a cidade (re)criada pelas crianÇas -muitas cidades possÍveis na cidade de sÃo paulo

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Este artigo busca discutir a relação da criança com a cidade. Uma criança entendida como ator social com direito a participação no cenário urbano e dotada de competência e potencial para a construção de um conhecimento sobre o ambiente urbano que habita. O objetivo é observar como a criança se apropria, transforma, (re)cria e busca seu espaço numa cidade pensada e projeta por adultos para adultos, e como ela atribui novas funções aos espaços de forma a construir seu imaginário urbano a mostrar que suas culturas de infância podem ser vividas nos espaços urbanos num brincar com a cidade não se restringindo somente num brincar na cidade em espaços fechados, programados, planejados como quer o mundo adulto.

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

 

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esconderijo como fazem as crianças. A criança com sua inventividade e ludicidade próprias das culturas de infância nos mostra outras cidades possíveis num ato de criação  de  inúmeras  possibilidades  de  construir  e  desconstruir  os  espaços urbanos. 

Busca‐se descobrir como as crianças da cidade de São Paulo (re)criam e como se relacionam no/com o espaço urbano. 

De  um  lado  temos  o  mundo  adulto  que  se  coloca  como  o  detentor  de  um conhecimento  sobre  quais  devem  ser  os  espaços  destinados  à  infância, configurados em um brincar na cidade, em locais fechados e institucionalizados, enquanto  que  do  outro  lado  temos  a  infância  a mostrar  que  pode  construir  um outro conhecimento possível sobre o espaço urbano em um brincar com a cidade. 

Para que se possa compreender a criança como detentora de um conhecimento e saber do espaço urbano é importante pontuar e clarificar a concepção de infância com  que  se  vai  trabalhar.  A  perspectiva  que  se  vai  adotar  é  a  da  sociologia  da infância  tendo  a  “infância  como  categoria  social  e  as  crianças  como  sujeitas  de direitos, com voz e ação nos seus cotidianos”. (SOARES, 2005, p: 3) 

A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA

A  sociologia  da  infância  entende  a  criança  como  ator  social  produtora  de conhecimento e saber e reivindica que se considere a criança por si própria com autonomia  epistemológica  de  forma  a  romper  com  as  adjetivações  negativas pautadas nos conceitos de incompetência, imaturidade, ainda não sabe, não pode, não conhece, atribuídas a esta categoria geracional da infância. Propõem‐se revelar a criança na sua positividade como ser ativo, participante e atuante da sociedade em  que  está  inserida,  e  não  como  mero  objeto  passivo  de  socialização  imposta pelos adultos. 

As crianças não devem ser vistas como sujeitos passivos que apenas incorporam a cultura adulta que  lhes é  imposta, mas como sujeitos que  interagindo com este mundo cria  formas próprias de compreensão e ação a serem parte  integrante da sociedade. 

O  que  vemos  é  uma  infância  colocada  na  “sala  de  espera”  em  espaços institucionalizados  e  destinados  à  elas  aonde  só  é  sujeito,  cidadão,  integrante  e participante da sociedade ao se tornar adulto, daí a importância e a contribuição da sociologia  da  infância  de  reconhecer  a  infância  como  grupo  específico,  mas  não isolado. 

É  preciso  repensar,  desconstruir  conceitos  confirmados  de  infâncias  e crianças enquanto seres de outras espécies, enquanto entidades  isoladas do mundo material, físico, afetivo, histórico, cultural e social dos adultos e não pensar na criança, por isso, como um adulto em miniatura ou sujeito 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

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inacabado da condição humana (…) sujeitos de pouca idade sim, mas que lutam  através  de  seus  desenhos,  gestos,  histórias,  falas,  imaginação  e outras  tantas  formas de  ser e de  se expressar pela emancipação da  sua condição de silêncio. (SARMENTO, CERISARA, 2004, p: 184­185) 

São  estas  múltiplas  formas  de  expressão  das  crianças  que  à  sua  moda compreendem o mundo que as cerca que se busca observar na relação destas com o  espaço  urbano.  Estas  manifestações  infantis  presentes  no  cenário  urbano  são provenientes  de  uma  cultura  própria  das  crianças  que  precisam  ser compreendidas e levadas em conta por aqueles que pensam os espaços da cidade. 

AS CULTURAS DA INFÂNCIA

A flor 

Pede‐se a uma criança: desenhe uma flor! Dá‐se‐lhe papel e lápis. A criança vai sentar‐se no outro canto da sala onde não há mais ninguém. 

Passado  algum  tempo  o  papel  está  cheio  de  linhas.  Umas numa  direcção,  outras  noutras;  umas  mais  carregadas, outras mais leves; umas mais fáceis, outras mais custosas. A criança quis  tanta  força em certas  linhas que o papel quase não resistiu. 

Outras eram tão delicadas que apenas o peso do lápis já era demais. 

Depois a criança vem mostrar essas  linhas às pessoas: Uma flor! 

As pessoas não acham parecidas estas linhas com as de uma flor! 

