cabeça de turco
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O jornalista Günter Wallraff pretendiaescrever sobre a situaçãode milhões de estrangeiros — emespecial turcos, iugoslavos, gregos,espanhóis — que vivem naAlemanha. Então, assumiu a aparênciade um turco, provavelmenteo ser humano que ocupa o lugarmais baixo na escala de valoresda sociedade alemã contemporânea.Após intenso treinamentopara aprender a falar alemãocomo um turco, Wallraffcompletou seu disfarce com lentesde contato escuras, peruca decabelos pretos, bigode, documentosfalsos, e saiu a campo.TRANSCRIPT
G Ü N T E R W A L L R A F F
CABEÇA DE TURCOTradução
Nicolino Simone Neto Prefácio
William Waack
2? Edição
B B GKOPPWÔ 288-2109
Titulo do original alemõo:Ganz untenCopyright © 1985 Kiepenheuer & Witsch Crédito das fotos de miolo: PAN-Foto, Gfinter Zint Arquivo particular de GOnter Wallraff Projeto grdfico: Haroldo Jereissati Rodrigues Composição: Editora Globo
CIP-BnaU. C*Uüogaç2o-na-íonte — Câmara Brasileira do Livro, SP
Wallraff, Gfinter, 1942- W187c Cabeça dc turco / Güntcr Wallraff: tradução Nicolino Simonc Neto; pre-2.ed. fádo William Waadc. —2. ed. — Rio de Janeiro : Globo, 1988.
ISBN 85-250-0599-11. Discriminaçto racial - Alemanha 2. Trabalhadores estrangeiros turcos
• Alemanha 3. Turcos • Emprego • Alemanha I. Título
CDD-305.89435043e»-i606 -331.62561043
íodtecs pxia catálogo sistm átko:1. Alemanha : Discriminação contra turcos : Sociologia 305.894350432. Alemanha : Trabalhadores Turcos 331.625610433. Turcos : Trabalhadores na Alemanha 331.625610434. Turcos na Alemanha : Discriminação racial: Sodologia 305.89435043
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravaç&o etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.Direitos de edição em língua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Editora GloboEditora Globo é denominação comercial de fantasia utilizada pela Editora Rio Gráfica Ltda.Rua Itapiru, 1209, CEP 20251, Rio de Janeiro.Td.: (021)273-5522, telex: (021)23365, RJ.Brasil.
Sumário
Prefácio 11por William Waack
Advertência 17 A metamorfose 19 O ensaio geral 22 Os primeiros passos 24 Matéria-prima: o espírito 31 “O prazer de comer" (ou: A última ração) 37 O canteiro de obras 47A conversão (ou: Cortar cabeças sem bênção) 60
Do lado de cá do Éden 80 O enterro (ou: Livrando-se do corpo) 87 Atolado na lama (ou: “Longe de casa e fora da lei") 94
“É uma emergência*' 110 “É melhor fingir que não entendeu" 114 Conversa no horário de descanso 117 A odisséia de Mehmet 123 Em outro lugar 127 A suspeita 130Os parapeitos: questão de mícron e “mico” 136 Como no faroeste 141 A fúria de Yüksel 144 “Chuveiro de emergência" 150
O teste 160Cobaia humana 160
A promoção 173 A assembléia do pessoal 189 A radiação 213A missão (ou: Pegar e largar) 224
A missão secreta 225 Epflogp (ou: A banalÍ2#ção do crime) 254
Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todos os amigos e colaboradores que me ajudaram na elaboração deste livro.
Levent (Ali) Sinirlioglu, que me emprestou seu nome.
Taner Alday, Mathias Altenburg, Frank Berger, Anna Bõ- deker, Levent Direkoglu, Emine Erdem, Hüseyin Erdem, Sük- rü Eren, Paul Esser, Jõrg Gfrõrer, Uwe Herzog, Bekir Karade- niz, Rõza Krug, Gesine Lassen, Klaus Liebe-Harkort, Claudia Marquardt, Hans-Peter Martin, Weraer Merz, Heinrich Pachl, Franz Pelster, Frank Reglin, Ilse Rilke, Harry Rosina, Ayetel Sayin, Klaus Schmidt, Günter Zint.
Agradecimento especial ao prof. dr. Armin Klümper, de Freiburg, que com sua assistência médica “fortaleceu minhas costas", permitindo que eu realizasse os trabalhos mais pesados, não obstante uma lesão no disco vertebral.
Prefácio
A Alemanha não é fácil de explicar. Nem se trata só do problema de se enveredar por seu passado recente, que apesar dos esquemas mentais consagrados ainda oferece enorme campo aberto à reflexão. Buscar as causas do impressionante processo de recuperação econômica do país até agora foi o menos árduo, mas interpretar essa complexa sociedade pós-industrial é tarefa que só começou muito mais tarde. Infelizmente, terminou cedo demais para alguns que se consagraram tentando entendê-la: Heinrich Bõll e Wemer Fassbinder, ambos já mortos.
Talvez um dos aspectos mais enigmáticos, falando em tom estritamente pessoal, associado à Alemanha e aos alemães, seja a dificuldade de ir afundo nas regras e motivos que regem o comportamento de pessoas naquele país. Seria injusto afirmar que a sociedade alemã atual é hermética e fechada, principalmente se comparada às barreiras que determinados círculos na França e Inglaterra opõem à integração de qualquer estranho. Quem concede submeter-se à forma metódica e organizada com que os alemães trocam idéias vai achá-los até bastante comunicativos.
Para facilitar as coisas, convém começar por aquilo que melhor se compreende em relação à Alemanha: seus sistemas formais econômico e político. É um caso único, deve-se reconhecer. O país foi praticamente outorgado pelas potências de ocupação ocidentais (o mesmo processo, às avessas, ocorreu nos territórios ocupados pelo Exército Vermelho) com um modelo político de representação parlamentar praticamente inédito para as condições alemãs. Ele provou ser até agora, a despeito de muitas críticas até bem fundamentadas, suficientemente maleável e flexível.
Surpresos? Todos deveriam estar, de verdade. Basta lembrar o auge da revolta antiautoritária da década de 60, a qual um governo de coligação entre socialdemocratas e liberais reagiu impondo restrições à admissão ao serviço público de pessoas consideradas radicais. Ou o surgimento dos fortíssimos movimentos de ecologistas e pacifistas, quase dez anos depois. Fo
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ram imediatamente qualificados pelos conservadores; que voltaram ao poder em 1982, como perigosos extremistas; perseguindo a destruição do sistema político e econômico.
Espeéialmente o surgimento dos Verdes e sua absorção no sistema parlamentar talvez tenha sido o teste mais importante para as instituições políticas que os alemães tiveram de implantar no final da década de 40. Foi um importante gesto de renovação que coincidiu justamente com um escândalo — o famoso caso Flick —, no qual ficou claro que a base comum entre os democratas alemães era sobretudo o amor às finanças ilegais para todos os partidos. As conseqüências que tudo isso terá para o comportamento de gerações futuras é outra conversa — o fato é que o sistema político alemão, até agora, deu provas de in- suspeitada vitalidade.
Há mais de 150 anos que a Alemanha se tomou uma impressionante história de sücesso econômico. Na segunda metade do século XX, após o cataclismo de 1945, as causas dessa recuperação e vigor são suficientemente conhecidas. A guerra destruiu, menos do que se pensa, instalações industriais alemãs. Nas regiões ocidentais, ocupadas por americanos, ingleses e, mais tarde, franceses, houve menos desmontagens de instalações a título de reparação de guerra. Além disso, entre os milhões de fugitivos dos territórios a leste encontrava-se farta, barata e bem treinada mão-de-obra.
Bem cedo, americanos e ingleses iniciaram a integração da Alemanha Ocidental nos seus respectivos sistemas financeiro, comercial e monetário. Um programa de ajuda e recuperação— o Plano Marshall —, habilmente administrado (parte desses fundos até hoje é redistribuído pelos alemães), permitiu que a Alemanha tivesse amplo acesso a recursos financeiros, aplicados numa economia com enormes possibilidades de expansão.
É fácil perceber que, para os alemães, aparentemente o mundo não precisa de grandes explicações. Com a economia funcionando do jeito que está — não há outro exemplo de potência capitalista capaz de fornecer um padrão de vida tão alto a tantos milhões de pessoas— eas instituições políticas razoavelmente equilibradas, o motivo principal de preocupação nesse meio social onde reina a opulência é o que fazer com o tempo livre — cada vez maior, aliás. É que, para o alemão normal, as grandes linhas do debate histórico e ideológico dos últimos sessenta anos de conflagração global transformaram-se em as
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sunto maçante. Em termos de política internacional, por exemplo, os alemães preferiram continuar uma potência de segunda categoria, até mesmo no cenário europeu.
Seria necessário aqui abrir um parêntese para a Ostpolitik, a tão famosa política de reaproximação com os países socialistas europeus; no começo da década de 70. Ajustada com o ritmo imposto pelas duas superpotências; esse considerável ato de coragem política, personificado na figura do Kanzler Willy Brandi, levou evidentemente a muita reflexão sobre o papel da Alemanha— ou melhor, dos alemães de leste e oeste — no sistema das relações internacionais. Contudo, com o passar dos anos, os sucessivos governos alemães preferiram estreitar os laços comerciais com todos os países socialistas, especialmente a Alemanha Oriental, e não parecem seriamente interessados em nenhum tipo de embate ideológico.
A questão alemã é tão velha quanto as articulações políticas na Europa dos últimos duzentos anos, mais ou menos, mas momentaneamente reina aí absoluta Ruhe — tranqüilidade. Os alemães trocaram sua identidade nacional por essa calma e pelo acesso ampliado, irrestrito e fantástico a bens de consumo. Mas o problema da identidade não se restringe a estabelecer que tipo de papel os alemães pretendem desempenhar no mundo, nem como a acomodação de seus interesses pode significar ou não um abalo de proporções sísmicas para seus vizinhos. A busca de identidade envolve sobretudo uma difícil reflexão e ocupação com o passado recente.
É nesse sentido que se pode dizer que a alma alemã tomou- se fechada e hermética a tudo que possa parecer constrangedor ou difícil de ser confrontado. Oferece um dos contrastes mais interessantes da Alemanha atual: por detrás da aparente intensa participação política, entendida como dever cívico de votar, os alemães mostram-se, no fundo, apáticos. Estão muito mais interessados em planejar suas férias, cada vez mais exóticas e caras, e têm horror a qualquer coisa que possa parecer alteração de seus hábitos de vida regulamentados, metódicos, a qualquer coisa que possa significar alteração de sua Ruhe.
Esse paraíso não está aberto, evidentemente, para todos; Há uma parcela substancial de trabalhadores estrangeiros, os famosos Gastarbeiters — cerca de 2,5 milhões em 1973, quase
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um milhão a menos em 1987— que teve acesso a apenas migalhas desse sistema, o que já era algo considerável em se tratando de seus países de origem, principalmente no caso dos turcos. Tomou-se supérfluo, a esta altura» discutir ou quantificar em número a real participação dessa força de trabalho na realização do milagre econômico alemão. O fato é que há pouco reconhecimento, por parte da população alemãde um fato razoavelmente evidente.
Há, isto sim, enorme preocupação com o legado social e político dessa considerável minoria, que chega a constituir 20% da população de alguns grandes centros urbanos. Já existe uma geração perdida de filhos de trabalhadores estrangeiros que não se sentem em casa em lugar algum: perderam a identificação com os países de origem de seus pais e não são aceitos na Alemanha, embora dominem perfeitamente o idioma, por sua aparência física ou alguns hábitos culturais. A melhor maneira que muita gente na Alemanha imagina para poder resolver o problema apresentado por essa bomba-relógio social é simplesmente reexportá-la para o lugar de onde veio — o que é evidentemente impossível. Assim como no começo do século, quando milhares de poloneses ocuparam as regiões produtoras de carvão no Ruhr e se transformaram em mão-de-obra abundante e barata, novamente a Alemanha virou um país de imigração.
O surgimento de preconceitos contra minorias étnicas não é característica apenas dos alemães. Basta lembrar os aguçados sentimentos antiestrangeiros na França (em relação aos árabes), na Suíça, na Áustria ou na Inglaterra, invadida agora por aqueles que os soldados de Sua Majestade (ou os comerciantes, não importa) conquistaram há mais de um século. Em todos esses países esse tipo de manifestação preconceituosa é imediatamente explorado por grupos radicais de direita. A gravidade do problema alemão reside na relutância com que a opinião pública, como um todo, se sensibiliza frente a esse tipo de problema.
O livro de Günter Wallraff se propõe a quebrar "a frieza glacial de uma sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontestável e imparcial”. Na verdade, Wallraff confessa que, após sua aventura pelos porões dessa sociedade, só conseguiu saber o que um trabalhador estrangeiro tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano na Alemanha. Mas está longe ainda de entender como esse trabalhador consegue engolir as humilhações, a hostilidade e o ódio cotidiano.
Para o leitor brasileiro, muitas das denúncias contidas no livro vão parecer surpreendentemente fracas. Parte delas se refere à não-observância de regras de segurança e comportamento em empresas industriais, ao não-pagamento integral de encargos e benefícios sociais; às formas precárias de atendimento médico e hospitalar, à exploração incontida de mão-de-obra barata. Para os brasileiros isso não constitui absolutamente a menor novidade; e muita gente aqui estaria satisfeita em conseguir algum tipo de ocupação, pouco se importando se o veículo que transporta os trabalhadores de um lugar para outro tem bancos dignos ou não, ou se ele mora num barraco ao invés de numa casa.
Em primeiro lugar, é claro que as denúncias de Wallraff têm de ser consideradas em relação aos padrões mínimos de subsistência na Alemanha e não no Brasil — e diante do abismo entre as propostas de um estado assistencialista, como o alemão, e a realidade vivida pela minoria de estrangeiros. A í surge a gravidade dos fatos mostrados nessa reportagem. Seu conteúdo, aliás, não chega a ser novidade muito menos para os alemães. Existe desde o final da década de 60 abundante literatura produzida por e sobre os Gastarbeiters, incluindo o difícil relacionamento dos sindicatos alemães com essa questão.
Em segundo lugar, e esse é o ponto mais relevante; os elementos intrínsecos do que acontece a “Ali”, o Gastarbeiter no qual Günter Wallraff se fantasia para viver sua viagem aos porões da Alemanha, não são os mais importantes, e sim a descrição da atmosfera de frieza e intolerância que só mesmo o estranho, o estrangeiro, consegue perceber com tanta clareza. É interessante notar como o próprio Wallraff mostra-se surpreso com o grau de incompreensão, distância ou desprezo com o qual “Ali** tem de se acostumar a ser tratado — embora se tivesse treinado para isso.
O método de Wallraff tem sido tão eficiente quanto polêmico. Nos anos 80 ele já havia adquirido considerável notoriedade ao disfarçar-se de repórter para mostrar como se produzia a manipulação de notícias no Bild Zeitung, um jornal popular com tiragem diária de milhões de exemplares. A utilização do recurso do disfarce vai bem mais adiante, no caso de “Ali**, para provocar também situações, e não apenas vivê-las.
E o que acontece quando Wallraff, disfarçado de turco, procura diversos setores da Igreja católica alemã, em busca de
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batismo. Ou quando tenta» através de uma armadilha, mover um de seus patrões — Adler, o homem que comercializa mão- de-obra ilegal—a literalmente entregar estrangeiros para a morte lenta. Houve, na Alemanha, fortíssimo debate sobre alguns dos aspectos éticos encerrados no comportamento do repórter Wall- raff — e que, em alguns casos, podiam ser descritos como se um policial provocasse um crime para depois denunciá-lo.
Para o leitor brasileiro, nem se trata de aprofundar esse aspecto da questão. Com ou sem provocação, com ou sem exagero, com ou sem disfarce, o que Wallraff simplesmente põe em linguagem simples, direta e acusadora são fatos que nenhum de seus críticos pensou em contestar. No final do século XX e, ainda màis, na Alemanha, onde se viveu tragicamente o extremo a que pode chegar a manifestação incontida de preconceitos e racismo, nenhum deles é fácil de explicar.
William Waack
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Advertência
Grande parte dos honorários recebidos pela venda deste livro foi colocada à disposição do recém-criado Fundo de Solidariedade aos Estrangeiros. Esses recursos serviram para financiar serviços gratuitos de aconselhamento e assistência jurídica, campanhas de esclarecimento e um projeto de habitação comunitária para alemães e estrangeiros.
Nem todas as experiências e nem todos os documentos disponíveis puderam ser explorados neste livro; longe disso. Alguns amigos e colaboradores, cada qual em sua área, continuam trabalhando sobre o mesmo tema. Quem deseja relatar suas próprias experiências e fornecer informações, por favor, escreva para o seguinte endereço:
Hilfsfond ‘ ‘Auslàndersolidaritàt’ ’Postfach 30 14 43 5000 Kõln 30
Ou para:Günter Wallraffc/o Verlag Kiepenheuer & Witsch Rondorfer Strasse 5 5000 Kõln 51
Prevendo eventuais processos, novos capítulos foram preparados com o material inédito para completar este livro, assegurando edições ampliadas.
Colônia, 7 de outubro de 1985.
A metamorfose
Durante dez anos afastei de mim este papel. Sem dúvida porque já pressentia o que iria me acontecer. Eu simplesmente estava com medo.
Através de relatos de amigos e de várias publicações eu já podia fazer uma idéia da vida dos estrangeiros na República Federal da Alemanha. Sabia que mais da metade dos imigrantes jovens sofre de doenças psíquicas. Não conseguem mais digerir os inúmeros desaforos. Praticamente não têm chances no mercado de trabalho. Para eles, que aqui cresceram, não há possibilidade de regresso a seus países de origem. São apátridas.
O aviltamento do direito de asilo, o ódio aos estrangeiros, os confinamentos crescentes em guetos — tudo isso eu conhecia, mas nunca havia vivenciado.
Em março de 1983 publiquei em diversos jornais o seguinte anúncio:
Estrangeiro, robusto, procura qualquer tipo de trabalho, mesmo que seja muito pesado e sujo, mesmo que paguem pouco. Propostas sob n? 358 458
Não foi preciso muito para me marginalizar, para fazer parte de uma minoria rejeitada, para ficar na pior. Mandei um especialista fazer um par de lentes de contato bem escuras, que eu podia usar dia e noite. “Agora o senhor tem o mesmo olhar penetrante dos meridionais", surpreendeu-se o oculista. E que normalmente seus clientes só desejam olhos azuis.
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1 W allraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).
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A fim de parecer alguns anos mais jovem, passei a disfarçar o cabelo ralo com uma meia peruca preta. Desse modo aparentava ter entre 26 e 30 anos. Foi assim que consegui alguns trabalhos dos quais não teria sequer me aproximado se tivesse confessado minha idade real: 43 anos. É verdade que nesse papel eu me comportava como um sujeito mais jovem, vigoroso e produtivo; ao mesmo tempo, contudo, esse papel me transformou num forasteiro, no último dos miseráveis. Durante o tempo de minha metamorfose, eu falava um “alemão de estrangeiro” , tão tosco e canhestro que quem tivesse se dado ao trabalho de ouvir um turco ou um grego que mora aqui perceberia que alguma coisa não soava bem. Eu apenas eliminava artigos, deixava de lado a concordância verbal, engolia certas preposições. Mas ò resultado foi espantoso: ninguém suspeitou de nada. Eram suficientes as asneiras que eu dizia. Minha dissimulação fazia com que me entendessem precisamente por aquilo que me tomavam. Simulando tolices, tomei-me mais esperto; meus olhos se abriram para o embrutecimento e a frieza glacial de uma sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontestável e imparcial. Eu era o tolo a quem se diz a verdade sem hipocrisia.
É óbvio que eu não era um turco de verdade. No entanto, foi necessário usar um disfarce para desmascarar a sociedade; foi necessário mentir e fingir para descobrir a verdade.
Continuo, porém, sem saber como um imigrante consegue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio cotidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano neste país. Reflexos do apartheid projetam-se aqui entre nós — em nossa democracia. Os fatos ultrapassaram todas as minhas expectativas. De modo negativo, é claro. Em plena República Federal da Alemanha vivenciei situações que só estão descritas nos livros de História do século XIX.
O trabalho foi sujo e extenuante, mais ainda quando passei a sentir o desprezo e as humilhações; o trabalho pre-
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judicou minha saúde, mas por outro lado, no plano psíquico, edificou-me. Nas fábricas e nos canteiros de obras— lugares muito diferentes da redação do Bild Zeitung1— recebi solidariedade e fiz amigos, aos quais não podia revelar minha identidade por motivos de segurança.
Pouco antes da publicação deste livro, compartilhei meu segredo com alguns deles. E ninguém me censurou pelo disfarce. Ao contrário: não só compreenderam, como perceberam as intenções libertadoras de meu papel. Mesmo assim, foi necessário trocar os nomes de muitos colegas para protegê-los.
Günter WallraffColônia, 7 de outubro de 1985
1 Wallraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).
O ensaio geral
Para testar meu disfarce e verificar se minha aparência era convincente, fui a alguns bares que costumo freqüentar. Ninguém me reconheceu.
Mesmo assim, ainda não me sentia seguro. Tinha medo de que pudessem me desmascarar num momento crucial.
Na noite de 6 de março de 1983, a alta cúpula da União Democrata-Cristã comemorava no Salão Konrad Ade- nauer, em Bonn, a vitória da direita nas eleições. Aproveitei a oportunidade para meu ensaio geral. Evitando despertar suspeitas logo na chegada, muni-me de um refletor manual e, misturando-me a um pessoal da televisão, consegui entrar no edifício. O salão estava repleto, e a luz cintilante dos refletores alcançava até os cantos mais escondidos. E lá estava eu, bem no meio do salão, vestido com meu único temo escuro (que já devia ter uns quinze anos), iluminando aqui e ali uma e outra autoridade. Alguns funcionários estranharam meu comportamento. Vieram me perguntar qual era minha nacionalidade, certamente para assegurar-se de que eu nada tinha a ver com um atentado anunciado pelos iranianos. Uma mulher, num elegante vestido de noite, perguntou, olhando-me de soslaio:
— Mas o que um tipo como esse está fazendo aqui? E um velhote com jeito de funcionário público respondeu:
— Isto aqui está bem internacional. Até o Cáucaso veio festejar!
Eu me entendi muito bem com os figurões. Apresentei- me ao membro dirigente da UDC Kurt Biedenkopf como emissário de Türkes, um dos políticos dirigentes dos fascistas turcos. Conversamos animadamente sobre a vitória da coalizão de direita nas eleições. Norbert Blüm, ministro do Trabalho, é favorável ao entendimento entre os po
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vos; espontaneamente, tomou-me pelo braço e, junto com os outros, cantou a plenos pulmões: “Que dia maravilhoso o de hoje” .
Enquanto Helmut Kohl fazia seu discurso de vitória, aproximei-me bastante do palanque. Depois de prestar várias homenagens aos outros e a si mesmo, ele fez menção de descer. Estive prestes a oferecer meus ombros para carregá-lo pelo salão numa volta triunfal. Mas preferi desistir de tal propósito para não sucumbir sob o peso considerável do chanceler.
Os inúmeros agentes de segurança, todos treinados para desmascarar impostores, não perceberam meu disfarce. Após passar nesse teste, meu medo de futuras dificuldades diminuiu. Eu me senti mais seguro e confiante: já não temia ser reconhecido pelas várias pessoas que iria encontrar.
Os primeiros passos
Em resposta ao anúncio que publiquei, recebi, de fato, algumas ofertas de “emprego” : quase todas para serviços pesados e com salários que variavam de 5 a 9 marcos por hora1. Nenhuma delas era para um emprego fi- * xo. Experimentei algumas para ao mesmo tempo ensaiar meu papel.
Uma dessas ofertas, por exemplo, era para reformar uma estrebaria nos arredores residenciais de Colônia. Por 7 marcos a hora e sob o nome de Ali, consegui um trabalho “de alto nível” : balançava-me nos andaimes para pintar o teto. Meus colegas eram poloneses, todos em situação irregular. Não sei se era impossível comunicar-me com eles ou se simplesmente não desejavam falar comigo. Ignoravam-me, deixavam-me de lado. Até a patroa, que possuía também uma loja de antiguidades, evitava qualquer contato comigo; limitava-se a dar ordens curtas: “Faça isso, faça aquilo, rápido” . Naturalmente eu tomava minhas refeições sozinho, afastado dos outros. Tive contatos mais próximos com uma cabra que costumava andar pela estrebaria do que com os outros empregados. A cabra vinha roer minha sacola de plástico para devorar as fatias de pão com manteiga.
Um dia o sistema de alarme da loja de antiguidades enguiçou. Naturalmente puseram a culpa no turco. Depois de muitos interrogatórios, resolveram chamar a polícia, que também passou a suspeitar de mim. No começo, ignoravam-me; agora me hostilizavam abertamente. Depois de algumas semanas, larguei esse emprego.
Minha próxima parada foi num sítio na Baixa Saxô-
10 salário-referênda por hora na Alemanha Ocidental é de aproximadamente11 marcos (N. do T.).
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Ali em seu alojamento no sítio. O balde serve como vaso sanitário
nia, perto da usina nuclear de Grohnde. A proprietária e sua filha, refugiadas do Leste, cuidavam de tudo sozinhas e decidiram recorrer à mão-de-obra masculina. Tendo certa vez empregado um turco, sabiam exatamente como falar com um deles: “ Qualquer coisa que você já tenha feito não nos interessa. Mesmo que tenha matado alguém, não queremos saber. O importante é que faça seu serviço. Em troca, pode morar e comer aqui, e ainda vai receber um dinheirinho para as despesas pequenas” .
Do “ dinheirinho” não vi nem a cor. Em compensação, trabalhei dez horas por dia, arrancando urtigas e tirando a lama dos canais de irrigação. Quanto ao alojamento, ela até me permitiu escolher entre um calhambeque enferrujado que estava parado diante da casa e um malcheiroso estábulo em ruínas que deveria repartir com um gato. Aceitei uma terceira opção: um espaço numa construção abandonada com o chão ainda coberto de en
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Ali e seu realejo
tulhos e a porta sem chave. E dentro da casa havia vários cômodos quentes, limpos e desocupados...
Eu era obrigado a me esconder dos vizinhos para que ninguém pudesse xingar a propriedade de “ o sítio do turco” . Também estava proibido de aparecer na cidade; não podia mostrar a cara nas lojas ou no bar. Tratavam-me como um animal de carga. Mas para a sitiante isso certamente era um ato cristão de amor ao próximo. Percebendo estar diante de alguém que pertence à “ minoria muçulmana” , ela foi mais longe ainda: prometeu-me alguns pintinhos. Eu deveria criá-los, já que não podia comer carne de porco. Diante de tamanha caridade, resolvi fugir.
Durante quase um ano tentei me manter com os mais diversos serviços. Fosse eu realmente Ali, com certeza não teria sobrevivido. Por isso mesmo é que eu estava literalmente preparado para aceitar qualquer função. Para o dono de um restaurante e de uma cadeia de cinemas de Wup-
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pertal, troquei os estofados das poltronas e ajudei na reforma do bar. Numa indústria alimentícia, meu trabalho era remexer com uma pá a farinha de peixe. E em Strau- bing, na Baviera, tentei a sorte como tocador de realejo: durante horas ficava parado, tocando inutilmente.
Nada mais me espantava. O ódio habitual aos imigrantes já não era novidade. Surpreso eu ficava quando não me hostilizavam. As crianças, principalmente, eram mais gentis. Paravam diante desse estranho tocador de realejo e de sua tabuleta — Turco sem trabalho HÁ onze anos n a Alem a n h a , quer continuar a q u i. Obrigado: — até que os pais vinham arrancá-las dali. E houve também o casal de saltimbancos que se instalou bem a minha frente, na praça do mercado de Staubing, e também tocava realejo; pois esse casal me convidou — a mim, seu concorrente — para visitar sua carroça. Foi uma bela noite.
Em geral, porém, as coisas aconteciam de modo bem menos agradável. Por exemplo, num dia de carnaval em Regensburg. Nenhum bar alemão precisa ter na porta um cartaz dizendo: Im igrantes não são bem-vindos. Quando eu, Ali, entrava num deles, era totalmente ignorado. Ninguém vinha me atender. Assim, qual não foi minha surpresa quando, num bar de Regensburg, repleto de bons cristãos fantasiados de bufão, um deles me cumprimentou com um sonoro “olá” e disse:
— Agora é a sua vez de nos pagar uma rodada.— Não — respondi. — Vocês paga. Eu não tem em
prego. Eu já trabalhou para vocês, eu já pagou imposto para vocês.
O homem ficou rubro, inchou como um sapo (mais tarde descobri que Franz-Josef Strauss também costuma fazer isso) e, furioso, atirou-se sobre mim. Querendo proteger seu mobiliário, o dono do bar me protegeu. Alguns fregueses levaram para fora o bávaro que havia perdido o controle. Durante o incidente, um cidadão (que mais tarde se apresentou como figurão político da localidade) ficou sentado, quieto, aparentemente pensativo. Tão logo a situação se acalmou, puxou uma faca e, cravando-a
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no balcão, disse-me: “Dê o fora! Rápido, seu turco de merda!”
Raras vezes vi tanto ódio. No entanto, em certo sentido, os olhares de desprezo eram ainda piores. Ofendem tanto como quando se está sentado num ônibus lotado e o assento ao lado continua vazio.
Já que a tal integração de estrangeiros, evocada por muitos, não se concretiza nos transportes públicos, fui testá-la, junto com um amigo turco, num bar alemão. Tentamos conseguir uma mesa cativa (Türk Masasi, em turco) em qualquer bar onde pudéssemos nos encontrar sempre à mesma hora. Chegamos a confeccionar uma flâmu- la com a inscrição bilingüe, em turco e alemão: “Serefe! Prost!** (“Saúde!”). Nem mesmo nossas promessas de consumir muito adiantaram. Perguntamos a uma dúzia de donos de bar, e nenhum tinha uma mesa livre.
Meu colega Orthan Oztürk, de 27 anos, tem sofrido experiências semelhantes há quinze ános, desde que chegou à Alemanha Ocidental. Fala alemão quase sem sotaque. Tem boa aparência e até tingiu o cabelo de loiro para disfarçar suas origens. Mas até agora não conseguiu namorar uma jovem alemã. Basta dizer seu nome e tudo termina.
Geralmente os imigrantes não são insultados. Ao menos não de modo que possam ouvir. Por trás, as pessoas se queixam do suposto mau cheiro de alho. No entanto, os gastrônomos alemães comem, hoje em dia, muito mais alho que a maior parte dos turcos, que se permitem no máximo um dente desse saudável condimento no fim de semana. Eles se renegam para ser aceitos. Mas as barreiras continuam.
É claro que algumas vezes os imigrantes são atendidos de forma gentil nos bares alemães. Desde que sejam servidos por outros imigrantes. Passei por essa experiência no Gürzenich, em Colônia, durante as festividades do carnaval. Minha primeira surpresa foi permitirem que eu, um “turco” , entrasse. E lá dentro, atendido por garçons
' iugoslavos extremamente amáveis, quase me senti bem. Até que começou a tradicional cantoria com todo mundo se balançando de braço dado. E lá fiquei eu, no meio daqueles
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Ali no Estádio Olímpico da Berlim
alucinados, como um rochedo no mar ondulante. Ninguém quis me dar o braço.
De vez em quando o ódio aos imigrantes revela-se abertamente. Quase sempre nas partidas internacionais de futebol. Fazia algumas semanas que se temia o pior durante o jogo Alemanha Ocidental x Turquia, realizado no Estádio Olímpico de Berlim, nesse verão de 1983. Num tom claramente suplicante, Richard von Weizsácker1 dirigiu-se a todos pela televisão: “Vamos fazer deste jogo um exemplo da convivência pacífica entre alemães e turcos em nossa cidade. Vamos transformá-lo numa prova de compreensão entre os povos” . Para tanto foi mobilizada uma força policial jamais vista.
Ainda como Ali, comprei um ingresso na arquibancada da torcida alemã. Queria aparecer como turco, tan-
1 Em julho de 1984, Richard von Weizsácker tornou-se presidente da República Federal da Alemanha (N. do T.).
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to que levei um barrete com o emblema turco e uma pequena bandeira. Mas logo tive de dar sumiço nessas coisas. Fui parar bem no meio de um grupo de alemães neonazistas. Neonazistas? É possível que, individualmente, sejam bons sujeitos, pelo menos a maior parte deles tem um rosto simpático, franco. Mas, juntos, na multidão, eram máscaras de histeria. Nesse dia, trêmulo, pela primeira e única vez, reneguei minha condição de turco; desisti de meu idioma estropiado e conversei com os fanáticos torcedores num alemão perfeito. Mesmo assim, continuaram a me tomar por imigrante. Atiravam-me pontas de cigarro no cabelo e derrubavam cerveja em minha cabeça. Nunca, em toda a minha vida, senti tamanho alívio ao ver policiais passando perto de mim. Jamais sonhei que iria vê-los um dia como verdadeiro poder de ordem. Os torcedores gritavam: “Vitória!” , “Morte aos vermelhos!” . E um coro sem fim vociferava: “Turcos, vão embora do nosso país! A Alemanha para os alemães!” Felizmente não correu sangue: houve apenas um pouco mais de feridos do que nas partidas “normais” . Não quero nem imaginar o que teria acontecido se o time alemão perdesse. Não sou fanático por futebol. Porém ali, no Estádio Olímpico, eu berrava, incentivando o time da Alemanha. De puro medo. ^
Matéria-prima: o espírito
Eu, Ali, vou a Passau, assistir ao espetáculo da quarta- feira de cinzas que Franz-Josef Strauss, dirigente da União Sodal-Crístã, organizou para sete mil pessoas. Não sei se um cigano que tomasse parte de um congresso nazista na Bürgerbrãukeller, a tradicional cervejaria de Munique., não teria sentido o mesmo que sinto agora. Pelo menos tenho uma pista. Ali é o leproso, de quem todos se afastam.
Nove horas da manhã em Passau. Nem foi preciso procurar o Salão dos Nibelungos. Por todas as ruas, o aflu- xo dos partidários de Strauss — muitos deles nitidamente não-bávaros — levava diretamente ao grande salão. Às onze horas, Strauss deverá inaugurar sua “quarta-feira política” ; duas horas antes, porém, praticamente todos os bancos ao longo das mesas compridas estão ocupados. O gigantesco salão está tomado pela fumaça de cigarros. Todos já devem ter bebido dois ou três litros de cerveja. Peixe e queijo são servidos em abundância. É o primeiro dia da quaresma.
Encaminho-me para um dos poucos lugares ainda desocupados. Antes, porém, que eu consiga me espremer na ponta do banco, meu vizinho de mesa se estica inteiro, ocupando todo o espaço, e assim me cumprimenta:
— Mas o que é isso? Onde estamos, afinal? Nem aqui a gente fica livre desses carroceiros? Vocês não conhecem seu lugar?
Olham-me com espanto de todos os lados. O cidadão politicamente engajado que está a minha esquerda baba cerveja, tão cheio já está. Tento deixá-los de bom humor.
