgumas ocasiotildees o criador eacute referido em termos femininos ldquoAdatildeo chegou a ser por

um grande poder e uma grande riquezardquo57 ldquoa minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo58

Esta matildee eacute aqui apresentada como a verdadeira matildee de Jesus este termo assim como lsquoa

matildeersquo no lg 105 podem sugerir a figura do Espiacuterito59 envolvida na criaccedilatildeo

O tratamento da queda no Evangelho de Tomeacute expressa-se em duas esferas queda

desintegrada e queda para baixo60 Em relaccedilatildeo agrave primeira Jesus afirma ldquono dia em que

eacutereis um chegastes a ser doisrdquo61 Jesus veio do lugar indivisiacutevel (lg 61) e natildeo eacute um

divisor (lg 72)

55Cf Idem 146 56 Cf Pagels H E (1999) 57Ev Tm lg 85 58Ev Tm lg 101 59Cf Gathercole Simon (2014) 146 60 Idem 147 61Ev de Tm lg 11

44

A conceccedilatildeo da queda como uma separaccedilatildeo encontra-se presente no mito da criaccedilatildeo

valentino e nas exegeses filosoacuteficas helenistas ao mito da criaccedilatildeo do Geacutenesis

Para Tomeacute a recuperaccedilatildeo da unidade primordial eacute a tarefa chave para o discipulado do

eleito

Quanto agrave segunda esfera da queda para baixo esta relaciona-se com o espiacuterito descer ao

corpo humano como Jesus afirma ldquoEu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo62

Isto relaciona-se de forma expliacutecita com a queda de Adatildeo e a sua morte (lg 85)

Encontramos aqui uma conceccedilatildeo da queda humana com implicaccedilotildees mundanas para o

ser humano Contudo importa dizer que nada disto estaacute explicitamente associado ao

conceito de pecado um toacutepico pouco presente neste evangelho A causa da queda eacute um

misteacuterio sem qualquer explicaccedilatildeo

No ambiente intelectual de Tomeacute existiam um nuacutemero de opiniotildees sobre o assunto e

vaacuterias correntes de pensamento tentaram explicar porque eacute que as almas desciam aos

corpos

Eram vaacuterias interpretaccedilotildees a duas obras da altura Timeu e Fedro Alcino listou quatro

motivos as almas seguiam o seu turno numa sequecircncia numerada ou pela vontade dos

deuses pela intemperanccedila ou pelo amor do corpo o corpo e a alma tecircm uma afinidade

entre si como o fogo e asfalto63 Outro documento da mesma eacutepoca Lamblichusrsquos De

Anima 2364 discute vaacuterios relatos das atividades que induzem a alma a descer

apresentando as seguintes uma espeacutecie de desejo por independecircncia (Plotino) voo de

Deus (Empeacutedocles) e o resto consiste na mudanccedila (Heraacuteclito) desarranjo e desvio

(gnoacutesticos) e julgamento errado do livre arbiacutetrio (Albinus)

Nesta riqueza de pensamentos torna-se difiacutecil relacionar o pensamento de Tomeacute eacute

necessaacuterio aludir estes dois pontos ldquoo todo proveio de mimrdquo de Jesus (lg 77) que indica

que deu uma queda da luz ou do elemento pneumaacutetico e natildeo foi um ato positivo da

criaccedilatildeo65

O segundo ponto atribuiacutedo por Lamblichus a Heraacuteclito que as ldquoalmas viajam estrada

acima e estrada abaixo e para eles permanecer num lugar eacute trabalho mas mudar eacute

repousordquo pode ser associado com a noccedilatildeo de ldquorepouso e descansordquo de Tomeacute

62Ev de Tm lg 29 63Cf Gathercole Simon (2014) 147 64 Dilon (2002) 49 65Cf Idem 148

45

O ldquosinal do Pairdquo nos eleitos (lg 50) e como jaacute foi referido o lg 77 fala de ambos ldquoos que

proveemrdquo de Jesus (cf a ldquoestrada abaixordquo) e ldquoestendem-serdquo para ele (cf a ldquoestrada para

cimardquo)

O mundo eacute retratado no Evangelho de Tomeacute como um cadaacutever (lg 56) implicando uma

ideia de morte Jesus ridiculariza a ideia de o reino ser parte deste mundo no ar ou no

mar (lg 3) Jesus lanccedilou fogo sobre o mundo (lg 10) e no log 16 repete esta ideia

acrescentando ldquoespada e guerrardquo

Podemos afirmar na sua essecircncia que o mundo eacute entendido como o objeto sobre o qual

os eleitos estatildeo de passagem (lg 42) eacute um cadaacutever (lg 56) que deve ser renunciado (lg

110) Todos estes elementos atribuem uma conotaccedilatildeo negativa ao conceito de mundo

O ldquotodordquo proveio de Jesus e foi identificado com Jesus e a ldquoterrardquo eacute o lugar onde o

reino se expande (lg 113)

O pensamento que Tomeacute tem do corpo reflete a sua visatildeo do mundo Existe um certo

contraste entre a alma e o espiacuterito por um lado e o corpo ou carne por outro

Como jaacute foi referido na discussatildeo acerca da queda Jesus expressa o seu

maravilhamento em relaccedilatildeo ao facto da grande riqueza do espiacuterito vir a ocupar uma

posiccedilatildeo de pobreza na carne (lg 29c)

Tomeacute sugere que esta habitaccedilatildeo eacute uma doenccedila afirmando no entanto a muacuteltipla

dependecircncia da carne e da alma (lg 112) Existe um contraste entre o exterior a imagem

fiacutesica de um lado e a imagem espiritual preacute-existente por outro lado (lg 84)

Eacute importante sublinhar que estas duas realidades satildeo apresentadas natildeo como uma

oposiccedilatildeo mas como estados do ser66 o corpo eacute neutro na mundividecircncia de Tomeacute

A revelaccedilatildeo de Jesus eacute apresentada em Tomeacute com carateriacutesticas uacutenicas Jesus eacute

encarnado ele eacute fundamentalmente ldquoluzrdquo (lg 77) mas tambeacutem entrou no mundo como

ldquocarnerdquo (lg 28)

Existe a noccedilatildeo de que o disciacutepulo pode identificar-se com Jesus (lg 108) e o disciacutepulo

nunca deve chamaacute-lo ldquomestrerdquo (lg 13) no entanto Jesus reteacutem em si a transcendecircncia

Ele eacute o agente da eleiccedilatildeo (lg 23) e do juiacutezo (lg 10 16) os eleitos satildeo seus disciacutepulos (lg

55) e estatildeo debaixo da sua lideranccedila (lg 90) e todos devem dar-lhe o seu devido respeito

(lg 100) De forma suprema ele eacute a luz acima de tudo e em tudo (lg 77)

Relaciona-se com o ser supremo divino como filho (lg 99) e recebe vida de outro ser

espiritual feminino (lg 105)

66Cf Idem 151

46

Central para a cristologia de Tomeacute eacute a sua identidade como revelador Jesus eacute a uacutenica

fonte de revelaccedilatildeo no evangelho (lg 38)

O formato do evangelho (Jesus dissehellip Jesus dissehellip Jesus dissehellip) chama a atenccedilatildeo

para este ponto67 as primeiras linhas do evangelho estabelecem o significado desta

revelaccedilatildeo confiada a Tomeacute que deve ser entendida corretamente como sendo um meio

para escapar da morte

O conhecimento eacute o tema central no trabalho interpretativo de Tomeacute Aparecem vaacuterias

variantes da palavra conhecimento no evangelho sendo que das 25 vezes ocorrencias

20 possuem um significado teoloacutegico68

Haacute um forte foco nas palavras de Jesus como fonte deste conhecimento (lg 38) As

referecircncias em especial ao autoconhecimento satildeo discutidas pelos autores por um lado

defendem a experiecircncia profunda do autoconhecimento nas suas dimensotildees

psicoloacutegicas69 e aqueles que relegam este autoconhecimento para a auto compreensatildeo

do ser no grande esquema teoloacutegico das coisas70

A salvaccedilatildeo depende deste conhecimento acerca de si proacuteprio que Jesus revela no

Evangelho de Tomeacute O estado de salvaccedilatildeo tem sido retratado de vaacuterias formas tais

como a visatildeo do Pai a ascendecircncia sobre o cosmos viver num estado de unidade e de

ldquorepousordquo

Como seraacute apresentado na experiecircncia miacutestica de Tomeacute as experiecircncias visionaacuterias (lg

59) assumem um papel na linguagem visual do evangelho (lg 5 15 27 37 38 84)

A interpretaccedilatildeo textual e as teacutecnicas miacutesticas visionaacuterias associadas a exegese miacutestica

assumem uma preacute-condiccedilatildeo para a salvaccedilatildeo no Evangelho de Tomeacute

O ldquorepousordquo eacute uma noccedilatildeo importante (lg 51 60 90) ao sinalizar a libertaccedilatildeo das

tentaccedilotildees mundanas e a liberdade do jugo do discipulado

Concluiacutemos assim o levantamento histoacuterico das ideias que constituem o pensamento

religioso do Evangelho de Tomeacute Este quadro temaacutetico constitui um guia para a teologia

de Tomeacute e tambeacutem uma base para reconstruirmos historicamente alguns dos

comportamentos praacuteticas e crenccedilas associadas agraves comunidades que utilizavam este

evangelho

Algumas das tradiccedilotildees presentes no Evangelho de Tomeacute satildeo desde jaacute reconhecidas por

estudantes de literatura siriacuteaca como expressotildees de feacute desenvolvidas no cristianismo

67Cf Gathercole Simon (2014) 152 68Idem 69Cf Hartin P J (1999) 1001-1021 70Cf Gathercole Simon (2014) 152

47

oriental71 Alguns traccedilos ideoloacutegicos presentes satildeo a ausecircncia da morte vicaacuteria de Cristo

a ausecircncia da ecircnfase no pecado e na redenccedilatildeo descrita com linguagem sacrificial ou

juriacutedica A salvaccedilatildeo eacute antes descrita como um retorno agrave condiccedilatildeo paradisiacuteaca original

que se perdeu na queda Os escribas siriacuteacos natildeo viam uma interrupccedilatildeo radical entre

deus e o humano Habitando num mundo de corrupccedilatildeo e morte o ser humano era antes

encorajado a buscar e a encontrar o seu eu divino

Edessa era uma importante confluecircncia de rotas de caravanas As vias de Antioquia para

Edessa e de Edessa para Niacutesibe e para a India transportaram para aleacutem de bens

materiais pensamentos religiosos e filosoacuteficos72

Foi neste tipo de ambiente cultural e ideoloacutegico que o Evangelho de Tomeacute ganhou

forma respirando conceitos figuras experiecircncias e realidades contidas na sua

linguagem e nas suas palavras Este ambiente ostenta uma mistura de ideias religiosas

com o pensamento e a feacute cristatilde judaica e pagatilde

Sublinhando estes temas principais prosseguiremos agora agrave anaacutelise do tipo distinto de

ensinamento religioso fornecido por Tomeacute

4 O Evangelho de Tomeacute no Espaccedilo e no Tempo

O Evangelho de Tomeacute deve ao ambiente do seu tempo a revoluccedilatildeo do pensamento a sua

composiccedilatildeo e a sua mensagem isto porque antes de procurarmos relacionaacute-lo com o

misticismo judaico ou com o platonismo ou com o hermetismo devemos questionar

quais satildeo as linhas do seu pensamento que o interligam ao ambiente universal

heleniacutestico

A ecircnfase no lsquoeursquo individual eacute sem duacutevida a grande marca que como iremos demonstrar

iniciou uma seacuterie de mudanccedilas no pensamento religioso

Comeccedilaremos por apontar a transformaccedilatildeo do pensamento religioso ligada ao fim do

sacrifiacutecio animal73 a extensatildeo do domiacutenio romano sobre o Meacutedio Oriente74 o fenoacutemeno

do misticismo visionaacuterio e a proeminecircncia da exegese textual religiosa face ao rito

assim como a interiorizaccedilatildeo do apocaliptismo

O espaccedilo geograacutefico de Tomeacute situa-se no antigo Meacutedio Oriente pelo que iremos apenas

mencionar alguns momentos chave da histoacuteria da sua cultura e religiatildeo

71Cf Uro R (2003) 29-30 72 Idem 30 73Cf Stroumsa G Guy (2015) 74Cf Millar Fergues (1993)

48

Em duzentos aC apoacutes a estabilizaccedilatildeo poliacutetica e o desenvolvimento econoacutemico os

Selecircucidas e os Ptolemeus assistiram a uma nova estrutura cultural no Meacutedio Oriente o

Helenismo Esta transformaccedilatildeo cultural abraccedilou os niacuteveis mais altos da sociedade as

elites adotaram a liacutengua grega e comeccedilaram a imitar a literatura artes e arquitetura da

Greacutecia claacutessica

Macedoacutenios e gregos emigraram e estabeleceram-se nas vaacuterias cidades existentes os

nomes destas cidades eram mudados e era-lhes concedido o estatuto de polis estas

cidades tornaram-se centros da nova cultura e religiatildeo heterogeacutenea helenista com uma

profunda transformaccedilatildeo cultural que manteve a sua influecircncia ateacute ao seacutetimo seacuteculo com

a conquista islacircmica75

A economia da maioria das cidades permanecia inalterada e baseada na agricultura e no

comeacutercio a diferenccedila que encontramos natildeo estaacute na qualidade mas na quantidade

As condiccedilotildees climaacuteticas favoraacuteveis fomentaram a expansatildeo da agricultura sobre regiotildees

extensas incluindo franjas do deserto76

Rotas comerciais foram estabelecidas para a Araacutebia e a China atraveacutes da Peacutersia e da

Aacutesia Central Apesar do surto de guerra intermitente entre os Selecircucidas e os ptolomeus

que soacute viria a terminar com a anexaccedilatildeo do Meacutedio Oriente pelo Impeacuterio Romano este

periacuteodo heleacutenistiacuteco foi um dos mais proacutesperos economicamente e a sua influecircncia

cultural persiste ateacute hoje

O fim do sacrifiacutecio ritual apontou uma nova criacutetica ao ritual tradicional enfatizando a

nova importacircncia central da eacutetica na religiatildeo Surgiram aqui as bases para a nova

dimensatildeo universal da religiatildeo Com a quebra do sistema tradicional ritualiacutestico

surgiram as novas crenccedilas e atitudes religiosas77

Como acima referimos a possibilidade de difusatildeo de ideias neste periacuteodo histoacuterico eacute

oacutebvia assim como as carruagens e os bens facilmente se movimentavam pelo mundo

helenistiacuteco as ideias e as crenccedilas deslocavam-se no espaccedilo e no tempo

A mudanccedila religiosa surgiu tambeacutem pelas novas tecnologias com a difusatildeo dos

sistemas de escrita78 o desenvolvimento da escrita estaacute diretamente relacionado com o

estabelecimento dos impeacuterios e sociedades centralizadas79

75 Idem 206 76 Millar Fergues (1993) 206 77 Cf Stroumsa G Guy (2015) 25-27 78Cf Idem 27 79Idem

49

Com o crescimento destas sociedades a necessidade de elites escribas aumentou educar

e treinar novas geraccedilotildees de escribas permitiu agrave sociedade gerar livros que

posteriormente deram origem a livros sagrados Estes livros eram tradiccedilotildees orais muitas

vezes esoteacutericas e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se uma religiatildeo portaacutetil que

viaja com o viajante

De Jesus a Maomeacute assistimos a uma seacuterie de movimentos religiosos80 que brotam deste

meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados Creio que mais do que uma

revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades estamos a falar de uma revoluccedilatildeo textual

Estas tradiccedilotildees geraram os seus proacuteprios textos sagrados redigiram comentaacuterios e

traduccedilotildees a outros documentos Toda esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do

Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental Sendo assim necessaacuterio compreendermos como

eacute que o papel desempenhado pelo livro rapidamente iria transformar todos os sistemas

religiosos deste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos e aqui sublinha-se a proacutepria criatividade do

Evangelho de Tomeacute que apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos

velhas crenccedilas e suposiccedilotildees

O conceito de livro revelado contribui para grandes transformaccedilotildees na religiatildeo os

primeiros seacuteculos do Impeacuterio Romano testemunharam a revoluccedilatildeo mais radical na

histoacuteria do livro ateacute Gutenberg

Esta revoluccedilatildeo levou agrave passagem do rolo para o coacutedex no caso do cristianismo o coacutedex

foi adotado instantaneamente O desenvolvimento da leitura silenciosa permitiu uma

nova atitude perante o livro e os seus conteuacutedos introduzindo uma nova dignidade

reflexiva uacutenica para o seu leitor Situaccedilatildeo bastante privilegiada pelo Evangelho de

Tomeacute Estas transformaccedilotildees apontam para a privatizaccedilatildeo da leitura a relaccedilatildeo entre o

texto e o seu leitor tornou-se mais pessoal e menos puacuteblica81

Esta privatizaccedilatildeo permitiu um espetro quase ilimitado de possibilidades hermenecircuticas

Por um lado isto explica o ambiente criativo que gerou os vaacuterios textos religiosos deste

periacuteodo Quando pensamos na ecircnfase atribuiacuteda a um certo corpo literaacuterio tido como

divinamente revelado podemos comeccedilar a ver todo o tipo de implicaccedilotildees dramaacuteticas

nesta revelaccedilatildeo cultural da religiatildeo

80 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus 81 Cf Stroumsa G Guy (2015) 30

50

O outro fator que moldou claramente o mundo das religiotildees e a sua cultura foi a

destruiccedilatildeo do Templo de Jerusaleacutem no ano setenta dC

A primeira consequecircncia foi o nascimento de duas religiotildees que permanecem ateacute aos

dias de hoje o cristianismo e o judaiacutesmo rabiacutenico

Este novo advento do judaiacutesmo transformou a religiatildeo de Israel tornou-se uma religiatildeo

sem sacrifiacutecios cujos sacerdotes perderam o seu papel Os especialistas da religiatildeo

foram substituiacutedos por uma elite intelectual de escribas

O cristianismo assumiu-se como uma religiatildeo centrada no ritual do sacrifiacutecio celebrado

por sacerdotes representada numa continuidade da religiatildeo de Israel Este ritual era

chamado anamnesis a reactualizaccedilatildeo do sacrifiacutecio de Jesus

Apesar de ser uma religiatildeo sem templos o cristianismo primitivo oferecia este sacrifiacutecio

de forma organizada por uma hierarquia o vocabulaacuterio sacrificial de Israel foi mantido

pela igreja dos primeiros seacuteculos

Com a queda do Templo os rituais foram transformados os sacrifiacutecios diaacuterios foram

substituiacutedos por oraccedilotildees Como mais agrave frente iremos explorar esta substituiccedilatildeo e esta

dissoluccedilatildeo do Templo no pensamento religioso judaico levou a religiatildeo a cultivar uma

atitude miacutestica e interior da busca do divino

Sublinha-se o facto das ditas experiecircncias visionaacuterias e miacutesticas estarem interligadas e

presentes em vaacuterios textos de tradiccedilotildees diferentes os textos gnoacutesticos textos miacutesticos

rabiacutenicos textos miacutesticos cristatildeos e outras tradiccedilotildees pagatildes

O elo comum eacute o sentido de presenccedila do divino que pensando na questatildeo da

individualidade e da experiecircncia iacutentima da leitura poderaacute ser uma consequecircncia dessa

exegese interior

A religiatildeo tornou-se mais internalizada e a participaccedilatildeo religiosa passou a ser

intelectual feita atraveacutes da leitura82 No acircmbito geral do Impeacuterio Romano as formas de

ritual religioso estavam a focar-se nas escrituras que eram lidas e interpretadas

oferecendo as bases para o chamamento ao arrependimento do pecado pessoal

Em Roma a religiatildeo significara por muito tempo quase exclusivamente a observacircncia

do ritual A questatildeo da verdade natildeo estava presente na esfera religiosa A internalizaccedilatildeo

e a individualizaccedilatildeo da religiatildeo transportaram o sagrado para a esfera privada

82Cf Stroumsa G Guy (2015) 39

51

Ao compararmos os evangelhos canoacutenicos com Tomeacute notamos algumas diferenccedilas

significativas como as ausecircncias da narrativa da paixatildeo e morte de Jesus Tambeacutem natildeo

encontramos os discursos apocaliacutepticos e a retoacuterica anti-judaica

Porque eacute que estes elementos estatildeo ausentes de Tomeacute E porque eacute que estes elementos

estatildeo presentes nos evangelhos canoacutenicos

Seraacute Tomeacute apenas um ponto focal dentro da diversidade das tradiccedilotildees primitivas

evangeacutelicas ou um ponto de viragema partir do qual podemos ganhar uma nova

perspetiva sobre as tradiccedilotildees

A tradiccedilatildeo apresentada nos evangelhos canoacutenicos eacute tomada como garantida original

natural e normativa A histoacuteria canoacutenica do cristianismo apresenta-se como a histoacuteria

original com Jesus sendo o messias que veio ao mundo que foi rejeitado e crucificado

ressuscitando ao terceiro dia Esta eacute a narrativa histoacuterica do Evangelho de Marcos a

narrativa histoacuterica dos sinoacutepticos e tambeacutem a narrativa do Evangelho de Joatildeo

O ponto de partida para investigarmos o papel do Evangelho de Tomeacute na constituiccedilatildeo da

histoacuteria do cristianismo primitivo eacute percebermos aquilo que existe de comum entre os

evangelhos canoacutenicos e o de Tomeacute

O elo de ligaccedilatildeo comum entre todos estes documentos eacute o facto de todos estes

documentos serem um reservatoacuterio de memoacuterias cultivadas acerca da perceccedilatildeo que as

comunidades tinham da figura de Jesus

Seraacute que a memoacuteria canoacutenica de Jesus foi a original a histoacuteria natural Quando

recorremos agraves cartas de Paulo tambeacutem este enfatiza o nobre martiacuterio e formula o seu

kerigma em funccedilatildeo dessa memoacuteria

Esta histoacuteria foi interpretada num esforccedilo para tornar significativa a memoacuteria de Jesus

num contexto cultural particular e agrave luz de uma experiecircncia particular a experiecircncia de

ser dissidente no Impeacuterio Romano83 Jesus foi executado como um dissidente do

impeacuterio e esta memoacuteria era um facto com que os seguidores dissidentes se podiam

relacionar As suas histoacuterias focaram-se assim no martiacuterio de Jesus na sua vida morte e

ressurreiccedilatildeo

Mas seraacute que esta foi a uacutenica forma como Jesus teraacute sido relembrado

Neste capiacutetulo a questatildeo seraacute respondida a partir de vaacuterias observaccedilotildees feitas ao

Evangelho de Tomeacute e a sua localizaccedilatildeo geograacutefica em Edessa a regiatildeo a leste do rio

Eufrates

83Cf Patterson J S (2013) 10

52

A memoacuteria de Jesus que foi cultivada neste evangelho eacute bastante diferente e cremos

que isso deve-se ao facto do contexto cultural em que esta tradiccedilatildeo surgiu ser

completamente diferente do contexto cultural dos evangelhos canoacutenicos84

Edessa natildeo era uma cidade romana era uma cidade de estado independente um espaccedilo

comercial importante para as rotas de caravanas onde pessoas de todo o levante se

encontravam Estas diferenccedilas refletem-se no texto e no contexto O Evangelho de Tomeacute

parece vir a ser bastante adequado ao seu ambiente e aos desafios que o acompanham

Vivecircncias e Mentalidades na outra Margem do Eufrates

Edessa era a capital do principado de Orsoena a leste do Eufrates situando-se na

grande estrada que atravessava o deserto siriacuteaco a sul e as montanhas da Armeacutenia a

norte Os seus habitantes falavam aramaico sendo a cidade um centro de cultura

literaacuteria antes do advento do cristianismo85

Ao longo da sua histoacuteria ateacute ao terceiro seacuteculo Edessa passou por vaacuterias mudanccedilas

poliacuteticas O estabelecimento do governo selecircucida na regiatildeo sucedeu agrave dominaccedilatildeo da

Paacutertia e agrave instauraccedilatildeo de uma monarquia depois seguiram-se a invasatildeo de Trajano e a

subsequente rebeliatildeo a invasatildeo de Luacutecio Vero a rebeliatildeo de Abgar VIII e a sua

submissatildeo a Septiacutemio Severo E finalmente a incorporaccedilatildeo da cidade no Impeacuterio

Romano como um municiacutepio sobre o domiacutenio de Caracalla em duzentos e doze ec86

A resistecircncia de Edessa ao domiacutenio romano durante o segundo seacuteculo pode ser

pensada em termos da sua afinidade com o ldquoOrienterdquo ndash o reino Parta do qual foi aliado

durante dois seacuteculos A afinidade com Paacutertia desenvolveu-se durante o periacuteodo em que

Edessa foi governada por uma seacuterie de reis com nomes aacuterabes e falantes de liacutengua

semita A ligaccedilatildeo a Paacutertia exerceu uma grande influecircncia sobre a cultura de Edessa87

A cultura de Edessa absorveu ainda assim traccedilos da cultura helenista de outras cidades

siriacuteacas Em termos de fontes histoacutericas o registo literaacuterio comeccedila com o trabalho de

Bardesanes de Edessa por volta dos iniacutecios do terceiro seacuteculo quanto aos registos

fiacutesicos encontramos vaacuterios artefactos da Edessa preacute-cristatilde religiatildeo arte arquitetura e a

organizaccedilatildeo da cidade Estes elementos ajudam-nos a desenhar as linhas gerais da

sociedade de Edessa e a sua cultura No entanto natildeo foi descoberto nada que decirc uma

84Cf Idem 11 85Cf L W Barnard (1968) 161-162 86Cf Ross K S (2011) 83 87Cf Idem

53

evidecircncia direta da situaccedilatildeo antes do fim do segundo seacuteculo88 Em termos religiosos

Edessa possuiacutea vaacuterios deuses gregos e semitas a vida religiosa da Edessa preacute-cristatilde teve

raiacutezes profundas e as suas crenccedilas e praacuteticas natildeo desapareceram com a chegada do

cristianismo Os governantes de Edessa reverenciavam um panteatildeo de divindades

semelhante agravequelas que eram adoradas na Mesopotacircmia e Siacuteria sendo possiacutevel

estabelecermos ainda ligaccedilotildees com a religiatildeo aacuterabe e nabateia89 Os deuses babiloacutenicos

importantes Bel e Nebo ocupavam um lugar de destaque no panteatildeo de Edessa Edessa

tinha uma comunidade judaica de pensamento helenista Os judeus em Edessa eram

recetivos ao cristianismo isso refletiu-se na reminiscecircncia histoacuterica do cristianismo de

Edessa no seu desenvolvimento tardio A localizaccedilatildeo de Edessa no traacutefego comercial

das rotas nortesul e esteoeste tornou a cidade num local multicultural no final do

primeiro seacuteculo onde elementos do oriente e do ocidente norte e sul se encontraram e

se misturaram90

Esta junccedilatildeo de judeus falantes do grego que emigraram pelas rotas comerciais da Siacuteria

ndash Palestina foi para se estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis onde nos

primeiros dois seacuteculos floresceram e desempenharam um papel ativo na sua cultura

intelectual e religiosa O Evangelho de Tomeacute representa o desenvolvimento da tradiccedilatildeo

de Jesus que teria sido no seu contexto relevante no seu ambiente social O texto

oferece uma perspetiva acerca da vida mundana de uma cidade comercial as fortunas

feitas e perdidas a tentaccedilatildeo do ser humano a emergir por completo na vida superficial

do comeacutercio e dos seus vaacuterios prazeres efeacutemeros

ldquo[Disse Jesus] Se tendes dinheiro natildeo o empresteis a juros mas dai-o [hellip] agravequ[ele] de

quem natildeo recebereis91 Se natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino92 Felizes os

pobres porque vosso eacute o Reino dos ceacuteus93 Jesus disse estai de passagem94rdquo

Podemos assim observar como Tomeacute fala do seu contexto cultural como um

entendimento alternativo de como a vida deve ser vivida A sabedoria contra cultural da

tradiccedilatildeo de Jesus revestida da filosofia platoacutenica de renuacutencia ao mundo eacute oferecida

88Cf Idem 84 89Cf Idem 101 90Cf Patterson J S (2013) 21 91Ev de Tm lg 95 92Ev de Tm lg 27 93Ev de Tm lg 54 94Ev de Tm lg 42

54

como a verdadeira sabedoria de Jesus o Vivente Como jaacute foi referido Edessa conseguiu

manter a sua independecircncia face a Roma ateacute duzentos e catorze ec durante o tempo da

sua autonomia a cidade era um local relativamente paciacutefico onde judeus e cristatildeos

poderiam integrar-se na vida urbana livres de conflitos com as autoridades ciacutevicas Esta

experiecircncia foi de facto bastante diferente daquele que os seguidores de Jesus viveram

no ocidente no outro lado do Eufrates

Ao analisarmos o contexto de Edessa com Tomeacute encontramos um ponto de

convergecircncia entre a sua textualidade e as vivecircncias e mentalidades dos seus leitores

Alguns elementos tomados por garantidos nos evangelhos sinoacuteticos como a morte e a

ressurreiccedilatildeo o cenaacuterio apocaliacuteptico o situar a comunidade cristatilde no final dos tempos e

as poleacutemicas com outros grupos judaicos (fariseus saduceus e escribas) natildeo estatildeo

presentes em Tomeacute

Estas coisas natildeo estatildeo presentes no Evangelho de Tomeacute porque natildeo foram relevantes

para a realidade que o compocircs Aqueles que usaram este evangelho na Siacuteria oriental a

leste do Eufrates natildeo enfrentaram a morte nem a perseguiccedilatildeo opressiva romana por isso

natildeo refletiram sobre a morte de Jesus Eles natildeo enfrentaram uma guerra catacliacutesmica

entatildeo natildeo se voltaram para cenaacuterios apocaliacutepticos que poderiam colocar este tipo de

violecircncia num contexto teoloacutegico95 Parece-nos tambeacutem que estes seguidores de Jesus

se integraram na comunidade judaica de Edessa de uma forma relativamente

harmoniosa sendo assim desnecessaacuteria a poleacutemica anti-judaica nos seus textos

O contexto fez a diferenccedila em Edessa a cidade comercial um tipo diferente de

cristianismo cresceu encontrando uma ressonacircncia nas vidas de homens e mulheres que

desejavam seguir a sabedoria de Jesus de forma a escaparem da superficialidade da

vida mundana do comeacutercio e chegarem ao auto-conhecimento que conferia dignidade e

valor a cada ser humano como ldquofilho do Pai Viventerdquo

O Evangelho de Tomeacute demonstra-nos que existiram muacuteltiplas possibilidades de

interpretar a tradiccedilatildeo de Jesus A cruz e a ressurreiccedilatildeo natildeo eram o uacutenico foco possiacutevel

da pregaccedilatildeo cristatilde primitiva a vinda do apocalipse natildeo era a uacutenica forma de imaginar o

futuro e a animosidade para com os judeus natildeo era necessaacuteria para a definiccedilatildeo da

identidade cristatilde

A realidade influencia a religiatildeo que estaacute ausente na narrativa de Tomeacute encontrando-se

claramente presente nos textos canoacutenicos narrando-se a histoacuteria de Jesus como um

95 Cf Patterson J S (2013) 25

55

martiacuterio focando a feacute nesse evento especiacutefico fazendo parte de um drama coacutesmico no

qual os ldquojudeusrdquo satildeo inimigos natildeo satildeo apenas elementos naturais da tradiccedilatildeo de Jesus

Foram essencialmente elementos escolhidos pelo seu valor afirmativo do significado

dos acontecimentos contemporacircneos e a experiecircncia dos seguidores de Jesus como

dissidentes do Impeacuterio Romano96 A teologia da cruz paulina pareceu a escolha certa

para Paulo porque ele interpretou a sua experiecircncia desofrimento e humilhaccedilatildeo uma

experiecircncia que ele acreditava em natildeo ser possiacutevel evitar se algueacutem quisesse abraccedilar

verdadeiramente a vida de Jesus97

No oriente a leste do Eufrates o cristianismo estava a tomar outra direccedilatildeo outro mundo

um mundo em que os seguidores de Jesus natildeo eram dissidentes natildeo eram perseguidos

pelas autoridades presos ou martirizados As suas escolhas teoloacutegicas foram diferentes

eles viram Jesus como um mestre de sabedoria um anunciador de palavras este era o

Jesus destes cristatildeos natildeo era o messias crucificado no qual Paulo encontrou a feacute este

Jesus era o ldquoJesus Viventerdquo cujo conhecimento podia guiar os fieacuteis ateacute agrave fonte da vida o

ldquoPai Viventerdquo A feacute de Jesus natildeo se tornou apenas relevante para aqueles que se

encontravam no papel de disciacutepulos dissidentes do messias dissidente crucificado

A leste do Eufrates para aleacutem das fronteiras do Impeacuterio Romano a feacute de Jesus tornou-

se relevante de outra forma as suas palavras tornaram-se a chave para uma forma saacutebia

de viver a vida e sinalizou a esperanccedila de que o mundo da compra e venda do abraccedilar

da ambiccedilatildeo e ateacute a vida familiar natildeo eram o fim de todas as coisas Conhecer-se a si

proacuteprio como ldquofilho do Pai Viventerdquo representava uma escolha teoloacutegica bastante

diferente

O cristianismo primitivo em Edessa a partir das fontes que temos disponiacuteveis do

segundo seacuteculo era profundamente influenciado pelo judaiacutesmo cristatildeo e o seu

pensamento foi influenciado acima de tudo pelas especulaccedilotildees antropoloacutegicas e

cosmoloacutegicas do neoplatonismo O debate intelectual da eacutepoca cercava os temas da

criaccedilatildeo relatados no livro de Geacutenesis Sendo a exegese destes textos a base teoloacutegica da

crenccedila religiosa do Evangelho de Tomeacute a um niacutevel antropoloacutegico Os padrotildees de

pensamento presentes no Evangelho de Tomeacute situam as suas ideias no judaiacutesmo do

periacuteodo intertestamental nomeadamente nalguns textos escritos nesse periacuteodo sem os

quais a leitura de Tomeacute se torna difiacutecil

96Cf Patterson J S (2013) 26 97Cf Idem 30

56

O tema de buscar e encontrar eacute muito frequente neste evangelho98 podemos afirmar que

esta temaacutetica eacute a base da maior parte do texto sendo um dos seus temas mais

unificadores99

O Pensamento de Tomeacute e o Platonismo

A localizaccedilatildeo geograacutefica do Evangelho de Tomeacute influenciou a sua textualidade e

o seu pensamento Prova disso eacute a abordagem comum que partilha com os vaacuterios textos

cristatildeos primitivos de Edessa que tendem a ler a tradiccedilatildeo de Jesus de uma forma

platoacutenica100

Jaacute apresentaacutemos na secccedilatildeo 37 os elementos distintos da voz teoloacutegica de Tomeacute

notando o contraste entre a teologia centrada na cruz e no sacrifiacutecio vicaacuterio e a teologia

centrada na interpretaccedilatildeo e na iluminaccedilatildeo dos ditos de Jesus A distinccedilatildeo do espaccedilo

geograacutefico de Edessa em relaccedilatildeo ao Impeacuterio Romano clarifica as mentalidades e as

vivecircncias em ambos os contextos

Os elementos fundamentais do pensamento de Tomeacute partem do seu nuacutecleo primitivo

assente no primeiro loacutegion ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo101 Tomeacute convida o seu leitor a uma certa hermenecircutica de reflexatildeo

sustentada insistindo que ldquoaquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que encontrerdquo102

A estrutura textual de Tomeacute inclui no seu interior vaacuterios aforismos e paraacutebolas expostas

de forma a convidar o leitor agrave reflexatildeo

Uma leitura inicial poderia levar-nos a concluir que nesta expressatildeo Tomeacute apresenta

apenas uma teologia sapiencial contudo natildeo temos aqui apenas um conjunto de ditos de

sabedoria

A teologia sapiencial de Tomeacute encontra-se imbuiacuteda no pensamento platoacutenico em

concreto as variedades filosoacuteficas do renascimento heleniacutestica do pensamento

platoacutenico103

98Cf Patterson J S (2013) 31 99Cf Davies L S (1983) 37 100Cf Patterson J S (2013) 14 101Ev de Tm lg 1 102Ev de Tm lg 2 103Cf Patterson J S (2013) 15

57

A procura do reino de Deus inicia-se no interior do ser humano ldquoo Reino estaacute dentro de

voacutes e estaacute fora de voacutesrdquo104 ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima de Delfos sublinha

corretamente a influecircncia do platonismo em Tomeacute

O contexto histoacuterico do pensamento de Tomeacute sustenta-se na realidade das comunidades

de judeus helenizados que valorizaram este evangelho pela sua riqueza filosoacutefica

Estas comunidades eram constituiacutedas por judeus que falavam liacutengua grega e liam a

Biacuteblia Hebraica em grego a chamada Septuaginta ou traduccedilatildeo dos setenta O aspeto

interessante desta dinacircmica religiosa era o facto de os judeus interpretarem os relatos da

Setuaginta com a filosofia heleniacutestica do mundo greco-romano105

Estes judeus falantes de grego percorreram as rotas comerciais da Siacuteria-Palestina para se

estabelecerem em cidades como Edessa e Niacutesibis Adiabene com os seus reis e rainhas

judias situava-se mais a este106 Estas comunidades judaicas prosperaram nos primeiros

dois seacuteculos desempenhando um papel ativo na cultura intelectual e religiosa que

prosperava nestas cidades107

Estes judeus tinham as escrituras judaicas de um lado e Platatildeo do outro este interesse

filosoacutefico tambeacutem presente na textualidade de Tomeacute expressa uma certa concorrecircncia

entre Platatildeo e Geacutenesis

Este ponto seraacute abordado com mais detalhes na secccedilatildeo que trata a exegese de Geacutenesis 1

na textualidade de Tomeacute

Por agora podemos aferir que como Fiacutelon de Alexandria estas comunidades judaicas

helenistas interpretavam Gn 127 pensando que o primeiro ser humano a ser criado era

masculino e feminino108 Era um ser androacutegino o masculino e feminino num estado

unificado do ser era o estado paradisiacuteaco primordial para o qual um dia todos os seres

voltariam (lg 22)109

Outra interpretaccedilatildeo popular naqueles dias a Gn 27 apresenta ecos da antropologia

platoacutenica o ser humano era composto de um corpo e de uma alma combinados numa

mistura complexa (lg 87 112) Cada pessoa possui de igual forma um espiacuterito uma

104Ev de Tm lg 3 105Cf Patterson J S (2013) 16 106 Cf Idem 21 107Cf Jacob Neusner (1965) 108Philo Opif 134 em (Judaeus 1993) 109Cf AFJ Klijn (1962) 271ndash278

58

centelha de habitaccedilatildeo divina que reside como estrangeira no iacutentimo do ser humano

mortal (lg 29)110

Esta centelha tambeacutem era considerada a imagem de Deus o verdadeiro lsquoeursquo escondido

dentro do lsquoeursquo terreno (lg 84) Este conceito era familiar para o platonismo da eacutepoca e

para os judeus helenistas dados agrave especulaccedilatildeo filosoacutefica111

O objetivo desta tradiccedilatildeo era recuperar a imagem perdida de Deus (lg 22) e retornar ao

reino celestial do Pai de onde todos os eleitos lsquoas crianccedilas do Pai Viventersquo

originalmente vieram (lg 49-50) Estes eleitos satildeo o lsquopovo da luzrsquo (lg 24 lg 61 83)

ldquoque vieram da luzrdquo e um dia retornaratildeo ao ldquolugar onde a luz procedeu de si mesmardquo (lg

50)112

O Evangelho de Tomeacute representa assim um desenvolvimento da tradiccedilatildeo de Jesus no

ambiente cultural filosoacutefico e religioso de Edessa A sua textualidade oferece uma

perspetiva acerca da vida mundana numa cidade comercial as fortunas reunidas e

perdidas a tentaccedilatildeo de mergulhar na vida superficial e seus vaacuterios prazeres

passageiros113

O pensamento de Tomeacute fala ao seu contexto cultural com um claro entendimento de

vida bem vivida Esta tradiccedilatildeo de Jesus apresenta-se como uma sabedoria

contracultural uma filosofia de traccedilos platoacutenicos que renuncia ao mundo

Outras ideias como as de Taciano Bardisano na segunda metade do segundo seacuteculo e

os tardios Atos e Livro de Tomeacute desenvolveram uma leitura platoacutenica da tradiccedilatildeo de

Jesus em Edessa114

A linguagem e os conceitos platoacutenicos foram assimilados nos primeiros dois seacuteculos por

vaacuterias tradiccedilotildees filosoacuteficas e religiosas O Evangelho de Tomeacute inclui estas ideias o

autoconhecimento a presenccedila do espiacuterito divino que habita no iacutentimo do ser humano a

identidade do eu interior com Deus ndash compreendida como a imagem de Deus ou a luz

divina de Deus o objetivo espiritual do lsquorepousorsquo a ser alcanccedilado no meio da vida

freneacutetica e o retorno do espiacuterito agrave sua origem celestial115

ldquoQuando vos chegueis a conhecer a voacutes proacutepriosrdquo

110Cf Patterson J S (2013) 16 111Cf Jarl Fossum (1985) 202ndash239 112 Philo Opif 70ndash71 em (Judaeus 1993) 113Cf Patterson J S (2013) 22 114Cf Patterson J S (2013) 22 115Cf Idem 37

59

ldquoConhece-te a ti mesmordquo esta maacutexima deacutelfica representa uma longa tradiccedilatildeo na

filosofia grega muito anterior a Platatildeo Podemos dividir esta tradiccedilatildeo em duas

correntes a mais antiga interpreta a maacutexima como uma limitaccedilatildeo - conhece-te a ti

proacuteprio que eacutes (apenas) humano - e a segunda em que Platatildeo considerava esta maacutexima

agrave luz da perspetiva socraacutetica em que o verdadeiro lsquoeursquo a alma era como Deus Nesta

interpretaccedilatildeo o verdadeiro autoconhecimento soacute poderia surgir na contemplaccedilatildeo da alma

no iacutentimo do ser humano

Chegar ao conhecimento da alma era ao mesmo tempo chegar ao conhecimento de

Deus

Esta interpretaccedilatildeo enraizou-se entre os estoacuteicos e os platonistas dos primeiros dois

seacuteculos como Posidoacutenio e outros tantos que foram influenciados como Ciacutecero Seacuteneca e

Epicteto Para estes filoacutesofos ldquoconhece-te a ti mesmordquo natildeo era uma limitaccedilatildeo mas o

iniacutecio da auto-transcendecircncia o ser humano ao conhecer-se a si mesmo a sua parte

divina ele conhecia o divino116

Ciacutecero oferece um exemplo ilustrativo

ldquoPois aquele que se conhece perceberaacute em primeiro lugar que ele tem um elemento divino

dentro dele e pensaraacute em sua proacutepria natureza interior como uma espeacutecie de imagem

consagrada de Deus E assim ele sempre agiraacute e pensaraacute de uma maneira digna de um dom tatildeo

grande dos deuses e quando ele examinou e testou profundamente a si mesmo ele vai entender

como nobremente equipado pela natureza ele entrou na vida e que muacuteltiplos meios que ele

possui para a obtenccedilatildeo e aquisiccedilatildeo da sabedoriardquo117

Fiacutelon de Alexandria a voz judaica no reavivamento platoacutenico tambeacutem abraccedilou este

entendimento acerca da mesma maacutexima

ldquoConhece-te a ti mesmo e as partes de que eacutes composto o que cada uma eacute e para que eacute que foi

feita e como se destina a trabalhar e quem eacute que todo invisiacutevel invisivelmente coloca os

fantoches em movimento e puxa suas cordas Quer seja a Mente que estaacute em ti ou a Mente do

universordquo118

116Cf Idem 117Leg 12259 em (Judaeus 1993) 118De Fug 46 em (Judaeus 1993)

60

Nesta passagem o autor expotildee a sua ideia geral que a mente - νοῦς em termos

platoacutenicos o elemento mais elevado da alma ndash permanece soberano sobre todos os

aspetos da existecircncia sensorial e corpoacuterea Na sua exegese a Geacutenesis 121-3 chamada

Migraccedilatildeo de Abraatildeo interpreta alegoricamente a jornada a mente o lsquoeursquo real despede-

se da existecircncia corporal A ldquoterrardquo representa o corpo o ldquoparentescordquo representa as

perceccedilotildees dos sentidos e a ldquocasa do teu pairdquo refere-se ao discurso O ser deve despedir-

se de tais coisas elevar-se acima delas e governaacute-las como um rei governa os seus

suacutebditos

ldquoTu eacutes um rei escolhe-te de uma vez por todas para governar natildeo seres governado cada vez

mais vens a conhecer-te a ti mesmo como Moiseacutes te ensina em muitos lugares dizendo lsquodaacute

ouvidos a ti mesmorsquordquo 119

Somente deste modo a mente segundo Fiacutelon de Alexandria comeccedila a ldquoconhecer-se e a

manter conversa com as coisas da menterdquo120 Nesta frase Fiacutelon usa o termo platoacutenico

mais carateriacutestico para o eu divino interior mente (νοῦς) Ao discutir estes assuntos

noutras ocasiotildees121ele afirma que com disciplina eacute possiacutevel fazer com que a Mente se

retire para si mesma abandonando o mundo do corpo e da perceccedilatildeo dos sentidos para o

mundo noeacutetico Este mundo eacute o mundo da mente universal e assim chegar aacute

contemplaccedilatildeo daquele que eacute

Neste processo o corpo tem pouco uso eacute um cadaacutever e a alma (ψυχή) eacute pesada por este

ldquocasco de courordquo122

Eacute neste oceano filosoacutefico que se situa o pensamento de Tomeacute a procura do verdadeiro

eu a descoberta da verdadeira identidade com o divino a depreciaccedilatildeo do mundo e do

corpo como uma distraccedilatildeo para o seu objetivo e o uso de ascetismo e misticismo para

superar a existecircncia corporal Todas estas ideias e praacuteticas compotildeem o platonismo dos

dois primeiros seacuteculos

Poreacutem existem algumas sensibilidades histoacutericas que natildeo podemos ignorar correndo o

risco de simplificarmos a nossa leitura do pensamento de Tomeacute

Apesar de partilharem as mesmas ideias teriam a mesma linguagem

O grupo de Tomeacute adotou modos de expressatildeo proacuteprios do movimento de Jesus natildeo

empregando os termos teacutecnicos do platonismo123

119MigAbr 8 (LCL ConlsonandWitaker trans) 120MigAbr 13 em (Judaeus 1993) 121 Cf Patterson J S (2013) 39 122LegAll 374 QuaestGen 477

61

Eles natildeo falam de ldquoMenterdquo mas de ldquoespiacuteritordquo Falam de reinar mas tambeacutem de

descobrir o Impeacuterio de Deus interior Natildeo afirmam tornar-se como Deus mas afirmam

tornar-se como Jesus Como ele eles devem aperceber-se que satildeo filhos do Pai Vivente

O platonismo sem sombra de duacutevidas deixou a sua marca no pensamento de Tomeacute