Contudo,  a  palavra  flor  andou  por  dentro  da  cabeça  da criança, da cabeça pro coração e do coração para a cabeça, à procura das linhas; ou todas. Talvez as tivesse posto fora dos seus  lugares,  mas  são  aquelas  as  linhas  com  que  Deus  faz uma flor! 

José de Almada Negreiros 

Este poema português deixa evidente que a criança tem uma cultura que lhe é própria e precisa ser respeita na sua especificidade. 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

 

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O  que  vemos  nos  espaços  urbanos  são  vários  desenhos  desta  flor,  aonde  as crianças imprimem suas formas e dão novas atribuições e significados ao ambiente que está a sua volta, onde os bancos da praça se transformam em barco e carro, os postes de  iluminação em árvores que podem ser escaladas. Mesmo que o mundo adulto não consiga enxergar no banco um barco ou um carro, a criança o consegue perfeitamente a revelar que existe culturas de infância. 

Como  aponta  SARMENTO  (2003)  esta  alteração  da  lógica  formal  não  significa que as crianças tenham um pensamento ilógico, pelo contrário há uma organização lógica  que  possibilita  que  a  criança  transite  entre  o  mundo  real  e  o  mundo imaginário de forma a apropriar, reinventar e reproduzir o mundo que as rodeia. 

“As crianças são capazes de inventar, em contextos criados pelos adultos, os  seus  próprios  subcontextos,  que  permanecem  a  maior  das  vezes invisíveis  para  os  adultos, mas  que  são  bem  visíveis  e  notórios  para  as crianças”. (CORSARO, 1985 apud GRAUE, WASLH, 2003, p: 29) 

O conceito de culturas da infância tem sido discutido no âmbito da sociologia da infância. Por este conceito entende‐se  “a capacidade das crianças em construírem de forma sistematizada modos de significação do mundo que são distintos dos modos de significação dos adultos”. (SARMENTO, 2003, p:54) 

As  crianças  apresentam,  portanto,  modos  específicos  de  significações  e comunicação e criam modos próprios de interpretar e se relacionar com o mundo. Elas  são  “atores  sociais  de  pleno  direito  e  não  como  menores  ou  componentes acessórios,  implica o reconhecimento da sua capacidade de produção simbólica e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados,  isto é, em culturas”. (SARMENTO; PINTO, 1997, p: 20) 

São os elementos constituintes das culturas de infância: a ludicidade, a fantasia (transposição  do  imaginário  do  real)  e  a  reiteração  (princípio  do  qual  as  coisas podem ser feitas várias vezes, ela não tem fim) que se busca detectar no ambiente urbano. 

Coloca‐se em questão as culturas de infância no espaço urbano da cidade de São Paulo de forma a desvendar como a cidade participa do mundo das diversões das crianças. 

A  experiência  de  viver  na  cidade  pode  ser  muito  diferenciada  a  constituir culturas  da  infância  no  seu plural  aonde  fatores  geográficos,  sociais,  econômicos têm  que  ser  levados  em  conta.  Para  uma  criança  que mora  na  periferia  de  uma grande metrópole como São Paulo a busca de lazer e diversão implica deslocar‐se enquanto que aquelas crianças que moram em bairros nobres têm mil  formas de divertimento a serem consumidos, ainda que confinados e pré‐estabelecidos. 

De um lado ficam os parques, shoppings, clubes, cinemas, parques de diversão erguidos sob uma noção de lazer criado para o consumo que é vendido. Do outro a 

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casa, quintal, a rua com a noção do lazer gratuito sem infra‐estrutura. O que vemos são  culturas  de  infância  que  se  constroem  em  situações  e  oportunidades diferenciadas num mesmo espaço urbano. 

Se por um lado há para classe média e alta um lazer em espaços segregados e exclusivos  aonde  as  crianças  são  confinadas  em  espaços  planejados  e programados, por outro há uma institucionalização das crianças da periferia aonde são  oferecidos  como  lazer  o  seu  próprio  espaço  escolar  através  do  programa recreio nas férias2, escola aberta3 e a construção dos CEUS.4 Isso porque o mundo adulto tem uma visão protecionista da criança aonde a cidade oferece perigos para ela, por isso o melhor é que fiquem seguras a brincar nestes espaços fechados. 

Formas  de  confinamento  da  infância  que  negam  a  vertente  lúdica  da  vida urbana,  mas  as  crianças  nos  mostram  que  não  estão  condenadas  a  este confinamento  como  enuncia  SARMENTO  (2003)  nos  estudos  das  crianças  de guerra que aponta que é possível criar um outro mundo. As crianças “ganham” a cidade que lhes foi interditada a brincar com os espaços de modo a ressignificá‐lo a atribuir novas funções aos mesmos a criar seus mundos e culturas num ambiente urbano construído por adultos e para adultos. 

A CRIANÇA E A CIDADE

Ao contrário, as cem existem 

A  criança  é  feita  de  cem.  A  criança  tem  cem  mãos,  cem pensamentos, cem modos de pensar, de jogar e de falar. Cem sempre cem modos de escutar as maravilhas de amar,  cem alegrias  para  cantar  e  compreender.  Cem  mundos  para inventar, cem mundos para sonhar. 