— Eu é grande amigo Strauss. Homem forte!Em resposta, uma chuva de gargalhadas.— Como é que é? Vocês ouviram isso? Ele diz que
é amigo de Strauss! Essa é muito boa.
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Ali e os bebedores de cerveja
Só me deixam em paz quando passa por ali uma mulher robusta, servindo as bebidas. Seu traje típico, bem decotado, e principalmente o líquido que ela carrega são bem mais interessantes que eu.
Até que um gole de cerveja cairia bem agora. Mas... nada. A garçonete simplesmente me ignora. Resolvo então ir ao balcão das bebidas: ninguém me escuta. Depois de uma terceira tentativa, o rapaz do balcão me diz com um chiado áspero:
— Dê o fora daqui. Rapidinho!Nesse instante, Strauss entra no salão sob grande ova
ção e o rufar dos metais da marchinha bávara. Os organizadores do comício esforçam-se para abrir caminho entre a multidão ensandecida e chegar até o palanque, onde já se encontra a mulher de Strauss, Marianne. Os não-bávaros são os que mais gritam e agitam seus cartazes (NÓS, DE P e in e , A q u i P el a Sétim a Vez).
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As primeiras frases do dirigente da USC são abafadas pelo barulho. O discurso dura três horas. É difícil acompanhar o que ele diz, no meio da multidão pingando suor. E também só é possível acompanhar sua lógica depois de três litros de cerveja: “Somos um partido de pessoas inteligentes. Temos eleitores inteligentes e, por isso, somos a maioria no país. Se nossos eleitores não fossem tão inteligentes, não seriamos a maioria!” Aplausos e pa- teadas estrondosos. A sala ferve.
As pessoas apinham-se nos banheiros, que não conseguem dar conta de seu aperto. Nos corredores, poças de urina. Até mesmo no salão, uns e outros se aliviam pela perna da calça.
No palanque, Strauss fala muito sobre o espírito: “ Precisamos fazer melhor uso da nossa matéria-prima, o espírito. Esse espírito que Deus nos legou, não obstante todas as tolices ditas por alguns funcionários públicos” .
Antes disso, porém, as cervejas é que precisam ser mais bem distribuídas. Sanitaristas e assistentes da Cruz Vermelha têm de se arrastar com dificuldades. Em todas as mesas há folhetos informativos: “Nós e nosso partido” . As apresentações são feitas pelos próprios simpatizantes da USC. Como, por exemplo, a de um comerciante muito gordo: “Nunca tive complexo por ser de direita. Não conheço outro partido que me caia tão bem como a USC. É o partido que me convém, assim como Strauss. Gosto muito dele. Somos bem parecidos. Não há nada, com exceção do futebol, talvez, que me irrite mais que os impostos” .
Ou talvez um turco sedento, nesse Salão dos Nibe- lungos branco e azul. Quase de contrabando, consigo uma cerveja. Assim que o rapaz do balcão olha para o lado, apanho uma caneca e deixo ali *5 marcos. Strauss está fazendo suas ameaças: “Precisamos voltar a pensar nos cidadãos normais, nas mulheres e nos homens normais, e não em alguns marginais” . Pouco depois, ao falar da “massa de anônimos” e da “identidade nacional” que ele quer “preservar” , e ao vangloriar-se da “ liberdade e da
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dignidade de todos na Alemanha” , é que percebo claramente que não se refere a mim, Ali.
Tento voltar para o banco e ainda encontro dois lugares livres. Sento-me e o lugar ao meu lado fica desocupado, embora todos continuem se apertando. “Esse fede a alho” , diz um sujeito. “Você é turco?” pergunta outro.
Finalmente o “bávaro feliz” (Strauss falando de Strauss) termina seu discurso de quaresma. Durante cinco ou seis horas seus admiradores agüentaram-no. Um cordão de segurança protege-o dos fãs. Os pedidos de autógrafos não podem ser atendidos. Pelo menos não ali. Quem desejar autógrafo deverá fazer sua solicitação por escrito num papel adequado e colocá-la numa das umas que circulam pelo salão.
Apesar de tantas precauções, consigo me aproximar com facilidade do dirigente bávaro. Muito simples. Apresento-me como observador do congresso e emissário de Türkes, o líder fascista dos Lobos Cinzentos. Esse tal Türkes, fã entusiasta de Hitler, já havia se encontrado secretamente com Strauss alguns anos antes em Munique. No encontro, segundo Türkes, 'o presidente da USC garantiu-lhe que, com a propaganda adequada, no futuro se criaria na Alemanha um clima político favorável à MHP, organização turca neofascista, e aos Lobos Cinzentos. Eis o grito de guerra de Türkes: “Morte a todos os porcos judeus, a todos os comunistas filhos da puta e a todos os cães gregos!”
Como representante de tal pessoa, tenho acesso livre a Strauss, que me cumprimenta com cordialidade e põe o braço em meus ombros, exatamente como um padrinho poderoso trata um parente pofcre da província. Escreve uma dedicatória pessoal na página de rosto do livro editado em sua homenagem, Franz-Josef Strauss — Um grande livro de fotografias: “Para Ali, com cordiais saudações, F.-J. Strauss” .
Os fotógrafos presentes não deixam escapar a ocasião para mais um instantâneo.
De acordo com o prefácio desse livro luxuoso, Strauss
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Dedicatória de Franz-Josef Strauss a Ali
“entrou para a política obedecendo ao apelo instintivo do dever” (da Providência, talvez?). Em todo caso, foi um privilégio para mim chegar bem perto de um dos políticos do pós-guerra mais obcecados pelo poder, um dos maiores inimigos da democracia, um homem que me levou várias vezes às barras dos tribunais. A primeira vez em que me encontrei pessoalmente com ele foi há mais de dez anos, durante um debate organizado pela Academia Católica de Munique (tema dò debate: “ Jornalista ou agitador?”). Sentei-me entre ele e Wischnewski, político do Partido Social-Democrata. Strauss estava num de seus bons dias e quis brilhar diante do público mais liberal da academia. E, evidentemente, quis se mostrar simpático para comigo.
— Até que enfim tenho a oportunidade de lhe perguntar uma coisa. O senhor é parente do padre Josef Wall- raff, o jesuíta?
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Não permiti que por trás de tanta “familiaridade” ele pudesse ocultar dos presentes sua hostilidade para com pessoas como eu.
— Sou seu filho ilegítimo — respondi. — Mas, por favor, não diga nada a ninguém.
Durante todo o resto da discussão, Strauss manteve- se fiel a si mesmo.
“O prazer de comer”(ou: A última ração)
Muitos de nossos críticos são verdadeiros mestres na técnica do avestruz. Nem sequer se dão ao trabalho de investigar corretamente o que há por trás dos bastidores do McDonald ‘s. Quem não enxerga direito não pode se aproximar da verdade.Texto publicado em página inteira no jornal Die Zeit, de 10 de maio de 198S.
Recentemente o McDonald’s deu início a uma grande ofensiva contra seus detratores nas associações de consumidores e sindicatos: “Esses ataques não nos impedirão de continuar a nos expandir e a oferecer a um número ainda grande de desempregados uma colocação sólida e com todas as possibilidades de ascensão” .
Uma oportunidade para os imigrantes e os refugiados políticos? Nada como ir até lá, digo a mim mesmo. Na Alemanha, já existem 207 McDonald's. Em pouco tempo, esse número deverá dobrar. Vou tentar a sorte em •Hamburgo, numa das maiores filiais do McDonald’s na Alemanha. Consigo o emprego. Agora não me faltará mais o prazer, já que nosso lema é “ o prazer de comer” . Pelo menos é o que está escrito no prospecto de boas-vindas. Mas o que isso realmente significa?
“O McDonald’s é um restaurante familiar, onde se pode comer bem e barato, num ambiente extremamente limpo, e onde todos se sentem bem e se divertem — este é o sucesso do McDonald’s. Estamos felizes por tê-lo em nossa equipe e desejamos a você muito sucesso e prazer!”
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Numa equipe tão feliz, prefiro dizer que tenho 26 anos. Se revelasse minha idade real (43), não teria muita razão para rir.
Igual aos hambúrgueres, também sou embrulhado com as embalagens da casa: boné, camiseta e calça. Nos três, o logotipo McDonakTs. Só falta me colocarem na grelha. A calça não tem bolsos. Se recebo alguma gorjeta, corro a mão inutilmente pela costura lateral até que, por fim, coloco o dinheiro exatamente onde a empresa quer tê-lo: dentro da caixa registradora. O golpe de mestre da calça sem bolsos também impede que tenhamos um lenço. Portanto, se “o nariz escorrer” , vai escorrer por cima dos hambúrgueres ou provocar chiados sobre a grelha a cada pingo.
O gerente logo se mostra satisfeito comigo, elogiando meu trabalho e minha destreza em virar os hambúrgueres na chapa.
— Você faz isso muito bem! E rápido! A maioria comete erros enormes quando está começando.
— Acho que porque eu faz esporte — digo-lhe.— Qual?— Pingue-pongue.O hambúrguer é uma rodela de carne marrom e sua
da, com 98 milímetros de diâmetro, no mínimo, e de 125 a 145 gramas de peso. Atirado na chapa, pula como uma ficha de plástico. Congelado, estala como uma moeda ao bater num vidro. Depois de frito, tem, no máximo, dez minutos “ de vida” ; porém na maioria da vezes fica muito mais tempo nos balcões. Se o deixam degelar, começa a cheirar mal. Por isso é que, ainda congelado, jogam-no imediatamente na chapa. Depois, é recoberto com os conhecidos condimentos e ingredientes, colocado entre duas fatias de pão esponjoso e embalado em isopor. “Há muito de gracioso na silhueta delicadamente abobadada de um pãozinho de hambúrguer! Perceber tal coisa requer um estado de espírito muito especial!” , afirma, com seriedade, Ray Kroc, o fundador da empresa.
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O Big Mac“O amor é como um Big Mac: dois corpos que se mistu
ram num movimento harmonioso, tornando-se uma só carne. O delicado pãozinho enlaça o corpo num abraço pleno de ternura. Os beijos são como uma pitada úmida de molho especial. Os corações amantes se consomem como as cebolas. A esperança, jovem ainda, verdeja como a salada. E o queijo e o pepino dão o sabor de querer mais.”
(Extraído do jornal do McDonakTs do Rio de Janeiro, de abril de 1983.)
O local de trabalho, atrás do balcão, é estreito; o chão, engordurado e escorregadio; e a chapa mantém permanentemente uma temperatura de 180°. Não há medida de segurança. Na realidade, deveríamos usar luvas — pelo menos é o que prevêem as normas de segurança. Mas não temos luva nenhuma: diminuiria o ritmo de nossa atividade. Muitas pessoas que trabalharam ou trabalham aqui têm ferimentos e cicatrizes de queimaduras. Pouco antes de eu começar neste emprego, um dos colegas foi levado para o hospital porque, na pressa, tinha colocado a mão direto na grelha. Logo na primeira noite, ganhei algumas bolhas de queimadura, graças às gotas de óleo fervente que espirram da chapa.
Ingenuamente imagino que meu expediente termine às duas e meia da madrugada, conforme o combinado. Só então percebo que começam a falar de mim, de Ali, o novato. O gerente trata-me com rispidez e pergunta por que estou saindo antes de terminar o serviço. Explico-lhe que estou só fazendo o que me disseram. Mas eu deveria tê-lo avisado pessoalmente de que ia embora. Ameaçando-me, pergunta se limpei a calçada. Respondo que sim, pois acabava de voltar de lá — só de camiseta, em plena madrugada de dezembro. Mas um empregado particularmente atencioso avisa que ainda há papéis espalhados lá fora.
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E já são quase três horas da manhã! O gerente acha qüè não estoú me adaptando muito bem e que me falta um pouco de garra. Meu rosto não demonstra felicidade. E, se cheguei a pensar que não seda vigiado, estou redondamente enganado. Por exemplo, hoje fiquei cinco minu-
. tos plantado no mesmo lugar. Digo que não é possível, pois passei ò tempo todo correndo de um lado para o outro. “Trabalho para mim é esporte” , acrescento.
Lendo uma circular distribuída pela empresa, descubro que as horas noturnas e as extras só são computadas como horas inteiras. Isto significa que qualquer trabalho extraordinário inferior a trinta minutos não é, considerado; já os quê ultrapassarem trinta minutos serão arredon-' dados para uma hora. Na prática, porém, há muito mais desconto que arredondamento. Só podemos marcar o ponto depois de vestirmos os uniformes. E na saída é o inverso: primeiro marcamos o ponto e depois trocamos de roupa. Desse modo, somos duas vezes roubados.
Estamos na época de Natal. Há um número enorme de pessoas e, nas horas de pico, atingem-se os recordes de movimento. Meu salário bruto é de 7,55 marcos por hora, numa atividade comparável a qualquer outro trabalho de produção em série. Além disso, descontam 1 marco por hora, a título de alimentação. Depois de oito horas de trabalho, o gerente comunica-me que agora posso escolher com calma uma das especialidades do McDonald’s. Quando peço os talheres, ele começa a rir. Talheres no McDonald^? É algo que não tem o menor sentido. A minha volta só gargalhadas.
Meu local de trabalho é aberto. Assim como vejo os fregueses, eles também me vêem. Não tenho sequer a chance de me afastar por alguns minutos e beber alguma coisa para enfrentar o calor que faz ali. Toda essa fritura e os molhos— principalmente o de mostarda — provocam mui-, ta sede.
Uma fatia de pepino para um hambúrguer, duas para o Big Mac; uma fatia de queijo e as esguichadelas dos vários molhos: de peixe, de galinha, especial para o Big Mac.
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A toda hora estão nos pressionando, porque os pedidos não param: uma torta de maçã aqui, um filé de peixe ali. £ , assim, com os dedos sujos de peixe, passamos para o próximo hambúrguer.
É no horário de descanso que aproveito para experimentar a comida. Como o frango — os tais nuggets — e sinto o sabor de peixe. Isto deixa um gosto ruim na boca. Como a torta de maçã, a mesma coisa: não é que até aqui entra em cena o peixe?
Só depois de algum tempo consigo entender por que isso acontece. As gigantescas cubas para fritura estão sempre cheias de óleo em ebulição. Todas as noites esse óleo é filtrado para ser reaproveitado. Assim, tanto o óleo das tortas de maçã, quanto o do peixe, quanto o do frango passam pelo mesmo filtro de papel, que é utilizado nas dez diferentes cubas.
Nas horas de pico, o trabalho é febril; formam-se filas diante do balcão. Por todos os lados ouço gritos para andarmos mais depressa. Com tanta agitação, penso que seria mais produtivo retirar os hambúrgueres um pouco antes do tempo. Mas o gerente — o único que não usa boné— repreende-me:
— Você não tem que pensar em absolutamente nada. As máquinas se encarregam disso. Portanto, só retire o hambúrguer quando a máquina apitar. Não queira se antecipar!
Faço como ele diz. Não se passam nem cinco minutos e ele volta.
— Por que está demorando tanto?— Senhor disse máquina pensa e eu espera.— Você espera, mas os fregueses não! Acha que de
vem esperar?— Mas quem é decide? Senhor ou máquina? Como
eu vai saber? Eu faz como...— Espere até a máquina apitar, entendeu?— Sim.A palavra de ordem por aqui é serviço rápido. O “ob
jetivo final” é que “ninguém fique esperando” . Para tanto,
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todos os tipos de truques são recomendados ao gerente. O lema é o seguinte: “Um minuto de espera no balcão é tempo demais. É o máximo para quem está na fila. Estabeleça como meta trinta segundos. Acelerar os serviços é só uma questão de afinação. Concentre-se na rapidez durante os próximos trinta dias. Risque do vocabulário a palavra ‘devagar’. Da maneira como você atua dependem 2°7o de suas vendas. E viva a rapidez!”
Aqui fastfood quer realmente dizer questão de minuto, embora alguns colegas que nãò entendem muito bem a língua inglesa achem que fa stfood significa “ quase- comida” 1.
Nossa filial é conhecida por suas vendas recordes. Eu mesmo vi o diretor regional do McDonakTs entregar a nosso gerente um troféu com a seguinte inscrição: “Pelo excelente desempenho no tocante aos lucros” .
O McDonakTs também tem em mira as crianças. Numa circular interna, o departamento de marketing da central de Munique afirma: "Fastfood não é apenas um mercado jovem. Na Alemanha, é antes de mais nada um mercado da juventude... E pensar que dizem que os jovens não t§m dinheiro!”
As instalações obedecem a essa diretriz: trincos, mesas, cadeiras — quase tudo da altura de uma criança. As filiais recebem instruções especiais: “As crianças multiplicam suas vendas!” Há diversas programações para atrair os pequenos e, com eles, toda a família. A mais requisitada é “A festa de aniversário no McDonakTs” . Um prazer programado do início ao fim.
> Em alemão fast significa “quase” (N. do T.).
“As sete etapas de uma festa de aniversário:1.a etapa: preparativos..............................aprox. 15 min2.a etapa: receber os convidados...............aprox. 10 min3.a etapa: anotar os pedidos.....................aprox. 5 min4.a etapa: retirar os pedidos.....................aprox. 10 min5.a etapa: o prazer de comer.....................aprox. 15 min6.a etapa: jogos ou passeio pelalanchonete................................................ aprox. 10 min7.a etapa: despedida........................................................
Anotar, em seguida, no quadro de avaliações.’* (Documento interno do McDonakTs)
Depois de passar pela fritura, pela chapa e pelo atendimento no balção, sou iniciado, no terceiro dia, na técnica dos “serviços no salão” : recolher as embalagens e limpar os restos de comida deixados sobre as mesas. Para essa tarefa, entregam-me dois panos: um para as mesas e o outro para os cinzeiros. Na pressa costumeira, freqüentemente os confundo. Mas ninguém se importa. Muitas vezes limpamos os banheiros com os mesmos panos. É a forma de encerrarmos o ciclo da alimentação. O que me dá nojo. Porém, se peço outro pano, respondem-me com arrogância que os que tenho já são mais que suficientes.
Um dia, o gerente mandou um colega diretamente da cozinha para um banheiro entupido. Com o raspador da chapa na mão, ele se apressou em executar meticulosamente sua tarefa, o que lhe valeu uma bronca descomunal por parte do subgerente.
A limpeza externa também é motivo de atenção rigorosa. Cinqüenta metros à direita e cinqüenta metros à esquerda da porta de entrada, tudo deve estar minuciosamente limpo. Um trabalho insano, pois os fregueses vivem jogando as embalagens na calçada.
Na sala de descanso, a gente se diverte com as baratas, que ninguém consegue eliminar. No começo, elas só andavam pelo sótão, mas agora já aparecem também na
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cozinha. Há pouco tempo, uma delas caiu direto sobre a grelha. De outra vez, um freguês encontrou um belo exemplar em seu Big Mac.
Alguns fregueses, principalmente os jovens um tanto tocados pela bebida, costumam jogar no chão o resto das batatas fritas, que ficam espalhadas e são pisoteadas. E lá vou eu limpar o chão engordurado.
Uma colega turca tem dificuldades ainda maiores. Por ser mulher, é cantada; por ser imigrante, é menosprezada. Vivem atirando cinzeiros no chão quando ela passa. Isso também já aconteceu comigo. Uma vez jogaram um cinzeiro bem a minha frente. Eu me abaixei para recolher os cacos e logo ouvi o barulho de outro cinzeiro sendo quebrado. E depois outro, e mais outro. Não consegui descobrir o autor. A meu redor, só gargalhadas. Acho que deve ser esse tal “prazer” .
Mesmo no horário de descanso, deve-se permanecer no serviço. Não é permitido sair para tomar um café ou uma cerveja. Já tiveram experiências desagradáveis, como a do funcionário que durante o horário de descanso foi para um bordel.
Uma colega conta que freqüentemente a proíbem de descansar durante as oito horas de jornada diária. Quando ela reclama, recebe como resposta: “Rápido! Rápido!”
A mesma coisa acontece se alguém precisa ir ao médico. O gerente diz: “Sou eu que decido o horário de ir ao médico” .
Uma vez perguntei se podia descansar. A resposta já era minha velha conhecida: “Sou eu que decido o horário de descanso!”
Não há comissão de empregados.Através de uma circular escrita há seis anos, o chefe
do departamento do pessoal dá o seguinte conselho a todos os McDonald’s da Alemanha Ocidental: “ Se durante uma entrevista com um candidato ficar comprovado que ele é ‘politizado’, faça-lhe outras perguntas e pare por aí. Prometa-lhe uma resposta para alguns dias depois. E naturalmente não o contrate em hipótese alguma” .
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Há algumas razões para que tudo tenha o mesmo gosto. É a seguinte a opinião da União dos Consumidores de Hamburgo sobre os produtos McDonald*s: “O sabor provém de numerosos aromas artificiais que são acrescentados. Para conservar as bebidas o maior tempo possível, adicionam-se conservantes” . Um milk-shake contém 22% de açúcar, o equivalente a cerca de dezesseis porções ou 40 a 45 gramas. Tudo com um “toquezinho” para torná-lo tragável. Edmund Brandt, especialista da indústria da carne nos Estados Unidos, diz que, para os hambúrgueres, não se podem utilizar carnes magras, como pescoço ou paleta, pois se despedaçariam. É preciso então submeter a carne a um tratamento especial, à base de “sal e proteínas líquidas” . “A carne muito fresca” , continua Brandt, “é aquosa demais para a produção de hambúrgueres.” A muito velha perde a cor: “Neste caso, jogam-se cubos de gelo na máquina de moer para que a carne se tome avermelhada” . E, apesar de seu aspecto perfeitamente magro, a carne de hambúrguer, uma vez preparada, contém ainda 25% de gordura. Na dispendiosa publicidade do McDonakTs os consumidores não encontrarão uma só palavra sobre esses truques. O pseudo-repasto industrial do McDonald’s destaca-se principalmente por causa de sua astuciosa embalagem — uma espécie de Bild Zeitung comestível. Mas, assim como os leitores do Bild muitas vezes sabem, sem maiores informações, que devem estar sendo enganados, assim também alguns fregueses do McDonakTs lá não voltam após uma primeira tentativa. Um dia, limpando o local, encontrei num guardanapo a seguinte mensagem: “McDonakTs — vomitar é grátis!” E em outra ocasião: “Pela primeira vez é pior o que entra pela boca do que o que sai!” Fast food é um alimento insuficiente que pode causar sérios danos à saúde: em crianças que abusam de lanches rápidos, nutricionistas americanos diagnosticaram sinais de elevada agressividade, insônia, pesadelos. A causa: a gostosa fast food reduz as reservas de tiamina e acarreta carência de vitamina B-l, que prejudica o sistema nervoso.
Bom proveito!
Ray Kroc, o criador da rede McDonald’s, sabe exatamente o que quer: “Quero dinheiro, do mesmo modo como se quer luz ao acionar um interruptor” . E Abrams, general americano, considera o McDonald’s uma escola- modelo: “É muito saudável para um jovem trabalhar no McDonald’s. O McDonald’s faz dele um homem eficiente. Se o hambúrguer não está bom, o sujeito é posto na rua. Este sistema é uma máquina que funciona silenciosamente, e nosso Exército deveria inspirar-se nele” .
O canteiro de obras
Logo que cheguei ao bairro de Pempelfort, em Düs- seldorf, às seis da manhã, meia dúzia de pessoas esperavam diante da porta da GBI, uma empreiteira localizada na Franklinstrasse. Como eu, também se dirigiram para lá depois de ler um anúncio publicado no jornal. Um funcionário abre a porta. O escritório fica logo ali, no térreo: duas escrivaninhas — uma ao lado da outra — e um telefone. Nem arquivos nem armários. E mesmo as escrivaninhas parecem nunca ter sido ocupadas. No quadro de aviso, uma mensagem: “Esta firma registra seus empregados de acordo com a legislação vigente! ** Mas ninguém me pede documentos e nem chego a dizer meu nome.
Antes de nos enviarem, em pequenos grupos, a nossos locais de trabalho, ficamos aguardando num dos dois cômodos ao lado, que serve como sala de espera. Papéis de parede descolados, janelas engorduradas, nenhum banheiro: eis o novo status que conquistamos.
Siggi, um sujeito grosseirão, de cabelo encaracolado, as mãos e o pescoço cobertos de ouro, precisa de quatro ajudantes “para uma bela construção em Colônia” . Apresento-me como candidato, e ele me inclui na equipe de operários. Só nos fala a respeito do salário e das condições de trabalho dentro do veículo, a caminho do local de serviço.
— O mestre-de-obras quer que vocês trabalhem dez horas por dia — explica-nos. — Vocês vão receber 9 marcos por hora; portanto, 90 marcos por dia.
Meia hora depois, ao desembarcarmos no canteiro de obras em Hohenstaufenring, em Colônia, leio numa tabuleta: A qui E stão Sendo Construídas as Casas Mais bon ita s e as Mansões Mais Elegantes, Todas Com Vista Para um Tranqüilo P a rq u e . O encarre
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gado, que já trabalha há algum tempo para a GBI, leva- nos até os vestiários. Mal acabamos de mudar de roupa, Siggi reaparece.
— Preciso de seus nomes, para o mestre-de-obras —diz.
— Ali — respondo. É o bastante.Nossa equipe está subordinada a um mestre-de-obras
da firma Walter Thosti Boswau (WTB), a sexta maior empresa de construção civil da Alemanha Ocidental, como descubro mais tarde. As ordens de trabalho nos são dadas exclusivamente por ele. Todo o material utilizado — da vassoura às chapas metálicas — também é fornecido pela WTB. A GBI “simplesmente” se encarrega de conseguir os operários; nem sequer tem ferramentas e não está encarregada de qualquer construção.
Nenhum de nós entregou os documentos para a GBI; todos, sem exceção, trabalhamos “clandestinamente” . Não há seguro de saúde. Pergunto a um colega:
— Que acontece quando a gente tem acidente?— Eles dizem que você estava aqui só há três dias e
fazem sua inscrição na previdência fora da época. Quando muito, só a metade dos trabalhadores... e são centenas... está registrada.
Durante os horários de descanso, vamos nos sentar com mais quinze pessoas num barracão que deve ter uns doze metros quadrados. Um carpinteiro, recrutado pelo escritório da GBI de Colônia, conta-nos: “Faz trinta anos que trabalho em construção e nunca precisei dizer para o mestre-de-obras quando eu ia cagar!”
Alguns afirmam que, com o tempo gasto no percurso de ida e volta, a jornada diária de trabalho passa a ser de quinze horas. “E claro que só pagam por dez horas, nem um centavo a mais.”
Um dos colegas turcos, com mais ou menos cinqüenta anos de idade, é uma das vitimas prediletas do mestre- de-obras da WTB. Mesmo executando seu serviço no mínimo duas vezes mais depressa que os operários alemães, é sempre xingado de “molóide” . “Se não trabalhar mais
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depressa, vou despejar você junto com o entulho!” — grita o mestre-de-obras.
Quase todas as sextas-feiras temos de esperar algumas horas além do expediente, até que tragam de fora o dinheiro de nosso pagamento. Alguns operários parecem saber como o dinheiro chega ali. Enquanto esperamos no barracão, um alemão, trabalhador habitual da GBI, não registrado, conta: “Primeiro, Klose vai até Langenfeld, onde eles têm conta; é de lá que vem a nossa grana” . O colega sabe também por que não sacam o dinheiro de um dos bancos de Colônia ou Düsseldorf: “A conta de Langenfeld está no nome de um testa-de-ferro que deposita os cheques da WTB e de outras firmas de construção. Elas não podem abrir conta em Düsseldorf de jeito nenhum, porque o imposto de renda vai direto lá e bloqueia tudo” .
Portanto, temos de esperar por nosso pagamento durante duas horas, evidentemente não remuneradas.
Mas a nebulosidade não encobre só as contas da empresa; todo um clima de conspiração contribui para esconder também nossa presença no canteiro de obras. É claro que assinamos recibo, porém não temos nenhum comprovante de pagamento. Inclusive as fichas de controle, em que o mestre-de-obras anota as horas trabalhadas, são recolhidas após o pagamento. E isso tem uma razão: na construção civil o trabalho temporário, pago por hora, é proibido por lei. Para driblar a proibição, subempreiteiras como a GBI costumam emitir faturas, cobrando das construtoras “ quarenta metros quadrados de cimento” — o que significa que devem pagar por quarenta horas de trabalho temporário (em muitos casos, os mestres-de-obras dispõem de tabelas codificadas para converter as horas de trabalho dos empregados temporários em metros quadrados de cimento ou metros cúbicos de areia). Para poder comprovar que em nosso canteiro de obras também é hábito esconder as fichas com os horários anotados, distraio o mestre-de-obras num momento propício e apanho suas anotações. Numa delas está escrito: “WTA S.A., trinta horas” , logo abaixo a data e sua assinatura.
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Somente na construção civil estão empregados ilegalmente cerca de 200 mil turcos, paquistaneses, iugoslavos e gregos. Isso representa, por ano, um déficit de 10 bilhões de marcos em impostos e contribuições sociais.
Os mercadores de homens beneficiam-se não raramente de proteção política para escapar das penalidades. As leis são muito frouxas. E o governo federal hesita em pôr fim a tais tramóias. Os Estados recusam-se a reconhecer como um delito esse tráfico ilegal. É por isso que no plano jurídico o tráfico de alemães e de outros estrangeiros da Comunidade Européia continua sendo só uma infração do regulamento.
Polícia, inspetores trabalhistas ou procuradores da república raramente conseguem agarrar os pequenos partidários da máfia da construção civil: “Mal conseguimos dar conta do problema’*, queixa-se, por exemplo, o procurador-geral de Colônia, dr. Franzheim. Atualmente, só na Renânia do Norte-Vestfália, há 4.000 processos em andamento. Os traficantes de mão-de-obra costumam passar calote nos empregados ou, por meio de pancadas e ameaças, tomam dóceis os imigrantes “insatisfeitos com o trabalho” . Os inquéritos — pelo menos aqueles que tramitam no Ministério Público de Düsseldorf — referem-se até mesmo a chantagens, com tentativas da extorsão e suspeitas de assassinato.
Mas não são apenas os empresários privados que, indiretamente, apelam para as locadoras de mão-de-obra. Também nos encargos públicos as “subfirmas” entram no négocio.
Em 1984, durante a construção do Parlamento de Düsseldorf, ocorreram várias rusgas: diferentes mercadores de homens queriam fornecer a mão-de-obra.
Uma fiscalização na recém-construída agência oficial de empregos de Munique descobriu cinqüenta operários ilegais. A própria polícia não ignora que operários de empreiteiras foram recrutados para as obras de ampliação do quartel da polícia federal em Hilden. A mesma coisa ocorreu quando da construção do novo Ministério dos Transportes, Correios e Telecomunicações, em Bonn (Bad Godesberg).
Por ocasião da concorrência, o ministro Christian Schwarz-Schilling absteve-se de mandar fiscalizar; assim, pelo menos uma firma de locação ilegal teve lucros gigantescos.
Como em Palermo
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Se tivesse havido real interesse por parte das autoridades, o négocio teria sido desfeito com facilidade. Os traficantes de mão-de-obra da DIMA de Düsseldorf forneceram os operários à sexta maior empresa de construção civil da Alemanha Ocidental, a WTB, que teve papel preponderante na construção do Ministério dos Transportes, Correios e Telecomunicações. A própria DIMA é resultante da GBI, a empresa para a qual trabalhei ilegalmente em Colônia.
Já no primeiro dia de trabalho, fazem-me compreender qual é meu verdadeiro lugar. Há mais de uma semana os banheiros dos operários estão entupidos. A poça de urina chega quase à altura do tornozelo. “Vá pegar um balde, um esfregão e panos de limpeza! Quero tudo isso limpo e bem depressa!” Vou ao depósito e retiro o material contra recibo. “ Basta assinar com três cruzes” , diz o responsável pelo almoxarifado, um alemão que, enfiado ali, parece não se esforçar muito no serviço.
Os trailers onde ficam os banheiros exalam um cheiro horrível. Todo o encanamento está entupido. Tenho a impressão de que este trabalho é um trote. O motivo de tanta inundação — os canos entupidos — nunca é resolvido satisfatoriamente, já que esse serviço nunca é feito por um profissional competente. Portanto, logo tudo volta a alagar. No canteiro de obras há vários encanadores, mas seu trabalho é muito caro. Estão ali para instalar os luxuosos banheiros dos futuros proprietários.
Os mestres-de-obras e os encarregados usam banheiros particulares, que são trancados a chave. Os operários estão proibidos de entrar lá. Só as faxineiras, que os limpam diariamente, têm acesso a eles. Procuro o mestre-de- obras e digo-lhe que meu trabalho não faz sentido, porque primeiro deveriam mandar um encanador verificar o problema. “Você não foi contratado para pensar, mas para fazer o que lhe mandam. Deixe isso para os burros. Eles pensam melhor porque têm a cabeça maior que a sua!” , diz sem rodeios. Muito bem! Como inúmeros outros imi
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grantes, sou obrigado a fazer o que me ordenam sem protestar, e ainda agradecendo por ter um emprego. Pensar assim — agora e em situações posteriores — ajuda-me um pouco a controlar a repugnância, a humilhação e a vergonha e a transformá-las numa fúria solidária para com os outros.
Enquanto limpo toda esta imundície com panos, esfregões e baldes, ouço as observações dos alemães que usam o banheiro. Um deles, ainda jovem, diz num tom amável:
— Até que enfim arranjaram uma faxineira para limpar o banheiro!
Dois outros, de uns 45 anos, põem-se a conversar:— O que fede mais que o mijo e a merda? — per
gunta um deles.— O trabalho! — responde o segundo.— Não! Os turcos! — grita o primeiro, de seu
mictório.Outro operário alemão, que está urinando, pergunta-
me qual é minha nacionalidade.— Turco — respondo.Ele se mostra simpático:— Mas, claro! É bem típico. Vocês é que dão sumi-
ço na nossa merda. Nenhum trabalhador alemão aceitaria tal serviço.
De vez em quando, Hugo Leine, o mestre-de-obras, vem verificar o que estou fazendo. A distância, consigo perceber que se aproxima graças a seu radiotransmissor, que vive chiando, estalando e emitindo outros ruídos. Assim, acelero o ritmo do trabalho.
— Presto, prestissimo, amigo! — estimula-me.— Eu não é italiano — explico-lhe num tom amisto
so. — Eu é turco.Então ele resolve engrossar:— Mais um bom motivo para já ter terminado o ser
viço. Vocês, tocos, conhecem bem esse trabalho, porque seus banheiros vivem entupidos!
Sem qualquer aviso, Hugo Leine já mandou embora vários imigrantes que durante o expediente foram fazer
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uma ligação importante na cabine telefônica situada bem em frente ao canteiro de obras.
