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Afro-Ásia, 49 (2014), 11-39 11 À CABEÇA CARREGO A IDENTIDADE * O ORÍ COMO UM PROBLEMA DE PLURALIDADE TEOLÓGICA João Ferreira Dias ** Não é por acaso que Stephan Palmié começa o seu artigo, “O trabalho cultural da globalização iorubá”, 1 por perguntar se Samuel Johnson era, de facto, yorùbá, na medida em que Johnson não passou, ipso facto, de um Sàró cristianizado que somente em retrospetiva é passível de ser entendido como yorùbá, uma vez que toda a sua vivência foi pautada pela cristianização dos povos falantes da língua de e suas derivadas e similares. Como Palmié demonstra, a partir do caso dos Lucumí de Cuba, a pergunta é de extrema importância, na medida em que a “iorubidade” (como ele chama) ou a “yorùbánidade” em termos nossos, é de facto resultante de um processo intenso de laboração intelectual e, natural- mente, de um processo de alteridade 2 que infere na constituição do “eu” yorùbá, quer face aos seus vizinhos africanos, quer face aos missionários cristãos, islâmicos do norte e povos de destino da trata de escravos. En- quanto pastor da Church Missionary Society (doravante CMS), Samuel Johnson observou e formulou a identidade yorùbá em função de uma * Para o constante, o termo identidade surge em relação ao sujeito individualizado e não aos coletivos designados por yorùbá e afro-brasileiro. ** Investigador do Centro de História da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Este texto é dedicado a José da Silva Horta, pela orientação. E-mail: [email protected] 1 Stephan Palmié, “O trabalho cultural da globalização iorubá”, Religião e Sociedade, v. 27, n. 1 (2007), pp. 77-113. 2 François Laplantine, Aprender antropologia, São Paulo: Brasiliense, 2000, p. 21. afro 49.indb 11 5/6/2014 16:39:41

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  • Afro-sia, 49 (2014), 11-39 11

    CABEA CARREGO A IDENTIDADE* O OR COMO UM PROBLEMA DE PLURALIDADE TEOLGICA

    Joo Ferreira Dias**

    No por acaso que Stephan Palmi comea o seu artigo, O trabalho cultural da globalizao iorub,1 por perguntar se Samuel Johnson era, de facto, yorb, na medida em que Johnson no passou, ipso facto, de um Sr cristianizado que somente em retrospetiva passvel de ser entendido como yorb, uma vez que toda a sua vivncia foi pautada pela cristianizao dos povos falantes da lngua de e suas derivadas e similares. Como Palmi demonstra, a partir do caso dos Lucum de Cuba, a pergunta de extrema importncia, na medida em que a iorubidade (como ele chama) ou a yorbnidade em termos nossos, de facto resultante de um processo intenso de laborao intelectual e, natural-mente, de um processo de alteridade2 que infere na constituio do eu yorb, quer face aos seus vizinhos africanos, quer face aos missionrios cristos, islmicos do norte e povos de destino da trata de escravos. En-quanto pastor da Church Missionary Society (doravante CMS), Samuel Johnson observou e formulou a identidade yorb em funo de uma

    * Para o constante, o termo identidade surge em relao ao sujeito individualizado e no aos coletivos designados por yorb e afro-brasileiro.

    ** Investigador do Centro de Histria da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Este texto dedicado a Jos da Silva Horta, pela orientao. E-mail: [email protected]

    1 Stephan Palmi, O trabalho cultural da globalizao iorub, Religio e Sociedade, v. 27, n. 1 (2007), pp. 77-113.

    2 Franois Laplantine, Aprender antropologia, So Paulo: Brasiliense, 2000, p. 21.

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    utopia crist. Jamais foi seu intento construir uma identidade africana em torno de padres religiosos autctones. Como J. D. Y. Peel3 bem denota, a agenda poltico-cultural-religiosa de Samuel Johnson era fruto, tambm, da necessidade de um africano cristo se sentir em casa numa terra da qual os seus pais haviam sido levados como escravos. Johnson era um estranho na sua terra ancestral.