A criança tem cem linguagens (e depois cem, cem, cem), mas roubaram‐lhe  noventa  e  nove.  A  escola  e  a  cultura  lhe separam  a  cabeça  do  corpo.  Dizem‐lhe:  de  pensar  sem  as mãos,  de  fazer  sem  a  cabeça  de  escutar  e  não  falar,  de compreender sem alegrias, de amar e maravilhar‐se. 

Só  na  Páscoa  e  no  Natal  dizem‐lhe:  de  descobrir  o mundo que já existe e de cem roubaram‐lhe noventa e nove. Dizem‐lhe: que o jogo e o trabalho, a realidade e a fantasia, a ciência e a imaginação, o céu e a terra, a razão e o sonho são coisas 

2 Recreio nas férias é um projeto que o governo criou para oferecer atividades recreativas, brincadeiras para as crianças que estão em período de férias. 3 Escola aberta é um projeto criado pelo governo com o intuito de promover atividades de lazer nas escolas nos fins‐de‐semana para as crianças participarem. 4 CEUS são centros educacionais unificados. Foram construídos 21 ceus  pelo governo de Marta Suplicy aonde centraliza no espaço escolar os espaços de lazer das crianças: piscina, teatro, parque, pista de skate. 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

 

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que  não  estão  juntas.  Dizem‐lhe:  que  as  cem  coisas  não existem,  a  criança  diz:  ao  contrário,  as  cem  existem.  (Loris Malaguzzi, 1996) 

A cada momento as crianças nos mostram que a cidade pode ser conhecida de cem maneiras.  Se hoje  aquele banco pode  ser uma  casa,  amanhã  já pode  ser um carro  e,  assim  elas  vão  imprimindo  no  espaço  urbano  seu  caráter  lúdico  e imaginativo através de cem modos de pensar, de jogar, de falar a dizer que as cem existem,  cem maneiras  de  ver  e  conhecer  a  cidade, mesmo  que  o mundo  adulto diga que não há por uma falta de compreensão da epistemologia, do sentimento e da realidade infantil. 

A infância persiste em seus modos de ser. O criar, o brincar, o sonhar esbarram nos  ideologismos dos  adultos:  “agora  não pode”,  “agora  não  é  hora”,  “este  não  é lugar  para  isto”,  no  entanto  elas  persistem  a  tornar  claro  que  a  criança  possui inúmeras  formas  de  expressão,  de  comunicação,  de  ser,  existir  e  conhecer  o mundo. 

Benjamin (1992, apud FORTUNA, 1999, p: 27) “assinalava que mais importante do  que  conhecer  uma  cidade  era  saber  perder­se  nela,  sobreviver  na  ausência  de guias, sem orientações ou trajetos pré­estabelecidos”.  

Nos tempos atuais foi negada a infância a possibilidade de perder‐se na cidade porque  esta  é  vista  como  local  de  perigo  e  risco,  portanto,  não  é  lugar  onde  as crianças devam estar. Configura‐se o que denomino de territorialização da infância aonde a escola e a família se constituem como território do cuidado, da proteção e da educação e a cidade como território do risco e do perigo. 

Na construção desta  tríade criança‐escola‐família não há espaço para a  cidade como território que a criança possa conhecer, participar, aprender. 

É importante recorrer a história para ver como a cidade vai definindo através de fronteiras  imaginárias  o  lugar  de  cada  coisa  e  de  cada  uma  das  categorias geracionais (adulto, criança e idoso). 

Até o século XVIII as muralhas eram tidas como características das cidades. As cidades  eram  todas  cercadas  por muralhas  onde  do  lado  de  fora  desta  estava  o perigo, os animais  selvagens, assaltantes nômades, exércitos  invasores,  e do  lado de dentro esta a segurança aonde se podia desfrutar da liberdade longe dos medos e perigos. Hoje o que temos é uma insegurança dentro da própria cidade. 

Nas  cidades  medievais  não  havia  segregação  entre  os  locais  de  moradia  e trabalho.  A  casa  do  artesão  era  simultaneamente  uma  unidade  de  consumo  e produção  na  qual  se  engajavam os  adultos,  jovens  e  crianças  que  compunham  a família.  A  vida  cotidiana  das  crianças  estava  misturada  com  os  adultos  sendo notável a abundância das crianças nas cenas da multidão no qual a vida privada se passava mais na rua do que em casa. 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

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Na idade média, no início dos tempos modernos as crianças misturavam­se com os adultos assim que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, aproximadamente aos  sete anos. A partir desse momento  ingressavam  imediatamente na grande comunidade dos homens, participando com seus amigos,  jovens ou velhos dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. (ARIES, 1981, p: 275) 

As  ruas  neste  período  se  configuravam  como  espaço  coletivo,  e  as  crianças perambulavam com ou sem finalidade. Elas não eram segregadas ou separadas dos demais porque a rua fazia parte do seu mundo. 