Nos dias seguintes, debaixo de um calor de trinta graus, arrastamos placas de concreto até o sexto andar. Somos mais baratos que o guindaste, deslocado para outro canteiro de obras. Leine vigia para impedir descansos suplementares. Na semana seguinte, sou transferido para os serviços de transporte do cimento. Minha tarefa é empurrar os “japoneses” — nome que dão aos enormes carrinhos de mão — cheios de cimento já preparado para ser despejado nos alicerces. O carrinho quase arranca os braços da gente, e é preciso apoiar-se com toda a força para que ele não vire. O encarregado Heinz — um dos homens da GBI — diverte-se enchendo generosamente meu carrinho para em seguida assistir ao esforço que faço para manter em equilíbrio o “japonês” que vai ficando mais pesado. Atribuo meu cansaço ao calor. Durante o trajeto, o carrinho de mão bate numa tábua e dá um pequeno solavanco. Não consigo mais segurá-lo: ele vira e o cimento espalha-se pelo chão. Alguns trabalhadores correm para me ajudar a recolher o cimento antes que endureça. O mestre-de-obras aparece e começa a gritar: “Você aí, maldito gambá! Além de não saber contar nem até três, não olha por onde anda. Mais uma dessas e pode voltar para a sua Anatólia e ficar por lá, brincando na areia!” Na viagem seguinte, o encarregado lança-me um sorriso sardô- nico e enche o carrinho até a borda, apesar de meus protestos. Já no primeiro solavanco, o “japonês” começa a transbordar. Merda! Mesmo com todo o esforço, não consigo mantê-lo equilibrado. Na primeira curva, o carrinho quase me derruba, e, mais uma vez, toda a carga se esparrama nos entulhos. Alguns operários alemães põem-se a dar vivas. Rodeiam-me, porém não me ajudam. E eu, sozinho com a pá, me esfalfo para separar o cimento dos entulhos. Enquanto trabalho ferozmente, vigio para ver se Hugo Leine se aproxima. Por sorte, o mestre-de-obras enfiou-se em outro lugar. Um dos trabalhadores alemães avisa-me que o pneu de meu “japonês” está furado. Há
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um prego cravado nele. Eis por que eu não conseguia equilibrá-lo! Ao longe, o encarregado ri sem parar. E, quando passo novamente a seu lado, diz-me num tom de triunfo: “Quem sabe assim vocês acabam entendendo que não têm nada a fazer aqui!”
Mais tarde, supreendendo-o no banheiro rabiscando a parede com uma caneta hidrográfica: “Morte a todos os tur... ” Tento pedir explicações, porém ele me cospe nos pés e sai, deixando incompleta sua obra.
Poucos dias depois, ao remover com a pá o cascalho do quinto andar, quase caí dentro de um poço para instalações elétricas coberto por uma fina placa de isopor. Felizmente só escorreguei e enfiei uma perna dentro do buraco. Sofri uma leve luxação, e um tornozelo ficou esfolado. Poderia ter quebrado o pescoço, pois o poço tem oito metros de profundidade. O encarregado Heinz surgiu como por acaso e disse: “Você teve uma sorte danada! Imagine só se tivesse caído lá dentro! Mais uma vaga por aqui!' ’
Certa vez, roubaram do armário de um colega alemão sua carteira com 100 marcos. Evidentemente, logo suspeitaram de mim.
— Olhe aqui! Durante o trabalho você sumiu por uns quinze minutos. Aonde é que foi?
E outro alemão complementou:— É isso aí! Mande esse cara abrir a carteira!Um terceiro operário alemão, Alfons, às vezes cha
mado de Alfi, tomou meu partido:— Mesmo que Ali tenha 100 marcos na carteira, is
so não prova nada. Qualquer um de nós poderia ter roubado o dinheiro. Ou até algum estranho. Por que logo ele?
É ainda Alfi quem me estimula a aprender melhor a lingua alemã, dando-me um tapinha no ombro. “Você fala melhor do que.pensa” , diz ele. “É só se esforçar mais um pouco...”
Alfi ficou desempregado durante vários anos porque a agência oficial de empregos de Düsseldorf lhe arranjara uma colocação na firma Bastuba. Ele trabalhava o dia inteiro dentro da água fria, limpando os canais e suas mar-
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Ali, operário clandestino da construção civil
gens, por ordem do Estado da Renânia do Norte-Vestfália. Só algum tempo depois percebeu que a Bastuba não o registrara e, portanto, ele trabalhava ali ilegalmente, na mesma situação de seus colegas iugoslavos. Quando levantou essa questão junto ao chefe, foi posto na rua. Tempos depois um amigo deu-lhe o endereço da GBI.
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Uma vez perguntei a Klose, chefe da filial de Colônia, o que significa GBI. Foi esta a explicação que me deu: “É a sigla de Giraffe (girafa), Bar (urso) e Igel (ouriço)” 1. Desse modo, continua ludibriando todo mundo, e a maior parte dos operários acredita no que ele diz. A empresa já é tão estranha e seu nome muda com tanta freqüência que é bem possível acreditar em semelhante explicação.
Temos um novo colega alemão: Fritz, um loiro de vinte anos que se alistou nas Forças Armadas e aguarda sua convocação. Para ele esse emprego não passa de uma solução provisória. Fritz introduz no canteiro de obras uma espécie de jogo a dinheiro, que passamos a praticar nos porões da construção durante o horário de descanso. O jogo é o seguinte: quem conseguir atirar uma moeda o mais perto possível da parede sem tocá-la ganha as moedas dos outros participantes. Estou com sorte e venço sempre. Fritz se irrita: “Vocês, turcos, só pensam em embolsar a nossa grana. Só visam os próprios interesses e, assim que viramos as costas, tentam nos passar a perna” .
Em outra ocasião ele me diz: “Nós, alemães, é que somos inteligentes. Vocês, não! Vocês se reproduzem como coelhos só para viver à nossa custa!”
E, voltando-se para os outros, acrescenta: “De vez em quando eles saem da toca” .
Devido à imprudência dos telhadores, a armação do telhado se incendeia. Logo chegam várias viaturas do corpo de bombeiros e da polícia. Com o telhado ainda fumegante, sou mandado para lá, junto com outros operários, para remover os escombros. A sola de meu tênis começa a derreter tão logo piso as vigas que estalam por causa do fogo.
Perto de nós, um grupo de bombeiros e policiais nos observa enquanto jogamos no chão os objetos ainda fumegantes. Sem qualquer roupa de proteção, ali estamos nós, debatendo-nos sob seus olhos. Tudo absolutamente irregular. Não consigo nem imaginar se têm conhe
1 GBI é, na verdade, a sigla de Gesellschaft für Bauausfuhrungen und Indus- triemontage (Sociedade de Construção e Montagem Industrial) (N. do E.).
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cimento ou, pelo menos, uma vaga idéia disso. Nada dizem. Também lucram conosco. Fazemos o trabalho sujo e perigoso.
Hinrich, um colega alemão de vinte anos, casado, pai de um filho, inquilino com o aluguel atrasado, já há alguns dias anda de lá para cá com o rosto inchado. Está com febre alta e vários dentes supurados. É pressionado a não procurar um dentista. Até que, não agüentando mais, pede a Klose, o homem da GBI de Colônia, uma folha de consulta1. Hinrich ignorava que não havia sido registrado e, portanto, trabalha ilegalmente. Fica furioso:
— Mas isso é proibido! Vou denunciar todos vocês!Resposta de IQose:— Suma daqui! Não quero mais ver a sua cara! Posso
processar você por calúnia, se continuar afirmando que trabalha aqui ilegalmente. A culpa é sua. Foi você que demorou para nos entregar os documentos, e por isso não pudemos registrá-lo. Você mesmo cometeu o delito.
Em face de tudo isso, Hinrich não se atreve a dar parte à polícia. No dia seguinte, uma ambulância leva-o para o hospital. Septicemia. Risco de vida.
Numa sexta-feira, após o término do expediente — havíamos acabado de trocar de roupa —, Hugo Leine aparece e diz: “O serviço mais pesado já foi feito. Não precisamos mais de vocês” .
E, assim, depois de seis semanas, termina minha passagem pelo canteiro de obras. Alguns operários da equipe da GBI são enviados para outra construção em Bonn/Bad Godesberg. Sempre em situação ilegal, são contratados pela mesma empresa, agora com o nome alterado: DIMA. O ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações manda construir um novo ministério. Infelizmente o “ turco” Ali não está entre os operários.
1 Na Alemanha Ocidental, o empregado recebe do empregador uma folha de consulta, que lhe dá direito a tratamento médico e remédios gratuitos (N. do T.).
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Alfred Keitel, cinqüenta anos, natural de Düsseldorf, foi um dos empresários que, nos últimos anos, levantou uma fortuna quase incalculável. Em 1971, junto com um sócio, fundou a Keitel & Frich S. A. e rapidamente se lançou como intermediário de mão-de-obra da indústria da construção civil. Desde 1982 esse ramo de atividade é proibido por lei. Pouco antes, Keitel adquiriu a Sociedade de Construção e Montagem Industrial (ou GBI) e começou a se expandir.
Quando fui trabalhar para a GBI em Colônia, no verão de 1984, fazia muito tempo que os fiscais do imposto de renda estavam atrás de Keitel. Contudo, os negócios ilegais continuaram correndo às mil maravilhas. As investigações provaram que Keitel havia desviado mais de 11 milhões de marcos entre impostos sobre transações e salários, além de milhões e milhões em contribuições sociais que foram omitidas. Decretaram a prisão preventiva de Keitel, que, no final de 1984, foi condenado a quatro anos e meio. Mas conseguiu se safar, sem grandes prejuízos, porque apresentou um atestado médico de que era vítima de “paixão patológica pelo jogo” . Porém, o grande jogo, o que praticava com seus quinhentos empregados, segundo informações dos fiscais do imposto de renda, não foi mencionado.
E hoje em dia Keitel continua a assumir francamente o que faz: “Não tenham dúvida, conheço muito bem esse ramo. Todas as indústrias da construção civil, é .claro, todas as manhas necessárias... Só que, ao fazer negócios com elas, tomamos cuidado para não nos comprometer” .
No entanto prossegue: “Os grandes projetos, as grandes obras não iriam adiante sem as empreiteiras. Os Centros de Estudos para Grandes Obras é que se encarregam dessas coisas, e todos trabalham com as empreiteiras. Não se construiria nada, em grande escala, sem as empreiteiras” .
Eis o que Keitel fala de si mesmo: “Se eu não tivesse sido traído, meus negócios continuariam a pleno vapor! Ninguém conhece todos os truques desse setor, nem os fiscais nem a previdência social — exceto as pessoas que estão diretamente envolvidas. Esta é a vantagem quando se é processado: ninguém pode determinar como as diferentes empresas se interligam. Os contratos com as grandes empresas são apenas formais. Faço um acordo com elas — salários por hora sem adi-
Um empresário moderno
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cionais —, mas, na prática, assinamos outro contrato, já que os salários por hora são proibidos. Quem vai controlar? No tribunal se poderia dizer: 'Provem o contrário!’
“Quem está de fora nem sequer imagina o que acontece. Aliás, não teriam me pegado, se meu sócio, que também participou de tudo, não tivesse enlouquecido. Já fazia muito tempo que a polícia e o fisco andavam atrás de mim. Mas nunca haviam conseguido” .
Keitel também fornece informações a respeito de suas margens de lucro: “Os operários recebem um bom dinheiro, ali, na mão. Bem, nem sempre é um bom dinheiro, mas está na mão!
“As firmas de construção civil costumam pagar de 22 a 33 marcos por hora de trabalho. O lucro dos empreiteiros vai depender de quanto eles pagam para seus operários. De quantos trabalhadores eles registram, se todos ou só alguns.
“ Hoje em dia, o salário bruto de um operário especializado está por volta de 16 marcos. Quanto aos imigrantes... bem, são sempre explorados, trabalham por qualquer ninharia. Mas os alemães não. Os alemães conhecem seus direitos, pelo menos em parte. Já os imigrantes... 10,8 marcos... tanto faz” .
Fazendo um simples cálculo, temos o seguinte:Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia
de 14 a 25 marcos. Ora, normalmente um operário da construção civil trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma de 140 a 250 marcos por dia e por trabalhador. Um total de quinhentos operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil marcos diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um mínimo para despesas com transporte e contabilidade, encargos fiscais e contribuições sociais. Ou não.
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A conversão(ou: Cortar cabeças sem bênção)
(...) fui forasteiro, e me abrigastes (...). Em verdade vos digo, quantas vezes fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.
(Mateus 25, 35 e 40).
Sempre na pele de Ali, tento a sorte junto à Igreja Católica, pois, como muçulmano, ouvi dizer que também Jesus foi expulso de sua terra, conviveu com estrangeiros e condenados de sua época e expôs-se aos ataques e às perseguições mais injuriosas. Mesmo assim, não procuro a Igreja na condição de suplicante — o que seria presumível. Não vou pedir asilo nem ajuda material. Não tenho a intenção de exigir demais do funcionário do Senhor nem de levá-lo a cair em tentação. Só quero o batismo! Por quê?
a) Porque desejo ser membro da Igreja, não por oportunismo, mas porque depois de muito tempo familiarizei- me com a vida e os ensinamentos de Cristo e achei-os convincentes.
b) Porque minha namorada — alemã e católica — só pode casar comigo depois que eu pertencer à comunidade dos fiéis, como os pais dela exigem.
c) Porque espero escapar da ameaça de expulsão iminente tomando-me católico.
(Ficarão no anonimato os padres e dignitários católicos. As conversas com os membros da Igreja são autênticas.)
Visto-me como operário, com uma roupa miserável. Na sacola a tiracolo, levo uma garrafa térmica.
Primeira visita: residência paroquial num bairro elegante, com jardins que lembram um parque. Um padre
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do escalão superior, com cerca de sessenta anos, abre ligeiramente a pesada porta de carvalho, ornamentada com ferro forjado, e olha para mim com muita reserva.
— Não tenho nada para dar. Procure a assistência social. — Percebe minha perplexidade (eu não contava com isso) e, sem me dar tempo para expor meu pedido, explica claramente:' — Muitas pessoas vêm até aqui pedir esmolas, mas não dou. É uma questão de princípio! Esta é uma residência paroquial e não...
Interrompo-o:— Eu não quer dinheiro, só batismo.Ele abre um pouco mais a porta e examina-me com
um olhar crítico e curioso.— Ah, bom! — exclama. — É que me aparecem tan
tos malandros que querem viver à custa dos outros... Mas onde o senhor mora? Que idade tem a criança? Quando será o batismo?
Digo-lhe meu verdadeiro endereço e, como se trata de uma rua elegante, onde Ali, segundo sua aparência, mal poderia pagar uma semana de aluguel, acrescento:
— Eu mora lá em porão. Batismo não é para criança. É para mim. Eu é turco, muçulmano. Mas agora eu quer batismo, porque Cristo é melhor. Mas depressa, porque...
Ele me fita, espantado e incrédulo, como se, ao invés do sacramento do batismo, eu tivesse pedido minha circuncisão. Volta a fechar a porta, deixando apenas uma fresta minúscula, e diz:
— Um momento! Vamos com calma, com muita calma... A coisa não é tão simples. Em primeiro lugar, algumas condições precisam ser preenchidas... — E, com um olhar de desprezo para minha roupa esfarrapada, acrescenta: — Além do mais, não aceitamos qualquer um em nossa paróquia.
Chamo-lhe a atenção para a urgência de meu pedido porque corro o risco de ser expulso do país a qualquer momento. Mas isso não o comove.
— Calma, vamos com calma. Não tenha tanta pres
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sa! Antes de mais nada, preciso discutir o assunto com o conselho paroquial. Enquanto isso, vá providenciando um atestado de residência, assinado por uma autoridade policial, como é de praxe.
Atrevo-me a responder:— Mas Cristo também sem residência fixa, teto!Como se ouvisse uma blasfêmia, o padre, sem qual
quer explicação, bate a porta de um só golpe. Toco a campainha novamente para convencê-lo da seriedade de minha determinação em tomar-me membro da valorosa comunidade católica. Ele abre a porta bruscamente e põe-se a repreender-me:
— Isto aqui não é albergue noturno. Se não me deixar em paz, vou chamar a policia!
Pela última vez tento lembrá-lo de sua consciência cristã e de seu dever profissional. Caio de joelhos e, com as mãos postas, suplico:
— Em nome Cristo, batismo!Como resposta, ele bate a porta com violência.Eu não contava com isso. É claro que me enganei de
endereço. Há ovelhas negras por toda parte. E aqui, neste subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar entre os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.
Não desisto. Vou procurar outro padre, na paróquia vizinha, onde as casas não se escondem atrás de muros altos nem possuem enormes jardins. Em frente de cada casa, há um pequeno retângulo de terra, um pouco maior que uma sala de estar, a que todos têm acesso. Aqui vive a classe média e inclusive operários, nos vários conjuntos residenciais.
Inseguro por causa da primeira experiência hostil e querendo me prevenir, peço a AbduUah, um de meus colegas de trabalho, que me acompanhe para servir de testemunha e, eventualmente, de protetor.
São cinco horas da tarde. A igreja está deserta. Os sinos tocam mecanicamente, chamando os fiéis para a missa. Mas ninguém atende ao chamado, talvez porque faz muito frio. A igreja não tem aquecimento, e em seu interior o frio
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é tanto que há uma camada de gelo na pia de água benta. Com passos vagarosos e um pouco embaraçados, Abdul- lah e eu começamos a caminhar na direção do altar, o que desperta a atenção do padre, abandonado e sozinho.
Certamente ele já havia se preparado para o fim dos trabalhos do dia, pois, assim que nos vê, tenta se esgueirar para a sacristia. Porém, sou mais rápido.
— Desculpa — digo, barrando-lhe o caminho. — Só uma pergunta. Eu é turco e quer batizar, virar cristão. Possível?
O padre nos olha espantado.— Não, não é possível! Não dá! — responde baixi
nho, já sem nos encarar, erguendo o olhar para o céu, como se seu superior hierárquico pudesse abençoá-lo por essa atitude tão pouco cristã.
— Por que não? — quero saber.— Não é possível. Isso demanda um ensinamento de
alguns anos — murmura.— Mas eu conhece bem livro de Cristo, eu sempre lê...— Não, não posso fazer isso. Sem a autorização do
cardeal, não posso. De jeito nenhum...— Mas pastor faz batismo, não?— Não, de jeito nenhum!— Eles não permite?— Não, não e não! Ser batizado significa oficialmente
ser admitido na Igreja Católica, não...— Ah! Senhor não é padre? — provoco-o.É óbvio que ele não fica contente com a pergunta. Está
ferido em sua vaidade.— Mas claaaaaro que sou!— Senhor é chefe desta igreja? — insisto.— Sim! — responde energicamente.— Então pode fazer batismo! — insisto.— Só posso batizar crianças. No caso de um adulto
preciso da autorização do arcebispo de Colônia. Além disso, há um curso de ensinamento religioso de no mínimo... no mínimo... — Hesita. Parece compreender que não sou tão ignorante. — No mínimo um ano.
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— Tanto tempo? Um ano?...Minha pergunta inquieta e angustiada provoca-lhe no
vo impulso (não sem satisfação) de se desembaraçar de mim:
— Às vezes pode levar mais tempo ainda. É um processo vagaroso, gradual...
Aponto para a pia batismal, querendo demonstrar- lhe meu conhecimento do assunto.
— E depois batismo. Molha corpo todo ou só cabeça?A seus olhos sou provavelmente o último dos sel
vagens.— Não — responde lacônico, fingindo não ter ouvi
do minha observação sacrílega.— Mas quem sabe chefe, arcebispo, pode fazer al
guma coisa.' O padre não quer que eu tenha nènhuma ilusão:
— É pouco provável! Bem pçuco provável!Continuo sem entender nada. Tentando encontrar
uma explicação para sua recusa, pergunto-lhe:— É porque muita gente quer entrar na igreja?Não parece ser o caso.— Não, não é isso, mas...O “mas” fica suspenso no frio glacial. Não,há ne
nhuma outra explicação. Já que no campo transcendental os argumentos não foram satisfatórios, tento levá-lo para o lado prático. Indico-lhe com o dedo a grossa camada de gelo na pia de água benta:
— Joga poüco descongelante, e gente logo faz sinal- de-cruz.
Essa proposta construtiva também não o impressiona, e ele sai, abandonando-nos. Porém sou mais rápido e chego antes à residência paroquial, do lado da igreja. Toco a campainha. Como numa farmácia de plantão, abre- se uma estreita portinhola. Uma criada velha espia pela fresta. O padre, que acaba de chegar, ao nos ver ali percebe que não ficará livre tão facilmente, tamanha é minha determinação em receber o sacramento do batismo. Deixa-nos entrar em seu escritório paroquial.
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— Para que o senhor não me perturbe mais, vou lhe dar um endereço aonde deve ir. Mas, como já lhe disse, não se iluda. Tudo tem seu tempo!
Com passos lentos, refugia-se atrás de uma imponente escrivaninha e põe-se a folhear cerimoniosamente um anuário da igreja. Com uns 55 anos, aparência saudável e tranqüila, não ostenta aquele ar dè desprezo e arrogância de seu colega da paróquia vizinha. Mais benevolente e sossegado, possui algo da nulidade do funcionário que passa a vida inteira atrás de um guichê, atendendo ao público, mesmo que não tenha mais selos para vender, ninguém se interesse por timbres comemorativos e a tabuleta deixada por ele — Fechado PROVISORIAMENTE — ainda sirva para prevenir os últimos fregueses extraviados.
Não quero que ele se furte à responsabilidade tão facilmente, até porque, a seus olhos, minha exigência parece uma proposta imoral.
— Se eu era criança, batismo mais rápido? — insisto.— Sim, seria mais rápido. Se o senhor fosse um be
bê, no colo da mãe, aí, sim! Mesmo nesse caso, não seria tão rápido. Deveriam assegurar que a criança receberia uma educação católica...
EU: Hoje muita criança batizada, muito pai não- católico de verdade!
Padre (franzindo o cenho, severo): Tem razão. Mas isso não acontece conosco.
EU: Eu tem muito colega batizado, mas não católico de verdade. Colega ri de mim porque eu acredita em Cristo e fala de livro de Cristo. Más todo mundo tem Deus, não é?
Padre (sem se afastar do assunto e com um tom bastante formal): Para batizar adultos preciso da autorização do arcebispo de Colônia, o cardeal Hõffner.
EU: Ele é boa pessoa?PADRE: É ele quem autoriza e diz se o ensinamento
gradual... enfim, se o ensinamento deverá durar no mínimo um ano...
EU (contente): Então ele também faz batismo?
65 r
Padre (categórico): Não!EU: Mas eu ouve dizer qualquer padre pode fazer
batismo...Padre (folheando sem sucesso o livro, à procura do
endereço): Em princípio, sim, mas...EU: E eu tem mais um problema. Eu quer casar, mas
pais de moça não deixa ela casar com muçulmano... E se eu casa com ela, eu pode continuar aqui; senão, eu precisa ir embora, expulso para Turquia.
ABDULLAH: (vindo em meu socorro para explicar o problema deforma convincente): Ele vai parar na prisão se voltar para a Turquia!
Padre (fingindo nâo ter ouvido essa observação incômoda e3 sereno, continuando a folhear seu anuário): Mas onde é que está o endereço do Felicitas?
ABDULLAH: É por isso que ele precisa ser batizado bem depressa.
EU: Hoje mesmo, era bom! Ou amanhã, depois de trabalho.
PADRE: Está fora de questão. Não é possível!EU: Eu pode pagar alguma coisa.PADRE: Não. É de graça. O batismo não custa na
da. Todos os sacramentos são gratuitos.Eu: Mas se eu dá um pouco dinheiro para criança pa-
gã, coisa anda mais rápido?PADRE: Não e não! Não há nada a fazer, absoluta
mente nada!ABDULLAH: É que ele não quer prestar serviço
militar.EU: Eu não quer dar tiro em ninguém. Eu não quer
matar gente. Turquia agora igualzinha Alemanha de antigamente, com Hitler. Turquia é ditadura...
PADRE: Este assunto não tem nada a ver com o batismo. São motivos alheios às convicções religiosas.
Eu: E quando gente é batizado tem grande festa com paróquia, e coisa assim, não?
Padre (tentando desiludir-me): Não.
6 6 v
EU: Não?! Eu achava que tinha grande festa, dança, tudo.
PadrE: Não, de jeito nenhum. Não. Pelo menos não aqui, conosco.
Eu: Eu já leu Bíblia trás para frente, frente para trás...Padre: É o que todos dizem. Acham que já sabem
tudo...Eu: Senhor, faz pergunta. Qualquer pergunta!PADRE: Pergunta? Para quê?EU: Para ver se eu...Padre: Não é esse o problema. O problema são as
prescrições segundo as quais a Igreja admite pessoas adultas. E que perguntas eu deveria fazer?
EU: Sobre Cristo...Padre (como se eu tivesse dito um disparate): Ah!
Sobre Cristo?EU: Sobre vida dele, coisa assim...Padre (como se Cristo nunca tivesse vivido): Ah, a
vida dele? Sei. Bem, vejamos... Espere um pouco... (Então, à queima-roupa): Como foi fundada a Igreja?
Eu (sem precisar pensar muito): Cristo fala assim para Pedro: “Faz Igreja por mim. Agora!”
Padre: Hum... Hum... Sim, podemos dizer que sim...EU: E agora pergunta mais difícil!Padre: Não é preciso. Isso não leva a nada, só lhe
cria falsas esperanças.Eu: Por favor! Uma só mais!Padre (com grande sacrifício): Está bem... Por que
hoje em dia existem tantas igrejas que invocam o nome de Cristo?
EU: Ah, eu sabe! Por causa Lutero. Ele fez revolução. Ele não acreditava em papa. Por isso tem muita igreja também boa. Elas quer Cristo vive, mas não sabe muita coisa; Lutero quer fazer igreja própria, porque outra não era bem dirigida, perde pastores...
Padre (surpreso): Sim, sim, já está bom...Eu: Eu leu tudo. Eu leu também livro que vem com
Bíblia. Cate... Cate... Como chama?
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Padre: Catecismo. Está certo. Acredito que o senhor conheça bem a Bíblia, sem problemas. Mas isto não serve para nada neste momento. Preciso da autorização do arcebispo para batizar um adulto.
EU: Mas, se agora... se agora eu estava muito doente, meu coração não batia mais, e eu pedia: “Por favor, batismo” ?
Padre: Em caso de morte, é claro que sim. Quero dizer, se realmente há risco de vida...
EU: E se eu tinha muita dor agora? Assim, de repente? Não podia fazer batismo? Coração não anda bem. Verdade!
Padre: Sei, sei. Seu coração não anda bem, não é?EU: É! Não bate direito. Quando eu trabalha pesa
do, eu vê tudo preto em frente. Uma vez eu foi parar em hospital. Seção intensa terapia. É assim que gente diz?
P a d re (corrigindo): Unidade de terapia intensiva. Ainda assim, não vejo motivo para abreviar o tempo de sua formação religiosa. Só através do curso é que saberemos se o senhor realmente se firmou na fé cristã, se realmente faz parte dela.
EU: Mas isso não adianta nada se eu morre antes. Se eu não casa com noiva alemã, eles me manda voltar para Turquia. E, quem sabe, eu até morre sem batismo. E daí eu não fica com Cristo, em céu.
P ad re (suspirando): Eu não disse isso. Claro que pode haver exceções.
EU: (contente): Então eu vai ter batismo logo?P a d re (desesperado com minha lentidão de raciocí
nio): Não, meu Deus! Não! Ainda que o senhor morra sem ser batizado, isto não significa necessariamente que será amaldiçoado por toda a eternidade. Em determinadas circunstâncias podemos contar com uma espécie de batismo inconsciente. E Cristo, em sua bondade incomensurável, também dá oportunidade a pagãos e adeptos de outras religiões de viverem em seu espírito.
Eu: Mas isso não muito seguro. Melhor ter logo batismo. Vem! Coração nada bom.
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PADRE (indiferente): Já sei, mas a coisa não funciona assim. Há alguns empecilhos.
EU: Mas principal é que eu já vai ser católico.Padre (desesperado): Sim, pode-se dizer que sim.
Mas um batismo sem certificado não vale nada. Mais uma vez, nãol Não vou batizá-lo porque sei que o senhor está fingindo.
EU: Mas é verdade! Senhor pode chamar médico!Padre: Não é preciso. Além disso, se eu o batizas
se, estaria sujeito a medida disciplinar.EU: Com Maomé coisa é mais fácil. Quem quer po
de logo ser maometano.Padre (não sem algum desprezo): É... Maomé faci
litou as coisas para vocês.EU: Qualquer modo, Maomé mais tolerante. (O pa
dre finge não ter ouvido a censura e se cala.) Mas, antigamente, missionário chegou com conquistador em país estrangeiro e foi logo dizendo: “Você, você e você... agora tudo católico” . Mesmo quem não queria. E por que hoje leva tanto tempo?
PADRE: É verdade, mas que católicos deveriam ser! Naquela época, as coisas eram assim... como posso dizer?... feitas muito mecanicamente. Carlos Magno, por exemplo, dizia para os saxões: “ Batismo ou a cabeça rola!” (Ri com prazer.)
EU: Assim... zás!PADRE: Mas isso aconteceu no ano 800 depois de
Cristo.EU: É, mas com índio também zás! E ínclio nem sa
bia por quê.PADRE: Mas viu no que resultou tudo isso? Eles pas
saram a ter um ódio mortal de todos os cristãos.Eu: E índio fez mesma coisa (gesto de cortar cabeça)
com cristão?PADRE: Mas claaaaaro!EU: E papa abençoou?PADRE: Abençoou? Que bênção? Ninguém precisa de
bênção para cortar cabeças! (A expressão de seu rosto, até
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então bondosa, dá lugar a um sorriso irônico, infantil, in- quisitorial.)
Eu: Mas papa falou “tudo bem” ?PADRE: Não sei qual era a atitude dos papas naque
la época. Eles não deveriam saber o que os missionários faziam lá na América. (Lembrando-se do propósito de minha visita, muda de assunto): Quem quer expulsá-lo da Alemanha?
EU: Policia de estrangeiro.Padre: (bastante impressionado): Ah, a polida de es
trangeiros!EU: E se gente casa com alemã, eles entra no quarto
para ver se gente dorme junto.Padre: Aqui em nossa escola temos muitos turcos. Eles
sempre participaram de minhas aulas de religião, mas não tinham grande interesse... nem sabiam o que é ser católico.
EU: E agora que eles quer batismo?Padre (horrorizado): Pelo contrário! Nem um úni
co sequer...EU: E eu? Eu vai ter que aprender muita coisa? Re
za, hino?PADRE: O senhor tem que aprender é internamente,
com a alma e não externamente. Internamente, entendeu?Começo a rezar o Pai-Nosso. Quando chego ao fim
— “livrai-nos de todo mal” — ele me interrompe e volta a me humilhar:
— Como todo muçulmano, o senhor tem o costume de ficar repetindo as orações sem ao menos entendê-las, igual às crianças. Bem, mas agora preciso fechar a igreja.— Levanta-se, disposto a se livrar de mim, e põe em minha mão um pedaço de papel: — Aí está o endereço do Centro de Orientação para a Fé, Felicitas. Eles decidirão o que fazer.
O responsável pelo Centro de Orientação para a Fé, Felicitas, é um padre magro, alto, de certa idade. Tem os modos elegantes e ligeiramente distanciados de um aris
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tocrata. Lembra-me um pouco o “ Grande Inquisidor” de El Greco.
Esta instituição da Igreja Católica, destinada àqueles que desejam se converter, não me parece muito freqüentada. Sou a única pessoa na sala de espera e me dou conta dos imensos escritórios vazios que impressionam por seus móveis antigos; nada que sugira um local de trabalho.
Vestido com minha surrada roupa de trabalho, sinto- me um pouco deslocado e miserável neste lugar. Depois de relatar meu caso de forma convincente, mas um pouco desesperada, apelo ao padre responsável pela instituição para que tome uma decisão rápida, não burocrática, e leve em conta a urgência da situação.
Eu: Por favor, por isso eu precisa batismo depressa.P a d re (não levando a sério meu pedido, reage um
pouco ironicamente): E quanto tempo acha que isso pode levar? Uma hora, por exemplo?
Eu (alegrando-me): Pode? Muito obrigado! Se leva mais de uma semana, eu vai para a cadeia, lá em Turquia. Quando é batismo?
P a d re (lacônico e formal): Sou um especialista, mas não posso dizer.
Eu*. Então senhor pode fazer pergunta. Eu já leu tudo que Cristo falou. Eu acha tudo muito bom.
P ad re (sem se impressionar): Quem o mandou aqui?Eu (dizendo o nome do padre que, para se ver livre
de mim, me deu este endereço): E ele disse que não podia fazer batismo, mas que aqui pode e eu também ganha certificado.
PADRE: Há quanto tempo o senhor está na Alemanha?
EU: Dez anos. E eu quer continuar aqui. Porque eu é curdo e lá em Turquia eu vai para cadeia. Eu fez trabalho político contra a ditadura.
PADRE: Se o senhor deseja permanecer na Alemanha, não precisa voltar para a Turquia.
EU: Mas eu vai precisar ir, porque eu não tem trabalho, e visto de permanência é só para mais três meses. E
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eu também acha Cristo melhor que Maomé, Maomé proíbe muita coisa. Cristo está do lado de perseguido.
P adre (parece ter outra idéia sobre Cristo): Sei. E o senhor conhece outros cristãos, além de sua noiva?
EU: Sim. Colegas de trabalho, tudo batizado. Só que eles sempre dá risada quando eu fala de Cristo. Eles fica lendo Bild em hora de descanso. Mas eu não, eu fica lendo Bíblia.
PADRE (ignorando a realidade): Tudo vai depender dos bons contatos com outros cristãos alemães. Aqui não há propriamente uma aprendizagem, mas um comportamento. Importa mais a vida que o estudo.
EU: Sim, eu entende. Eu quer viver e me comportar. E o que eu precisa fazer para me aceitar?
PADRE: Viver com a Igreja.EU: Fazer... quê?!PADRE: Ir à igreja. ■Eu (com orgulho): Mas eu vai. Eu sempre vai domin
go. (Para que ele acredite em mimt digo-lhe o nome da paróquia e da igreja.)
PADRE: Sei, sei.EU: Verdade! E eu também sabe rezar. E canta bem.PADRE: E quantas vezes o senhor costuma ir à igreja?EU: Uma vez, domingo.PADRE: E nestes últimos dois anos, há quanto tem
po o senhor tem ido?EU: Quatro meses, todo domingo.P adre (calculando): Quatro vezes quatro... de
zesseis.EU: Mas antes também. É que às yezes eu precisa tra
balhar fim de semana. Eu acha bonita missa. E Cristo é amigo de verdade.
Padre (que parece ter uma relação um pouco menos amigável e mais distante com seu Senhor): Mas é difícil acreditar em Cristo.
Eu (profundamente convencido): Nãããão!P adre (incrédulo): Não...?EU: Cristo mostrou e mostra como gente deve viver,
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e não só dentro de livro, mas por ele mesmo. Ele viveu para nós. Mas senhor pode fazer pergunta, ver se está certo...
PADRE: Isto aqui não é escola. Vamos conhecendo os candidatos através dos encontros e de suas próprias vidas. (Em tom ligeiramente repreensivo): Se o senhor tivesse vindo há dez anos, tudo estaria solucionado agora.
EU: Mas senhor não faz pergunta para ver se eu sabe...