Aqueles que cultivaram esta tradiccedilatildeo especularam sobre a verdade acerca da natureza

humana e o seu destino

O corpo e o mundo satildeo os dois uacuteltimos assuntos a ser tratados dentro do contexto do

pensamento platoacutenico e a forma como este influenciou a textualidade de Tomeacute

ldquoJesus disse Aquele que conheceu o mundo encontrou o corpo e o que encontrou o

corpo o mundo natildeo eacute digno delerdquo124

Segundo o lg 80 o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um corpo tanto os platoacutenicos como os

estoacuteicos consideravam que o mundo era um corpo ὁ κόσμος σῶμά ἐστιν125 Esta ideia

aparece primeira vez nos Diaacutelogos de Platatildeo no pensamento da antiguidade o mundo

era um corpo em todos os sentidos melhor que o nosso corpo O mundo gerava os

nossos corpos e uma vez que os nossos corpos teriam almas o corpo do mundo

tambeacutem era animado Este conceito surge em Timeu onde o universo eacute chamado de

ldquoceacuteurdquo ou ldquoterrardquo por vezes eacute visiacutevel e tangiacutevel por vez invisiacutevel O mundo no

platonismo tinha duas constituintes o corpo e a alma

A leitura do loacutegion 80 faria assim numa primeira instacircncia sentido agrave mente do leitor

antigo o mundo tinha um corpo Mas a segunda parte levantaria questotildees confusas por

que motivo o facto do mundo ter um corpo levaria algueacutem a concluir que o mundo era

miseraacutevel

O lg 56 responde a essa questatildeo o mundo eacute miseraacutevel porque eacute um cadaacutever um corpo

morto O pensamento de Tomeacute alinha-se com o platonismo em relaccedilatildeo ao mundo ser um

corpo mas acrescenta que o mundo nada mais eacute do que um corpo

Com isto o texto diz que o mundo natildeo tem alma natildeo eacute um ser vivo eacute um ser morto E

esta mensagem eacute importante para o leitor de Tomeacute

123Cf Patterson J S (2013) 40 124Ev de Tm log 80 125Sextus Empiricus Math 979 = SVF 21013 Stoic rep 1054endashf according to Chrysippus

ldquothe universe is a perfect body (τέλεονμὲν ὁ κόσμοςσῶμάἐστιν) where as the parts of the

universe are not perfect since their existence is not independent but is their particular relation

to the wholerdquo (trans H Cherniss) cf Philo Plant 7 the world ldquois the largest of material bodies

(τὸ μέ γιστον σωμάτων ἐστί) and holds in its bosom as parts of itself a mass of other material

bodiesrdquo (trans FH Colsonand GH Whitaker)

62

Aquele que entender a verdadeira natureza do mundo entende que ao contraacuterio do

mundo ausente de vida ele tem alma e eacute um ser vivo

A compreensatildeo que permite interpretar os ditos e percecionar os segredos torna o

disciacutepulo mais digno do que o mundo

A noccedilatildeo do mundo ser apresentado como um cadaacutever tambeacutem era bastante popular no

pensamento platoacutenico126

O Evangelho de Tomeacute e os Fragmentos do Evangelho Judaico-Cristatildeo

A pertinecircncia deste ponto de reflexatildeo no presente trabalho deve-se a uma hipoacutetese

apresentada na primeira vez que o Evangelho de Tomeacute se tornou disponiacutevel para a

investigaccedilatildeo acadeacutemica O autor Gilles Quispel apresentou a hipoacutetese de que um

montante significativo de loacutegia no Evangelho de Tomeacute era baseado num evangelho

judaico-cristatildeo127

Apesar de a hipoacutetese natildeo ter sido apoiada por muitos investigadores o estudo

apresentado por Quispel apresentou semelhanccedilas importantes entre o Evangelho de

Tomeacute e o evangelho da tradiccedilatildeo judaico-cristatilde

(1) Alguns dos logia de Tomeacute encontram paralelos nos fragmentos dos evangelhos

judaico-cristatildeos

(2) Os fragmentos do Evangelho de Tomeacute e dos evangelhos judaico-cristatildeos

incluem leituras paralelas nas tradiccedilotildees textuais ocidentais e siriacuteacas

(3) Alguns dos logia de Tomeacute baseiam-se em ditos semitas originais o que sugere

uma ligaccedilatildeo ao evangelho judaico-cristatildeo

(4) A figura de Tiago assume um papel central no Evangelho de Tomeacute (logia 12) e

no cristianismo judaico

(5) Ambos os evangelhos criticam os ricos e os negoacutecios

Apresentaremos alguns logia e fragmentos que sugerem uma dependecircncia literaacuteria entre

o Evangelho de Tomeacute e as tradiccedilotildees do evangelho judaico-cristatildeo

126It is worth noting that this notion also appears in two Stoic works Epictetusrsquo Dissertationes

(1199 21927 31015 32241) and Marcus Aureliusrsquo Meditationes (441 924) As I have

already pointed out in chapter 2 Epictetus probably appropriated the notion that bodies are

corpses from contemporary Platonists as for Marcus Aurelius he explicitly states tha the

borrowed the notion from Epictetus Cf Clark Seth A Know Yourself and You Will Be

Known The Gospel of Thomas and Middle Platonism (2014) CGU Theses amp

DissertationsPaper 92 127Cf Luomanen Petri (2012) 200

63

As seguintes passagens

(1) Evangelho de Tomeacute lg 2 (POxy 654 5-9) Clement Strom II IX 455 V XIV

963

(2) Ev Tomeacute lg 99EpifacircnioPan30145

(3) Ev Tomeacute lg 39 (POxy655) Mateus 1016 CodexNoviTestamenti 1424 ad

Mateus 1016 Pseudo Clementinas Rec 1546-7 Hom 3182-3

(4) Ev Tomeacute lg 72 Origen comentaacuterio ev Mateus 1514

Faremos uma comparaccedilatildeo linguiacutestica destes excertos e abordaremos dois aspetos da

Sabedoria e do Espiacuterito que ligam os fragmentos judaico-cristatildeos aos escritos de Tomeacute

a ideia de o Espiacuterito ser a matildee de Jesus e o proacuteprio Jesus eacute a Sabedoria encarnada

Esta tradiccedilatildeo seraacute a base para compreendermos a metaacutefora nupcial no Evangelho de

Tomeacute sendo possiacutevel explorar as profundidades da experiecircncia miacutestica em Tomeacute

Antes de iniciarmos esta anaacutelise eacute necessaacuterio discutirmos alguns dos pontos

estabelecidos em relaccedilatildeo ao Evangelho dos Hebreus e o Evangelho de Tomeacute

O Evangelho de Tomeacute situa-se na Siacuteria mais concretamente em Edessa A tradiccedilatildeo do

nome do apoacutestolo Tomeacute relaciona o texto de Tomeacute com os Atos de Tomeacute e outras obras

de literatura siriacuteaca O Evangelho dos Hebreus localiza-se no Egito e eacute considerado

como o mais gnoacutestico dos trecircs evangelhos judaico-cristatildeos128

Este evangelho poreacutem apresenta mais pontos de contato com as tradiccedilotildees de Tomeacute isto

porque supostamente incluiacutea um dito semelhante ao lg 2 de Tomeacute e POxy 654 5-9

(ver Clemente Strom II IX 455 V XIV 963) e um dito que fala sobre o Espiacuterito Santo

ser a matildee de Jesus (ver Oriacutegenes Comentaacuterio Evangelho Segundo Joatildeo 212)

Este eacute um tema carateriacutestico do cristianismo siriacuteaco proeminente nos Atos de Tomeacute (c

7 27 39 50) Algumas citaccedilotildees de Jeroacutenimo em relaccedilatildeo ao Espiacuterito (ver Comentaacuterio

Isaiacuteas 111-3 Comentaacuterio Ezequiel 185-9 e em relaccedilatildeo a Tiago o justo (ver Jeroacutenimo

Vir Ill2) tambeacutem satildeo atribuiacutedas a este evangelho

Os autores que se debruccedilaram sobre o Evangelho dos Hebreus afirmaram que o

judaiacutesmo-cristatildeo deste documento conteacutem elementos gnoacutesticos sincreacuteticos

128Cf Luomanen Petri (2012) 202

64

Terei que discordar pois os elementos ditos gnoacutesticos como seraacute demonstrado no

proacuteximo ponto enquadram-se na experiecircncia miacutestica judaica do primeiro e segundo

seacuteculo

A dataccedilatildeo paleograacutefica dos fragmentos gregos do evangelho (entre o ano duzentos e

duzentos e cinquenta dC) e a data da citaccedilatildeo de Clemente (duzentos e dois a duzentos e

quinze dC) concordam mostrando que existem semelhanccedilas antes do terceiro seacuteculo

Os cristatildeos judeus e os cristatildeos de Tomeacute utilizaram os produtos teoloacutegicos da mesma

cultura escriba dando depois lugar agrave livre reinterpretaccedilatildeo desses conteuacutedos

Jesus eacute apresentado como um rei e um repouso da Sabedoria no lg 2 lecirc-se uma

exortaccedilatildeo agravequele que busca para que continue a buscar ateacute que encontre o repouso

A descriccedilatildeo do batismo de Jesus num fragmento preservado por Jeroacutenimo ilustra

aparentemente os mesmos objetivos do ponto de vista da Sabedoria que encontrou o

repouso em Jesus

ldquoMas de acordo com o evangelho que foi escrito em liacutengua hebraica e lido pelos nazarenos

lsquotoda a fonte do espiacuterito santo veio sobre elersquohellip Mais adiante no evangelho lsquoaconteceu entatildeo

quando o Senhor subiu da aacutegua que toda a fonte do espiacuterito santo desceu e descansou sobre ele

e disse-lhe meu filho eu esperava-te entre todos os profetas que tu devias vir e que eu deveria

descansar sobre ti pois tu eacutes o meu descanso tu eacutes o meu primogeacutenito que reinaraacute na

eternidaderdquo129

A descriccedilatildeo do batismo carateriza Jesus como o ldquorepousordquo ou descanso e como ldquoreirdquo

Deste modo a passagem retrata Jesus como a pessoa que alcanccedilou o estado ideal de todo

aquele que busca a Sabedoria ndash tal como eacute descrito no lg 2 e paralelos

Natildeo encontramos no Evangelho de Tomeacute alusotildees diretas ao batismo mas no lg 90 onde

Jesus fala como Sabedoria personificada ele promete repouso e ldquodescansordquo aos seus

seguidores

Ainda no registo do episoacutedio do batismo os relatos sinoacuteticos afirmam que se ouviu uma

voz ldquovinda dos ceacuteusrdquo130 No fragmento do batismo de Jesus o Espiacuterito Santo afirma ter

dado agrave luz Jesus e esta afirmaccedilatildeo assemelha-se a outro fragmento do mesmo Evangelho

dos Hebreus que descreve o Espiacuterito Santo como sendo a matildee de Jesus

129Cf Jeroacutenimo Comentaacuterio Isaiacuteas 111-2 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 130Mc 111 Mt 317 e Lc 322

65

ldquoUm instante atraacutes a minha matildee o Espiacuterito Santo pegou-me por um dos meus cabelos e levou-

me para a grande colina o Taborrdquo131

O Espiacuterito Santo tambeacutem eacute caraterizado nos atos de Tomeacute como ldquomatildeerdquo (c 7 27 39 50)

geralmente associada como produto das tradiccedilotildees siriacuteacas presentes no Evangelho de

Tomeacute Eacute importante referir que o Evangelho de Tomeacute natildeo se refere diretamente ao

Espiacuterito Santo como matildee mas estabelece uma distinccedilatildeo clara entre a matildee terrena de

Jesus e a sua matildee verdadeira

ldquohellipporque a minha matildee me gerou mas a minha matildee verdadeira deu-me a vidardquo132

Se identificarmos esta ldquomatildee verdadeirardquo com o Espiacuterito Santo conforme estaacute presente

nos fragmentos judaico-cristatildeos e nos Atos de Tomeacute o lg 101 marcaria o iniacutecio de uma

teologia do Espiacuterito teologia esta claramente mais observada nos Atos de Tomeacute

5 A Experiecircncia Miacutestica Judaica e a sua Linguagem no Evangelho de Tomeacute

- Ele disse-lhes o que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e

ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevas

Lg 24b

O termo lsquomisticismorsquo longe de apresentar um significado especiacutefico tem vaacuterias

associaccedilotildees polimoacuterficas Sendo assim difiacutecil isolar o seu sentido ao longo das eras e

culturas

Podemos pensar no misticismo como o conjunto de praacuteticas organizadas que foram

utilizadas para o contacto direto com a realidade divina Como um lsquo-ismorsquo o termo

lsquomisticismorsquo natildeo eacute uma palavra ecircmica nem uma palavra usada pelos antigos para

descreverem as suas experiecircncias133

Quando os judeus e os cristatildeos dos primeiros seacuteculos da era comum descreviam as suas

experiecircncias miacutesticas eles utilizavam uma uacutenica palavra apokalypsis lsquoapocalipsersquo ou

lsquorevelaccedilatildeorsquo

A literatura deste periacuteodo descrevia emicamente estas experiecircncias religiosas como

visotildees em vigiacutelia sonhos transes e experiecircncias auditivas que podiam envolver uma

131 Oriacutegenes 212 N2GH The Gospel of the Hebrews minha traduccedilatildeo 132Ev de Tm lg 101 133Cf DeConick A (2006) 2

66

viagem ascensionaacuteria ou uma possessatildeo Estas experiecircncias eram possiacuteveis apoacutes certas

preparaccedilotildees e rituais serem realizados

O culminar da experiecircncia era transformador no sentido em que os miacutesticos judeus e

cristatildeos pensavam ser revestidos de conhecimento celestial e podiam juntar-se aos coros

angelicais para adorarem diante do trono e serem glorificados no corpo134

Eacute importante ressaltar que lsquomisticismorsquo eacute uma tipologia moderna que faz parte do

nosso vocabulaacuterio analiacutetico contemporacircneo Que temos vindo a impor agraves realidades

antigas para investigarmos a sua religiosidade

O termo lsquomisticismorsquo no fenoacutemeno religioso judaico eacute diferente daquele que utilizamos

para denotar o fenoacutemeno cristatildeo

Natildeo existe na liacutengua hebraica um termo de significado paralelo ao significado de

misticismo135

O misticismo como categoria histoacuterica permite-nos identificar uma tradiccedilatildeo inerente ao

judaiacutesmo e ao cristianismo centrada na possibilidade de uma pessoa poder experimentar

antes da sua morte de forma direta e imediata a realidade divina ou como experiecircncia

extaacutetica ou como praacutetica provocada

No acircmbito historiograacutefico procuramos inquirir de que modo e com que meios estas

expressotildees miacutesticas moldaram as religiotildees e as culturas do seu tempo

Estes miacutesticos natildeo distinguiam os ecircxtases repentinos das experiecircncias provocadas por

eles proacuteprios Toda a experiecircncia era lsquoapokalypsisrsquo pura revelaccedilatildeo natildeo havia a noccedilatildeo

de unio mystica que mais tarde se torna o conceito central do misticismo cristatildeo

O misticismo do Evangelho de Tomeacute eacute antes de mais a sua reflexatildeo sobre a lsquorevelaccedilatildeorsquo

interior que o leitor alcanccedila ao interpretar os ditos de Jesus

Esta revelaccedilatildeo interna assume dois pilares importantes para crescer na audiecircncia de

Tomeacute

Primeiramente existe a presenccedila da exegese miacutestica esta exegese eacute miacutestica porque

pretende na sua execuccedilatildeo alcanccedilar a imortalidade Esta crenccedila de que a exegese a um

texto sagrado pode levar o saacutebio ou o escriba a alcanccedilarem revelaccedilatildeo interna jaacute estaacute

presente no Judaiacutesmo do II Templo

A linguagem miacutestica na tradiccedilatildeo judaica estaacute intimamente ligada agraves exegeses do relato

da criaccedilatildeo no livro de Geacutenesis que como iremos ver eacute a exegese que compotildee a maioria

do texto do Evangelho de Tomeacute136

134Idem 135Cf Dan Joseph (2002) 7

67

O segundo pilar eacute a experiecircncia visionaacuteria fenoacutemeno que estaacute desde os seus iniacutecios

ligado agrave exegese de textos visionaacuterios da tradiccedilatildeo judaica

Temos assim trecircs elementos usados no judaiacutesmo do II Templo e presentes nos primeiros

trecircs seacuteculos nas tradiccedilotildees rabiacutenica cristatilde e ateacute gnoacutestica

Uma tradiccedilatildeo miacutestica bilateral fluiu do judaiacutesmo e do cristianismo durante os seus anos

formativos Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo no ano de setenta dC a imagem visionaacuteria do

templo celestial com os anjos sacerdotes algo idealizado pelos Esseacutenios era agora a

realidade para o cultivo da noccedilatildeo da presenccedila de Deus em ambas as religiotildees

As tradiccedilotildees cristatildes e judaicas que emergiram nesta eacutepoca deixaram as suas marcas na

literatura apocaliacuteptica judaico cristatilde nos escritos do teoacutelogo judeu Fiacutelon de Alexandria

na literatura de Qumran e possivelmente nos ensinamentos da escola judaica da

Palestina de Yohanan ben Zakkai137

Estas correntes de misticismo apresentam traccedilos comuns que foram a base da Mercavaacute e

da especulaccedilatildeo hekhalot138

Estas tradiccedilotildees foram absorvidas nas trajetoacuterias farisaicas e tanaiacutetas nalgumas formas

de cristianismo em escolas gnoacutesticas e em materiais cabaliacutesticos tardios

Como jaacute tiacutenhamos discutido na secccedilatildeo da transformaccedilatildeo da religiatildeo o aumento da

literatura e dos escribas permitiu o florescimento do pensamento e da especulaccedilatildeo

hermenecircutica Esta vasta literatura miacutestica que no modo como chegou ateacute noacutes

representa as vaacuterias opiniotildees interpretaccedilotildees e experiecircncias das diferentes comunidades

muitas das quais natildeo tinham uma ligaccedilatildeo histoacuterica direta com a religiatildeo do judaiacutesmo do

II Templo mas foram influenciadas pela simboacutelica do Templo

A crenccedila fundamental desta eacutepoca era que o divino podia ser experimentado os cristatildeos

fundamentavam esta crenccedila na sua leitura e exegese das escrituras Foi esta crenccedila que

levou os cristatildeos e os judeus nos periacuteodos formativos a produzirem novos textos que

iriam caraterizar como escrituras ldquoreveladasrdquo Estes textos continham gnosis celestial

os razim ou ldquomisteacuteriosrdquo de Deus Muitos destes textos desde os apocalipses judaicos e

136 Cf Pagels E H (1999) 477- 496 137Cf DeConick A (2006) 3 138Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano ascende ao ceacuteu

numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute transformado numa criatura que

vagueia pelos rios de fogo celestial A literaturehekhalot constitui um aglomerado de textos

esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da

Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a literatura dos

palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm com a literatura gnoacutestica

e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais autoinduzidas Cf Davilla (2001) 2

68

cristatildeos aos textos de Nag Hammadi recontam e reescrevem de forma livre as narrativas

biacuteblicas sob a autoridade de uma revelaccedilatildeo entregue por um anjo celestial ou uma

autoridade primeva139 Estes textos de vaacuterias formas satildeo contra relatos dos textos

tradicionais recompondo as histoacuterias a partir de uma nova hermenecircutica para uma

audiecircncia contemporacircnea

Nestes novos textos os cristatildeos e os judeus partilharam as suas revelaccedilotildees das coisas

ocultas do passado presente e futuro reinterpretando e reescrevendo o passado de modo

a que este servisse as suas experiecircncias presentes e as suas esperanccedilas futuras

A sensibilidade religiosa latente a esta nova textualidade eacute o nuacutecleo daquilo que

podemos chamar a textualidade miacutestica de Tomeacute

Ao que parece o conhecimento do sagrado proveacutem da experiecircncia direta de Deus

conhecendo-o face a face Este encontro era tido como experimental e transformativo

situando o seu adepto para aleacutem dos limites comuns da perceccedilatildeo e dos sentidos

Esta nova perspetiva acerca de Deus levava-os segundo a sua feacute a novas compreensotildees e

revelaccedilotildees permitindo-lhes reinterpretarem as verdades escondidas e as histoacuterias

encobertas no interior das suas escrituras sagradas

Eacute aqui que surge a linha de interseccedilatildeo entre a exegese e a experiecircncia

Aspetos especiacuteficos da experiecircncia miacutestica judaica

A tradiccedilatildeo miacutestica judaico-cristatilde primitiva baseava-se numa hermenecircutica distinta

tendo brotado da exegese e textos judaicos fundacionais Gn 1-3 Ex 2433 Ez 18 10

40-48 Dn 7 e Is 6

Ao longo da histoacuteria as ecircnfases e os elementos desta hermenecircutica variaram na literatura

produzida mas vaacuterios temas cosmoloacutegicos destacaram-se em todos os periacuteodos

A proeminecircncia destes temas pode ser traccedilada nos textos canoacutenicos e extra canoacutenicos e

na literatura apocaliacuteptica do periacuteodo do Segundo Templo Estando ainda nos

Manuscritos do Mar Morto em Nag Hammadi e no corpus da Mercavaacute e hekhalot

Natildeo eacute possiacutevel traccedilar com exatidatildeo histoacuterica uma progressatildeo linear desta abundacircncia de

temas num material tatildeo vasto O que se pode captar acerca do pensamento religioso e da

evoluccedilatildeo das noccedilotildees culturais eacute o sublinhar da constante repeticcedilatildeo de ideias e temas em

textos de eacutepocas diferentes

139Cf De Conick A (2006) 7

69

Estas temaacuteticas representam coletivamente a lsquocosmovisatildeorsquo ou a cosmologia que sustenta

as discussotildees miacutesticas do judaiacutesmo e cristianismo formativos Esta cosmologia estaacute

associada agraves antigas tradiccedilotildees sacerdotais e agrave miacutestica do Templo140

A Gloacuteria do Trono

A Gloacuteria de Iahweh eacute a primeira temaacutetica no debate miacutestico judaico o ponto central

desta cosmologia eacute a crenccedila de que Deus tem um lsquocorporsquo chamado lsquoGloacuteriarsquo

Esta ideia surgiu do estudo de certos textos das escrituras hebraicas particularmente

secccedilotildees do profeta Ezequiel que descrevem as suas visotildees de uma figura entronizada

ldquocom a aparecircncia de um homem (adam)rdquo um homem cuja semelhanccedila parecia o ldquofogordquo

com ldquoresplendor ao seu redorrdquo Esta era a ldquoaparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria (Kavod)

de Iahwehrdquo141 Esta figura era a proacutepria manifestaccedilatildeo do Iahweh oculto retratado nas

escrituras como uma figura antropomoacuterfica de fogo ou luz142

Eacute retratado a presidir sobre a ordem criada sentado na sua Mercavaacute um trono especial

feito por dois querubins

No periacuteodo literaacuterio que estamos a estudar o Deus que estaacute sentado no trono celestial eacute

apresentado como a manifestaccedilatildeo de Iahweh ou Kavod para os judeus e os cristatildeos

Descriccedilotildees luminosas e antropomoacuterficas do Deus ldquoocultordquo satildeo o culminar de vaacuterias

histoacuterias que descrevem viagens celestiais e visotildees de Iahweh entronizado A luz estaacute

sempre presente nas descriccedilotildees e imagens destes textos

O seu corpo aparece envolto numa veste branca de luz resplandecente a sua face emite

brilhos143 Os textos descrevem o haluq em que o robe eacute descrito como o mais santo

assustador e terriacutevel emitindo tremores terror e vibraccedilatildeo No interior e no exterior desta

veste do topo para o fundo o tetragrama encontra-se gravado

Esta doutrina judaica da Kavod influenciou o desenvolvimento das primeiras

cristologias cristatildes Paulo descreve Jesus como a ldquoimagemrdquo ou a ldquoformardquo de Deus (2 Co

44 Col 115 Fp 26) No Evangelho de Joatildeo Jesus eacute retratado como a Gloacuteria de Deus

que desceu dos ceacuteus agrave terra (Joatildeo 114 211 1140 1223 28 41 1332 171-5 22-

140Cf Elior Rachel (2004) 141Ez 128 142Ez 127-28 Is 61-4 143 1 En 1418-21 2 En 221-4 393-8

70

23) Tambeacutem encontramos descriccedilotildees de Jesus como o cordeiro e Sumo-sacerdote do

templo celestial (Hb 31 414-16 51-10 Ap 56-14 713-81 141-5)144

O Templo

A dimensatildeo celestial era compreendida como uma versatildeo celestial do Templo de

Jerusaleacutem Os vaacuterios ceacuteus eram as vaacuterias salas ou santuaacuterios dentro do templo os

Hekhalot Ao aproximar-se do ceacuteu mais elevado cada sala sucessiva eacute mais santa do

que a uacuteltima o Santo dos Santos era o espaccedilo onde a manifestaccedilatildeo de Deus residia

Os firmamentos aparecem nos textos como sendo sete A associaccedilatildeo com o nuacutemero sete

parece combinar com as sete esferas planetaacuterias com aspetos do Templo Sete portais

sete degraus os sete braccedilos da menoraacute145

E ateacute sete niacuteveis enumerados pelo Rabi Joseacute a aacuterea dentro da balaustrada o aacutetrio das

mulheres o tribunal de Israel a corte dos sacerdotes a aacuterea entre o altar e a entrada do

templo o santuaacuterio e o Santo dos Santos146

A dimensatildeo miacutestica do pensamento para laacute do veacuteu do Templo o apokalypsis

desenvolveu-se como uma resposta dos judeus e dos cristatildeos agraves promessas escatoloacutegicas

natildeo realizadas

As suas raiacutezes situam-se no mito judeu do periacuteodo do Segundo Templo acerca da

criaccedilatildeo da humanidade

Esta leitura de Geacutenesis 13 em grego interpretou a palavra phos que significa ldquoluzrdquo e

ldquohomemrdquo quando Deus disse lsquoHaja phosrdquo Ele criou o luminoso homem celestial de

luz147

Este Anthropos foi mais tarde identificado com a Kavod e o Adatildeo Coacutesmico sendo

percebido como a imagem de Deus Segundo esta exegese tambeacutem presente no

Evangelho de Tomeacute esta imagem foi trazida agrave existecircncia no primeiro dia da criaccedilatildeo As

tradiccedilotildees miacutesticas mais tardias chamaram o luminoso homem primordial de Yotser

Bereshit como ldquoo criador no iniacuteciordquo148

144Cf De Conick A (2006) 14 145 Antiguidades Judaicas 367 Guerras Judaicas 555 755 Cf (Josefo 2004) 146Cf Neher Andreacute (1951) 73-76 147Cf De Conick A (2006) 19 148Cf Idem

71

Este mito defendia que o ser humano foi criado agrave semelhanccedila do Anthropos como o

primeiro ser humano foi criado agrave imagem de Deus no relato de Geacutenesis Adatildeo deve ter

sido um reflexo da Kavod

Os mitos que surgiram agrave volta desta exegese redefiniram o pensamento gnoacutestico

Alguns apresentaram a imagem do primeiro ser humano como um ser mais brilhante do

que o Sol149 O seu corpo era semelhante ao Anthropos coacutesmico imenso ao ponto de

encher todo o universo de um extremo ao outro150

ldquoQuando o Santo bendito seja Ele criou Adatildeo Ele o criou hermafrodita [bi-sexual]

pois eacute dito Macho e fecircmea os criaram e chamaram de Adatildeo (Geacutenesis 2 2) R Samuel

b Nahman disse Quando o Senhor criou Adatildeo Ele o criou de dupla face entatildeo Ele o

despedaccedilou e o fez de duas costas uma de volta deste lado e outra de volta do outro

lado () R Joshua b R Nehemiah e R Judah b R Simon no nome de R Leazar disse

Ele o criou enchendo o mundo inteiro Como sabemos que ele se esticou de leste a

oeste Porque eacute dito Voacutes me formastes atraacutes (ahor) e antes (kedem)rdquo151

Este corpo imenso e radiante foi retirado de Adatildeo sendo entatildeo a prioridade do

pensamento religioso retornar a esta imagem radiante da gloacuteria antes da queda Muitos

cristatildeos e judeus pensavam nos primeiros seacuteculos que a piedade era a chave

transformadora da alma Ao viverem uma vida de obediecircncia aos mandamentos

conseguiriam restaurar a gloacuteria de Adatildeo na morte isto ensinavam pela doutrina da

ressurreiccedilatildeo dos mortos A outra doutrina que eacute enfatizada pelas tradiccedilotildees miacutesticas e

tambeacutem no Evangelho de Tomeacute eacute a restauraccedilatildeo da pessoa por completo num corpo de

forma angeacutelica que reflete a Imagem de Deus152

Para estes judeus e cristatildeos a Imagem perdida podia ser restaurada antes do momento da

morte o paraiacuteso e os seus frutos podiam ser experimentados no momento presente

Este paradigma mitoloacutegico era vivido fora do contexto literaacuterio quando examinamos os

Manuscritos do Mar Morto os relatos de Fiacutelon de Alexandria sobre os Terapeutas e as

epiacutestolas paulinas Encontramos testemunhos em primeira matildeo de comunidades

envolvidas em atividades religiosas direcionadas agrave transformaccedilatildeo miacutestica do corpo no

momento presente Tendo como consequecircncia a elevaccedilatildeo do adepto agrave adoraccedilatildeo na

149Cf Idem 20 150Geacutenesis Rabbah 82 213 342 Leviacutetico Rabbah 141 182 Minha traduccedilatildeo 151Geacutenesis Rabbah 81-3 152 Cf De Conick A (2006) 21

72

liturgia dos anjos Muitos dos primeiros cristatildeos contemplaram as suas proacuteprias

ascensotildees ao ceacuteu e as transformaccedilotildees corporais acreditando que a exaltaccedilatildeo e

transformaccedilatildeo de Jesus abriu-lhes os ceacuteus153

Estas foram algumas das experiecircncias que os cristatildeos promoveram viagens celestiais

antes da morte e uma total transformaccedilatildeo no momento presente (Evangelho de Tomeacute

15 19 37 50 59 83 84 108)

As experiecircncias apocaliacutepticas deslocaram-se para o interior do miacutestico moveram-se da

esfera do futuro para o presente e do evento apocaliacuteptico externo e coacutesmico para uma

experiecircncia interior Nestas experiecircncias o visionaacuterio inicia um processo de

transfiguraccedilatildeo

Neste pensamento miacutestico o templo natildeo ldquoestavardquo no ceacuteu os seus sete santuaacuterios satildeo os

ceacuteus Nestas fontes a ascensatildeo ao ceacuteu era vista como uma viagem atraveacutes das dimensotildees

de um templo coacutesmico ateacute ao seu santuaacuterio mais iacutentimo onde Deus aparece na forma de

uma vasta figura masculina de fogo ou luz chamada de ldquopoderrdquo ou ldquogloacuteriardquo sentada no

trono de gloacuteria tambeacutem chamado ldquocarruagemrdquo154

A Merkavaacute

O termo Merkavaacute deriva de 1 Croacutenicas 2818 onde refere a ldquocarruagem do querubimrdquo

que transportava a arca da alianccedila no Santo dos Santos O texto central desta tradiccedilatildeo

miacutestica tardia foi Isaiacuteas 6 onde o profeta encontra a divindade entronizada no Santo dos

Santos do Templo O serafim que Isaiacuteas viu acima do trono correspondia ao querubim

de 1 Croacutenicas 2818 cujas asas se estendiam sobre a arca

O trono de Deus foi assim identificado com a carruagem que transportava a arca como

as fontes esoteacutericas mais tardias referem155

Algumas das raiacutezes da Mercavaacute estatildeo relacionadas com a ausecircncia fiacutesica do Templo de

Jerusaleacutem Quando no exiacutelio da Babiloacutenia os judeus natildeo tinham acesso ao templo fiacutesico

de Jerusaleacutem as visotildees do profeta Ezequiel descreveram a ldquoGloacuteria entronizadardquo que se

movia em rodas maravilhosas povoadas por ldquoseres viventesrdquo identificados em Ezequiel

1014-15 com o querubim do Templo

153Cf Idem 154Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 145 155Cf Scholem G Gershom (1965) 20-30

73

Esta visatildeo tem uma ideologia poderosa foi uma resposta agrave negaccedilatildeo do acesso agrave

presenccedila judaica ao seu templo Ezequiel deu uma garantia de que era possiacutevel aceder-

se ao templo por outros meios156

A ocorrecircncia mais antiga que temos do termo Mercavaacute associada agrave visatildeo de Ezequiel

encontra-se em Ben Siraacute 498 ldquoEzequiel contemplou uma visatildeo de gloacuteria que Deus lhe

mostrou sobre o carro dos querubinsrdquo O primeiro relato detalhado que temos sobre uma

ascensatildeo ao ceacuteu ocorre em 1 Henoque 148-25

Nesta viagem Henoque entra num templo que eacute uma estrutura tripla que consistia em

duas casas concecircntricas cercadas por um muro Esta estrutura corresponde ao santuaacuterio

de Jerusaleacutem as duas ldquocasasrdquo correspondem ao edifiacutecio do santuaacuterio e ao Santo dos

Santos o muro corresponde ao muro dos paacutetios interiores As rodas do trono de Deus

identificam-se com a Mercavaacute de Ezequiel e o querubim do mesmo verso eacute o ser

vivente do profeta Ezequiel

A estrutura tripartida do templo em 1 Henoque 14 reflete uma cosmologia de trecircs ceacuteus

o ceacuteu mais elevado eacute o lugar da ldquogrande gloacuteriardquo o Santo dos Santos A ideia de o

universo ser um templo que corresponde agrave estrutura do Templo de Jerusaleacutem manteve-

se presente nesta literatura157

Como Fiacutelon de Alexandria afirmou ldquoo universo inteiro deve ser considerado como o

mais elevado e na verdade o santo Templo de Deus Como santuaacuterio tem o ceacuteu a parte

mais sagrada da substacircncia das coisas existentes como oferendas votivas tem estrelas

como sacerdotes tem anjos ministros de seus poderesrdquo158

Eacute neste contexto que enquadramos os textos Hekhalot que representam a continuidade e

a adaptaccedilatildeo destas tradiccedilotildees do judaiacutesmo rabiacutenico Nestes textos satildeo dadas instruccedilotildees e

descriccedilotildees da viagem visionaacuteria atraveacutes dos sete canais159 ldquopalaacuteciosrdquo ou ldquotemplosrdquo

concecircntricos ateacute ao Santo dos Santos celestial onde a Gloacuteria aparece sobre a Mercavaacute

156Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 147 157Cf Himmelfarb Martha (1993) 72 158Cf Philo Spec 166 trans Hayward C T (1996) 109 159 No primeiro seacuteculo da era comum a cosmologia seacuteptupla tinha substituiacutedo o modelo

tripartido apesar do apostolo Paulo em 2 Cor 12 ainda relacionar o paraiacuteso (Santo dos Santos)

com o terceiro ceacuteu O modelo seacuteptuplo encontra-se nas fontes rabiacutenicos embora menccedilotildees aos

trecircs ceacuteus tambeacutem estejam presentes Como jaacute tinha indicado acima a correspondecircncia entre o

cosmos e a estrutura do templo estaacute implicada em m Kelim 16-9 pelo Rabi Joseacute (1) a aacuterea

dentro da balaustrada (2) a corte das mulheres (2) o tribunal de Israel (3) a corte dos

sacerdotes (4) a aacuterea entre o altar e (5) a entrada do templo (6) o santuaacuterio e o (7) Santo dos

Santos

74

O espaccedilo sagrado eacute concetualizado em aacutereas concecircntricas de ldquosantidaderdquo ao redor da

arca ou carruagem onde a Gloacuteria de Deus eacute entronizada Esta estrutura seacuteptupla tambeacutem

alude ldquoa aparecircncia da semelhanccedila da Gloacuteria do Senhorrdquo conforme estaacute descrita em

Ezequiel 128 ldquoa aparecircncia desse brilho ao redor era como a aparecircncia do arco que

em dia de chuva se vecirc nas nuvens Era algo semelhante agrave Gloacuteria de Iahweh Ao vecirc-la

caiacute com o rosto em terra e ouvi a voz de algueacutem que falava comigordquo

Os sete ceacuteus ou cortes do templo podem corresponder agraves faixas do arco-iacuteris que

rodeavam numa espeacutecie de aura o corpo da Gloacuteria no trono160

Esta hipoacutetese pode ser sustentada por duas descriccedilotildees nos Hodayot cacircnticos de

Qumran no cacircntico 12 ldquoComo uma substacircncia radiante de cores gloriosas

maravilhosamente matizadas e puramente misturadas satildeo os espiacuteritos dos lsquolohim vivos

que se movem continuamente com a Gloacuteria das maravilhosas carruagensrdquo161

Encontramos outra descriccedilatildeo em Hekhalot Zutarti ldquoEacute como a aparecircncia de fogo mas

natildeo eacute fogo (Ezequiel 127) Em vez disso eacute como chamas ardentes de todos os tipos de

cores misturadas e o olho natildeo pode dominar suas semelhanccedilasrdquo162

Os meacutetodos empregues pelos ldquomiacutesticos visionaacuteriosrdquo da Mercavaacute incluiacuteam a recitaccedilatildeo de

hinos e oraccedilotildees muitos parecidos em conteuacutedo e tom com aqueles jaacute existentes dos

Cacircnticos do Sabbat163

Alguns destes hinos foram revelados por anjos ao Rabi Aquiva devem ser conhecidos e

recitados corretamente pelo adepto se este quiser fazer uma viagem segura Tambeacutem era

necessaacuterio conhecer os nomes dos anjos guardiotildees e mostrar os selos maacutegicos corretos

que eram inscritos com os nomes secretos de Deus

As cacircmaras do Templo (as sete hekhalot) eram idecircnticas aos sete niacuteveis celestiais o

templo e o cosmos eram estruturas opostas

As cacircmaras de pureza do Templo eram concecircntricas sob o Santo dos Santos ldquoascenderrdquo

a estes niacuteveis equivalia a viajar ldquointeriormenterdquo em direccedilatildeo ao centro E a ascensatildeo para

o ceacuteu dava-se exteriormente distanciando-se da terra de modo a que a esfera de grande

santidade eacute atribuiacuteda agrave periferia Estes satildeo os sete niacuteveis de santidade do templo estrutura seacuteptupla reflete as sete esferas

planetaacuterias da cosmologia grega e os sete ceacuteus encontrados nos textos maacutegicos da Babiloacutenia e

da Sumeacuteria

160Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170 161Cf 4Q405 2021-22 in Newsom (1985) 303 162Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 170

163Cf Idem

75

Esta mudanccedila dimensional surge nos conceitos de 1 Enoque 14 em que a casa ldquointeriorrdquo

era maior do que a casa ldquoexteriorrdquo Os termos da hekhalot e da Mercavaacute descrevem

quase sempre a viagem visionaacuteria como uma ascensatildeo e uma descida164 Alan F

Segal165 sugere que o conceito de a viagem ser uma ldquodescidardquo pode estar associado com

a posiccedilatildeo ldquofetalrdquo que de acordo com Hai Gaon de Pumbeditha era adotada pelos

praticantes de hekhalot

ldquoPodes estar ciente de que muitos saacutebios eram da crenccedila de que um indiviacuteduo possuidor de

certas qualidades explicitamente definidas que desejam contemplar o Merkavaacute e os palaacutecios dos

anjos celestiais tem meacutetodos para conseguir isso Ele deve sentar-se em jejum por um certo

nuacutemero de dias e colocar a cabeccedila entre os seus joelhos e sussurrar para o chatildeo muitos hinos e

canccedilotildees cujas palavras satildeo conhecidas da tradiccedilatildeo Ele entatildeo olha para os aposentos e cacircmaras

interiores como se estivesse a ver os sete palaacutecios com seus proacuteprios olhos e como se estivesse

viajando de um palaacutecio para o outro e vendo o que estaacute laacuterdquo166

Esta postura fiacutesica descrita por Hay corresponde agrave postura corporal do profeta Elias no

Monte Carmelo em 1 Reis 1842 As fontes rabiacutenicas afirmam que o milagreiro do I

seacuteculo Haninaben Dosa usou a mesma posiccedilatildeo para orar pela vida de um filho de um

rabino importante (b Ber 34b b lsquoAbod Zar 17a)167

A ideia de que o Templo de Jerusaleacutem representa a estrutura do universo encontra-se

bem documentada nas fontes rabiacutenicas e em Flaacutevio Josefo168

A pedra de fundaccedilatildeo por debaixo do altar possui os atributos do umbigo coacutesmico O

Santo dos Santos eacute visto como a fonte da luz que brilhou no primeiro dia da criaccedilatildeo

assim a pedra do santuaacuterio eacute identificada com a colina primordial que emergiu das aacuteguas

do caos no terceiro dia169

Josefo reporta que a cortina agrave entrada do santuaacuterio representa o firmamento que foi

criado no dia dois Vaacuterias outras fontes midraacuteshicas enriquecem este modelo

164Cf Idem 171

165Cf Segal Paul (1990) 322 166Cf Tratado escrito no seacuteculo 11 em Lewin Bernard (1931) Tractate Jom-Tow Chagiga and

Maschkin in Otzarha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association Part 2 13-15 167 Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 172 168t Yoma 46 b Yoma 54b GenRab 14 Tanh Qed 10 169Geacutenesis rabbah 34 Tanh Buber Bereshit 112 Pesiq RabKah 21

76

ldquoNa hora em que o Santo bendito seja Ele disse a Moiseacutes Faz-me um santuaacuterio (Ecircxodo 258)

Moiseacutes disse Como vou saber como fazecirc-lo

O Santo bendito seja Ele disse Natildeo tenhas medo Assim como Eu criei o mundo e o teu corpo

assim tu faraacutes o tabernaacuteculo

De onde sabemos que eacute assim Tu encontras no tabernaacuteculo que as estruturas foram fixadas nas

bases e no corpo as costelas satildeo fixadas nas veacutertebras e assim no mundo as montanhas satildeo

fixadas aos fundamentos da terra No tabernaacuteculo a armaccedilatildeo estava coberta de ouro e no corpo

as costelas estavam cobertas de carne e no mundo as montanhas eram cobertas e revestidas de

terra No tabernaacuteculo havia parafusos na armaccedilatildeo para mantecirc-lo reto e os membros e nervos do

corpo satildeo estendidos para manter um homem ereto e no mundo aacutervores e plantas satildeo estendidas

na terra No tabernaacuteculo haviam cortinas que cobriam o topo e ambos os seus lados e no corpo

uma pele de homem cobre os seus membros e as suas costelas em ambos os lados e no mundo

os ceacuteus cobrem a terra em ambos os seus lados No tabernaacuteculo haacute o veacuteu que divide o santuaacuterio

do Santo dos Santos e no corpo o diafragma divide o coraccedilatildeo do estocircmago e no mundo eacute o

firmamento que divide as aacuteguas superiores das aacuteguas inferiores como foi dito e divida as

aacuteguas das aacuteguas (Gen 16)170

Esta tripla correspondecircncia entre o mundo o templo e o corpo humano encontra-se bem

documentada na literatura midraacuteshica e eacute fundamental para compreendermos o

pensamento miacutestico do Evangelho de Tomeacute

O Midrash Tanhuma declara ldquoO templo corresponde ao mundo inteiro e agrave criaccedilatildeo do

homem que eacute um mundo pequenordquo Isto sugere que ao realizar a ldquoascensatildeordquo pelos

vaacuterios niacuteveis do templo celestial ateacute ao firmamento mais elevado alguns miacutesticos

poderiam concetualizar tambeacutem uma ldquodescidardquo ao interior do templo dos seus proacuteprios

corpos Em direccedilatildeo ao Santo dos Santos interior onde como no templo exterior do seu

proacuteprio corpo a Gloacuteria divina (ou imagem de Deus) habitava

Se ateacute aqui a nossa reflexatildeo estiver correta e a postura corporal das praacuteticas da Mercavaacute

estar associada agrave ldquodescidardquo isto sugere que as ldquoascensotildeesrdquo miacutesticas pelos ceacuteus eram

compreendidas como ldquodescidasrdquo no interior do corpo humano

O tema da transformaccedilatildeo nas tradiccedilotildees apocaliacutepticas e de Mercavaacute mostra o papel do

corpo na experiecircncia miacutestica Encontramos inuacutemeras referecircncias nos apocalipses nos

escritos hekhalot nas tradiccedilotildees midraacuteshicas e nos relatos de ascensatildeo celestial Todas

estas fontes descrevem a metamorfose do corpo do miacutestico para uma forma purificada e

angelical de fogo ou luz que reflete a imagem da Gloacuteria divina Isto estaacute

170Cf Midrash bereshit rabbati

77

frequentemente associado agrave ideia de que o miacutestico ldquoassumerdquo ou ldquoveste-serdquo com o Nome

divino171

Nos uacuteltimos trecircs capiacutetulos de Hekhalot Rabbati no cliacutemax da ascensatildeo miacutestica o

miacutestico eacute instruiacutedo a cantar uma seacuterie de hinos pronunciados pelo proacuteprio Trono na

presenccedila de Deus a cada dia O miacutestico identifica-se com a Mercavaacute e pede que Deus se

entronize nele ele oferece-se como um veiacuteculo corpo para a manifestaccedilatildeo da Imagem

Divina da Gloacuteria

O horizonte religioso do Evangelho de Tomeacute eacute o ambiente religioso geral no qual o

autor e a sua comunidade existiram e respiraram No caso do cristianismo primitivo

este incluiria o judaiacutesmo e o ambiente religioso e filosoacutefico heleniacutestica

No seu processo de textualizaccedilatildeo da ideologia o autor articulou de forma coerente com

este ambiente reinterpretando siacutembolos e imagens Desta forma a sua escrita que na

atualidade pode ser de difiacutecil compreensatildeo era compreendida e persuasiva para o

puacuteblico a que se destinava

O Misticismo do Evangelho de Tomeacute

O misticismo do Evangelho de Tomeacute deve numa primeira instacircncia ser explicado e

interpretado dentro do seu pensamento interno A coerecircncia textual dos logia permite

definir as suposiccedilotildees baacutesicas dos seus conteuacutedos face agrave experiecircncia miacutestica

Atraveacutes da hermenecircutica aos ensinos de Jesus o aspirante deve descobrir e conhecer por

si mesmo o estado adacircmico paradisiacuteaco que possuiacutea antes da queda

Este estado eacute uma realidade existente para laacute do espaccedilo e do tempo uma dimensatildeo

primordial anterior agrave criaccedilatildeo pelo que em vez de buscar uma realizaccedilatildeo escatoloacutegica no

final dos tempos devem buscar o iniacutecio de todas as coisas

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis

descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim

Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

(Lg18)

A vida do disciacutepulo torna-se uma busca ativa desse lugar fora do espaccedilo e do tempo

que eacute como iremos ver a Cacircmara Nupcial Foi nesse lugar que surgiu a luz primordial

que procedeu de si mesma e que se manifesta atraveacutes das imagens gravadas nas almas

dos filhos da luz Este lugar eacute o lugar por detraacutes do veacuteu na cosmologia do Templo que

171Cf Jones-Morray RA Christopher (2006) 175

78

representa o estado de Unidade ldquoJesus disse Natildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias

a um menino pequeno de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacute Porque muitos dos

primeiros seratildeo os uacuteltimos E chegaratildeo a ser um soacuterdquo (Lg 4)

Neste lugar temos duas dimensotildees semelhantes aos textos da Mercavaacute e apocalipses

por um lado uma realidade ascensionaacuteria exterior que eacute por outro lado uma experiecircncia

de interiorizaccedilatildeo progressiva ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que

estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para

ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se

ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (Lg 24)

Esta busca envolve uma jornada visionaacuteria onde o adepto fala com os seres celestiais

respondendo a trecircs perguntas para poder passar ateacute ao lugar da Vida ldquoDisse Jesus Se

vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz procedeu

de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens Se vos perguntarem quem

sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se vos perguntarem

qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um repousordquo (Lg 50)

Jesus ainda fornece mais instruccedilotildees complementares agrave realizaccedilatildeo desta experiecircncia

visionaacuteria ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser Se vos tornais meus

disciacutepulos e escutais as minhas palavras estas pedras vos serviratildeo Porque tendes cinco

aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no Inverno nem as suas folhas

caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 19)