Na  sociedade  medieval  a  atividade  lúdica  era  um  dos  principais  meios disponíveis para estreitar laços coletivos, isso acontecia durante as festas quando as  crianças,  jovens  e  adultos  participavam  dos  folguedos  de  modo  igual.  Era  o espaço onde se dava o aprendizado da criança realizado a partir dos cuidados de muitas  pessoas  sem  distinção  etária  aonde  a  diversidade  era  encarada  com naturalidade e o espaço de brincar era o espaço público. 

No  fim  do  século  XIX  as  crianças  começam  a  ser  separadas  do  mundo  dos adultos e sua aprendizagem que antes era tida na rua com o contato com os outros que ali circulavam passa a ser substituída pela escola. 

A criança foi separada dos adultos e mantida a distância numa espécie de quarentena, antes de ser solta ao mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio.  Começou  então  um  longo  processo  de  enclausuramento  das crianças  que  se  estenderia  até  nossos  dias,  e  ao  qual  se  dá  o  nome  de escolarização. (ÀRIES, 1981, p: 11) 

As  crianças  começam  neste  momento  a  perder  o  espaço  da  rua,  o  direito  à cidade, seus novos espaços passam a ser a escola e a família. 

“A família e a escola retiraram juntas a criança da sociedade dos adultos. A escola confinou uma infância outrora livre num regime disciplinar cada vez mais rigoroso”. (ÁRIES, 1981, p: 277) 

Segundo PRIORE (2006) a modernidade passa a ver a criança como um futuro adulto em construção que precisa ser educado e a família passa a valorizar o foro íntimo e a vida privada. 

Para  a  burguesia  o  espaço  público  deixa  de  ser  a  rua  e  passa  a  ser  a  sala  de visitas da sua casa. Do ponto de vista do modelo burguês de morar casa e rua são dois termos em oposição: a rua é terra de ninguém, perigosa que mistura classes, sexos, idades, posições na hierarquia, e a casa é o território íntimo e preservado. 

As  crianças  que  até  então  viviam  desde  pequenas  no  mundo  dos  adultos  a aprenderem  na  prática  o  que  necessitariam  para  sobreviver  passam  a  ser separadas  por  grupos  de  idade  e  mandadas  a  escola.  O  espaço  público  vai 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

 

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perdendo seu uso multifuncional, a deixar de ser  local de encontro, de prazer, de lazer, de festa, de espetáculo aonde a vida privada emerge marcada cada vez mais pelo medo e enclausuramento. 

PROTEÇÃO DA CASA E A INSEGURANÇA DA RUA

Para as crianças, o deslocamento se restringe porque a cidade, como obra dos adultos, reflete a divisão social do trabalho onde casa e escola são os lugares  onde  a  criança  deve  estar,  enquanto  a  rua,  ou  a  cidade  de maneira  geral,  são  os  lugares  onde  só  os maiores  têm  livre  circulação. (CASTRO, 2004, p: 73) 

Podemos  estabelecer  uma  relação  entre  casa  e  rua  com  família  e  cidade respectivamente.  É  impossível  pensar  em  cidade  sem  imaginar  de  imediato  um aglomerado de casas e ruas que surgem como espaços distintos quer do ponto de vista físico quer do ponto de vista sociológico. 

A rua é o espaço aberto, público, onde se desenvolve a vida coletiva, é o lugar do movimento, das novidades, dos deslocamentos, do desconhecido, das descobertas, mas é também lugar dos riscos e perigos. A casa é o contrário de tudo isso, abriga uma coletividade muito mais  restrita,  organizada pelo parentesco, pelos  laços de sangue, um espaço protegido separado da rua onde não há lugar para o estranho. 

Enquanto a casa é o lugar da família, é o espaço íntimo, privado e de proteção, a rua é o lugar do perigo, do anonimato. Casa e rua se encontram, portanto, num jogo de oposições entre risco e proteção.  

À infância foram designados dois espaços: casa e escola, aonde lhe foi atribuída o ofício de aluno e de filho, estou a procurar o ofício de criança a revelar o sujeito criança  que  está  no  filho  e  no  aluno.  “Casa  e  escola  são  os  novos  espaços  que  se erguem em oposição ao espaço externo, e as  crianças  são encerradas nesses novos locais  onde  ocorrerá  sua  preparação  para  entrada  no  mundo  adulto”. (VASCONCELLOS; MOREIRA, 2005, p: 29) 

A cidade se constitui como lugar de passagem das crianças que estão a transitar entre  as  suas  duas  instituições  socializadoras:  família  e  escola,  a  cidade  se transforma no elo de ligação, metaforicamente uma ponte entre a casa e a escola a colocar  a  infância  na  “sala  de  espera”  de  sua  condição  de  cidadão  com  direito  a cidade.  Se  durante  os  dias  da  semana  não  vemos  as  crianças  na  cidade  porque estão  nos  espaços  que  lhes  foram  designados  pela  divisão  do  trabalho:  casa  e escola,  durante  os  fins  de  semanas  encontramos  as  crianças  nos  parques, playgrounds, shoppings, outras formas de confinamento da infância. 