PADRE: O problema não é a aprendizagem. Não se pode apressar o crescimento de uma planta com adubo. Tudo tem seu tempo.
EU: Mas quando primeiro cristão chegou Novo Mundo, foi logo batizando tudo, mesmo quem não queria.
PADRE: É verdade, mas a Igreja tinha uma outra força e outra inspiração. Hoje levamos em conta o contato com outros cristãos.
EU: Gente não tem muito contato porque alemão não quer viver com turco.
PADRE: São prescrições do bispo. Todos devemos nos submeter à mesma disciplina.
Eu: (numa última tentativa desesperada de convencer o padre a não agir de forma burocrática): Mas então eu não vai ter certificado. E polícia de estrangeiro me expulsar, e eu precisa voltar para Turquia, vai para prisão, e quem sabe eles me tortura...
PADRE: Não posso ser pressionado a batizá-lo por causa de sua situação política desesperadora. Seria uma irresponsabilidade. Nenhum bispo responderia por isso.
EU: E se eu pergunta para bispo?PADRE: O senhor não pode procurar o bispo.EU: Mas ele também mora aqui!PADRE: Mas o senhor não pode procurar o bispo!EU: E se eu telefona e pergunta direto para ele?PADRE (em tom de desprezo): Certamente ele não re
ceberá alguém como o senhor. Ele não fica em casa, ente- diado, esperando que lhe telefonem. O bispo é o senhor supremo de mais de um milhão de católicos nesta dioce
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se. Sua agenda é tão cheia quanto a de um primeiro- ministro. Os dois, aliás, estão no mesmo nível.
EU: Mas bispo também faz batismo, se ele quer.P a d re (irritado): É claro que o bispo pode celebrar
batizados a qualquer momento.EU: E se eu fala com bispo quando ele dá uma volta?PADRE: Impossível! O senhor pensa que pode sim
plesmente ir agarrando o bispo durante seu passeio? Ele está sempre cercado de policiais.
Eu: Mas, então, senhor faz pergunta! Para ver se eu entende bastante de Cristo...
P a d re (depois de suspirar e refletir longamente): Jesus é Deus?
EU: Ele foi homem e Deus, e junto também com Espírito Santo. Uma só em três pessoa...
P a d re (espantado): É uma boa resposta. A resposta, como tal, está correta.
Eu (sem desistir): E Cristo diz que ama todos homens, mesmo que não são de Igreja. E cristão deve amar até inimigo, só que não faz isso com turco... Eu sei que Cristo ficava do lado de perseguido. Em Turquia, curdo é que nem cristão de antigamente. Mandam ele para cadeia porque querem ter cultura própria. E Cristo também está do lado deles.
P a d re (furioso, levantando-se com muita cerimônia): Está bem, mas agora precisamos interromper nossa conversa. Se o senhor fizer a gentileza de retomar à outra sala, minha secretária o acompanhará até a saída...
A diferença do padre rude de minha primeira visita e o de agora é que este último me expulsou de forma elegantemente aristocrática. Também aqui não sou desejado. Embora se trate de uma exceção absoluta — encontrar na Alemanha um turco que deseja converter-se à fé católica é um verdadeiro milagre, quando presenciamos as hostilidades que os servos de Cristo lhes manifestam e as humilhações que lhes impõem —, não querem, em hipótese alguma, admitir-me na comunidade hierarquizaçla desses cristãos satisfeitos, presunçosos e enfastiados de si
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mesmos. Já é bastante suportá-los nas escolas, nos subúrbios e nas estações de trem. Mas as igrejas — mesmo que continuem completamente desertas — devem ficar limpas e livres de turcos.
Vou visitar outro padre. Todos os andares da residência paroquial estão equipados com retrovisores de caminhão. Ao lado de cada uma das aproximadamente doze janelas foi colocado um desses retrovisores, cuja função é permitir examinar atentamente o visitante que está junto à porta de entrada.
Toco a campainha; a porta não abre. Resolvo tentar novamente meia hora depois. Assim que toco a campainha, afasto-me e colo-me à porta, escapando, assim, do retrovisor.
A porta abre automaticamente, e, entrincheirado no primeiro andar, vejo um padre de meia-idade. Impassível e indiferente, escuta meu pedido, mas não me convida a entrar.
— Isso é idéia fixa! — repreende-me. — Quem lhe sugeriu tal coisa?
— Cristo me chamou — respondo, no melhor estilo daquelas biografias de santos escritas para crianças. — Eu quer seguir Cristo.
— O senhor está fingindo só para conseguir a autorização de permanência com mais facilidade. Admita que são motivos políticos que o levam a procurar'guarida na Igreja. O senhor só quer tirar proveitos pessoais de tudo isso.
— Cristo também ajudou perseguido político — respondo.
— Se o senhor se rebela contra as leis do Estado, será perseguido em qualquer lugar. Aqui na Alemanha também é exatamente assim.
— Turquia não é democracia, é ditadura — digo, em objeção.
— Isso não passa de um chavão político. Cada povo
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tem o governo que merece. Há povos que ainda não estão maduros para a democracia parlamentarista. — E, depois de pensar um instante: — Mas, afinal, o que o senhor deseja? A Turquia já tem um parlamento eleito.
— Controlado por militar — respondo. — Partido democrático proibido e perseguido.
— Deve haver alguma razão para isso — prossegue ele na discussão política. — Só assim é que se pôde acabar com o terror e a rebelião.
— Mas polícia e Exército faz terror e tortura preso político — replico.
— Confesse que o senhor é comunista e quer se infiltrar entre nós para ter um bom disfarce. Damos assistência espiritual nas prisões e confortamos até o pior dos pecadores, desde que ele se arrependa. Mas aqui não há lugar para elementos sem consciência... É melhor o senhor voltar para o lugar de onde veio! — E, como eu fico olhando-o perplexo, continua em tom mais condescendente: — Bem, caso eu tenha me enganado com o senhor, venha procurar-me depois da Páscoa, e então marcaremos uma entrevista. Assim terei tempo para sondá-lo um pouco mais e avaliar seus verdadeiros sentimentos com relação a Cristo.
Registro isso. É o bastante para mim. Considero um despropósito uma segunda conversa. A idéia que esse padre fez de Cristo já me parece suficientemente clara.
— Cumprimento, então, para Cristo, quando senhor vê ele — despeço-me. E digo mais para mim mesmo que para meu interlocutor: — Oh, não. Há muito tempo que Cristo está morto aqui. — E, deixando o padre desnorteado, desço a escada, assobiando “Senhor, nós te louvamos...” , minha canção preferida.
Mas não desisto. Preciso encontrar ao menos um padre que leve a sério minha missão cristã; que não tenha, por comodismo, preconceitos; que não seja um xenófobo mal disfarçado. Um padre que aceite a evidência do
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batismo, sem formalidades burocráticas, e o mais rápido possível.
Dois outros padres que procuro também não levam em conta a urgência do caso. Um capelão, bem jovem, manda-me passear: “Não fazemos questão de ter entre nós pessoas que querem se tomar católicas só para agradar os outros e obter eventuais benefícios. Não somos uma companhia de seguros, fique o senhor sabendo!”
Vou visitar outro padre, já de certa idade, que mora numa suntuosa residência episcopal e é conhecido como pastor de almas da classe alta. Ele me faz recitar o Pai- Nosso, rezar a Ave-Maria e ainda cantar um hino religioso. Escolho o de Christof von Schmidt: " ... e ele morreu, com o coração cheio de amor, para nos salvar...” E depois disso tudo, sou recusado.
Antes, porém, o padre coloca-me numa situação difícil, pois deseja saber como se diz “acólito” em turco. “Gurtil, GuruF\ invento. “Gurul, GuruV\ repete ele, verdadeiramente impressionado.
PADRE: Onde o senhor mora?Eu (acrescentando depois de dizer o endereço): Po
rão de família Sonne. Mas ninguém pode saber, porque proibido alugar porão, sem janela, úmido.
PADRE: Mas o senhor não tem uma declaração de residência registrada na polícia?
Eu (hesitante): Não. Família Sonne não quer. E aqui ninguém aluga boa moradia para turco.
Padre (num tom severo): Sendo assim, não posso aceitá-lo no curso de catecismo de nossa paróquia. Antes de mais nada, o senhor terá que providenciar a declaração de residência, como é de praxe. Aí sim, poderá participar do curso de preparação, que dura no mínimo um ano. Vai ver como esse curso lhe fará bem. O senhor se familiarizará com a fé cristã e então poderá realmente fazer parte dela!
Eu (protestando): E isso serve para quê? Eu já vai estar preso em Turquia.
Padre (sem se abalar): Estes são motivos políticos secundários que não devem influenciar nossas decisões.
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Já estou a ponto de desistir. Recordo-me das palavras da Bíblia: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha que um rico entrar no reino do céu” . E acho que elas se aplicam exatamente aos padres católicos.
Até então eu havia escolhido as paróquias de forma aleatória, procurando as que ficavam perto de casa ou em locais já cqnhecidos. Desta vez decido sair da cidade, ir para o campo, a uma distância de uns cem quilômetros. Só paro quando chego a um local bem miserável, com uma igreja muito pobre. Dirijo-me à casa paroquial. Um homem bastante jovem abre a porta.
Eu pode falar com padre? — pergunto.— Claro, sou eu! — diz o homem, vestido como uma
pessoa comum, com a camisa aberta. -É a primeira vez que eu, Ali, vejo um eclesiástico sem
roupas de clérigo. O jovem convida-me a entrar em seu escritório.
Começo a expor meu problema. Antes mesmo de terminar, o padre interrompe-me:
•— Já estou entendendo. E agora o senhor irá me pedir para batizá-lo, estou certo?
— Sim, está.— É claro que vou batizá-lo. Dentro de poucos dias.
E, então como católico, o senhor terá direito ao certificado de batismo, que eu mesmo subscreverei. É isso! — Sem maiores delongas, sem apelar ao bispo, sem perguntas beatas, inquisitoriais, hipócritas e pseudocristãs, ele reconhece a seriedade da situação, compreende o que está em jogo e age espontaneamente, de forma .cristã. — Precisamos ter ainda mais uma conversa, e aí o senhor se tomará membro da nossa paróquia. Com o tempo, iremos nos conhecendo melhor. E se, depois de tudo isso, o senhor continuar tendo problemas com a polícia de estrangeiros, conte comigo. Tudo se ajeitará, o senhor vai ver. Não haverá mais problemas — ele me anima.
Agradeço. Percebo que o jovem padre, que não se comporta como um funcionário, fala com leve sotaque da Europa oriental. Mais tarde venho a saber que emigrou
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da Polônia há quatro anos. Talvez sua própria história de vida o tenha levado a identificar-se com um estrangeiro perseguido, ou pelo menos a compreender o. que se sente em tal situação. Talvez ele mesmo tenha começado a perceber em seu pais natal o que significa perseguição, ou, se não a vivenciou, pelo menos terá trabalhado sob as rédeas de uma Igreja sufocante e cheia de privilégios. Talvez, ainda, sua vocação para compreender os problemas alheios só tenha se manifestado aqui, nesta nossa Alemanha “livre” , onde testemunha a acolhida pouco amena que se dá aos estrangeiros.
Seja como for, prefiro mantê-lo no anonimato, pois temo que a revelação do nome deste homem, de comportamento tão humano e cristão, atraia a ira de seus superiores, que podem considerar esse fato como uma transgressão da ordem.
Post-scriptum. Quase sem querer, aprendo que o sacramento do batismo pode ser ministrado, em certos casos, com muito liberalismo e não tão burocraticamente. Por exemplo, se um não-católico, um “ateu” , se candidata ao cargo de diretor de um colégio comandado pela Igreja Católica e seu nome recebe acolhida unânime nos círculos sociais, a Igreja admite-o em poucos dias, para mérito de süa carreira.
Igualmente, quando o futuro diretor de um hospital católico não é batizado, tornam-se desnecessários curso de catecismo ou exames para testar seus conhecimentos bíblicos. Em três dias realiza-se um batismo-relâmpago, mediante uma pequena e espontânea contribuição jogada na caixinha da igreja.
Com certeza, reprovam-me por ter poupado os eclesiásticos protestantes. Talvez isto esteja relacionado com a própria história de minha vida: aos cinco anos de idade fui forçado a uma cerimônia católica de batismo, desnecessária e extremamente penosa.
As coisas aconteceram da seguinte maneira: meu pai
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estava internado num hospital católico, com septicemia. Três semanas depois, desenganado pelos médicos, relegaram-no a um cubículo chamado, a propósito, de “morredouro” . As freiras que cuidavam dele viviam importunando-o porque, na qualidade de católico com certidão de batismo, ele ofendera gravemente a Deus por não ter se casado no religioso e haver batizado seu único filho— eu — segundo os cânones protestantes. Foi assim que, num quartinho minúsculo, realizaram uma cerimônia de casamento e eu fui rebatizado, tudo segundo o ritual católico. Ainda hoje tenho consciência da hipocrisia e da afetação daquele acontecimento. Vestiram-me um camisolão de batismo, enfiaram uma vela em minha mão e um tra- pista disse que a partir de agora eu passaria a me chamar Johannes. Cheguei a protestar, alegando que meu nome é Günter, mas o ritual continuou, sem interrupção.
Foi uma cerimônia absolutamente desnecessária, porque, segundo os dogmas católicos, uma vez batizado, batizado para sempre.
E mais ainda: poucas semanas depois desse espetáculo, meu pai recuperou a saúde. As freiras insistiam em falar em milagre, graças ao “efetivo arrependimento” de meu pai. Esqueceram, porém, de mencionar que o diretor do hospital havia feito de tudo para conseguir penicilina junto às autoridades militares da ocupação americana. Meu pai foi um dos primeiros pacientes de Colônia a utilizar com sucesso esse medicamento.
Em todo caso, foi assim que me tornei católico.
Do lado de cá do Éden
Porque eles têm um ar tão feliz e sereno, com seüs pequenos distintivos ovais de madeira, seus trajes vermelhos e sua despreocupação infantil, resolvo dar um pulo no lugar onde os jovens da Bhagwan se reúnem.
Um movimento novo, que se define como religião universal, que se propõe experimentar novas formas de vida e de trabalho em comum, que — diferentemente da maior
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parte das religiões — não reduz a sexualidade ao objetivo exclusivo da procriação nem a transforma em tabu. Uma religião lúdica, fácil, ampla sem constrangimentos. É nesse lugar que espero não sofrer nenhum tipo de preconceito como o estrangeiro Ali. Meu amigo e colega de trabalho Abdullah acompanha-me.
Ao contrário de mim, Abdullah nunca teve a menor ilusão ou expectativa quanto ao cristianismo administrado pela Igreja oficial. Agora está menos prevenido e também quer tentar seu ingresso na seita Bhagwan.
O local de encontro fica na Lütticherstrasse, num bairro próximo ao centro da cidade. Os diversos imóveis onde está instalada a administração da Bhagwan pertencem à Construções Rajneesh, Koch & Cia. A mobília da sala de recepção é clara, elegante e de bom gosto. Nada do kitsch enfadonho, tão comum entre as seitas.
Quando chegamos, dois “sannyasins” 1 estão falando ao telefone, cada qual em seu aparelho, e tão absortos que nos ignoram completamente. Ao que parece não se trata de conversas de evangelização nem de questões de fé. Um deles discute sobre cifras e repetidamente se justifica por não ter convertido as somas previstas em valor monetário. O outro parece estar dando a seu interlocutor um curso rápido de investimento. A conversa gira em torno de “ donativos antedatados” e de como “contornar de maneira perfeitamente legal o imposto sobre herança” . Além da “previsão mais recente e merecedora de fé, vinda dos Estados Unidos: vender, sem falta, os dólares nos próximos seis meses e aplicar em ouro!”
Os dois “sannyasins” comportam-se como jovens gerentes, ou, melhor ainda, como investidores da bolsa, do tipo descontraído, sossegado, não obstinado mas firme. Ficamos esperando ali uns bons dez minutos, até que um deles, que acabou de transmitir suas cifras, se digna a reparar em nós.
— O que desejam?
i Os membros da seita Bhagwan autodenominam-se “sannyasins” (N. do T.).
— Eu quer fazer parte daqui — digo-lhe.Ele me olha com desprezo.— Ser um adepto? Mas não é tão simples assim. —
Em seguida, examinando-nos ligeiramente, completa: — Vocês querem é casa e trabalho, não é?
— Também — respondo —, mas não só por dinheiro. Eu não quer mais ficar sozinho. Eu quer viver com outros.
— Mas isso leva algum tempo. Acho mesmo que, para vocês, vai levar muito tempo.
— Muito quanto?O jovem não quer adiantar nada.— Varia muito. Não temos uma regra fixa. Depen
de do conhecimento que se tem da Bhagwan e da intensidade do desejo de fazer parte do grupo.
— Desejo muito, muito forte.— E por que você tem tanta pressa assim? — ele per
gunta, desconfiado.— Eu quer começar tudo de novo. Senão eles me
manda embora para Turquia, e lá eu vai para cadeia.Conto-lhe minha história da perseguição política.Embora jovem e não-dogmático, guiado (como ele
mesmo acredita) pela inspiração, reage como um clérigo:— Se entendi bem, você quer é encontrar um jeito
de entrar aqui e tirar algum partido da situação, não é?— Não! Eu só quer ficar aqui e fazer parte disto tudo.— Sei... Quer vir para cá porque gostaria de ficar
aqui?— Também.— Mas não é motivo válido. Se for isso, não pode
mos admiti-lo de jeito nenhum.— Mas não só isso! Eu também quer viver com ou
tros. E não cada um por si, mas tudo junto, comunidade. Ah, e tem também mulher. Não uma só para cada um, mas tudo junto.
— Acho que é melhor você ficar no lugar de onde veio. Para chegar até nós, o caminho é muito longo.
Mais uma vez meti os pés pelas mãos. A fase frenéti
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ca da vida comunitária só foi propalada no início do movimento Bhagwan. Assim, como uma espécie de isca para fisgar as pessoas frustradas das classes média e alta de todos os cantos do mundo. Depois, o Grande Mestre — prejudicado pela gota e, sem dúvida, com medo da AIDS — passou a pregar maior abstinência e uma vida a dois. Seu novo lema já não é o sexo grupai, mas um tipo de prazer congelado e asséptico: o consumo suntuoso, o luxo pelo luxo. Por exemplo: os Rolls Royce. Objetivo ambicionado: um Rolls Royce diferente para cada dia do ano. Preço por unidade: 300 mil marcos. Não para uso de seus adeptos, mas só para ele mesmo, para süa tendência megalomaníaca.
Assim, para esse jovem minha exigência é pretensiosa e descarada. Viver em comunidade com gurus de esquerda semiconvertidos (como, por exemplo, Rudolf Bahro, militante do Partido Verde), ainda é possível. Mas viver com um turco miserável, sem eira nem beira, extenuado pelo trabalho é coisa muito diferente; toda a estrutura preconceituosa das antigas raças dos senhores vem à tona.
Tentamos o centro da seita na Vennloèrstrasse, ao lado da Friesenplatz. Na recepção, duas senhoras e um rapaz.
Assim que os dois candidatos turcos entram no local, as mulheres começam a cochichar e a rir baixinho. Paramos diante delas, que fingem não nos ver e põem-se a mexer em algumas pastas de documentos.
Decidimos, então, inspecionar um pouco o lugar. Numa das salas, há uns trinta adeptos da Bhagwan, alguns sentados, outros em pé, olhando fascinados para um televisor. Não estão vendo uma partida de futebol nem um filme de suspense, mas um vídeo sobre o Grande Mestre de Oregon. Ele está rodeado por um grupo de adeptos entusiásticos que o aclamam sem cessar, confortavelmente instalado em seu Rolls Royce, que avança bem devagar, acena para os fãs com movimentos parcimoniosos e uma expressão vaidosa e magnânima.
O conjunto é acompanhado pelo “ lá-lá-lá” repetitivo e monótono de uma música oriental, e os “sannyasins”
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“O egoísmo é natural. Não é uma questão de bem ou de mal. O mais forte é que sobrevive, e o mais forte é que deve ter o poder. E quem tem o poder tem a razão. Como alemães, vocês deviam compreender isso. (...) Amo esse homem [Hi- tler]. Era um louco. Mas eu sou mais louco ainda. Não ouvia seus generais, apenas seus astrólogos. Mesmo assim, durante cinco anos sempre obteve vitórias. Era tão moralista quanto Mahatma Ghandi. Sua natureza era a de um hindu, mais que a de Ghandi. Foi um santo. (...) Sou absolutamente inatacável. Ataco todo mundo, mas ninguém me ataca. Esta é a simples verdade.”(Extraído de Der Spiegel n.° 32, 1985.)
Palavras de Bhagwan
de Colônia se balançam, soltos e descontraídos, no mesmo ritmo que os discípulos de Oregon. Alguns acompanham o compasso com as mãos. Ninguém diz uma única palavra.
Para não perturbar o recolhimento daquele grupo, voltamos para a recepção, onde novamente me apresento. Mais uma vez somos ignorados por um bom tempo. Todos fingem não nos ver, porém ficam espiando pelo canto dos olhos. Finalmente, um homem de uns trinta anos se aproxima. Abdullah já há algum tempo tamborila nervosamente no balcão da recepção.
Exponho meu problema, e ele replica, no velho estilo antiautoritário:
— Não, não. As coisas não são assim. Isto aqui não é um clube ao qual você pode se filiar. Você deve começar pela meditação. Leva algum tempo, e cada sessão de “dinâmica" custa 5 marcos (por hora, naturalmente). Depois de fazer isso por um tempo suficiente, marcamos uma entrevista com a coordenadora do centro, que verá se pode lhe dar um “nome de Sannya” .
EU: O que é isso?HOMEM (brusco e enigmático): É o que fazemos aqui.
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A seita Bhagwan é dirigida por Sri Rajneesh, um indiano que vive nos Estados Unidos. Em junho de 1985, ele decidiu romper seu longo silêncio e deu uma entrevista ao canal de televisão ABC, declarando ser “o guru dos ricos’* e ter como o mais nobre objetivo de seu movimento *'‘enriquecer” . “Todas as outras religiões cuidam dos pobres” , respondeu ao lhe perguntarem por que não usava sua imensa fortuna para lutar contra a miséria social em lugar de investir em sua frota de Rolls Royce. “É problema meu se me preocupo só com as pessoas ricas.”
Somente na Alemanha comprou uma dúzia de discotecas, uma cadeia de restaurantes vegetarianos, lanchonetes e empresas de construção.
— Eu é turco muito sozinho. Eu quer viver em comunidade, com alemão e outros tudo.
H om em (reservado): Mas não é você que pode julgar o que é melhor. São os outros que determinam por você. Mas antes de tudo, precisa começar a sentir...
EU: Mas eu já sente...HOMEM: Mas você não tem nenhum critério que lhe
permita julgar.EU: Chefe, Bhag, também estrangeiro.H om em (ofendido): Bhagwan é nosso mestre. Veio
da índia.EU: Então muitos de vocês veio da índia?H om em (pensando um pouco): Não, na realidade
não. H á mais alemães e americanos.1Eu: E onde mora Bhag?HOMEM: Atualmente na América. Pode-se visitá-lo
na América. (Regularmente, numerosos adeptos viajam para os Estados Unidos, em vôos fretados, por dez dias, desde que depositem nos cofres de Bhagwan a quantia de 3 000
1 Não há adeptos indianos de Bhagwan, considerado um charlatão em seu próprio círculo cultural. Eis porque, para ele, a índia é um “país física e espiritualmente morto” (N. do A.).
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marcos. Chegando lá, trabalham de graça nas lavouras. Para elesf no entanto, isso se chama “recolhimento” .)
EU: Tem alemão que vive em comunidade com vocês, eu sabe. Então por que não turco?
HOMEM: Não se trata de viver ou não em comunidade. O problema é que temos um mestre espiritual: Bhagwan. E isso que conta, o resto não importa. Você pode viver sozinho e ter um trabalho lá fora e viajar, uma vez por ano para Oregon, por exemplo. Os que vivem em comunidade já passaram por um período de adaptação e foram aprovados.
EU: Eu não tem trabalho, eu não tem lugar para morar. Viver com outros bom. Gente não precisa muito dinheiro.
HOMEM: Sei, sei. Mas aqui as coisas não são assim. O fato de você não ter casa nem dinheiro não é motivo para fazer parte da nossa comunidade. É preciso querer estar com Bhagwan. Entenda que isso se dá em outro plano, diferente do que você diz. Eu quase ousaria dizer que não estamos verdadeiramente prontos um para o outro.
O enterro(ou: Livrando-se do corpo)
Com uma única exceção, eu, Ali, fui rejeitado pelos funcionários de Deus, que me mandaram às favas, e censurado pelos monomaníacos da seita de Bhagwan, que zombaram de mim. Mas quero ser aceito em algum lugar e fazer parte dele. Já que entre os vivos sou repelido como um estranho e me impõem um silêncio de morte, desta vez vou tentar a sorte diretamente entre os mortos. É assim que me sinto... Como se diz: “A gente paga até para morrer!”
Como preparativo para a viagem ao reino dos mortos, visto meu sombrio temo de domingo e, para reforçar ainda mais a fragilidade, peço emprestado uma cadeira de rodas. Assim, com um amigo empurrando a cadeira, vou a uma das maiores e mais famosas agências funerárias da cidade.
Chego sem hora marcada. Meu acompanhante me empurra, loja adentro, onde a proprietária me recebe com cortesia. A mulher, aparentando quase quarenta anos, à primeira vista não se comporta de modo antipático. Exponho o problema: trabalhei numa indústria de amianto (a Jurid) e, por isso, estou com câncer nos pulmões. O médico informou-me que tenho dois meses de vida. Portanto, estou aqui para tratar pessoalmente de meu funeral e do traslado do corpo para a Turquia.
A conversa abaixo (ligeiramente reduzida, mas reproduzida de forma literal) é um testemunho do desumano, insensível e macabro culto à morte, nos dias de hoje, quando um ser ainda vivo é tratado como um objeto morto, algo não mais humano que deve ser removido como lixo. A proprietária da loja nem pergunta como estou, embora eu não tenha a aparência de um moribundo. Não deseja
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perder tempo com perguntas do tipo: “ Será que não há mesmo esperança?” Não quer demonstrar nenhuma espécie de compaixão e, portanto, vai direto ao assunto:
MULHER: Se o transporte for aéreo, o preço varia conforme o peso. O caixão é colocado dentro de um Container e pesamos tudo junto. Por isso é que há variação de preço, de acordo com o peso e o local para onde será transportado...
EU: Vai para longe, lá em Turquia. Montanhas Kas- gar, perto de fronteira com Rússia.
MULHER: Sei, mas o senhor precisa decidir se deseja transporte aéreo ou rodoviário. Se for de avião, além de levá-lo ao aeroporto de partida, precisaremos também pegá- lo no aeroporto de chegada, senão o senhor fica por lá. E se fizermos a viagem por terra, poderemos levá-lo direto ao local do enterro... Qual é o seu plano de seguro social?
EU: Plano normal.Mulher: Como ativo ou aposentado?EU: Mais de ano eu está doente.MULHER: O senhor continuou trabalhando depois
que adoeceu?EU: Sim. Indústria de amianto. Sabe, eles não dava
máscara para gente e...Mulher (interrompendo com impaciência): Isso não
vem ao caso agora. A questão é saber se o senhor quer ser transportado de viatura ou de avião. Se for de avião, vai depender do peso.
EU: Eu não é muito pesado. E médico falou que quando eu morre, daqui dois meses, eu vai pesar que nem criança. Todo dia eu emagrece pouquinho.
Mulher: Sei, sei. Mas a estatura continua a mesma, não é? O preço para crianças é bem inferior porque o caixão é menor. Colocamos o caixão dentro de um Container, para que nem os passageiros nem o pessoal do aeroporto saibam que estão transportando um cadáver.
EU: E se eu não precisa caixão? Se eu queima?Mulher: O senhor quer dizer se for cremado? Bom,
nesse caso a uma seria enviada pelo correio.A
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EU: E não custa muito dinheiro?Mulher: Sai bem mais em conta, porque o transpor
te é eliminado. Se o senhor for cremado aqui, isso custará uns 2 500 marcos, calculando tudo, menos as despesas do serviço postal e as taxas de expedição...
EU: E se meu irmão me leva em saco plástico1?Mulher: De jeito nenhum! Não entregamos isso as
sim. As cinzas devem ser levadas para o local do enterro mediante solicitação feita por alguém de lá e aprovada aqui. Só após a aprovação desse pedido a urna é liberada.
A mulher conhece muito bem seu serviço e leva a coisa na palma da mão. Ela empurra a cadeira de rodas para junto dos caixões. Quando lhe pergunto: “Qual mais bonito, vaso de cinza ou caixão grandão?” , ela se adapta com espantosa rapidez a meu desengonço lingüístico e tenta atrair meu interesse para os caixões de transporte, mais dispendiosos.
— O senhor quer dizer uma urna ou um caixão? Bem, já que me pergunta, um caixão. O senhor ficará mais satisfeito. O caixão é outra coisa! Traga-o aqui! — diz para meu acompanhante alemão e, curvando-se sobre mim, começa a tirar minhas medidas. Ouço o rangido da pesada porta corrediça do depósito onde estocam os caixões e, de uma sala ao lado, o barulho da serra da marcenaria. — É melhor o senhor mesmo dar uma espiada em todos e ver qual lhe agrada mais. Cada pessoa tem um gosto!
Isso me soa como se tivesse dito: “ Se quiser experimentar, pode deitar dentro deles para ver em qual se sente melhor” .
Ela bate levemente com o nó do dedo num caixão de carvalho bem modesto e informa:
1 Esta pergunta está muito longe de ser tão absurda quanto parece. Na verdade, foi-me inspirada por um acontecimento real, fora dos meios turcos. Recentemente, um industrial de Colônia, com filiais nos Estados Unidos, multimilionário e católico fervoroso, passou pela alfândega trazendo numa sacola de plástico as cinzas do irmão que morrera subitamente no exterior. Isso é, as cinzas esta- vam numa urna barata, colocada dentro de uma dessas sacolas de free shop (N. do A.).
— Este é o nosso modelo padrão. Claro que se o senhor desejar algo mais sólido, mais forte... O que acha deste outro? — Sua voz adquire um tom mais suave e in- sinuante, como se estivesse querendo me vender o leito nupcial para o resto de minha vida. — Autêntico carvalho alemão. Maciço e resistente. No momento é o mais resistente que temos. Todo de carvalho maciço. E internamente forrado de seda!
— Eu pode ver dentro?Ela se mostra um pouco constrangida como se tives
se lhe pedido para experimentar a cama de casal bem no meio da loja de móveis.
— Willi, venha me ajudar! — grita para o sócio e/ou marido, que se encontra na sala ao lado.
Willi vem a seu encontro. Ele se dá ares de importem- te, embora pareça um pouco constrangido.
— Trata-se de um traslado para a Turquia. Èsse senhor só tem dois meses de vida e quer ver o caixão por dentro. — É assim que sou apresentado.
Os dois levantam a pesada tampa do caixão. Por dentro, a madeira sem acabamento.
— E onde seda? — reclamo. — Senhora disse tudo macio dentro.
Eles trocam um olhar igual ao de dois impostores apanhados com a boca na botija.
— Vamos forrá-lo, pode ficar tranqüilo — garante Willi, com um ar sério. — Dou-lhe minha palavra.
— E quanto custa?— Custa 4 795 marcos — ele responde, depois de con
sultar um catálogo.Passo a mão de leve pelo caixão e dou uma pancadi
nha com o nó do dedo na madeira que ressoa.— E dura bastante?— Claro que sim! É um trabalho de marcenaria de
primeira qualidade. Leva uns cinco, seis anos para se desintegrar — tranqüiliza-me.
Mas ainda não encontrei um caixão que me agrade.
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Como em vida nunca me deram oportunidade de escolha, agora que vou morrer quero ao menos poder optar.
— Não tem caixão menos triste... não parecido com caixão? Coisa colorida, um pouco alegre. Entende? Eu sempre morou em lugar escuro, úmido... Agora eu gostava caixão bonito...
Nova troca de olhares entre os dois, que logo deixam de lado a consternação em nome do profissionalismo.
— Bem, colorido é um pouco difícil. Não é muito comum. Mas que tal este aqui? — pergunta Willi.
A mulher empurra a cadeira de rodas para perto de uns caixões de mogno, envemizados e reluzentes. Cada um mais medonho e kitsch que o outro.
EU: Plástico?WILLI (com ímpeto): Mogno puro, autêntico. Um
dos modelos mais originais e valiosos que possuímos!EU: E desenho?WILLI: Como? Ah! O senhor quer dizer entalhe? Cla
ro! Que tal este modelo francês? Está em oferta. Custa apenas 3 600 marcos. Antes, custava mais de 4 000.
EU: E veio mesmo França?Willi: Veio! É um artigo francês legítimo.Eu*. Qual mais bonito?WILLI: Bem, é uma questão de gosto. Este aqui tem
um estilo bem diferente.EU: E gente com dinheiro, alemão, que caixão leva?WILLI: A maioria leva caixões alemães, de carvalho
ou coisas do gênero.EU: E quem leva desse aí?Willi: Esse tipo de caixão é mais usado em transpor
te para o exterior. Os franceses e os italianos costumam comprar..
EU: E dura muito?WiLLi: Muito! Mas, para a Turquia, é necessário ou
tro caixão, de zinco. Uma espécie de embalagem de zinco...Eu.* Ah! Eu entende. Lata...WlLLi: Hum... Soldamos um no outro, com o senhor
dentro, é claro! Caso contrário, não deixam passar pela
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fronteira. O serviço é feito aqui mesmo e só depois colocamos a tampa de madeira.
EU: E quanto custa?WlLLl: Vejamos... Com o reforço de zinco, mais a
solda... uns 6 000 marcos.EU: E desconto?Willl Bem, podemos conversar quanto ao preço.
Desde que o senhor já o encomende e pague adiantado, podemos dar um desconto de 57o. O preço ficaria então em 5 700 marcos. Mas só se o senhor pagar adiantado.
Eu (perplexo): Mas, e se eu não morre, depois tudo? Eu recebe dinheiro de volta?
WlLLl: Não, não fazemos devolução da quantia. O senhor compreende, não? É um desconto especial que estamos lhe dando. Mas... se bem entendi... o senhor tem mesmo certeza de... de só ter dois meses... (Gagueja. Não consegue pronunciar em minha frente a palavra morte.) E, além disso, ainda precisamos saber para que local da Turquia devemos enviar o caixão. Temos de calcular o preço do transporte.
EU: Fica bem alto, montanha em caminho para Rússia. País bonito, senhor não acha? Senhor passar férias lá, com minha família. Não precisa pagar nada.
Ele não demonstra a menor emoção e não se comove com minha oferta.
— De qualquer modo, não fazemos o transporte pessoalmente. Contratamos um motorista e precisamos calcular... — Faz uma conta rápida de cabeça — ... Sim, 1,30 marco por quilômetro. Ida e volta, é claro! — Pergunta- me onde fica Kasgar e, depois de fazer as contas, chega à quantia de aproximadamente 10 mil marcos só para o transporte de automóvel.