Este lugar eacute o proacuteprio paraiacuteso representado de forma simboacutelica por vaacuterios traccedilos

miacutesticos do simbolismo do Templo de Jerusaleacutem A questatildeo das aacutervores no paraiacuteso situa

esta realidade no jardim do Eacuteden

Para entrar neste lugar o disciacutepulo deve se tornar como Adatildeo era antes da queda uma

crianccedila assexuada ldquoJesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos estas

crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reino

Jesus disse Quando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o

exterior como o interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e

o feminino num soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja

feminino quando fizerdes olhos em lugar de um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo

e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no

Reinordquo (Lg 22)

79

Como iremos atestar na consulta a vaacuterias fontes o misticismo de Tomeacute tal como as

vaacuterias experiecircncias miacutesticas encontradas nas diversas tradiccedilotildees textuais emergem de um

tema comum a restauraccedilatildeo da humanidade ao seu estado paradisiacuteaco

No Evangelho de Tomeacute a realizaccedilatildeo interior passa por ver o Jesus Vivente por isso os

disciacutepulos tambeacutem lhe perguntam ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te

revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos

envergonhardes e tomardes os vossos vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como

as crianccedilas pequenas e os espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo

temereisrdquo (Lg 37)

O disciacutepulo tem que se despir das suas ldquovestes de carnerdquo abandonando os controlos do

corpo de modo a poder ascender e ver Jesus ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos

natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu

ao coraccedilatildeo do homemrdquo (Lg 17)

A leitura esoteacuterica de Gn 1 entendia que o ser humano foi criado como sendo um e que

a separaccedilatildeo em dois originou o estado de queda fora do seio da luz ldquoQuando estiverdes

no seio da luz o que eacute que fareis No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas

quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo (Lg 11)

Os elementos miacuteticos encontrados nas exegeses esoteacutericas combinadas com a filosofia

platoacutenica ao relato da criaccedilatildeo em Geacutenesis tecircm como pano de fundo as doutrinas

simboacutelicas do Templo de Jerusaleacutem

Natildeo haacute miacutestica judaico-cristatilde nos primeiros 3 seacuteculos da era comum sem o referencial

do Templo de Jerusaleacutem a realidade do Templo ascendeu aos ceacuteus onde o Templo

Celestial continuaria a ser o lugar onde estava o trono de Deus

O Eacuteden como iremos explorar era o Templo de Jerusaleacutem mais propriamente a Cacircmara

Nupcial

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 37

ldquoOs seus disciacutepulos disseram Em que dia te revelaraacutes a noacutes e em que dia te veremos

Jesus disse Quando vos despirdes e natildeo vos envergonhardes e tomardes os vossos

vestidos e os colocardes sob os vossos peacutes como as crianccedilas pequenas e os

espezinhardes entatildeo vereis o Filho do Vivente e natildeo temereisrdquo

80

Na exposiccedilatildeo deste loacutegion iremos discutir as vaacuterias temaacuteticas do misticismo judaico que

apresentaacutemos anteriormente A estrutura deste dito divide-se em trecircs motivos principais

1) despir a roupa sem vergonha 2) pisaacute-la como crianccedilas e 3) obter a capacidade de ver

o Filho de Deus sem ter medo

Este loacutegion descreve assim as preparaccedilotildees necessaacuterias para a salvaccedilatildeo e a ascensatildeo ao

ceacuteu numa linguagem encratita172

Comeccedilando entatildeo pelo primeiro motivo despir as vestes sem vergonha eacute uma metaacutefora

comum na literatura judaica e cristatilde para referir a remoccedilatildeo do corpo fiacutesico Esta noccedilatildeo

baseava-se nas especulaccedilotildees exegeacuteticas referentes a Gn 321

Nesta passagem como consequecircncia do pecado de Adatildeo e Eva Deus fez-lhes ldquovestes de

peles e eles vestiram-nasrdquo

Antes da queda Adatildeo e Eva eram seres luminosos a sua luz ultrapassava a luz do Sol173

Esta luz era a veste perdida por causa da queda como compensaccedilatildeo Deus fabricou

ldquovestes de pelerdquo sendo estas identificadas pelos judeus e os cristatildeos como a carne e o

sangue humano que precisavam de ser abandonadas para alcanccedilar o estado paradisiacuteaco

Existem rituais simboacutelicos na liturgia batismal onde a roupa eacute removida no entanto eacute

difiacutecil localizarmos referecircncias anteriores ao quarto seacuteculo

Na epiacutestola de Jeroacutenimo a Fabiacuteola ele descreve que o candidato remove as ldquotuacutenicas de

pelerdquo e ldquosubindo do batismordquo veste a ldquoroupa de Cristordquo

Um texto anterior a Jeroacutenimo eacute o Evangelho de Filipe que refere ldquoEnquanto estamos

neste mundo conveacutem-nos adquirir a ressurreiccedilatildeo para que quando nos despojemos da

carne sejamos encontrados no repouso e natildeo tenhamos de deambular na Medianidaderdquo

O despir da carne ocorre quando as pessoas abandonam ldquoeste mundordquo ldquoa aacutegua vivente eacute

um corpordquo174e ldquoeacute necessaacuterio que nos revistamos do homem viventerdquo175

Segundo Filipe para o homem se tornar vivente ldquoquando desce agrave aacutegua despe-se para se

revestir destardquo176

Outro texto importante para a nossa exposiccedilatildeo satildeo as Odes de Salomatildeo 213-4 258-9

que contecircm muitas tradiccedilotildees primitivas siriacuteacas

E eu abandonei a loucura lanccedilada sobre a terra

172Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 123 173 Ver paacuteginas 53-54 deste trabalho 174 Cf Ev de Flp 75 175 Cf Ev de Flp 7520 176 Idem

81

E eu despia-a e lanceia-a para fora de mim

E o Senhor renovou-me com a sua roupa

E me possuiu com a sua luz

E do alto me deu descanso imortal

E eu me tornei como a terra que floresce e se alegra nos seus frutos

E eu despi-me da escuridatildeo

E vesti a luz

E ateacute eu mesmo adquiri membros

Neles natildeo havia enfermidade afliccedilatildeo ou sofrimento

E fui coberto com a cobertura do teu espiacuterito

E eu removi de mim as minhas vestes de pele

Porque a tua matildeo direita me ressuscitou

E fez com que a doenccedila passasse de mim177

Natildeo podemos fundamentar-nos neste texto ou no lg 37 de Tomeacute para falarmos de um

ritual de batismo antigo o que estaacute aqui latente eacute a ideia de transformaccedilatildeo e de

libertaccedilatildeo das roupas precedentes agraves vestes de luz concedidas por Deus

Pelo que este dito pode muito bem referir-se a um ritual de purificaccedilatildeo asceacutetica

Os versos desta ode de Salomatildeo falam de um ritual simboacutelico de remoccedilatildeo das vestes de

pele do corpo um ritual de unccedilatildeo antes do batismo

A ode 4 diz ldquoPorque o seu selo eacute conhecido E suas criaturas satildeo conhecidas E os teus

anfitriotildees o possuem e os arcanjos eleitos estatildeo vestidos com elerdquo Este sinal ou

selo que eacute colocado pelos arcanjos provavelmente eacute idecircntico agrave graccedila que quando

vestida torna aceitaacutevel diante de Deus

Colocar o sinal ou o selo do Nome Divino antes do batismo eacute uma referecircncia agrave unccedilatildeo

com oacuteleo que no caso do cristianismo siriacuteaco era feita antes da imersatildeo batismal

No relato dos Atos de Tomeacute uma obra da mesma eacutepoca e proveniecircncia que as Odes de

Salomatildeo apresentam vaacuterias evidecircncias do efeito da unccedilatildeo preacute batismal transmitido o

ldquoselordquo no Nome178

Esta unccedilatildeo preparatoacuteria para a ascensatildeo eacute indicada na Ode 21 onde depois do autor ldquoter-

se despido da escuridatildeordquo e ldquose vestido de luzrdquo ele adquiriu um novo corpo ldquomembrosrdquo

ausentes de afliccedilatildeo dizendo ldquoE eu fui levantado na luz e passei diante de Seu rosto E

eu estava constantemente perto Dele enquanto louvava e confessavardquo

177 Minha traduccedilatildeo 178Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 126

82

Ao despir-se do corpo e ser ungido adquire um corpo glorioso elevado ao ceacuteu e

transformado num anjo da face

ldquoEle ungiu-me com perfeiccedilatildeo e eu tornei-me num daqueles que estatildeo perto delerdquo179

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem deixou elementos acerca desta ideia ldquoas tuacutenicas de pele

[Gn 321] satildeo simbolicamente a pele natural do corpordquo180 Devem ser despidas para

ascensatildeo aos ceacuteus ldquoa alma que ama Deus despiu-se do corpo e voourdquo181

Fiacutelon tambeacutem descreve uma das trecircs maneiras de fazer a alma nua ldquoAqueles que fizeram

uma treacutegua com o corpo satildeo incapazes de lanccedilar fora deles o vestido de carnerdquo182 ldquoA

nossa alma se move muitas vezes por si mesma despojando-se de toda a carga do

corpordquo183

O despir das vestes no lg 37 eacute qualificado com uma expressatildeo adicional as vestes tecircm

que ser despidas sem vergonha

O sentido de vergonha encontra mais uma vez as suas raiacutezes na histoacuteria do Geacutenesis

Em Gn 225 o estado primordial do ser humano era ausente de vergonha pois Adatildeo e

Eva estavam nus e natildeo sentiam vergonha disso Apoacutes a queda Gn 37 afirma que os

olhos de ambos se abriram e eles souberam que estavam nus sentindo vergonha

Assim o Evangelho de Tomeacute neste logion interpreta o relato de Geacutenesis afirmando que

ao despir o corpo mortal o ser retorna ao estado preacute-adacircmico agrave experiecircncia de natildeo se

sentir envergonhado antes dos olhos de Adatildeo e Eva serem abertos

O colocar as vestes sob os peacutes eacute um ato simboacutelico de renuacutencia do corpo mortal este dito

especiacutefico eacute encontrado numa discussatildeo de Clemente de Alexandria O autor afirma que

o liacuteder encratita Julius Cassianus usou este logion de Tomeacute para fundamentar o seu

ensino sobre a renuacutencia agraves tendecircncias sexuais Nesta doutrina procurava-se criar uma

criatura assexuada a ldquoveste de vergonhardquo era entendida como o corpo que era

controlado pelos impulsos sexuais184

A veste que foi dada ao homem como consequecircncia da sua queda ou intercurso sexual

deve ser removida de modo a que este ascenda ao reino celestial e retorne ao estado preacute-

caiacutedo ausente de vergonha

179 Odes de Salomatildeo 366 cf (Wright 2007) 180Quaest In Gen 153 181Leg All 233 56 182 Quo Deus sitimm 56 183 De somn 143 184Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 134

83

Esta imagem de assexualidade eacute enfatizada pela imagem da pequena crianccedila que pisa as

vestes de vergonha O ato de renunciar ao corpo do desejo eacute comparado ao ato de uma

pequena crianccedila Nos lg 21 e 22185 os encratitas satildeo referidos como crianccedilas Jesus ainda

daacute outro elemento sobre o ser assexuado

ldquoQuando fizerdes dos dois um e fizerdes o interior como o exterior e o exterior como o

interior e o de cima como o de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num

soacute para que o masculino natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando

fizerdes olhos em lugar de um olho e matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de

um peacute uma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Esta ideia inspira-se numa exegese antiga a Adatildeo no paraiacuteso onde ele eacute descrito como

sendo uma ldquocrianccedilardquo um ldquoinocenterdquo

Irineu afirmou que Adatildeo era ldquovirgemrdquo e natildeo tinha qualquer tipo de compreensatildeo do que

era a procriaccedilatildeo de crianccedilas porque era necessaacuterio que Adatildeo e Eva crescessem para a

idade adulta em primeiro lugar186

Noutra discussatildeo de Irineu com Teoacutefilo de Antioquia sobre a aacutervore do conhecimento

ele afirma ldquoNa sua idade real Adatildeo era velho como um bebeacuterdquo187

De acordo com Teoacutefilo Deus quis que Adatildeo permanecesse solteiro e puro por um longo

periacuteodo de tempo permanecendo na infacircncia188

Clemente de Alexandria tambeacutem acreditava que Adatildeo no estado anterior agrave queda era

uma crianccedila no paraiacuteso No paraiacuteso Adatildeo ldquobrincou sem restriccedilotildees como uma crianccedilardquo

foi apenas quando ele ldquocaiu na luxuacuteriardquo que ldquoa crianccedila se tornou o homemrdquo189

Esta breve contextualizaccedilatildeo lanccedila luz sobre estas trecircs lg 37 21 e 22 aquele que

renuncia ao seu corpo eacute comparado agrave pequena crianccedila que retorna ao estado adacircmico

preacute queda onde o primeiro homem era uma crianccedila inocente sem concupiscecircncia190

Falta-nos agora discutir o contexto inicial deste logion a questatildeo introdutoacuteria colocada

pelos disciacutepulos foi em que dia o veriam

185 ldquoDisse Maria a Jesus Com quem se parecem os teus disciacutepulos Ele disse Satildeo semelhantes

a uns meninos pequenos instalados num campo que natildeo eacute seu Quando vierem os donos do

campo diratildeo laquoDeixai o nosso camporaquo Eles se despiratildeo na sua presenccedila para o receberem e

devolver-lhes o seu campo (hellip) Jesus viu crianccedilas que mamavam Disse aos seus disciacutepulos

Estas crianccedilas que mamam satildeo semelhantes aos que entram no Reino Disseram-lhe Entatildeo se

nos tornarmos crianccedilas entraremos no Reinordquo 186Adv haer 3224 187Ad Autolycum 225 188 Idem 189Prot 111111 190Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 135

84

As indicaccedilotildees deste logia dadas por Jesus foram as indicaccedilotildees necessaacuterias para a

experiecircncia visionaacuteria neste contexto Olhar para Deus ou para a hipoacutestase divina era o

objetivo dos apocaliacutepticos e dos miacutesticos ao ascenderem aos ceacuteus

Isto eacute aparente em textos miacutesticos como 1 Enoque 1467 muitas vezes Fiacutelon de

Alexandria descreve a ascensatildeo de Moiseacutes como uma experiecircncia de ldquoverrdquo Deus191

Duas passagens importantes da sua obra ilustram este ponto o primeiro texto De

mutatione nominum descreve Moiseacutes a entrar nas trevas interpretadas por Fiacutelon como a

existecircncia invisiacutevel incorpoacuterea Nesta dimensatildeo celestial Moiseacutes buscou por toda parte

e em tudo no seu desejo de ver claramente e claramente Ele o objeto de anseio

Fiacutelon insiste que Deus natildeo pode ser visto pela sua proacutepria natureza No segundo texto

retirado de De fuga et inventione explica ldquoO homem que deseja fixar seu olhar sobre a

essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute cegado pelo raio que irradia tudo ao Seu redorrdquo

Fiacutelon defendia assim que a condiccedilatildeo da mortalidade humana eacute um estado no qual o

homem eacute incapaz de ver Deus192 Sendo que a uacutenica hipoacutetese de o homem ascender agrave

esfera celestial para ldquoverrdquo Deus eacute na sua disponibilidade em colocar de lado o seu corpo

material

Na narrativa de 2 Enoque no capiacutetulo 22 encontramos outra narrativa de ascensatildeo onde

Enoque vecirc Deus e cai para o chatildeo Ao levantar-se Deus diz-lhe ldquonatildeo temasrdquo Enoque

despe-se das suas ldquovestes terrenasrdquo sendo ungido e transformado num anjo

Temos aqui ideias comuns o despir das vestes e o ver Deus sem medo estas ideias

estatildeo ligadas ao ritual da unccedilatildeo193

O ritual da unccedilatildeo transformou Enoque num dos anjos ele tornou-se Como um dos

gloriosos e natildeo houve diferenccedila observaacutevel para que ele pudesse ficar na frente do

rosto de meu Deus para sempre194

Outro texto deste tempo que trata do mesmo assunto eacute a Ascensatildeo de Isaiacuteas onde Isaiacuteas

ascende ao ceacuteu para poder ldquoverrdquo Deus e o Filho Nesta ascensatildeo ele teve que abandonar

o seu corpo

191 Em De Posteritate Caini Fiacutelon afirma que Moiseacutes anseia ver Deus e anseia ser visto por

Deus Moiseacutes pede a Deus que lhe revele a sua presenccedila Fiacutelon relata que Moiseacutes ascendeu a

Deus ao entrar ldquonas densas trevas onde Deus estava (Ex 2021) estas trevas simbolizam as

conceccedilotildees sobre o ser existente que pertencem agrave regiatildeo inacessiacutevel onde natildeo haacute formas

materiaisrdquo

192Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 136 193 Idem 194 2 Henoque 227-10

85

O anjo que lhe apareceu informa-o que natildeo lhe vai transmitir conhecimento do seu

nome angeacutelico porque Isaiacuteas tem que voltar para o seu corpo terreno apoacutes a experiecircncia

visionaacuteria

No seacutetimo ceacuteu Isaiacuteas tinha uma ldquovesterdquo agrave sua espera e tendo ascendido ele viu Enoque

que estava despido das suas vestes de carne Eles estavam vestidos nas suas ldquovestes

celestiaisrdquo e eram como ldquoos anjos que estatildeo perante a grande Gloacuteriardquo195

O Misticismo Visionaacuterio no Mundo Antigo o Horizonte Religioso Histoacuterico

Existia no mundo greco-romano uma noccedilatildeo popular de ascensatildeo extaacutetica preacute-

escatoloacutegica inserida em experiecircncias visionaacuterias Premissa esta que se encontra

sumarizada num texto do segundo seacuteculo encontrado em Nag Hammadi o Evangelho

de Filipe 1 34-35

ldquoPorque o que vires nisso mesmo te transformaraacutesrdquo

Esta frase reflete uma experiecircncia fundamental da experiecircncia miacutestica a identificaccedilatildeo

total de si mesmo com o objeto que se encontra A experiecircncia visionaacuteria ocorria desta

forma porque segundo as crenccedilas a imagem lsquovistarsquo entra no vidente atraveacutes do seu olho

transformando a sua alma

ldquoO prazer que vem da visatildeo penetra nos olhos e habita no peito levando consigo

sempre a imagemimprime-a sobre o espelho da alma e deixa ali a sua imagemrdquo

No mundo antigo o encontro miacutestico era uma realidade visual onde o ser abandonava o

mundo fiacutesico e ascendia ateacute agraves zonas sagradas do ceacuteu Uma vez nessa dimensatildeo sagrada

encontrava o divino que laacute reside O resultado deste encontro traduz-se numa

experiecircncia em que se sofria uma completa transformaccedilatildeo tornando-se semelhante agrave

entidade divina que tinha visto

O misticismo visionaacuterio eacute aquilo que podemos definir como deificaccedilatildeo sendo uma

crenccedila antiga presente no mundo antigo196

195Cf Conick D April and Fossum Jarl (1991) 137 196Cf DeConik D April (2001) 42

86

Estes satildeo alguns elementos que refletem a forma como os antigos imaginaram a sua

experiecircncia religiosa

Exposiccedilatildeo do Loacutegion 50

ldquoDisse Jesus Se vos perguntarem de onde vindes dizei-lhes Viemos da Luz de onde a Luz

procedeu de si mesma manteve-se e revelou-se nas suas imagens

Se vos perguntarem quem sois dizei somos seus filhos e somos os eleitos do Pai vivente Se

vos perguntarem qual eacute o sinal do vosso Pai em voacutes dizei-lhes Eacute um movimento e um

repousordquo

O lg 50 deste evangelho torna-se mais percetiacutevel se for compreendido como um

fragmento de experiencia de ascensatildeo cristatilde primitiva197 Esta ascensatildeo consiste na

interaccedilatildeo verbal entre os anjos e o miacutestico Jesus ensina trecircs respostas para trecircs possiacuteveis

perguntas que seratildeo colocadas durante o processo de ascensatildeo visionaacuteria

Neste logion Jesus comeccedila por falar da luz a luz eacute uma realidade preacute-existente que se

manifesta durante a criaccedilatildeo A experiecircncia ascensionaacuteria dos seguidores de Jesus era

segura porque a sua verdadeira origem vinha da luz

A luz eacute o ldquolugar de onde a luz procedeu de si mesmardquo e era uma entidade auto gerada

primordial e preacute-existente que se manifestou durante a criaccedilatildeo

Vaacuterios textos judaicos aludem agrave preacute-existecircncia da luz 4 Esdras 639 fez a exegese a Gn

13 desta forma ldquoEntatildeo tu Deus ordenaste que um raio de luz fosse trazido de seus

tesourosrdquo De acordo com este texto a luz natildeo foi criada pela ordem de Deus ldquoHaja

luzrdquo mas foi manifestada por este tesouro de luz que existia antes da criaccedilatildeo

Fiacutelon de Alexandria tambeacutem ensinou que a luz existia antes da criaccedilatildeo em Quod Deus

sit Immutabilis 58 estabelece uma distinccedilatildeo entre a ldquoluz criadardquo e a luz que existia antes

da criaccedilatildeo Fiacutelon explicou que Deus natildeo precisava de olhos e ldquoque sem a luz natildeo tinham

o poder da perceccedilatildeordquo Essa luz foi criada porque Deus viu antes da criaccedilatildeo sendo Ele a

sua proacutepria luz198

Noutro texto In De OpificioMundi 55 Fiacutelon refere-se agrave luz natildeo criada que existia antes

da criaccedilatildeo do universo Esta luz vem agrave existecircncia e manifesta-se na criaccedilatildeo atraveacutes da

imagem do Logos

197Cf Deconick D April (1996) 64 198Cf Idem 66

87

A descriccedilatildeo da criaccedilatildeo em 2 Enoque 24-25 aponta para uma tradiccedilatildeo semelhante Deus

explica que ldquoAntes que as coisas visiacuteveis viessem a existir e a luz ainda natildeo tivesse

sido aberta eu no meio da luz passei pelas coisas invisiacuteveisrdquo

De acordo com este relato a luz eacute preacute-existente Deus encontra-se rodeado desta luz

primordial Ele ordenou que ldquoas coisas invisiacuteveisrdquo se tornassem visiacuteveis

O logion ainda afirma que a luz se revelou ldquonas suas imagensrdquo aqui o logion refere-se

aos interrogadores neste caso os anjos199 As imagens dos anjos manifestam-se nos

seres humanos o homem nesta perspetiva foi criado agrave imagem dos anjos

Na tradiccedilatildeo rabiacutenica em Exodus Rabba 3016 ldquoo homem foi criado sob a forma dos

anjosrdquo Outra declaraccedilatildeo em Numeros Rabba 1624 declara que os humanos satildeo como

os anjos imortais ldquoEu disse Voacutes sois seres divinos e voacutes todos filhos do Altiacutessimo (Sl

82 6) como os anjos ministradores que satildeo imortais Eis que o homem era como um

de noacutes (Gn 322) Da mesma forma e Deus criou o homem agrave Sua proacutepria imagem (Gn

127)rdquo

O targum samaritano de Gn 96 ldquoDeus fez o homem agrave sua imagemrdquo diz ldquoNatildeo criei o

homem agrave imagem dos anjosrdquo

Com estes textos parece que existe uma ligaccedilatildeo entre o Lg 50 e a sua leitura a Gn 126

que afirma que a Luz se manifesta atraveacutes de uma imagem coletiva

Mencionando ainda a teologia do disciacutepulo de Valentino Marcos este aluno brilhante

tambeacutem discutiu os processos em que as figuras celestiais se manifestam atraveacutes de

ldquoformasrdquo e ldquoanjosrdquo

A sua teologia estaacute intimamente ligada agrave literatura miacutestica judaica e representa uma

forma primitiva do segundo seacuteculo de Shiur Komah a teologia de Marcos baseia-se no

nome divino nas suas recitaccedilotildees e nas descriccedilotildees da forma miacutestica de Deus200

Na sua descriccedilatildeo da origem do ser humano ele disse

ldquoQuando no princiacutepio o pai sem pai que natildeo eacute compreendido pela mente nem tem uma

substacircncia e que natildeo eacute nem homem nem mulher queria expressar o seu ser inefaacutevel e

tornar invisiacutevel o seu ser visiacutevel abriu a boca e produziu uma palavra que se

assemelhava a Ele Ao chegar a Ele mostrou-lhe que se estava tornando manifesto

como a forma do invisiacutevelrdquo201

199Idem 200Cf Deconick D April (1996) 69 201Ireneu Adv Haer 1141 Epiph Pan3443

88

O Deus que natildeo eacute ldquohomem nem mulherrdquo tornou-se visiacutevel atraveacutes do som de certas

letras do alfabeto Neste pensamento o primeiro ser humano o Anthropos eacute chamado

de ldquocorpo da verdaderdquo e eacute composto de ldquoletrasrdquo ou ldquoformasrdquo do alfabeto Estas formas

eram os ldquoanjosrdquo que ldquocontinuamente contemplavam a face do Pairdquo (Ireneu Adv Haer

1141 Epiph Pan 34 47)

Quando este ser primordial pronuncia uma palavra que se assemelhou a ele o nome

divino de Deus o invisiacutevel tornava-se manifesto Este ser humano primordial

manifestava sons que eram da forma dos anjos E desta forma os seres humanos eram

pronunciados agrave sua imagem202

O lugar da luz primordial era simbolicamente o Santo dos Santos do Templo de

Jerusaleacutem a Cacircmara Nupcial Como acima foi referido no esquema simboacutelico atribuiacutedo

ao templo pelos pensadores hebreus o Santo dos Santos foi o siacutetio de onde saiu toda a

luz do universo

No texto de Tomeacute o lugar de onde a luz procedeu de si mesma tambeacutem eacute chamado de

lugar da vida (lg 4) ldquonatildeo tardaraacute a perguntar o Anciatildeo dos Dias a um menino pequeno

de sete dias pelo lugar da Vida e viveraacuterdquo No lg 24 Jesus habita neste lugar ldquoMostra-nos

o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute necessaacuterio procura-lordquo

Este lugar natildeo foi pensado neste contexto como um lugar apoacutes a morte mas como uma

realidade que devia ser buscada pelos disciacutepulos enquanto estavam vivos Sendo

alcanccedilando por meios de ascensatildeo visionaacuteria e conhecimento interior

Num diaacutelogo entre Jesus e os seus disciacutepulos registado num livro apoacutecrifo o Diaacutelogo do

Salvador203Mateus disse ldquoSenhor desejo ver esse lugar de vida esse lugar que natildeo tem

trevas mas sim luz pura Disse o Senhor Irmatildeo Mateus natildeo poderaacutes vecirc-lo enquanto

estiveres revestido de carne Mateus disse Senhor ainda que natildeo possa vecirc-lo permite-

me conhececirc-lo Disse o Senhor todo aquele que se conheceu a si mesmo jaacute o viurdquo

(12827-30)

O lg 50 define a relaccedilatildeo entre os membros da comunidade de Tomeacute e a Luz eles satildeo

filhos da luz Eles proveem da luz (lg 50) estatildeo cheios de luz (lg 24 60 e 33) e vatildeo

regressar agrave luz (lg 18 19 46 49 114)

Regressar agrave Luz eacute regressar ao iniacutecio no lg 18 ldquoJesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

202Cf Deconick D April (1996) 70 203 Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) 175-176

89

Este dito afirma que eacute necessaacuterio entrar no Paraiacuteso e que para isto o disciacutepulo tem que

regressar ao iniacutecio No lg 19 ldquoJesus disse Feliz daquele que era antes de chegar a ser

porque tendes cinco aacutervores no paraiacuteso que natildeo se alteram nem no Veratildeo nem no

Inverno nem as suas folhas caem Aquele que as conhecer natildeo provaraacute a morterdquo

O ensino eacute expandido para aleacutem de ser necessaacuterio regressar agrave condiccedilatildeo preacute queda de

Adatildeo ascendendo ao paraiacuteso tambeacutem eacute necessaacuterio encontrar misticamente as cinco

aacutervores

Esta noccedilatildeo de ascender ao paraiacuteso e tornar-se familiarizado com as cinco aacutervores do

Eacuteden para ultrapassar a morte eacute uma ideia encontrada nas tradiccedilotildees hermeacuteticas204

Para o ser humano poder ascender ao paraiacuteso ele tem que se livrar dos viacutecios que

constituem o homem material e substitui-los pelas virtudes do homem espiritual Este eacute

o renascimento do verdadeiro lsquoeursquo no lg 19 as cinco aacutervores referem-se agraves cinco

virtudes concedidas ao disciacutepulo que abdicar do homem material Ao fazecirc-lo o disciacutepulo

alcanccedila virtude e imortalidade

As Odes de Salomatildeo 1116 relatam a ascensatildeo de um miacutestico que foi ao Paraiacuteso usando

vestes de luz

E ele levou-se ao seu Paraiacuteso onde estaacute a riqueza do prazer do Senhor

Contemplei aacutervores florescentes e frutiacuteferas e as suas coroas cresceram

Seus ramos floresciam e seus frutos brilhavam suas raiacutezes eram de uma terra imortal

E um rio de alegria irrigava-os e a regiatildeo ao redor deles na terra da vida eterna

Estas aacutervores satildeo depois associadas agraves pessoas justas que foram plantadas na terra

imortal de Deus tomando o seu lugar no Paraiacuteso (Ode 1118) Apesar de natildeo haver

nenhuma interpretaccedilatildeo das aacutervores como sendo virtudes esta ode alegoriza as aacutervores

como sendo pessoas justas e estabelece a contemplaccedilatildeo destas aacutervores no contexto da

ascensatildeo miacutestica ao Paraiacuteso

Outra tradiccedilatildeo cristatilde encontrada no texto Physiologus 3418-20 relaciona as virtudes

com o conceito da aacutervore da vida Mencionando apenas uma aacutervore a aacutervore da vida o

autor entende que os quatro frutos desta aacutervore satildeo as quatro virtudes do paraiacuteso gozo

domiacutenio proacuteprio paz e paciecircncia205

204Cf Deconick D April (1996) 83 205Cf Deconick D April (1996) 83

90

Eacute importante referir ainda os textos de Fiacutelon de Alexandria em que as aacutervores do

paraiacuteso satildeo virtudes que Deus plantou para a alimentaccedilatildeo da alma e para a aquisiccedilatildeo da

imortalidade

Ele interpreta assim a passagem de Gn 216 De todas as aacutervores que estatildeo no jardim

comeraacutes livremente nela indicando que a alma deve beneficiar ldquonatildeo apenas de uma

aacutervore ou de uma uacutenica virtude mas de todas as virtudesrdquo (Leg All 197) O propoacutesito

de comer estes frutos era alimentar a alma ldquopela aquisiccedilatildeo de coisas nobres e a praacutetica

de coisas legiacutetimasrdquo (198)206

As aacutervores do jardim do Eacuteden eram assim entendidas como virtudes que alimentavam a

alma de Adatildeo no estado antes da queda dando-lhe imortalidade A consequecircncia do

pecado e da expulsatildeo do Paraiacuteso foi o ser humano assumir uma forma terrena densa e

corpoacuterea associada agraves coisas opostas a estas virtudes Estes viacutecios contraacuterios agraves

virtudes levavam ao caminho da morte aquilo que era pensado como redenccedilatildeo nestas

leituras era cada ser humano abandonar os viacutecios e regressar ao estado antes da queda

adacircmica

E isso ascendendo ao Paraiacuteso e tornando-se cultivador das cinco aacutervores de virtudes laacute

existentes Ao comer desses frutos ele natildeo conheceraacute a morte e alimentaraacute a sua alma

com as virtudes paradisiacuteacas

O lg 50 ainda enfatiza a ideia da eleiccedilatildeo os filhos do Pai Vivente satildeo eleitos porque

vieram da Luz No Evangelho de Tomeacute a noccedilatildeo de eleiccedilatildeo estaacute intimamente associada

ao termo monachos no lg 41 ldquoJesus disse Felizes sois os solitaacuterios (monachos) e os

eleitos porque encontrareis o Reino jaacute que haveis saiacutedo dele a ele regressareis

novamenterdquo

No lg 23 ldquoJesus disse Eu vos escolherei um de entre mil e dois de entre dez mil e

manter-se-atildeo como um soacuterdquo Outro logia importante para esta anaacutelise eacute o lg 16

ldquohellipporque haveraacute cinco numa casa trecircs estaratildeo contra dois e dois contra trecircs o pai

contra o filho e o filho contra o pai e se manteratildeo entre si como se fossem solitaacuterios

(monachos)rdquo

O aspeto mais importante destes monachos eacute o estado de ldquopermanecer solitaacuteriordquo este

ldquopermanecerrdquo natildeo eacute apenas associado ao celibato tambeacutem encontramos referecircncias com

a mesma expressatildeo associadas ao comportamento dos anjos

206Idem 85

91

Os anjos ldquopermanecem celibataacuteriosrdquo nos textos judaicos mas tambeacutem ldquopermanecemrdquo

diante de Deus nas visotildees apocaliacutepticas207

Quando o solitaacuterio ascende e se transforma ele toma o seu lugar entre os anjos

ldquopermanecendordquo diante do trono de Deus

Ser transfigurado implica participar no serviccedilo cuacuteltico dos anjos diante do trono

celestial por isso em 2 Henoque 2210 Enoque transforma-se num anjo e eacute-lhe

ordenado que ldquopermaneccedilardquo diante da face de Deus por toda a eternidade

Nas tradiccedilotildees samaritanas encontramos paralelos interessantes que descrevem a mesma

situaccedilatildeo num hino samaritano lemos

Ele Deus permanece para sempre

Ele existe ateacute a eternidade

De peacute [Anjos] e mortais estatildeo sob Seu domiacutenio

Quando Moiseacutes ascendeu para receber a Toraacute ele se juntou com os anjos como

Deuteronoacutemio diz Fique comigo agora (Memar marqa 412)208

Nas tradiccedilotildees samaritanas Deus e os seus anjos satildeo seres impereciacuteveis quando Moiseacutes

se transforma num ldquoque permanecerdquo isto significa que ele eacute elevado agrave condiccedilatildeo de ser

angeacutelico mas tambeacutem eacute participante da natureza divina

Teremos entatildeo os elementos suficientes para atribuir ao monachos de Tomeacute o estatuto

angelical impereciacutevel Esta suposiccedilatildeo pode ser suportada pelo lg 18 que afirma ldquoFeliz

aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo

Ou seja jaacute tiacutenhamos discutido que o ldquocomeccedilordquo refere-se ao Paraiacuteso o loacutegion 18 estaacute

paralelo ao lg 19 e deduz que o disciacutepulo deve ascender ao paraiacuteso a fim de se tornar

uma nova pessoa ao adquirir as virtudes plantadas no Eacuteden

Estas aacutervores natildeo se alteram representando de algum modo a natureza ldquopermanenterdquo e

inalteraacutevel das virtudes divinas Assim o texto afirma que quem regressa ao Paraiacuteso e

adquire as virtudes inalteraacuteveis de Deus adquire para si a natureza impereciacutevel de Deus

e natildeo experimenta a morte No lg 18 a mesma linha de raciociacutenio quando o disciacutepulo

ldquopermanecerdquo no princiacutepio ele regressa ao Paraiacuteso como um ser justo e alcanccedila o estado

angelical Quando o monachos ldquopermanecerdquo diante de Deus ele estaacute a participar na

natureza impereciacutevel de Deus e natildeo experimenta a morte

207 Ver 1 En 3912 401 473 682 2 En 211 Testamento de Abraatildeo 7-8 208Cowley E A (1909) 2718

92

Misticismo Visionaacuterio em Tomeacute Logia 1583 e 59

Nesta secccedilatildeo iremos analisar quatro temas da experiecircncia visionaacuteria miacutestica judaica

encontrados nas descriccedilotildees miacutesticas do trono de Deus A primeira carateriacutestica eacute a

manifestaccedilatildeo divina que estaacute sentada no trono rodeada pela corte celestial Quando o

miacutestico entra na sala do trono e vecirc Deus entronizado ele prostra-se no chatildeo e adora-o

A Kavod eacute sempre descrita em termos antropomoacuterficos como uma figura de um homem

cujo corpo emite fogo ou luz A viagem do miacutestico eacute recompensada quando este

encontra a luz ou bebe das fontes existentes nos ceacuteus Esta experiecircncia deve ser

alcanccedilada antes da morte Para aleacutem do lg 37 e do lg 50 os logia mencionados no tiacutetulo

desta secccedilatildeo tambeacutem tratam dos vaacuterios elementos da experiecircncia miacutestica visionaacuteria

ldquoJesus disse Quando virdes aquele que natildeo nasceu da mulher prostrai-vos sobre o

vosso rosto e adorai-o esse eacute o vosso Pairdquo (lg 15)

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a Luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo

(lg 83)

A visatildeo do Pai descrita no lg 15 utiliza vaacuterios elementos dos textos miacutesticos judaicos

que descrevem a sala do trono divino Quando o miacutestico entrava na sala do trono ele

prostrava-se diante do rei divino a adoraacute-lo

Por exemplo em 1 Henoque 1424 o miacutestico entrou diante da presenccedila da corte celestial

e adorou Deus prostrando-se perante ele No segundo livro de Henoque 2 Henoque

224 Henoque vecirc a face luminosa de Deus e prostra-se para adoraacute-lo209

O termo ldquonatildeo nasceu de mulherrdquo alude ao termo ldquonascido de mulherrdquo frase judaica

presente em Job 141 e 1514 esta expressatildeo descreve a condiccedilatildeo degradada da

humanidade

Num dos relatos da ascensatildeo de Moiseacutes os anjos objetaram que ele continuasse a subir

por causa de ldquoser nascido de mulherrdquo210 De acordo com Megillah 13b este termo

209Cf Deconick D April (1996) 100 210Cf Sukkah 521 Marsquoayanha- Hokmah 60-61 Pesik R 2098a 25 128a

93

relaciona-se com a mortalidade A condiccedilatildeo mortal deve-se ao facto de se ser nascido

no ventre de uma mulher

ldquoAquilo que natildeo nasceu da mulherrdquo aplica-se assim a Deus porque ao contraacuterio dos

humanos este eacute auto gerado Este conceito vai de encontro agrave ideologia do lg 50 onde a

luz gera-se a si mesma

O lg 83 apresenta algumas dificuldades de interpretaccedilatildeo aqui o evangelho discute que a

imagem de Deus se encontra escondida contudo Jesus afirma que ldquonatildeo haacute nada oculto

que natildeo seja reveladordquo (lg 5) Provavelmente isto seria entendido como a Kavod

escondida de Deus que se tornaria manifesta durante a experiecircncia ascensionaacuteria Na

tradiccedilatildeo miacutestica judaica tambeacutem surge a ideia de que a Kavod como algo escondido que

se revelava aos miacutesticos211

Em Hekhalot Zutrati 45b ldquoDeus que estaacute aleacutem da visatildeo de Suas criaturas e oculto aos

anjos que O servem tem-se revelado a R Akiba na visatildeo do Merkabah

A imagem de Deus nestas tradiccedilotildees era oculta pela luz que irradia em torno de Deus

esta teologia pode ser traccedilada em 1 Henoque 1420 que descreve a sua visatildeo da

ldquoGrande Gloacuteriardquo

A Gloacuteria vestia-se com uma veste ldquomais brilhante do que o solrdquo ao ponto de ldquonenhum

dos anjos o conseguir verrdquo De acordo com Enoque isto acontecia porque ldquoo fogo

flamejante estava ao redor dele e um grande fogo estava diante delerdquo212

Nesta tradiccedilatildeo a forma de Deus manteacutem-se escondida por detraacutes da sua luz o visionaacuterio

soacute ganha acesso agrave visatildeo do divino atraveacutes da luz que o divino emana213

Outra visatildeo em 2 Henoque 22 apresenta o mesmo pensamento o Arcanjo Miguel levou

Enoque agrave presenccedila do Senhor ele ldquopermanece diante da face de Deusrdquo e diz que ldquoviu a

aparecircncia da face do Senhorrdquo (2 Henoque 221)

A sua descriccedilatildeo natildeo eacute a descriccedilatildeo literal da face antes descreve a face como se a tivesse

visto atraveacutes de uma tela de luz A face era ldquocomo o ferro queimado quente em fogo e

trazido para fora e emite faiacutescas e eacute incandescenterdquo

Fiacutelon de Alexandria atesta tambeacutem esta tradiccedilatildeo na sua obra De mutatione nominum 7

ele descreve a visatildeo que Moiseacutes teve de Deus apoacutes ter ascendido ao ceacuteu em Ecircxodo 33

De acordo com Fiacutelon Moiseacutes ldquoentrou na escuridatildeordquo que era a existecircncia invisiacutevel e

incorpoacuterea Nesta esfera ele buscou em todos os lugares com todas as suas forccedilas no

211Cf Deconick D April (1996) 103 212Cf Nicklesburg WE George and Vanderkam C James (2012) 35 213Cf Deconick D April (1996) 104

94

entanto natildeo conseguiu vecirc-lo Fiacutelon explica que Deus na sua natureza natildeo pode ser visto

ldquoo homem que deseja colocar seu olhar sobre a essecircncia suprema antes de vecirc-lo seraacute

cegado pelos raios que irradiam ao redor delerdquo214

Mais uma vez encontramos a tradiccedilatildeo judaica que acreditava que a essecircncia de Deus era

abrangida pela sua luz

Noutra passagem dos Manuscritos do Mar Morto em 1QH7 encontramos o seguinte

verso ldquoTu te revelaste a ti em teu poder como luz perfeitardquo O termo ldquopoderrdquo eacute uma

alternativa ao nome da Gloacuteria de Deus esta passagem indica que a essecircncia de Deus natildeo

pode ser percebida diretamente

Deus revela-se o seu ldquopoderrdquo ou a sua ldquoKavodrdquo atraveacutes da manifestaccedilatildeo da luz no lg

83 de Tomeacute encontramos assim estas noccedilotildees miacutesticas a Kavod ou imagem de Deus estaacute

oculta na sua proacutepria luz215

No lg 59 menciona-se o contexto de alcanccedilar a visatildeo da deidade uma visatildeo extaacutetica

que de forma bastante clara eacute considerada importante e necessaacuteria durante a vida do

disciacutepulo e natildeo apoacutes a sua morte

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-lo e natildeo sejais capazes de o verrdquo (lg 59)

Trata-se de uma experiecircncia extaacutetica e natildeo de uma vivecircncia escatoloacutegica os disciacutepulos

devem contemplar o Deus vivente enquanto estatildeo vivos

Jesus instruiacute os seus seguidores a serem miacutesticos a buscarem uma visatildeo de Deus

durante as suas vidas como uma visatildeo de superarem a morte e alcanccedilarem a

imortalidade

Esta ideia influenciou o miacutestico siriacuteaco Macarius que desenvolveu este tema nas suas

homilias onde ensinava que era necessaacuterio ldquoolhar continuamenterdquo para Cristo

Ateacute que Cristo ldquoFora do seu espiacuterito da substacircncia da proacutepria luz da luz inefaacutevelrdquo pinta

uma ldquoimagem celestialrdquo e concede-a agrave alma do disciacutepulo (Hom 304) Quando esta

imagem ldquoeacute carimbadardquo na alma a pessoa pode entrar no Reino se a alma natildeo tiver a

imagem natildeo pode entrar no Reino Seria entatildeo necessaacuterio contemplar Cristo e

aproximar-se do Senhor implorando pelo Espirito ldquoaqui na terrardquo porque ldquoenquanto

nesta terra natildeo procurou e natildeo recebeu a vida pela sua alma ou seja a luz divina do

214De Fuga et inventione 165 215Cf Deconick D April (1996) 105

95

Espiacuterito quando se afasta do seu corpo jaacute estaacute separado nos lugares das trevas do lado

esquerdordquo (Hom306)216

Esta tradiccedilatildeo que advoga a busca da visatildeo durante o tempo de vida dos crentes eacute

paralela na tradiccedilatildeo miacutestica judaica O Evangelho de Tomeacute insiste que a ascensatildeo eacute uma

experiecircncia estaacutetica e natildeo escatoloacutegica O estado do ser humano eacute entendido como

diferente da condiccedilatildeo divina Deus tem a sua imagem ou corpo oculta na sua proacutepria

luz a imagem do ser humano eacute visiacutevel exteriormente mas a luz estaacute oculta no seu

interior Esta luz alma ldquogrande riquezardquo como Jesus se referiu agrave alma ganhou um

corpo denso por causa do pecado de Adatildeo Este habitar divino o verdadeiro lsquoeursquo deve

ser trazido agrave superfiacutecie do disciacutepulo O evangelho instruiu os seguidores a adquirirem o

conhecimento deste verdadeiro lsquoeursquo afirmando que eacute esta parte do ser humano que abre

as portas para o Reino e para a coparticipaccedilatildeo completa no divino

5 O Quadro Simboacutelico do Evangelho de Tomeacute e a centralidade do Templo no

seu mundo simboacutelico

Jesus disse Haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na Cacircmara

Nupcial

Lg 75

Apoacutes termos discutido vaacuterias temaacuteticas do evangelho de Tomeacute nomeadamente as suas

ideias religiosas as suas interpretaccedilotildees textuais aos mitos da criaccedilatildeo situados em

Geacutenesis E termos elaborado uma anaacutelise incisiva sobre os aspetos da experiecircncia

visionaacuteria e miacutestica nos nossos termos da palavra eacute agora importante facultarmos o

conjunto de informaccedilotildees e factos sobre o simbolismo inerente ao texto

A narrativa deste evangelho tem como chave hermenecircutica a cacircmara nupcial este eacute o

maior siacutembolo que sem uma descriccedilatildeo adequada do seu contexto emergente

levariacuteamos o leitor a uma leitura incompleta

Nesta seccedilatildeo seraacute assim apresentado o mundo simboacutelico que sustenta a narrativa de

Tomeacute o evangelho eacute aqui espaccedilo simboacutelico de metaacuteforas e enigmas que precisa de um

fio condutor para uma apreciaccedilatildeo da sua mensagem

216 Cf Maloney G A (1992) 191-192

96

O mundo simboacutelico que propomos neste trabalho eacute o mundo simboacutelico do Templo de

Jerusaleacutem nomeadamente a forma como este siacutembolo foi percecionado por judeus e

cristatildeos numa fase emergente

As tradiccedilotildees simboacutelicas do Templo ecoam por todas as escrituras certamente as

encontramos nos profetas nos salmos nos evangelhos nas epiacutestolas e no livro de

Apocalipse Na leitura agrave vasta biblioteca de Nag Hammadi ou aos Manuscritos do Mar

Morto encontramos exactamente as mesmas referecircncias as mesmas tradiccedilotildees a

natureza de uma metaacutefora que se apega agrave sua ancestralidade e agrave memoacuteria de um povo

Podemos afirmar que aquilo que torna a religiatildeo dos hebreus uacutenica eacute o seu apego e a

sua devoccedilatildeo agrave memoacuteria todos estes textos inclusive o evangelho de Tomeacute herdaram o

peso e a grandeza desta memoacuteria

Cada palavra cada referecircncia transportam-nos a uma memoacuteria que natildeo se perdeu mas

que de facto comunica uma interpretaccedilatildeo alinhada com uma textualidade sincronizada

sem excessos ou divagaccedilotildees

Em toda a narrativa do Evangelho de Tomeacute na totalidade dos seus 114 logia apenas

uma vez eacute referido o conceito da Cacircmara Nupcial

Existe uma ausecircncia notaacutevel deste termo no Evangelho de Tomeacute mas ainda assim a

investigaccedilatildeo desta tese baseia-se neste dito tendo-o como pedra angular para decifrar as

mensagens contidas nos outros logia

A Cacircmara Nupcial no judaiacutesmo do II Templo e como verificamos noutros documentos

do mesmo periacuteodo natildeo era apenas um termo poeacutetico teoloacutegico ou metafoacuterico

A Cacircmara Nupcial era uma conceccedilatildeo cosmoloacutegica do tempo era uma memoacuteria do