Não  queremos  ver  as  crianças  na  cidade  porque  esta  é  tida  como  perigosa  e violenta, uma vez que o sentimento da nova urbanidade se sustenta no medo e na desconfiança aonde a “sociedade se organizou em torno de uma procura infinita de 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

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proteção e insaciável aspiração à segurança”. (BAUMAN, 2005, p: 11). Temos medo das  crianças  circularem sozinhas pela  cidade, medo de  se machucarem, medo da violência,  isso  porque  temos  uma  visão  protecionista  acerca  da  infância  o  que resulta cada vez mais no seu confinamento em espaços institucionalizados. 

A todo o momento escutamos “expressões corriqueiras como “lugar de criança é na  escola”  ou  “a  rua  não  é  lugar  de  criança”  e  outras  do  gênero  delimitam espacialmente o que os adultos definem por territórios destinados ou vedados para as crianças”. (VASCONCELLOS, MOREIRA, 2005, p: 41) 

Crianças e jovens permanecem como atores invisíveis a não ser quando se viabiliza  de  forma  negativizada:  quando  muros  e  prédios  da  cidade aparecem pichadas elas, então, aparecem como personificações do caos e da desordem citadina, ou quando se inicia o ano letivo escolar, e as ruas aparecem  congestionadas  de  carros,  então  crianças  aparecem  como problema do trânsito. (CASTRO, 2001, p: 38) 

A espacialidade complexa que é a cidade não contempla os desejos e interesses das  crianças,  já  que  a  visão  adultocêntrica  vê  a  criança  somente  no  ambiente escolar  e  familiar,  não  havendo  sentido  levar  em  conta  suas  opiniões  já  que  a cidade não é o espaço que lhe foi designado. 

“Distanciados de participarem da construção e da ocupação do espaço da cidade, às crianças  fica destinado o espaço da casa, do play, da escola e, cada  vezes menos  freqüentemente, de  rua. Espaços que  são  construídos para ela e não por ela”. (CASTRO, 2004, p: 74) 

Se  antes  as  crianças  podiam  circular  e  brincar  livremente  pelos  diversos espaços  da  cidade  como  mostra  Florestan  Fernandes  (1979)  nas  “Trocinhas  do Bom  Retiro”  com  o  rápido  processo  de  urbanização  os  espaços  públicos  de socialização  foram cedendo  terreno para os  espaços privados. A  infância passa  a ser  confinada  em  espaços  institucionalizados  aonde  é  o  adulto  que  organiza  o tempo  e  o  espaço  da  criança,  “os  adultos  que  decidem  e  dispõe  sobre  as  formas geográficas e  físicas,  sentimentais e  sociais de viver na cidade”.  (CASTRO, 2004, p: 19). Os adultos configuram na cidade quais espaços destinados as crianças e como estes  devem  ser  a  constituir  um brincar  na  cidade,  enquanto que  a  criança quer brincar com a cidade. 

BRINCAR NA/COM A CIDADE

Estou  sentada  na mesa  da  sala  do meu  apartamento  a  ler  Aventuras Urbanas de Lúcia Rabello Castro e pensar na  relação da  criança com a cidade. Divago  nos meus  pensamentos, me  perco  nos meus  olhares,  na sala há uma enorme porta de vidro aonde posso ter uma visão da rua de Braga, o que vejo é o estacionamento do  supermercado Macro, ele está vazio, sem carros, é domingo, crianças brincam de bola. Este espaço que o 

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mundo adulto constrói com a finalidade única de ser um estacionamento neste momento é  recriado e  resignificado pelas  crianças que dão a este espaço  outra  função  e  sentido.  As  linhas  brancas  impressas  no  asfalto estão  ali  para  demarcar  o  espaço  reservado  para  cada  carro  agora  se transforma  em delimitações do  tamanho do gol  e do  campo do  jogo de futebol.” (notas de campo – 18 de Fevereiro de 2007 – Braga) 

 

“Ando pelas ruas da Avenida Central a acompanhar as crianças que estão a ir para o encontro de fantasias, é Carnaval. Caminho junto à elas até a Câmera Municipal  e  observo  que  as  crianças  fazem  de  sua  diversão  e brincadeira  a  vala,  o  bueiro  que  o  mundo  adulto  designa  para  ter  a função de escoar a água. As crianças transformam os buracos da vala a sua  diversão  de  jogar  os  confetes  de  Carnaval,  e  vê­los  cair  naquele buraco  escuro,  imenso  e  sem  fim  é  o  que  estimula  a  imaginação  das crianças.” (notas de campo – 16 de Fevereiro de 2007 – Braga) 

As  crianças  buscam  fazer  da  cidade,  dos  pequenos  espaços,  dos  becos,  dos trajetos,  dos  espaços  uma  obra  também  sua,  já  que  a  cidade  especialmente  seus espaços públicos foi planejada, organizada e implantada por adultos. 