    Mas Samuel Johnson no caso singular. Samuel Ajayi Crowther deve ser descrito nos mesmos moldes. O primeiro bispo anglicano africano foi, a par de Johnson, um proto-yorb, na verdade um Sr inscrito no imaginrio yorb pelo mesmo processo de Johnson (a que Arthur Danto chama de alinhamento retrospetivo4). Educado em In-glaterra, Crowther celebrado como um yorb, hoje em dia. Todavia, tal como o seu contemporneo Johnson, Crowther foi um missionrio cristo em terras africanas que, por mero acaso, era tambm africano. Com Vocabulary of the Yoruba Language de 1843, Crowther d um yorb como designador de identidade. Todavia, o processo que o termo haveria de tomar nada teria a ver com os propsitos da CMS. A comunidade imaginada5 que Sigismund Kelle6 tambm preconizava, e que, no fundo, era a aspira-o da CMS, era dimensionalmente diferente do que esta se tornaria. Uma Roma africana enquanto projeto ideolgico estava muito distante da intensa dinmica das sociedades proto-yorb e daomeanas. Em derradeira anlise, a CMS teve o condo de dar o mote a um projeto de eu africano). O velho Eyo Country7 d lugar ao territrio yorb. Aos poucos, as populaes vo assumindo para si essa nova identidade, cuja longa marcha Peel8 bem palmilhou, o que torna desnecessrio o ato de caminhar sobre as mesmas pegadas.

    3 J. D. Y. Peel, Religious Encounter and the Making of the Yoruba, Bloomington: Indiana University Press, 2001.

    4 Arthur Danto, Analytical Philosophy of History, Cambridge: Cambridge University Press, 1965. 5 Benedict Anderson, ,

    London: Verso, 1991. 6 Sigismund Kelle, Polyglotta Africana, London: Church Missionary House, 1854.7 Samuel Ajayi Crowther apud Peel, Religious Encounter, p. 284.8 Peel, Religious Encounter.

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    A meios de todo um intenso processo de autopercepo e auto-fabricao, foi-se dando uma maturao cultural comumente descrita como lagosian renaissance9 que se expressava em contraponto com o avano do Cristianismo e dos ideais da CMS, ou seja, pela valorizao da negritude e dos seus aspetos mais expressivos: os trajes, a gastronomia, a lngua e, necessariamente, a religio. precisamente quando o Imprio de era j inexistente Matory chama-lhe com sentido potico de O Imprio que j no (traduo do autor) que a valorizao do seu ideal melhor se expressa. A nostalgia por uma idade de ouro em boa medida to utpica quanto o referencial cristo face a Jerusalm,10

    em que a alteridade estava bem patente.

    Todavia, o que aqui importa, reconhecendo a construo histrica da identidade yorb, observar que tal se fez acompanhar de um processo

    !!-titui a religio tradicional yorb , na verdade, uma tradio inventada, no verdadeiro sentido hobsbawmiano.11 Dessa forma, o presente trabalho pretende dar conta de uma pluralidade discursiva, no constante face ao or, elemento de vitalidade religiosa em ambos os lados do Atlntico. Tal plura-lidade discursiva esbarra em certa tradio quer acadmica quer presente no discurso das comunidades religiosas yorb-descendentes, que a ideia de que a !""#$!,12 a religio tradicional nos termos de Matory,13 oferece um

    9 J. Lorand Matory, Black Atlantic Religion: Tradition, Transnationalism, and Matriarchy in the Afro-Brazilian Candombl, Princeton: Princeton University Press, 2005.

    10 Visvel no hino religioso: Jerusalm que bonita s/ ruas de ouro, mar de cristal.11 Terence Ranger e Eric Hobsbawm (eds.), The Invention of Tradition, Cambridge: Cambridge

    University Press, 1992. 12 "#$"!%!%!&'+

    aborgenes relativos aos Yorb, incluindo tradio, cultura, oralidade, terra e crenas, o Dic-tionary of Yoruba Language de 1913, da CMS, traduz religio por ", do mesmo modo que Roland Hallgren, The Good Things in Life: a Study of the Traditional Religious Culture of the Yoruba, Lund: University of Lund,1991, ao passo que Matory, Black Atlantic Religion, usa espe-!""#$!% como religio tradicional. No caso do English-Yoruba/Yoruba--English Modern Practical Dictionary, de Kayode J. Fakinlede, o termo religio traduzido por "#!"e isin. Bem assim, reconhecendo que esse termo limitativo para o ambiente em questo, consideram-se vlidas as alternativas como or il e ou , que denotam um referencial em matria de localidade que melhor espelha as dinmicas locais prprias da religio, que salientmos tambm no trabalho Joo Ferreira Dias, Frmulas religiosas entre os Yorbs: ?GQWQXZ[\]^_`{|}}~