Templo de Jerusaleacutem mais concretamente uma memoacuteria dos significados do Eacuteden

O pensamento acerca do estado da humanidade das suas origens e da sua queda do

percurso de regresso ao seu estado original Eacute em grande parte suportado e elaborado

nesta base ideoloacutegica que podemos identificar como Cacircmara Nupcial

Para acedermos ao pensamento e agrave forma como os textos seriam entendidos teremos

que inquirir as raiacutezes das questotildees e a origem das respostas

Quais seriam as fontes consultadas pelos escribas que redigiam os textos Quais seriam

as escolas e os curriacuteculos dos editores desses textos

Porquecirc falar de um mito da criaccedilatildeo e natildeo de outro mito Porquecirc mencionar um Deus

criador e personagens com nomes hebraicos

Se atribuirmos ao hermetismo ao platonismo ao pensamento gnoacutestico todas estas

questotildees ficaria por esclarecer a presenccedila de nomes e conceitos hebraicos nesses textos

97

Nas proacuteximas secccedilotildees muitas destas questotildees seratildeo respondidas importa referir que

antes de iniciarmos um apuramento ao significado cosmoloacutegico do pensamento de

Tomeacute devemos situar Tomeacute no seu quadro mental

As doutrinas referentes agrave criaccedilatildeo do homem agrave experiecircncia visionaacuteria de Deus e agrave

obtenccedilatildeo de conhecimentos celestiais satildeo doutrinas judaicas diretamente ligadas ao

Templo de Jerusaleacutem

O lugar da vida o espaccedilo onde a Luz procedeu de si eacute o Eacuteden o Santo dos Santos do

Templo a niacutevel simboacutelico

O homem eacute transformado quando contempla Deus como o sumo-sacerdote era

transformado quando entrava no Santo dos Santos Estas e outras crenccedilas compuseram

os textos que hoje estudamos os acadeacutemicos daquela eacutepoca pensaram e debateram estes

conhecimentos Elaboraram exegeses metafiacutesicas aos textos tradicionais e ao longo

deste processo revolucionaram as suas religiotildees

Neste capiacutetulo seraacute tratada a realidade simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem e como esta

influenciou o pensamento dos escribas e dos leitores dos textos De igual modo

apresentaremos a exegese de Tomeacute ao mito da criaccedilatildeo em Geacutenesis 1 explorando a

simboacutelica da Cacircmara Nupcial no texto de Tomeacute

O Simbolismo Miacutestico do Templo de Jerusaleacutem

Em Jerusaleacutem o Templo eacute lugar memoacuteria mas memoacuteria de quecirc Poderiacuteamos

questionar Memoacuteria do Eacuteden reflexo da ordem coacutesmica Quem olhava para o Templo

olhava para a representaccedilatildeo da duraccedilatildeo do tempo o tempo do tempo a continuaccedilatildeo dos

ciclos da vida

A divina presenccedila imbuiacuteda na criaccedilatildeo o Templo era a conjunccedilatildeo entre o ceacuteu e a terra o

encontro entre a ordem macro coacutesmica refletida nos ciclos diaacuterios da natureza e a

adoraccedilatildeo microcoacutesmica refletida nos ciclos repetitivos de ritos sacrificiais e liturgia217

A importacircncia dos ciclos eternos numa ordem divina eterna estabelecia-se num

calendaacuterio solar divino de cinquenta e dois sabbath e cinquenta e duas semanas

formando um ano de 364 dias que se dividia em quatro estaccedilotildees218

O tempo no Templo era dividido em duas divisotildees visiacuteveis e audiacuteveis sendo estas

combinadas e sincronizadas

217Elior Rachel (2009) 309 218 Cf Idem

98

A ordem das divisotildees visiacuteveis naturais do tempo estava relacionada aos movimentos do

sol e das quatro divisotildees do ano219 As divisotildees celestes audiacuteveis e as divisotildees rituais do

ano estavam relacionadas numericamente aos ciclos seacuteptuplos consecutivos e preacute-

calculados220 Juntos eles constituiacuteram a essecircncia do eterno calendaacuterio solar sacerdotal

preservado e implementado no Templo que formou o fundamento para a ordem ritual e

ciclo sacrificial221

A realidade histoacuterica do Templo durante os seus primeiros dois periacuteodos eacute mais

complexa do que aquilo que a historiografia e a literatura que chegou ateacute noacutes poderaacute

traccedilar A historiografia do Templo de Jerusaleacutem eacute uma fusatildeo de histoacuteria com mito

memoacuteria ritual escrituras sagradas e vaacuterias tradiccedilotildees historiograacuteficas diferentes222

Apesar de existirem diferentes narrativas sacerdotais e diversas tradiccedilotildees acerca do

Templo existem alguns pontos comuns que nos permitem reconstruir o pensamento

simboacutelico da realidade do Templo

Estava impliacutecita a perceccedilatildeo do ceacuteu e a terra como uma unidade no serviccedilo sagrado de

modo que se poderia postular a existecircncia de uma relaccedilatildeo muacutetua entre a ciacuteclica coacutesmica

do reino eterno incorpoacutereo divino e ociacuteclico ritual estabelecido no reino material e

terrestre pelo serviccedilo sagrado223

O Templo era a encarnaccedilatildeo terrena da ordem coacutesmica ciacuteclica apesar do espaccedilo fiacutesico do

Templo ter sido destruiacutedo no ano setenta dC o seu espaccedilo simboacutelico no imaginaacuterio dos

escribas judeus e cristatildeos permaneceu e ampliou-se

Apoacutes a destruiccedilatildeo do Templo a tradiccedilatildeo rabiacutenica moldou as visotildees do passado e

reinterpretou os significados da adoraccedilatildeo religiosa

Os rabinos pretenderam assegurar a continuidade da vida judaica agrave parte do espaccedilo

fiacutesico do Templo e de qualquer outro centro cuacuteltico A velha ordem caraterizada pelo

ritual e pelo conhecimento esoteacuterico dos sacerdotes e dos anjos do Templo e dos

ritmos lituacutergicos E toda a lei escrita que foi confiada aos sacerdotes que continuavam a

redigir escrituras inspiradas foi substituiacuteda por uma nova ordem cuja autoridade

centrava-se na lei oral nos rabinos e nos novos acadeacutemicos224

219 Os ciclos naturais de dias e noites as quatro estaccedilotildees divididas ainda mais por equinoacutecio

vernal e outonal e os solstiacutecios de veratildeo e inverno 220Saacutebados sete tempos designados pelo Senhor nos primeiros sete meses do ano Sabbats de

cada seacutetimo ano jubilar e Jubileus 221Elior Rachel (2009) 309 222Elior Rachel (2004) 3 223Cf Idem 224 Cf Idem 6

99

Os saacutebios substituiacuteram gradualmente o ritual do Templo as tradiccedilotildees dos anjos e da

inspiraccedilatildeo de revelaccedilotildees celestiais sobre a tradiccedilatildeo escrita A adoraccedilatildeo passou a basear-

se na observaccedilatildeo dos mandamentos e no estudo acadeacutemico da lei escrita A noccedilatildeo de

tempo sagrado foi substituiacuteda por um tempo humano decidido pela interpretaccedilatildeo do

calendaacuterio

A literatura excluiacuteda desta reforma foi catalogada como apoacutecrifa pseudepiacutegrafa e natildeo

canoacutenica Nestes documentos podemos encontrar o pensamento sobre a simboacutelica do

Templo e dos seus rituais Os dois maiores blocos literaacuterios que preservaram a memoacuteria

viva do serviccedilo no templo as tradiccedilotildees sacerdotais a literatura de hekhalot225 e

Mercavaacute226 e os Manuscritos do Mar Morto assim como os livros de Enoque

Estas tradiccedilotildees em concreto estatildeo relacionadas com o funcionamento do serviccedilo dos

anjos no Templo celestial Preservam tambeacutem tradiccedilotildees referentes agrave linguagem sagrada

dos cacircnticos hinos de louvor becircnccedilatildeos e nomes sagrados associados a anjos ou

sacerdotes Muitas tradiccedilotildees natildeo sobreviveram soacute nestes textos mas deixaram a sua

marca na proacutepria liturgia da sinagoga Como a recitaccedilatildeo de uma passagem biacuteblica que

descreve o incenso sagrado a becircnccedilatildeo sacerdotal e a designaccedilatildeo semanal dos 24 ciacuterculos

sacerdotais a recitaccedilatildeo da foacutermula Kedusha (lsquosanto santo santorsquo) perante os anjos

soprar o shofar e prostrarem-se227

O Templo era uma representaccedilatildeo do mundo celestial as suas decoraccedilotildees representavam

os mundos celestes Nalgumas circunstacircncias as decoraccedilotildees do templo tornaram-se

vivas

ldquoE a semelhanccedila dos laquodeusesraquo vivos eacute gravada nos vestiacutebulos pelos quais o Rei entra figuras

espirituais luminosas de esplendor haacute obras de arte de maravilhosas cores figuras dos laquodeusesraquo

vivos nas gloriosas cacircmaras do Templo mais interior a estrutura do santiacutessimo santuaacuterio nas

225 Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo anjos

ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios celestiais eacute

descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose desenvolve-se atraveacutes da

terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da memoacuteria consagrada do ritual

com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria elementos que estabelecem uma ponte entre

a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute lsquoocultorsquo 226 Apesar da breve introduccedilatildeo jaacute feita (paacutegina55) importa referir que a tradiccedilatildeo da Mercavaacute

ganhou a sua forma no periacuteodo do Primeiro Templo as suas atitudes face aos rituais realizados

antes e depois da destruiccedilatildeo do Templo e o lugar dessa tradiccedilatildeo no contexto da tradiccedilatildeo miacutestica

e lituacutergica da literatura de hekhalot e dos Manuscritos do Mar Morto que unem intimamente os

sacerdotes e os anjos para laacute do espaccedilo e do tempo A experiecircncia transformacional miacutestica do

ecircxtase visionaacuterio torna esta tradiccedilatildeo na sua representaccedilatildeo da realidade divina um dos traccedilos

perdidos das tradiccedilotildees do Templo 227Cf Elior Rachel (2004)13

100

cacircmaras mais interiores do Rei desenhos de laquodeusesraquo semelhanccedila com (hellip) santiacutessimo (hellip) as

cacircmaras do Templo do Rei (hellip) figuras dos laquodeusesraquo e da semelhanccedila com (hellip) do Santo dos

Santos (hellip)

As figuras dos laquodeusesraquo louvaacute-lo-atildeo os espiacuteritos santiacutessimos (hellip) de gloacuteria o chatildeo das

maravilhosas cacircmaras mais interiores os espiacuteritos dos deuses eternos todos (hellip) figuras da

cacircmara mais interior do Rei as obras espirituais do maravilhoso firmamento satildeo purificadas

com sal espiacuteritos de conhecimento verdade e justeza no Santo dos Santos formas dos laquodeusesraquo

vivos formas dos espiacuteritos multicolores figuras artiacutesticas dos laquodeusesraquo gravadas a toda a volta

dos seus maravilhosos tijolos gloriosas figuras divinas nos tijolos de esplendor e majestade-

todas as suas obras de arte satildeo laquodeusesraquo vivos e as suas figuras artiacutesticas satildeo anjos sagradosrdquo228

Neste cacircntico as figuras dos seres celestes nas paredes do templo ganham vida porque o

cacircntico descreve o templo celestial A mente moderna procura na leitura destes textos

separar o ceacuteu da terra algo que a mente antiga natildeo faria nem teria em consideraccedilatildeo O

espaccedilo e o tempo satildeo conceitos ambiacuteguos quando o ritual no templo terreno era parte de

uma realidade eterna

Os mitos e as histoacuterias que rodeavam o Templo eram compreendidos como algo que

aconteceu num passado distante sendo ao mesmo tempo aspetos da realidade presente

Os mitos natildeo eram histoacuterias primitivas mas afirmaccedilotildees dos principais princiacutepios numa

forma simboacutelica e narrativa229

Eacuteden

O Templo de Jerusaleacutem era o Gan-Eden jardim do Eacuteden e os seus rituais

interagiam com esta crenccedila fundamental sobre a criaccedilatildeo O Templo encontrava-se assim

como o Eacuteden entre o ceacuteu e a terra com acesso aos mundos divino e material E o

paraiacuteso estaacute entre corruptibilidade e incorruptibilidade (2 Henoque 83-5)

Assim foi o lugar a partir do qual o mundo material assumiu forma porque poderia a

partir deste ponto ser permeado pelo poder criativo da presenccedila do divino Em torno do

Eacuteden situava-se o mar primitivo de onde surgiram monstros que careciam de forma

humana porque lhes faltava a imagem de Deus O mar era o caos sem forma da

mortalidade de que de acordo com Geacutenesis 1 o Espiacuterito de Deus extraiu a criaccedilatildeo

estaacutevel Os relatos bizarros da criaccedilatildeo nos textos gnoacutesticos posteriores tecircm suas raiacutezes

228Cf 4Q405 14-15 i e 4Q405 19 ABCD (11Q17 vii 56) in Vermes Geza (2006) 323 229Cf Barker Margaret (1990) 57

101

na mitologia do templo Estes textos falam de um ser celestial que tinha vindo atraveacutes

do veacuteu que separa os mundos superior e inferior e tinha formado para si uma ordem

criada a partir do caos que Ele encontrou no mundo inferior E quando este espiacuterito se

manifestou o arconte separou para um lado a substacircncia das aacuteguas colocando o seco do

outro lado E a partir da mateacuteria construiu para si um habitaacuteculo proacuteprio e chamou-lhe

ceacuteu E a partir da mateacuteria o arconte construiu um escabelo e chamou-lhe terra (Sobre a

Origem do Mundo)230

A exegese ao mito da criaccedilatildeo eacute a linha orientadora na narrativa do Evangelho de Tomeacute

a sua cosmologia apresenta uma mensagem de apelo ao regresso do ser humano ao

Eacuteden

Se os disciacutepulos de Tomeacute tinham que descobrir no seu interior que eram filhos do Pai

Vivente o processo da busca e de autodescoberta representava o processo da memoacuteria

Nestas cosmologias o ser humano esqueceu-se que era humano agrave imagem e semelhanccedila

do divino era agora um ser incompleto e confuso imerso num mundo caoacutetico

Seraacute que todas estas crenccedilas e interpretaccedilotildees eram a lembranccedila de uma crenccedila mais

antiga em que a presenccedila divina passou dos ceacuteus pelo veacuteu do templo para o caos

aquaacutetico que cercava o santuaacuterio231

Nos sistemas gnoacutesticos o ser divino que passava pelo veacuteu era mau e a sua criaccedilatildeo

como resultado tambeacutem era maacute Historicamente consideramos este mito uma inovaccedilatildeo

gnoacutestica Mas uma leitura cuidadosa do primeiro capiacutetulo de Geacutenesis mostra que o mito

da criaccedilatildeo enfatiza que o mundo material eacute bom Existiraacute algum elemento poleacutemico

neste capiacutetulo Teria existido outro ponto de vista mais antigo que a interpretaccedilatildeo dos

gnoacutesticos

Que mundo material exterior ao santuaacuterio do Eacuteden era mau Certamente alguns traccedilos

constituintes da visatildeo maacute da criaccedilatildeo sobreviveram

Quem vivia no Eacuteden eram os anjos seres imortais que foram expulsos do Eacuteden e que

tal como o priacutencipe de Tiro (Ezequiel 289) se tornaram mortais e pereceram

Adatildeo e Eva vestiram roupas de pele (a que comentadores posteriores deram o

significado de vestidos de carne) e estavam destinados a retornar ao poacute depois de terem

deixado o Eacuteden (Geacutenesis 319-20)

230Cf Pinero Antoacutenio Torrents M Joseacute Bazaacuten G Francisco (2005) 367 231Cf Barker Margaret (1990) 102-103

102

O mundo fora do jardim era um lugar de espinhos cardos e dor dificilmente poderia ser

considerado bom como o Eacuteden inicial

O tratamento mais rigoroso que pode ser dirigido a estas questotildees seraacute sempre de caraacuteter

especulativo Estamos a tentar reconstruir um mito repetidamente fragmentado natildeo

havendo por isso exatidatildeo histoacuterica mas consideramos contudo que este esforccedilo

poderaacute tornar-se mais frutiacutefero do que tratar o mito como histoacuteria factual

O Eacuteden no pensamento hebreu nunca foi um espaccedilo fiacutesico numa eacutepoca histoacuterica mas

sim um ideal sempre presente o aleacutem Esta conceccedilatildeo da realidade eacute a espinha dorsal da

textualidade de Tomeacute evangelho no qual os laacutebios de Jesus melhor expressaram o

sentimento hebreu para com o Eacuteden

ldquoOs disciacutepulos disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim

Jesus disse Haveis descoberto jaacute o comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o

iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e

natildeo provaraacute a morterdquo (Lg 18)

ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Em que dia viraacute o Reino Jesus disse Natildeo viraacute numa

expetativa nem diratildeo Olhai para aqui ou olhai para ali mas sim que o Reino do Pai

estaacute difundido sobre a terra e os homens natildeo o veemrdquo (Lg 113)

O Grande Mar

A realidade simboacutelica do Templo era uma declaraccedilatildeo acerca da ordem natural como os

israelitas a viam estava intimamente associada ao mito da criaccedilatildeo Este mito natildeo era

apenas uma descriccedilatildeo da origem do mundo num tempo distante mas tambeacutem uma

descriccedilatildeo de como o mundo foi continuamente formado e mantido

O Templo situava-se na intersecccedilatildeo da terra com o ceacuteu e como tal foi o primeiro lugar

do qual o mundo material foi ordenado No antigo Oriente este lugar era normalmente

considerado como uma montanha coacutesmica que mantinha o ceacuteu a terra e o submundo

unidos Era o lar dos deuses o Templo do grande deus criador construiacutedo no topo da

montanha coacutesmica

O plano geral do Templo permite-nos ver como ele foi pensado para representar o

firmamento situado nos mares de onde a criaccedilatildeo surgiu Havia uma bacia de bronze

enorme no paacutetio do Templo que deve ter dominado a aacuterea desde que era a metade da

largura do proacuteprio Templo Era significativamente chamado o mar e provavelmente

representava as aacuteguas primitivas no ritual Havia uma crenccedila estabelecida de que o paacutetio

103

era o mar que cercava a terra estaacutevel Uma tradiccedilatildeo atribuiacuteda ao rabino Pinhas benYair

que viveu no seacuteculo segundo dC descreve o Templo assim A casa do Santo dos

Santos foi feita para corresponder ao mais alto dos ceacuteus A Casa Santa exterior foi feita

para corresponder agrave terra e o paacutetio foi feito para corresponder ao mar232

Os comentadores da Toraacute disseram O tribunal envolve o Templo exatamente como o

mar envolve o mundo (Nuacutemeros Rabaacute XIII19) O Talmude babiloacutenico recorda que o

maacutermore branco e azul das paredes do Templo assemelhava-se agraves ondas do mar (b

Sukkah 51b) Todos estes satildeo textos posteriores agrave destruiccedilatildeo do Templo mas Flaacutevio

Josefo conhecedor do Templo e descendente de uma famiacutelia de sacerdotes tambeacutem

afirmou que o paacutetio exterior representava o mar

Ele disse que o tabernaacuteculo se baseou num modelo que foi dividido em trecircs partes e

entregando dois deles para os sacerdotes como um lugar acessiacutevel e aberto a todos

Moiseacutes simboliza a terra e o mar uma vez que estes tambeacutem satildeo acessiacuteveis para todos

Mas a terceira parte reservou-se somente a Deus porque o ceacuteu tambeacutem eacute inacessiacutevel aos

homensrdquo (Antiguidades Judaicas III 181)

Para aleacutem destes testemunhos vaacuterios textos que se referem ao Templo de Salomatildeo

associam o Templo aos mares subjugados antes da criaccedilatildeo e portanto eacute muito possiacutevel

que o simbolismo complexo encontrado em escritores do primeiro seacuteculo como Fiacutelon

de Alexandria e Flaacutevio Josefo natildeo fosse uma interpretaccedilatildeo posterior

O salmo 93 por exemplo descreve o Senhor entronizado e vestido de majestade

estabelecido como mais poderoso do que as enchentes e as ondas do mar O salmo

2910 eacute semelhante O Senhor estaacute entronizado sobre o diluacutevio O Senhor permanece

entronizado para sempre Uma vez que o trono estava no Templo este eacute um retrato do

criador que triunfou e eacute literalmente entronizado em seu santuaacuterio sobre as inundaccedilotildees

que ele subjugou O salmo 24 afirma ldquoQue o Senhor estabeleceu o mundo sobre os

mares e imediatamente pergunta Quem subiraacute ao monte do Senhor (Salmo 243)

sugerindo que o lugar estabelecido eacute o monte sagrado o lugar de seguranccedila para o seu

povo O antigo poema agora incorporado no Ecircxodo (cacircntico do mar ecircxodo 15) descreve

o Senhor trazendo o povo atraveacutes de um mar terriacutevel (daiacute sua inclusatildeo nesta histoacuteria)

mas natildeo termina com o resto da histoacuteria do Ecircxodo No seu contexto original este poema

natildeo descrevia os acontecimentos do Ecircxodo o poema conta de facto a antiga histoacuteria da

criaccedilatildeo ldquoTu os traraacutes e os plantaraacutes no teu proacuteprio monte o lugar oacute Senhor que fizeste

232Citado em Barker Margaret (1990) 61

104

para a tua morada o santuaacuterio oacute Senhor que as tuas matildeos estabeleceramrdquo

(Ecircxodo1517)

Este aliaacutes eacute um bom exemplo da forma como o mito funcionava no pensamento

hebreu os acontecimentos da histoacuteria estabelecem-se num quadro existente e a criaccedilatildeo

do povo escolhido como resultado do Ecircxodo eacute contada em termos da criaccedilatildeo do mundo

a partir dos mares primitivos

Existem muitos outros exemplos de descriccedilotildees do Senhor subjugando os mares do caos

primordial233

O mar que cercava o Templo o lugar do trono divino tambeacutem apareceu em vaacuterias das

visotildees profeacuteticas que tinham o Templo como pano de fundo A visatildeo do profeta Daniel

de um como filho do homem (Daniel 7) era uma visatildeo baseada nos rituais antigos de

entronizaccedilatildeo

Antes que a figura humana fosse entronizada e lhe fosse dado domiacutenio quatro bestas

surgiram do grande mar (Daniel 72-7) Uma foi morta e as restantes foram

autorizadas a viver por um tempo mas seu poder foi-lhes tirado (Daniel 711-12)

Neste contexto os quatro animais representavam quatro impeacuterios mas seus

antecedentes foram os monstros caoacuteticos que Iahweh tinha domesticado (Job 41) e

derrotado (Isaiacuteas 519)

O velho mito era novamente reinterpretado para uma nova situaccedilatildeo (Daniel 717) em

tempo de crise foi assim que os acontecimentos foram explicados Natildeo era nem novo

nem alheio como agraves vezes eacute impliacutecito Uma visatildeo similar do Templo eacute registrada em 4

Esdras Uma figura humana levanta-se do mar e faz para si uma grande montanha na

qual luta contra os inimigos invasores Este eacute o antigo mito da criaccedilatildeo a formaccedilatildeo da

montanha santa do meio do mar sendo aqui interpretada para o leitor

O padratildeo esperado de criaccedilatildeo isto eacute o mito subjacente a toda a realidade eacute aqui

aplicado agrave criaccedilatildeo (ou resgate) do povo de Deus da situaccedilatildeo de caos em que se

encontram atualmente O paraiacuteso descrito como o jardim ou como o lugar do trono

celestial tambeacutem era cercado por mar Um texto do primeiro seacuteculo dC relatou como eacute

que Adatildeo foi levado de volta ao paraiacuteso pelo Arcanjo Miguel Ele congelou as aacuteguas ao

redor do Paraiacuteso para que pudessem atravessar (Vida de Adatildeo e Eva 284)

Uma imagem mais familiar eacute a descriccedilatildeo do mar ao redor do trono celestial no Livro do

Apocalipse e diante do trono haacute como um mar de vidro como cristal (Apocalipse 46)

233Cf Salmos 337 7413 899 Jeremias 522

105

ou diante do Templo celestial E eu vi o que parecia ser um mar de vidro misturado

com fogo e aqueles que haviam conquistado a besta e sua imagem e o nuacutemero de seu

nome estando ao lado do mar de vidro com harpas de Deus em suas matildeos (Apocalipse

152)

O Templo o lugar do trono de Deus situava-se no meio dos mares e representava o

firmamento que o criador havia estabelecido e continuava a manter para seu povo

O Templo como Eacuteden foi decorado com aacutervores e flores de ouro eram joias como o

jardim de Deus no livro de Ezequiel

Nem existe qualquer utilidade em procurar alcanccedilar uma compreensatildeo histoacuterica literal

do mito do Eacuteden Os profetas aguardavam com expectativa uma eacutepoca em que o Fim

seria como o Iniacutecio e tudo seria restaurado ao seu estado original mas natildeo tinham em

mente uma visatildeo da histoacuteria linear como uma expressatildeo da sua crenccedila de que a criaccedilatildeo

material estava perpetuamente fora da harmonia com o original divino e que era sempre

necessaacuterio restabelecer a correspondecircncia

O futuro e o passado estavam perpetuamente e potencialmente presentes O Eacuteden era

frequentemente ligado a Jerusaleacutem como o ideal que um dia seria alcanccedilado

Assim Isaiacuteas esperava o tempo em que Siatildeo desfrutaria da harmonia da montanha

sagrada governada pelo rei daviacutedico (Isaiacuteas 11) O segundo Isaiacuteas esperava o tempo em

que o deserto de Siatildeo se tornaria Eacuteden o jardim do Senhor (Isaiacuteas 513) O Terceiro

Isaiacuteas esperava o tempo em que Jerusaleacutem seria recriada como a nova montanha santa

(Isaiacuteas 6517-25) um tempo em que a serpente do Eacuteden de Geacutenesis natildeo teria poder (e o

poacute seraacute o alimento da serpente Isaiacuteas 6525)234

Quando Jerusaleacutem foi destruiacuteda pelos romanos o profeta Baruque registrou as suas

explicaccedilotildees para o desastre A Jerusaleacutem terrena natildeo tinha sido a verdadeira cidade

disse ele isto foi no ceacuteu a cidade revelada a Adatildeo no Paraiacuteso antes de pecar a Abraatildeo

quando ofereceu os sacrifiacutecios da alianccedila e a Moiseacutes no Sinai (2 Bar42-7)

Jerusaleacutem foi assim identificada com o jardim da montanha do Senhor e este por sua

vez foi representado pelo Templo Que a cidade inteira foi vista como uma extensatildeo do

Templo pode ser vista nas dimensotildees enormes do paacutetio exterior do Templo previsto no

Rolo do Templo Existem numerosas indicaccedilotildees de que o Templo representava

simbolicamente o Eacuteden tanto nas descriccedilotildees do primeiro Templo como na maneira

como os escritores posteriores descrevem o ceacuteu como Eacuteden e como templo

234Cf Barker Margaret (1990) 61-69

106

De acordo com Geacutenesis 2 Eacuteden era o jardim de Deus um lugar de aacutervores rios

querubins e uma serpente maligna Quando Adatildeo e Eva foram expulsos querubins e

uma espada flamejante foram colocados para vigiar o portatildeo

Nada sugere neste relato que eles foram expulsos de um templo as descriccedilotildees do

templo entretanto sugerem que era o Eacuteden Ezequiel descreveu um templo construiacutedo

numa montanha alta (Ezequiel 402) cujos paacutetios foram decorados com palmeiras

(Ezequiel 4031 34) O interior foi decorado com palmeiras e querubins (Ezequiel

4117) e do templo correu um rio que trouxe a fertilidade sobrenatural (Ezequiel 471-

12) Ezequiel apresentou assim caracteriacutesticas semelhantes ao Eacuteden mencionadas em

outras partes da Biacuteblia Hebraica

A Fonte da Vida

Porque contigo estaacute a fonte da vida na tua luz vemos a luz

Salmo 367-9

Depois de ter passado uma noite no santuaacuterio a vara de Aratildeo gerou brotos floresceu e

ateacute produziu amecircndoas Os cedros que Hiratildeo rei de Tiro enviou a Salomatildeo para a

construccedilatildeo do templo assim que o incenso do santuaacuterio os atingiu reavivaram o verde

e ao longo dos seacuteculos deram frutos por meio dos quais os jovens sacerdotes se

sustentaram Foi soacute apoacutes Manasseacutes ter introduzido iacutedolos no Santo dos Santos que estes

cedros secaram e deixaram de dar fruto O terceiro incidente foi o alongamento dos

varais da Arca quando Salomatildeo colocou-os no Santo dos Santos e os varais depois de

ter sido parte da Arca por quatrocentos e oitenta anos de repente se estenderam ateacute que

tocaram a cortina235 O autor L Ginzberg recolheu um verdadeiro mosaico de material

lendaacuterio associado ao Templo e a seguinte passagem ilustra bem o facto de que em

todas as suas elaboraccedilotildees sobre o tema os expositores posteriores natildeo perderam de vista

o significado original do templo nem ignoraram a sua simbologia Quando Moiseacutes

recebeu as instruccedilotildees sobre a construccedilatildeo do santuaacuterio ele queria saber como Deus

poderia habitar num lugar tatildeo pequeno O Senhor disse que natildeo exigia o que lhe era

235Cf Ginzberg Louis (2003) 162

107

devido mas somente o que seu povo podia oferecer Ele traria a sua presenccedila para o

santuaacuterio por causa deles O relato de Ginzberg continua

ldquoDeus estava realmente ansioso para ter um santuaacuterio erguido para ele era a condiccedilatildeo

em que ele os levou para fora do Egito sim em certo sentido a existecircncia de todo o

mundo dependia da construccedilatildeo do santuaacuterio pois quando o santuaacuterio se tinha erguido o

mundo permaneceu firmemente fundado enquanto ateacute entatildeo sempre andava de um lado

para o outro Por isso o tabernaacuteculo em suas partes separadas tambeacutem correspondeu ao

ceacuteu e agrave terra que haviam sido criados no primeiro dia Como o firmamento foi criado no

segundo dia para dividir as aacuteguas que estavam debaixo do firmamento das aacuteguas que

estavam acima assim havia uma cortina no Tabernaacuteculo para dividir entre o santo e o

mais santo Como Deus criou o grande mar no terceiro dia assim que ele nomeou a pia

no santuaacuterio para simbolizaacute-lo e como ele naquele dia destinou o reino vegetal como

alimento para o homem assim ele agora exigiu uma mesa com patildeo no Tabernaacuteculo O

candelabro no Tabernaacuteculo correspondia aos dois corpos luminosos o sol e a lua

criados no quarto dia E os sete ramos do candelabro correspondiam aos sete planetas o

Sol Veacutenus Mercuacuterio a Lua Saturno e Marte Correspondente aos paacutessaros criados no

quinto dia o Tabernaacuteculo continha os querubins que tinham asas como paacutessaros No

sexto o uacuteltimo dia da criaccedilatildeo o homem foi criado agrave imagem de Deus para glorificar o

seu criador e tambeacutem foi o sumo-sacerdote ungido para ministrar no tabernaacuteculo diante

de seu Senhor e criadorrdquo236

A referecircncia mais antiga ao templo como fonte de fertilidade estaacute no profeta do seacuteculo

VI Ageu onde ele se dirige aos exilados receacutem-retornados que se tinham concentrado

em construir as suas proacuteprias casas e natildeo tinham restaurado o templo Houve maacutes

colheitas e seca por toda a terra A existecircncia do templo e dos seus rituais era vital para

o bem-estar da terra O esplendor desta casa seraacute maior do que o primeiro diz o Senhor

dos Exeacutercitos E neste lugar darei prosperidade diz o Senhor dos exeacutercitos (Hg 29)

Na eacutepoca da monarquia o rei tambeacutem tinha desempenhado um papel na manutenccedilatildeo da

fertilidade da terra Ele tinha sido o canal da justiccedila de Deus e do dom da prosperidade

ldquoEle julgue o teu povo com justiccedila e teu pobre com justiccedila Os montes levem

prosperidade para o povo e os outeiros em justiccedilardquo (Salmo 722-3)

236Cf Ginzberg Louis (2003) 150

108

Os Rios do Paraiacuteso

Do Eacuteden fluiacutea um grande rio que regava o jardim e depois dividia-se em

quatro para regar toda a terra (Geacutenesis 210) Este aspeto do mito de Eacuteden ocorre muitas

vezes nos textos mais antigos do templo nestas descriccedilotildees o templo estava sempre

associado a um rio sobrenatural que fluiacutea para dar vida ao mundo

O salmo 464 diz Haacute um rio cujos rios alegram a cidade de Deus a santa habitaccedilatildeo do

Altiacutessimo Os rios estatildeo presentes no capiacutetulo 33 de Isaiacuteas esta passagem refere-se a

um momento de crise o povo esperava a ajuda do Senhor contra seus inimigos

Seguindo-se o que parece ser uma visatildeo do ceacuteu algueacutem ascende agrave montanha santa e fica

no meio dos fogos eternos (Isaiacuteas 3314) Nos proacuteximos versiacuteculos encontramos vaacuterias

semelhanccedilas com o salmo 244 descreve o homem que pode estar em seguranccedila na

montanha sagrada faria sentido ler esta passagem de Isaiacuteas da mesma maneira Aquele

que estaacute no monte santo vecirc o rei em sua beleza (Isaiacuteas 3317) e com sua majestade haacute

um lugar de rios largos e coacuterregos (Isaiacuteas 3321) Incecircndios ardentes o Senhor em

majestade como juiz e correntes fluidas de diante do trono ocorrem muito mais tarde nas

visotildees de Enoque onde fazem parte da visatildeo do ceacuteu Aleacutem disso naquele lugar eu vi a

fonte da justiccedila que natildeo se esgota e eacute cercada completamente por fontes numerosas da

sabedoriardquo (1 Henoque 481) Joel tambeacutem esperava que uma fonte fluiacutesse do Templo

no Dia do Senhor (Joel 318) A descriccedilatildeo mais detalhada desse rio encontra-se no livro

de Ezequiel na sua visatildeo do templo restaurado uma visatildeo que ocorreu no Ano Novo

isto eacute na eacutepoca da Festa dos Tabernaacuteculos (Ezequiel 401) Ezequiel viu a aacutegua fluir da

porta do templo (Ezequiel 471) e para fora para o leste Ela fluiacutea para o Mar Morto e

tornava as aacuteguas doces (Ezequiel 478) Os pescadores trabalhavam laacute e as aacutervores

cresciam nas margens do rio que produziam frutos todos os meses porque a aacutegua para

eles flui do santuaacuterio (Ezequiel 4712) Esta eacute uma referecircncia precoce ao tema da

fertilidade que ocorre em vaacuterios textos posteriores Ezequiel associou esta fertilidade

com o retorno do Senhor ao Templo a gloacuteria do Senhor entrou no Templo pela porta

oriental (Ezequiel 434) Zacarias tambeacutem associou a aacutegua do templo ao tempo da vinda

do Senhor Zacarias 14 descreve a batalha do Senhor contra seus inimigos como ele fica

a leste da cidade no Monte das Oliveiras Naquele dia fluiratildeo aacuteguas vivas de Jerusaleacutem

metade delas para o mar oriental e metade delas para o mar ocidental continuaraacute no

veratildeo como no inverno

109

E o Senhor se tornaraacute rei sobre toda a terra naquele dia o Senhor seraacute um e seu nome

um (Zacarias 148-9)

O capiacutetulo termina com todas as naccedilotildees que vecircm a Jerusaleacutem para celebrar os

Tabernaacuteculos A Revelaccedilatildeo de Joatildeo tambeacutem tinha a Festa dos Tabernaacuteculos como seu

cenaacuterio (Apocalipse 79) a realidade celestial que os rituais do templo representavam

No final de sua visatildeo Joatildeo viu o rio da vida brilhante como cristal fluindo do trono de

Deus e do Cordeiro pelo meio da rua da cidade tambeacutem de ambos os lados do rio a

aacutervore da vida com as doze espeacutecies de fruto dando o seu fruto a cada mecircs E as folhas

da aacutervore eram para a cura das naccedilotildees (Apocalipse 221-2)

Entatildeo ele viu a grande luz no Templo natildeo como se fosse o enorme candelabro dos

paacutetios do Templo mas a luz do Senhor Deus em seu meio

No Evangelho de Joatildeo Jesus tinha tido essa visatildeo da grande realizaccedilatildeo dos

Tabernaacuteculos O quarto Evangelho registra um incidente na festa (Joatildeo 714) quando

ele estava ensinando no Templo usando o tema dos Tabernaacuteculos No uacuteltimo dia da

festa o grande dia Jesus levantou-se e proclamou Se algueacutem tem sede que venha a

mim e beba quem crecirc em mim como diz a Escritura de seu coraccedilatildeo fluiratildeo rios de

aacutegua viva Ora isto ele disse sobre o Espiacuterito que os que nele creram foram receber

(Joatildeo 737 -9)

O Evangelho de Joatildeo natildeo interpreta de forma singular e exclusiva o siacutembolo dos rios

serem como o Espiacuterito no periacuteodo em questatildeo as aacuteguas do Eacuteden tinham vindo a

simbolizar o Espiacuterito de Deus ou mais frequentemente a Sabedoria de Deus que era

quase sinoacutenimo do Espiacuterito

Tinha chegado faz uma pergunta uma vez que implica que as aacuteguas do Eacuteden tinham

adquirido esse significado eacute possiacutevel que elas sempre tenham simbolizado o espiacuterito de

Sabedoria que deu vida agrave criaccedilatildeo A ideia do Espiacuterito como agente da criaccedilatildeo (Geacutenesis

12 e 27) ou de recreaccedilatildeo (Joel 22 3-8) era muito antiga Da mesma forma a Sabedoria

foi o agente da criaccedilatildeo (Proveacuterbios 822-31) e da recreaccedilatildeo (Sabedoria 727)

Ben Siraacute descreve a Sabedoria com terminologia do templo e conclui comparando-a

com os quatro rios do Paraiacuteso No sacraacuterio sagrado eu ministrara diante dele

(Eclesiastes 2410) Como caacutessia e espinho de camelo eu dei adiante o aroma de

especiarias e como mirra escolhida eu espalhei um odor agradaacutevel como galbanum

onycha e stacte e como a fragracircncia do incenso no tabernaacuteculo (Ben Siraacute 2415)

A Lei eacute entatildeo comparada agrave Sabedoria Enche os homens de sabedoria como o Pison e

como o Tigre no tempo das primiacutecias Ele os torna cheios de entendimento como o

110

Eufrates e como o Jordatildeo na eacutepoca da colheita Faz a instruccedilatildeo brilhar adiante como a

luz como o Gihon na eacutepoca da vindima (Ben Siraacute 2425-7)

Aleacutem do Jordatildeo estes satildeo os quatro rios em que o rio Eacuteden se dividiu enquanto fluiacutea

para regar a terra (Geacutenesis 210-14) Siraacute continua Saiacute como um canal de um rio e

como um canal de aacutegua para um jardim e disse Vou regar o meu pomar e encharcar o

meu jardim e eis que o meu canal se tornou um rio e o meu rio tornou-se um mar

(Ben Siraacute 2430-31) Este eacute o rio do templo de Ezequiel a sabedoria fluiacutea como os rios

do Eacuteden e como as aacuteguas do templo As duas passagens nas visotildees de Enoque

confirmam esta associaccedilatildeo

Na segunda visatildeo do trono celestial e do Filho do Homem Enoque viu diante do trono

Aleacutem disso naquele lugar eu vi a fonte da justiccedila que natildeo se esvazia e eacute cercada

completamente por fontes numerosas da sabedoria (1 Henoque 481) Diante do Filho

do homem no trono assim a sabedoria flui como aacutegua e gloacuteria eacute imensuraacutevel perante

ele pelos seacuteculos dos seacuteculos (1 Henoque 491) Tanto Geacutenesis Rabaacute como Enoque

dizem que os rios fluiacuteram do peacute da aacutervore da vida A aacutervore da vida cobriu uma viagem

de quinhentos anos e todas as aacuteguas primitivas se ramificaram em riachos sob ele

(Geacutenesis 156) E no meio deles estava a aacutervore da vida naquele lugar onde o Senhor

descansa E dois rios saem uma fonte de mel e leite e uma fonte que produz oacuteleo e

vinho E eacute dividido em quatro partes (2 Henoque 8 3 5)

O Veacuteu

ldquoO que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo siacutembolos

dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo feitas enquanto a

esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais excelentes que foram

reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador de todas as coisas deveria ser

tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de [sendo] o templo universal que [existiu]

antes do templo sagradordquo

Fiacutelon de Alexandria (Perguntas sobre Ecircxodo 1185)

Na extremidade ocidental do hekal estava a grande cortina o veacuteu que ocultava o trono

dos querubins Nem o livro de 1 Reis nem o profeta Ezequiel mencionam-no mesmo

que nas fontes do Ecircxodo e do livro de Croacutenicas existam descriccedilotildees bastante detalhadas

Na mitologia do Templo o veacuteu tornou-se o meio de expressar crenccedilas no limite da

experiecircncia humana O veacuteu em si simplesmente como peccedila de bordado deve ter sido

111

uma obra-prima da antiguidade natildeo eacute pois de surpreender que fosse levado como

saque juntamente com os tesouros de ouro e bronze quando o templo foi demolido

As vestes do sumo-sacerdote eram inseparaacuteveis do veacuteu estas eram elaboradamente

tecidas e bordadas quase como o veacuteu O veacuteu e as vestes complementavam-se O veacuteu

representava tudo o que se situava entre a perceccedilatildeo humana e a visatildeo de Deus com as

vestes a simbolizar a roupa do divino num mundo material que tambeacutem a ocultava

Assim o veacuteu e as vestes sacerdotais transmitiam aos primeiros cristatildeos a ideia da

encarnaccedilatildeo

O hekal representou a terra e o debir os ceacuteus entre estes estava o veacuteu que separava o

lugar santo do santiacutessimo (Ecircxodo 2633) o veacuteu representava a fronteira entre o mundo

visiacutevel e o invisiacutevel entre o tempo ea eternidade

As accedilotildees realizadas dentro do veacuteu natildeo eram deste mundo mas eram entendidas como

parte da liturgia celestial Aqueles que passaram pelo veacuteu foram os mediadores divinos

e humanos que funcionaram em ambos os mundos trazendo as oraccedilotildees e a penitecircncia

do povo para Deus e a becircnccedilatildeo e presenccedila de Deus para o povo

Todo este sistema foi expresso por intermeacutedio de um simbolismo intrincado

Simbolismo este que teraacute que ser reconstruiacutedo a partir dos fragmentos que chegaram aos

dias atuais Apesar das inuacutemeras lacunas no nosso conhecimento nesta secccedilatildeo faremos

alusatildeo a vaacuterios dos elementos constituintes desta realidade intriacutenseca agrave miacutestica do

templo

O veacuteu do templo natildeo eacute mencionado no relato do Templo de Salomatildeo em 1 Reis 6-8

mas eacute mencionado na passagem correspondente em 2 Croacutenicas E fez o veacuteu de azul de

puacuterpura de carmesim e de linho fino e fez nele querubins (2 Cr 313)

Nada eacute dito sobre o seu significado A cortina do tabernaacuteculo do deserto eacute descrita da

mesma forma E fareis um veacuteu de azul puacuterpura e carmesim e fino linho torcido

Em obra qualificada [trabalho de mangueira] seraacute feito com querubins (Ecircxodo 263 1

ver Ecircxodo 363 5) Tambeacutem aqui nada eacute dito do seu significado

Verificaacutemos a existecircncia de quaisquer debates apoacutes a destruiccedilatildeo do templo sobre se

havia algum veacuteu no primeiro templo A Mishnaacute diz que no dia da Expiaccedilatildeo o sumo-

sacerdote tinha de caminhar entre as duas cortinas ateacute chegar agrave arca Mas diz o

comentaacuterio sobre esta passagem A que estamos nos referindo aqui Se fosse o

primeiro santuaacuterio haveria entatildeo uma cortina Novamente se eacute para o segundo havia

entatildeo uma arca (B Yoma 52b) O que nos leva a constatar que havia uma tradiccedilatildeo de

duas cortinas no segundo templo que foram penduradas a um cocircvado de distacircncia de

112

modo a que uma passagem estreita existisse entre ambas A cortina exterior foi

colocada no lado sul e o interior no lado norte Ele foi junto entre eles ateacute chegar ao lado

norte quando chegou ao lado norte virou-se para o sul e prosseguiu com a cortina agrave sua

esquerda ateacute chegar agrave arcardquo (Mishnaacute Yoma 51) Devem ter existido vaacuterias dessas

grandes cortinas no templo eram tecidos muito valiosos O veacuteu era de um palmo de

espessura e era tecido em um tear com setenta e duas varas e sobre cada vara havia

vinte e quatro toacutepicos O seu comprimento era de quarenta cocircvados e a sua largura de

vinte cocircvados foi feito por oitenta e duas meninas e elas costumavam fazer dois em

cada ano (Mishnah Shekalim 85)

Tanto Antiacuteoco quanto Tito tomaram um veacuteu do templo entre seus espoacutelios em cento e

sessenta e nove aC Antiacuteoco Epiacutefanes levantou-se contra Jerusaleacutem com uma forccedila

forte ele arrogantemente entrou no santuaacuterio e tomou o altar de ouro o candelabro para

a luz e todos os seus utensiacutelios Ele tomou tambeacutema cortina (1 Macabeus 121) Este

veacuteu pode ter sido levado para o templo de Zeus Antiacuteoco rededicou o templo de

Jerusaleacutem ao Zeus Oliacutempico (2 Macabeus 62) e no segundo seacuteculo dC Pausacircnias

descreveu uma cortina oferecida no grande templo de Zeus em Oliacutempia Em Oliacutempia

haacute uma cortina de latilde adornada com tecelagem assiacuteria Eacute roxo feniacutecio que foi dedicada

por Antiacuteoco ldquo(Pausacircnias Descriccedilatildeo da Greacutecia V 122)

Natildeo haacute nenhuma prova de que essa era a cortina de Jerusaleacutem mas eacute uma possibilidade

viaacutevel Do mesmo modo em setenta dC Tito tomou a cortina do templo entre os seus

despojos juntamente com uma grande quantidade de latilde azul e puacuterpura Ele ordenou que

a cortina fosse mantida no seu palaacutecio de Roma (Josefo Guerra Judaica VII162) onde

um rabino do segundo seacuteculo a viu

Vendo tambeacutem manchas de sangue do dia da Expiaccedilatildeo Disse R Eleazar b R Yose

Eu mesmo vi isso em Roma e havia gotas de sangue sobre ele e ele disse-me Estas

satildeo as gotas de sangue do Dia da Expiaccedilatildeo (Tosefta Kippurim 2 16)

No primeiro seacuteculo dC Flaacutevio Josefo sabia que o veacuteu representava o mundo criado

ldquoAntes destas portas pendiam um veacuteu de igual comprimento de tapeccedilaria babiloacutenica

com bordados e linho fino de escarlate tambeacutem e de puacuterpura trabalhados com uma

habilidade maravilhosa Nessa mistura de materiais tudo tinha um significado miacutestico

tipificando o universo em que o escarlate parecia o emblema do fogo o linho fino da

terra o azul do ar e a puacuterpura do marrdquo

113

Josefo em dois casos compara a cor linho fino e puacuterpura pela sua origem como uma

que eacute produzida pela terra e outra pelo mar Retratando nesta tapeccedilaria um panorama

dos ceacuteus excetuando os sinais do zodiacuteaco (Guerra Judaica V 212-13)

Esta eacute a descriccedilatildeo da cortina exterior com Josefo a afirmar que o veacuteu interior era igual