Estamos  diante  de  uma  cidade  pensada,  projetada  e  construída  por  adultos  e para  adultos  que  adota  como  “parâmetro  o  cidadão  adulto,  abandonando  os cidadãos  não  adultos”.(TONUCCI,  1997,  p:  181)  onde  as  crianças  buscam  o  seu espaço  porque  não  gostam  dos  espaços  rigidamente  definidos,  separados, dedicados a  elas.  Preferem os  espaços utilizados de  formas diferentes de  acordo com  as  exigências  da  brincadeira,  isso  porque  “os  espaços  para  as  crianças brincarem separados e especializados não é para satisfazer as exigências do brincar das crianças, mas sim responder as preocupações dos adultos”. (TONUCCI, 1997, p: 95) 

LIMA  (1989)  critica  esta  pretensão  dos  adultos,  arquitetos,  planejadores urbanos  e  políticos  acharem  que  podem  construir  espaços  voltados  para  os interesses  e  desejos  que  não  são  os  seus  sem  consultarem  e  escutarem  o  que  a criança tem a dizer. 

Instala‐se aí uma tensão na (re)criação da cidade entre “territórios de criança” e os  “territórios  pensados  para  elas”,  de  um  lado  o  mundo  adulto  a  dizer  que  as crianças devem brincar na cidade em espaços fechados e monitorizado, do outro as crianças  a  mostrar  que  pode  brincar  com  a  cidade  reinventando‐a  e  adotando outras maneiras de  imaginá‐la e conferir‐lhe sentido a questionar o  “status quo”. Isso  evidencia  que  o  espaço  vivido  e  percebido  da  criança  se  opõe  ao  espaço concedido do desenhador das cidades e do político. 

É  na  cidade,  fora  de  casa,  que  as  crianças  buscam uma  certa  independência  e autonomia  em  relação  aos  adultos  de  forma  a  construir  sua  identidade  social  e 

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cultural a atiçar o imaginário, daí a importância de ver as crianças “movimentando­se atuando exatamente no mesmo mundo em que as outras pessoas o  fazem, e não somente  dentro  desses  limitados  mundos  de  brincadeira,  do  cuidado  e  da aprendizagem que tem sido indicados para eles”. (CASTRO, 2001, p: 76) 

A cidade deve ser, portanto, o lugar onde crianças e adultos possam viver juntas, mas é evidente a incompreensão da infância como ator social com direito a cidade. Isso  porque  ainda  consideramos  as  crianças  como  seres  imaturos  e  incompletos com  direitos  de  provisão5  e  proteção6  somente,  sem  a  concessão  ao  direito  a participação7. 

As práticas sociais dos adultos face à infância são dominadas pelo paradigma da propriedade  (meu  filho, meu  aluno,  sei  o  que  é melhor  para  ele),  paradigma  da proteção e do controle que considera a criança um ser frágil sem autonomia, ainda incapaz que precisa ser protegido e paradigma da periculosidade onde a criança se desloca pela cidade com bastante restrição. 

Quando falamos das crianças na cidade é importante deixar claro de que cidade estamos  a  falar.  A  cidade  de  que  falo  é  a  cidade  de  São  Paulo,  uma  grande metrópole do Brasil que assistiu um crescimento populacional sem precedentes na sua história acompanhado de um crescente medo, insegurança perante a violência. 

O  espaço  da  rua  antes  tido  como  lugar  para  brincadeira  das  crianças  se transforma em via de passagem para carros e, as crianças passam a ser confinadas nos  playgrounds,  condomínios,  praças  e  parques  onde  “jogam  jogos  em  clubes esportivos  melhor  que  nas  ruas,  escalam  o  playground  melhor  que  as  árvores”. (CHRISTENSEN, 2002, p: 66) 

São Paulo, hoje em dia é uma cidade de muralhas. Levanta­se por toda a parte barreiras materiais. Uma nova estética de segurança preside a todo o  tipo de  construções  e  impõe uma  lógica  sem precedentes baseado na vigilância e no isolamento. (BAUMAN, 2005, p: 35) 

A  cidade  apresenta‐se  como  espaço  das  diferenças  sociais,  culturais,  étnicas  e religiosas a compor um cenário diverso, por isso, é importante falar dos lugares na cidade destinados às  crianças da periferia e às  crianças de classe média e alta. A organização espacial da cidade e a distribuição dos equipamentos e dos espaços de lazer é  feita de  forma desigual, muitas vezes eles estão concentrados nos bairros onde moram pessoas de melhor poder aquisitivo restando ao morador da periferia a casa, a rua, a escola para suas vivências. 

“Para cada criança do local existe também um lugar de criança, um lugar social  designado  pelo mundo  adulto  e  que  configura  os  limites  de  sua vivência”. (VASCONCELLOS, 2005, p: 39) 

5 Direitos de provisão estão relacionados aos direitos sociais: saúde, educação, segurança. 6 Direitos de proteção contra abuso físico, exploração, injustiça. 7 Direito de falar, ser consultada e ouvida.

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As crianças de classe média e alta vivem isoladas da cidade por meio dos vidros das  automóveis,  janelas  de  suas  casas,  muros  dos  condomínios,  paredes  do shopping,  grades  dos  clubes,  parques  e  escolas,  espaços  limitados  que  se constituem  como  ilhas  infantis  em  meio  à  cidade  onde  as  crianças  vão  de  um espaço privado a outro espaço privado. 