— Mas se eu vai para lá agora, vivo, então mais barato, não?
Ele fica desconcertado.— Isso não é da nossa alçada! — suspira. — Só po
demos assumir nosso serviço com o atestado de óbito assinado por um médico. E, caso o senhor deseje ser cremado, precisaremos também de uma autorização judicial.
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— Ah! Tanto faz! Se gente morre, está morto mesmo! — Em seguida aponto para uma uma muito bonita e elegante, exposta ali perto, bem diferente daqueles potes horríveis onde se colocam as cinzas. — E aquele? Eu não pode ficar dentro, depois queimado?
— Não, pelo amor de Deus! É impossível! É uma peça de cerâmica, só para exposição. Não está à venda. É um objeto antigo.
Já entendi tudo. Enquanto meu acompanhante me leva embora, tenho certeza de que a loja bate um fio para a previdência social e discretamente tenta se informar sobre a indenização do seguro por morte. Para só depois ver se daria pé...
Atolado na lama(ou: “Longe de casa e fora da lei”)
Não acredito que sçfa possível conseguir mudanças profundas sem ter metido os pés na lama Junto com os outros. Desconfio terrivelmente de toda ação “externa", pois corre o risco de não passar de palavrório vazio.
(Odile Simon, Diário de uma operária.)
Estou tentando arrumar um emprego nas indústrias Jurid em Glinde, perto de Hamburgo. Alguns amigos turcos contam-me que os postos mais insalubres são ocupados exclusivamente por turcos. Lá dentro as normas de segurança — rigorosas para a manufatura de amianto — não valem nada. Com o vento, o pó dessa fibra, cancerígeno e letal, propaga-se pelo ar. Raramente os trabalhadores usam máscaras de proteção. Conheci alguns ex- operários que, depois de um ano e meio ou dois, contraíram graves lesões broncopulmonares. E até hoje tentam provar, sem sucesso, que tais lesões foram provocadas pelo tipo de serviço que executavam.
Deparo-me, porém, com um problema: a admissão de operários está suspensa no momento. É verdade que alguns conseguem ser contratados, lançando mão de dois expedientes: subornam os chefes de equipe com dinheiro vivo ou os “presenteiam” com autênticos tapetes turcos ou moedas de ouro. Trato logo de conseguir de um nu- mismata uma moeda de ouro do antigo Império Otoma- no, um verdadeiro tesouro de família. No entanto descubro sem querer que há outro modo de obter o emprego: depois de algum tempo, as indústrias August-Thyssen- Hütte (ATH) costumam demitir parte de seu pessoal efetivo e contratar, por intermédio de uma empreiteira, trabalhadores temporários. Assim usufrui de maiores vanta
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gens: não enfrenta muitos obstáculos na contratação e, menos ainda, na demissão; e gasta bem menos com a aquisição desses novos trabalhadores, quase sempre mais dóceis. Desde: 1974, cerca de dezessete mil trabalhadores efetivos foram dispensados e muitos deles passaram a fazer parte do quadro de pessoal das empreiteiras. Só em Duisburg, a Thyssen mantém contrato com quatrocentas empresas desse tipo.
Faço amizade com um operário turco de 27 anos, encaminhado para a empreiteira Adler pela agência oficial de empregos. Descubro que a Adler “vende** os operários para a empresa Remmert, a qual, por sua vez, repassa- os para a ATH. Esse meu amigo turco descreve as condições de trabalho e os métodos de exploração — coisas incríveis para quem não as presenciou nem dispõe de provas concretas. Sua descrição nos faz voltar à época mais sombria do capitalismo selvagem. Mas por que vaguear no tempo? O horror está bem aqui!
Levantar às três da madrugada, para estar às cinco no local indicado pela Remmert: a saída da rodovia Ober- tiausen — Buschhausen. A Remmert é uma empresa em expansão. Em seu letreiro está escrito em verde: PRESTAÇÃO De Serviços. Ou seja, a Remmert elimina sujeira de toda espécie. Quantidades grandes ou pequenas de pó, lama e dejetos tóxicos, óleos fétidos e pútridos, graxa, limpeza de filtros na Thyssen, na Mannesmann, na Man, onde quer que seja. Só o estacionamento da Remmert está avaliado em 7 milhões de marcos. A Adler está integrada à Remmert como aquelas bonecas russas: uma dentro da outra. A Adler nos vende à Remmert, que nos aluga para a Thyssen. Os dois sócios na negociata dividem o grosso do dinheiro pago pela Thyssen. Conforme a tarefa, a quantidade de pó e sujeira ou a periculosidade, o preço varia entre 35 e 80 marcos por hora e por pessoa. A Adler paga uma esmola de 5 a 10 marcos àqueles que se matam de trabalhar para ela.
Muitas vezes o pessoal da Remmert e da Adler é empregado para atuar na produção; na coqueria, por exem-
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pio, onde trabalham junto com os operários da Thyssen. Além do mais, a Remmert também fornece pessoal de limpeza e manutenção. Há mais de seiscentas faxineiras da Remmert trabalhando nas grandes indústrias em diferentes cidades da República Federal da Alemau£ra>~
Ao lado de um velho e enferrujado microônibus prestes a partir está parado o encarregado que anota numa lista os nomes dos trabalhadores.
— Novo? — pergunta-me secamente.— Sim — respondo.— Nunca trabalhou aqui? — Não sabendo que res
posta poderia influir positivamente na contratação, resolvo encolher os ombros; ele tenta me ajudar: — Não entendeu o que eu perguntei?
— Novo — respondo, repetindo sua primeira palavra.— Vá se juntar aos colegas — diz, apontando para
o microônibus.Só isso. Do modo mais simples sou contratado para
trabalhar numa das mais modernas indústrias metalúrgicas da Europa. Ninguém me pede documentos ou pergunta qual é meu nome. Tampouco minha nacionalidade parece despertar algum tipo de interesse nas pessoas que trabalham nessa empresa de fama mundial — pelo menos, até o presente momento. Por enquanto, tudo vai muito bem.
Nove estrangeiros e dois alemães amontoam-se no microônibus. Os alemães estão instalados no único banco do veículo. Já os estrangeiros estão sentados no chão de metal, gelado e sujo de óleo; afastam-se para dar-me lugar. Um rapaz de uns vinte anos de idade pergunta-me em turco se sou seu conterrâneo. Respondo em alemão: “Nacionalidade turca” . Explico-lhe que minha mãe era grega e que fui criado na Grécia, no Pireu. “Meu pai era turco. Abandonou minha mãe quando eu tinha um ano.”
E assim justifico meu conhecimento praticamente nulo da língua turca. Engolem minha história, que resistirá na Thyssen durante os próximos seis meses. Caso resolvam
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me perguntar sobre o local onde passei a infância, acho que não terei problema. Posso falar um pouco do Pireu porque em 1974, durante a ditadura militar fascista, estive preso lá por dois meses e meio.1 Só uma vez me vi em dificuldade: alguns colegas turcos quiseram a todo custo ouvir o som da língua grega. O que me ajudou foi um daqueles meus delírios na época de estudante, quando, em vez da língua francesa, preferi estudar grego clássico. Até hoje sei de cor trechos de A Odisséia: “Ândra moi énepè moúsa...” (“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou...”). Ninguém desconfiou de nada, embora o grego clássico esteja tão longe do moderno quanto o alemão antigo do contemporâneo.
Lotado, batendo os pinos e chacoalhando inteiro, o ônibus se põe em movimento. A cada curva, o banco, que está solto, choca-se contra os imigrantes sentados no chão. O aquecimento não funciona. A porta traseira não fecha e alguém a prendeu com um arame; se uma freada brusca jogar alguém para o fundo, a porta poderá ceder e a pessoa irá parar no meio da rua. Depois de quinze minutos, a assombrosa viagem chega ao fim. Sacudidos e enregela- dos, finalmente estamos diante do portão 20 da Thyssen. O encarregado entrega-me um cartão de ponto; um dos homens da segurança me dá um passe de ingresso e fica escandalizado ao ouvir meu nome.
— Mas isso não é nome, é doença!Sou obrigado a soletrar várias vezes:— S-i-g-i-r-l-i-o-g-l-u.Ainda assim, ele erra e escreve “ Sinnlokus” 2. E na
coluna reservada ao primeiro nome. Como sobrenome, transcreve meu segundo prenome: Levent.
Como é que alguém pode ter um nome desses?! — resmunga, furioso. Parece ignorar que seu próprio nome
1 Em 1974 Giinter Wallraff foi preso em Atenas por distribuir panfletos contra a ditadura; torturado e condenado a longa pena de prisão, foi libertado após a queda dos coronéis (N. do E.).2 Em alemão Sinn significa “ sentido” e Lokus, “ latrina” (N. do T.).
(Symanowski ou algo parecido) também é estranho para um turco e sugere certa ascendência polonesa.
Os operários poloneses, chamados para a região do Ruhr no século passado, também sofreram segregação logo no início da imigração e foram obrigados a viver em guetos, exatamente como acontece agora com os turcos. Havia cidades, na região do Ruhr, em que mais da metade dos habitantes eram poloneses que conservaram sua língua e sua cultura.
Tenho um pouco de dificuldade para bater o ponto, o que faz com que um operário alemão se atrase alguns segundos. “Lá na sua terra, na África, vocês devem bater o ponto com a cabeça!*’, diz ele.
Mehmet, um operário turco, ensina-me a introduzir o cartão no relógio. Percebo que a observação do operário alemão também atinge os outros imigrantes. Vejo isso nos olhares envergonhados e resignados. Mas nenhum deles ousa retrucar. Freqüentemente fingem não ouvir os insultos e procuram afastar-se dos alemães. Temem que esse tipo de provocação acabe em pancadaria. A experiência tem mostrado que a culpa sempre recai sobre os imigrantes, o que é um bom pretexto para serem demitidos. Por isso preferem ficar calados e agüentar as injustiças dia após dia, afastando-se para não dar margem a provocações.
O ônibus prossegue seu percurso por dentro do parque industrial. Depois de alguns minutos de sacolejos, desembarcamos perto de um barracão que serve como ponto de encontro. É aqui que, com chuva, neve ou frio, deveremos esperar, todos os dias, a chegada do “xerife** com seu Mercedes. O “xerife** é o supervisor-chefe, tipo grosseiro e atarracado que não se digna a levantar uma palha. Sua tarefa consiste exclusivamente em dividir o pessoal em grupos, distribuir os serviços e cuidar para que todos trabalhem. Chama-se Zentel e deve ter entre 30 e 35 anos. Faz parte do quadro de pessoal da Remmert. De vez em quando é convidado para as festas de Adler. Aliás, dizem que Zentel é dedo-duro e confidente de Adler.
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Já passa um pouco das seis. Os operários do turno anterior partem nos veículos da Remmert. Duros de frio, ficamos na escuridão. O barraco não passa de um depósito de ferramentas, onde são guardados carrinhos de mão, pás, picaretas, aparelhos de ar comprimido e bombas de sucção. Não há espaço para nós.
Ao redor, um barulho inconstante, proveniente das oficinas vizinhas: estrondos, rugidos e silvos estridentes. O céu é um tremular de nuvens avermelhadas; não se consegue vê-lo daqui. No alto das chaminés, cintila uma luz azulada. Uma cidade industrial de fumaça e fuligem que se estende até o horizonte, até as zonas residenciais vizinhas. São vinte quilômetros de comprimento e quase oito de largura.
Percebo certa agitação entre os trabalhadores. O “xerife” (que lembra muito um mercenário, com sua roupa cáqui) abaixa ligeiramente o vidro do carro e começa a fazer a chamada. Todos os dias modifica a composição dos grupos. Está sempre colocando ou tirando pessoas, impedindo, assim, que os grupos se tomem coesos. E isso faz com que surjam rivalidades e conflitos dentro deles. Não sei dizer se seu método resulta de arbitrariedade, negligência ou calculismo. Só sei que, numa equipe em que as pessoas têm pouco contato, o espírito de concorrência, a desconfiança e o temor pairam acima de qualquer comportamento solidário.
Ouço chamar meu nome. Alguém me puxa com força pela orelha. É o encarregado, que desse modo tenta indicar o grupo ao qual devo me reunir. Sorri ironicamente para mostrar que não está irritado. Somos tratados como animais domésticos; ou melhor: como burros de carga.
Desembarcamos numa torre de extração e subimos alguns andares na penumbra, munidos de pás, picaretas, carrinhos de mão e aparelhos de ar comprimido. Nossa tarefa: retirar as placas de terra que se formam sob as esteiras rolantes. Venta muito e a temperatura deve estar a uns dez graus abaixo de zero. Decidimos por conta própria trabalhar bem depressa para não sentir tanto frio. Uma hora
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depois, quando o encarregado se afasta (como pouco trabalha, padece muito mais com o frio), resolvemos fazer uma pequena fogueira para nos aquecer. Falar é fácil... Ao redor elevam-se as chamas da fundição; o metal em fusão espalha-se automaticamente nos vagões gigantescos, que parecem transportar bombas poderosíssimas. É como lava incandescente, correndo em pequenos canais. Ouvimos o borbulhar do metal dentro de cubas altas como uma casa de vários andares. Mas ali na torre de extração precisamos de muito esforço e imaginação para fazer um simples foguinho. Tiramos pedaços de coque das esteiras rolantes, encontramos algumas tábuas — que os outros colegas usavam como assento durante o horário de descanso — e as despedaçamos com as perfuratrizes. Ainda falta papel. Acabamos achando uns maços de cigarro vazios e uns lenços de papel sujos de ranho. Com o auxílio do aparelho de ar comprimido, aos poucos avivamos a brasa que fizemos dentro de um dos carrinhos de mão. Porém não temos tempo para desfrutar o calor. O encarregado aparece e ordena: “Todos para baixo! Tragam as ferramentas. E rapidinho!” Tentamos salvar nosso fogo, mas não conseguimos empurrar o carrinho de mão, pois havia esquentado demais. Passo a entender a dificuldade dos homens da Idade da Pedra em manter o fogo aceso — seu bem mais precioso e sagrado.
E lá vamos nós, de volta ao velho ônibus. Agacha- dos e amontoados, sacolejamos na escuridão, por vezes traspassada pelos clarões pálidos das oficinas. Desembarcamos em Schwelgem, no setor de trituração do coque, do outro lado do parque industrial. Descemos vários andares nas profundezas da terra; a luz infiltra-se cada vez mais fraca. O ar toma-se mais carregado de pó, mais insuportável. Isso, no entanto, é só o começo. Entregam- nos uma pistola de ar comprimido para retirarmos a poeira que se acumula em grossas camadas nos vãos das máquinas. Todo aquele pó eleva-se no ar em segundos e em tal quantidade que não conseguimos enxergar nossas próprias mãos; entra-nos pelas narinas e pela boca asfixiando-nos.
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Cada inspiração é um martírio. E não há como evitar, não conseguimos prender a respiração por muito tempo. O trabalho precisa ser feito. O encarregado fica parado no alto da escada, onde sopra um pouco de ar fresco. Como um policial vigiando prisioneiros, grita: “Mais rápido! Se trabalharem mais depressa, podem terminar o serviço em duas ou três horas e sair para respirar bastante” .
Três horas! Mais de três mil inspirações, e os pulmões estarão inteiramente cheios de pó de coque. Como se não bastasse, ainda há as emanações do gás de coque, que provoca tontura. Pergunto pelas máscaras de proteção, e Mehmet explica: “Eles não dão máscara para a gente, porque acham que o trabalho ia ser mais lento e também porque o chefe diz que não tem dinheiro para essas coisas!” Mesmo os operários que trabalham aqui há mais tempo demonstram um pouco de medo desse serviço. Helmut, um alemão de trinta anos que aparenta cinqüenta, faz o seguinte relato: “ Há um ano atrás, seis colegas morreram por causa das emanações de gás na área do alto-fomo. Quando começaram a sentir o cheiro, entraram em pânico e, em vez de descerem, subiram. Foi onde erraram, porque o gás também sobe. Um grande amigo meu trabalhava naquela equipe. Ele conseguiu se salvar porque, um dia antes, tinha tomado um porre tão grande que não conseguiu sair da cama para ir trabalhar” .
Enquanto retiramos a poeira com as pás e a jogamos dentro de sacos plásticos, no meio de toda uma nuvem, os montadores da Thyssen, que trabalham alguns metros abaixo de nós, passam correndo em direção ao ar livre. Um deles chega a gritar: “Vocês são burros! Como é que alguém consègue trabalhar no meio de tanta sujeira?” Meia hora depois, um encarregado da segurança honra-nos com sua visita. Tapando o nariz: “Os operários estão reclamando. Dizem que não podem trabalhar com toda essa imun- dície que vocês estão fazendo. Andem logo com isso!” E retira-se rapidamente. Trabalhamos até quase o final do turno. A última hora é reservada ao transporte dos sacos plásticos cheios de pó. Com eles nas costas, subimos a es-
\\
cada de ferro e vamos jogá-los num tambor. Embora estafante, considero essa parte do trabalho uma redenção— pelo menos podemos respirar um pouco de ar “puro” .
Pausa de vinte minutos para descanso. Vamos nos sentar na escada de ferro, onde há um pouco menos de pó. Os trabalhadores turcos percebem que eu não trouxe nada para comer. Insistem em repartir seus sanduíches comigo. Ne- dim, o mais velho deles, oferece-me um pouco de chá quente, qué traz numa garrafa térmica. Dividem, entre si, o pouco que têm e conversam num tom suave e amistoso — o que raríssimas vezes vi entre os trabalhadores alemães. Outra coisa que me chama a atenção é o fato de sentarem-se longe dos alemães durante o horário de descanso. E quase nunca conversam em turco. Normalmente falam um alemão sofrível e preferem ficar calados, enquanto os alemães contam bravatas. Mais tarde Nedim me explica por que quase não conversam em turco: “É que os alemães pensam que a gente está falando mal deles. E uns acham que a gente fica mais forte se falar turco. Os alemães querem entender tudo para poder mandar melhor na gente*’.
Tempos depois vejo Alfred, um dos porta-vozes dos alemães, ficar furioso durante um intervalo de descanso ao ouvir os operários turcos conversando em sua língua: “ Se querem conversar, que seja em alemão! Ainda falamos alemão na Alemanha! Vocês vão ter muito tempo para falar essa língua de merda quando voltarem para o seu país de merda! E espero que isso não demore muito!”
Mais tarde conto a Nedim a cena que presenciei, e ele me mostra um pequeno cartaz que um colega turco havia encontrado na Casa da Juventude, uma instituição municipal situada em Lünen. O cartaz contém um texto intitulado “Regras de conduta para visitantes estrangeiros” , no qual se lê:
• “Na presença de alemães ou pelo menos ao discorrer sobre alemães [deve-se] falar alemão.
• “Na Alemanha temos por hábito não nos apresentar diante dos outros durante dois dias após comer alho. Esperamos o mesmo de nossos hóspedes.
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• “Alguns jovens estrangeiros julgam-se no direito de usar a Casa da Juventude só porque os pais ou um parente qualquer recolhem impostos na Alemanha; isso só é verdade se os jovens estão integrados em nossos hábitos e costumes — e apenas sob essa condição!”
Na Thyssen não há tais‘‘regras de conduta* *, embora muitos operários alemães insistam em impô-las aos colegas turcos, que em geral se submetem para não “provocar**.
No dia seguinte, vamos trabalhar numa altura de dez metros, em campo aberto, com temperatura de dezessete graus abaixo de zero. Por toda parte, tabuletas com caveiras desenhadas e as inscrições: Proibida a Entrada de Pessoas Não-Autorizadas, Cuidado: Emanações DE GÁS!, e, em certos locais: OBRIGATÓRIO o USO DE Máscaras de Proteção.
Ninguém tinha nos prevenido sobre qualquer tipo de perigo e também não havia nenhuma “máscara de proteção**. Nem mesmo sabíamos se fazíamos parte das “pessoas autorizadas** ou das “não-autorizadas**.
Sobre as plataformas metálicas, nossa “tropa de choque** é obrigada a retirar, com pás e picaretas, montes de lama semicongelada que transbordam de canos gigantescos.
Nesta altura o vento é glacial; temos as orelhas gela-: das e os dedos completamente entorpecidos, apesar das luvas de trabalho. Os próprios operários da Thyssen não são obrigados a trabalhar aqui fora sob tal temperatura; e o pessoal dos canteiros de obras recebe pagamento extra devido ao mau tempo. Mas para nós nada! Atacamos a lama com as picaretas, e pequenas lascas nos batem em cheio no rosto. Deveríamos estar usando óculos de proteção, mas quem se atreveria a pedi-los? Uma fumaça compacta eleva- se de tanta imundície e nos sufoca, por vezes nos cega. Transportamos a lama nos carrinhos até as calhas. As pás vergam continuamente sob o peso do lixo e até os carrinhos de mão precisam ser desentortados a golpes de pás e picaretas. Mal conseguimos ouvir o som da própria voz
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devido ao barulho infernal proveniente das salas das máquinas, situadas nas proximidades. Não há necessidade de vigilância aqui em cima. O encarregado é o primeiro a desaparecer; com certeza está abrigado em alguma cantina. Trabalhamos num ritmo louco, porque, se pararmos, não agüentaremos o frio. De vez em quando, alguém do grupo vai se refugiar numa pequena sala de máquinas. O barulho lá dentro é ensurdecedor, como se estivéssemos no meio das cataratas do Niágara. Mas as máquinas pelo menos são quentes. Nós nos apertamos contra elas, abraçando-as, para receber um pouco de calor. Corremos algum risco, pois há uma biela que gira permanentemente e, a menor falta de atenção, pode decepar um dedo. Assim que encosto num lugar impróprio, a máquina põe-se a estalar, a chiar de modo inquietante, a soltar faíscas como se fosse explodir no instante seguinte.
Depois, voltamos para nosso trabalho forçado, batendo o queixo, roxos de frio. Ao cabo de seis horas, Jus- suf, um operário tunisiano, dá a palavra final: “ Inferno de gelo, isto aqui!’* E completa: “Antigamente os escravos eram mais bem tratados. Tinham mais valor que nós. O pessoal cuidava para que durassem muito tempo. Com a gente não. Tanto faz se a gente se arrebenta ou não. Tem um montão de homens lá fora querendo nosso lugar*’.
Um engenheiro de segurança da Thyssen está passando por ali. Anda de um lado para o outro, ao redor dos canos, com um aparelho na mão. Bate no mostrador do aparelho e murmura:
— Não é possível! — Em seguida, olha para nós, assustado.
Aproximo-me e pergunto:— Que caixinha essa? Que tem dentro?— E um aparelho para medir o gás. Vocês não têm
um? Então não deviam estar trabalhando nesta área.Começa a explicar como funciona o aparelho: quan
do o ponteiro ultrapassa uma determinada marca, é sinal de perigo iminente; deve-se abandonar a área o mais rápido possível, caso contrário pode-se até desmaiar. Enquanto
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fala, percebo que o ponteiro de seu aparelho se mantém exatamente além da marca; chamo-lhe a atenção para isso, mas ele me garante que o aparelho está com defeito, pois não é possível o ponteiro registrar essa marca. Vai buscar outro e meia hora depois está de volta. E mais uma vez o ponteiro insiste em ultrapassar a marca permitida. Irritado, dá uns tapas na caixinha, enquanto diz:
— Não pode ser! Esta droga está com o mesmo defeito.
— Está? — pergunto, olhando-o com um ar desconfiado.
E ele me tranqüiliza:— Tudo bem! Mesmo que o aparelho estivesse fun
cionando bem, não haveria motivo para pânico. O vento empurra o gás para longe. — Dito isso, vai embora, carregando sua caixinha mágica embaixo do braço. Quanto a nós, ficamos ali, consolando-nos com o vento glacial que nos protegerá das emanações de gás..
Semanas depois, no mesmo local, Helveli Raci, um dos trabalhadores turcos, participa de um episódio semelhante: “A gente também tinha um aparelho desses. De repente, ele começou a apitar. Perguntei o que queria dizer todo aquele barulho, e me disseram que quando o aparelho começa a apitar é porque está escapando gás. Daí eu disse que o aparelho estava apitando, e isso queria dizer gás; por que a gente não saía dali? O chefe disse que era para continuar trabalhando. E a gente continuou. Daí o chefe foi embora com o aparelho. Tempos depois, ele voltou, trazendo o tal aparelho., que logo começou a apitar de novo. Daí eu disse que alguma coisa estava errada, mas ele falou que o aparelho devia estar com defeito. E foi embora de novo. Depois voltou e tentou fazer o aparelho parar de apitar. Mas o aparelho não parava. Ficava apitando e acendia umas luzes. E isso durou o turno todo. Alguns colegas começaram a passar mal, mas a gente foi obrigado a continuar trabalhando. E nem deram máscara de proteção para nós. É assim. A gente, que é de empreiteira, fica ali, trabalhando e respirando tudo aquilo,
tranqüilamente, até se arrebentar. Eles não querem saber de nada, só que a gente faça o serviço".
O regulamento da Thyssen exige que usemos sapatos com biqueiras de aço e capacetes de proteção. A legislação determina que ambos, além das luvas de trabalho, sejam fornecidos por Adler, que, no entanto, trapaceia em tudo, nas coisas grandes como nas pequenas. Vive “ economizando**. Não é à toa que seu ditado preferido é: “De grão em grão a galinha enche o papo” . Quando o pessoal escasseia, os encarregados e supervisores da Thyssen fazem vista grossa e não se importam que os operários enviados por Adler trabalhem de tênis. Estamos sujeitos a todos os tipos de perigo: detritos que caem sobre nós, carrinhos de mão sobrecarregados, empilhadeiras que circulam por toda a parte. Durante o tempo em que trabalhei na TTiyssen, nunca usei sapatos de proteção, como determinam as normas de segurança. E muitos outros operários tampouco usaram. Foi muita sorte eu não ter sofrido nenhum acidente.
Conseguimos luvas de trabalho fuçando nos tambores de lixo. Em geral estão sujas de óleo e rasgadas. Pertencem aos operários da Thyssen que as jogam fora tão logo recebem luvas novas.
Quanto aos capacetes, devemos comprá-los. A não ser que um de nós tenha a sorte de encontrar um capacete velho, todo estragado. As cabeças dos operários alemães são mais valiosas e merecem mais proteção que as cabeças dos imigrantes. Por duas vezes, o “xerife** Zentel arrancou meu capacete para dá-lo a um alemão que havia esquecido o seu. Na primeira vez protestei:
— Ei, momento. Capacete meu! Eu comprou!Mas Zentel logo me fez ver qual era o meu lugar:— Nada aqui é seu. Quando muito aquele monte de
lixo! No fim do turno você vai receber o capacete de volta.É assim: expropriam-nos sem consulta prévia.Na segunda vez, fui escalado para trabalhar com um
alemão que estava sem seu capacete, dado de graça pela Remmert. E novamente tive de oferecer minha cabeça.
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Thyssen informaO arupo Thvssen teve um
bom desempenho no exercício 1984/85. Os fatores de expansão e crescimento mantiveram-se essencialmente nos mesmos patamares do ano anterior. Os setores retardatários puderam recuperar-se. As transações da Thyssen-Weft no exterior cresceram 6% no primeiro semestre. Todos os ramos de atividade da empresa tiveram saldo positivo. Os resultados obtidos pelo grupo no primeiro semestre são comparativamente bem melhores que os do mesmo semestre do ano anterior. Por ocasião da última reunião administrativa, Thyssen anunciou a renovação do pagamento de um dividendo para o corrente ano.
Na siderurgia a produção estabilizou-se no nfvel alcançado no ano anterior. Os preços puderam restabelecer- se paulatinamente nos últimos meses, porque a elevação do
dólar contribuiu também para um aumento considerável no preço das matérias-primas. As transações cresceram 11% no primeiro semestre.Os aços Thyssen deverão ter novamente um saldo positivo no exercício 1984/85.
Atualmente, todas as empresas de Acos Especiais Thvssen estão com suas atividades em nfvel normal ou melhor. Até o momento, as transações cresceram 8%. Os aumentos consideráveis, previstos para as ligas de metal cotadas em dólares, deverão ser suportados. No geral, Aços Especiais Thyssen esperam ter novamente resultados positivos no exercício 1984/85.
No âmbito dos bens de investimento e de manufatura. foi registrado no primeiro semestre um acréscimo global de transações da ordem de
' 7%. Na Indústria Thvssen o volume de encomendas está em forte expansão. Isso e mais os ajustes de programa dos
últimos anos consolidam a rentabilidade. A Indústria Thyssen prevê um saldo positivo para o exercfcio 1984/85. Na Budd. a maior parte das empresas continua em plena atividade e os resultados serão nitidamente positivos. A direção do setor de ferrovias americanas agora está com a Transit America Inc. Os encargos provenientes dos antigos contratos deficitários já foram levados em consideração no balanço do último ano. As Pedreiras do Reno mantêm os resultados positivos.
O setor Comércio e Prestações de Serviço iá há alguns anos tem ampliado consideravelmente seus negócios com o exterior. No primeiro semestre, as transações tiveram um aumento de 6%.
— Capacete meu. Eu não pode dar. Se eu não tem capacete, vai para rua.
Mas Zentel apareceu e ordenou:— Dê o capacete para ele. Senão eu é que ponho vo
cê no olho da rua. E ande logo!Tive de obedecer e trabalhei o dia inteiro sem capa
cete, num setor da Brammenstrasse onde fragmentos de minério incandescente caíam com estrondo a alguns metros de distância. Se um deles caísse sobre mim, no mínimo provocaria queimaduras graves.
Werner, o operário alemão, aceita com naturalidade que sua segurança dependa de minha insegurança. Digo- lhe isso, mas ele se contenta em responder: “Não posso
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TCWÍ m
A receita permanece estável, e a empresa fechará o ano com lucro.
Quanto às participações ainda não consolidadas pelo balanço, a Thyssen também espera resultados positivos.
Thyssen-Welt 1983/84 (1.° de outubro de 1983 — 30 de setembro de 1984)______
Total de transações dos setores industriaisAço 10,3 BM'Aço especial 3,5 BMBens deinvestimentoe manufatura , 9,8 BMComércio eprestaçõesde serviço 17,6 BMTotal detransações dogrupo Thyssen 41,2 BMTransações internas 8,8 BMTotal detransações daThyssen-Welt 32,4 BM
Empregados efetivos em mécüa anual
Do Balanço
132.950
Total do balanço Capital próprio Investimentos Amortizações Superávit anual
19,2 BM 2,6 BM
986 MM*' 1.120 MM
181 MM
' BM » baiões da marcos * * MM *• nrâhões de marcos
THYSSEN SOCIEDADE ANÔNIMA
fazer nada. Só faço o que me dizem. Você bateu em porta errada, vá se queixar em outra freguesia” . Pouco depois, tem a oportunidade de demonstrar seu desprezo por mim: “Esse pessoal da Adler não vale nada, absolutamente nada! Ninguém pode levar vocês a sério. Eu não mexeria uma palha se recebesse a miséria que vocês ganham” . Na realidade, o que ele está me dizendo é o seguinte: “Você não tem nenhum direito aqui. Oficialmente, você não existe: não tem documentos, nem contrato de trabalho, nem nada” . É por isso que me olha com desprezo. É alemão e trabalha para a Remmert: é um privilegiado, portanto. Tem direito a horas extras e descanso semanal remunerados; seu salário bruto é de 11,28 marcos por hora. (Evidente-
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mente, a Remmert não paga adicional de insalubridade, ainda que seus empregados trabalhem a maior parte do tempo manipulando todos os tipos de gordura imunda e de óleo usado e fétido e ainda engulam todo aquele pó de mineração.)
Nós, os empregados da Adler, fazemos o mesmo serviço por um salário bem menor — muito menor, diga-se de passagem.
Alugo um apartamento de um cômodo e meio na Die- selstrasse em Duisburg. Assim, aproximo-me um pouco mais de Ali; quero viver realmente como um operário turco vive na Alemanha Ocidental, e não ficar “pulando” de emprego em emprego. Cada vez mais me identifico com meu papel. Já me peguei, durante o sono, falando um alemão canhestro. Agora sei quanta energia é preciso ter para suportar provisoriamente aquilo que meus colegas imigrantes suportam ao longo de suas vidas. Não foi muito difícil arranjar esse apartamento: Bruckhausen é um bairro que está morrendo. Durante muitos anos praticamente só turcos moravam aqui, mas a grande maioria voltou para seu país. Muitas casas estão abandonadas ou tão velhas que não servem mais para habitação. Meu apartamento não tem pia nem chuveiro; o banheiro é coletivo e fica no corredor. Pago 180 marcos de aluguel. Com uma pequena reforma pude me permitir o luxo de ter uma banheira bem no meio do quarto, instalada por um amigo meu.
Procuro tornar meu novo lar mais confortável. Consigo arranjar dois caixotes de lixo para colocar no jardim. Os vizinhos viviam atirando lixo no jardim, considerando que isso não poderia piorar a “qualidade de vida” do local. Bruckhausen fica bem perto da Thyssen. Se alguém desejar envelhecer neste bairro precisará ter uma saúde de ferro. Por todos os lados há cartazes instruindo a população para chamar um certo número de telefone, caso o mau cheiro se torne insuportável. Mas ele é quase sempre insuportável.
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Apesar de tudo, é em Bruckhausen que eu quero me instalar. Aqui ainda não estou completamente só. Quem sabe, num dia de verão, eu dê uma festa para os vizinhos e amigos no pequeno jardim que passei a conservar...
“É ama emergência!
Alguns operários trabalham o mês inteiro sem um dia de folga. São tratados como bestas de carga. Não têm vida privada. Vão para casa depois do trabalho porque fica mais barato para a empresa (para eles, é claro, seria mais prático pernoitar na fábrica ou mesmo na Remmert). Em geral são jovens. Depois de alguns anos trabalhando no meio de tanta sujeira, ficam extenuados e doentes — muitas vezes pelo resto da vida. Para os patrões não passam de pessoas descartáveis, que podem ser substituídas a qualquer momento, já que nas portas das indústrias sempre há extensas filas de desempregados à espera de um serviço qualquer, pelo qual ficariam imensamente gratos. Esse tipo de trabalho desgastante explica por que raramente alguém consegue suportá-lo por um ano ou dois. Depois de um par de meses a saúde já está comprometida para o resto da vida. Principalmente quando se tem de dobrar ou mesmo triplicar o horário de trabalho. Um colega meu, de apenas vinte anos, trabalha até 350 horas por mês. Os supervisores da Thyssen sabem disso, a siderúrgica lucra com isso, e os relógios de ponto comprovam isso.