Natildeo conseguimos identificar a origem deste simbolismo Seria um acrescento recente agrave

sabedoria do templo ou era algo antigo

A sua descriccedilatildeo do veacuteu do tabernaacuteculo do deserto eacute semelhante O tabernaacuteculo foi

coberto com cortinas tecidas de linho fino em que os tons de roxo e azul e carmesim

foram misturadas Esta cortina era de grande beleza sendo adornada com cada

espeacutecime de flor que a terra produz e entrelaccedilada com todos os outros projetos que

poderiam emprestar a seu adorno exceto somente as formas de criaturas vivas

(Antiguidades Judaicas III124 126)

As tapeccedilarias tecidas de quatro materiais denotam os elementos naturais Assim o

linho fino parece tipificar a terra porque dela brota o linho e a puacuterpura do mar uma vez

que estaacute encarnado com o sangue de peixe O ar deve ser indicado pelo azul e o

carmesim seraacute o siacutembolo do fogo (Antiguidades Judaicas III183)

Todo o tabernaacuteculo representava o universo em seus diferentes aspetos Na verdade

cada um desses objetos tem a intenccedilatildeo de recordar e representar o universo

(Antiguidades Judaicas III 180) Fiacutelon de Alexandria tambeacutem menciona este

simbolismo O mais elevado e no sentido mais verdadeiro o santo templo de Deus eacute

como devemos crer todo o universo tendo para o seu santuaacuterio a parte mais sagrada de

toda a existecircncia Adorna as estrelas para seus sacerdotes os anjos (Leis Especiais

166) Em outro lugar ele diz que a tecelagem da cortina representa o mundo criado ldquoO

que eacute falado eacute a obra dos materiais entrelaccedilados que satildeo quatro em nuacutemero e satildeo

siacutembolos dos quatro elementos terra aacutegua ar e fogo dos quais Coisas sublunares satildeo

feitas enquanto a esfera celestial [eacute feita] de uma substacircncia especial das coisas mais

excelentes que foram reunidas E assim ele achou certo que o templo divino do Criador

de todas as coisas deveria ser tecido de tal e tantas coisas como o mundo foi feito de

[sendo] o templo universal que [existiu] antes do templo sagradordquo (Perguntas sobre

Ecircxodo 1185)

Fiacutelon de Alexandria desenvolveu um conhecimento profundo sobre o papel do veacuteu que

separa a terra do ceacuteu e que separa a hekal do debir Pois no universo o ceacuteu eacute um

palaacutecio da mais alta santidade e a terra eacute a regiatildeo externa estimaacutevel em si mesma mas

quando comparada com o eacuteter tatildeo inferior a ela quanto a escuridatildeo eacute agrave luz e a noite ao

114

dia e corrupccedilatildeo agrave incorrupccedilatildeo e o homem mortal a Deus(Vida de Moiseacutes 11194) Este

veacuteu separava a mudanccedila do imutaacutevel Indica partes mutaacuteveis do mundo que satildeo

sublunares e sofrem mudanccedilas de direccedilatildeo e a regiatildeo celestial que natildeo tem eventos

transitoacuterios e eacute imutaacutevel (Perguntas sobre Ecircxodo 1191) O mobiliaacuterio do hekal tal

como a mesa e a menoraacute representavam o mundo celestial no mundo dos sentidos E

satildeo colocados fora do veacuteu porque as coisas no recesso interior satildeo invisiacuteveis e

inteligiacuteveis enquanto aqueles que satildeo externos satildeo visiacuteveis e sensiacuteveis percetiacuteveis

(Perguntas sobre Ecircxodo 1195)

A lacircmpada era de ouro porque ela simbolizava uma substacircncia mais pura o proacuteprio ceacuteu

(Perguntas sobre Ecircxodo 1173) Clemente de Alexandria recorreu ao simbolismo da

cor ao explicar o significado miacutestico do tabernaacuteculo E a cobertura eo veacuteu eram

vareados com azul puacuterpura escarlate e linho E assim foi sugerido que a natureza dos

elementos continha a revelaccedilatildeo de Deus Porque a puacuterpura eacute da aacutegua o linho da terra

azul sendo escuro eacute como o ar o escarlate eacute como o fogo (Stromata V6) A cortina

tambeacutem apareceu nos escritos dos miacutesticos judeus No Livro Hebraico de Henoque (3

Henoque) Metatron revelou a R Ismael os segredos da grande cortina espalhada pelo

Santo Uma vez que este escrito era o relato de uma ascensatildeo celestial a cortina foi

descrita do outro lado e relatada como era a cortina para aqueles que a viram do ceacuteu O

veacuteu dividia este mundo do aleacutem para Fiacutelon o veacuteu era o limite entre a criaccedilatildeo visiacutevel e a

invisiacutevel Em 3 Henoque o veacuteu eacute empregue no sentido temporal O autor fala-nos de

como o veacuteu representou toda a histoacuteria da humanidade simultaneamente no mundo aleacutem

do tempo Todos os elementos da histoacuteria podiam ser vistos no veacuteu assim como todos os

elementos do mundo criado Esta visatildeo da histoacuteria do aleacutem eacute importante para a nossa

compreensatildeo dos textos profeacuteticos e apocaliacutepticos Em termos da mentalidade e da

vivecircncia destes leitores a visatildeo do futuro era a visatildeo da eternidade um vislumbre da

realidade subjacente ao tempo237

Por Detraacutes do Veacuteu

Para laacute do veacuteu estava o mundo fora do tempo o santuaacuterio interior era o lugar

onde ocorriam as visotildees provenientes da eternidade e sobre o que era eterno O que era

237Cf Barker Margaret (1990) 104-107

115

eterno era oculto as palavras hebraicas para eternidade e esconder vecircm da mesma raiz

lm

Agraves vezes estas visotildees eram descritas com imagens de julgamento agraves vezes eram

apresentadas como panoramas da histoacuteria As visotildees do santuaacuterio nos textos posteriores

descrevem muitas vezes como o vidente a partir de um lugar alto olhou para baixo e viu

toda a criaccedilatildeo tanto no tempo quanto no espaccedilo simultaneamente diante dele

O exemplo mais expliacutecito desta tradiccedilatildeo encontra-se presente no 3 Henoque um texto

que embora tardio preservou muitas crenccedilas antigas No seu relato rabi Ismael tinha

sido levado pelos ceacuteus pelo grande anjo Metatron que antigamente era o vidente

Henoque Ele registrou sua experiecircncia uma das quais foi ver o veacuteu celestial

Rabi Ismael disse Metatron disse-me Vem e eu te mostrarei a cortina do

Omnipresente que estaacute espalhada diante do Santo bendito seja Ele e sobre o qual estatildeo

impressas todas as geraccedilotildees do mundo e todas as suas obras realizadas ou por realizar

ateacute a uacuteltima geraccedilatildeo (3 Henoque 451) Apoacutes esta visatildeo segue-se uma longa descriccedilatildeo

da histoacuteria de Israel desde os primeiros tempos ateacute os dias do Messias ainda por vir

Todo o resto dos liacutederes de toda geraccedilatildeo e de toda accedilatildeo de toda geraccedilatildeo tanto de Israel

quanto dos gentios realizadas ou por realizar no tempo vindouro por todas as geraccedilotildees

ateacute o fim dos tempos foram impressas na cortina do Omnipresente (3 Enoque 456)

O veacuteu filtrou todas as limitaccedilotildees do tempo e do espaccedilo e deu ao miacutestico visionaacuterio uma

visatildeo da criaccedilatildeo a partir do trono divino Aqueles que passaram aleacutem do veacuteu

ultrapassaram as limitaccedilotildees impostas pelo que este representava

Ecos desta ideia ressoam na experiecircncia cristatilde primitiva que descreveu Jesus como o

verdadeiro Sumo-sacerdote que se cobriu de carne como o sumo-sacerdote se cobria das

vestes que complementavam o veacuteu Atravessando o veacuteu da sua carne atraveacutes dos ceacuteus o

escritor da epiacutestola aos hebreus concluiacutea que Jesus era uma parte do mundo para laacute do

veacuteu Jesus Cristo eacute o mesmo ontem e hoje e para semprerdquo (Hebreus 138)

Muitas das visotildees profeacuteticas na Biacuteblia Hebraica ligam-se diretamente agrave simboacutelica do

veacuteu os profetas reivindicaram ter uma visatildeo especial dos caminhos de Deus

Certamente o Senhor natildeo faz nada sem revelar o seu segredo aos seus servos os

profetas (Amos 37) A primeira referecircncia que encontramos a uma visatildeo panoracircmica

da histoacuteria da altura do santuaacuterio encontra-se em 1 Henoque Trecircs dos arcanjos

agarraram a matildeo de Henoque e levaram-me das geraccedilotildees da terra elevando-me para

um lugar alto e mostraram-me uma torre alta acima da terra e todos os montes eram

116

pequenos Um deles disse-me Permanece aqui ateacute veres tudo o que aconteceraacute (1

Henoque 873-4)

A torre era uma descriccedilatildeo comum do Santo dos Santos a referecircncia mais antiga agrave torre

como um lugar de visatildeo encontra-se no profeta Habacuque ldquoFicarei de peacute em meu

posto de guarda me colocarei sobre minha muralha e espreitarei para ver o que me diraacute

e o que responderaacute agrave minha queixa Entatildeo Iahweh respondeu-me dizendo lsquoEscreve a

visatildeo grava-a claramente sobre taacutebuas para que se possa ler facilmente Porque eacute ainda

visatildeo para tempo determinado Ela aspira por seu termo e natildeo engana se ela tarda

espera-a porque certamente viraacute e natildeo falharaacuterdquo (Habacuque 21-3)

Em 1 Henoque quando os exilados retornaram construiacuteram uma torre alta e ofereceram

patildeo na mesa diante da torre (1 Henoque 8973) Este patildeo deve ter representado

simbolicamente o patildeo da proposiccedilatildeo que foi estabelecido no hekal diante do santuaacuterio

Outro documento visionaacuterio a Assunccedilatildeo de Moiseacutes refere que o Deus do ceacuteu faraacute o

paacutetio do seu tabernaacuteculo e a torre do seu santuaacuterio (Ass Mos 24)

O cacircntico da vinha no profeta Isaiacuteas (Is 51-7) identificou a vinha do Senhor dos

Exeacutercitos com a casa de Israel Uma interpretaccedilatildeo atribuiacuteda a R Yosi no iniacutecio do

segundo seacuteculo dC acrescenta E ele construiu uma torre no meio delaeste eacute o

santuaacuterio (Tosefta Sukkah 315)

As visotildees no Apocalipse de Baruque ocorreram no santuaacuterio Quando questionado sobre

o desastre que tinha acontecido a Jerusaleacutem ele disse Longe de mim abandonar-te ou

retirar-me de ti eu soacute irei ao Santo dos Santos para consultar o Poderoso em relaccedilatildeo a ti

e a respeito de Siatildeo se em algum aspeto eu deva receber mais iluminaccedilatildeo (2 Baruque

34) Mais tarde o profeta descreve o estado final dos abenccediloados ldquoPois eles veratildeo o

mundo que agora eacute invisiacutevel para eles e eles veratildeo o tempo que agora estaacute escondido

deles E o tempo natildeo mais os envelheceraacute Pois nas alturas daquele mundo habitaratildeo e

se tornaratildeo semelhantes aos anjos e seratildeo iguais agraves estrelasporque ali se espalharatildeo as

extensotildees do Paraiacuteso e lhes seraacute mostrado a beleza da majestade das criaturas vivas que

estatildeo debaixo do tronordquo (2 Bar 51 8-10)

A Moiseacutes tinham sido mostrados todos os segredos quando ele estava na presenccedila de

Deus ldquoPorque ele mostrou-lhe muitas admoestaccedilotildees juntamente com os princiacutepios da

Lei e da consumaccedilatildeo dos temposE tambeacutem o modelo de Siatildeo e suas medidas no

modelo do qual o santuaacuterio do tempo presente deveria ser feito Mas entatildeo ele mostrou-

lhe as medidas do fogo tambeacutem as profundezas do abismo e o peso dos ventos e o

117

nuacutemero de gotas de chuva E a altura do ar e a grandeza do paraiacuteso e da consumaccedilatildeo

das eras e do iniacutecio do dia do juiacutezordquo (2 Bar 594-5 e 8)

O veacuteu era assim o meio de esconder e revelar o divino representava o mundo material

e portanto ocultava mas revestia o divino e assim tornava-o visiacutevel Saindo da

presenccedila de Deus aquele que tanto revela como eacute revelado eacute um dos grandes temas do

Quarto Evangelho (Joatildeo 313 638 823) A Ascensatildeo de Isaiacuteas enfatizou ainda mais

esta noccedilatildeo O Senhor realmente desceraacute ao mundo nos uacuteltimos dias [ele] que seraacute

chamado Cristo depois que ele descer e se tornar como tu em forma e eles vatildeo pensar

que Ele eacute carne e homem (Asc Isaiacuteas 913) A Epiacutestola aos Hebreus menciona um que

fora enviado e passou de volta pelo veacuteu o sumo-sacerdote (Hb 31)

Em todos estes documentos encontramos a mesma ideia baacutesica de passar do invisiacutevel

para o visiacutevel do debir e do que ele representava para o hekal e para este mundo O

debir era o lugar intemporal o lugar dos mitos os princiacutepios sobre os quais a criaccedilatildeo foi

construiacuteda e pelo qual ela deveria ser compreendida Por uma nova atualizaccedilatildeo desses

mitos um novo comeccedilo foi feito e um novo processo criativo comeccedilou238

ldquoJesus disse Eu vos darei o que os olhos natildeo viram e o que os ouvidos natildeo escutaram e

o que matildeo natildeo tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo (loacutegion 17)

Esta eacute a realidade oculta pelo veacuteu o siacutembolo da perceccedilatildeo limitada do ser humano

Como jaacute foi referido o Santo dos Santos assume neste evangelho vaacuterias representaccedilotildees

simboacutelicas eacute o lugar onde a luz procedeu de si mesma o lugar da vida o Eacuteden o

proacuteprio Jesus

No simbolismo do templo a experiecircncia visionaacuteria miacutestica ocorria neste santuaacuterio mais

iacutentimo para laacute do veacuteu Este era o lugar onde os visionaacuterios recebiam os segredos

celestiais ldquoJesus disse Costumo contar os meus misteacuterios aos que satildeo dignos dos meus

misteacuteriosrdquo (lg 62)

O talmude babiloacutenico registou a crenccedila de que os anjos traziam revelaccedilotildees atraveacutes do

veacuteu muitas vezes mensagens de natureza importante ldquoGabriel trouxe conselhos sobre o

imposto das apostas (Yoma 77a) e Satanaacutes revelou um segredo a Abraatildeo Atraacutes da

cortina (b Sanhedrin 89b) A histoacuteria foi contada de um homem que era repreendido

por sua esposa que saiu e passou a noite num cemiteacuterio Ele ouviu dois espiacuteritos

falando entre si Disse um Minha querida vem e vamos vagar pelo mundo e ouvir por

traacutes da cortina que sofrimento estaacute vindo sobre o mundo A sua companheira disse-lhe

238Cf Barker Margaret (1990) 127-128

118

Eu natildeo sou capaz porque estou enterrada numa esteira de juncos Mas vai e tudo o que

ouvires conta-me Entatildeo o outro foi e andou por aiacute e voltou Disse-lhe seu companheiro

Minha querida o que ouviste por traacutes da cortina Ela respondeu Ouvi dizer que quem

semeia apoacutes a primeira chuva teraacute suas colheitas feridas pelo granizo (B Berakoth 18b)

O homem ouvindo no cemiteacuterio foi capaz de lucrar com esta informaccedilatildeo Em outros

lugares a cortina tornou-se simplesmente o nome do primeiro dos sete ceacuteus Wilon o

nome do primeiro ceacuteu era um nome para a cortina derivada do latim velum (b Hagigah

12b)

A Grande Luz

ldquoJesus disse Eu sou a Luz A que estaacute acima de todos Eu sou o Todo O Todo

proveio de mim e o Todo chegou a mim Trazei-me um madeiro Eu estou ali Levantai

a pedra e ali me encontrareisrdquo (loacuteg 77)

ldquoJesus disse o que conhece o Todo estaacute privado do conhecimento de si mesmo estaacute

privado do Todordquo (loacuteg 67)

No Evangelho de Tomeacute Jesus fala como um saacutebio mas ele natildeo eacute caraterizado apenas

como um saacutebio ele eacute por vezes a proacutepria Sabedoria a falar Iacutentima de Deus agente na

criaccedilatildeo reveladora dos misteacuterios divinos a luz dentro da qual a imagem de Deus se

oculta ndash estas satildeo todas as carateriacutesticas de Jesus como Sabedoria no Evangelho de

Tomeacute Neste evangelho Jesus ocupa um lugar distinto de todos os outros mensageiros de

Deus que o precederam Neste contexto concreto do lg 52239 a expressatildeo ldquoaquele que eacute

vivordquo aparece no lg 59240 e no lg 111241 estes trecircs ditos satildeo os uacutenicos a utilizar esta

expressatildeo Jesus encoraja o disciacutepulo a viver por aquele que eacute vivo ele eacute a alternativa

para a morte Aqueles que natildeo olham para ele nem vivem por ele falham ldquofalam sobre

os mortosrdquo ldquomorrem e falham em vecirc-lordquo e ldquoexperimentam a morterdquo Pelo texto os

disciacutepulos parecem natildeo compreender a identidade de Jesus ele partilha uma natureza

com a luz interior que permeia o mundo inteiro e com a essecircncia do tempo presente

239 ldquoOs seus disciacutepulos disseram-lhe Vinte e quatro profetas falaram em Israel e todos falaram

por ti Ele disse-lhes Deixais na vossa frente aquele que eacute vivo e ponde-vos a falar dos mortosrdquo 240 ldquoJesus disse Os ceacuteus enrolar-se-atildeo e tambeacutem a terra diante de voacutes e aquele que eacute vivo

vindo do Vivo natildeo veraacute a morte nem [medo]helliprdquo 241 ldquoJesus disse Olhai para aquele que eacute vivo enquanto estiverdes vivos natildeo vaacute acontecer que

morrais e tenteis entatildeo vecirc-lo sem o poderdes verrdquo

119

O lugar de Jesus em Tomeacute eacute o lugar da luz Jesus habita naqueles que tecircm luz e eacute a luz

do mundo Os disciacutepulos podem ser a luz do mundo ao encontrarem Jesus Esta noccedilatildeo

deriva da tradiccedilatildeo sapiencial e podemos chamaacute-la de cristologia sapiencial como

expressa o lg 77242 A figura de Jesus na textualidade de Tomeacute dificilmente se limita agrave

figura de um mensageiro saacutebio ou de um amigo da sabedoria ele eacute a proacutepria Sabedoria

criando iluminando e penetrando todas as coisas

Em referecircncia agrave existecircncia humana Jesus eacute a Sabedoria a luz interior daqueles que tecircm

a luz ldquoA sabedoria eacute mais aacutegil que todo o movimento atravessa e penetra tudo graccedilas agrave

sua pureza Ela eacute um sopro do poder de Deus uma irradiaccedilatildeo liacutempida da gloacuteria do logia

Omnipotente por isso natildeo se pode encontrar nela a menor mancha Ela eacute o resplendor

da luz eterna o espelho sem mancha da atividade de Deus e a imagem da sua

bondade243 Esta passagem estabelece paralelismos com a caracterizaccedilatildeo de Jesus em

Tomeacute ele eacute uma luz interior e tambeacutem exterior que atravessa todas as coisas num

movimento constante Sendo uma imagem da vida de Deus eacute uma luz proacutepria que liga

o humano ao divino uma luz primordial de onde o Todo surgiu e para onde o Todo

regressa

Aqui natildeo temos uma ideia panteiacutesta mas temos uma tradiccedilatildeo sapiencial judaica que

atribui agrave Sabedoria este papel de atravessar e estar em todas as coisas como uma

imanecircncia divina no mundo e no homem

Em Proveacuterbios 81-21 a Sabedoria chama o ser humano agrave instruccedilatildeo pedindo que a

procure e encontre Assim tambeacutem Jesus aparece na terra em Tomeacute com um chamado

para os que satildeo chamados a encontraacute -lo A vinda de Jesus neste contexto tem um

aspeto cosmoloacutegico A vinda da Sabedoria ocorreu no tempo primordial antes da

criaccedilatildeo este eacute o ponto central do poema da Sabedoria em Proveacuterbios 822-31

Para encontrar a Sabedoria o ser humano num certo sentido deve regressar agrave eacutepoca

primordial o tempo antes do tempo

A vinda de JesusSabedoria natildeo tem tempo primordial e permite ao cristatildeo que

encontrou a Sabedoria ou Aquele que vive a existir no presente no iniacutecio Assim no lg

19 Jesus pode afirmar Feliz aquele que jaacute era antes de ter existido

242 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 243Sb 724-26

120

O ambiente intelectual de Tomeacute pode aprofundar a nossa perceccedilatildeo da figura da luz o

termo luz em Tomeacute eacute equivalente a logos e demonstra que Tomeacute interpreta Gn 1-2

da mesma forma que Fiacutelon de Alexandria244

A luz no Geacutenesis descreve o iniacutecio do iniacutecio a primazia do termo logos pressupotildee

mais especulaccedilatildeo filosoacutefica no texto inaugural da biacuteblia No primeiro dia tudo o que

existia era luz e na perspetiva de Tomeacute essa luz nunca partiu os lg 24245 e

77246expressos em termos de logos declaram que o logos eacute aquilo de onde todas as

coisas proveem e se estendem O logos eacute imanente no mundo e existe dentro do ser

humano atraveacutes de logos no interior do ser o eleito apreende o logos presente no

interior do mundo247 e consequentemente torna-se conhecido como uma crianccedila de

Deus (lg 3)

A imagem da grande luz eacute relevante para o estudo do Evangelho de Tomeacute na medida

em que permite-nos aferir a representaccedilatildeo da figura de Jesus e tambeacutem a dimensatildeo em

que este se situa e estaacute presente

Neste evangelho a figura de Jesus eacute concebida com a figura da Sabedoria na tradiccedilatildeo

judaica conceito este que assume muacuteltiplas formas de modo a Jesus tambeacutem ser

concebido de vaacuterias formas no texto de Tomeacute

Em Tomeacute natildeo encontramos uma cristologia analiacutetica e sistemaacutetica o texto trabalha com

siacutembolos e metaacuteforas que convidam agrave reflexatildeo e esforccedilo mental da interiorizaccedilatildeo

Este evangelho natildeo convida o seu leitor a converter-se a uma verdade dogmaacutetica antes

pressupotildee uma autodescoberta uma mudanccedila de perceccedilatildeo da realidade e do divino

podendo uma metaacutefora de iluminaccedilatildeo adequar-se ao momento de conversatildeo no

Evangelho de Tomeacute

O siacutembolo da luz no templo apresenta vaacuterios elementos esclarecedores do papel da luz

em todo o processo descrito no Evangelho de Tomeacute

244Cf Davies L S (1992) 245 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Mostra-nos o lugar em que estaacutes uma vez que nos eacute

necessaacuterio procuraacute lo Ele disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de

um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo 246 ldquoJesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim e o

Todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareisrdquo 247 ldquoJesus disse Se os vossos guias vos disserem Olhai o Reino estaacute no ceacuteu entatildeo os paacutessaros

do ceacuteu vos precederatildeo Se vos disseram estaacute no mar entatildeo os peixes vos precederatildeo Mas o

Reino estaacute dentro de voacutes e estaacute fora de voacutes Quando vos chegueis a conhecer a voacutes proacuteprios

entatildeo sereis conhecidos e sabereis que voacutes sois os filhos do Pai vivente Mas se voacutes natildeo vos

conhecerdes entatildeo ficareis na pobreza e sereis a pobrezardquo Lg 3

121

O equinoacutecio de outono provavelmente poderaacute ser uma imagem frequentemente usada do

Senhor como Rei ldquoQue o teu rosto resplandeccedila sobre teu servo salva-me no teu amor

lealrdquo (Salmos 3116) ldquoDe Siatildeo a perfeiccedilatildeo da beleza Deus brilhardquo (Salmos 502) Que

Deus tenha misericoacuterdia de noacutes e nos abenccediloe e faccedila resplandecer seu rosto sobre noacutesrdquo

(Salmos 671) ldquoTu que estaacutes entronizado sobre os querubins resplandece Restaura-

nos oacute Deus brilhe o teu rosto para que sejamos salvosrdquo (Salmo 801 3)

Os versos poeacuteticos de Isaiacuteas satildeo tambeacutem parte deste cenaacuterio poeacutetico ldquoO povo que

andava em trevas viu uma grande luzrdquo (Isaiacuteas 92) ldquoLevanta-te resplandece porque

vossa luz veio e a gloacuteria do Senhor se levantou sobre voacutes Pois eis que a escuridatildeo

cobriraacute a terra E a escuridatildeo os povos mas o Senhor se levantaraacute sobre voacutes e a sua

gloacuteria seraacute vista sobre voacutesrdquo (Isaiacuteas 601-2)

A mais antiga becircnccedilatildeo conhecida dos sumos-sacerdotes registada nas escrituras eacute uma

das uacuteltimas oraccedilotildees da Biacuteblia Hebraica eacute a oraccedilatildeo de Daniel escrita no seacuteculo II aC

Ambas usam esta imagem de ldquoO Senhor levante seu semblante sobre ti e te decirc a pazrdquo

(Nuacutemeros 624-6)ldquoOacute Senhor faz resplandecer o teu rosto sobre o teu santuaacuterio que eacute

desoladordquo (Daniel917)

A porta do templo estava voltada para o leste No equinoacutecio de outono sugere-se que os

raios do sol nascente teriam brilhado atraveacutes do portatildeo e iluminado o grande trono

dourado no debir248 Isto simbolizava a vinda do Senhor ao seu povo Encontramos este

simbolismo no profeta Ezequiel quando este descreve a gloacuteria do Senhor retornando ao

templo

A sua visatildeo ocorreu no Ano Novo (Ezequiel 401) E eis que a gloacuteria do Deus de Israel

veio do oriente e o som da sua vinda era como o som de muitas aacuteguas e a terra brilhou

com a sua gloacuteria (hellip) Quando a gloacuteria do Senhor entrou no templo pela porta virada

para o oriente o Espiacuterito me levantou e me levou ao paacutetio interior e eis que a gloacuteria do

Senhor encheu o templo (Ezequiel 432 4 5) Zacarias tambeacutem cantou esta aurora

quando o Senhor viesse de encontro ao seu povo O dia nos nasceraacute do alto para

iluminar os que se assentam nas trevas (Lc 178-9)

Estas imagens tiveram origem numa realidade anterior natildeo possuiacutemos no presente os

meios para reconstruir o mundo perdido do antigo templo com detalhes exatos e

evidecircncias fiacutesicas significativas As nossas fontes flutuam na literatura sobrevivente

nos relatos e nas informaccedilotildees muitas vezes contraditoacuterias O padratildeo de significados estaacute

248Cf Barker Margaret (1990) 148-150

122

diretamente relacionado com as mentalidades e as vivecircncias dos escribas e das classes

detentoras do conhecimento

Uma das informaccedilotildees mais relevantes que temos da reforma do Josias ao Templo

encontra-se no 2 livro de Reis 2311 ldquoEle removeu os cavalos que os reis de Judaacute

tinham dedicado ao Sol agrave entrada da casa do Senhor (hellip) e queimou os carros do solrdquo

Esta reforma foi legitimada por um movimento de purga nacional de todos os elementos

pagatildeos agrave escola deuteronomista Alguns destes siacutembolos eram elementos constituintes

da religiatildeo do primeiro templo

O ritual do templo tornou visiacutevel o mundo do templo celestial a realidade divina os

profetas viram isso no Santo dos Santos O ritual do templo derivava do mundo das

visotildees dos profetas

Neste mundo o Senhor era identificado com a luz que resplandece sobre o seu povo No

Santo dos Santos no lugar do trono a luz emanava da proacutepria face do Senhor Como

emana do Jesus Vivente quando o adepto compreendia estas afirmaccedilotildees ldquoJesus disse

Conhece aquele que estaacute diante de ti e o que estaacute oculto ser-te-aacute desvelado Porque natildeo

haacute nada oculto que natildeo seja reveladordquo (lg 5)

A Exegese de Tomeacute a Geacutenesis 1

A teologia do Evangelho de Tomeacute baseia-se nas narrativas da criaccedilatildeo relatadas no

livro de Geacutenesis melhor dizendo na exegese interpretativa destas histoacuterias

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas249

Desde os judeus que viviam no Egito250 que liam a Septuaginta agrave luz da filosofia

grega251ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A teologia de Tomeacute natildeo

apresenta traccedilos totalmente gnoacutesticos a sua exegese de Geacutenesis articula convicccedilotildees

generalizadas na exegese judaica e tambeacutem partilhadas por Paulo (Romanos 119)

A sua exegese viaja atraveacutes do tempo em busca do momento antes da criaccedilatildeo coacutesmica

abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial apareceu no ldquoprimeiro

249Cf Pagels E H (1999) 480 250Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Filon de Alenxadria representa o

pensamento vigente desta corrente judaica 251O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeus e Parmeacutenides

123

diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do antrophos primordial ndash

que o lg 77 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde todas as coisas surgiram252

Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo de Gn 126-27 que

descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo com o lg 84 Jesus

declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que chegaram a ser o

vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz primordialantropos Lg 22 e

61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo retratam a perda subsequente da

condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo

ldquodivididardquo privada da imagem divina

Aqueles que superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual lg 11

e 61) recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial

anthropos (lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo

As exegeses heleniacutesticas e rabiacutenicas assim como Fiacutelon e Poimandres apresentam

bastantes afinidades com este esboccedilo exegeacutetico criado por Tomeacute253

252Cf Pagels E H (1999) 480 253Cf Idem

Ditos em Tomeacute que se referem agraves narrativas da Criaccedilatildeo

Lg 411181937495077838485 e mais implicitamente Lg 222461 e 70

Para traccedilarmos a exegese do Evangelho

de Tomeacute aos textos do mito da criaccedilatildeo

presentes em Geacutenesis devemos procurar

ler Tomeacute desde o iniacutecio colocando a

hipoacutetese que os ditos natildeo estatildeo

dispostos de forma aleatoacuteria

No primeiro dito Jesus promete uma grande recompensa aquele

que conseguir interpretar os ditos natildeo provaraacute a morte (lg 1) o

poder que Adatildeo provou e que fez cair todos os seus descendentes

(lg 85) Lg 2 acrescenta que quem permanecer na busca iraacute

recuperar o lugar de nascimento de Adatildeo ldquoreinaraacute sobre o todordquo

(Gn 126-28) O contraste com Adatildeo continua no lg 3 fazendo eco

a Gn 126-28 avisando que aqueles que perdem o reino andaram

atraacutes dos paacutessaros do ceacuteu e dos peixes do mar em vez de os

governarem Aqueles que falharem em conhecer-se a si mesmos

como ldquofilhos do Pai Viventerdquo ficaratildeo na pobreza contrastando com

a situaccedilatildeo de Adatildeo que tinha grande poder e riqueza (lg 85) O Lg

4 continua a falar da situaccedilatildeo de Adatildeo ldquoa crianccedila pequena de sete

diasrdquo habita no lugar da vida no princiacutepio do tempo no sexto dia

da criaccedilatildeo Assim como aqueles que satildeo velhos devem renascer

(Jo 3 5-6) aqueles que satildeo muitos se tornaratildeo um e o mesmo

um soacute recuperando a imagem singular de Deus originalmente

concedida na criaccedilatildeo (Gn 127) O princiacutepio subjacente no lg 4 (e

relacionados 22 e 61) eacute a inferecircncia que seu autor compartilha

com Fiacutelon de Alexandria Poimandres e certos exegetas rabiacutenicos

como R Samuel bar Nachman que Gn 127 descreve a criaccedilatildeo

humana como um processo que ocorreu em duas fases Quando

Deus criou Adatildeo agrave sua imagem ele primeiro criou um ser

124

Antes da criaccedilatildeo humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a

luz que apareceu no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbuiacute toda

a criaccedilatildeo estando debaixo das pedras ou dos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz

manifestou-se de facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que

fala na primeira pessoa com uma voz humana

Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico tradiccedilatildeo judaica mas em

simultacircneo retrata Jesus como sendo esse ser

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

ldquoPoimandresrdquo diz que de acordo com gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute tem o Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que simultaneamente imbuiacute o universo brilhando por

todos os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute

uma emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que simultaneamente manifesta o divino o

protoacutetipo do ser humano e a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo254

A questatildeo do lg 50 acerca da identidade dos disciacutepulos tambeacutem se enquadra de

modopertinenteem Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um movimento e um repouso A

atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos inicia-se com o movimento do

espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis dias da criaccedilatildeo e o repouso

divino no seacutetimo dia

Assim o grupo de logia que interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus

atraveacutes da imagem divina dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24 Jesus repreende

aqueles que tentam procurar Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se

encontrava ele redireciona a questatildeo para a luz oculta no interior

254Cf Pagels E H (1999) 484

singular (agrave imagem de Deus o criou) mas logo depois disso o

homem passou a ser uma espeacutecie divida dividida em macho e

fecircmea 1 27b) Lg 11 descreve o dilema que essa evoluccedilatildeo

causou No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando

chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

O tema central que interliga o conjunto de palavras aqui discutidas

eacute a esperanccedila do disciacutepulo ser restaurado da sua existecircncia

presente e dividida de volta agrave imagem do uacutenico original - a

unidade com os anthropos primordiais realccedilados no lugar da luz

125

ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os

disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo 146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta

dentro deles255 Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a luz primordial entatildeo essa luz eacute

ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao homem e a luz que haacute nelas

oculta-se na imagem da luz do Pai Manifestar-se-aacute e a sua imagem (ficaraacute) oculta pela

sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem divina o disciacutepulo natildeo

conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos torna-se esclarecedor

pelo menos ateacute certo niacutevel que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico

que diz ao disciacutepulo para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a

humanidade ou alguma parte dela eacute naturalmente divina

Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a forma da criaccedilatildeo original Aqui temos

duas mentalidades completamente diferentes no quadro do pensamento do II seacuteculo

A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo pressupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a

fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a exegese que nele realizou que como vimos

era bastante comum no seu tempo

A Imagem e a Luz

ldquoQuando fizerdeshellipuma imagem em lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

Lg 22

A imagem e o siacutembolo na metaacutefora poeacutetica da narrativa escrita permitiram aos escribas

da antiguidade expressarem a sua imaginaccedilatildeo inspirada Uma criatividade arrebatada

pela metaacutefora do sonho alegoacuterico e pela busca dos significados profundos da vida

Antes de prosseguirmos a uma anaacutelise dos conceitos de ldquoimagemrdquo e ldquoluzrdquo no Evangelho

de Tomeacute iremos contextualizar algumas das tradiccedilotildees textuais que influenciaram estes

conceitos

Fiacutelon de Alexandria numa passagem da sua obra De somniis 1227-232 descreve uma

experiecircncia visionaacuteria acerca de uma passagem da versatildeo grega de Geacutenesis 3113 ldquoEu

sou o Deus que apareceu a ti no lugar de Deusrdquo

Fiacutelon comentou a frase ldquono lugarrdquo explicando que ldquopara almas que ainda tecircm um

corpordquo Deus assume ldquoa semelhanccedila de anjosrdquo A natureza divina nunca muda o ser

255Cf Idem

126

humano apenas a encontra numa forma diferente O autor ainda argumenta que alguns

pensam que quando veem esta ldquoimagem (εικόνα)rdquo estatildeo a ver a proacutepria forma original

arquetiacutepica

Aqueles que forem ldquoincapazes de ver o proacuteprio sol vecircm o seu brilho e confundem-no

com o solrdquo256 Fiacutelon ainda comenta que natildeo eacute surpreendente que Agar tenha confundido

o anjo que a encontrou no deserto como sendo o proacuteprio Deus257

Apesar dos anjos natildeo serem descritos como ldquogeacutemeosrdquo dos seres humanos Fiacutelon de

Alexandria estava ciente da tradiccedilatildeo que conhecia os anjos como ldquoimagensrdquo Ele

argumentou a existecircncia de um processo de individualizaccedilatildeo desses anjos ou lsquoimagensrsquo

sendo que estes podem ser encontrados pelo ser humano Nestas passagens encontramos

evidecircncias para situar a noccedilatildeo dos anjos como imagens celestiais como uma parte do

judaiacutesmo anterior ao pensamento judaico cristatildeo258

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morrem nem se revelem

quanto suportareisrdquo259

O lg 84 apresenta os vaacuterios elementos da mitologia da separaccedilatildeo e do retorno ao estado

primordial Este logia afirma que cada pessoa tinha uma imagem eterna que veio a

existir antes do corpo humano Esta era a imagem perdida de Adatildeo escondida da

pessoa Neste logioacuten a linguagem miacutetica descreve o transcendente como sendo um

objeto exterior Uma imagem divina na esfera celeste selada ao contacto do ser

humano No lg 83 a linguagem eacute empregue em termos psicoloacutegicos tratando o elemento

divino como uma realidade oculta dentro da pessoa Em ambos os casos estes logia

afirmam que houve uma separaccedilatildeo entre o transcendente e o divino

Jesus alude a esta separaccedilatildeo no lg 11 No dia em que eacutereis um chegastes a ser dois

Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que fareisrdquo

De acordo com este logioacuten a divisatildeo envolve o ser existir separado da sua imagem

celestial esta mitologia enquadra-se na tradiccedilatildeo judaica referente ao primeiro homem

criado agrave imagem e semelhanccedila de Deus260 Este homem continha em si uma parte da

Kavod de Deus mas o esplendor foi-lhe retirado apoacutes a queda em Geacutenesis Rabbah 11

Rabi Simon ben Judah diz que os rabinos o afirmam

256De somniis 1239 257De somniis 1240 258Cf Deconick D April (1996) 156 259Lg 84 260Deconick D April (1996) 158

127

ldquoA gloacuteria de Adatildeo natildeo se manteve durante a noite com ele Qual eacute a prova Mas Adatildeo

natildeo passou a noite em gloacuteria (Salmos 4913) Os rabinos mantecircm Sua gloacuteria morou

com ele mas no teacutermino do saacutebado Ele o privou do seu esplendor e expeliu-o do Jardim

do Eacuteden como estaacute escrito Tu mudas o seu semblante e mandaste-o embora (Job

1420)rdquo

De modo semelhante em b MoedKatan 15b BarKappar ensinou aparentemente sobre

Adatildeo e Eva a minha semelhanccedila eu lhes tinha dado mas atraveacutes dos seus pecados eu

mudei261

Estes comentaacuterios antigos refletem a crenccedila presente tanto em ciacuterculos judeus como

cristatildeos de que Adatildeo era um ser luminoso no jardim antes da queda A sua luz era tatildeo

brilhante que ateacute superou o brilho do sol262

Esta compreensatildeo de Adatildeo estaacute enraizada na especulaccedilatildeo sobre Gn 321 onde Deus

criou vestidos de pele e os vestiu a Adatildeo e Eva De acordo com essa tradiccedilatildeo antes da

queda Adatildeo e Eva usavam roupas de luz que perderam como consequecircncia da queda

Adatildeo eacute a Luz ou Lacircmpada do mundo no Talmude Palestino Sab 5b

O Primeiro Homem era a Luz do Mundo como estaacute escrito (Proveacuterbios 2027) O

espiacuterito de Adatildeo era a lacircmpada de Deus E Eva trouxe a morte sobre ele

O significado original desta passagem eacute que Adatildeo se origina da Luz e sua ligaccedilatildeo com a

Luz eacute cortada pelo pecado dele e de Eva263

Essa noccedilatildeo parece estar por traacutes da tradiccedilatildeo rabiacutenica de que existem seis coisas que

foram perdidas e que seratildeo restauradas ao homem

(1) A radiacircncia perdida264 Especulaccedilotildees sobre a histoacuteria de Geacutenesis originaram uma

interpretaccedilatildeo imaginativa da criaccedilatildeo O homem originalmente existia ligado agrave luz e a

sua queda causou-lhe a separaccedilatildeo pelo menos niacutevel temporaacuterio desse comeccedilo

luminoso O lg 84 situa-se aqui com um forte sentimento de pertenccedila a este meio que

imaginou Adatildeo a ser separado de sua radiacircncia divina por causa de seu pecado

No entanto neste loacutegion o elemento divino eacute especificamente a imagem divina Existe

uma antiga tradiccedilatildeo samaritana que ensinou que Adatildeo perdeu a sua imagem

De acordo com os samaritanos Adatildeo rejeitou a forma de Deus no Jardim do Eacuteden

entatildeo quando Moiseacutes subiu ao Monte Sinai ele recebeu a imagem de Deus que Adatildeo

261Geacutenesis Rabbah 23 (Geacutenesis 424) 262Deconick D April (1996) 158 263Cf Idem 264Genesis rabbah 12 Tanch Buber Bereshit 18

128

tinha perdido Assim quando estes textos falam de Moiseacutes ter sido revestido pela Luz

eles concebem este revestimento com a imagem perdida de Adatildeo

Lecirc-se em Memar marqa 54 Ele [Moiseacutes] foi revestido com a Forma que Adatildeo lanccedilou

no Jardim do Eacuteden e seu rosto resplandeceu ateacute o dia de sua morte265Ainda no verso

63 Ele [Moiseacutes] se aproximou da santa e profunda escuridatildeo onde estava o Divino e

viu as maravilhas do invisiacutevel - uma visatildeo que ningueacutem mais podia ver Sua imagem

estava sobre ele Quatildeo aterrorizante para quem vecirc e ningueacutem eacute capaz de ficar diante

delardquo266

Esta temaacutetica representa uma especulaccedilatildeo anterior sobre a histoacuteria do Geacutenesis jaacute que

encontramos o conto no Apocalipse de Moiseacutes em que Adatildeo e Eva foram originalmente

vestidos com a Kavod gloacuteria ou imagem de Deus Mas foram separados da gloacuteria que

tinham quando as suas vestes de gloacuteria foram despojadas como consequecircncia do

pecado No capiacutetulo 20 depois de Eva ter pecado o autor refere que eu sabia que

estava nuacute da justiccedila que eu tinha vestido Eva chora clamando Tenho-me escondido

da minha gloacuteria com o que eu estava vestida De acordo com o Capiacutetulo 21 Eva estaacute

perturbada porque a transgressatildeo foi um grande desafio para Adatildeo Embora natildeo seja

claro que Adatildeo realmente perdeu a gloacuteria depois que Adatildeo come da aacutervore diz a Eva

Tens-te afastado da gloacuteria de Deus267

O objetivo central desta exegese seria o de retornar agrave imagem divina atraveacutes de um

processo de reunificaccedilatildeo Uma vez que se o ser foi separado da imagem divina como

resultado do pecado entatildeo a redenccedilatildeo soacute se torna possiacutevel no reencontro dessa imagem

Esta eacute a teologia do Evangelho de Tomeacute como analisamos no lg 37 a salvaccedilatildeo implica

um despojar do corpo material renunciando Ao renunciar-lhe o disciacutepulo acreditava

retornar ao estado preacute adacircmico ldquofazer dos dois umrdquo tema mencionado nos lg 22 e 106

ilustra esta realidade interna No lg 22 o disciacutepulo entra no Reino quando faz dos dois

um quando a sua imagem humana eacute substituiacuteda pela sua luz celestial

A salvaccedilatildeo concede-se apenas aos que se unirem agrave sua imagem divina quando fizerem

ldquouma imagem no lugar de uma imagemrdquo formando ldquoolhos em lugar de olhosrdquo e uma

ldquomatildeo no lugar de uma matildeordquo No lg 106 Jesus afirma que quando o disciacutepulo fizer dos

265Cf Macdonald John (1963) 209 266Cf Idem 223

Esta exegese a Geacutenesis 1-3 conteacutem os elementos que temos vindo a abordar ao longo do

trabalho e ainda apresenta esta crenccedila de que Adatildeo perdeu a imagem divina Esta crenccedila eacute mais

antiga do que a menccedilatildeo que encontramos no Livro da Sabedoria de Salomatildeo 223 ldquoDeus criou o

homem para a incorruptibilidade e o fez agrave imagem da sua eternidaderdquo 267Cf Deconick D April (1996) 160

129

dois um ele torna-se Filho do Homem O termo Filho do Homem eacute identificado com a

Kavod de Deus sendo tambeacutem bastante associada agraves tradiccedilotildees angeacutelicas O que se

depreende destas associaccedilotildees eacute que o ser humano une-se agrave sua imagem celestial e

adquire um estatuto angelical uma existecircncia paradisiacuteaca268

Os termos luz e imagem assumem em Tomeacute muacuteltiplos significados sendo assim

necessaacuterio trataacute-los agrave luz de outros logia que utilizem termos semelhantes

ldquoJesus disse As imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na

imagem da luz do Pai Manifestar-se-agrave e a sua imagem ficaraacute oculta pela sua luzrdquo269

ldquoJesus disse Quando virdes o que vos assemelha alegrai-vos mas quando virdes as

vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilo que nem morram nem se revelem

quanto suportareisrdquo270

ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riqueza e natildeo chegou a ser

digno de voacutes Porque se tivesse sido digno natildeo teria provado a morterdquo271

Estes trecircs logia enquadram-se num contexto temaacutetico especiacutefico em que Jesus discute

Gn 126-27 onde Adatildeo foi criado agrave ldquoimagemrdquo e ldquosemelhanccedilardquo de Deus No lg 84 as

imagens satildeo descritas como aprovaccedilotildees do natildeo-manifesto no lg 83 as imagens estatildeo

num estado inicial de manifestaccedilatildeo Na uacuteltima linha do lg 83 surge uma imagem natildeo

manifestada o que nos sugere que o termo ldquoimagemrdquo tem um duplo sentido272

O lg 84 apresenta-nos assim dois sentidos ao disciacutepulo a ldquosemelhanccedilardquo e a ldquoimagemrdquo

relacionados com o lg 22 onde o disciacutepulo deve transformar a imagem (semelhanccedila)

numa imagem (imagem) para entrar no Reino

No lg 83 as imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem

da luz do Pai O homem vecirc o mundo constituiacutedo por imagens sem ver a luz dentro das

imagens ldquoas imagens revelaram-se ao homem e a luz que haacute nelas oculta-serdquo O mundo

pode assim ser apreendido no modo de luz ou natildeo apreendido de todo esta leitura leva-

nos a considerar o lg 24 ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina o mundo

inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo

Neste loacutegion a luz pode ou natildeo vir a ser manifesta e a sua iluminaccedilatildeo tem implicaccedilotildees

coacutesmicas No lg 83 lecirc-se que a luz presente no interior das imagens iraacute tornar-se

268Cf Idem 162 269 Lg 83 270 Lg 84 271 Lg 85 272 Cf Davies S (1983) 63

130

manifesta agrave imagem da luz do Pai estabelecendo uma distinccedilatildeo entre a luz do Pai e a

imagem dessa luz273

Da presente discussatildeo destes lg (83848524 e 22) podemos tirar as seguintes

conclusotildees o ser humano tem a capacidade de ver as imagens que satildeo os elementos

que constituem o mundo Estas imagens contecircm em si a luz (a imagem da luz do Pai)

esta luz pode tornar-se manifesta O ser humano tem em si a luz interior como todas as

outras coisas que constituem a realidade do mundo Esta luz pode ser manifestada no ser

humano de luz e assim ele ilumina o mundo inteiro Quando o ser humano manifesta a

luz do seu iacutentimo ele apreende a luz intriacutenseca em todas as coisas Todo aquele que

falhar neste processo encontra-se na escuridatildeo ciente apenas da sua semelhanccedila e

condenado a provar a morte274

O disciacutepulo que apreende a luz encontra de acordo com o lg 83 a sua imagem porque ldquoa

imagem estaacute oculta na luzrdquo e esta imagem eacute a semelhanccedila de Deus Quando o lg 84

menciona ldquoas vossas imagens que chegaram a ser o vosso comeccedilordquo relembra duas

beatitudes nas lg 18b e 19a

ldquoFeliz aquele que se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a

morterdquo275 ldquoFeliz daquele que era antes de chegar a serrdquo276

Estas passagens referem-se agrave criaccedilatildeo primordial o lugar do Reino

Siacutentese da Cosmologia de Tomeacute e a Protologia e Deificaccedilatildeo da Cacircmara Nupcial

ldquoEle disse Senhor haacute muitos em volta do poccedilo mas nenhum no poccedilordquo277

ldquoJesus disse haacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que entraratildeo na