O brincar  ao  ar  livre  foi  sendo  substituído pelo brincar  em espaços  interiores cobertos,  de  menor  dimensão  no  qual  dinheiro  e  lazer  apresentam  uma incompatibilidade  que  opõe  os  interesses  do mundo  adulto  aos  anseios  infantis. Como o espaço urbano pode gerar renda e multiplicar capital, os adultos tendem a apropriar‐se  das  áreas  que  devem  ser  das  brincadeiras  e  transforma  o divertimento em atividade lucrativa aonde “as áreas de lazer não foram feitas para jogar  bola,  brincar  de mocinho  e  bandido,  bater  pique­esconde,  soltar  pipa,  pular amarelinha e exercitar o corpo e o movimento”. (VOGEL; LEITÃO, 1995, p: 125) 

Enquanto que as crianças de classe média e alta possuem um leque de opções de lazer, as crianças da periferia, ao contrário, são carentes destes equipamentos e a falta  de  dinheiro  manifesta  nestas  o  poder  criativo  o  que  resulta  numa  grande diversidade  de  brinquedos  feitos  com materiais  nada  convencionais:  bonecas  de pedras, tijolos, barro, casca de melancia, etc. Para quem mora na periferia a busca de  lazer  e  diversão  implica  deslocar‐se  o  que  demanda  disposição,  tempo  e dinheiro. 

As  políticas  públicas  buscam  ofertar  para  estas  crianças  da  periferia  práticas esportivas  e  de  lazer  com o  intuito  de  retirá‐las  da  rua,  ou  seja,  da  proximidade com  a  violência,  drogas  e  marginalidade.  As  construções  dos  vinte  e  um  CEUS (centros  educacionais  unificados)  nas  áreas  da  periferia  da  cidade  de  São  Paulo que  tem  como  objetivo  ser  um  centro  de  lazer  da  comunidade  com  piscina, quadras,  teatro,  pista  de  skate  e  os  programas  de  governo  Recreio  nas  Férias  e Escola  Aberta  são  formas  de  institucionalização  e  confinamento  das  crianças  no seu espaço escolar diário para que não fiquem na rua onde há violência, perigo e risco. 

Para a classe média e alta o shopping se apresenta como um lugar seguro onde os pais podem deixar suas crianças a brincar tranqüilamente no piso do lazer em espaços cercados como uma ilha, enquanto fazem as suas compras. 

Os  espaços  e  elementos  do  cotidiano  comuns  nas  cidades  se  contrapõem  aos equipamentos e dispositivos especializados para o lazer porque consideramos que os parques de diversão, as áreas de lazer, as quadras de esporte, clubes cumprem com mais eficiência e perfeição a função de recrear e divertir em relação às ruas, praças, calçadas, o que é uma  ilusão porque o  lazer na rua se revela portador de uma criatividade. 

Não devemos, portanto, cair no simplismo de atribuir a rua um valor intrínseco de inadequação às práticas do lazer e, em conseqüência, tirar as crianças de lá para confiná‐las em espaços planejados, programados, segregados e repetitivos a negar 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

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a  vertente  lúdica  da  cidade.  Podemos  recorrer  a  ÁRIES  (1981)  para  abordar  a relação histórica do adulto com o lúdico. O autor apresenta a espontaneidade que os adultos tinham com os jogos e brincadeiras no início do século XVII aonde não existia  uma  separação  entre  brincadeiras  e  jogos  das  crianças  e  adultos  como acontece  hoje.  Os  jogos  e  festas  eram  o  principal  meio  de  socialização  que incentivava a coletividade das pessoas – era a época da valorização do lúdico, mas com o advento do capitalismo o trabalho passou a ser obrigatório para os adultos e o  lúdico passou a não  fazer mais parte de  suas vidas a estar presente apenas no mundo das crianças. 

Temos  que  atribuir  à  rua  seu  valor  instrutivo  e  educativo,  por  isso,  é  preciso compreender como já foi enunciado na Carta das Cidades Educadoras de Barcelona em 1990, que além das  instituições sociais  como a escola e a  família,  a educação também  deve  ser  competência  da  cidade  uma  vez  que  “viver  na  cidade  implica aprender  com,  na  e  a  partir  da  cidade”.  (CASTRO,  2004,  p:  24)  Adotar  uma perspectiva da cidade como espaço de aprendizagem. 

“Sair de  casa,  recorrer às  ruas,  conhecer  seu ambiente é uma exigência importante para o crescimento não  só  social, mas  também cognitivo da criança”. (TONUCCI, 1997, p: 61) 

 

Para além da cerca do quintal, do muro da casa, do portão do jardim e da grade  do  parquinho,  começa um universo  de mil  formas,  possibilidades espaços  e  acontecimentos.  O  espaço  controlado  e  vigiado  do  lar  cede terreno  à  rua,  à  praça,  ao  bairro.  Aí  começa  a  cidade  e  com  ela  o variadíssimo leque de contatos, relações, espetáculos e equipamentos que podem  satisfazer  os  mais  ousados  e  fantasiosos  sonhos  de  lazer  e diversão. (VOGEL; LEITÃO, 1995, p: 118) 

A  criança  brinca  com  a  cidade  e  seus  espaços  a  imprimir  ativamente  sua presença neste espaço a realizar uma transformação lúdica dos objetos cotidianos e dos espaços urbanos, assim uma porta que para o adulto serve para passar, para a  criança  está  a  possibilidade  de  se  esconder  por  detrás  desta.  Os  objetos cotidianos e  seus  espaços  se  transformam através de uma  leitura metafórica  e  o uso  lúdico  que  a  criança  realiza  sobre  eles,  onde  armários  se  transformam  em refúgios e esconderijos, as mesas em casas. 