É muito comum a Thyssen requisitar as “ tropas de choque” da Remmert de uma hora para outra. O “xerife” tira os operários do chuveiro, depois que já se mataram de trabalhar, e manda-os voltar de Duisburg para Oberhausen, para toda aquela imundície, pois é necessário cumprir mais um turno. Ou então um telefonema arranca-os da cama, convocando-os para o serviço, precisamente quando acabaram de pegar no sono. Interrogada, a maioria dos trabalhadores (inclusive os mais jovens e robustos) afirma não agüentar mais de quinze ou dezesseis turnos semanais. E nas raras folgas de fim de se
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mana passam o tempo todo dormindo, como mortos. Peguemos o jovem F. como exemplo: quase todos os sábados e domingos faz dois turnos seguidos. Nunca se revolta e nunca se queixa. Está sempre metido nos buracos mais imundos, esgaravatando camadas de graxa fétida e quente, raspando a ferrugem das máquinas — sempre sujo, dos pés à cabeça. Tem sempre um ar um pouco ausente, e o rosto, envelhecido, parece guardar certa luz. Pouquíssimas vezes consegue formular uma frase coerente. É o mais velho de uma família de doze filhos, dos quais quatro não moram mais com os pais num apartamento de cem metros quadrados. Está sempre com fome. Se alguém deixar de comer o lanche, lá está ele! Contribui mensalmente com 100 marcos para ajudar a equilibrar o orçamento doméstico.
Quando algum colega se queixa do serviço, F. protesta: “A gente deve ficar feliz por ter um emprego!” Ou então costuma dizer: “Eu faço qualquer trabalho” . Certa vez, um vigia da Thyssen nos pegou parados num intervalo de descanso que fizemos por conta própria; F. era o único que continuava trabalhando, e seu exemplo foi louvado pelo vigia.
Ele conta que seu recorde de trabalho contínuo é de quarenta horas, com cinco ou seis de descanso. Há poucas semanas chegou a trabalhar 24 horas seguidas. Vive remexendo no lixo à procura de luvas que os operários da Thyssen usam e jogam fora. Recolhe inclusive as que não têm par. Mais cedo ou mais tarde encontrará a que está faltando. Já deve ter umas vinte. Intrigado, resolvo perguntar:
— Mas que você faz com elas? Não pode usar tudo junto.
— Nunca se sabe — responde-me. — A gente não recebe luva. Por isso é bom sempre ter algumas. Você nem imagina quantas coisas eu já tenho. Também é bom ter muitos capacetes, porque sempre alguma coisa cai na cabeça da gente.
Sinto pena dele. Está sempre radiante... Algumas se
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manas depois, ao ser novamente escalado para um turno extra no fim de semana, vejo-o suplicar ao “xerife” :
— Não posso mais! Não posso, não consigo!— O quê! Você sempre agüentou.— Mas hoje não, por favor! Hoje não!— Vou me lembrar disso — diz o “xerife” . — Eu
sempre pude contar com você.Dou os parabéns a F.:— Ainda bem você recusou. Você se mata trabalhar.Na verdade, ele não conseguiria mesmo. Mal podia
ficar em pé. Estava pálido como um cadáver, e suas mãos tremiam sem parar.
Um colega conta que, no ano passado, durante os feriados da Páscoa, trabalharam 36 horas ininterruptas: “A Remmert ficou encarregada de limpar a linha de montagem de pintura da Opel em Bochum. O trabalho devia estar pronto antes que a equipe de pintores voltasse para ò serviço, ou seja, na terça-feira depois da Páscoa, às seis horas” . Mas essa maratona na fábrica de automóveis não foi o “ponto culminante” para os operários. “Há dois anos a gente foi trabalhar na construção de um centro esportivo perto de Frankfurt. Junto com outra equipe, que já estava lá, trabalhamos cinqüenta horas seguidas, até cair de cansaço.”
Hermann T., operário alemão de aproximadamente 35 anos, é um dos mais obstinados “recordistas de horas” da Remmert. E isso está estampado em seu rosto pálido, cinzento, magérrimo e acabado. Ficou algum tempo desempregado e, como poucos, está muito grato por poder trabalhar até cair. Entrou na Remmert em fevereiro de 1985 e de lá para cá trabalha como um possesso. Ele mesmo declara: em abril de 1985, pela primeira vez, trabalhou 350 horas no mês. A mesma coisa em junho, quando “acumulou todas as horas” e já havia completado trezentas horas no dia 25, “antes mesmo do fim do mês” . Prossegue em seu relato: “Na semana passada, trabalhei quatro turnos seguidos, sexta e sábado. Cheguei junto com vocês na Thyssen, às seis da manhã, e só fui sair no sábado, às duas
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e quinze, quando bati o ponto” . Para Hermann, esse tipo de maratona nada tem de excepcional. É claro que constitui uma infração flagrante à legislação do tempo de trabalho, mas, para não dar na vista, a cada turno Hermann é escalado para um lugar diferente dentro do imenso parque industrial da Thyssen. “Sexta-feira de manhã eu estava em Ruhrort, limpando uma oficina. Ao meio-dia, já estava na Oxy I. À noite, fui para a central elétrica de Voer- de e no sábado de manhã já estava de volta a Ruhrort.” Em frangalhos, com as pernas bambas, foi se arrastando para casa. “ Comi alguma coisa, mas na verdade não tinha um pingo de fome. Antes de me atirar na cama, ainda pedi para minha mulher me acordar às oito e quinze da noite, porque eu queria ver o filme que ia passar na televisão. Que ilusão! Cai na cama e só fui acordar ao meio- dia de domingo!”
Hermann conta como as coisas funcionavam na Thyssen: “Trabalhos de dezesseis, doze, treze horas num único dia — todos os sábados, todos os domingos, todos os feriados — sem parar. Páscoa, Pentecostes, não importa. Lá estávamos nós. Muita coisa precisava ser feita. Haviam desligado o alto-forno para ser totalmente limpo. Já imaginou? Trabalhamos como escravos, debaixo de chuva, vento, neve, frio — não importa. Os uniformes ficavam ensopados. Uma equipe de dez a quinze trabalhadores da Remmert, mais o pessoal da Adler. No total, trabalhamos ali quase cinco meses” .
Sezer O. (44 anos), operário turco, afirma deter o recorde de permanência no mesmo serviço. Foi durante a construção do metrô de Munique, quando a equipe da qual participava trabalhou 72 horas num poço subterrâneo. Os operários aproveitavam os intervalos de trinta minutos para dormir. Sezer conta que, nessa maratona, muitos se acidentaram. Todos eram imigrantes.
É bastante comum o “xerife” nos obrigar a fazer turno dobrado (coação é o termo jurídico para isso). Esgotados dentro do ônibus, prontos para voltar para casa, alguns até já dormindo nos assentos, chega o “xerife” e,
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com a maior naturalidade, diz: “O trabalho não pode ser interrompido agora. Vamos ter que fazer turno dobrado” . Alguns protestam, querem ir embora, estão exaustos. Mas a Thyssen exige que continuemos trabalhando.
T., um operário argelino, precisa impreterivelmente ir para casa. E demitido na hora. Retiram-no do ônibus e o abandonam no meio da rua, para que saiba exatamente qual é seu lugar. Eis o diálogo que precedeu sua demissão:
XERIFE: Vocês têm que continuar trabalhando até as dez da noite.
Operário Argelino.* Puta que pariu! Eu não sou robô!
XERIFE: Todos vocês!Operário Argelino: Mas eu preciso ir para casa
sem falta!XERIFE: Acontece que é uma emergência. Se você for
para casa não precisa voltar.Operário Argelino: Mas eu preciso ir...XERIFE: Então vá! Mas não volte! Chega! Acabou!
Rua! Não quero mais saber. Pode ir embora! (Voltando- se para os outros, que estão calados e com medo). Preciso de quarenta homens para amanhã também. Ordens da Thyssen! Acham que eu também não gostaria de ter uma noite de descanso? Mas isso ninguém me pergunta, não é? Hoje à tarde eu deveria ter ido ao dentista, por caiisa da minha jaqueta, mas não pude. E daí? Então, o que é que vocês pensam? Queria ver se fosse na guerra... Aí, sim, seria mil vezes pior.
“É melhor fingir que não entendeu”
Durante um intervalo para descanso, num daqueles quilométricos corredores sombrios e desertos da oficina de concreção III, aparece o supervisor da Thyssen acompanhado de seu encarregado. Vem verificar a quantidade de lama e pó de concreção que já havíamos desentulha- do. A instalação só voltaria a funcionar depois que tivéssemos terminado o serviço.
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A aparência oriental de Jussuf faz com que o jovem supervisor volte a se lembrar das últimas férias:
— Você é da Tunísia?— Sou — Jussuf responde.— Que país fantástico! Vamos voltar lá, nas próxi
mas férias, müiha mulher e eu. Lá, sim, a gente pode descansar de verdade. E as coisas são bem mais baratas.
Surpreso, Jussuf sorri agradecido. É tão raro ver um superior, e ainda por cima alemão, conversar com um imigrante sobre assuntos que não dizem respeito ao trabalho! E, mais raro ainda, ouvi-lo falar bem do país do outro. Jussuf conta que seus pais moram perto da praia e dá-lhe o endereço, convidando-o a visitá-los quando estiver na Tunísia. O supervisor aceita de imediato:
— Pode estar certo que eu vou! Mas o que eu queria mesmo é que você me arranjasse outros endereços. Sabe o que estou querendo dizer, não? As mulheres do seu país são muito gostosas e trepam como ninguém. É uma maravilha! Quanto elas estão cobrando agora?
— Não sei — responde Jussuf.— Com 20 marcos a gente tem tudo que quer no seu país!Ferido em sua honra, Jussuf ainda responde:— Não sei!Mas o supervisor insiste, enfiando o polegar da mão
esquerda entre o indicador e o médio da direita:— As mulheres de lá estão sempre muito excitadas.
Como gatas selvagens. É só puxar o véu, pronto, ficam logo no cio. Você não tem uma irmã, por acaso? Ou será que ela ainda é muito criança? Vocês casam tão cedo...
* Jussuf tenta disfarçar a humilhação diante dos colegas.— Mas o senhor não vai viajar com a sua mulher?— Isso não tem a menor importância. Ela fica o dia
inteiro na praia e não vê coisa nenhuma. Aliás, é um hotel maravilhoso, igual ao Intercontinental daqui. Dois mil e poucos marcos por duas semanas com tudo incluído. Da última vez, demos um pulo até um país ali perto... Como é mesmo o nome?
— Marrocos — Jussuf responde polidamente.
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— É claro, Marrocos! Eu tinha esquecido. Também está cheio de mulheres gostosas. Mas me diga... que língua vocês falam? Espanhol?
Jussuf não agüenta mais:— Não! Árabe! Com licença, eu vou ao banheiro.O supervisor aproveita para sentar-se no chão perto
de nós e continuar recordando suas férias com entusiasmo.— Ah, se eu estivesse no Mediterrâneo agora... Na
da de trabalho, só o sol... E mulheres, é claro, muitas mulheres! — De repente, vira-se para mim e pergunta: — É verdade que na Anatólia a gente pode comprar uma mulher com uma cabra? — Resolvo olhar para o outro lado, mas ele insiste: — Não é verdade? Se não é, como foi que você se livrou da sua mãe?
— Alemão sempre acha que pode comprar tudo — respondo. — Mas coisas mais bonita do mundo gente não consegue com dinheiro. Por isso alemão tão pobre, mesmo se tem dinheiro.
O supervisor sente-se atacado e desforra:— Nem de graça eu queria uma daquelas putas dos
seus haréns! São umas porcas, estão sempre fedendo. A gente primeiro tem que dar um banho nelas. E quando termina de arrancar aqueles trapos que elas vestem, pronto... a gente já está de pinto mole de novo.
Mais tarde, Jussuf leva-me para um canto e diz: “Saber alemão não é boa coisa. A gente sempre se aborrece. É melhor fingir que não entendeu!” E conta o exemplo de alguns jovens tunisianos que, em virtude das constantes humilhações, decidiram não aprender a língua alemã! “Só falam ‘sim, senhor’, para qualquer coisa que o chefe diz. Assim, não tem discussão!”
Vários banheiros da Thyssen vivem rabiscados com frases e insultos xenófobos. Nas paredes da fábrica também sempre há alguma pichação ofensiva aos imigrantes, e ninguém se encarrega de apagá-la. Eis alguns exemplos típicos dessa literatura de mictÒrio, recolhidos dentre centenas nas instalações Oxygen I: Merda boiando = turco nadando. Perto dali, na cantina, há a seguinte frase: Fo
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ra, turcos! A Alemanha para os alemães! Ao lado, alguém que gosta de animais teve o bom gosto de pregar um adesivo com a figura de um ursinho e os dizeres: “Proteja as espécies em extinção!” Vinte metros adiante, uma inscrição com letras garrafais: M o rte a todos os turcos! Inscrição que também se encontra no banheiro do setor de laminação na Kaltwalzstrasse. Anotei algumas, já meio envelhecidas, o que prova que estão ali há muito tempo:
Melhor mil ratos na cama que um turco no porão! Enforquem todos os turcos e todas as alemãs que andaram com eles!Com outra caligrafia:Turcos de merda, nenhuma forca é bastante alta para vocês! Fuzilem todos esses turcos de merda!E em outra caligrafia:Tenho orgulho de ser alemão!A Alemanha para nós, alemães!E em outra ainda:Antes a merda de um nazista que um turco de merda! Nunca houve um alemão melhor que Adolf Hitler!Seja um bom alemão: mate um turco no porão!
Conversa no horário de descanso
Os operários alemães Michael (34 anos), Udo (26) e Alfred (53), seu porta-voz, montaram uma espécie de ponto de encontro num compartimento subterrâneo da Bramm- strasse. Improvisaram um banco, colocando uma tábua sobre dois barris, e nele se instalaram para beber e fumar. Sentado sobre uma página do jornal turco Hürriyet (“ Liberdade”), vejo-me condenado ao papel de ouvinte. A conversa é interrompida sem cêssar pelo estrondo do minério caindo na terra.
ALFRED: Podem crer! Na época de Hitler quem rou-
bava qualquer coisa de um companheiro, nem que fosse um cadarço, era levado para o paredão e fuzilado. É verdade, podem crer! E era bem feito! Quem roubava de um companheiro, era linchado ou fuzilado. Devia ser assim ainda hoje. Não se rouba nada dos amigos, isso não se faz!
EU: Mas chefe pode roubar você?Alfred: Isso não tem nada a ver! Agora, quem dá
cabo de um companheiro ou lhe rouba...EU: Mas chefe também vai para paredão se roubar?A lfred (ligeiramente ameaçador): As coisas deviam
ser como no tempo de Hitler. Aí, sim, a Europa estaria em ordem!
EU: Muita gente fuzilada?Alfred: Você precisava estar lá para ver.UdO: Naquela época os velhos podiam andar na rua.A lfred: É verdade. Naquela época uma vovozinha
de setenta anos podia andar à noite pela rua com 10 mil marcos na bolsa que nada acontecia.
EU: Com tanto dinheiro, vovozinha ia de carro, não a pé sozinha...
Alfred: Meu pai morava numa cidade grande, muito grande... Leipzig, a cidade das feiras, onde eu nasci. Meu pai tini» moto, carro e bicicleta. A bicicleta ficava no quintal, o ano inteiro e quando enferrujava ele comprava uma nova. Então deixava essa nova no quintal. Nunca foi roubada.
EU: E quem ia querer bicicleta estragada?A lfred (tentando apelar para minha consciência, co
mo se todos os imigrantes fossem ladrões em potencial): Limpe bem essas suas orelhas de jumento e preste atenção no que eu digo!
EU: Como assim?ALFRED: Sobre quem rouba, quem surrupia! Veja
bem, antigamente não era como hoje, que todo mundo tem máquina de lavar. A gente tinha uma lavadeira, a sra. Müller, porque meus pais tinham uma lojinha. Todos os meses era aquele montão de roupa, entende? No inverno, ela estendia a roupa no chão; no verão, pendurava no quintal. E nunca sumiu nada, nem mesmo um lenço.
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Eu (voliando-me para os outros): Eu não ia querer lenço sujo ranho, eu ter lenço papel.
A lfre d (sem se perturbar): Nem mesmo um lenço...EU: Mas aquela época estrangeiro não vivia muito
bem, não?Alfred: Preste atenção! Naquela época a disciplina
e a ordem imperavam na Alemanha inteira.EU: É... Mas e judeu? Vocês matou judeu, não
matou?ALFRED: Vá à merda com os seus judeus! Naquela
época a gente aprendia a respeitar os mais velhos. Era isso que nos ensinavam, que enfiavam na nossa cabeça. O professor na escola, e os pais em casa. Você pensa que uma criança se atrevia a sentar no trem? Meteram na cabeça da gente que era para deixar o lugar para os mais velhos e isso estava muito claro!
EU: Você quer dizer que pais era melhor?Alfred: Na verdade era uma ditadura, mas eu me
sentia bem melhor naquela época do que hoje, com toda essa merda de gente que vive aqui.
EU: Mas por que vocês matou tanto judeu?UDO (querendo dar a deixa para Alfred): Porque
eram estrangeiros.ALFRED: Quer mesmo saber por quê? Quer mesmo
saber?Eu (como se ignorasse o motivo): Eu quer, sim.Alfred: Hitler só cometeu um erro... devia ter vivi
do mais uns cinco anos. Então não ia sobrar ninguém, nenhum deles, nenhum! Basta um judeu meter o dedo em alguma coisa para tudo começar a descambar.. E não importa se é um judeu rico ou pobre. Tem muito judeu rico por aí. Por exemplo: Rockefeller, Morgenthau, e outros. Estão sempre provocando desgraça, desordem e terror; é só ler os livros de História. Eles têm dinheiro para controlar as pesquisas científicas. Têm dinheiro, têm poder de vida e morte. São assim. Veja bem, se Hitler tivesse vivido mais uns cinco anos, se as coisas tivessem corrido bem para ele, esse tipo de gente não existiria mais, pode crer!
119 *
EU: É... Vocês também màtou cigano.Michael: Não eram alemães de raça pura, por isso
ele acabou com todos. Só não acabou com os alemães de raça pura.
UDO: É verdade! Mas não foi só Hitler!EU: E ele também acabava comigo? (Não obtenho
resposta.)ALFRED: Você quer saber quem foi que começou com
toda essa história de campo de concentração? Falando bem sério mesmo? (E, elevando a voz, responde à própria pergunta.) Foram os ingleses!
UDO: Os americanos! Foram os americanos que começaram tudo isso!
A lfre d (insistindo): Não e não! Foram os ingleses! Churchili, sim, Churchill começou tudo isso quando era primeiro-tenente do Exército inglês. Sabe, na época das guerras coloniais ele era primeiro-tenente... enfim, sargento.
MICHAEL: Hitler não devia ter feito uma coisa dessas!
ALFRED: E sabe o que Churchill fez?M ichael (insistindo): Não, ele não podia ter feito
essa sujeira!ALFRED: Churchill lutou em duas frentes.Michael: Não importa, Hitler não devia...A lfre d (cortando-lhe a frase): Churchill, com aquele
exército colonialista, nos expulsou do sudoeste da África. Fez isso com a gente, e também com os bôeres... Você já ouviu falar dos bôeres, não? Pois Churchill prendia as mulheres e crianças bôeres num acampamento no meio do deserto e deixava todo mundo morrer...
MICHAEL: Isso também não é direito. Mas Hitler foi o maior assassino de todos os tempos...
A lfre d (irritado com Michael, volta-se contra mim): Você não é nenhum idiota, é?
EU: Bom, depende...Alfred: Sabe qual é a diferença entre um turco e um
judeu?
‘ 120 4
EU: Não tem diferença. Dois gente, ser humano.A lfre d (triunfantef. Mas claro que tem! Para os ju
deus o pior já passou!UDO (pede a palavra a Alfred): Ei, conheço uma
melhor.ALFRED: Então conte!Udo (voltando-separa mim): Quantos turcos cabem
dentro de um fusca?EU: Eu não sabe.UDO: Vinte mil. Não acredita?EU: Se você diz...UDO: Não quer saber como?EU: Melhor não.UDO: É muito simples. Dois na frente, dois atrás, e
o resto no cinzeiro.A lfre d (rispidamente): Muito engraçado! Fazia tem
po que eu não ria tanto. Essa é tão velha que tem barba, já a escutei no mínimo cem vezes. Mas vocês conhecem a última? Um garotinho turco está passeando com o cachorro, um pastor alemão. De repente, eles passam por um homem, um alemão, que pergunta: *'‘Aonde é que você vai com esse porco?** E o turquinho responde: “Não é porco, é cão de raça, pastor alemão, com pedigree e tudo!** Então o homem diz: “ Cale a boca, não estou falando com você!** (E cai na risada, acompanhado por Udo.)
Michael: Não acho legal vocês contarem essas coisas diante do Ali. Ele pode não entender muito bem.
EU: Eu não acha graça. E também eu não acha graça piada com judeu. (Voltando-mepara Alfred): Eu acha vocês não têm muita coisa rir, por isso vocês faz piada com outro.
A lf re d (irritado): Foi só uma brincadeira. E não se metam nos nossos assuntos, porque aí é que não vão ter do que rir. (Provocando-me): Você conhece Mengele?
EU: Sim. Médico assassino de campo concentração.ALFRED: Mengele não era tão burro. Por exemplo,
nunca usou turcos nas experiências que fazia. E sabe por quê? (Percebendo que prefiro ficar calado, lança-me um
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olhar cheio de ódio.) Porque vocês não servem para nada, nem para ser usados em experiências. .
MlCHAEL: Toda vez que eu vejo e escuto coisas daquela época, sinto vergonha de ser alemão. No duro!
A lf re d (com certo prazer): Mengele prendia as pessoas no gelo e ficava observando quanto tempo elas agüentavam ali, agachadas. (Voltando-se para mm): Você não é um turco de verdade, é? O que você é, afinal? Sua mãe é meio negra, não?
Eu: Minha mãe grega, meu pai turco.Alfred: Sei. Mas e você? O que você é? Turco ou
grego?Eu: Duas coisas. E também pouco alemão. Eu já es
tá aqui dez anos.A lfre d (para os outros): Ouviram só o que esse idio
ta disse? Ele se acha um pouco de tudo. É isso que acontece quando começam a misturar as raças.. Chega uma hora que já não são mais nada. Não têm mais pátria. Que nem os comunistas. Aliás, lá no lugar de onde ele veio está assim de comunistas! Parece um formigueiro. Sabe o que estão fazendo na Mannesmann? Pondo todos os turcos no olho da rua. Aqui na Remmert também a gente pode tocar fogo em todos os turcos; é só olhar para eles que dá vontade de vomitar... (Voltando-separa mim): Lembra o que eu disse ontem? Se não me obedecer direitinho, dou-lhe um tamanho pontapé no rabo que você vai parar no olho da rua.
MlCHAEL: O que podemos fazer? Não podemos chegar e dizer: “Tudo bem, vocês trabalham aqui, precisávamos de vocês, mas agora fim, acabou!" Eles estão aqui!
Eu: Gente não veio assim, livre vontade. Vocês foi buscar gente. Vocês foi lá, com conversa: “Vem, vem! Gente ganha muito dinheiro lá. Vem, nós precisa vocês!" Ninguém veio sozinho, porque quis.
MlCHAEL: É verdade! E nós devíamos recom- pensá-los.
UDO: É... Como a Mannesmann está fazendo.MlCHAEL: Tem muita gente sem emprego. Estamos .
atolados em plena crise.
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UDO: Na Mannesmann o pessoal foi logo falando: “ Vamos dar a cada um uma ajuda de custo no valor de 10 a 30 mil marcos para voltarem para os seus países” .
EU: Mas se todo imigrante vai embora, acaba dinheiro para pagar vocês. Vocês não têm nada para receber, se eles paga para gente esse dinheiro.
ALFRED: Não diga besteira! Não tem tanto turco por aqui!
EU: Milhão e meio. Vocês fica arruinado!Alfred: Sabe como é na Suíça? Se você trabalha na
Suíça como imigrante, assina um contrato por onze meses. No décimo-segundo mês, quando você está de férias lá no seu país, eles mandam uma carta dizendo se você pode voltar ou não. É ássim que a Suíça resolve essas coisas. Durante as férias, eles decidem se você volta ou fica lá mesmo na sua terra, tomando conta dos camelos.
A odisséia de Mehmet
Mehmet, um dos trabalhadores turcos, já com certa idade, sempre me impressionou por sua calma. É com uma paciência quase estóica que se encarrega das tarefas mais pesadas e perigosas. Gentil, com os cabelos embranquecidos e o rosto redondo e enrugado, tem um ar paternal. Fico chocado ao saber, por intermédio de Klaus, um operário da Remmert, que Mehmet tem exatamente 49 anos. Eu lhe dava uns sessenta.
Um dia, Mehmet vem despedir-se pois segue para a Turquia em “ férias de cinco semanas” . Pergunto a um colega:
— Remmert costuma dar tanto tempo férias? Em Adler, impossível! Se gente pede cinco semanas eles põem gente em olho de rua.
— Aqui também — diz o empregado da Remmert.— Ninguém consegue cinco semanas de férias. Só Mehmet. É porque só num ano ele sofreu três acidentes graves. Por isso o chefão resolveu ser bonzinho!
Vou me informar direito, e todos os colegas confir
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mam: Mehmet sofreu mesmo três acidentes graves. O primeiro nâo ocorreu dentro da Thyssen, mas na luxuosa vila que Remmert possui em Mülheim. Mehmet e um trabalhador alemão estavam instalando uma sauna no porão da casa. Tiveram de cafar a terra e derrubar algumas paredes. +
“Foi assim que aconteceu’% conta um dos trabalha* dores. “O alemão estava cavando, e Mehmet percebeu que uma parede ia ruir. Rapidamente conseguiu tirar o alemão, que de outro modo teria morrido, e a parede caiu em cheio em cima do seu ombro esquerdo.” O médico tirou algumas radiografias e constatou que o osso estava esmigalha- do. Mehmet teria sua capacidade de trabalho reduzida em 46%. Precisou ficar no hospital mais de dois meses. A Remmert não lhe pagou um centavo de indenização nem de seguro. Em compensação, o próprio Remmert, aquele mercador de seres humanos, prometeu arranjar-lhe uma colocação na Thyssen, a despeito do grave ferimento.
No mês de fevereiro, Mehmet estava de novo na equipe, escalado para trabalhar na concreção no turno da noite, em pleno estado de alerta devido à poluição e debaixo de um frio de matar. Ele escorregou e, tentando instintivamente proteger o braço fraturado, caiu bem em cima do outro. Deslocou a omoplata, que teve de ser imobilizada. Nem bem se restabeleceu, Mehmet voltou ao trabalho, no turno da noite (afinal, tem mulher e três filhos, um deles com deformidade física congênita). Depois de catorze noites consecutivas, atirou-se na cama, morto de cansaço. Duas horas depois, telefonaram para sua casa exigindo que se apresentasse para o turno do dia. Mehmet foi. Às oito das noite, quis ir para casa. O encarregado ordenou-lhe que voltasse para a fábrica imediatamente após o jantar, pois estava escalado para o turno da noite. Mehmet voltou.
Numa instalação subterrânea, Mehmet limpava os canos por onde escoa o metal em fusão; o trabalho provoca muitas nuvens de vapor e impede que se enxergue um palmo adiante do nariz. Exausto e combalido, Mehmet enfiou o pé dentro de um buraco e caiu. No hospital diag
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nosticaram: rotura dos ligamentos. Mehmet foi submetido a duas operações, mas sua perna não se recuperou totalmente. E ele continuou trabalhando.
Ao voltar das férias, Mehmet me diz: “ O que pode fazer? Eu precisa trabalhar. Criança, dívida...”
É muito difícil conversar com ele. Poucos dias depois de seu retomo, já está novamente exausto e combalido. Só consegue medir o tempo em turnos de trabalho e freqüentemente se esquece do que aconteceu durante meses inteiros. Só é capaz de lembrar se fazia;muito frio ou era um daqueles serviços nojentos que a Thyssen oferece. Mora na Alemanha desde 1960, mas seu alemão é canhestro. A luta pela sobrevivência não lhe dá tempo para aprender corretamente a língua. Sendo assim, precisei “arrancar” dele uma conversa (um colega turco serviu de intérprete).
A duras penas, Mehmet conseguiu realizar aquilo que os alemães consideram uma virtude: instalar-se com a família num país estranho. Ele conta que, durante os dez primeiros anos, trabalhou em todos os lugares onde havia serviço. Até que, em 1970, conseguiu uma colocação estável como motorista de empilhadeira na Thyssen, em Duisburg. Ganhava um salário líquido de 1 600,1 700 marcos, em turnos alternados. Por isso, arranjou outro emprego.
Depois de muitos anos de economia e com empréstimo bancário, finalmente pôde comprar uma casinha geminada, meio decrépita, em Duisburg-Mettmann. “ Se eu tivesse continuado na Thyssen, ela já estaria totalmente paga.” Seu chefe liquidou-lhe as modestas pretensões. “Foi no ano de 1980. Eu ia sair de férias. O chefe do turno apareceu e falou para nós: ‘Eu quero que me tragam um tapete da Turquia. Mas autêntico!’ Então eu disse: ‘Olhe, um autêntico tapete turco deve custar uns 5 000 marcos. Eu não tenho tanto dinheiro’. ‘Não quero nem saber! Se você não me trouxer um daqueles tapetes, vai ver só uma coisa!’ ”
Assim que Mehmet voltou da Turquia, o chefe passou a esfolar-lhe a pele como “reprimenda” pelo “pre
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sente” recusado. “Um dia ele me disse: ‘Venha até meu escritório!’ Chegando lá, começou a me xingar, e eu fiquei quieto. Três horas depois, apareceu um dos guardas de segurança da fábrica, agarrou meu braço e disse para eu ir embora. Foram falar que eu tinha batido no chefe. Mas claro que eu não fiz isso.”
Depois de dez anos de trabalho, Mehmet foi despedido sem nenhuma prova concreta contra ele e sem receber aviso prévio. Tampouco foi intimado a depor para explicar as “lesões corporais” que supostamente provocara. A repartição de assistência judiciária recusou-se a defendê-lo porque a administração da Thyssen alegara “agressão a colega” para justificar sua demissão. Mehmet chegou a apresentar testemunhas — entre as quais, alguns operários alemães —, e todos depuseram a seu favor, dizendo que o motivo da dispensa era uma farsa.
“Fiquei muito chocado com essa história. Comecei a procurar emprego em todos os lugares. Durante dois ou três meses não encontrei nada. Até que consegui uma colocação numa fábrica de aparas de chapa, em Duisburg- Homberg. Motorista de empilhadeira. Já estava lá fazia uns cinco meses, e tudo corria muito bem, sem nenhum problema. Mas um dia chegou um telegrama dizendo que minha mãe tinha morrido. Fui procurar o chefe e perguntei se podia tirar uma semana de licença, para ir ao enterro. ‘Como é que é? Tirar férias com cinco meses de emprego? Onde já se viu uma coisa dessas?’ Insisti: ‘Mas é que minha mãe morreu...’ Ele respondeu que não tinha nada a ver com isso. Mesmo assim, decidi ir; quando voltei uma semana depois... rua!”
Pressionado pelas dívidas feitas com a compra da casa, Mehmet pôs-se novamente a procurar emprego. Em vão. Mais uma vez ficou desempregado durante três meses. “Então fui tirar uma carteira de motorista profissional para poder dirigir caminhão. Preenchi fichas de pedido de emprego em toda parte. Acabei conseguindo uma colocação numa firma pequena, como motorista de furgão e com salário bem baixo. Dois dias depois, recebi uma proposta
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da Rheinperle, onde eu já havia trabalhado consertando encerados de caminhões. Procurei o chefe do pessoal, e ele me disse: ‘Você pode começar imediatamente, mas como motorista de empilhadeira. Mais tarde, quem sabe, poderá dirigir um caminhão’. Fiquei nessa firma durante quatro anos.”
Uma proposta “melhor” fez Mehmet mudar de emprego: 13 marcos por hora numa transportadora de Düs- seldorf. “E mais 18 marcos para as despesas gerais. Claro que aceitei!” Cinco semanas depois, foi demitido: “Contenção de despesas” . “E mais uma vez corri para todo canto. Na agência oficial de empregos disseram para eu voltar dali a três ou quatro meses. ‘Não há nada no momento!’ Comecei a procurar em todas as empresas. Então um vizinho me falou que a Remmert estava precisando de motorista. ‘E onde é que fica essa tal Remmert?’ ‘Pergunte na Mannesmann!’, ele respondeu. Fui até lá: todos os dias, durante uma semana. E nada de o encarregado da Remmert aparecer. E eu ali, parado diante do portão quatro. Até que perguntei para um dos soldados: ‘Onde é que fica o escritório da Remmert?’ ‘Em Oberhausen.’ Fui correndo para lá. Cheguei em Oberhau- sen por volta das três ou quatro horas da tarde. O encarregado me disse: ‘Tudo bem, pode começar agora mesmo. Só que é um serviço pesado, nojento*. E eu falei: ‘Gosto de trabalhar, não faz mal que seja um serviço pesado ou nojento. Preciso trabalhar. Tenho que sustentar minha família*.”
A Remmert paga-lhe um salário bruto de 12,24 marcos por hora; e Mehmet paga com sua saúde.
Em outro lugar
Adler adoraria tomar-se “ tão grande quanto Remmert’*. Esse é seu sonho.
Na realidade, a distância que separa Adler de Remmert não é tão grande. É a mesma distância que separa a ralé das pessoas de reputação duvidosa: Adler “vende”
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seus empregados de forma totalmente ilegal, enquanto Remmert — pelo menos algumas vezes — trabalha dentro dálei.
Os negócios de Alfred Remmert, proprietário da empresa do mesmo nome, enriqueceram-no tanto que ele praticamente não faz outra coisa senão contar o dinheiro proveniente da Sociedade de Limpeza Industrial (para a qual Adler vende seus trabalhadores), com 170 empregados, e da SWI, firma de limpeza de edifícios, com seiscentas faxineiras e mais o pessoal de manutenção.
Os que trabalham para Remmert na Thyssen ou na Mannesmann (tarefa tão árdua quanto um trabalho de demolição de imóveis ou de construção civil) recebem 11,28 marcos por hora — ou seja, a tarifa em vigor para o pessoal de manutenção. Quem consegue agüentar o serviço mais de um ano recebe um aumento de 60 centavos. O salário para operários qualificados na construção civil é de 14,09 marcos por hora.
Os trinta imigrantes da Sociedade de Limpeza Industrial estão em piores condições. Um turco obrigado a trabalhar pela Remmert na Mannesmann descreve as condições de trabalho e as falsas promessas que viviam fazendo. “Disseram que se a gente queimasse mais de vinte tonéis por dia, nos pagariam um adicional de 2 marcos por tonel. Trabalhamos feito loucos e, no final do mês, tínhamos queimado 1 600 tonéis suplementares, o que daria 3 200 marcos. Como éramos onze — oito turcos e três alemães — cada um de nós receberia quase 300 marcos. Mas a Remmert não nos pagou nem um centavo a mais.”
Eis o relato de Ylmaz G.: “Os colegas que trabalhavam na coqueria, todos da Remmert, não estavam satisfeitos com o salário, porque a grande parte dos trabalhadores de outras empreiteiras ganhava mais para fazer o mesmo serviço. Havia gente que veio de uma firma de demolição de Duisburgganhando até 3,50 marcos pór hora” .
Tanto na Thyssen quanto na Mannesmann, as horas extras são feitas “ regularmente” . Ylmaz calcula que um operário da Remmert trabalha na Mannesmann cerca de 230 a 250 horas por mês.