Cacircmara Nupcialrdquo278

A Cacircmara Nupcial eacute o nuacutecleo central que unifica as vaacuterias temaacuteticas do Evangelho de

Tomeacute Uma vez que a cosmologia deste evangelho se inicia na Cacircmara Nupcial e

retorna para laacute Como identificaacutemos acima os quatro estaacutegios da Cacircmara Nupcial estatildeo

subjacentes no processo de retorno agrave origem primordial apresentado pelo Evangelho de

Tomeacute A Cacircmara Nupcial nestes dois lg (7475) eacute apresentada como a crenccedila central que

273 Cf Idem 65 274 Davies S (1983) 63

275 Lg 18b 276 Lg 19a 277 Lg 74 278 Lg 75

131

interliga a cosmologia e a protologia do evangelho no lg 74 o lsquopoccedilorsquo eacute uma imagem da

lsquoaacutegua espiritualrsquo (lg 13 108) Este loacutegion estabelece um contraste com duas

proposiccedilotildees279 muitos tecircm acesso ao conhecimento verdadeiro e agrave revelaccedilatildeo (lsquoagrave volta

do poccedilorsquo) mas satildeo poucos os que entram nessa revelaccedilatildeo (lsquono poccedilorsquo)

Jesus eacute o poccedilo no lg 13 ele pede aos disciacutepulos para cada um lhe dizer com quem eacute que

ele se assemelhava Tomeacute afirmou a sua incapacidade de definir o mestre e Jesus

responde-lhe ldquoEu natildeo sou teu mestre uma vez que bebeste e te embriagas do poccedilo que

borbulha que eu mesmo escaveirdquo Noutro logia Jesus disse ldquoO que beber da minha

boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas ocultas ser-

lhe-atildeo reveladasrdquo280

Ao entrar no poccedilo o disciacutepulo entra em Jesus ao beber do poccedilo o disciacutepulo bebe as

palavras que saem da boca de Jesus chegando a tornar-se como Jesus A Cacircmara

Nupcial eacute neste contexto o interior desse poccedilo o interior de Jesus O lg 75 (ver 108)

estabelece uma uniatildeo entre o disciacutepulo e Jesus na Cacircmara Nupcial281 Este disciacutepulo eacute

designado de monachos solitaacuterio A Cacircmara Nupcial eacute o lugar da salvaccedilatildeo

representada tambeacutem pelo lsquopoccedilorsquo no lg 74 Jesus eacute o noivo como estaacute referido no lg 104

e cada alma unir-se-agrave a ele

Simbolicamente a Cacircmara Nupcial retrata a uniatildeo entre o divino com o humano num

processo que ocorre em quatro estaacutegios distintos Os textos nupciais recordam um

estado idiacutelico primordial que foi perdido um estado nupcial Este estado foi recuperado

por um momento redentor uacutenico que eacute retratado como casamento Este evento nupcial

estende-se no tempo atraveacutes da adoraccedilatildeo lituacutergica relembrando e reencenando o

casamento redentor nas vidas das geraccedilotildees subsequentes A adoraccedilatildeo lituacutergica antecipa

o estaacutegio final o cumprimento escatoloacutegico do casamento divino-humano no final da

histoacuteria

Como acima referimos estes quatro estaacutegios da uniatildeo nupcial correspondem

simbolicamente aos quatro estaacutegios da histoacuteria de salvaccedilatildeo de Israel A criaccedilatildeo e o

jardim do Eacuteden o ecircxodo e o monte Sinai o Templo de Jerusaleacutem no Monte Siatildeo e o

final dos tempos

Natildeo existe a noccedilatildeo de escatologia no Evangelho de Tomeacute mas existe a recordaccedilatildeo do

estado primordial da humanidade o estado de uniatildeo com a imagem divina ldquoNo dia em

279 Comparamos a posiccedilatildeo lsquoestar junto agrave portarsquo com lsquoestar no poccedilordquo 280 Lg 108 281 Cf Gathercole Simon (2014) 487

132

que eacutereis um chegastes a ser doisrdquo (lg 11) ldquoPorque encontrareis o Reino jaacute que haveis

saiacutedo dele a ele regressareisrdquo (lg 49)

Existem implicitamente nestes logia a noccedilatildeo da queda e da perda deste estado de

unidade

Estabelecem-se entatildeo os ensinos que por um lado revelam que esse estado foi perdido e

por outro revelam quais satildeo as atitudes necessaacuterias para regressar agrave origem Existem trecircs

grandes uniotildees ou metamorfoses no Evangelho de Tomeacute que fazem parte do processo

transformativo do disciacutepulo Natildeo eacute de todo possiacutevel assegurar com toda a certeza qual eacute

a ordem sequencial destas uniotildees mas podemos partir dos textos para o demonstrar a

uniatildeo do geacutenero a uniatildeo criacutestica e a autouniatildeo Na medida em que o Evangelho de

Tomeacute descreveu os problemas do ser humano com uma terminologia de separaccedilatildeo entre

o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a imagem e a luz Tambeacutem

procurou estabelecer alguns processos de unificaccedilatildeo destas mesmas problemaacuteticas

Ateacute aqui temos a descriccedilatildeo feita agrave exegese de Gn 1 referente portanto ao estado nupcial

primordial de unidade seguindo-se a descriccedilatildeo do estado de separaccedilatildeo morte e

ignoracircncia Nesta sequecircncia descreve-se o evento redentor que no pensamento de Tomeacute

natildeo estaacute ligado agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo da luz primordial que se

oculta no ser humano e que eacute Cristo Ao revelar essa luz dentro do seu interior o

disciacutepulo salva-se ldquoQuando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas

se natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-agrave a morterdquo (lg 70) ldquoEle

disse-lhes O que tiver ouvidos para ouvir que oiccedila Haacute luz dentro de um homem de luz

e ele ilumina o mundo inteiro Se ele natildeo ilumina haacute trevasrdquo (lg 24)

Eacute no momento de epifania em que o disciacutepulo se conhece a si mesmo e descobre a luz

oculta no seu iacutentimo este eacute o segundo estaacutegio da Cacircmara Nupcial

O uso do simbolismo lituacutergico do templo para reproduzir e relembrar o momento

salviacutefico redentor de Israel eacute aplicado no Evangelho de Tomeacute de forma semelhante

Tambeacutem em Tomeacute encontramos uma experiecircncia ascensionaacuteria com elementos

lituacutergicos Esta experiecircncia emprega vaacuterios conceitos do misticismo judaico que

estendem as suas raiacutezes ao simbolismo lituacutergico do templo de Jerusaleacutem

Ao lermos o lg 50 lemos vaacuterios dos outros logia que tratam a questatildeo da ascensatildeo e da

experiecircncia visionaacuteria observando que a terminologia empregue se origina no templo

de Jerusaleacutem Neste terceiro estaacutegio o disciacutepulo de Tomeacute vivia um processo de

preparaccedilatildeo para a derradeira uniatildeo miacutestica com Jesus na Cacircmara Nupcial Ele recebe

instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas realidades celestiais

133

No uacuteltimo estaacutegio natildeo encontramos uma noccedilatildeo escatoloacutegica comum agrave literatura

analisada e aos evangelhos sinoacuteticos

O Reino a Cacircmara Nupcial o poccedilo que borbulha satildeo realidades presentes aqui e agora

acessiacuteveis a todos os que as buscarem

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo

Como vimos nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave

porta da cacircmara e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca

de Jesus) e entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles

transformavam-se no Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)282 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

282ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-agrave de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-agrave de trevasrdquo (lg 61)

134

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios O evangelho

carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na divisatildeo

interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a distinccedilatildeo

entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo283

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117284

ldquoNeste mundo Israel apega-se ao Santo bendito seja Ele como se diz Mas voacutes que

vos apegastes ao Senhor (Deuteronoacutemio 4 4) Mas no tempo vindouro eles se tornam

como (Ele) Assim como o Santo bendito seja Ele eacute fogo consumidor segundo o que

estaacute escrito Porque o Senhor eacute fogo consumidor (Deuteronoacutemio 424) assim

consumiratildeo fogo segundo o que estaacute escrito e a luz de Israel seraacute para o fogo e o seu

Santo para a chama (Isaiacuteas 1017)rdquo

Ao serem transformados os justos seriam conformados agrave kavod ou agrave manifestaccedilatildeo da

imagem de Deus As tradiccedilotildees sobre Moiseacutes sugerem que para o ser humano estar na

presenccedila de Deus e das hostes celestiais eacute necessaacuterio que a carne seja transformada em

fogo Metatron levanta objeccedilotildees diante de Deus Moiseacutes eacute incapaz de resistir aos anjos

pois os anjos satildeo priacutencipes de fogo enquanto ele eacute carne e sangue Entatildeo Deus manda

Metatron mudar sua carne em tochas de fogo Consequentemente Metatron mudou a

carne de Moiseacutes para tochas de fogo e seus olhos para rodas de Mercavaacute e sua forccedila

para a de Gabriel e sua liacutengua para chama285

283 Lg 82 284Cf Deconick D April (1996) 105 285Cf Idem 162

135

Aparentemente essa tradiccedilatildeo mosaica eacute bastante primitiva jaacute que o comentaacuterio de Fiacutelon

sobre o Ecircxodo indica que mesmo no primeiro seacuteculo acreditava-se que Moiseacutes sofreu

uma transformaccedilatildeo em luz quando subiu ao Monte Sinai Fiacutelon relata que Moiseacutes levou

consigo primeiro a Aaratildeo Nadab e Abiuacute Mas estes homens natildeo podiam suportar os

raios emanados por Deus porque como Fiacutelon refere haacute apenas alguns indiviacuteduos que

gostam de salamandras e podem viver no fogo a regiatildeo interior de Deus (Quaest Ex

227-28 ver Mig 166) Foi Moiseacutes quem foi para aleacutem do ceacuteu em Deus (Quest Ex

240) ali Moiseacutes tornou-se mente unindo-se com Deus tornando-se o seu proacuteprio logos

luminoso (Ibid 244)286 Da mesma forma as tradiccedilotildees sobre o paradigma miacutestico de

Henoque sugerem que uma transformaccedilatildeo iacutegnea estaacute ligada a motivos de ascensatildeo

Assim quando Henoque ascende ao trono em 3 Henoque 15 ele afirma

ldquoDe repente minha carne se transformou em chamas meus nervos em fogo ardente

meus ossos em carvatildeo de juniacutepero meus ciacutelios em relacircmpagos meus olhos em tochas

ardentes os cabelos da minha cabeccedila em chamas quentes todos meus membros em asas

de fogo ardente e a substacircncia de meu corpo em fogo ardenterdquo

Numa passagem impressionante de Hekhalot rabbati 34 eacute afirmado que os olhos de

nenhuma criatura podem contemplar o Vestuaacuterio de Deus incluindo os anjos

ldquoPois quem o contempla - sim quem olha e vecirc os seus olhos se acendem e giram ao

redor seus olhos lanccedilam fogo e vomitam tochas ardentes e o prendem em chamas e o

queimam - Homem que o contempla e o potildee em chamas e o queimardquo

Este motivo natildeo eacute propriedade exclusiva das tradiccedilotildees judaicas Segundo o Corpus

hermeticum 10 a experiecircncia visionaacuteria transforma um homem num ser imortal

Esta visatildeo eacute tatildeo deslumbrante que o miacutestico quase eacute cego pela visatildeo Assim em 104

Tat diz a Hermes Vocecirc nos encheu de uma visatildeo pai que eacute bom e muito belo e o

olho da minha mente estaacute quase cegado em tal visatildeo Hermes explica que esta visatildeo

traz consigo a imortalidade Aleacutem disso ele suprime o medo de Tat que esta visatildeo

causaraacute dano ao miacutestico Ele explica que aqueles que estatildeo preparados para a visatildeo

acharatildeo que eles iratildeo sondaacute-los mais nitidamente com seu esplendor do que os raios de

fogo do sol mas natildeo faraacute nenhum dano Sim mas a visatildeo do bem natildeo eacute como o raio do

sol que por ser ardente deslumbra os olhos com a luz e os faz fechar Pelo contraacuterio

286Cf Idem 106

136

ilumina na medida em que eacute capaz de receber a influecircncia do esplendor intelectual pode

recebecirc-lo Ele sonda mais agudamente mas natildeo faz mal e estaacute cheio de toda a

imortalidade (αθανασίας) (104)

No Corpus Hermeticum 105-6 Hermes continua a ensinar a Tat que estamos ainda

muito fracos agora para esta visatildeo mas a pessoa que eacute capaz de ver o bem e assim

conhececirc-lo natildeo pode entender mais nada Hermes descreve a consequente

transformaccedilatildeo ldquoEle permanece imoacutevel todo o sentido corporal e o movimento

esquecido Tendo iluminado toda a sua mente esta beleza acende toda a sua alma e por

meio do corpo a puxa para cima e a beleza transforma toda a sua pessoa em essecircncia

Pois quando a alma olhou para a beleza do bem minha crianccedila ela natildeo pode ser

deificada (άποθεωθηναι) enquanto estiver num corpo humanordquo287

Assim no Hermetismo encontramos um misticismo transformacional associado agrave

experiecircncia visionaacuteria A visatildeo eacute descrita usando a linguagem da luz a visatildeo do Bem

natildeo causaraacute nenhum dano ao miacutestico preparado mas o examinaraacute mais agudamente do

que os raios de sol e brilho do sol Essa visatildeo deificou o miacutestico Natildeo eacute improvaacutevel que

a tradiccedilatildeo judaica esoteacuterica do misticismo do fogo esteja associada agraves noccedilotildees hermeacuteticas

sobre ascensatildeo e visatildeo transformadora288

Eacute neste contexto que o lg 82 poderaacute ser lido com maior compreensatildeo aqui Jesus

estabelece um paralelismo entre dois pontos que indicam a sua proximidade com o

fogo ou o Reino que satildeo uma e a mesma coisa

Aleacutem disso Jesus afirma estar nesse mesmo espaccedilo onde esses dois pontos se

encontram este loacutegion pode ser interpretado da seguinte maneira o disciacutepulo que estaacute

perto de Jesus ascendeu ao lugar de luz ou fogo onde Jesus agora eacute o Reino celestial

Esse lugar feito de fogo e de luz feito de sons e de gloacuteria constituiacutedo pelo elemento

central do trono eacute a Cacircmara Nupcial o Santo dos Santos

Quem natildeo estaacute perto de Jesus ainda natildeo ascendeu a esse lugar Esta interpretaccedilatildeo eacute

ainda mais intrigante quando se leva em consideraccedilatildeo o lg 83 que menciona a visatildeo da

imagem da luz do Pai

Quando lemos os lg 82 e 83 em conjunto natildeo haacute duacutevida de que o fogo se associa agrave luz

da imagem de Deus Jesus eacute representado como algueacutem que estaacute no Reino ou na

presenccedila da luz ou do fogo de Deus Sendo necessaacuterio que os seguidores de Jesus

ascendam a esse lugar para estarem com Ele Embora o lg 82 natildeo mencione o poder

287 Cf Deconick D April (1996) 108 288 Deconick D April (1996) 108

137

transformacional do fogo diretamente eacute provaacutevel que os primeiros seguidores

estivessem familiarizados com o tema da transformaccedilatildeo pelo fogo de sua heranccedila

judaica e hermeacutetica Uma vez na presenccedila de Jesus e do fogo de Deus eles poderiam

esperar ser transformados numa figura angelical semelhante agrave luz do proacuteprio Deus

O lg 108 confirma pelo menos em parte que Tomeacute estava familiarizado com esta forma

de misticismo transformacional

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo289

Na literatura judaica a metaacutefora da bebida era empregue nas experiecircncias de ascensatildeo a

revelaccedilatildeo da sabedoria oculta durante a ascensatildeo eacute descrita em termos metafoacutericos

como ldquobeberrdquo290 Em 1 Henoque 481 o autor descreve ldquoNaquele lugar eu vi a fonte

da justiccedila e ela era inesgotaacutevel e muitas fontes de sabedoria a cercaram e todos os

sedentos beberam delas e foram cheios de sabedoria e as suas moradas estavam com os

justos os santos e os escolhidosrdquo

Depois de beberem destas fontes as moradas destes sedentos tornam-se aquelas dos

santos justos e eleitos A ascensatildeo a este Reino torna-se possiacutevel e satildeo dados os

segredos do ceacuteu e um repouso divino aos que bebem das fontes da sabedoria

ldquoPorque a sabedoria foi derramada como aacutegua e a gloacuteria natildeo falharaacute em sua presenccedila

pelos seacuteculos dos seacuteculos Porque ele eacute poderoso em todos os segredos da justiccedila E a

injusticcedila desapareceraacute como uma sombra e natildeo teraacute lugar para ficarrdquo291

Esta sabedoria eacute derramada como aacutegua encontramos outro exemplo em 4 Esdras 147

em que Esdras recebeu a ordem de esconder o conteuacutedo dos setenta livros ldquoporque neles

estaacute a fonte do entendimento a fonte de sabedoria e o fluxo de conhecimentordquo Outras

tradiccedilotildees relataram que quando Moiseacutes recebeu a Toraacute no Monte Sinai ele tambeacutem

recebeu ldquoa raiz da sabedoria e as riquezas do entendimento e a fonte do

conhecimentordquo292

Os samaritanos ainda hoje acreditam que Moiseacutes bebeu de sete fontes ldquogloriosasrdquo no

lugar onde ascendeu ateacute aos ceacuteus293

289 Lg 108 290 Cf Deconick D April (1996) 109 291 1 Henoque 491 292 2 Br 597 293Cf Macdonald John (1963) 81

138

A nossa investigaccedilatildeo confirma que a imagem ascensionaacuteria do ato de beber e a

aquisiccedilatildeo de conhecimento secreta estatildeo intimamente ligadas agrave imagem do fogo e agrave

linguagem metamoacuterfica Encontra-se um exemplo ilustrativo desta junccedilatildeo numa visatildeo

em 4 Esdras 1438-41

ldquohellipuma voz chamou-me dizendo lsquoEsdras abre a tua boca e bebe aquilo que te dou a

beberrsquo Entatildeo eu abri a minha boca e contemplei uma taccedila cheia foi-me oferecida

estava cheia de algo semelhante a aacutegua mas a sua cor era como fogo E eu tomei e bebi

e quando eu bebi e quando a bebi o meu coraccedilatildeo derramou adiante compreensatildeo e a

minha sabedoria cresceu no meu peito pois o meu espiacuterito recuperou a sua memoacuteria e a

minha boca foi aberta e jamais fechadardquo

Nesta visatildeo Esdras recebe uma taccedila de aacutegua com fogo e ao bebecirc-la ele adquire

conhecimento que ateacute esse momento lhe estava oculto A linguagem usada para

descrever esta metamorfose no coraccedilatildeo e no espiacuterito eacute poeacutetica e desafiante A sua boca

eacute aberta a linguagem da bebida congelou-se com a transformaccedilatildeo da linguagem do

fogo

Outros dois exemplos aludem a este processo em que a linguagem da bebida descreve a

condiccedilatildeo da transformaccedilatildeo no fogo Fiacutelon de Alexandria em Legum Allegoriae 182-84

explica que louvando a Deus a pessoa estaacute isenta de corpo e mateacuteria por outras

palavras o louvor tira um homem de si mesmo e permite que a mente saia de si

mesma e se ofereccedila a Deus Depois de ascender esta pessoa ldquoeacute permeada pelo fogoe

eacute becircbeda com embriaguez soacutebria 294

A Ode 11 das Odes de Salomatildeo testificam este ponto de que estar becircbedo e encontrar

fogo satildeo metaacuteforas equivalentes que descrevem a transformaccedilatildeo miacutestica no divino

Nessa ode o hinaacuterio fala de uma experiecircncia de ascensatildeo onde as aacuteguas falantes

tocaram meus laacutebios da fonte do Senhor generosamente e assim bebi e tornei-me

intoxicado da aacutegua viva que natildeo morre (116-7)295

Experiecircncia Asceacutetica como Interioridade Luminosa

ldquoJesus disse Quando gerardes o que estaacute em voacutes isso que tendes vos salvaraacute mas se

natildeo o tendes em voacutes isso que natildeo tendes em voacutes dar-vos-aacute a morterdquo296

294Cf Deconick D April (1996) 111 295 Idem 296 Lg 93

139

As mentalidades e as vivecircncias deste evangelho registam-se numa experiecircncia

comunitaacuteria A ascese em Tomeacute eacute interna onde o cristatildeo experimenta uma oposiccedilatildeo que

emana do mundo que o rodeia e experimenta uma luta interna para se descobrir a si

mesmo297

Abordar o tema do asceticismo em Tomeacute passa por abordar a imagem do corpo humano

no Evangelho de Tomeacute com todas as suas conotaccedilotildees fiacutesicas e simboacutelicas298

Durante este periacuteodo os filoacutesofos helenistas enfatizaram os aspetos privados da

existecircncia desenvolvendo um extenso pensamento sobre o corpo Os teoacutelogos cristatildeos

conceberam o ldquocorpo sofredorrdquo pronto para renunciar-se e morrer Este clima

intelectual dos primeiros dois seacuteculos da nossa era influenciou de certa forma a imagem

do corpo no Evangelho de Tomeacute299

O dualismo entendido aqui como a perspetiva religiosa de Tomeacute eacute cosmoloacutegico e

antropoloacutegico Significando em si uma distinccedilatildeo entre o mundo criado e o Deus

supremo assim como uma distinccedilatildeo entre a alma e o corpo ou a carne e o espiacuterito

O ldquoeurdquo verdadeiro existe separado do corpo que pertence ao mundo fiacutesico uma fonte

de morte A alma ou lsquocentelha divinarsquo no interior do ser humano encontra-se

aprisionada no corpo humano

O corpo eacute considerado inferior ao interior espiritual sendo descrito como lsquopobrezarsquo na

qual a lsquogrande riquezarsquo habitou (lg 29) O desapego do corpo eacute uma temaacutetica

interessante que surge no texto as pessoas natildeo se devem preocupar com as suas vestes

(lg 36) Nem devem deixar-se impressionar pelas vestes luxuosas dos reis (lg 78) Em

Tomeacute o que importa eacute o ser interior eacute isso que salva as pessoas se for ldquogeradordquo

Esta atitude em relaccedilatildeo ao corpo era comum em vaacuterias ideologias do mundo antigo

sendo que as ideias religiosas e filosoacuteficas presentes em Tomeacute estatildeo presentes no mundo

cultural heleacutenico

Existem poreacutem certos pormenores que natildeo devem ser negligenciados no estudo desta

temaacutetica

A relaccedilatildeo do corpo com o mundo fiacutesico em Tomeacute necessita de ser relida primeiramente

com o meacutetodo de anaacutelise que temos vindo a usar Eacute na estrutura interna do texto que

encontramos a coerecircncia necessaacuteria para reconstruirmos uma ideologia e uma

297 ldquoJesus disse Feliz do homem que teve de penar pois encontrou a vidardquo Lg 58 298 Cf Uro R (2003) 54 299 Uro R (2003) 54

140

compreensatildeo das imagens simboacutelicas O uso de fontes textuais exteriores aprofunda e

enriquece o entendimento adquirido na primeira leitura do documento

Apesar de existirem vaacuterios logia que referem que o mundo natildeo tem qualquer valor (lg

568021) existem outros que atribuem ao mundo conotaccedilotildees positivas (lg 1228113)

O mundo fiacutesico natildeo eacute a fonte do mal nem eacute um produto do mal este esclarecimento

afasta o Evangelho de Tomeacute da categoria lsquognoacutesticarsquo tal como hoje eacute entendida

Iremos interpretar os logia em que o dualismo entre ldquocorpordquo e ldquoalmardquo ldquocarnerdquo e

ldquoespiacuteritordquo estaacute presente A metaacutefora do ldquodespirrdquo o corpo discutida acima300 na

exposiccedilatildeo do lg 37 seraacute enquadrada na presente secccedilatildeo como esforccedilo de

contextualizaccedilatildeo da visatildeo do corpo no Evangelho de Tomeacute

ldquoJesus disse Ai da carne que depende da alma Ai da alma que depende da carnerdquo

(Lg 112)

ldquoJesus disse Miseraacutevel eacute o corpo que depende de um corpo e miseraacutevel eacute a alma que

depende destes doisrdquo (Lg 87)

O aviso que Jesus daacute no lg 112 contra a dependecircncia da alma em relaccedilatildeo agrave carne

sugere uma ideia jaacute existente na obra de Platatildeo Phaedo (66B D-E)

ldquoDesde que tenhamos o corpo e a alma contaminados com tamanho mal nunca iremos

alcanccedilar o que desejamos isto eacute a verdadeo corpo estaacute constantemente a investigar os

nossos estudos e a incomodar-nos com barulho e confusatildeo E na verdade percebemos

que se alguma vez devemos conhecer algo completamente devemos estar livres do

corpo e devemos ver as realidades reais apenas com os olhos da almardquo

Platatildeo considerava que a alma lsquofracarsquo daquele que natildeo era saacutebio tinha dificuldade de

escapar do corpo apoacutes a morte e manter a sua pureza Nas suas obras Repuacuteblica e

Timeu Platatildeo jaacute fornece uma descriccedilatildeo mais positiva na relaccedilatildeo entre o corpo e a alma

Tema recorrente na literatura greco-romana eacute o corpo ser descrito como a forccedila que

ldquopuxa para baixordquo a alma Estas ideias fazem eco no lg 112 de Tomeacute na sua primeira

afirmaccedilatildeo Jesus preocupa-se com o corpo que depende da alma Ao afirmar que o corpo

seraacute prejudicado se depender da alma existe uma loacutegica impliacutecita que o corpo poderaacute

ser feliz se natildeo existir nenhuma relaccedilatildeo desequilibrada entre o corpo e a alma301

Muitos dos seus leitores contemporacircneos provavelmente interpretariam este dito como

uma referecircncia a uma dependecircncia desequilibrada ou uma inclinaccedilatildeo a que se devia

300 Ver paacuteginas 66-71 301 Cf Uro R (2003) 59

141

resistir A visatildeo hostil entre corpo e alma com uma negligecircncia total do corpo seria

entender de forma forccedilada o literalismo das palavras sem ter em conta a dinacircmica da

filosofia greco-romana302

O lg 87 relaciona-se diretamente com o lg 112 Ambos falam do corpo e da alma

condenando a sua dependecircncia No entanto a primeira parte do lg 87 menciona o corpo

que depende de um corpo Alguns interpretam isto como a atraccedilatildeo sexual entre dois

corpos mas ao referir-se agrave dependecircncia da alma em relaccedilatildeo aos dois corpos esta

interpretaccedilatildeo perde todo o sentido303

Uma possiacutevel interpretaccedilatildeo encontra-se no lg 80 onde o mundo eacute retratado como um

corpo no lg 56 o mundo eacute um corpo sem vida mais concretamente um cadaacutever

Estes termos figurativos (mundo corpo cadaacutever) estatildeo entrelaccedilados no Evangelho de

Tomeacute para o leitor do seu tempo a metaacutefora do cosmos como corpo humano era natural

Ao identificarmos o segundo corpo como sendo o mundo explicamos de forma

plausiacutevel os dois corpos do lg 87 Este loacutegion condena um corpo individual que depende

do corpo-mundo a alma eacute amaldiccediloada porque depende do corpo individual e do corpo

universal

A alma nunca deve depender do mundo fiacutesico quer este se manifeste na forma de um

indiviacuteduo sociedade ou do cosmos universal Por isso eacute que em Tomeacute a ideia do

asceticismo eacute uma realidade interior em que a alma vai procurar natildeo depender de vaacuterias

restriccedilotildees e limitaccedilotildees da realidade exterior

Os logia assinalados demonstram que os cristatildeos em Tomeacute satildeo chamados a

descobrirem-se atraveacutes das decisotildees que tomam no seu dia-a-dia Eles escapam do

mundo concentrando-se em si mesmos Ao se concentrarem em si mesmos e nas suas

lutas internas descobrem a sua verdadeira natureza Os impulsos para uma

compreensatildeo correta do ser esta nova perceccedilatildeo concede-lhes o que lhes permite natildeo

experimentarem a morte Todo o processo de interiorizaccedilatildeo e de oposiccedilatildeo aos valores

sociais exteriores leva a uma vivecircncia de sofrimento e conflito Quem se conhece a si

mesmo conhece que eacute filho do Pai Vivente esta eacute a mensagem situada no coraccedilatildeo de

Tomeacute a interpretaccedilatildeo dos seus ditos leva a vivecircncias de sofrimento e agrave realizaccedilatildeo

pessoal

ldquoJesus disse Felizes satildeo os que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Satildeo esses os que

conheceram o Pai em verdade

302 Cf Idem 60 303 Cf Idem

142

Jesus disse Quando o tiverdes gerado em voacutes o que eacute vosso vos salvaraacute se natildeo o

tiverdes em voacutes o que natildeo tendes em voacutes vos mataraacuterdquo (Lg 69a e 70)

Tomeacute torna a solitude uma condiccedilatildeo explicita para a salvaccedilatildeo (lg 49) apesar dos

inteacuterpretes dos ditos enigmaacuteticos de Jesus encontrarem no significado dos seus ditos a

vida eterna que os leva a pertenceram ao grupo dos filhos do Pai Vivente

Esta interpretaccedilatildeo eacute solitaacuteria e interiorizada natildeo sendo um processo comunitaacuterio304

O Evangelho de Tomeacute em termos sociais natildeo se apresenta como um documento

preocupado e atento agraves problemaacuteticas da formaccedilatildeo de comunidades cristatildes Antes foca-

se num conjunto de atitudes e praacuteticas habituais que sucediam para aleacutem dos

ldquomovimentos de Jesusrdquo

Tomeacute enfatiza a necessidade de seu leitor esforccedilar-se e trabalhar ldquoJesus disse Feliz o

homem que sofreu Encontrou a vidardquo305 O tema da busca ativa e a descoberta satildeo

apresentados em Tomeacute como um processo uma seacuterie de estaacutegios ou camadas de

perceccedilatildeo306 Aquele que descobriu o significado oculto de um determinado dito sabe

que existe mais trabalho a ser feito mais segredos a serem revelados

De acordo com o lg 2 ldquoJesus disse Que aquele que busca natildeo cesse a sua busca ateacute que

encontre e quando encontrar se perturbaraacute e quando se perturbar se maravilharaacute e

reinaraacute sobre o Todordquo

Satildeo prometidas ao leitor recompensas extravagantes se este decifrar o texto estando

sempre impliacutecito que a tarefa natildeo eacute faacutecil nem raacutepida A inovaccedilatildeo em termos sociais mais

notoacuteria deste evangelho eacute o facto de natildeo existir a suposiccedilatildeo de que os ditos de Jesus

existem na sua forma concreta como um texto escrito

A ecircnfase que Tomeacute daacute ao trabalho do leitor sugere um processo repetitivo constituiacutedo

por um conjunto de atividades em que o leitor retorna a um determinado dito e reflete

repetidamente no seu significado

ldquoJesus disse Se a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilha mas se o espiacuterito pelo

corpo eacute a maravilha das maravilhas Eu no entanto maravilho-me com isto como esta

grande riqueza ficou nesta pobrezardquo (lg 29)

304 Cf Arnal William E (2013) 271- 81 305 Lg 58 306 Cf Arnal William E (2013) 273

143

Este logia apresenta um dualismo antropoloacutegico entre o lsquoespiacuteritorsquo e a lsquocarnersquo ou lsquocorporsquo

Como vimos o termo lsquocorporsquo pode ser associado ao cosmos e ao corpo humano Qual

seraacute a conotaccedilatildeo do termo lsquocarnersquo ldquoSe a carne se fez pelo espiacuterito eacute uma maravilhardquo

esta afirmaccedilatildeo aproxima-se de vaacuterias correntes filosoacuteficas e mitos religiosos desta

eacutepoca a ideia platoacutenica sugeria que a realidade espiritual tinha prioridade sobre a

realidade fiacutesica em termos de origem307

Detetamos aqui outra linha exegeacutetica do relato da criaccedilatildeo em Gn 27 segundo o qual o

homem foi modelado com a argila do solo e Deus insuflou em suas narinas um haacutelito de

vida e o homem se tornou um ser vivente A primeira afirmaccedilatildeo de Jesus no lg 29

corresponde agrave origem da humanidade segundo a ordem descrita em Gn 126-27 em que

o homem eacute criado agrave imagem de Deus O espiacuterito que lsquoveio a serrsquo no lg 29 refere-se agrave

animaccedilatildeo do corpo na criaccedilatildeo do homem308 que natildeo esteve em conflito com a

prioridade cosmoloacutegica da realidade espiritual expressa no lg 29309 Outra passagem que

atesta a exegese de Geacutenesis neste dualismo antropoloacutegico encontra-se no facto de a

lsquogrande riquezarsquo (lg 29) aparecer no contexto da criaccedilatildeo de Adatildeo no lg 85310

Em suma natildeo existem em Tomeacute regulaccedilotildees comunitaacuterias nem referecircncias a batismos

eucaristias ou observaccedilotildees literais do saacutebado No entanto encontramos uma forte ecircnfase

em falar a verdade e praticar a regra de ouro (lg 6) o mandamento de amar o irmatildeo e

guardaacute-lo (lg 25) ser generoso (lg 95) e praticar um jejum lsquodo mundorsquo um jejum social

(lg 69) A oraccedilatildeo eacute condenada com o jejum no lg 14 mas no lg 104 ambas as coisas satildeo

autorizadas

6 O Evangelho de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Ao elaborarmos uma reflexatildeo criacutetica sobre a presenccedila de elementos gnoacutesticos no

evangelho de Tomeacute tendo por objetivo aferir se tratasse de um texto gnoacutestico inserido

na categoria do gnosticismo311 Surge a necessidade de apurarmos os elementos

307 Cf Uro R (2003) 63 308 Cf Lg 19 309 Cf Uro R (2003) 63 310 ldquoAdatildeo chegou a ser por um grande poder e uma grande riquezahelliprdquo lg 85 311A natureza e o significado do Gnosticismo tecircm sido uma questatildeo controversa desde os seus

iniacutecios ateacute aos dias atuais Muitos dicionaacuterios definem ldquognoserdquo como ldquoconhecimento das coisas

espirituais conhecimento miacutesticordquo e o gnoacutestico eacute entendido como ldquomembro de qualquer seita

existente no cristianismo primitivo que afirmava ter um conhecimento espiritual superior e que

explicava a origem do mundo a partir de poderes que emanaram da cabeccedila divinardquo A definiccedilatildeo

de ldquognoserdquo natildeo se torna assim clara o suficiente e natildeo expressa que o conhecimento gnoacutestico era

144

gnoacutesticos quanto agrave sua natureza e particularidade buscando uma definiccedilatildeo precisa de

gnosticismo e compreendendo as variantes desta categoria

Quando falamos de gnosticismo natildeo falamos de religiatildeo mas sim de experiecircncia

gnoacutestica A gnose na sua essecircncia eacute uma experiecircncia fundamentada numa iluminaccedilatildeo

interior iluminaccedilatildeo esta que concede ao gnoacutestico o conhecimento interior que o pode

salvar a certeza existencial do gnoacutestico resume-se em poucas palavras por Eu venho de

Deus eu participo da essecircncia divina eu vou regressar a ele312

O gnoacutestico tem assim que conhecer a essecircncia divina atraveacutes do verdadeiro

autoconhecimento da sua essecircncia Esta eacute o conceito fundamental da experiecircncia

gnoacutestica o conhecimento liberta o gnoacutestico da mateacuteria e dirige-o a Deus a redenccedilatildeo natildeo

eacute uma expiaccedilatildeo do pecado mas uma eliminaccedilatildeo da ignoracircncia

Como essecircncia a gnose libertadora eacute simultaneamente o autoconhecimento e o

conhecimento de Deus

Estes dois tipos de conhecimentos satildeo sublinhados nas diversas fontes gnoacutesticas

disponiacuteveis em Nag Hammadi

ldquoPorque o que natildeo se conheceu a si mesmo natildeo conheceu nada mas o que se conheceu

a si mesmo comeccedilou jaacute a ter conhecimento sobre a profundidade do Todordquo (T At)313

ldquoDesta maneira o que possui o conhecimento eacute do alto Se eacute chamado escuta responde

e volta-se para quem o chama para ascender ateacute Ele E sabe como se chama Possuindo

o conhecimento faz a vontade de quem o chamou quer comprazecirc-lo e recebe o repouso

O seu nome proacuteprio aparece O que chega a possuir o conhecimento deste modo sabe de

onde vem e para onde vai Sabe como uma pessoa que tendo estado embriagada saiu da

sua embriaguez voltou a si mesma e corrigiu o que lhe eacute proacutepriordquo (EvV 2213-20)314

A partir destas ideias fundamentais o gnosticismo na sua visatildeo espiritual concebia o ser

humano como um ser divino no seu nuacutecleo mais profundo Apercebendo-se da sua

realidade terrena o ser humano sente necessidade de regressar ao mundo divino

considerado revelaccedilatildeo Esta revelaccedilatildeo soacute era compreendida por aquele que ldquoconheciardquo a

sabedoria espiritual e o entendimento necessaacuterio para interpretaacute-la A definiccedilatildeo de ldquognoacutesticordquo

contempla o facto histoacuterico de os primeiros gnoacutesticos encontrados na literatura que possuiacutemos

estarem relacionados com o movimento cristatildeo No entanto natildeo levam em consideraccedilatildeo

religiotildees gnoacutesticas como o maniqueiacutesmo e o mandeiacutesmo Cf Grant (1961) 13 312Cf Broek (2013) 136 313Cf NHC II7 Livro de Tomeacute o Atleta in Pinero Torrentsamp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 264 314Cf NHC I 3 Evangelho da Verdade in Pinero Torrents amp Bazaacuten Evangelhos Gnoacutesticos

(2005) 149

145

Na vivecircncia gnoacutestica o ser humano natildeo alcanccedila esta perceccedilatildeo espiritual por si proacuteprio a

iluminaccedilatildeo da mente e a remoccedilatildeo do veacuteu da ignoracircncia abrem o olhar humano para as

realidades divinas no seu nuacutecleo mais profundo

O periacuteodo histoacuterico onde se daacute esta experiecircncia eacute em si um periacuteodo de grandes mutaccedilotildees

no quadro das mentalidades O periacuteodo heleniacutestico possibilitou a facilitaccedilatildeo da difusatildeo

de ideias carruagens e bens estes facilmente se deslocam pelo mundo helenista e as

ideias e crenccedilas passam a deslocar-se no espaccedilo e no tempo

Esta realidade trouxe implicaccedilotildees para a mudanccedila religiosa as novas tecnologias como

a difusatildeo dos sistemas de escrita levaram a sociedade a formar novas geraccedilotildees de

escribas Aumentou a necessidade de elites escribas a educaccedilatildeo e treino destas novas

geraccedilotildees criaram o ambiente propiacutecio para o surgimento de novos livros Livros estes

que deram origem a livros sagrados dentro do quadro de pensamento gnoacutestico Estes

livros eram tradiccedilotildees orais de cariz esoteacuterico e pouco divulgadas

A religiatildeo torna-se uma realidade inscrita no livro torna-se portaacutetil e necessita de

interpretaccedilatildeo Existiram de Jesus a Maomeacute vaacuterios movimentos religiosos que brotaram

deste meio cultural com os seus proacuteprios livros sagrados315

Estes factos devem ser sublinhados na presente discussatildeo o gnosticismo natildeo foi apenas

uma revoluccedilatildeo religiosa de novas possibilidades foi uma revoluccedilatildeo textual

As tradiccedilotildees gnoacutesticas redigiram os seus proacuteprios textos sagrados elaboraram

comentaacuterios e traduccedilotildees de outros documentos relevantes no mundo das religiotildees da

antiguidade

Esta tradiccedilatildeo literaacuteria floresceu no espaccedilo do Meacutedio Oriente e Mediterracircneo Oriental

influenciando profundamente a sua realidade histoacuterica O livro desempenhou um papel

transformador dos sistemas religiosos existentes neste espaccedilo geograacutefico

A criatividade destes documentos nos quais o evangelho de Tomeacute estaacute contemplado

apresenta uma textualidade que reconfigura em novos traccedilos crenccedilas antigas

Os documentos sagrados dos gnoacutesticos reuniam em si vaacuterios elementos tidos como

verdadeiros para as suas comunidades mas necessitavam de diferentes interpretaccedilotildees

O gnosticismo leu e interpretou as grandes histoacuterias das tradiccedilotildees judaica e cristatilde em

concreto as narrativas da criaccedilatildeo em Gn 1-3 e os evangelhos tambeacutem encontramos

leituras aos filoacutesofos gregos e agrave mitologia grega

315 Por exemplo os cristatildeos os judeus rabiacutenicos os gnoacutesticos os maniqueiacutestas e os mandeus

146

Estas novas escrituras satildeo em si exegeses gnoacutesticas realizadas a escrituras antigas a

novidade desta nova forma de viver ou experimentar a religiatildeo passa pela interiorizaccedilatildeo

da palavra escrita e o poder de lhe dar um novo sentido

Quando pressupomos que a gnose eacute uma experiecircncia interior assente no

autoconhecimento conjugado com o conhecimento do divino devemos compreender

que este processo de conhecimento era tido ateacute determinado grau como uma revelaccedilatildeo

Este conhecimento marcadamente esoteacuterico e apenas disponiacutevel aos seus membros

revestia-se de uma aura de revelaccedilatildeo metafiacutesica as escrituras tradicionais soacute seriam

entendidas a partir da leitura iluminada pela gnose Os percursos gnoacutesticos estavam

assim imbuiacutedos de criatividade e inovaccedilatildeo intelectual

A reconfiguraccedilatildeo dos mitos e dos atributos divinos tornaram a produccedilatildeo textual

gnoacutestica desafiante para o leitor moderno A forma como o mito da criaccedilatildeo eacute tratado ateacute

agrave forma como a humanidade eacute concebida levaram este pensamento criativo e veloz a

difundir-se pelo mundo antigo na forma de diversas seitas e escolas de pensamento

distintas

Poderemos falar de uma homogeneidade gnoacutestica

Certamente que natildeo seraacute difiacutecil apresentar uma homogeneidade cristatilde propriamente dita

no mesmo periacuteodo histoacuterico O pensamento teoloacutegico e a leitura das escrituras ainda se

encontravam no processo de formaccedilatildeo de ideias e conceitos natildeo existindo assim uma

ortodoxia definida

Introduzindo esta reflexatildeo com a questatildeo essencial de captar a essecircncia do que seria a

experiecircncia gnoacutestica chegamos agrave conclusatildeo que a gnose seria uma experiecircncia interior

de perceccedilatildeo e compreensatildeo da realidade A partir de um conhecimento iluminado e

adquirido por revelaccedilatildeo Neste panorama mental o gnoacutestico abre-se a um infinito quadro

de especulaccedilotildees e meditaccedilotildees acerca da existecircncia da realidade divina e das escrituras

sagradas das tradiccedilotildees religiosas influentes

Eacute nesta especulaccedilatildeo e na produccedilatildeo textual do esforccedilo exegeacutetico dos gnoacutesticos que

surgem os diferentes textos presentes na biblioteca de Nag Hammadi e noutros

contextos

Por alguns dos textos detetamos que a especulaccedilatildeo e o esforccedilo interpretativo levaram o

gnosticismo a certos pontos que caiacuteram no extremo e no excesso Ainda que isto natildeo

signifique que a experiecircncia gnoacutestica na sua geacutenese e na sua estrutura interna natildeo se

assenta na perceccedilatildeo baacutesica que define este processo de busca e retorno agrave origem

147

Procurar categorizar um texto como o evangelho de Tomeacute numa categoria que em si natildeo

se encontra definida de forma geral pelos especialistas da aacuterea no meio acadeacutemico316

seraacute uma tarefa aacuterdua e natildeo totalmente exata A fim de apurarmos os elementos que

possam assegurar uma maior exatidatildeo no estudo iremos apresentar os traccedilos da

experiecircncia gnoacutestica conforme esta se encontra definida pelos autores influentes nesta

temaacutetica317

O nosso ponto de partida natildeo passa por discutir a presenccedila ou ausecircncia de determinadas

doutrinas gnoacutesticas na textualidade de Tomeacute Antes seraacute tomada uma postura mais

abrangente na investigaccedilatildeo queremos determinar os princiacutepios gerais da visatildeo espiritual

do evangelho de Tomeacute a forma como a realidade e o pensamento sobre o divino satildeo

apresentados A forma como os disciacutepulos satildeo encorajados a buscar a sua salvaccedilatildeo e

como eacute que a podem alcanccedilar Estes traccedilos gerais do pensamento levam-nos a uma

questatildeo mais importante ateacute que ponto o texto de Tomeacute natildeo eacute tambeacutem em parte uma

exegese agraves narrativas da criaccedilatildeo presentes em Geacutenesis sendo uma exegese com

revelaccedilatildeo gnoacutestica para aqueles que a conseguirem compreender

As variedades da experiecircncia gnoacutestica

Um dos maiores desafios que o estudo do gnosticismo apresenta eacute o facto de ateacute haacute bem

pouco tempo atraacutes este ser definido exclusivamente pelos seus opositores Muito do

conhecimento reunido acerca desta temaacutetica encontra-se escrito pelos seus inimigos do

segundo terceiro e quarto seacuteculos Irineu (130-200) Tertuliano (160-240) Hipoacutelito

(170-263) e Epifacircnio (310-403) as perspetivas destes autores influenciaram a

interpretaccedilatildeo da mentalidade gnoacutestica Sendo esta interpretaccedilatildeo desafiada com a

descoberta dos documentos da biblioteca de Nag Hammadi Neste ponto de viragem da

histoacuteria podemos ouvir os gnoacutesticos nas suas proacuteprias vozes sem o esforccedilo mediador

dos seus oponentes que distorceram e ridicularizaram os seus conteuacutedos

Antes de relacionarmos o gnosticismo com o evangelho de Tomeacute vamos definir o

gnosticismo na sua geacutenese sem recorrer agraves leituras filtradas dos seus criacuteticos Se existem

algumas tendecircncias extremas no pensamento gnoacutestico na sua especulaccedilatildeo acerca da

mateacuteria e da criaccedilatildeo Eacute possiacutevel detetar um processo evolutivo no discurso e no

pensamento gnoacutestico a sua leitura e os seus mitos a formaccedilatildeo de vaacuterios grupos todo

316 Cf Grant (1961) 13 317 Broek (2013) Grant (1961)

148

este cenaacuterio formou-se a partir de um processo em que o inicio certamente se deveu a

alguns fatores que natildeo tecircm que ser forccedilosamente extremos Aacute medida que o pensamento

evoluiu surgiram algumas questotildees mais complexas

Primeiramente temos que ter em conta que o termo ldquognoacutesticordquo tinha na antiguidade uma

conotaccedilatildeo positiva318

O termo ldquognoacutesticordquo ndash gnoacutesticos em grego ndash eacute um termo positivo na antiguidade este

adjetivo natildeo era aplicado a pessoas mas a capacidades atividades intelectuais e

operaccedilotildees mentais319 Esta capacidade ou atividade gnoacutestica levava sempre agrave gnose o

conhecimento que natildeo era praacutetico ou teoacuterico mas imediato e intuitivo