As crianças buscam, portanto, apropriar‐se da cidade e transformar, resignificar e  recriar  os  espaços  que  os  adultos  constroem  de  forma  a  reconfigurarem  seu próprio  espaço.  Vemos  os  espaços  urbanos  serem  (re)criados  e  resignificados pelas  crianças  aonde  os  espaços  construídos  pelos  adultos  e  para  os  adultos ganham outro sentido e função. 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

 

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“Os espaços, prédios, ruas são permanentemente reinventados pelo modo como grupos, galeras se apropriam desses espaços  impregnando­lhes de outras perspectivas de ser e viver na cidade”. (CASTRO, 2004, p: 163) 

IMPORTÂNCIA DA CRIANÇA NA CIDADE

É  importante  que  os  administradores  conheçam  os  pontos  de  vista,  as exigências  das  crianças  para  que  um  profissional  as  tenham  em  conta  quando projetam  os  espaços  (TONUCCI,  1997,  p:  126)  a  considerar  as  crianças  como leitoras da cidade que trazem valiosas contribuições com seus olhares e formas de apropriação do espaço urbano. 

A presença da racionalidade infantil na cidade nos ensina que os espaços a todo o  momento  podem    ser  (re)criados,  (re)desenhados  e  transformados  a  tornar evidente que os espaços e objetos podem ter múltiplas funções. 

As  crianças  têm  muito  a  contribuir  na  cidade  e  para  a  cidade,  seja  pela  sua interferência na construção dos espaços  físicos, a dar suas opiniões que dão uma outra  perspectiva  que  o  adulto  não  tem,  a  configurar  um  ambiente  urbano mais lúdico, a quebrar com as cenas repetitivas da cidade, seja pela sua espontaneidade que rompe com o clima de silêncio e estranhamento instaurado entre os adultos da modernidade urbana “que habitam um  lugar cheio de desconhecidos que convivem em  estreita proximidade”  (BAUMAN,  2005,  p:  33)  onde  as  pessoas  passam  umas pelas outras  sem se  falar,  se olhar,  se  tocar a deixar  as  relações  sociais  cada vez mais  distantes.  As  crianças  descontraem o  ambiente  urbano,  olham  e  falam  com aqueles que não conhecem, fazem rir os rostos sérios, tensos e sisudos dos adultos a  desfrutar  da  “pedagogia  do  olhar  que  a  rua  promove,  olha­se  tudo  e  todos”. (CASTRO, 2004, p: 61) 

Essas atitudes das  crianças  são  condenadas pelos adultos que dizem para não falar com estranhos e não chamar a atenção em público, mas  “para as crianças a cidade  apresenta­se  como  lugar  de  desfrute  e  diversão  algo  cheio  de  novidades  e atrações oferecidas sem cessar”. (CASTRO, 2004, p: 122) 

A  criança  colabora  para  alterar  a  cidade  seja  nas  relações  sociais  que  nela  se constrói  (contribuição  de  seu  contato  físico  e  social  com  os  adultos  e  suas reinvenções dos espaços) seja na participação do espaço físico da cidade a ajudar a pensar os espaços que se erguem no espaço urbano. 

A criança com sua inventividade e lúdico próprios das culturas de infância nos mostra outras cidades possíveis num ato de criação de inúmeras possibilidades de construir e desconstruir os espaços urbanos, a permitir “olhar o mundo através das infinitas recomposições que a imaginação nos permite”. (CASTRO, 2004, p: 215) 

Não  é  pelo  fato  das  crianças  falarem  diferente  do  adulto,  utilizar  meios  de expressões e linguagens que lhes são próprias que devem ser consideradas inaptas 

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NASCIMENTO, N. (2007) A cidade (re)criada pelas crianças ‐muitas cidades possíveis na cidade de São Paulo. In, V. Trindade, N. Trindade & A.A. Candeias (Orgs.). A Unicidade do Conhecimento. Évora: Universidade de Évora 

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a  contribuir  para  a  vida  na  cidade.  Pelo  contrário,  por  trazer  sua  diferença  que dialoga com adulto a colocar um outro ponto de vista, uma outra perspectiva de se ver  a  cidade  é  que  evidencia  a  importância  da  construção de  um espaço público que compreenda múltiplas perspectivas aonde a criança pode mostrar aquilo que está oculto aos olhos dos adultos. 

A criança nos ensina, portanto, que os espaços da cidade são multifuncionais e podem ser utilizados e conhecidos de diversas formas onde a cada dia adotam uma função diferente a tornar o conhecimento destes espaços sempre dinâmico, basta você brincar com a cadeira e  ficar de ponta cabeça  invertendo a posição habitual que um novo ponto de vista é conquistado. 

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