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A Mannesmann também costuma empregar esse tipo de mão-de-obra quase sempre em “missões suicidas” : onde quer que trabalhe, o pessoal está sempre imerso em pó e fumaça. Conseqüentemente, o risco de acidentes é muito grande. Um dos membros do conselho de empregados da Mannesmann faz o seguinte relato: “Aqueles que são escalados para trabalhar com os maçaricos passam todo o turno numa posição incômoda, encurvados. Sem falar no calor constante que provém dos maçaricos” .
“Como antigamente, na época das galés” , diz Ali K., “ quem não tem mais forças é jogado ao mar! Mehmet, um trabalhador turco da Remmert, prestava serviços na Mannesmann. Um dia, ao carregar o ferro fundido, uma corrente bateu-lhe em cheio nos joelhos. Mehmet quebrou as duas pernas e teve que ficar seis ou sete meses no hospital. Depois de tudo isso, a Remmert jogou o coitado no olho da rua. Nem bem sarou direito, ele foi até a fábrica perguntar se poderia ser readmitido para um serviço de quatro ou cinco horas, porque depois do acidente não podia ficar muito tempo em pé. Mehmet nem terminou de falar; o chefe simplesmente o mandou embora.”
Freqüentemente a Remmert obriga seus empregados a dobrar ou triplicar os turnos, razão pela qual os acidentes ocorrem de modo quase automático. Colegas contam que alguns motoristas chegaram a fazer 36 horas consecutivas dirigindo seus caminhões. Isso é perigoso não só para eles mesmos, como para todos que circulam pela empresa. “Se um cara passa 36 horas na boléia de um caminhão, é evidente que, mais dia menos dia, vai acontecer um acidente sério” , diz Ali K., inquieto.
A empresa Staschel, de Duisburg (especializada, como a Remmert, em fornecer mão-de-obra temporária para a Mannesmann), costuma fazer seus empregados trabalharem na coqueria de manhã, na fundição à tarde e numa filial de laminação de tubos, em Mülheim, à noite. O que totaliza 24 horas de trabalho ininterrupto.
Esse “tráfico de escravos” teve início na Mannes- mann, logo que o truste começou a dispensar em série os
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imigrantes que faziam parte de seu quadro de pessoal efetivo. Para livrar-se deles, a Mannesmann chegou a oferecer 40 mil marcos como “ajuda de retorno” . O objetivo era reduzir seu efetivo em seiscentas pessoas. Ao mesmo tempo, a direção da empresa persuadia os operários alemães de que seus empregos estariam ameaçados se um número suficiente de imigrantes não retornasse a seus países. O medo provocou um clima de tensão dentro da firma; muitos operários alemães passaram a querer a saída imediata dos turcos. Imaginavam que assim conseguiriam uma colocação estável para seus filhos, que haviam feito estágio na Mannesmann como aprendizes. Os turcos mais antigos foram submetidos a testes de língua alemã — uma tentativa de provar suas “qualificações deficientes” . E aqueles que, apesar de tudo, insistiam em não “regressar voluntariamente” , eram pressionados com redução do horário de trabalho ou dispensa pura e simples, sob a justificativa de “plano de reclassificação” . Desse modo, mais de mil turcos foram obrigados a deixar a Mannesmann. Foi o ponto de partida para que as empresas como a Remmert crescessem dentro da Mannesmann.
A suspeita
“Todo o pessoal da Adler, venha aqui!” Batendo palmas, o “xerife” nos chama durante um intervalo de descanso. “ O sr. Adler mandou dizer a todos que hoje à tarde, depois do serviço, vai encontrar vocês, às quatro horas no bar Cantinho dos Esportistas, na Skagerrakstras- se. Ele vai falar sobre a organização do trabalho e resolver problemas de pagamento. Sejam pontuais, porque ele não tem tempo a perder!”
Exatamente em nosso horário livre; claro que não nos pagará um centavo sequer. Somos obrigados a ficar mais uma hora no serviço para chegar pontualmente ao local indicado. Então aguardamos quinze minutos, meia hora, e nada de Adler. “Ele faz a gente de bobo” , diz Mehmet. “ Vamos para casa.”
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Wormland, o fiel encarregado da Adler, seu irmão Fritz (23 anos) e eu, Ali, somos os únicos a permanecer no bar, sentados junto ao balcão. De repente, dois policiais fardados e um à paisana entram no local e começam a encarar os fregueses, aproximadamente uns vinte. Um dos policiais pergunta:
— Alguém viu entrar aqui um sujeito loiro, de mais ou menos quarenta anos, um metro e setenta de altura? O Banco do Comércio, aÚ na esquina, acaba de ser assaltado e levaram quase 40 mil marcos.
O homem a meu lado, que deve ter uns sessenta anos e já está na oitava cerveja, põe-se a rir baixinho.
— Mesmo que o tivesse visto, eu não diria nada — declara num tom de voz suficientemente alto para que os policiais escutem. — Ele dividiria o dinheiro comigo, e eu ficaria de boca fechada.
— De quem é aquele carro verde, com placa de Colônia, estacionado ali em frente? — pergunta rispidamente o guarda mais velho.
Olho pela janeja e vejo uma viatura parada bem em frente de meu enferrujado calhambeque, que alguns policiais examinam com curiosidade. Droga, se me identificam aqui, vai tudo por água abaixo. Claro que eu preca- vidamente licenciei o veículo em nome de outra pessoa; mas o problema é que não estava com os documentos.
De fato, meu carro parece bastante suspeito (para mim, um automóvel não é um objeto de prestígio, mas um simples meio de transporte), corresponde perfeitamente ao clichê policial: quem anda num calhambeque desses só pode ser mesmo um assaltante de bancos.
Não esboço nenhuma reação e olho para o outro lado. Mas meu colega Fritz me cutuca e diz:
— Ei! Aquele não é o seu carro? Por que não fala para eles?
— Cala a boca! Eu não tem documento em ordem, eles vai multar.
Fritz prontamente resolve tirar vantagem da situação em que me encontro.
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— O que é que eu ganho se ficar com a boca fechada? Você me dá 100 marcos, ou conto tudo — ameaça, lançando um olhar eloqüente para os policiais.
— Eu não tem tanto dinheiro — respondo, e consigo baixar o preço para uma caixa de cerveja.
Nesse interim, os policiais começam a perguntar a cada freguês se sabe a quem pertence o carro suspeito. Também nos interrogam, mas não podemos ajudar, não sabemos de nada. Eles deixam o bar. Respiro aliviado e já penso em sumir dali quando aparece um novo destacamento policial: três guardas uniformizados e dois à paisana. A grande operação de captura não parece minto bem coordenada, porque o chefe da patrulha começa a fazer exatamente a mesma pergunta que seu colega formulara pouco antes: se alguém viu entrar um sujeito loiro, mais ou menos quarenta anos, cerca de um metro e setenta, com uma sacola de plástico branca contendo 40 mÜ marcos. Alguns fregueses riem alto e passam a fazer uma grande piada.
— Ele acabou de entrar no banheiro. Foi dar uma mijada! — diz um quarentão ligeiramente embriagado cuja aparência corresponde à do criminoso.
— Não é hora para gracinhas — replica o chefe da patrulha, que parece não ter gostado da brincadeira. — Posso prendê-lo por desacato à autoridade e perturbação da ordem pública. — Seu olhar percorre todo o local e pára em mim. Sou o único estrangeiro e, ainda por cima, estou todo sujo de graxa, com a roupa de trabalho quase em farrapos. Enfim, um verdadeiro molambo!
— Você, aí! Acompanhe-me! — aponta-me para seus dois jovens subordinados, que correm para meu lado, ávidos de ação.
Sinto-me esmorecer, vejo todo o meu trabalho cair por terra. Por um instante penso em sair correndo, procurar a salvação na fuga. Mas a rua está apinhada de policiais, e qualquer um deles poderia me dar um tiro nas costas. “ Calma, muita calma” , digo para mim mesmo. “Nada de nervosismo. A lei está do meu lado, com certeza! Não podem ter nada contra mim.” E passo à ofensiva:
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— Acompanhar? Como assim? Eu tem 28 anos, um metro e oitenta e três, cabelo preto. O ladrão é mais velho, mais baixo. — Tento mostrar o despropósito de sua suspeita.
Mas o chefe da patrulha não se guia pela lógica. Ao que tudo indica, meu aspecto deu-lhe uma boa pista.
— Acompanhe-me — repete asperamente. — E limite-se a responder quando lhe perguntarem alguma coisa!
Um de seus subordinados tenta segurar-me pelo braço, porém me desvencilho, dizendo:
— Não precisa disso! Eu vai.Lá fora, sou cercado pelos outros policiais e também
por alguns civis. “Puta merda, como vou sair dessa?” Os guardas estão frustrados, pois o verdadeiro criminoso desapareceu. Agora precisam de um bode expiatório.
— Documentos! — exige o chefe da patrulha.— Eu não tem. Tudo com Adler, meu chefe. Eu tra
balha em Thyssen todo dia, mas ele não paga dinheiro de gente.— Tento confundi-los, mudando de assunto.
O chefe da patrulha, porém, não se deixa enganar:— Nome? Endereço? — interroga-me.Lentamente soletro: ‘‘S-i-n-i-r-l-i-o-g-l-u’’ e sorrio de
modo amistoso ao ouvi-lo xingar enquanto tenta escrever meu nome. Procuro animá-lo:
— Nome difícil, não? Senhor pode me chamar Ali.Longe de se acalmar, ele me lança um olhar mais fu
rioso ainda. Dou-lhe meu endereço — Dieselstrasse, 10 —, mesmo não o tendo registrado na polícia. Pelo rádio, logo verificam que não existe nenhum Ali Sinirlioglu registrado em tal endereço. O policial jovem agarra-me novamente pelo braço:
— Vamos até a sua casa. Lá você poderá nos mostrar seus documentos!
— Documentos com chefe, ele vem logo. Chefe grande bandido, vive roubando dinheiro de gente, precisa ir
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para cadeia! Vão pegar chefe! — Em seguida, desvio o assunto para a Thyssen: — Vocês pode ir junto lá, portão vinte. Tem meu cartão de ponto. Vocês pode ver que eu trabalha lá.
Os policiais ficam um pouco irritados, mas nem por um instante pensam em averiguar os negócios de meu patrão, embora tudo que eu disse cheire bastante a “tráfico de escravos". Aparentemente o envolvimento da Thyssen não constitui um ato delituoso; com certeza, não querem se queimar.
— Acho melhor levá-lo até o banco e fazer a confrontação — um dos policiais propõe ao chefe.
— Boa idéia! Eu concorda! — digo, já entrando na viatura com meu uniforme sujo de graxa.
O chefe da patrulha rapidamente me puxa para forà, gritando:
— Saia dai! Vai emporcalhar 9 assento com essa graxa toda!
Entrementes, formou-se uma roda de curiosos a nossa volta.
— Ele tentou atacar uma moça alemã! — grita uma dona-de-casa cinqüentona que deixou a sacola de compras encostada a um muro.
Um senhor de seus 65 anos concorda com ela:— Vejam só que olhos frios e cruéis! Um verdadeiro
zumbi enlouquecido! Foi uma sorte ele ter sido preso!— Não é nada disso! Ele só assaltou um banco —
corrige um rapaz sentado em sua bicicleta.Começa uma polêmica no grupo. A maioria dá ra
zão ao jovem da bicicleta; outros preferem a teoria da violação — uma mulher chega a afirmar que ouviu a vítima “ gritar" enquanto era transportada na ambulância.
Todo o interrogatório prolonga-se por uns vinte minutos — durante os quais o verdadeiro ladrão sem dúvida fugiu tranqüilamente —, até que o chefe da patrulha toma uma decisão:
— Volte para o bar e aguarde nosso regresso com as testemunhas para fazermos a confrontação! E não tente
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fugir! Vou deixar um homem vigiando a porta. Você não conseguirá escapar!
Espero durante quase uma hora, e nada de testemunhas. Os policiais devem ter achado sua suspeita tão absurda que desistiram de fazer um papel ridículo. Assim que o vigia desaparece, esgueiro-me cautelosamente até meu carro e dou o fora. Que alívio!
Antes de partir, ainda me dirijo aos fregueses do bar:— Vocês viu? Só porque eu é estrangeiro eles queria
me levar. Ladrão verdadeiro era loiro, tinha só um metro e setenta, era mais velho...
— É, mas você podia estar usando uma peruca! — caçoa um velhote funcionário da Fazenda, sentado junto ao balcão. Todos riem. — Se bem entendi — confidencia- me ele, já do lado de fora —, você trabalha na Thyssen ilegalmente. Mas você não é o único! Há um número incrível de histórias como a sua que nos chegam aos ouvidos, mas os meus superiores não se atrevem a tomar providências. Mesmo que eu resolvesse denunciar a sua história, não adiantaria nada!
Três meses depois vivo nova experiência com a polícia, desta vez mais arriscada.
Uma tarde, saio do trabalho, morto de cansaço, entro no calhambeque (estacionado a alguns quarteirões de .distância) e, ao manobrar em marcha à ré, bato num carro novinho em folha. Num abrir e fechar de olhos, forma- se uma multidão a meu redor. Bastante agitada, a proprietária do veículo aproxima-se. Imediatamente reconheço minha culpa, prometo pagar todos os prejuízos e proponho- me a assinar quantos papéis forem necessários. Mas, desinteressados, os alemães gritam:
— Não acredite nele, é estrangeiro e está mentindo! Chame a polícia!
Estou com a carta de motorista de um operário turco, cuja fotografia nem de longe se parece comigo. Se a
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polícia vier e descobrir minha verdadeira identidade, toda a minha representação terminará de maneira bem estúpida. Imploro à mulher:
— Por favor, polícia não! Eu já tem questão com polícia Flensburg. Eu vai levar outra multa e perde carta motorista. E, quem sabe, eles me expulsa para Turquia!
A mulher hesita, mas a multidão é unânime:— Chame a polícia!Um sujeito sai correndo e entra numa loja. Telefo
na. Logo em seguida aparece um policial de meia-idade. Olha-me da cabeça aos pés, bastante desconfiado, toma nota da ocorrência e intima-me a acompanhá-lo à delegacia mais próxima.
— Se houver alguma coisa contra ele, a senhora ficará sabendo imediatamente — garante à mulher.
Compara a fotografia da carta de motorista com minha fisionomia e balança a cabeça, como se quisesse dizer: “Está certo!” , mesmo não havendo o menor traço de semelhança. Checa as outras informações pelo computador da delegacia e mostra-se realmente surpreso ao ver que nada consta contra Ali Sigirlioglu.
— Não há nada, pode ir embora!— Bom trabalho — cumprimento-o. — Em Turquia
gente precisa dois dias para saber tudo isso.— Mas estamos na Alemanha! — diz com orgulho.— É, eu sabe — replico. — Mesmo assim, parabéns!E fico radiante ao colocar os pés na rua.
Os parapeitos: questão de mícron e “mico”
Para variar um pouco, Adler arranja para mim uma coisa muito especial.
— Apresente-se amanhã, às sete horas, na firma de Theo Remmert, o irmão do nosso Remmert. Você vai pintar parapeitos. Pagamento por empreitada.
— Muito trabalho? — pergunto. — Quanto tempo leva?— Você pode trabalhar lá durante um ano.— E quanto eu recebe?
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Adler atrapalha-se um pouco com uma pergunta tão inoportuna. Finge fazer alguns cálculos e depois responde:
— Digamos 1 marco por metro.Na manhã seguinte apresento-me a um encarregado
que já está a par de tudo. Digo-lhe que Adler me mandou, e ele, com um sorriso complacente, pergunta-me pelo pagamento estipulado.
— Eu vai ganhar 1 marco cada metro.— Então você vai ter que trabalhar feito louco se qui
ser ganhar algum dinheiro. Nem pense em parar para descansar!
Tudo indica que a empresa de Theo Remmert está com os prazos estourando. Os parapeitos devem estar prontos e montados numa nova instalação da Ruhrchemie o mais breve possível.
Durante quase uma semana, trabalho como um condenado, de manhã à noite, com um descanso de no máximo dez minutos. E só consigo pintar cinqüenta metros, por dia, quando muito. Os parapeitos têm um metro e vinte e cinco de altura, cada um possui três arcos, e há também toda a moldura. Nos cantos e nas fendas diminutas é necessário utilizar um pincel menor. E mais: depois de pintá- los, devo transportá-los para o outro lado da oficina com o auxílio de um guindaste. Por esse serviço, não recebo um centavo. Também não ganho nada quando o chefe reclama que alguns parapeitos não estão bem pintados ou que falta um pouco de tinta nuns cantinhos minúsculos. O que significa remover os pesados parapeitos novamente com o guindaste.
Para ganhar tempo, trabalho com um pincel em cada mão. E ainda não é o bastante. Um alemão, operário estável da Remmert, que pintava os parapeitos recebendo como diarista, olha para mim com comiseração e diz: “Ninguém agüenta um ritmo desses durante um dia inteiro. Você vai se arrebentar. Não tenha tanta pressa!” E, ao saber quanto ganho, sacode a cabeça: “Por esse dinheiro eu largaria o serviço na hora. Não daria uma pincelada” . De bom grado, admite trabalhar no máximo a metade do
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que eu trabalho e receber 13 marcos por hora. Nesse ritmo, porém, vou receber entre 5 e 7 marcos.
A despeito do salário miserável, percebo que aqui trabalho com outro estado de espírito. E claro que sou pressionado, mas é uma forma diferente de pressão. Não há ninguém o tempo todo atrás de mim, gritando e dando ordens. Não há o medo permanente de chefes, superiores, supervisores. O ambiente é um pouco mais agradável que na Thyssen. Ainda que, ao voltar para casa, eu esteja completamente moído. Olho para o relógio e surpreendo-me ao ver que já é tão tarde. Preferiria que fosse mais cedo. Exatamente o oposto do que acontecia na Thyssen, onde as horas se arrastavam. Lá eu ficava muito contente ao perceber que elas estavam passando! Contava-as uma a uma e me agoniava ao verificar que ainda faltavam quatro horas para o fim do expediente. O trabalho por empreitada é a categoria mais baixa e aviltante da pretensa atividade independente, já que não apresenta quaisquer vantagens reais ligadas a essa condição.
Todos os dias o encarregado da Remmert vem controlar e cronometrar meu serviço. Às vezes obriga-me a pintar novamente algumas partes dos parapeitos ou a arrancar as bolhas que se formaram e depois dar outra demão de tinta. Ninguém me paga pelo tempo gasto com esse trabalho.
Digo que é impossível viver com os 5 ou 6 marcos que me pagam por hora e que me sinto explorado. Ele simplesmente me responde: “Não temos nada com isso. Pagamos diretamente a Adler, que recebe um bom dinheiro. Vá reclamar com 616!**
Não me revela o lucro de Adler. Calculo, porém, que ele deve cobrar umas três ou cinco vezes o que eu ganho só para servir de intermediário entre seus escravos e a Remmert. Sem precisar mover um dedo.
Minha tarefa está terminada: 210 metros de parapeito pintados de ocre (de alto a baixo, atrás, na frente, por toda a volta). Sapatos, calça e camisa inteiramente respin- gados de tinta. O encarregado da Remmert avisa-me que
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os parapeitos serão instalados o mais rápido possível numa nova construção da Ruhrchemie. E só dali a algumas semanas serão montados novos parapeitos.
Eis o ano de trabalho estável que Adler prometeu! Telefono para ele, informando-o sobre minha situação.
— Não tem importância! — diz. — Apresente-se amanhã de manhã, às cinco horas, na Thyssen. Há uma equipe nova.
— E quando senhor paga para mim pintura de parapeito? — pergunto.
— Vamos acertar isso quando a Remmert me fizer o pagamento — responde. — De qualquer modo, você já pode pintar parapeitos nos fins de semana!
Passam-se três semanas e nada dos 210 marcos a que tenho direito pela tarefa especial e pesada. Vou pedir explicações a Adler, que me diz sem o menor constrangimento: “ Você não fez o serviço direito. Por que eu deveria lhe pagar, se tive muitos aborrecimentos por sua causa? E até agora também não recebi o dinheiro” .
Pergunto qual foi o problema, e ele começa a me tapear, fala de um tal “medida mícron” que aparentemente tem a ver com a camada de tinta empregada, que não era bastante espessa. Considero isso mais um de seus truques habituais. Contudo, mesmo que fosse o caso, a culpa não seria minha. O encarregado da Remmert fiscalizou o serviço e disse que estava tudo em ordem. Decido ir pessoalmente cobrar do sr. Remmert. Para impressioná- lo, vou logo depois do trabalho, com a roupa e o rosto negros de sujeira. Dirijo-me ao prédio administrativo da empresa Remmert. Logo no salão de entrada e bem à vista do público, os dizeres de um quàdro gigantesco resumem a filosofia de vida de Theo Remmert:
A lg u m a s pessoas c onsideram o p a tr ã o u m c ã o sa r n en t o QUE DEVE SER ABATIDO. OUTRAS PENSAM QUE O PATRÃO É UMA VACA QUE SE PODE PUXAR PELO CABRESTO. POUCOS VÊEM NELE O HOMEM QUE CONDUZ A CARROÇA.
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E, assim, Ali, o comedor de pó, o lustrador de ferro, o burro de carga, o trabalhador explorado, vai ao encontro de Theo Remmert, o condutor da carroça e criador de máximas. Sem ser visto, consigo passar pela recepcionista e subir até o andar onde se localiza o escritório do patrão. Remmert não está, mas encontro um de seus diretores, que fala ao telefone sobre uma transação milionária. Ele arregala os olhos ao ver-me entrar.
— Que história essa mico? — pergunto-lhe à queima- roupa. — Eu fez trabalho, chefe falou “tudo bem” , mas agora, dinheiro nada. Por quê?
— “Mico” ?! Ah, o senhor deve estar querendo dizer “mícron” — corrige-me. — É a espessura da tinta. Mas não estou a par do assunto. Procure Adler; é ele quem deve lhe pagar!
O empurra-empurra continua. Adler manda-me para a Ruhrchemie, “repintar tudo” . Do contrário, “nem um centavo!”
Durante horas, procuro os parapeitos naquele imenso parque industrial, nos confins de Oberhausen, um lugar fétido e de difícil acesso. Até que, finalmente, encontro- os instalados sobre uma armação metálica, numa altura vertiginosa. Um vigia impede-me de subir até lá, dizendo que é muito perigoso. Quando lhe falo do tal “mícron” ou “ mico” , ele pergunta: “ O que é isso? O que importa é que os parapeitos já estão lá em cima” .
Volto a reclamar com Adler (por telefone):— É, é Ali, outra vez! Chefe diz “mico” não tem im
portância. Diz parapeito lá e ninguém mais vai cair.— Primeiro, repintar tudo — responde, irritado. —
E só me apareça aqui a semana que vem! Caso contrário, nada de dinheiro!
Minha visita seguinte à Ruhrchemie também não produz nenhum resultado. Se fosse realmente necessário repintar os parapeitos já instalados, teria um desconto de 2 marcos por hora em meu salário, uma vez que demandaria muito tempo trabalhar pendurado naquela altura.
Como sempre, não recebi um centavo por essa tarefa
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especial. E foi um serviço duro e imponente. Colocados lado a lado, os parapeitos cercariam metade de um campo de futebol.
Como no faroeste
tfeceber pelo menos uma parte do salário exige enormes esforços.
Adler mora num bairro elegante de Oberhausen, a cerca de quinze quilômetros das indústrias August Thyssen. Mas os dejetos industriais lançados pelas chaminés da Thyssen não chegam até ali: são filtrados por um cinturão de floresta natural que cerca o bairro. Para ir dos imundos e poluídos bairros fabris à residência de Adler é preciso tomar vários ônibus — quando passam, bem entendido! Depois, quem quer falar com ele deve esperar um bom tempo diante da porta de sua casa. Àgora mesmo um operário que havia marcado um encontro com Adler está ali parado, esperando. O melhor a fazer é chegar de fini- nho, tocar a campainha e se encolher junto à porta; assim ele não consegue ver a gente pela janela.
Adler tem sempre uma coleção de fórmulas prontas para se livrar de seu pessoal.
“No momento, é impossível verificar isso!”“Não fico sem pagar nem mesmo por uma hora!” “Não estou com meu talão de cheques e não tenho
dinheiro trocado.”“Há dias que ando atrás do senhor; sua folha de pa
gamento estará pronta na segunda-feira.” (O que é absolutamente falso.)
“ Meu escritório fica em Danslaken, onde tenho uma empresa de construções metálicas; deixei tudo lá.”
Então, ele marca um novo encontro para outro dia e não aparece. Ou diz, como falou para mim: “ Se tudo continuar correndo bem, não me recusarei a dar um aumento de 1 marco por hora. Pode confiar em mim! Voltaremos a falar sobre isso no mês que vem” .
Jamais dá o aumento. Ao invés de dar 1 marco, co
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mo me prometeu, diminui 1 marco dois meses depois. E sua justificativa para não pagar horas extras, mesmo quando o pessoal trabalha durante a Páscoa, Pentecostes ou Natal, é a seguinte: “Trabalhamos por um preço menor. É por isso que a Thyssen contrata firmas pequenas e médias como a nossa. Porque, na maior parte das vezes, somos mais baratos que seus próprios empregados! É por isso! Se a Thyssen pudesse, despediria seus operários e só contrataria serviços de empresas como a nossa, porque saímos bem mais em conta!"
Adler utiliza uma série de truques para manter uma aparência de legalidade. “Recibos de trabalho temporário, por exemplo! De acordo com a lei, uma pessoa pode receber até 390 marcos por mês sem pagar imposto; e se a pessoa usar o nome de um parente, serão 780 marcos de trabalho temporário. E tudo dentro da lei!” Outro truque: inscrever retroativamente na previdência social o trabalhador que fica doente.
Quando os empregados reclamam dos salários atrasados, ele se esquiva dizendo: “Os boletins de freqüência! Tragam-me os boletins de freqüência assinados por Zen- tel, ou nada de dinheiro! Sem eles, não posso fazer coisa nenhuma!” Tenho a impressão de que combinou esse golpe com Zentel, porque o “xerife” sempre se recusa a assinar nossos boletins de freqüência. “Não tenho tempo a perder com essas coisas” , declara, e assim se livra de nós. “Seja como for, todos os dias informo Adler sobre o número de horas que vocês fizeram.” E ficamos assim: correndo de um lado para o outro, sem conseguir os boletins de freqüência e, conseqüentemente, sem receber nosso salário. Entretanto, os cartões de ponto da Thyssen documentam com precisão nosso horário de trabalho. Adler não os considera: “Não me interessam! Não provam nada!”
Junto com Osman, vou procurar Adler. Sem aVisá- lo, chegamos por volta das seis e meia, horário em que normalmente ele já se encontra em casa. É o último dia de Osman na Alemanha; ele resolveu voltar de ônibus para a Turquia e ficar por lá definitivamente. Um dia antes,
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Osman havia tentado falar com Adler, que, no entanto, não o recebeu, embora tivesse concordado com o encontro.
Ao me ver, Adler leva um susto:— Que figura! Você está com uma aparência péssima!— Por causa trabalho. Tudo sempre sujo e cheio poei
ra. Eu precisa limpar tudo. E depois sujeira não sai direito quando eu lava. Muito pó entra dentro de pele.
Preocupado com seu papel de parede, Adler ordena:— Fique longe da parede! No mínimo a um metro
de distância. Capenga como você está, pode acabar encostando nela. - r Depois volta-se para Osman: — E você? Vir assim, sem avisar... Deve ter merda na cabeça. Que cara de pau! Rastejar até aqui a esta hora da noite!
— Eu vou amanhã para Turquia. Preciso comprar alguma coisa, mas não tenho um centavo.
— Não posso fazer nada! De qualquer forma, foi uma sujeira ter vindo. — Ele se descontrola, e desta vez sua indignação não parece ensaiada. Ainda repete umas três vezes que “ foi uma sujeira* * antes de dizer, com a voz mais elevada: — Logo, logo vocês vão aparecer lá pelas dez, onze da noite!
— Não! Senhor não tem medo — asseguro-lhe. — Gente também precisa dormir.
Adler, porém, não se acalma:— Vocês têm mesmo merda na cabeça. Virem à mi
nha casa a esta hora, mas que saco! Que caras de pau! Não se atrevam a fazer isso novamente. Não sou privada para virem aqui cagar. Voltar amanhã para a Turquia? claro que está mentindo! Não admito que mintam para mim!
— Mas é verdade! — intervenho. — Amanhã eu vai com ele até ônibus.
— Ninguém lhe perguntou nada. Faça o favor de ficar de fora! Francamente, visitas como essas... às sete, sete e quinze da noite... vocês pensam que estamos no faroeste?
Osman não desiste:— Mas como é que eu faço? Amanhã eu não estou
aqui. E eu praticamente não recebo nada!
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— Eu também — acrescento. — Já faz muita semana que eu não tem dinheiro nem para comer.
— Você acha que eu sou algum energúmeno? Fora daqui, seus imbecis!
Já na rua, os olhos de Osman enchem-se de lágrimas.— Ele roubou meu pagamento. Agora eu volto para
Turquia e não posso fazer nada.
A fúria de Yüksel
De novo na Thyssen. Depois do expediente, converso com Yüksel Atasayar, um moço de vinte anos. Exaustos e cobertos de pó até o último fio de cabelo, esperamos nosso transporte.
YÜKSEL: Eu jogo na loteria uns 30, 40 marcos. Não sempre.
EU: Uma vez semana?YÜKSEL: Às vezes. Quem sabe, um dia, tenho sorte.
Melhor gastar 30 ou 40 marcos com isso do que com cigarros. Pense bem. Todo dia um maço. Já imaginou quantos por mês? É só fazer as contas: 4 marcos vezes trinta...
Eu: Dá 120 marcos. No ano, 1,440. Em dez anos, 14 mil. Sem falar juros. Em vinte anos, quase 30, 40 mil marcos...
YÜKSEL: Isso se a gente ainda viver vinte anos.EU: Eu acha não. Gente trabalha sujeira toda. Dez
anos, gente já está enterrado. Câncer... Ou quem sabe enterra daqui cinco anos.
YÜKSEL: É mesmo! Primeiro começa a doer, depois... pronto, morto! Se ao menos a gente pudesse economizar um pouco e gastar tudo antes de morrer... Um dia, quando eu tiver coragem, acabo com tudo. Quanto tempo você quer viver? Uma vida de merda como essa! Você acredita em Deus?
EU: Não. Eu acredita em gente, não em coisa de fora. Você não pode acreditar nele! Ele não ajuda gente!
YÜKSEL: Mas, se ele existe, por que criou alguém como Adler?
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EU: Erro fabricação! Ele queria coisa diferente e errou.
YÜKSEL: Se Deus existe, não pode errar. Deus é Deus. Não tem direito de errar.
EU: Quem sabe ele é tapado, doido. Ou vai ver que aquele dia estava muito cansado. Senão Adler não existia, nem trabalho de merda.
YÜKSEL: É, é uma merda! Trabalho maldito!Yüksel Atasayar é um dos mais argutos observado
res dentre os colegas turcos. Sabe muito bem reconhecer os alemães que têm preconceito contra os turcos, mesmo quando não o manifestam abertamente. Consegue até pressentir o estado de espírito dos encarregados e supervisores e previne os amigos contra o mau humor e as ameaças. “Tomem cuidado, Zentel hoje está procurando uma vítima” , nos diz logo de manhã cedo, em nosso local de encontro, enquanto o “xerife” ainda cochila, sentado em seu carro. Yüksel percebe nos mínimos sinais a aproximação da tempestade. Realmente, algumas horas depois, Zentel tem um acesso de raiva e põe na rua um operário turco que ousou deixar o local de trabalho durante o horário de folga (não remunerado, é claro).
Na verdade, Yüksel Atasayar só tem de turco o nome. Cresceu na Alemanha, fala alemão sem sotaque e sente-se mesmo alemão. Até seu aspecto não corresponde ao estereótipo de um turco: tem cabelo ligeiramente loiro e olhos castanho-azulados. Somente seu nome o impele para o grupo de operários turcos, com os quais, aliás, tem algumas dificuldades de comunicação. Tivesse ele um nome alemão e certamente escaparia do ódio de Alfred, o encarregado, que por qualquer ninharia despeja sua agressividade sobre Yüksel e outros imigrantes. Uma vez Yüksel ousa lembrar a Alfred (que, trabalhando como um pos- sesso, perdeu completamente a noção do tempo) que o horário de descanso já passou. Alfred planta-se diante dele e grita:
— Primeiro o trabalho! Depois o descanso! Sempre foi assim na Alemanha. Nós, alemães, crescemos apren
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dendo isso. E quer saber o que você é? Um filho da puta, grandessíssimo filho da puta! — Mais tarde, durante o intervalo, volta à carga com maior intensidade: — Escute bem! Se um dia desses você se encontrasse com Menge- le... Sabe quem é, não? Mengele foi um dos nossos melhores médicos e cientistas. Tenho certeza de que ainda está vivo. Ninguém conseguiu pegá-lo até hoje. Então, se Mengele estivesse naquela rampa e você passasse por ali, sabe o que ele iria dizer? “Ei, você! Saia pela direita! Direto para a câmera de gás! Não se pode fazer nenhuma experiência com você!” E sabe por quê!
Pálido, Yüksel não ousa replicar. Apenas balbucia:— Não. Por quê?— Porque você não serve para nada! Absolutamen
te nada! Você veio para cá só para escapar da ditadura militar no seu país. Para ser criado num jardim-de-infância da Alemanha, para ser mimado e bem tratado. Se tivesse ficado por lá, então, sim, você ia ver o que é bom! Vocês, turcos, nunca souberam o que é uma democracia. Não fazem a menor idéia. Primeiro deviam aprender a viver numa ditadura militar. E não vir para cá para serem paparicados e viverem à nossa custa!
Yüksel já desistiu de se defender contra explosões desse tipo. Sabe quanto vale a lei do mais forte. Prefere afastar-se dos insultos. Pega seu sanduíche e, sem dizer uma palavra, vai sentar-se do outro lado da oficina, longe da vista e do alcance de seu perseguidor. Quinze minutos depois, ao retomar ao trabalho, há em seu rosto empoeirado duas listras claras, traçadas pelas lágrimas.
A propósito, Yüksel é o único a reparar que fico escrevendo durante os curtos intervalos. As vezes, pisca um olho para mim dando a entender que está de acordo, que me ajudará. Mesmo assim, fico inseguro e preocupado. Não sei se ele não acabaria contando para os outros.
Um dia, depois de trabalhar na área do alto-fomo, num calor infernal, sentamo-nos no chão, com as costas apoiadas na parede, à espera do microônibus. Yüksel então resolve me perguntar:
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— Você toma nota de tudo?— Por favor, não conte a ninguém — respondo,
aproveitando a oportunidade. — Ainda não posso falar sobre isso, mas logo você vai saber de tudo.
Ele percebe meu temor e vê que a coisa é mesmo séria. Não me pergunta mais nada. Saberá guardar segredo durante meses e meses.
— Você deve tomar nota de tudo que esses porcos fazem conosco — murmura-me no ouvido. — Não deixe passar nada!