Este termo estava assim presente em vaacuterias religiotildees e movimentos filosoacuteficos que

alegavam oferecer gnose aos seus adeptos esta entendida como um entendimento de

Deus e das verdades superiores

O autor cristatildeo da Primeira carta de Clemente regozijou-se em Cristo por este ter

trazido a ldquognose imortalrdquo e ele orou para que a pessoa abenccediloada tivesse ldquoa habilidade

de declarar a gnoserdquo320 Na epiacutestola de Barnabeacute o ensinamento cristatildeo eacute referido como

ldquoa gnose que nos foi dadardquo321

Nestes dois documentos natildeo localizamos doutrinas que os antigos heresioacutelogos e os

acadeacutemicos modernos atribuam aos gnoacutesticos ou ao gnosticismo Representam antes

uma proto ortodoxia e demonstram que a gnose natildeo pode ser uma carateriacutestica

definidora do ldquognosticismordquo A pretensatildeo de providenciar gnose era comum e esperada

chamar as pessoas de gnostikoi ldquognoacutesticasrdquo natildeo era comum mas inovador322

Na obra Contra as Heresias o bispo Irineu afirma que Valentino ldquoadaptou os princiacutepios

fundamentais da escola de pensamento gnoacutestica ao seu proacuteprio sistemardquo323 Noutro

lugar do seu livro Irineu ainda afirma que Valentino assemelha-se com os ldquognoacutesticos -

falsamente chamados - de quem devemos falar mais sobrerdquo324 Daqui podemos concluir

que Irineu acreditava que os gnoacutesticos eram um grupo especiacutefico que podia

perfeitamente ser diferenciado de outros grupos Mais concretamente do grupo de

Valentino e a sua escola

318 Cf Valantasis (2006) 11 319 Cf Brake (2010) 30 320 Cf Brake (2010) 30 321 Cf Idem 322 Cf Idem 31 323 Cf Idem 324 Cf Idem

149

Tertuliano de Cartago confirma esta perspetiva diferenciando tambeacutem os gnoacutesticos dos

valentinianos No seu tratado Contra os Valentinianos Tertuliano afirma ldquoe entatildeo as

doutrinas que brotaram dos valentinianos cresceram agora na floresta dos gnoacutesticosrdquo325

Estes dois autores compreendiam assim ldquoos gnoacutesticosrdquo como sendo um grupo

especiacutefico de certa forma relacionado mas contudo distinto dos valentinianos

O termo ldquognoacutesticordquo encontra-se ainda presente no cristianismo primitivo como uma

designaccedilatildeo positiva tal como se encontra nos escritos de Clemente de Alexandria

Este autor trabalhou como professor e filoacutesofo nas uacuteltimas deacutecadas do segundo seacuteculo

num dos seus mais vibrantes centros de conhecimento a cidade de Alexandria

Clemente instruiacutea na virtude e na filosofia cristatilde utilizando neste contexto o termo

ldquognoacutesticordquo como sendo algo a alcanccedilar pelo cristatildeo ideal Para Clemente o ldquognoacutesticordquo

era o cristatildeo que atraveacutes do treino da virtude e do estudo das escrituras cristatildes

conseguia avanccedilar no conhecimento de Deus

Ele natildeo afirmava assim que era gnoacutestico ou fazia parte da escola de pensamento

gnoacutestica ldquoO nosso gnoacutestico somente - porque ele cresceu nessas escrituras e porque

preserva a correta linha de ensinamentos apostoacutelicos e eclesiaacutesticos - vive mais

corretamente de acordo com o Evangelho Enviado pelo Senhor ele encontra as

manifestaccedilotildees que ele procura na Lei e nos Profetas Para a minha mente a vida dos

gnoacutesticos natildeo eacute senatildeo feitos e palavras que seguem a tradiccedilatildeo do Senhorrdquo326

No pensamento de Clemente de Alexandria o termo ldquognoacutesticordquo aplicava-se aos cristatildeos

espiritualmente avanccedilados sendo um termo positivo Ele tambeacutem natildeo criou o termo

mas apropriou para a realidade cristatilde do seu ensino frisando ldquoo nosso gnoacutesticordquo noutro

lugar referiu que os cristatildeos que seguiram um professor chamado Proacutedico chamavam-se

a eles proacuteprios de gnoacutesticos mas natildeo mereciam esse tiacutetulo327

A partir destas fontes concluiacutemos que poucas pessoas na antiguidade se designavam por

gnoacutesticas Muitos filoacutesofos inteacuterpretes da biacuteblia judeus e professores cristatildeos assim

como os adeptos das religiotildees antigas e hermeacuteticos utilizavam o termo ldquognoserdquo328

Esta palavra grega significa conhecimento referindo-se a um conjunto amplo de

situaccedilotildees O termo ldquognosticismordquo natildeo estaacute evidente em nenhum texto da antiguidade

foi apenas a partir da segunda metade do seacuteculo dezoito que os acadeacutemicos usaram a

325 Cf Idem 32 326Cf Brake (2010) 33 327Cf Idem 328 Cf Idem 12

150

designaccedilatildeo como um meio de unificaccedilatildeo do complexo conjunto de movimentos

orientados em relaccedilatildeo agrave gnose329

O Pensamento de Tomeacute e o Pensamento Gnoacutestico

Mais do que conhecimento intelectual a gnose conota entendimento intuiccedilatildeo

perceccedilatildeo introspeccedilatildeo e aprendizagem os gnoacutesticos satildeo aqueles que estatildeo orientados

para o conhecimento e a compreensatildeo a perceccedilatildeo e a aprendizagem como uma forma

particular de viver a vida

Em todas as geraccedilotildees surgem aqueles que natildeo aceitam nem acham satisfaccedilatildeo nas

respostas padronizadas para as derradeiras questotildees da existecircncia humana

Estes indiviacuteduos desejam sempre algo mais para si e para os seus correligionaacuterios algo

para laacute daquilo que eles percebem como o niacutevel mais baixo de compreensatildeo

Na atitude gnoacutestica haacute a busca de uma maior profundidade de compreensatildeo os

gnoacutesticos investigaram a religiatildeo agrave luz das tradiccedilotildees intelectuais mais complexas do seu

tempo

Estas pessoas abraccedilaram a ciecircncia do seu tempo procurando compreender as ligaccedilotildees

entre os domiacutenios espirituais e a dimensatildeo fiacutesica

Ao descrevermos este pensamento sublinhamos a sua mentalidade de elite Os gnoacutesticos

sentiam orgulho de terem acesso a informaccedilatildeo que natildeo era consumida por um puacuteblico

geral mas apenas pelos escolhidos que eram capazes de estudar e compreender esses

conhecimentos esoteacutericos

Em termos gerais os gnoacutesticos representam aqueles que buscam intelectualmente e

espiritualmente conhecimentos superiores

O pensamento intelectual gnoacutestico alcanccedilou o seu auge na leitura e compreensatildeo dos

primeiros trecircs capiacutetulos do livro do Geacutenesis Este facto tal como se apresenta nas

escrituras gnoacutesticas adveacutem da intuiccedilatildeo gnoacutestica dos primeiros cinco seacuteculos da era

comum

Neste periacuteodo o gnoacutestico sentia-se prisioneiro no seu proacuteprio corpo no mundo fiacutesico

isto impedia-o de explorar a verdadeira introspeccedilatildeo e conhecimento ou gnose que o

gnoacutestico desejava A partir deste entendimento o corpo e o mundo material eram

329Cf Idem

151

problemas e impedimentos isto porque o gnoacutestico entendia que o mundo fiacutesico estava

separado e dividido do mundo espiritual O mito gnoacutestico da criaccedilatildeo descreve as origens

deste dualismo o mundo material eacute um lugar de prisatildeo o mundo espiritual eacute um lugar

de libertaccedilatildeo

Para transcenderem a materialidade e ascenderem ao mundo espiritual os gnoacutesticos

tinham que ter a gnose o conhecimento secreto e misterioso

O conhecimento verdadeiro estava depositado nas escrituras sagradas a Biacuteblia o

conhecimento gnoacutestico surgiu da interpretaccedilatildeo de passagens biacuteblicas especiacuteficas

No Antigo Testamento foi sobretudo a criaccedilatildeo do mundo e do primeiro ser humano

nesta linha de pensamento podemos situar o evangelho de Tomeacute e o seu pensamento a

salvaccedilatildeo em Tomeacute adveacutem da correta interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus

Estes ditos contecircm conhecimento secreto que concede imortalidade aos que tecircm

conhecimento A introspeccedilatildeo e a busca em direccedilatildeo agrave gnose no interior pressupotildeem em

Tomeacute o autoconhecimento e o conhecimento do Jesus Vivente

A temaacutetica principal de Tomeacute eacute a compreensatildeo religiosa do ser humano os vaacuterios ditos

descrevem o estado preacute adacircmico o estado poacutes adacircmico e quais satildeo as instruccedilotildees para

voltar ao estado da imagem divina no corpo humano

No fundo esta divinizaccedilatildeo do ser humano retirada de uma exegese esoteacuterica de cariz

gnoacutestico ao mito da criaccedilatildeo biacuteblico e a proposta de uma interiorizaccedilatildeo e uma busca de

iluminaccedilatildeo para alcanccedilar a verdade no interior tornam o evangelho de Tomeacute num texto

perfeitamente enquadrado dentro do pensamento gnoacutestico do seu tempo

Poreacutem algumas ressalvas devem ser indicadas este evangelho natildeo apresenta o mito

gnoacutestico da criaccedilatildeo nem apresenta o dualismo gnoacutestico

O gnosticismo de Tomeacute eacute o gnosticismo nos seus proacuteprios termos como coordenada de

pensamento O documento apresenta um itineraacuterio de interiorizaccedilatildeo e de busca de

conhecimentos espirituais por meio da revelaccedilatildeo do Jesus Vivente

O proacuteprio convite agrave interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus satildeo uma indicaccedilatildeo que estamos a

lidar com um puacuteblico que medita os seus textos religiosos interpreta-os e procura

encontrar diversos significados na mensagem da sua religiatildeo isto demonstra a natureza

gnoacutestica do evangelho de Tomeacute

O loacutegion 50 deste evangelho retrata a preocupaccedilatildeo gnoacutestica existencial da origem

humana o conhecimento acerca da origem do adepto a sua identidade e o seu destino

satildeo uma preocupaccedilatildeo latente no pensamento de Tomeacute e no pensamento gnoacutestico

152

Citamos uma passagem de Clemente de Alexandria onde o proacuteprio tambeacutem expressou

na essecircncia este ensino captando assim os elementos gnoacutesticos tatildeo proacuteprios ao seu

pensamento

ldquoO batismo sozinho natildeo nos salvou

Somos salvos pelo conhecimento de quem somos e onde comeccedilamos

onde noacutes fomos e o que nos tornamos para onde estamos indo e o que nos libertou o

que constitui um renascimento [real]rdquo

- Clemente de Alexandria Excertos de Teoacutedoto 782

Na conclusatildeo desta reflexatildeo criacutetica resta-nos especificar alguns pormenores concretos

do mito da criaccedilatildeo presente em Tomeacute e como este difere do mito gnoacutestico da criaccedilatildeo

A ideologia do evangelho de Tomeacute resulta de uma junccedilatildeo de vaacuterias tradiccedilotildees a sua

mensagem natildeo se baseia no mito gnoacutestico da criaccedilatildeo330 mas na exegese que desenvolve

em torno das narrativas da criaccedilatildeo relatadas em Gn 1-3

A exegese que o texto de Tomeacute apresenta era amplamente conhecida pelos seus

contemporacircneos sendo ateacute partilhada por vaacuterios grupos de leitores destas narrativas

Desde os judeus que viviam no Egito331 e liam a Septuaginta agrave luz da filosofia grega332

ateacute pessoas envolvidas em praacuteticas hermeacuteticas A sua exegese viaja atraacutes no tempo antes

da criaccedilatildeo coacutesmica abordando Gn 13 para explicar que quando a luz primordial

apareceu no ldquoprimeiro diardquo depois da criaccedilatildeo do mundo apareceu nessa luz a forma do

antrophos-phos primordial ndash que o lg 77333 de Tomeacute identifica com Jesus ndash de onde

todas as coisas surgiram Grande parte da teologia de Tomeacute baseia-se na interpretaccedilatildeo

330 O mito gnoacutestico implica a figura de um deus inferior que criou uma criaccedilatildeo imperfeita ndash

Demiurgo ndash e governa o mundo atraveacutes de forccedilas malignas que afetam a alma humana e

dominam o corpo Em Tomeacute natildeo existe um tratamento negativo para com a criaccedilatildeo

encontramos ditos enigmaacuteticos inseridos no contexto das tradiccedilotildees sapienciais de Israel Uma

criaccedilatildeo perfeita a partir de uma luz primordial Pela investigaccedilatildeo realizada ateacute agrave data podemos

apreciar o Evangelho de Tomeacute como um exemplo entre muitos de uma variedade de

Cristianismo autecircntico que surgiu numa interseccedilatildeo criacutetica de vaacuterios percursos do cristianismo

primitivo Os mesmos percursos que produziram o Evangelho de Joatildeo e as cartas de Inaacutecio

metodologicamente seraacute prudente natildeo o inserir na categoria da ortodoxia ou heresia mas trataacute-

lo como uma manifestaccedilatildeo do cristianismo primitivo 331 Os judeus helenistas de Alexandria principalmente Fiacutelon de Alexandria representam o

pensamento vigente desta corrente judaica em Alexandria 332 O pensamento Platoacutenico nomeadamente o neoplatonismo que reinterpretou as obras de

Timeu e Parmeacutenides 333Lg 77 Jesus disse Eu sou a luz que os envolve a todos Eu sou o Todo O Todo saiu de mim

e o todo regressou a mim Rachai madeira aiacute estou eu levantai uma pedra aiacute me encontrareis

153

de Gn 126-27 que descreve a criaccedilatildeo da humanidade agrave imagem de Deus De acordo

com o lg 84 Jesus declara aos seus disciacutepulos ldquoquando virdes as vossas imagens que

chegaram a ser o vosso comeccedilohelliprdquo o comeccedilo da criaccedilatildeo do mundo na luz

primordialantrophos Lg 22 e 61 sugerem que Gn 127b ldquomacho e fecircmea os criourdquo

retratam a perda subsequente da condiccedilatildeo singular e original da humanidade e a sua

substituiccedilatildeo por uma condiccedilatildeo ldquodivididardquo privada da imagem divina Aqueles que

superam esta divisatildeo (exemplificada em especial por divisatildeo sexual Lg 11 e 61)

recuperam a sua identidade original com o ldquointeirordquo ndash o singular primordial antrophos

(lg 411) ndash e assim reconhecem-se como ldquofilhos do Pai viventerdquo Antes da criaccedilatildeo

humana (lg 77) antes de todas as coisas existia uma luz primordial ndash a luz que apareceu

no ldquoprimeiro diardquo (Gn 13) Esta luz primordial impregna e imbui toda a criaccedilatildeo

estando debaixo das pedras ou nos madeiros Antes da criaccedilatildeo esta luz manifestou-se de

facto numa forma humana porque a lg 77 personifica a luz divina que fala na primeira

pessoa com uma voz humana Esta exegese concebe a luz como um ser antropomoacuterfico

Este ser [Jesus vivente] que aparece na luz primordial eacute humano ou divino No lg 50

que tambeacutem se refere a Gn 13 descreve o lugar onde a luz procedeu de si mesma

Poimandres diz que de acordo com Gn 13 Deus chamou-se a si proacuteprio (ou a uma

emanaccedilatildeo de si) agrave existecircncia O lg 77 identifica o ser que aparece na luz primordial

como anthropos e theos de forma misteriosa O texto de Tomeacute apresenta Jesus vivente a

falar atraveacutes dessa luz divina que siultaneamente imbui o universo brilhando por todos

os lugares O que Deus chamou agrave existecircncia em Gn 13 eacute na exegese de Tomeacute uma

emanaccedilatildeo do seu proacuteprio ser ndash luz que manifesta o divino o protoacutetipo do ser humano e

a energia manifesta em ldquotodas as coisasrdquo A questatildeo deste lg 50 acerca da identidade dos

disciacutepulos eacute ainda pertinente de se enquadrar em Gn 13 e 22 se o sinal do Pai eacute um

movimento e um repouso A atividade de Deus durante a criaccedilatildeo nestes versiacuteculos

inicia-se com o movimento do espiacuterito de Deus sobre as aacuteguas que continua pelos seis

dias da criaccedilatildeo e o repouso divino no seacutetimo dia Assim o grupo de logia que

interpretam Gn 1 direcionam aqueles que procuram Deus atraveacutes da imagem divina

dada na criaccedilatildeo De acordo com o lg 24334 Jesus repreende aqueles que tentam procurar

Deus noutro lugar Ao perguntarem o lugar onde Jesus se encontrava ele redireciona a

questatildeo para a luz oculta no interior ldquoHaacute luz dentro de um homem de luz e ele ilumina

334 ldquoOs seus disciacutepulos disseram Indica-nos o lugar onde estaacutes porque temos necessidade de o

procurar Ele disse-lhes Quem tiver ouvidos oiccedila Haacute luz dentro de um homem luminoso e

ilumina o mundo inteiro Se natildeo ilumina eacute escuridatildeordquo Lg 24

154

o mundo inteirordquo ele natildeo direciona os disciacutepulos na direccedilatildeo dele como faz Jesus em Jo

146 mas em direccedilatildeo agrave luz oculta dentro deles Se esta luz ilumina o mundo inteiro e eacute a

luz primordial entatildeo essa luz eacute ele O lg 83 explica que ldquoas imagens se revelaram ao

homem e a luz que haacute nelas oculta-se na imagem da luz do Pai manifestar-se-agrave e a sua

imagem (ficaraacute) oculta pela sua luzrdquo Este dito sugere que mesmo ao ver a imagem

divina o disciacutepulo natildeo conseguiraacute ver a sua radiacircncia completa Ao analisar estes versos

nota-se que o Evangelho de Tomeacute natildeo tem o tom do mito gnoacutestico que diz ao disciacutepulo

para procurar a sua ldquoorigem divinardquo de acordo com o qual a humanidade ou alguma

parte dela eacute naturalmente divina Em vez disso o disciacutepulo eacute instruiacutedo a recuperar a

forma da criaccedilatildeo original Aqui temos duas mentalidades completamente diferentes no

quadro do pensamento do II seacuteculo A teologia de Tomeacute e a sua antropologia natildeo

pessupotildee um mito gnoacutestico geneacuterico a fonte da sua convicccedilatildeo religiosa eacute Gn 1 e a

exegese que nele realizou que como vimos era bastante comum no seu tempo335

Agrave parte desta questatildeo especiacutefica o texto de Tomeacute tem um caraacuteter gnoacutestico na sua

ideologia religiosa

7 A Cacircmara Nupcial como chave hermenecircutica no Evangelho de Tomeacute

Se natildeo fizerdes do saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pai336

Ao completarmos o nosso estudo textual propomos uma reflexatildeo teoloacutegica

sistemaacutetica dos vaacuterios contributos do tema da cacircmara nupcial na espiritualidade do

evangelho de Tomeacute A primeira questatildeo que se levanta eacute se de facto eacute pertinente

considerarmos esse tema relevante uma vez que o mesmo soacute tem duas referecircncias

diretas em todos os 114 logia A resposta a essa questatildeo eacute afirmativa porque apesar de

natildeo encontrarmos muacuteltiplas referecircncias diretas encontramos um padratildeo simboacutelico

descrito em forma de jornada interior Esta jornada composta por quatro fases

fundamentais evoca um processo transformacional da perceccedilatildeo do leitor de Tomeacute

A questatildeo de partida seraacute identificarmos o papel da imageacutetica nupcial no texto de Tomeacute

e tentarmos perceber ateacute que ponto esta natildeo descreve uma uniatildeo miacutestica substancial e

metafiacutesica entre o ser humano e o divino

335 Cf Pagels H E (1999) 477-496 336 Log 27

155

A proposta de uma nova traduccedilatildeo levada a cabo pelo professor Joseacute Augusto Ramos

tambeacutem seraacute necessaacuteria uma vez que o termo monachos eacute um dos elementos

fundamentais da nossa interpretaccedilatildeo nesta traduccedilatildeo alinha-se com as linhas gerais do

nosso pensamento

No seu comentaacuterio a este evangelho o autor refere que o conhecimento eacute sacramento da

unificaccedilatildeo do humano com o divino337 O dualismo eacute a preocupaccedilatildeo gnoacutestica por

excelecircncia mas muitas vezes os estudiosos natildeo encaram esta problemaacutetica no prisma

correcto Isto porque o dualismo eacute tratado pelos gnoacutesticos como ideal metafiacutesico e

antropoloacutegico oposto ao ideal que conduz agrave gnose Sendo assim um estado de existecircncia

ausente de gnose e de liberdade eacute um estado de conflito e tensatildeo somente o

conhecimento facultado pela gnose e pela identificaccedilatildeo do ser com as realidades

superiores propostas pelo evangelho de Tomeacute poderatildeo transitar o ser dual para um ser

unificado Eacute neste tom que o nosso autor traduz o termo monachos argumentando que

natildeo se trata de um termo aplicado aos solitaacuterios que optam pela ascese mas antes a todo

aquele que se unifica acima das suas tensotildees e conflitos para tornar-se espelho da

gnose338

O conceito de monakhoacutes palavra originalmente grega e expressa pelo texto copta de

Tomeacute exprime por um lado a superaccedilatildeo da dualidade eacutetica e antropoloacutegica dentro da

experiecircncia do miacutestico asceta como tambeacutem se refere a ultrapassar a dualidade

antropoloacutegica e sexual entre homem e mulher bem como superar a dualidade

metafiacutesico-teoloacutegica proposta em termos de messianismo existente339

Em termos praacuteticos parece que a gnose promete uma superaccedilatildeo pelo menos a niacutevel da

perceccedilatildeo de todos os limites e contornos definidos pela experiecircncia humana natildeo

reconhecendo divisotildees a gnose reconhece a unidade que permeia e subjaz todos os

fenoacutemenos da existecircncia

Este conceito ilumina e esclarece em toda a sua abrangecircncia a afirmaccedilatildeo de Jesus

quando este refere que soacute o monakhoacutes entraraacute na cacircmara nupcial

Apenas o ser unificado e transcendente que trabalhou e superou interiormente as suas

vaacuterias tensotildees ideoloacutegicas e existenciais pode apreender o conceito de permanecircncia e de

gnose

337 Ramos (1992) 25 338 Ramos (1992) 110 339 Idem

156

Toda a leitura elaborada ateacute aqui natildeo teraacute sido em vatildeo uma vez que o conceito de

solidatildeo eacute na minha leitura apenas um esforccedilo metafoacuterico para o autor descrever o

processo de interiorizaccedilatildeo e busca gnoacutestica no seu iacutentimo os inteacuterpretes que defendem a

solitude devem apenas lecirc-la nos termos psicoloacutegicos da busca interior e da meditaccedilatildeo

dos ditos enigmaacuteticos de Tomeacute e contemplaccedilatildeo da literatura gnoacutestica em geral

Sendo que o conceito de unificaccedilatildeo eacute digamos o resultado oacutebvio e loacutegico que o processo

gnoacutestico inicia com a sua interioridade e sua reflexatildeo e a sua hermenecircutica meditativa

Natildeo podemos no nosso estudo perder o conceito em anaacutelise limitando a nossa leitura a

um pormenor do processo a necessidade de apresentar o princiacutepio proposto por Tomeacute

os meios e por fim a conclusatildeo devem ser os elementos necessaacuterios para definirmos o

conceito de monakhoacutes e o conceito de cacircmara nupcial

Neste evangelho Jesus o vivente comeccedila por lembrar ao leitor que este no seu estado

atual perdeu a gloacuteria que outrora jaacute teve num estado paradisiacuteaco Ao longo do texto os

temas da perda retorno agrave origem unificaccedilatildeo separaccedilatildeo satildeo constantes e estatildeo

associados agrave revelaccedilatildeo final a entrada na cacircmara nupcial

A cacircmara nupcial eacute assim o siacutembolo que representa a finalidade do evangelho de Tomeacute

eacute o regresso ao iniacutecio onde o leitor chega a ser o que jaacute era (log 19)

Num esforccedilo de fundamentaccedilatildeo textual desta hipoacutetese iremos apresentar o padratildeo de

pensamento nupcial existente ateacute agrave eacutepoca do nosso texto e iremos demonstrar este

padratildeo na composiccedilatildeo do evangelho

O padratildeo de pensamento de Tomeacute herda muito da criatividade e da interioridade da

tradiccedilatildeo sapiencial judaica num primeiro aspeto Jesus aparece como figura de

Sabedoria e procura levar os disciacutepulos a uma forma de realizaccedilatildeo pessoal

No livro da Sabedoria de Salomatildeo encontramos alguns traccedilos relevantes para o tema

da cacircmara nupcial Os termos que descrevem a uniatildeo da Sabedoria com Deus

correspondem de forma aproximada agrave descriccedilatildeo da uniatildeo entre a Sabedoria e o aluno340

Isto implica que o objetivo do ser humano eacute unir-se a Deus neste contexto especiacutefico

essa uniatildeo soacute seria possiacutevel atraveacutes da Sabedoria de Deus

Neste verso ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que

a imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo341 entendemos que a uniatildeo com a

Sabedoria era possiacutevel por causa da realeza do homem e de este ser detentor de uma

mente racional permeada na sua vastidatildeo pelo espiacuterito inteligente da Sabedoria

340 Winston D (1979) 41 341 Sab 817

157

ldquoincoerciacutevel benfazejo amigos dos homens firme seguro sereno tudo podendo tudo

abrangendo que penetra todos os espiacuteritos inteligentes puros os mais sutis

A Sabedoria eacute mais moacutevel que qualquer movimento e por sua pureza tudo atravessa e

penetrardquo342

Assim como em Tomeacute a luz primordial de Jesus atravessa todas as coisas e eacute descrita

com vaacuterios dos atributos enumerados nesta citaccedilatildeo (log 77) eacute ainda mais evidente que a

Sabedoria estaacute presente na mente do ser humano no livro da Sabedoria de Salomatildeo ela

aparece como entidade imanente e transcendente e no evangelho de Tomeacute a presenccedila do

Reino e da luz do Reino estatildeo dentro e fora dos eleitos como realidades imanentes e

transcendentes

A linguagem apresentada na Sabedoria de Salomatildeo quando trata da busca da Sabedoria

e dos dons que esta promete alude de alguma forma agrave experiecircncia miacutestica atraveacutes da

qual o homem seraacute capaz de unir-se ateacute certo ponto com a divindade pelo menos no seu

aspeto de Sabedoria343

Importa referir que em lugar algum o texto indica que o percurso para esta consumaccedilatildeo

miacutestica se alcanccedila atraveacutes de formas especificas de oraccedilatildeo e de revelaccedilotildees esoteacutericas

O que encontramos como ponto central da possibilidade miacutestica eacute a devoccedilatildeo incessante

agrave busca da Sabedoria no coraccedilatildeo Ao lermos estes textos empregamos termos para noacutes

faacuteceis de generalizar mas difiacuteceis de aprofundar este texto de Salomatildeo natildeo trata

obviamente de um misticismo como o entenderiacuteamos nas tradiccedilotildees judaico-cristatildes

tardias Antes evoca jaacute de forma madura e trabalhada um esforccedilo de transferir a carga

eacutetica da religiatildeo e os seus princiacutepios para o interior do ser humano

Deus jaacute natildeo eacute apenas uma fonte suprema de autoridade mas uma figura que instruiacute

esclarece e nutre sentimentos de pureza interior Acima de tudo regista-se a ecircnfase da

racionalidade o pensar a religiatildeo o meditar no coraccedilatildeo os assuntos superiores

ldquoRefletindo assim de mim para comigo e meditando em meu coraccedilatildeo que a

imortalidade estaacute no parentesco com a Sabedoriardquo344

342 Sab 723-24 343 Winston D (1979) 42 344 Sab 817

158

Nesta bela frase captamos algo ainda pressentido nos apelos de Tomeacute meditar no

coraccedilatildeo refletindo para consigo o leitor eacute convidado a ser um exegeta um inteacuterprete do

seu interior

Sem esta base de interioridade e de reflexatildeo natildeo seraacute possiacutevel compreendermos o valor

da cacircmara nupcial em Tomeacute uma vez que tal como na literatura sapiencial usada nestes

exemplos esta consumaccedilatildeo miacutestica que em Tomeacute apela agrave divinizaccedilatildeo soacute se torna

possiacutevel por intermeacutedio de uma figura que em si reteacutem tudo aquilo que possa significar

a sabedoria e o conhecimento de Deus

O tema nupcial presente nos profetas na literatura sapiencial e na literatura

intertestamental dividem-se em quatro estaacutegios O primeiro estaacutegio recorda um estado

idiacutelico primitivo tido como perdido um estado nupcial existente na experiecircncia

paradisiacuteaca do ser humano Este estado perdeu-se e no seu lugar surgiu um estado de

separaccedilatildeo entre o divino e o humano

Como resposta a esta separaccedilatildeo o proacuteximo estaacutegio procura redimir e salvar a

humanidade desta separaccedilatildeo atraveacutes de um momento singular inserido na histoacuteria

humana o casamento de Deus com o povo de Israel no Monte Sinai Como continuaccedilatildeo

deste processo surge o conceito do Templo eacute neste espaccedilo central ao pensamento

religioso e sensiacutevel ao pensamento miacutestico que o evento redentor estabelecido no Sinai

eacute perpetuado na memoacuteria do povo A adoraccedilatildeo lituacutergica eacute uma declamaccedilatildeo incessante

deste casamento a liturgia eacute a uacuteltima grande resistecircncia agrave destruiccedilatildeo do Templo o seu

papel de unir a terra ao ceacuteu acarreta o dom de recordar e evocar para o plano real o

sentimento religioso que foi vivido pelos antepassados da feacute As raiacutezes da eucaristia e

do batismo assim como a reencenaccedilatildeo do casamento entre Cristo e a igreja e entre Israel

e Deus fundamentam-se todas na adoraccedilatildeo do Templo

Num estaacutegio final surge-nos uma realidade de cumprimento escatoloacutegico no

pensamento destes autores realiza-se finalmente o fim dos dias no Novo Testamento

Jesus celebra as nuacutepcias do cordeiro com a Igreja no Templo celestial Esta perspetiva eacute

de particular interesse para compreendermos este quarto momento na textualidade de

Tomeacute

Ao contraacuterio do cristianismo ortodoxo o evangelho de Tomeacute aproxima o seu

pensamento das sensibilidades rabiacutenicas e da literatura profeacutetica Para Tomeacute a

escatologia natildeo seraacute realizada no ceacuteu num final dos tempos anunciados antes eacute uma

realidade terrestre presente por descobrir como se de um misteacuterio alcanccedilaacutevel se tratasse

159

Tendo reunido os elementos do pensamento nupcial apresentaremos agora os quatro

estaacutegios comentados por Jesus em Tomeacute e daremos iniacutecio ao debate de algumas

doutrinas importantes que constituem este padratildeo de pensamento sendo tratadas como

conclusatildeo

Ao referir a questatildeo do simbolismo nupcial no evangelho de Tomeacute345 apontamos

as possiacuteveis trecircs uniotildees simboacutelicos que constituem a espinha dorsal do discipulado de

Tomeacute Ao refletirmos nos sentidos teoloacutegicos e no papel temaacutetico que a metaacutefora

nupcial subentende no texto registamos as seguintes hipoacuteteses

A finalidade da cacircmara nupcial surge como o alcance da luz primordial

assinalada na entrada do reino e representada pela uniatildeo miacutestica com a figura de Cristo

Em termos de interpretaccedilatildeo isto leva-nos a estabelecer com primeiro estaacutegio da

linguagem nupcial a realidade do reino como memoacuteria paradisiacuteaca

Neste evangelho o reino eacute apresentado como um reino paradisiacuteaco de luz preacute-

existente346 natildeo eacute localizado geograficamente no cosmos mas eacute associado com a lsquoluzrsquo

(log 49-50) Nas suas definiccedilotildees Jesus ainda refere que o Reino se encontra dentro e

fora dos eleitos (log 3) lugar de onde vieram e para onde regressaratildeo (log 49)

Numa abordagem inicial encontramos aqui uma realidade presente e indissoluacutevel de

todos os conceitos apresentados por Jesus todos os grandes temas desta narrativa

evocam como geacutenese o conceito do Reino primordial a luz que esclarece o eleito tudo

eacute discutido agrave luz deste conceito Sendo assim este o primeiro estaacutegio temaacutetico da cacircmara

nupcial em Tomeacute texto que relembra e recorda a grandeza desse reino que tornava o ser

humano grande e glorioso ldquoQuando estiverdes no seio da luz o que eacute que fareis No

dia em que eacutereis um chegastes a ser dois Mas quando chegueis a ser dois o que eacute que

fareisrdquo347

A logia mais direta no entanto refere a ideia do princiacutepio primordial ldquoOs disciacutepulos

disseram a Jesus Dizei-nos qual seraacute o nosso fim Jesus disse Haveis descoberto jaacute o

comeccedilo para que procureis o fim Onde estaacute o iniacutecio ali estaraacute o fim Feliz aquele que

se colocar no comeccedilo porque conheceraacute o fim e natildeo provaraacute a morterdquo348

345 Ver capiacutetulo 64 346 Gathercole S (2014) 145 347 Log 11 348 Log 18

160

Note-se que a promessa desta beatitude explicita a realizaccedilatildeo do primeiro mandamento

de Jesus neste evangelho ldquoAquele que encontrar a interpretaccedilatildeo destes ditos natildeo

saborearaacute a morterdquo349

Deste discurso surge a ideia que a exegese eacute tratada como um ato interior de se colocar

no comeccedilo o eleito abandona a dimensatildeo comum do espaccedilo e do tempo elevando o seu

pensamento ao comeccedilo onde natildeo procura o fim mas o iniacutecio

A ideia do estado paradisiacuteaco do homem eacute em Tomeacute apontada como um sonho que se

alcanccedila no despertar da mente a exegese eacute esse trabalho interior que dirige o pensador agrave

eternidade envolta numa luz incandescente Seria impossiacutevel lermos Tomeacute sem estarmos

atentos agrave sua poeacutetica eacute no encontrar o comeccedilo que o leitor abdica do final eacute no

conhecer-se a si proacuteprio que conhece o Pai Vivente

A atividade mental descrita como uma busca incessante aborda em termos meditativos o

inicio primordial do todo e o inicio de o proacuteprio ser como alvo do conhecimento e da

compreensatildeo

A natureza sapiencial foi aqui elevada ao tom misteacuterico sem contudo perder a sua

lucidez haacute um motivo para esta busca conhecer o princiacutepio conhecer o divino

conhecer o sujeito que busca e apreende a realidade

Os processos estatildeo interligados nesta teologia nupcial que se inicia no processo da

interiorizaccedilatildeo do tomar o corpo como texto para compreender os enigmas do saacutebio

Jesus Vivente

Foi desta forma que a literatura sapiencial se destacou nas tradiccedilotildees biacuteblicas o esforccedilo

da interiorizaccedilatildeo a imaginaccedilatildeo e a criatividade que associaram as eacuteticas aos oacutergatildeos do

corpo E como coroa desta genialidade concebe-se a figura da Sabedoria como

intermediaacuteria do conhecimento e da revelaccedilatildeo mas o saacutebio de Israel natildeo seraacute apenas um

conhecedor ele eacute um santo apaixonado pela sabedoria de Deus ele eacute o exemplo que

inspira os seus pares pela luz que irradia do seu entendimento

Em Tomeacute o eleito torna-se ele proacuteprio Jesus torna-se uma imagem dessa sabedoria que

inunda o espaccedilo de Tomeacute como luz primordial presente em tudo permeando a criaccedilatildeo

Claramente a figura de Jesus assemelha-se agrave figura da Sabedoria as implicaccedilotildees da

leitura satildeo oacutebvias deparamo-nos com uma religiatildeo por natureza interior atenta agrave

consciecircncia e agrave reflexatildeo embelezada por metaacuteforas e ditos enigmaacuteticos

349 Log 1

161

Acima de tudo uma religiatildeo que se perde nas paacuteginas de um livro nos enigmas e nos

duplos sentidos o ritual e a simples obediecircncia a mandamentos natildeo bastam para a sede

de compreensatildeo apresentada por estes adeptos da sabedoria

Se o primeiro estaacutegio nupcial eacute no nosso texto esta saudade pelo estado paradisiacuteaco um

reino de luz primordial em que o ser humano era majestade

O segundo momento desta reflexatildeo recria uma nova unificaccedilatildeo entre o divino e o

humano num processo de perceccedilatildeo da realidade O disciacutepulo eacute cheio de luz porque se

unifica em todos os aspetos e dessa forma gera nele aquilo que o pode salvar (log 24

61)

Chamamos a este processo do discipulado de Tomeacute de auto uniatildeo o evangelho descreve

os problemas do ser humano nunca em termos de faltas mas em termos de separaccedilatildeo

Haacute uma separaccedilatildeo entre o masculino e o feminino entre o interior e o exterior entre a

imagem e a luz

Note-se que aqui temos trecircs separaccedilotildees que levantam vaacuterias questotildees complexas pelo

menos a imagem e a luz constituem um desafio que jaacute abordamos anteriormente

Como linha interpretativa natildeo podemos deixar de referir que o segundo estaacutegio da

cacircmara nupcial eacute uma resposta agrave perda do primeiro estaacutegio ou seja se no primeiro

estaacutegio ocorreu uma separaccedilatildeo no segundo ocorreraacute uma unificaccedilatildeo Quando

analisamos os dados presentes na literatura judaico-cristatilde eacute na entrega da lei no pacto

do Sinai que se celebra um casamento entre Deus e o seu povo escolhido

Tomeacute emprega a linguagem do lsquoeleitorsquo este escolhido eacute filho do Pai Vivente e vai

receber aquilo ldquoque os olhos natildeo viram e que os ouvidos natildeo escutaram e o que matildeo natildeo

tocou e o que nem subiu ao coraccedilatildeo do homemrdquo350

A questatildeo aqui natildeo eacute tentarmos de forma alguma sugerir que Tomeacute entende algum dos

seus ensinos da forma que o povo judeu entendeu a experiecircncia da lei mosaica

Mas no entanto natildeo seraacute absurdo afirmar que Tomeacute entendia que os seus ensinos eram

revelaccedilotildees destinadas aos eleitos que as iriam interpretar e encontrar nelas a sua

imortalidade

A figura mediadora destas revelaccedilotildees era o Jesus Vivente assim como a Sabedoria

assume esta figura na literatura sapiencial Mediadores do quecirc Poderiacuteamos questionar

mediadores do divino com o humano atraveacutes de que processo Certamente um processo

350 Log 19

162

mental de interpretaccedilatildeo de algo escrito um pensamento critico que provocou uma

interiorizaccedilatildeo da religiatildeo e um despertar da criatividade e da imaginaccedilatildeo

A cacircmara nupcial eacute o psicopompo destas literaturas o centro que precisamos de refletir

para unir os diferentes momentos significativos daquilo que era entendido como o

casamento ou a unificaccedilatildeo com a deidade

Natildeo encontramos fora destes conceitos a ausecircncia de uma figura mediadora que vai dar

forma ao esforccedilo mental de adequar a perceccedilatildeo aquilo que seria a interpretaccedilatildeo do

divino Nisto o evangelho de Tomeacute enquadra-se perfeitamente na coordenada de

pensamento sapiencial do Antigo Meacutedio Oriente precisamos de mostrar agora as

implicaccedilotildees deste segundo estaacutegio das nuacutepcias

Primeiramente a luz interior eacute a revelaccedilatildeo porque essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente

em Tomeacute a redenccedilatildeo natildeo se encontra ligada agrave morte de Cristo mas antes agrave sua revelaccedilatildeo

como luz primordial que se oculta na humanidade Ao revelar essa luz dentro do seu

interior o disciacutepulo salva-se (log 70)

Esta epifania natildeo influencia apenas a questatildeo da imagem e da luz mas tambeacutem o

exterior e o interior e o masculino e o feminino como a luz primordial resplandece

sobre a presente realidade todas as sombras de confusatildeo satildeo dissipadas e a realidade

alinha-se em conformidade com essa luz primordial

No terceiro estaacutegio referimos que o simbolismo lituacutergico do templo foi entendido como

ferramenta de suma importacircncia para reproduzir e recordar o momento salviacutefico de

Israel

Interpretamos que a mesma realidade foi aplicada de forma semelhante no evangelho de

Tomeacute Como discutimos em capiacutetulos anteriores Tomeacute descreve uma experiecircncia

ascensionaacuteria com elementos lituacutergicos Esta experiecircncia parte do simbolismo do

templo de Jerusaleacutem no logia 50 encontramos assim a ascensatildeo visionaacuteria

Esta ascensatildeo visionaacuteria era um estaacutegio de preparaccedilatildeo para uma derradeira uniatildeo

miacutestica com Jesus na cacircmara nupcial instruccedilotildees de como jejuar orar e comportar-se nas

realidades celestiais

Em termos de tradiccedilatildeo literaacuteria nupcial o terceiro estaacutegio eacute o momento da espera o

momento da celebraccedilatildeo e da evocaccedilatildeo da derradeira realizaccedilatildeo escatoloacutegica

Em Tomeacute natildeo existe escatologia mas sim protologia pelo que podemos afirmar que a

uniatildeo final com Jesus e a sua transformaccedilatildeo miacutestica nesta figura torna o eleito apto a

unir-se com o divino

163

No log 27 Jesus fala do jejum e da observaccedilatildeo do saacutebado natildeo da forma comum aos

evangelhos sinoacuteticos mas atribuindo um sentido mais profundo a estas praacuteticas

religiosas ldquoSe natildeo jejuais do mundo natildeo encontrareis o Reino Se natildeo fizerdes do

saacutebado um saacutebado natildeo vereis o Pairdquo351

A diferenccedila deste logia para o logia 14 ldquose jejuais gerareis pecado em voacutes e se rezais

sereis condenadoshelliprdquo Pode ser explicada na questatildeo do motivo que leva estas atividades

a serem feitas no primeiro caso o jejum natildeo eacute uma privaccedilatildeo alimentar mas uma

privaccedilatildeo mental daquilo que fosse considerado o mundo e um obstaacuteculo agrave procura do

Reino

O saacutebado certamente teraacute algum tipo de memoacuteria associada mas tambeacutem seraacute entendido

como uma condiccedilatildeo para o eleito ver o Pai Noutra bem-aventuranccedila Tomeacute atribui aos

laacutebios de Jesus ldquoFelizes satildeo esses que foram perseguidos no seu coraccedilatildeo Eles satildeo os

que conheceram o pai de verdaderdquo352

O saacutebado poderaacute assim representar um estaacutegio do discipulado em que a perseguiccedilatildeo

ocorre dentro do proacuteprio coraccedilatildeo do eleito e deste modo ele contempla Deus

ldquoJesus disse contemplai o vivente enquanto estais vivos para que natildeo morrais e

procurando vecirc-los e natildeo sejais capazes de o verrdquo353

A contemplaccedilatildeo aqui tratada como ponderaccedilatildeo interior imaginaccedilatildeo e especulaccedilatildeo feita

a estes ditos pode ter provocado um fenoacutemeno de interioridade muito parecido com o

terceiro estaacutegio da metaacutefora nupcial Uma vez que os eleitos reconstruiram a sua

memoacuteria e a sua histoacuteria desde o exilio paradisiacuteaco ateacute a um trabalho interior de

unidade e iluminaccedilatildeo anseiam agora pela uniatildeo derradeira com a figura criacutestica

expressando estes atos de louvor que em Tomeacute nunca teremos a certeza do niacutevel da sua

organizaccedilatildeo

Sabemos que o ver ou contemplar a realidade divina associa-se a ser perseguido no

coraccedilatildeo quem aiacute for perseguido conheceu o Pai de verdade (log 69)

Ao que parece a introspeccedilatildeo poderia explicar este fenoacutemeno o nosso texto ainda

reformula o que eacute o jejum e o que eacute o saacutebado para Tomeacute o jejum eacute uma abstenccedilatildeo do

mundo e talvez quem sabe um meio de entrar no coraccedilatildeo O saacutebado natildeo seraacute soacute aquilo

que os contemporacircneos deste autor entenderiam como saacutebado mas tambeacutem uma

351 Log 27 352 Log 69 353 Log 59

164

meditaccedilatildeo profunda ldquofazer do saacutebado um saacutebadordquo talvez um percurso de contemplaccedilatildeo

visionaacuterio que levasse agrave visatildeo do Pai

A exposiccedilatildeo do log 50 encontra-se no capiacutetulo 55 no capiacutetulo 5 o misticismo no

Evangelho de Tomeacute eacute comentado e laacute satildeo tratados com mais detalhes todos os

elementos relacionados aos temas de ascensatildeo visionaacuteria e experiecircncia miacutestica relatados

em Tomeacute

Em tom de conclusatildeo falaremos do quarto estaacutegio nupcial tal como este se

encontra referido em Tomeacute A uniatildeo criacutestica abre-nos um conjunto de possibilidades

interpretativas como o tema da deificaccedilatildeo

Poreacutem torna-se necessaacuterio colocarmos mais uma questatildeo a esta nossa inquiriccedilatildeo

o que eacute que representa em termos de siacutembolo a cacircmara nupcial

O texto fala de uma cacircmara nupcial mas seraacute que apresenta uma estrutura um cenaacuterio

concreto onde ela se localize

Na verdade caminhamos mesmo no acircmbito da metaacutefora e da alegoria a cacircmara natildeo eacute

um espaccedilo fiacutesico mas eacute um edifiacutecio em constante mutaccedilatildeo conforme a consciecircncia de

quem a aborda ela expande-se ou contrai-se

Sabemos que eacute o espaccedilo onde o eleito se une agrave figura de Jesus ldquoo que beber da

minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele e as coisas

ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo354

A assimilaccedilatildeo que este texto retrata eacute mais intensa do que a forma como Paulo entendia

o crente estar em Cristo aqui encontramos um misticismo unitivo

A cacircmara nupcial tem como figura o proacuteprio Jesus vivente o jardim do Eacuteden o poccedilo

que borbulha e as palavras que desse poccedilo procedem

Beber da boca de Jesus pode ser interpretado como aceitar as palavras reveladas de

Jesus sem recorrer a nenhum tipo de ritual especiacutefico355

Neste acircmbito as promessas feitas por Jesus agravequeles que entram na Cacircmara Nupcial

bebendo da sua boca as palavras de sabedoria satildeo promessas protoloacutegicas de

deificaccedilatildeo

No Evangelho de Tomeacute o lsquofinal do temporsquo substitui-se pelo tempo lsquosem comeccedilo e sem

fimrsquo porque o tempo eacute a substacircncia do Reino que estaacute difundido por toda a terra mas os

homens natildeo o veem (lg 113)

354 Log 108 355 Gathercole S (2014) 591

165

O siacutembolo proeminente no mundo simboacutelico de Tomeacute eacute a lsquoluzrsquo a luz primordial auto

gerada que imbuiacute toda a criaccedilatildeo escondida na imagem presente dentro do ser humano

Essa luz eacute o proacuteprio Jesus Vivente que teraacute que ser encontrado pelos disciacutepulos no

interior com o autoconhecimento O poccedilo e a Cacircmara Nupcial aparecem como conceitos

semelhantes nos quais a figura de Jesus se transforma A sua boca eacute o poccedilo que

borbulha palavras de sabedoria que o disciacutepulo iacutentimo pode beber a fim de se tornar no