    13 Matory, Black Atlantic Religion.

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    discurso coerente e conceptualmente unitrio.14 Observar-se- tal facto a partir do complexo problema do or, cujos contornos poder-se-iam inscrever como neotradicionais.15 No seio do imenso dilogo necessrio, !+&

    !#$?. Tal pergunta , pois, uma alegoria para a j mencionada pluridimensionali-

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    do uma verdadeira farsa, para usar os termos de &Z.17 Todavia, importa notar que essa farsa foi, na verdade, um instrumento poltico e cultural poderoso numa poca em que uma sociedade diametralmente oposta parecia querer erguer-se. A .#0'(&, fundada, em }

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    e cultural yorb, considerado progenitor de todos os reis yorb e fun-dador da cidade-santa de 0+!6Dessa perspetiva, '(&mitolgica mais exacerbada e instrumentalizada do imaginrio yorb, no sendo possvel dissociar '(&+=\f, divindade e sistema religioso-divinatrio sobre o qual se depositar a ateno ao longo do presente trabalho. No se nega que outras divin-dades so amplamente importantes, de acordo com experincia direta com a realidade religiosa yorb, como sejam #%%, un, gn e 78;%. A escolha de Matory revela bem o alcance poltico tomado pelas divindades, verdadeiras bandeiras de uma cultura negra e valorizvel. A nostalgia tornou-se um sentimento contrastante com uma modernidade oferecida pelo Cristianismo. Todavia, ao contrrio do proposto por Par-rinder,22 os cultos dos

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    tando recordar Matory quando cita que o Islo entre os yorb era to antigo quanto a vida (traduo do autor)24 apresentava. Se, no nvel

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    transparente, sem ndoa teolgica e sem contornos menos ntidos, vale

    #!No apenas no interior da identidade autctone yorb mas tambm, e talvez acima de tudo, na esfera afro-brasileira do Candombl.

    &

    -guagem religiosa yorb. Mesmo sabendo que, lato sensu, o sujeito composto por corpo (r), cabea (or) e esprito (!$), surgem ainda o corao (4&), concebido como portador de conhecimento, o que equivale a uma herana europeia expressa em francs por savoir par cur; as pernas (!!%~orkn), os dedos ("4!! %~(;>), a planta do p (&!!!), a boca (!~de designaes, quantos so os elementos corporais conhecidos. Isso !

    fsica do sujeito e a concepo metafrica, facto que importa bastante ter !Z

    Ze fora a lngua yorb

    discurso religioso, simblico e metafrico, mantm as categorias de base: h um corpo, um elemento imaterial que o componente da vida, e a cabea, portadora de identidade e vasilha do destino,26 o que seria muito

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    pluralidade discursiva dinmica e dialogante. O confronto entre o ideal unitrio e a realidade plural ganha novo contributo.

    Que a cabea a vasilha da personalidade e do destino (") e composta pelo or od (cabea exterior) e or in (cabea interior ou mstica28), tema corrente na literatura sobre o assunto. Sabe-se tam-bm que h um or bom (olr rere) ou mau (olr burk), i.e., que se portador de um destino favorvel ou penoso.29 Todavia, o que j #yorb a forma como o destino se expressa no sujeito, i.e., se lhe atribudo ou imposto.30 Esse dilema apenas parte de um intenso problema de

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    #

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    !Zliteratura corrente sobre o assunto no se encerram aqui. Em relao a fate, esse sim surge traduzido, no j mencionado dicionrio da CMS, por ", opin, idarisi e iku. Parece claro estar-se diante de uma conjugao entre destino e fado, ou, nos termos ingleses, algo que est talhado a acontecer a uma coisa ou objeto como pr-concebido e determinao individual, o que refora a ideia de poro.39 Observe-se agora && no citado dicionrio da CMS, em que traduzido por fate ou destiny, remetendo in situ para a observao do termo bf. Fado e destino mantm a cumplicidade. Ora, na observao do termo bf, surge a traduo inglesa de luck (sorte), fortune (fortuna), fate (fado), oferecendo o exemplo de bf mi ni, i.e., it is my fate ( meu fado).

    notrio, no presente caso, o claro exerccio de alinhamento cultural que as tradues implicam. Traduzir categorias traduzir con-cepes do mundo e, nesse sentido, h sempre uma natural perda de matria ou contedo das cosmovises de partida, a meio de tal exerccio. Estabelecem-se pontes, todavia, sobre alicerces frgeis. Tal facto deixa-

    ! de um manual de cdigos culturais, no raras vezes inoperatrios. Tal assuno ainda reforada pelo contexto em que as tradues ocorrem: a CMS. O background cristo e os religious encounters40 no podem ser desprezados.