Jesus Vivente A Cacircmara Nupcial eacute o lugar onde se celebra esta uniatildeo iacutentima entre Jesus

e o disciacutepulo para o disciacutepulo entrar na cacircmara ele tem que entrar no poccedilo Como vimos

nos lg 74 e 75 haviam aqueles que estavam ao redor do poccedilo e junto agrave porta da cacircmara

e existiam os solitaacuterios que entravam dentro do poccedilo (dentro da boca de Jesus) e

entravam na porta da Cacircmara Nupcial Neste uacuteltimo estaacutegio eles transformavam-se no

Jesus Vivente sendo seres repletos de luz

Alcanccedilar esta meta eacute a grande finalidade do Evangelho de Tomeacute todo o seu esforccedilo

hermenecircutico e exegeacutetico todo o seu enquadramento mental aponta a leitura para esta

direccedilatildeo

O Eacuteden (e o estado adacircmico nupcial) eacute um reflexo da luz primordial e auto gerada a

Cacircmara Nupcial (e o seu estado de unidade luminosa)356 eacute um reflexo destas duas

imagens anteriores O poccedilo que borbulha aacuteguas de sabedoria celestial eacute um reflexo

destas trecircs realidades antecedentes Por fim o Jesus Vivente eacute uma imagem destes

quatro reflexos ou metaacuteforas

Em suma o ser humano veio da Cacircmara Nupcial onde a sua imagem estava unida agrave sua

luz quando ambas se separaram ele perdeu-se O objetivo da humanidade passa por

restaurar essa imagem perdida unindo novamente as duas

A Cacircmara Nupcial eacute o eixo cosmoloacutegico de Tomeacute neste evangelho a queda do homem eacute

pensada como uma desintegraccedilatildeo da realidade em opostos binaacuterios

O evangelho carateriza a sua audiecircncia como sendo lsquodoisrsquo (lg 11) o lg 22 foca-se na

divisatildeo interiorexterior em cimaem baixo masculinofeminino Faz-se tambeacutem a

distinccedilatildeo entre a lsquoimagemrsquo interna e a lsquosemelhanccedilarsquo externa (lg 84)

ldquoJesus disse Aquele que estaacute proacuteximo de mim estaacute proacuteximo do fogo e o que estaacute longe

de mim estaacute longe do Reinordquo357

356ldquoEm relaccedilatildeo a isto digo Se o disciacutepulo chega a ser igual encher-se-aacute de luz mas se chega a

estar dividido encher-se-aacute de trevasrdquo (lg 61) 357 Lg 82

166

Ser-se transformado pelo fogo e pela bebida era algo esperado na transformaccedilatildeo

miacutestica uma experiecircncia de ascensatildeo transformadora Ao subir ao ceacuteu o miacutestico

encontrava a luz de Deus escondida na sua kavod a tradiccedilatildeo judaica ensinou que os

justos seriam transformados em seres de luz e de fogo semelhantes ou superiores aos

anjos Como encontramos em Pesikta rabbati 117358

A camacircra nupcial desempenhava assim nas tradiccedilotildees gnoacutesticas uma espeacutecie de

experiecircncia ou comunhatildeo entre os crentes e as realidades superiores Estes modos

miacutesticos de uniatildeo exigiam uma preparaccedilatildeo preacutevia em termos eacuteticos mas tambeacutem a niacutevel

contemplativo e de meditaccedilatildeo Como foi referido no iniacutecio deste capiacutetulo acreditamos

que os traccedilos nupciais de Tomeacute herdam muito do discurso sapiencial judaico e da forma

como a figura da Sabedoria desempenha um papel de mediadora entre o adepto e o

divino Neste tipo de pensamento religioso eacute faacutecil notar a ecircnfase atribuiacuteda agrave experiecircncia

interior a meditaccedilatildeo a contemplaccedilatildeo e a reflexatildeo dos ditos enigmaacuteticos satildeo um traccedilo

comum que deu origem a esta expressatilde religiosa centrada numa perceccedilatildeo iacutentima e num

desejo de transcendecircncia

8 Siacutentese Hermenecircutica da Interpretaccedilatildeo Simboacutelica e Textual de Tomeacute

A imagem de Jesus no evangelho de Tomeacute ao longo deste trabalho tem sido explorada

sendo agora necessaacuterio elaborar uma siacutentese hermenecircutica que aponte a convergecircncia

dos vaacuterios resultados apresentados

Procuramos explorar novos elementos interpretativos que possibilitem uma

hermenecircutica diversificada do evangelho de Tomeacute A partir daquilo que podemos

entender como o seu contexto espacial e ideoloacutegico apontaacutemos certas temaacuteticas comuns

na eacutepoca da sua redaccedilatildeo Temaacuteticas estas direcionadas para as grandes questotildees da

existecircncia humana a sua origem e o seu destino final

Comprovamos que a textualidade de Tomeacute natildeo se limita apenas agrave especulaccedilatildeo

metafiacutesica e filosoacutefica tatildeo comum do seu tempo mas abrange a noccedilatildeo do miacutestico e do

secreto

A experiecircncia visionaacuteria na aquisiccedilatildeo da gnose situa este evangelho nas franjas da

tradiccedilatildeo miacutestica judaica da Palestina do primeiro seacuteculo

358Cf Deconick D April (1996) 105

167

Muitas criacuteticas poderatildeo ser levantadas quanto a esta perspetiva se por um lado o

evangelho reuacutene as leituras do judaiacutesmo heleniacutestico realizadas ao mito da criaccedilatildeo na

Biacuteblia Hebraica por outro apresenta um misticismo judaico latente derivado da

literatura sapiencial judaica e de tradiccedilotildees miacutesticas rabiacutenicas

Existe uma convergecircncia entre o discurso gnoacutestico do evangelho de Tomeacute e o discurso

sapiencial da Sabedoria

Torna-se tambeacutem difiacutecil prosseguir esta discussatildeo sem enquadrar o simbolismo do

Templo de Jerusaleacutem na cosmologia de Tomeacute

O mito da criaccedilatildeo que eacute a base teoloacutegica de Tomeacute foi alvo do esforccedilo exegeacutetico por

parte dos leitores gnoacutesticos a simboacutelica do Templo preservava as tradiccedilotildees orais sobre a

forma como o mesmo mito era interpretado

O mundo rabiacutenico natildeo se concilia com o mundo heleniacutestico mas ambos olhavam para

as tradiccedilotildees do templo e viam na sua realidade simboacutelica uma metaacutefora para o Eacuteden

Metaacutefora esta trabalhada pela exegese dos textos da criaccedilatildeo por parte de rabinos e de

gnoacutesticos

A tradiccedilatildeo do templo era assim a reliacutequia em forma de memoacuteria das paacuteginas do Geacutenesis

aludindo agraves suas realidades paradisiacuteacas enquadrando-se no espaccedilo mental destes dois

mundos que convergiam neste debate

O misticismo transformacional como proposta de salvaccedilatildeo depende da entrada do

adepto na cacircmara nupcial Como foi demonstrado a cacircmara nupcial representa o espaccedilo

mais iacutentimo do Templo o Santo dos Santos nesse lugar que corresponde ao espaccedilo

mais iacutentimo do Jesus Vivente o disciacutepulo experimenta uma intimidade com o seu

mestre

ldquoJesus disse O que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a

ser como ele e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108)

Daacute-se uma fusatildeo e uma deificaccedilatildeo entre o disciacutepulo e Jesus

A simboacutelica do Templo de Jerusaleacutem eacute fundamental nesta noccedilatildeo de deificaccedilatildeo neste

loacutegion o tema eacute suplementado por uma reinterpretaccedilatildeo do siacutembolo do templo em termos

de misticismo de Mercava isto eacute em termos de uma experiecircncia extaacutetica da presenccedila

divina interpretada com o simbolismo do templo

Jesus eacute na sua proacutepria pessoa a essecircncia da presenccedila de Deus constituindo tambeacutem o

santuaacuterio celestial onde o disciacutepulo acede para experimentar as realidades divinas

Esta experiecircncia miacutestica permite ao disciacutepulo contemplar a realidade divina de forma a

se transfigurar na mesma

168

A cacircmara nupcial eacute o lugar da luz primordial eacute tambeacutem o lugar da revelaccedilatildeo por de traacutes

da cortina do tempo Os vaacuterios elementos simboacutelicos do templo discutidos nesta tese

facultam as ferramentas necessaacuterias para uma interpretaccedilatildeo mais aprofundada do

significado da cacircmara nupcial no evangelho

Eacute ainda necessaacuterio estabelecer um elo comparativo com o evangelho de Joatildeo onde

existe um esforccedilo de conjugar dois fenoacutemenos bastante documentados na eacutepoca da sua

redaccedilatildeo a afirmaccedilatildeo do tabernaacuteculo no deserto contra o templo de Herodes em

Jerusaleacutem com base em 2 Samuel 7 e a experiecircncia miacutestica da adoraccedilatildeo do templo

celestial atraveacutes do misticismo da Mercava359 Nos manuscritos do Mar Morto

encontramos o mesmo fenoacutemeno isto indica que nas suas proacuteprias palavras o autor do

evangelho de Joatildeo expressou ideias contemporacircneas a um voacutertice de tradiccedilotildees acerca do

templo impuro e um templo celestial alcanccedilado por uma experiecircncia miacutestica

Estas tradiccedilotildees partem todas da exegese feita a 2 Samuel 7 este texto foi fundamental

na formaccedilatildeo do pensamento de uma das correntes judaicas da Palestina que se situa na

tradiccedilatildeo das jornadas no deserto e a presenccedila de Deus na Tenda da Presenccedila em

oposiccedilatildeo agraves pretensotildees do templo de Jerusaleacutem e o seu sacerdoacutecio Apesar do autor do

evangelho de Joatildeo natildeo ter citado diretamente esta tradiccedilatildeo exegeacutetica de 2 Samuel 7 a

sua temaacutetica e os seus toacutepicos demonstram que esta tradiccedilatildeo era conhecida e foi usada

como base ideoloacutegica360

No caso do evangelho de Joatildeo Jesus eacute apresentado como o tabernaacuteculo vivo em carne

onde a gloacuteria de Deus estava presente em contrapartida o templo de Jerusaleacutem era

impuro e ausente da gloacuteria divina Os disciacutepulos acediam ao templo celestial que era o

proacuteprio Jesus porque este abriu um caminho ateacute esta realidade

Quando o proacutelogo proclama que a palavra fez a sua habitaccedilatildeo no meio dos homens

afirma que a carne de Jesus Cristo eacute a nova localizaccedilatildeo da presenccedila de Deus na terra

Jesus eacute o substituto do antigo tabernaacuteculo Este evangelho apresenta-nos Jesus como

uma substituiccedilatildeo do templo (Jo 219-22)

Em Tomeacute o mesmo tema encontra-se refletido com outras metaacuteforas centradas na

cacircmara nupcial o Santo dos Santos Jesus apresenta-se como este espaccedilo sagrado onde

tudo comeccedilou Ele eacute a luz primordial que brilha nesta dimensatildeo eacute tambeacutem o proacuteprio

poccedilo que borbulha a diferenccedila entre Joatildeo e Tomeacute consiste na forma como cada um vai

tratar o resultado dessa experiecircncia Em Joatildeo a experiecircncia miacutestica leva a um

359 Cf Draper (1997) 270 360 Cf Draper (1997) 274

169

reconhecimento de que Jesus eacute o filho de Deus esse conhecimento natildeo eacute apenas

teoloacutegico o disciacutepulo apreende a presenccedila da gloacuteria de Deus dentro de Jesus como

Israel sentia a presenccedila da gloacuteria de Deus na tenda da revelaccedilatildeo no deserto

Em Tomeacute o resultado desta experiecircncia leva a deificaccedilatildeo361 conceito importante para

entendermos as formas de transcendecircncia no judaiacutesmo e cristianismo primitivos

Este evangelho apresenta uma forma de deificaccedilatildeo cristatilde primitiva paralela ao discurso

de deificaccedilatildeo no evangelho de Joatildeo no entanto em Tomeacute a deificaccedilatildeo eacute uma natureza

divina interna uma identificaccedilatildeo com o Jesus divino

Neste documento a questatildeo da deificaccedilatildeo eacute essencial para entendermos vaacuterios dos

outros temas subjacentes ao evangelho de Tomeacute

A noccedilatildeo da luz interior a preexistecircncia cristatilde a identificaccedilatildeo com o salvador a

unicidade ou igualdade com Deus e a ascensatildeo transformativa para ver Deus

A deificaccedilatildeo como expressatildeo da cacircmara nupcial eacute assim a doutrina chave para

integrarmos a estrutura do pensamento em Tomeacute acerca da salvaccedilatildeo

A natureza divina de Jesus eacute comparada com a natureza dos cristatildeos de Tomeacute no loacutegion

22 ldquoquando fizerdes dos dois um e fizerdes o exterior com o interior e o de cima como o

de baixo de modo que faccedilais o masculino e o feminino num soacute para que o masculino

natildeo seja masculino nem o feminino seja feminino quando fizerdes olhos em lugar de

um olho e uma matildeo em lugar de uma matildeo e um peacute em lugar de um peacute uma imagem em

lugar de uma imagem entatildeo entrareis no Reinordquo

A alusatildeo a transformaccedilatildeo de uma imagem em outro eacute algo reminiscente da

transformaccedilatildeo paulina a linguagem da ldquoiconificaccedilatildeordquo362

Em 2 Co 318 o apoacutestolo fala do cristatildeo transformado agrave ldquomesma imagemrdquo de Cristo

com a correspondecircncia exata do olho a olho e peacute com peacute enfatiza-se esta ldquomesma

imagemrdquo referida por Paulo em todos os aspetos363

No evangelho de Joatildeo esta ideia natildeo aparece de forma expliacutecita o autor nunca chama a

Jesus imagem de Deus De qualquer forma esta noccedilatildeo encontra-se presente nas

seguintes palavras ldquoquem me vecirc a mim vecirc o pairdquo (Jo 149) Neste evangelho Jesus eacute a

imagem eterna de Deus ao tornar-se carne ele natildeo deixa de ser essa imagem O que

361 A deificaccedilatildeo conteacutem quatro ideias baacutesicas (1) natildeo haacute diferenccedila infinita entre o divino e os

humanos (2) a divindade manifesta-se numa variedade de seres e qualidades (3) os seres

humanos podem participar dessas qualidades e ateacute mesmo compartilhar a identidade de um ser

divino particular (4) e essa participaccedilatildeo eacute ldquorealistardquo no sentido de que os humanos realmente

fazem parte da classe ldquoDeusseres divinosrdquo Cf Litwa (2015) 428 362 Cf Litwa (2015) 437 363 Cf Idem 438

170

concluiacutemos desta mensagem eacute que apenas a Jesus cabe o direito de ser essa imagem

divina os seus disciacutepulos nunca satildeo convidados a tornarem-se a ldquomesma imagemrdquo que

Cristo eacute

Em Tomeacute por outro lado os cristatildeos e Cristo tornam-se a mesma imagem conforme o lg

22 esta noccedilatildeo eacute apresentada num caraacuteter misteacuterico Se lermos atentamente o evangelho

natildeo eacute dado ao leitor nenhuma indicaccedilatildeo direta sobre a que imagem cada um estaacute a ser

assemelhado Se os seres humanos foram feitos agrave imagem da Luz entatildeo eles estatildeo a ser

transformados agrave imagem de Jesus ldquoa Luzrdquo acima do Todo (lg 77)

A ldquoimagemrdquo funciona como um arqueacutetipo e todas as imagens referentes a Jesus no

evangelho teratildeo o seu reflexo nos disciacutepulos No lg 22 ao afirmar ldquoquando fizerdes dos

dois umrdquo Jesus evoca o princiacutepio ensinado no lg 106 ldquoquando fizerdes dos dois um

chegareis a ser filhos do homemrdquo Estes ldquofilhos do homemrdquo possuem no evangelho uma

natureza divina tecircm luz interior (lg 24) ascendem aos ceacuteus (lg 5059) e habitaratildeo no

seio da luz (lg 11)

Esta sucessiva semelhanccedila do arqueacutetipo de Jesus com o cristatildeo de Tomeacute culmina numa

situaccedilatildeo de igualdade entre os dois Esta igualdade radical com Jesus leva o disciacutepulo agrave

identificaccedilatildeo O lg 108 sublinha a centralidade desta temaacutetica na teologia de Tomeacute

estando tambeacutem diretamente ligada ao simbolismo da cacircmara nupcial lugar onde a

derradeira transformaccedilatildeo ocorre para que haja a identificaccedilatildeo plena entre o disciacutepulo e o

mestre

ldquoO que beber da minha boca chegaraacute a ser como eu Eu tambeacutem chegarei a ser como ele

e as coisas ocultas ser-lhe-atildeo reveladasrdquo (lg 108) A identificaccedilatildeo entre Jesus e o eleito

ocorre por meio de um beijo iacutentimo atraveacutes do qual as aacuteguas da vida fluem da boca de

Jesus para a boca do disciacutepulo O gesto iniciaacutetico do beijo alude claramente agrave simboacutelica

da cacircmara nupcial ldquoHaacute muitos que estatildeo junto agrave porta mas os solitaacuterios satildeo os que

entraratildeo na cacircmara nupcialrdquo (lg 75)

O papel da exegese nos leitores de Tomeacute natildeo pode ser posto de parte a primeira

instruccedilatildeo neste evangelho dada ao leitor consiste em este ter a correta interpretaccedilatildeo dos

ditos de Jesus para poder alcanccedilar a imortalidade Seraacute que a experiecircncia miacutestica e de

traccedilos visionaacuterios (lg 50) descrita em Tomeacute resume toda a atividade espiritual destes

leitores Como eacute que para eles a deificaccedilatildeo era compreendida

Sem corrermos o risco de entrarmos em grandes especulaccedilotildees podemos sucintamente

descrever como eacute que a exegese aos textos sagrados era realizada na eacutepoca em que

Tomeacute foi escrito e interpretado pelos seus leitores

171

Um breve estudo torna-se necessaacuterio uma vez que natildeo foi inserido no corpo do trabalho

por natildeo fazer parte do fio condutor de ideias acerca do texto e das suas envolventes

Estas informaccedilotildees satildeo pertinentes na conclusatildeo porque demonstram a necessidade de

compreendermos a mente simboacutelica da antiguidade e como esta lidava com os seus

textos de forma alegoacuterica e criativa Ao mencionarmos o valor simboacutelico das tradiccedilotildees

orais e das memoacuterias do templo e quem sabe o estado primordial do Eacuteden notamos que

estes ecos surgem nos textos que chegaram ateacute noacutes na forma de mitos relatos

apocaliacutepticos e episoacutedios biograacuteficos de heroacuteis que representam autecircnticos arqueacutetipos

Ningueacutem pode afirmar que os traccedilos miacuteticos e simboacutelicos da memoacuteria do templo de

Jerusaleacutem natildeo se encontram presentes no livro do Apocalipse ou no livro de Enoque

Da mesma forma o evangelho de Joatildeo e o evangelho de Tomeacute natildeo abdicaram ateacute certo

grau de usarem ideias e exegeses formuladas no seu proacuteprio tempo para criarem os seus

textos Ao referirem o estado primordial a luz primordial referem-se ao mito do Eacuteden

que por sua vez era representado no Templo de Jerusaleacutem

Se historicamente estes elementos ajudam o leitor a manter um fio condutor que lhe

permite estar atento aos pormenores e detalhes que doutro modo passariam

despercebidos por natildeo serem teacutecnicos nas fontes primaacuterias da histoacuteria mas por se

ocultarem nas memoacuterias e nos significados perdidos das palavras Teremos que

prosseguir a nossa investigaccedilatildeo natildeo tanto nos significados alegoacutericos mas mais nos

processos que os produziram Como eacute que o pensamento exegeacutetico funcionava O que

era vaacutelido e liacutecito do ponto de vista interpretativo para o leitor do evangelho de Tomeacute

A salvaccedilatildeo era o conhecimento a perceccedilatildeo interior da luz divina mas isto soacute seria

possiacutevel atraveacutes da correta leitura e interpretaccedilatildeo dos ditos de Jesus Qual entatildeo a forma

que estes leitores consideravam adequada

No mundo greco-romano os autores pensavam no impacto que o espiacuterito exercia na

variedade de textos judaicos Vaacuterios autores judeus acreditavam que a verdadeira

interpretaccedilatildeo dos textos era um processo inspirado um fenoacutemeno carismaacutetico364

Eacute em autores como Fiacutelon de Alexandria que melhor detetamos este pensamento Fiacutelon

descreve em Som 2252 a voz invisiacutevel que escutava quando estudava as escrituras

ldquoEu ouccedilo mais uma vez a voz do espiacuterito invisiacutevel o inquilino secreto familiar dizendo

Amigo parece que haacute uma questatildeo grande e preciosa de que tu natildeo conheces nada e

isso de boa vontade mostrar-te-ei porque muitas outras liccedilotildees eu te deirsquordquo

364 Cf Levison (1999) 38

172

Fiacutelon acreditava que a mente era o espaccedilo da atividade do espiacuterito a verdade era o

propoacutesito da inspiraccedilatildeo espiritual sendo que a conjetura e orientaccedilatildeo satildeo os meacutetodos da

atividade espiritual Encontramos esta crenccedila no excerto em Vit Mos 2264-65

ldquoMoiseacutes quando ele ouviu falar sobre isto (o manaacute) e tambeacutem o viu ficou

impressionado e guiado natildeo tanto por uma inspiraccedilatildeo enviada por Deus fez um anuacutencio

do Saacutebado Eu natildeo preciso de dizer que estes tipos de conjeturas satildeo proacuteximos das

profecias A mente natildeo poderia ter feito um objetivo tatildeo direto se natildeo houvesse tambeacutem

o espiacuterito divino guiando-a para a proacutepria verdaderdquo

Fiacutelon emprega a palavra conjetura em vaacuterios contextos relacionados com o pensamento

as opiniotildees e a adivinhaccedilatildeo365 Por exemplo em Gaius 21 ele refere que ldquoa mente

humana na sua cegueira natildeo percebe o seu interesse real e tudo o que pode fazer eacute levar

conjeturas e suposiccedilotildees como guia em vez do conhecimentordquo

O modelo para esta forma de inspiraccedilatildeo pode ser traccedilado ateacute agrave memoacuteria de Soacutecrates

Fiacutelon retrata Soacutecrates como ldquoaquele que ficou apaixonado pela beleza agorardquo (Plant 65)

O aspeto mais interessante nestes dois autores eacute o conceito do espiacuterito que leva agrave

inspiraccedilatildeo Platatildeo deu especial atenccedilatildeo ao daimonion inspirador de Soacutecrates366

Soacutecrates descreveu-o ldquohellipeu pensei ter ouvido uma voz delehelliprdquo (Phaedrus 242C)

reunimos aqui os similares neste conceito de inspiraccedilatildeo Fiacutelon descreve a comunicaccedilatildeo

a partir do espiacuterito em Vit Mos 2265 Teoacutecrito entendia que o daimonion de Soacutecrates

era um guia (Gen Socr 580 C) Fiacutelon utiliza o verbo guiar para descrever a direccedilatildeo do

espiacuterito divino em Vit Mos 2 265 e a principal funccedilatildeo do daimonion de Soacutecrates

corresponde agrave principal funccedilatildeo da inspiraccedilatildeo na introduccedilatildeo que Fiacutelon faz ao dom

profeacutetico de Moiseacutes em Vit Mos 2 187 292 Os assuntos do daimonion iluminados

inescrutaacuteveis para a sabedoria humana soacute se alcanccedilam pela inspiraccedilatildeo por isso Moiseacutes

como profeta ldquodeclarou por inspiraccedilatildeo o que natildeo pode ser apreendido pela razatildeordquo

(2187)367

De forma a concluirmos esta breve apresentaccedilatildeo do pensamento de Fiacutelon de Alexandria

iremos dirigir a nossa atenccedilatildeo a outro trabalho exegeacutetico deste autor onde ele afirma ter

recebido uma interpretaccedilatildeo biacuteblica especiacutefica Neste texto Fiacutelon discute a ldquopalavra

elevadardquo o sentido alegoacuterico dos dois querubins

365 Cf Idem 44 366 Cf (Euthyphro 3B Apologia 40A) 367Levison (1999) 46

173

ldquoMas haacute um pensamento mais elevado que estes Ele vem de uma voz na minha proacutepria

alma que frequentemente eacute possuiacuteda por Deus e diviniza-se onde natildeo sabe Este

pensamento gravarei em palavras se puder A voz disse-me que enquanto Deus eacute

realmente um seus poderes superiores e regentes satildeo dois ateacute mesmo a bondade e a

soberania e a beneficecircncia da Causa tu entenderaacutes como essas potecircncias natildeo

misturadas satildeo misturadas e unidas como onde Deus eacute bom todavia a gloacuteria da sua

soberania eacute vista em meio agrave beneficecircncia como onde se reina atraveacutes da

soreveignidade a beneficecircncia ainda Assim tu podes ganhar as virtudes incluiacutedas

destas potecircncias uma coragem alegre e reverente reverecircncia para com Deusrdquo (Cher

27-29)

A questatildeo colocada nesse texto diz respeito agrave existecircncia dos dois querubins o autor

afirma que aprendeu uma clara liccedilatildeo acerca da soberania e beneficecircncia da Causa Com

estas reflexotildees autobiograacuteficas Fiacutelon de Alexandria esboccedila um retrato viacutevido da sua

experiecircncia inspirada como inteacuterprete da Toraacute Fiacutelon ouve uma realidade exterior

expressa na forma de uma voz ou espiacuterito que ensina a sua mente a partir do interior

dirigindo-o ao conhecimento que natildeo seria de outra forma alcanccedilado O ldquopensamento

elevadordquo da Toraacute segundo Fiacutelon ldquosurge de uma voz na minha proacutepria almardquo (Chr27)

as soluccedilotildees para as dificuldades exegeacuteticas surgem quando ldquoo espiacuterito invisiacutevelrdquo fala

(Som 2252)368

Torna-se ainda pertinente fazer uma breve menccedilatildeo agrave obra de Plutarco De genio Soacutecratis

onde Siacutemias descreve um ensino que alega ter ouvido de Soacutecrates ldquoque as pessoas

revindicavam a comunicaccedilatildeo visual com o ceacuteu eram impostoras enquanto aquelas que

afirmavam ter ouvido uma voz ele prestou muita atenccedilatildeo e indagou com insistecircncia

sobre os detalhesrdquo (588C)

A interpretaccedilatildeo da escritura era na antiguidade uma experiecircncia espiritual em que o

inteacuterprete abria a sua mente agrave novidade da revelaccedilatildeo Algo que estaacute inerente agrave tradiccedilatildeo

sapiencial e ao conceito de sabedoria facilmente se transporta para um panorama de

revelaccedilotildees visionaacuterias e ensinamentos de conteuacutedo gnoacutestico Estas tradiccedilotildees convergem

naquilo que se pode pensar como a experiecircncia interna do indiviacuteduo durante a sua busca

pelo divino Em Tomeacute a ideia da exegese eacute tatildeo importante como a ideia da realizaccedilatildeo da

368Levison (1999) 50

174

verdadeira identidade Ler Tomeacute teraacute sido abrir e projetar a mentalidade para patamares

de consciecircncia que se materializassem numa mudanccedila radical da identidade e das

vivecircncias Natildeo estamos perante um autor que facilita o acesso agrave informaccedilatildeo temos

antes um autor que promove o misteacuterio suscitando duacutevidas a cada loacutegion

Natildeo seria de todo prudente encararmos este evangelho como um relato Eacute antes um guia

de pensamento para pensar acerca daquilo que o Jesus Vivente poderaacute ser no iacutentimo do

filho da luz

175

Bibliografia

Fontes Primaacuterias

Darei detalhes de algumas traduccedilotildees feitas por mim

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston

Brill

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics

of Western Spirituality

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co

Ludgate Hill

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa

Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros

Textos Gnoacutesticos Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman

Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings

James Clarke amp Co Louisville

176

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Apoacutecrifos Judeus e Pseudoepiacutegrafos

1 Henoque eacute extenso documento etiacuteope com fragmentos enccontrados em aramaico e

grego em Qumran Eacute um livro que tem cinco seccedilotildees o livro dos vigilantes as paraacutebolas

o livro de astronomia as visotildees e sonhos e o livro de admoestaccedilotildees

Fragmentos de todas as seccedilotildees foram encontrados em Qumran excepto a seccedilatildeo das

paraacutebolas O texto mais antigo que temos de Henoque data do terceiro seacuteculo aC mas

a literatura de Henoque eacute muito mais antiga podemos assumer isso por referecircncias

indirectas a Henoque no livro de Isaiacuteas

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

O Livro de Jubileus tambeacutem conhecido como Pequeno Geacutenesis eacute mencionado nos

Manuscritos do Mar Morton no Documento situado em (4Q216-28 1Q17-18 2Q19-20

3Q5 4Q482 11Q12) data do segundo seacuteculo aC na sua grande maioria sobreviveu em

etiacuteope existem contudo fragmentos em grego siacuteriaco e latim

In Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 507

Os Manuscritos do Mar Morto a grande vantagem destes manuscritos reside no facto

de no lado judaico da histoacuteria natildeo possuiacuteamos de todo uma perspetiva bem

documentada e digamos noacutes ateacute abrangente das ideias religiosas e das vaacuterias formas de

interpretar os textos religiosos Isto porque os rabinos do seacuteculo I e do seacuteculo II DC

nao permitiam que textos religiosos da eacutepoca chegassem ateacute noacutes a natildeo ser se estivessem

em total conformidade com as suas ideias e crenccedilas embora alguns desses textos

tivessem sido preservados por cristatildeos (nomeadamente os apoacutecrifos e os

pseudepigraacuteficos) Vaacuterias das experiecircncias ditas ldquomiacutesticasrdquo ou extaacuteticas assim como o

symbolismo do Templo a composiccedilatildeo textual propostos por este trabalho encontraram

eco nestes manuscritos

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

A Assunccedilatildeo de Moiseacutes eacute um texto que refere as uacuteltimas palavras de Moiseacutes a Josueacute

relaciona-se de perto com Deutoronoacutemio 31-34

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

177

A Vida de Adatildeo e Eva eacute um texto que corresponde a vaacuterias tradiccedilotildees hermenecircuticas

antigas acerca do mito da expulsatildeo do paraiacuteso

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Memar Marqah eacute um tratado homileacutetico samaritano que desenvolve um texto de vaacuterias

camadas simboacutelicas e um misticismo semita muito proacuteprio do seu tempo

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text

Verlag Algred Toperlmann

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Songs of the Sabbath Sacrifice ou Hodayot Cacircnticos do Sabbath eacute um documento

importante presente nos manuscritos de mar morto que descreve uma liturgia peculiar

onde os homens ascendem aos ceacuteus e adoram a Deus lado a lado com os anjos Em

termos de simbolismos miacutesticos visionaacuterios e de ascensatildeo ateacute agrave questatildeo do eixo

simboacutelico do Templo revela-se um texto indispensaacutevel para compreendermos por

exemplo a Log 50 do evangelho de Tomeacute

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo 316

ha-Geonim tratados rabinicos referentes agrave oraccedilatildeo e agraves praacuteticas meditativas

ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University Press Association

Liturgia Samaritana a liturgia samaritana reuacutene vaacuterios dos seus simbolismos textuais

associados ao Templo e agrave cosmologia que tambeacutem se encontra presente em Tomeacute

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Toraacute Samaritana eacute a versatildeo samaritana do Pentateuco

Os Salmos de Salomatildeo forneceram vaacuterios elementos simboacutelicos da tradiccedilatildeo literaacuteria do

cristianismo siriacuteaco agrave luz dos quais foi possiacutevel induzir e interpretar vaacuterios dos siacutembolos

e das metaacuteforas presentes na textualidade de Tomeacute

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New

York Tampt Clark

Outros autores judeus

Fiacutelon de Alexandria (cerca do ano vinte aC ndash cinquenta dC) este autor tornou-se

fundamental para estabelecermos o quadro simboacutelico de significados presentes no

evangelho de Tomeacute e em vaacuterios outros documentos utilizados na exegese dos logia

178

Este autor pertencia a uma famiacutelia de linhagem sacerdotal estava familiriazado com os

significados siacutembolicos e cosmoloacutegicos do Templo de Jerusaleacutem Assim como as suas

associaccedilotildees literaacuterias agrave riqueza da filosofia platoacutenica algo conveniente uma vez que

Tomeacute absorveu elementos da filosofia platoacutenica do seu tempo na sua textualidade Ao

longo do trabalho foram sendo citados e mencionados vaacuterios excertos dispersos pelo

corpo textual de Fiacutelon de Alexandria As traduccedilotildees foram elaboradas agrave minha

responsabilidade a partir desta compilaccedilatildeo em liacutengua inglesa

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet

Edition Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Flaacutevio Josefo (anos trinta e cinco a cem eC) este segundo autor presenciou a guerra

judaica e foi contemporacircneo de Jesus este autor contribuiu para o escopo deste trabalho

no sentido simboacutelico e metafiacutesico das suas leituras do Templo Tambeacutem foi a partir do

elemento interpretativo de Flaacutevio Josefo que conseguimos reunir fontes e aspetos

fundamentais para interpretarmos elementos simboacutelicos de Tomeacute

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Textos Rabiacutenicos

Mixnaacute foi mencionado nalgumas citaccedilotildees circunstacircnciais em contextos de discussatildeo

literaacuteria e comparaccedilatildeo de textos A mixnaacute eacute um conjunto de tratados rabiacutenicos que

permitem-nos ter uma perceccedilatildeo de como a biacuteblia era lida naquela eacutepoca Uma vez que o

interesse do nosso trabalho foi laquocaptarraquo a forma como os textos foram lidos os textos

eram lidos com o intento de se redigirem novos textos A lei escrita deu lugar a esta laquolei

oralraquo algo aqui pode ser tomado como exemplo na redaccedilatildeo de textos religiosos

A maioria dos textos religiosos satildeo elaboraccedilotildees e interpretaccedilotildees acima de tudo

releeituras das tradiccedilotildees anteriores

Quisemos demonstrar que o evangelho de Tomeacute comeccedila com a leitura e a interpretaccedilatildeo

da narrativa da criaccedilatildeo da humanidade em Geacutenesis elaborando a partir desses versos a

sua interpretaccedilatildeo cosmoloacutegica do texto Textos como a mixnaacute e os vaacuterios tratados

homileacuteticos rabiacutenicos daquela eacutepoca satildeo nos uacuteteis porque foram escritos com o mesmo

sentido Selecionaram versos e decidiram estabelecer um percurso interpretativo uacutenico

que originou a sua textualidade Assim conseguimos provar o mecanismo subjacente agrave

escrita os elementos simboacutelicos e os principios interpretativos

179

Tr H Danby (1933) The Mishnah Oxford

Midrashim

Genesis Rabbah eacute um midrash exegeacutetico compilado na Palestina talvez no inicio do

quinto seacuteculo cE contudo com conteuacutedos e ecos mais antigos Na mesma linha de

pensamento acima referida a forma como a leitura era realizada e eventualmente

textualizada foi a razatildeo pela qual optaacutemos por este universo literaacuterio judaico No caso

destas homilias acerca do Geacutenesis a abundacircncia e a riqueza de materias eacute uma

circunstacircncia feliz Ainda que a dataccedilatildeo possa ser um ponto inicial de debate esta tese

responde com o facto de apenas termos utilizado referecircncias a conteuacutedos mais antigos

ressurgentes em textos mais antigos Toda a informaccedilatildeo extraiacuteda dos midrashim para

explicar ou fundamentar o evangelho de Tomeacute foi selecionada de acordo com a sua

antiguidade e a sua mecircnccedilatildeo em documentos mais antigos que remontam ao periacuteodo

histoacuterico em discussatildeo

Freedman H and Simon Aurice (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The

Soncino Press

Exodus Rabbah este documento divide-se em duas partes sendo a primeira uma

exegese homileacutetica a Exodo 1-10 e a segunda parte uma homilia a Exodo 12-40 o

capiacutetulo 11 natildeo estaacute contemplado

TrSM Leherman (1939) Exodus Rabbah London

Leviticus Rabah este midrash reuacutene em si as ideias e as tradiccediloes dos acadeacutemicos da

Palestina o que o torna particularmente interessante se quiseremos procurar ideias que

tenham brotado desse solo A dataccedilatildeo do documento eacute incerta mas surge na sua forma

complete no seacuteculo doze

TrJ Israelstam and JJSlokti (1939) Leviticus Rabbah London

Literatura de hekhalot

Esta literatura preserva a continuidade do serviccedilo sagrado ao removecirc-lo do tempo e do

espaccedilo Estes textos transferem o Templo para o plano celestial onde os sacerdotes satildeo

anjos ministradores nos Templos superiores O serviccedilo sacramental nestes santuaacuterios

180

celestiais eacute descrito em termos ritualistas do Templo terrestre Esta metamorfose

desenvolve-se atraveacutes da terminologia do misticismo da mercava Eacute uma combinaccedilatildeo da

memoacuteria consagrada do ritual com a imaginaccedilatildeo criativa e a inspiraccedilatildeo visionaacuteria

elementos que estabelecem uma ponte entre a realidade lsquoreveladarsquo e aquilo que estaacute

lsquoocultorsquo Hekhalot carateriza a experiecircncia miacutestica judaica em que um ser humano

ascende ao ceacuteu numa carruagem divina ele olha diretamente para Deus e eacute

transformado numa criatura que vagueia pelos rios de fogo celestial A literatura de

hekhalot constitui um aglomerado de textos esoteacutericos e revelatoacuterios judaicos

produzidos entre a antiguidade claacutessica tardia e os iniacutecios da Idade Meacutedia

O nome deriva de uma palavra hebraico que significa ldquopalaacuteciosrdquo Sendo assim a

literatura dos palaacutecios celestiais eacute de notar a forte ligaccedilatildeo que estes documentos tecircm

com a literatura gnoacutestica e apocaliacuteptica descrevendo a experiecircncias espirituais

autoinduzidas

Davila R Davila (2013) Hekhalot Literature in Translation Brill Boston

Bibliografia e Fontes Secundaacuterias mencionadas no texto

A Seth C (2014) Know Yourself and You Will Be Known The Gospel of Thomas and Middle

Platonism Paper 92

A E C (2000) The Interpretation of Scripture in Early Judaism and Christianity Studies in

Language and Tradition Sheffield Academic Press

AFJKlijn (1962) The Single One in the Gospel of Thomas In Journal of Biblical Literature

(pp 271-278)

Alexandria C d (2013) Exortaccedilatildeo aos Gregos Satildeo Paulo Realizaccedilotildees Editora

Barker M (1990) The Gate of Heaven The History and Symbolism of the Temple in Jerusalem

Spck Dallas Theological Seminary

Barnard L (1968) The Origins And Emergence Of The Church In Edessa During The First Two

Centuries AD Nort-Holland Publishing Co

Caroline Johnson Hodge S M (2013) The One Who Sows Bountifully Essays in Honor of

Stanley K Stowers Brown Judaic Studies

Charles R (1913) The Apocrypha and Pseudepigrapha of the Old Testament vol2 ed Oxford

Oxford

Christopher J-M R (2006) The Temple Within In Paradise Now Essays on Early Jewish and

Christian Mysticism (pp 145-179) Society of Biblical Literature

181

Colson F amp Whitaker G (1934) On Flight and Finding On The Change of Names On Dreams

Loeb Classical Library

Cowley A E (1909) The Samaritan Liturgy Vol I Oxford At The Clarendon Press

Dan J (2002) The Heart And The Fountain Oxford University Press

Danby T H (1933) The Mishna Oxford Oxford

Davies S (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom New York The Seabury Press

Davies S L (1983) The Gospel of Thomas and Christian Wisdom The Seabury Press

Davies S L (1992) The Christology and Protology of the Gospel of Thomas 111

Davies S (nd) The Oxford Encyclopedia of the Books of the Bible Retrieved Abril 13 2017

from Oxford Biblical Studies Online

httpwwwoxfordbiblicalstudiescomarticleoprt280e73

Davila J R (2001) Descenders to the Chariot Boston Brill

Davila J R (2013) Hekhalot Literature in Translation Boston Bril

DeConick A (2006) Paradise Now Essays On Early Jewish and Christian Mysticism Society of

Biblical Literature

Deconick A D (1996) Seek to See Him Ascent Ascent and Vision Mysticism In The Gospel Of

Thomas EJ Brill

Deconick A D (2001) Voices of the Mystics Journal for the Study of the New Testament

Supplement Series 157 Sheffield Academic Press

DeConick A D (2014) Histories of the Hidden God New York Routledge

Dillon J F (2002) Lamblichus De Anima Text Translation and Commentary Boston Brill

Elior R (2004) The Three Temples On the Emergence of Jewish Mysticism The Littman Library

of Jewish Civilization

Elior R (2009) ) From Priestly (And Early Christian) Mount Zion to Rabbinic Temple Mount In

Where Heaven and Earth Meet Jerusalems Sacred Esplanade

Fossum A D (1991) Stripped Before God A New Interpretation of Logion 37 In The Gospel of

Thomas In Vigiliae Christianae 45 E J Brill

Fossum J (1985) JsJ In Gen126 and 27 in Judaism Samaritanism and Gnosticism (pp 202-

239)

Gathercole S (2014) The Gospel of Thomas introduction and commentary Texts and editions

for New Testament Study Koninklijke Brill NV

Ginzberg L (2003) Legends of the Jews Volume 3 The Jewish Publication Society

Halperin D (1988) The Face of the Chariot Early Jewish Responses to Ezekiels Vision

Tubingen Mohr

Hartin P (1999) The search for the true self in the Gospel of Thomas the Book of Thomas and

the Hymn of the Pearl HTS

182

Hayward C T (1996) The Jewish Temple London Routledge

Hayward C T (1996) The Jewish Temple A Non-biblical Sourcebook Routledge

Heine R E (1989) Commentary on the Gospel of John Books 1-10 Washington Catholic

University America

Himmelfarb M (1993) Ascent to Heaven in Jewish and Christian Apocalypses Oxford

University Press

Himmelfarb M (2013) Between Temple and Torah Essays on Priests Scribes and Visionaries

in the Second Temple Period and Beyond Tuumlbingen Mohr Siebeck

James N W (2012) 1 Enoch The Hermeneia Translation Fortress Press

Janowitz N (1989) The Poetics of Ascent Theories of Language in a Rabbinic Ascent Text

State University New York Press

Josefo F (2004) Histoacuteria dos Hebreus 8ordfediccedilatildeo Rio de Janeiro Casa Publicadora das

Assembleacuteias de Deus

Judaeus P (1993) The Works of Philo Complete and Unabridged New Uptadet Edition

Massachusetts Hendrickson Publishers Marketing

Levison J R (1999) Of Two Minds North Richland Hills Texas Bibal Press

Lewin B (1931) Chagiga and Maschkin in Otzar ha-Geonim vol 4 Haifa Hebrew University

Press Association

Luomanen P (2012) Recovering Jewish-Christian sects and gospels Supplements to Vigiliae

Christianae

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah 2 BZAW

Macdonald J (1963) Memar Marqah The Teaching of Marqah Volume I The Text Verlag

Algred Toperlmann

Maloney G A (1992) The Fifty Spiritual Homilies and the Great Letter The Classics of Western

Spirituality

Mattanyah I S (2007) Hellenism Dominates the Near East and Unites East and West in

Climate Change ndash Environment and History of the Near East 2nd Edition Springer

Millar F (1993) The Roman Near East 31 BC- AD 337 Harvard University Press

Najman H amp Newman J (2004) The Idea of Biblical Interpretation Essays in Honor of James

LKugel Leiden Brill

Neusner J (1965) A History of Jews in Babylonia vol 1 The Parthian Period LeidenBrill

Newsom C (1985) Songs of the Sabbath Sacrifice Michigan Scholars Press

Pagels E (1999) Exegesis of Genesis 1 In the Gospels of Thomas and John Journal of Biblical

Literature pp 477-496

Patterson J (2013) The Gospel of Thomas and Christian Origins Leiden Koninklijke Brill NV

Philips G (1876) The Doctrine of Addai The Apostle London Trubner amp Co Ludgate Hill

183

Pinero A Torrents J M amp Bazaacuten F G (2005) Evangelhos Gnoacutesticos Lisboa Eacutesquilo

Pinero A Torrents J M amp Gazan F (2005) O Livro Secreto de Joatildeo e outros Textos Gnoacutesticos

Biblioteca de Nag Hammadi I Eacutesquilo

Ramos J A (1992) O Evangelho de Tomeacute Lisboa Editorial Estampa

Ross S (2011) Roman Edessa Routledge

Scheck T P (2010) Origen Homilies 1-14 on Ezekiel New York The Newman Press

Schneemelcher W (2003) New Testament Apocrypha I Gospels And Related Writings James

Clarke amp Co Louisville

Scholem G (1965) Jewish Gnosticism Merkabah Mysticism and Talmudic Tradition 2nd ed

Jewish Theological Seminary of America

Segal P (1990) Paul the Converte The Apostolate and Apostasy of Saul the Pharisee Yale

University Press

Sheck T P (2015) Commentary on Isaiah Homilies 1-9 On Isaiah New York The Newman

Press

Simon H F (1961) Midrash Rabbah Genesis I London The Soncino Press

Smith D C (2010) The Kabbalistic Mirror of Genesis Rochester Inner Traditions

Strecker P V (1991) ldquoJewish-Christian Gospelsrdquo New Testament Apocrypha Vol 1 Gospels

and Related Writings James Clarke amp Co

Stroumsa G G (2015) The Making of the Abrahamic Religions in Late Antiquity Oxford

University Press

Stroumsa M B (2010) Paradise in Antiquity Cambridge Cambridge University Press

Uro R (2003) Thomas Seeking The Historical Context Of The Gospel of Thomas TampT Clark

Valantasis R (2007) The Gospel of Thomas Routledge

Vermes G (2006) Manuscritos do Mar Morto Eacutesquilo

Villeneuve A (2016) Nuptial Symbolism in Second Temple Writings the New Testament and

Rabbinic Literature Brill

Wright R B (2007) The Psalms of Solomon A Critical Edition of the Greek Text New York Tampt

Clark

184

Page 6: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 7: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 8: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 9: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 10: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 11: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 12: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 13: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 14: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 15: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 16: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 17: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 18: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 19: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 20: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 21: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 22: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 23: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 24: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 25: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 26: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 27: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 28: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 29: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 30: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 31: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 32: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 33: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 34: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 35: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 36: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 37: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 38: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 39: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 40: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 41: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 42: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 43: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 44: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 45: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 46: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 47: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 48: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 49: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 50: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 51: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 52: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 53: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 54: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 55: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 56: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 57: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 58: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 59: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 60: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 61: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 62: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 63: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 64: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 65: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 66: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 67: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 68: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 69: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 70: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 71: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 72: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 73: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 74: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 75: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 76: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 77: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 78: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 79: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 80: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 81: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 82: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 83: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 84: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 85: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 86: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 87: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 88: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 89: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 90: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 91: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 92: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 93: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 94: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 95: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 96: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 97: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 98: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 99: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 100: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 101: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 102: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 103: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 104: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 105: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 106: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 107: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 108: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 109: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 110: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 111: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 112: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 113: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 114: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 115: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 116: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 117: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 118: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 119: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 120: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 121: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 122: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 123: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 124: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 125: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 126: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 127: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 128: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 129: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 130: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 131: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 132: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 133: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 134: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 135: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 136: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 137: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 138: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 139: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 140: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 141: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 142: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 143: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 144: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 145: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 146: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 147: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 148: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 149: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 150: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 151: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 152: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 153: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 154: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 155: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 156: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 157: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 158: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 159: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 160: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 161: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 162: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 163: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 164: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 165: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 166: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 167: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 168: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 169: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 170: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 171: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 172: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 173: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 174: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 175: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 176: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 177: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 178: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 179: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 180: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 181: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 182: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 183: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé
Page 184: A câmara nupcial como chave hermenêutica do Evangelho de Tomé