    Se j se dispe de algumas evidncias de que uma matriz reli-giosa yorb to falaciosa quanto a ideia de um Cristianismo, a nossa interpretao adensa-se com os comentrios de Adekanmi, segundo o qual " a testemunha do or, " a testemunha do nosso fado, aquilo que nos dever acontecer na vida (traduo do autor). Ora, at aqui, " era a poro do destino coletivo individualizado, o destino pessoal. Segundo Adekanmi, praticante da religio yorb e apelidado de conhecedor da tradio, na linguagem dos seus conterrneos, o "

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    pin deixa de ser o destino para ser a testemunha daquele, colando-se a >"&]^%, divindade e sistema de adivinhao, simultaneamente, pese o facto de Ilsanm41 considerar >"& no como divindade mas, antes, como o criador do sistema de adivinhao conhecido como f (que ser ~-corpus mitolgico bem estruturado. A humanizao do mtodo divinatrio representa toda uma outra historizao da identidade religiosa yorb e, no menos importante, um srio problema de natureza teolgica, questo que requereria uma investigao de flego, envolvendo a histria (essen-~garante, contudo, de concluses necessariamente objetivas. Retomando o &'!" a testemunha !>"&, coube-nos contrainterrogar com um epteto da divindade (agente criador do mtodo?), _."`j, ao qual Adekanmi deu a resposta:

    Eleri

    "!" uma testemu-nha; por exemplo, se voc estiver numa situao que necessita de uma soluo, mas voc no a conhece ou no a tem, o or poder ajud-lo ligando-o a uma pessoa, acidentalmente, uma vez que seu destino, e ser essa pessoa que voc encontra que providenciar a soluo. Essa pessoa que voc encontra tornar-se- na testemunha do seu destino na vida. pin fado enquanto destino ynm(traduo do autor).

    Constata-se que o interlocutor observa a ideia de " numa dupla funo, ao mesmo tempo em que d uma amplitude de ao considervel ao or,#vontade. Por um lado, " , ento, o agente que testemunha o nosso destino podendo tomar parte ativa nele ou no, ao mesmo tempo em que

    >"&; de outro modo, " o nosso fadodestino&&, com todas as particularidades de acontecimentos exgenos mas que encami-nham o sujeito num determinado sentido. Porm, como visto a partir do dicionrio produzido pela CMS, os termos no se separam claramente.

    41 Ilsanm, The Traditional Theologians, p. 220.

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    Nas ligaes entre or e ", i.e., na forma como o bom e o mau or

    perante a questo Mas ns podemos mudar nosso destino ou ele j est predeterminado?, que,

    [...] a sorte percorre diferentes caminhos para assistir nossas oraes. Por exemplo, duas pessoas do mesmo sexo, idade, educao, podero no alcanar o mesmo sucesso por causa do seu or, o seu fado encarregar-se- das suas chances e oportunidades. O destino no pode ser alterado, mas pessoas mal-intencionadas podero atras-lo, por essa razo devemos potenciar o nosso destino por meio de sacrifcios, oraes e meditao (traduo do autor).

    A sorte ou a fortuna entram, ento, no dilogo sobre o destino. !!ou no o destino, facto que varia de sacerdote para sacerdote e de autor para autor. Nesse sentido, tal constatao no de somenos importncia. Compreendendo que o debate se inscreve no corao da teologizao do pensamento yorb ou, por outras palavras, a constituio de um complexo de padres de pensamento religioso,42 importa ter presente que alternativas teolgicas correspondem a diferentes concepes de mundividncias, o que equivale a dizer que no h uma unidade dog-mtica/doutrinal.

    O problema adensa-se ainda mais ao observar-se, por exemplo, a obra do bblw (sacerdote de f) norte-americano Philip Neimark, )q. Reconhecendo, contudo, que sua explicao sobre #