Yüksel parece pressentir meus propósitos e muitas vezes me passa informações oportunas sem perguntar nada. É apolítico, mas — quase uma criança ainda — respeita a disciplina do silêncio, movido por um profundo sentimento de humilhação e desespero, do qual provém o senso de solidariedade.
Yüksel Atasayar descreve sua situação:“ Quando meus pais vieram para a Alemanha, eu ti
nha acabado de nascer. Isso foi há vinte anos. Somos de Amassia. Não sei exatamente onde fica; sei que é para os lados da Armênia. Mas onde, ao certo, não sei.
“Em casa conversamos em turco; isto é, as coisas mais simples. Mas não sei falar fluentemente. Não consigo acompanhar os assuntos mais complexos. Quando leio jornais turcos, só entendo a metade. Meus pais falam turco perfeitamente; só conversam em turco. Não sabem muito bem alemão. Eu me sinto mais alemão do que turco.
“Meu pai também trabalha na Thyssen, no setor de laminação. E também ganha uma miséria: 1 200, 1 300 marcos.
“Como vim parar nesse trabalho? Um amigo me deu a indicação. Só precisei me apresentar ao encarregado. Esse meu amigo me disse para eu vir com uniforme de trabalho. Foi o que fiz. Perguntei se estavam precisando de empregados. Disseram que sim, era só subir no ônibus. Subi, o ônibus seguiu para a Thyssen e depois fomos divididos em grupos, cada um para um canteiro de obras.
“ O primeiro dia foi um inferno. Sujeira, pó, fuma
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ça: um verdadeiro inferno; terrível para a saúde. Fomos trabalhar na fundição. Limpamos as máquinas e as ferramentas e engolimos fumaça e poeira. Alguns começaram a vomitar e houve um que até desmaiou. Outros caíram, não conseguiam mais respirar.
“Dámuita raiva trabalhar num local tão imundo. Não nos dão nem sapatos de proteção. Adler não tem a menor compaixão das pessoas. Pouco se importa se um de nós se arrebenta. Para ele, tanto faz se alguém morrer. E toda aquela lenga-lenga, quando ele fala do salário: ‘Você não precisa de tanto dinheiro. Você é solteiro, devia ficar feliz por trabalhar aqui*.
“Não quer nem saber se a gente está bem ou mal. Para ele é a mesma coisa se você está ferrado ou não. Na verdade, Adler não passa de um cafetão, é isso que ele é. A única coisa que lhe interessa é o dinheiro que damos para ele. É um bandido, mas está limpo, porque sempre age por baixo do pano.
“Nunca me pagou o salário corretamente. Ainda agora me deve mais de 800 marcos.
“Há dias em que a gente fica completamente moído, só deseja morrer. E na verdade é quase sempre por causa do pó e da fumaça. Tudo isso vai enfraquecendo a gente. Ataca diretamente os pulmões. Eu sinto isso porque gosto de praticar esportes. Antes eu vivia correndo, no mínimo uma hora. Mas hoje... basta correr alguns minutos e os pulmões começam a queimar. O pessoal mais antigo também tem um aspecto horrível. Inclusive os da Remmert.
“ Os que já estão trabalhando há três ou quatro anos parecem muito debilitados. Têm trinta, quarenta anos de idade, mas aparentam cinqüenta. Ou mesmo sessenta. O cabelo caiu quase todo, o rosto é magro, encovado, pálido. Às vezes, acho que estou com câncer, câncer nos pulmões, por causa de tudo isso que respiramos. Uma camada tão grossa de pó que é impossível enxergar um palmo adiante do nariz. Lá no setor Oxy é pavoroso. Eu tenho medo de sofrer muito com uma morte assim.
“Um dia, eu tive a exata sensação de estar bem no
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meio de uma guerra atômica: pó, fumaça e tudo mais. Igual aos filmes de guerra que a gente costuma ver.
“ Sem falar naqueles outros locais extremamente perigosos. Por exemplo? Os lugares onde escapa o gás. A gente pode se ferrar num local desses. E é obrigado a trabalhar lá dentro, nesses locais superperigosos. Por toda parte há tabuletas avisando que a gente pode se ferrar se escapar muito gás. O pior é que nem conseguimos perceber, nem conseguimos sentir o cheiro do gás. Tem aquele aparelho para indicar se há perigo. Eu freqüentemente tenho tontura, vontade de vomitar. Há dias que não dá para agüentar. Muitas vezes perco a fome, não coloco nada na boca, o tempo todo só engulo aquele pó. Dá até para mastigar o pó, de tão espesso que é. Cheio de chumbo, cádmio e um monte de outra coisa, quem sabe ao certo? Às vezes vou para um canto e vomito; depois me sento um pouco para respirar.
“É preciso mesmo ver para crer... Mesmo depois do banho, quando você chega do trabalho, aquilo tudo ainda fica depositado nos pulmões. Por fora, você está limpo; mas por dentro... fica tudo lá dentro. Essa merda te deixa imundo. Daí você vai e faz ela desaparecer. Mas, no dia seguinte, lá está você de novo no meio de toda essa merda. E assim sem parar.
“Não entendo como podem pagar tão pouco por um trabalho desses. Eles querem enriquecer depressa. Querem ganhar mais e mais, e já são tão ricos... Mesmo que prendessem Adler, não ia mudar nada. A Remmert continuaria com o serviço, e a gente continuaria a se ferrar. E a Thyssen sabe de tudo, claro! É ela que nos dá emprego, portanto deve saber de tudo.
“Para mim a vida não tem nenhum valor. Não tem nada de significativo. Antes, com catorze, quinze anos, já quase um adulto, a gente tem uma namorada e quer ir para a cama com ela, não é? Mas, depois, o que sobra? Não, isso não é o máximo! Só quando a gente tenta conseguir alguma coisa, quando tem um objetivo, é que a vida passa a ter sentido. A gente sente vontade de fazer al
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guma coisa... mas, se não for assim, a vida não tem sentido. Para que é que ela serve, hein?
“ Quando eu fui mais feliz? Quando viajei de férias para a Turquia, junto com meus pais. Eu tinha doze anos. Foi muito legal. Tive uma sensação ótima, completamente diferente. E quando me senti pior? Agora, trabalhando para Adler, aqui na Thyssen. É a pior coisa. Eu preferia estar morto” .
“ Chuveiro de emergência”
No mínimo uma vez por semana somos enviados ao setor Oxygen, para limpar o pó que vive se acumulando por lá.
Numa altura de cinqüenta ou sessenta metros, em salas fechadas, devemos tirar todo o pó das máquinas deixando- o amontoar-se no chão em camadas de um a três centímetros. Depois o recolhemos e levamos para fora em carrinhos de mão. Esse pó é composto por partículas de chumbo e outros metais nocivos à saúde (manganês e titânio), além de grande quantidade de partículas de ferro. Certa vez Yük- sel teve violento ataque de tosse e, sufocado, pediu a um dos controladores da Thyssen uma máscara de proteção. “Para vocês não temos disso” , disse o homem. “Mas não se preocupe, ferro faz bem para a saúde, fortalece o sangue.” E completou: “Se engolir bastante pó de ferro, depois de um certo tempo você pode até grudar um ímã no peito” . Yüksel, que não estava para brincadeiras, mais tarde perguntou ao supervisor se era verdadeira a tal história do ímã. Foi ridicularizado diante de todos e o chefe chamou-o de “turco cretino” .
Durante nosso trabalho os sinais de alarme e as luzes vermelhas de emergência não param de tocar e acender, o que significa que deveríamos abandonar a área imediatamente. Para reforçar, por toda parte avisos luminosos piscam sem cessar: Em Caso db Ventania, Deixar Imediatamente A ÁREA DO CONVERSOR! PERIGO DE EXPLOSÃO! Emanação de Oxigênio! E nós ali, trabalhando.
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Assustado, um operário turco quis afastar-se da zona perigosa. O encarregado da Thyssen ordenou-lhe que continuasse a trabalhar; do contrário sua atitude seria considerada como abandono do posto de serviço e ele poderia ir definitivamente para casa.
Um dos encarregados explica-nos para que servem tantos dispositivos: “Uma vez houve um acidente na área do conversor, e por isso a empresa foi obrigada a instalar esse sistema de alarme e prevenção. Se acontecer alguma coisa, a Thyssen não será responsável. Vocês foram muito bem informados de que não deviam trabalhar naquele setor” . É desse modo que a Thyssen se isenta de responsabilidade. Se algo acontecer, nós mesmos seremos os culpados — graças a nossa estupidez, já que a advertência foi bem clara. Mas, para nossa tranqüilidade, instalaram vários chuveiros na zona perigosa. Em caso de incêndio, basta correr para baixo da água. Mesmo os imigrantes que não sabem alemão entendem para que servem os chuveiros: há tabuletas esmaltadas com a silhueta de um operário munido de equipamento completo de segurança e rodeado pelas chamas sob o jato de água. Nas tabuletas está escrito: Chuveiro de Emergência.
Finalmente uma tarefa agradável perto da concreção III: do alto do telhado baixamos, através de cordas, caixotes com baldes repletos de pó e lama. É um trabalho cansativo, que nos faz suar às bicas, mas pelo menos permite que respiremos um ar suportável. E ainda nos dá a chance de admirar toda a paisagem industrial que se estende ao redor. Conseguimos até avistar o Reno ao longe! A vida adquire novo brilho quando a gente escapa daquelas masmorras sombrias e empoeiradas. Até a chuva é bem-vinda. É mesmo um prazer desfrutar aquela visão ampla, e sem sofrer crises de asfixia. Sentimo-nos como se tivéssemos saído de uma prisão. Depois de quase três horas de deleite nessa liberdade relativa, somos obrigados a regressar repentinamente ao setor Oxygen. Acomodamo- nos no ônibus como podemos, agachados entre ferramentas e carrinhos de mão. Um turco de certa idade quase foi atro
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pelado devido à pouca visibilidade. Comentário do encarregado a nosso motorista turco: “Passe por cima, rápido! Há uma recompensa para cada turco a menos!”
O “xerife” Zentel, expõe o problema: a máquina de transbordo do ferro-bruto — um monstro gigantesco — enguiçou. Toda a produção está parada. Cada minuto que passa representa um prejuízo imenso para a siderúrgica. O bloqueio provocou ainda a ruptura de uma peça da máquina. Já providenciaram uma nova e estão tentando colocá-la. Nossa tarefa: entrar nos estreitos dutos de aspiração do pó e desobstruir a máquina.
“Apressem-se e dêem duro lá dentro!” diz o “xerife” . “Só poderão sair quando o equipamento voltar a funcionar. Quero que tudo esteja em ordem até uma da tarde, no máximo!”
Empoleirados nas oscilantes escadas de mão, precisamos fazer muita ginástica para nos espremer naquelas aberturas que mal têm a largura de nossos ombros. A golpes de pés-de-cabra, pás e malhos gigantescos, tentamos remover o minério de ferro ali incrustado, mas ele não se solta, está grudado. Alfred, o encarregado, que está ali apenas para acelerar o trabalho, espuma de ódio ao ver que só conseguimos retirar uma pequena parte daquela massa espessa.
— Bando de macacos africanos, cambada de capa- dócios, turcos de merda, judeus dos infernos! — põe-se a enumerar aos berros. — Vocês não servem para nada mesmo! Devíamos encostar todos vocês na parede e meter um tiro na nuca de cada um! — Quando perde o fôlego de tanto gritar, passa às vias de fato e joga um pé-de- cabra na cabeça de um operário indiano, felizmente atingindo-o só de raspão. — Da próxima vez, fique em casa! — esbraveja. — Não tenha medo, que eu não vou trabalhar na Turquia.
— Ele não é turco — tento explicar-lhe. — Indiano.Mas Alfred não desiste:— Conheço de longe quem vem da Anatólia! Todos
têm a mesma cara de burro! Esse aí também é de lá, desse lugar onde o pessoal apaga a luz com o martelo!
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(Um dia, Alfred fez um comentário sobre mim para um dos trabalhadores alemães. Disse que eu também sou da Anatólia porque sempre faço “perguntas cretinas, dessas que nem passam pela cabeça da gente” . E certa vez perguntou-me por que não fiz a gentileza de ficar na Turquia. “Motivo político” , respondo, “ditadura militar.” Minha resposta levou-o a dizer a um colega alemão: “Ali não pode mais voltar para a terra dele, por isso é que trabalha aqui. Na Turquia eles têm um Khomeini enlouquecido!”)
Depois de uma hora de ofensas e tormentos, o “xerife” aparece e constata que é impossível prosseguir com essas ferramentas primitivas. Manda buscar perfuratrizes, brocas e compridas raspadeiras. Sem máscaras, voltamos a atacar a massa compacta, provocando nuvens de pó. Sob os constantes insultos dos dois chefes, rastejamos para o interior da máquina. O barulho estrondoso das perfuratrizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos falar nisso... os olhos ardem, o nariz escorre, todos começam a escarrar. É o inferno! Mais tarde, Mehmet conta- me que, em situações como essa, é preferível passar alguns meses na prisão a suportar tanto horror por algumas horas. Em tais situações, imaginamos os piores métodos para assassinar Adler; em tais situações, como quem arrisca tudo numa cartada, tomamos algumas decisões: um roubo mirabolante ou um assalto a banco. Porque quem se enfia neste buraco não tem nada a perder, não tem nem medo da prisão!
Os joelhos estão ensangüentados; as calças, esfarrapadas; as luvas de trabalho, despedaçadas. E a máquina de transbordo continua parada! Já fez treze, catorze, quinze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas ferramentas pesadas e engolindo todo este pó.
Nesse meio tempo, um dos chefões da Thyssen aparece e põe-se a xingar todo mundo, porque a equipe do turno seguinte está esperando para colocar a máquina em
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A dra. Jutta Wetzel, gastroenterologista, relata a situação de seus pacientes imigrantes:
“Em geral, os operários imigrantes trabalham nas condições mais desfavoráveis. E não estamos falando só dos famosos trabalhos insalubres, mas também — e isso tem um peso ainda maior — daquelas atividades em que o operário é obrigado a permanecer durante horas em posturas forçadas. A conseqüência disso são os fenômenos de desgastes prematuros na coluna vertebral e nas articulações. Da mesma forma, a presença maciça de fumaça e pó favorece o aparecimento de bronquite e gastrite. E há ainda o perigo de entrar em contato com substâncias altamente nocivas, como, por exemplo, o amianto.
“Entretanto só conheço tais locais de trabalho através das descrições fiéis de alguns pacientes. Pois sempre que manifestei desejo de visitar esses locais, impediram-me de fazê- lo. A despeito do alto índice de desemprego, as indústrias raramente encontram alemães dispostos a aceitar esse tipo de serviço. As empresas (companhia de mineração, siderúrgica, fábrica de automóveis, pavimentadora, estaleiro, indústria química) precisam tanto de operários imigrantes que aceitam como inevitável a taxa relativamente alta de enfraquecimento doentio. Portanto, é imprescindível relacionar o enfraquecimento doentio dos operários alemães e imigrantes com suas diferentes condições de trabalho” .
uso. Ordena que, por gentileza, retiremos nossos cus cansados o mais depressa possível.
“Vocês vão ficar aí o tempo que for preciso para fazer a máquina funcionar” , grita o encarregado. “Nem que leve vinte horas!”
Yüksel toma uma decisão e literalmente suplica ao che- fão da Thyssen que nos forneça máscaras protetoras. “Não temos! Vocês precisam é terminar o trabalho, porra!” , responde ele.
Às seis e quinze, doze horas depois, nossa missão suicida chega ao fim. No ônibus, a caminho de casa, quase
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todos os trabalhadores dormem em posição incômoda, sentados sobre as ferramentas.
A partir desse dia tenho os brônquios quase constantemente irritados. E ainda hoje — seis meses depois —, ao escarrar após um acesso de tosse, verifico que o catarro continua preto.
Há tal concentração de pó nos diferentes setores de nosso trabalho que não só inalamos toda essa sujeira, como também a mastigamos literalmente. Ninguém se preocupa em examinar nosso estado de saúde nem as substâncias que ingerimos. Às vezes nos dão um pouco de leite. E isso é tudo. Furtivamente juntei algumas amostras de pó de cores cintilantes. Um punhado pesa tanto quanto uma pedra. Entreguei o material ao Instituto do Meio Ambiente da Universidade de Bremen, órgão totalmente independente das indústrias. Há muitos anos pesquisas como essa já se tomaram rotina em Bremen. Por exemplo: ali foram avaliadas as amostras de terra proveniente da indústria de pilhas Sonnenschein, de Berlim. A empresa apareceu em todas as manchetes de jornais, pois pertencia então ao ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações Schwarz-Schwilling e hoje está nas mãos de sua mulher.
Os primeiros resultados da análise do pó da Thyssen só me foram apresentados pouco antes da publicação deste livro. Até então o instituto jamais havia constatado tamanha concentração de substâncias altamente tóxicas. Os pesquisadores tiveram dificuldade para analisar a primeira amostra porque os aparelhos de precisão mal conseguiram detectar tantas substâncias nocivas concentradas. Descobriu-se um verdadeiro catálogo do mundo dos metais pesados: ástato, bá- rio, bromo, chumbo, cobalto, cobre, cromo, estrôndo, ferro, gadolinio, ítrio, mercúrio, molibdênio, nióbio, paládio, ródio, rubídio, rutênio, selênio, tecnédo, titânio, tungstênio, vanádio, zinco e zircônio — no total, 25 substâncias nocivas diferentes.
Dois metais particularmente concentrados no pó analisado são os mais perigosos: mercúrio e chumbo. Eis o que diz o Instituto da Universidade de Bremen:
“O chumbo é um veneno acumulável, isto é, concentra- se no corpo, mesmo absorvido em pequenas quantidades. Essa acumulação do chumbo pode provocar intoxicação crônica... Não estão excluídos: alteração da personalidade, distúrbios psíquicos, paralisia e distúrbios genéticos” .
Não menos terríveis são os efeitos do mercúrio descritos pelos cientistas: “Os primeiros sintomas patológicos provocados por envenenamento com mercúrio aparecem no cen
“Braços e pernas pesados como chumbo”
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tro nervoso e manifestam-se através de formigamento e entorpecimento das mãos e dos pés seguidos de crescente insensibilidade na região bucal. Simultaneamente aparecem lesões oculares, com redução do campo de visão. O sistema nervoso central é afetado, provocando redução da mobilidade muscular e perturbação da função coordenadora, além de graves danos ao equilíbrio. Braços e pernas agitam-se em espasmos freqüentes, e os músculos são atacados por tétano. O cérebro atrofia-se em 35%...”
Mesmo as “concentrações mais diminutas*' desses elementos podem produzir efeitos tóxicos (venenosos). Por isso a legislação autoriza “no máximo" 1 mg de mercúrio por quilo (1 ppm) e 10 mg de chumbo por quilo (10 ppm) nos produtos alimentícios. Nossa “refeição” indesejada da Thyssen contém oitenta vezes mais mercúrio (77,12 ppm, exatamente) e 2 500 vezes mais chumbo (2 501 ppm).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a absorção semanal de 3 mg de chumbo por pessoa é o máximo tolerável. Ironicamente, a expressão “ter os braços (ou as pernas) pesados como chumbo" corresponde à realidade, pois 90% da quantidade de chumbo absorvida concentram- se nos ossos.
A mesma coisa vale para o mercúrio, que também se concentra no corpo.
Só com um exame de sangue pode-se determinar a quantidade em que essas substâncias nocivas estão concentradas nos pulmões, sangue e ossos dos operários da siderúrgica. A maior parte de meus colegas queixa-se regularmente de dificuldades respiratórias, náuseas, falta de apetite, vômito, distúrbios circulatórios e bronquite aguda. Entre os cientistas não há a menor dúvida: a bronquite está diretamente relacionada com a irritação provocada pela absorção do pó. Outros distúrbios manifestados são sintomas clássicos de intoxicação por metais pesados — e especialmente pelo chumbo.
“Uma vez doente, sempre doente'*Há décadas, os cientistas que estudam as causas das
doenças têm pesquisado os perigos que ameaçam a saúde dos operários nas coquerias do mundo inteiro. Não há nenhuma dúvida: trabalhar em coqueria afeta a saúde.
O maior perigo provém do pó em suspensão produzido pelo gás de coque, porque contém alcatrão. “O alcatrão e todas as substâncias que ele engloba têm efeito cancerígeno” , escreve na revista especializada Arbeitsmedizin o prof. dr. A. Manz, da Universidade de Hamburgo.
Diversas estatísticas têm sido publicadas sobre a ocorrência de doenças cancerosas entre os operários de coqueria. Até o momento, porém, somente o câncer da pele foi reconhecido pelas autoridades da República Federal da Alemanha como doença do trabalho, conseqüência do contato com o alcatrão de hulha. Esse, porém, não é o maior problema.
Os operários de coqueria contraem em média três vezes mais câncer dos pulmões que o resto da população masculina alemã e duas vezes mais câncer da bexiga, do estômago e do intestino. Os números são ainda mais alarmantes quando se comparam os operários de coqueria com os empregados de escritório: os operários morrem de câncer da bexiga numa proporção dez vezes maior e contraem câncer dos pulmões numa proporção oito vezes maior.
A ciência conhece a causa: o benzopireno, substância altamente cancerígena contida no alcatrão de hulha. O benzopireno também é encontrado na fumaça do cigarro; só que na coqueria sua concentração é de trezentas a quatrocentas vezes maior.
Um estudo minucioso feito com operários de coquerias da Polônia revelou estreita relação entre “certas afecções crônicas das vias respiratórias” (por exemplo, bronquite crônica) e o gás de coque. Mas não é só: quem já sofreu de bronquite está particularmente propenso a contrair outras doenças, porque o gás das coquerias afeta o sistema imunológico do corpo.
“Uma vez doente, sempre doente", reza o dito popular.O prof. dr. Manz nos dá a conclusão: os operários que
trabalham nas coquerias têm uma expectativa de vida significativamente menor.
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O testeParem de usar animais como cobaias — usem os turcos!(Grafite num muro em Disburg/Wedau)
Cobaia humana
Osman Tokar (22 anos), um de meus colegas turcos, foi despejado. Há algum tempo Adler prometeu-lhe pagar os salários atrasados. Seu senhorio, porém, não quis esperar mais: Osman teve de sair do local onde morava. Sua mobília humilde ficou lá como penhor, trancada no porão, até o proprietário receber os 620 marcos de aluguel atrasado. A partir daí Osman não tem residência fixa. Às vezes dorme na casa de um primo, num colchão colocado no corredor; às vezes procura amigos que o abrigam por algumas noites. Mas não pode fícar muito tempo, pois não há espaço suficiente nem mesmo para os moradores.
Osman confessa, envergonhado, que chegou a passar a noite num banco de jardim. Corre o risco de ser expulso do país porque não pode comprovar um endereço fixo, além de já ter recorrido aos serviços de assistência social. Mas não quer voltar para a Turquia, para onde só ia como visitante. Sente-se mais em casa nesta Alemanha glacial, onde não passa de um estranho, que em seu país de origem, onde passou apenas os dois primeiros anos de sua vida. Fala alemão um pouco melhor que turco, mas as duas línguas continuam sendo estrangeiras para ele. Desconhece seu verdadeiro lugar; é como se lhe tivessem “roubado a alma” .
Proponho-lhe que venha morar comigo, na Diesels- trasse, mas ele recusa. Devido ao trabalho na Thyssen, adquiriu uma tosse crônica e agora tem medo de dormir “numa cama envenenada pela proximidade da coqueria” . Às vezes pensa em se matar. Um dia, depois de trabalhar um turno inteiro num depósito de carvão e inalar quilos de sujeira até vomitar, fomos descansar um pouco ao ar li-
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vre. Foi então que ele me disse: “Às vezes eu penso em me atirar dentro do alto-forno. Faria um pequeno chiado e não sentiria nada mais*'. Eu me calo, consternado, e Os- man continua: “A gente só tem medo porque é novidade e ninguém ainda tentou. Mas se arrastar no pó feito verme e ao mesmo tempo ser espezinhado é mil vezes pior” .
Conta-me a história de um operário que caiu acidentalmente no alto-forno e num segundo virou brasa. Como nada restou, pegaram simbolicamente um pouco de aço fundido e entregaram à família para o “enterro” . Na verdade, o corpo do operário fundiu-se no aço e foi parar na laminação, onde se transformou em chapa para automóveis, panelas ou tanques.
Osman anuncia que vai visitar o tio em Ulm. Pode ficar morando lá com ele e conseguir um serviço que no
a mínimo será tão nocivo quanto o da Thyssen, mas pelo menos será remunerado. No começo, não diz exatamente do que se trata, apenas comenta que “na Thyssen, temos que engolir o pó e trabalhar como escravos; nesse outro serviço, só temos que engolir e dar o sangue” . Conta-me que requisitam muitos estrangeiros — turcos, indonésios, refugiados políticos sul-americanos, paquistaneses — para esse trabalho especial que consiste em servir de “cobaia” para a indústria farmacêutica. Pergunto se posso tomar seu lugar num teste que deverá ter início dentro de alguns dias; como compensação, eu lhe daria a metade do salário: 1 000 marcos. Ele concorda. O tal serviço vem mesmo a calhar. Com os ombros doloridos e uma bronquite que aos poucos se toma crônica, eu já deveria ter abandonado o trabalho pesado na Thyssen há muito tempo.
Osman me dá o endereço do Instituto LAB em Neu Ulm. É um prédio imponente, um pouco sombrio, com o mau cheiro característico dos albergues de juventude dos anos 50. Um jovem de seus 25 anos, bem-humorado, está sentado na recepção como o autêntico * ‘pai do albergue* *. Ele se esforça para tornar o ambiente mais descontraído e tranqüilizar a todos. Na sala de espera estão algunspunks (fregueses habituais), estrangeiros do tipo mediterrâneo,
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O LAB, em Ulm, é um dos maiores institutos de testes da Europa. Em seus fichários há os nomes de 2 800 provadores — ou seja, cobaias humanas. Isto também pode ser dito de outra forma: testam em nós o que é bom para os lucros da indústria farmacêutica e os efeitos colaterais que podem aparecer nos pacientes.
Apenas uma ínfima percentagem das novas substâncias é realmente testada. De acordo com a lei de medicamentos de 1976, milhares de remédios antigos devem ser novamente testados. Mas na verdade o que se faz é um sem-número de estudos apenas para descobrir melhores estratégias de venda. Pesquisas sérias e significativas são muito raras. Estudam-se campanhas de publicidade, ampliação de mercado ou um modo de lançar um novo medicamento totalmente supérfluo, igual a dezenas de outros que se encontram à venda sob nomes diferentes, mas contêm, quase todos, as mesmas substâncias químicas.
Muitas pessoas insurgem-se — e com razão — contra os testes dolorosos e desnecessários realizados em animais. Mas quase ninguém se incomoda com os testes inúteis e perigosos realizados em pessoas. Nenhum serviço público os fiscaliza.
Está mais que comprovado que as indústrias farmacêuticas adulteram e até mesmo copiam os pareceres emitidos por clínicas conceituadas, ainda que estes se fundamentem em testes realizados em hospitais públicos. Já imaginou como devem ser os testes feitos nos diversos institutos particulares que, na prática, dependem totalmente da indústria farmacêutica e experimentam os medicamentos em cobaias até então *'‘saudáveis" pagas para isso?
Uma coisa está muito clara: os resultados negativos ou alarmantes são prejudiciais aos negócios — não importando se chegam ao conhecimento do público através dos médicos que trabalham em hospitais ou através dos “institutos" que fazem o teste em suas cobaias.
O prof. Eberhard Greiser, diretor do conhecido Instituto de Bremen para Pesquisa e Medicina Preventiva — órgão que critica esse método da indústria farmacêutica —, declara o seguinte: “Na prática, testes com resultados negativos concernentes a determinado medicamento não são publicados. Foi o que relataram muitos especialistas que encontrei ao longo do tempo na ‘comissão de transparência' (comissão especializada dentro do Ministério da Saúde)".
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Os trustes farmacêuticos encomendam inumeráveis séries de testes com os devidos pareceres de peritos, mas apresentam aos organismos federais da Saúde Pública apenas os resultados favoráveis. As autoridades só tomam conhecimento dos resultados negativos quando alguns médicos e/ou colaboradores desse truste econômico não podem mais se responsabilizar por tal prática e acabam soltando essas informações. Os serviços encarregados da autorização e vigilância dos medicamentos n'à República Federal da Alemanha não sabem sequer o nome do instituto em que tais testes são realizados. O poder dos trustes farmacêuticos em nosso país é tão grande que torna isso possível. Em outros países há uma legislação severa, que os obriga a declarar todos os testes realizados.
jovens desempregados e dois típicos vagabundos de estação ferrroviária, um deles com ligeiro bafo alcoólico.
Apresento o papel que Osman me entregou e pergunto ao “chefe da recepção” se não me arranjaria um teste um pouco menos perigoso. Osman tinha me avisado que a experiência prevista provocaria efeitos colaterais violentos e desagradáveis. “Não tenha medo” , diz ele, tentando me acalmar. “ Todos que saíram daqui estão vivos até hoje. A coisa é feita bem de leve.” O “pai do albergue” usa um tom familiar com todos aqueles que serão usados nos testes. “Primeiro temos que ver se você está em condições” , informa-me.
Enviam-me para um check-up de rotina. Colhem amostras de sangue, examinam a urina, fazem eletrocar- diograma, tiram minhas medidas, pesam-me. Um médico confere os resultados. Levo um susto porque acho que é um “conterrâneo” meu. Felizmente não é turco, mas búlgaro; pediu asilo na Alemanha. Conhece bem “meu país” e põe-se a falar um pouco sobre a Turquia. Conta-me que antigamente havia muito mais “cobaias” turcas, porém nos últimos tempos têm voltado em grande número para seu país. Diz também que fizeram boas experiências com meus “conterrâneos” , que são “ duros na queda” e não
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“vivem se lamuriando por qualquer dorzinha” . Examina- me os olhos e percebe que uso lentes de contato; por sorte, não se dá conta de que são coloridas. Explico-lhe que foram prescritas por causa de meu trabalho como soldador, já que os óculos são desvantajosos para esse tipo de serviço.
Sou aprovado. Estou pronto para o uso. Tomarei medicamentos em forma de pílulas e injeções que, com certeza, me transformarão numa pessoa doente.
Obrigam-me a assinar uma declaração de que consinto em submeter-me aos testes. Entregam-me um boletim informativo de cinco páginas escrito em alemão: “Boletim informativo sobre os testes de estudo comparado farma- codinâmico de quatro preparados diferentes combinados com substâncias que contêm fenobarbital e fenitoína” . Nunca ouvi falar de tais medicamentos; até o “pai do albergue” tem dificuldade em pronunciar fluentemente “ fenobarbital” e “ fenitoína” . “Não há jeito de gravar esses nomes” , diz. “Segundo o boletim informativo, tais medicamentos não são para uma doença comum, mas para epilepsia e convulsões febris nas crianças.”
Quase todos os cientistas que não dependem da indústria farmacêutica criticam com violência o uso de semelhantes preparados. A combinação de dois agentes impede uma dosagem adaptada às necessidades individuais dos pacientes. No entanto, médicos inescrupulosos mostram boa vontade para com esses preparados. Poderão ocupar-se menos com seus pacientes. A substância composta fenobarbital pertence à classe dos barbitúricos, drogas que logo criam dependência. Exatamente porque seu uso é perigoso, centenas de remédios contendo barbitúricos foram proibidos nos últimos anos. Trata-se, pois, de medicamentos bastante conhecidos que, na verdade, deveriam ser retirados de circulação. Mas ninguém explica por que ainda devem ser testados.
O teste está programado para onze semanas no total, com quatro séries de 24 horas de reclusão. Honorários: 2 000 marcos. O boletim informativo aponta alguns efei
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tos colaterais mais freqüentes: “ fadiga, alteração de humor, distúrbios motores ou nervosos, alteração do tipo sanguíneo, modificação do campo visual, manifestações alérgicas sob forma de reações cutâneas” . E avisa que em cerca de “20% dos pacientes pode haver inflamação das gengivas” . Além disso, com um pouco de azar podem surgir também “ eczemas, distúrbios respiratórios, sensação de calor e náusea, vômitos eventuais” . Em casos mais raros, podem ocorrer “ estados perigosos, com crise de asfixia e distúrbios circulatórios, que requerem imediata intervenção médica” .
Mas nem tudo é tão ruim, porque, em caso de urgência, o seguro paga: “Se, contra todas as expectativas, a saúde dos participantes desse estudo experimental ficar prejudicada, o LAB e seus encarregados oferecem gratuitamente serviços médicos em níveis ilimitados” . Entretanto: “Estão expressamente excluídos os danos relacionados de forma indireta com os participantes desse estudo experimental (por exemplo, acidente de trânsito durante o percurso)” . Então o que acontece se um dos “voluntários” sofrer um acidente de trânsito provocado por “ distúrbios motores” ou “ distúrbios circulatórios” ?
Depois de assinar a declaração, recebo uma planilha com os horários para a ingestão dos medicamentos e as coletas de sangue, que são feitas de hora em hora.
Comunicam-me que o teste só começará amanhã, mas, a partir de agora, não posso deixar o local — isto é, a casa e o pátio interno. “Detenção voluntária.” Entregam- nos cobertor, lençóis e fronha. No primeiro andar ficam as “ salas de tratamento” : laboratório, local p.ara coleta de sangue e enfermeira de urgência. No segundo andar, a sala de televisão e os dormitórios.
O homem que está sentado na cama inferior de um beliche nem ergue os olhos quando entro no dormitório. Dois outros, sentados à mesa, continuam fazendo suas palavras cruzadas. Dirijo-me para o segundo dormitório, que dá vista para o pátio. À esquerda, uma oficina de automóveis; à frente, entre um muro e um tambor de li
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xo, alguns móveis de plástico cinzento para jardim; à direita, um entreposto de produtos biólogicos; nos fundos, a estação ferroviária para as mercadorias. Uma paisagem desolada.
Como se evocassem a sorte, todos os voluntários repetem insistentemente que não correm o menor risco. “ O perigo é maior para eles que para nós” , diz alguém. “Porque, se acontecer alguma coisa, vai haver um tremendo escândalo. E eles não podem se permitir isso.” Para alguns, esta não é a primeira vez. “Faz muito tempo que circulo pelas indústrias farmacêuticas” , conta um deles, que vai de instituto a instituto. “Turistas-cobaia” : é assim que a indústria os chama. Outro voluntário fala de um “ profissional” que viaja com seu trailer por todo o pais; parece que, além de servir de “cobaia” , recruta outras pessoas, cobrando comissão.
No jantar todos nos encontramos diante de uma longa fila de mesas. Quatro mulheres estão entre nós. Para ser admitidas, tiveram de submeter-se a testes de gravidez. Se engravidarem durante os experimentos — que em geral demoram meses —, o bebê poderá ter lesões sérias e permanentes. Neste caso, porém, o LAB presta “assistência médica e psicológica” , seja lá o que for isso.
Cada um de nós pega seu prato através de uma portinhola: pão, manteiga, algumas fatias de queijo, um tomate, um pepino e um pimentão. Na televisão está passando Bonnie and Clyde. Fecharam as cortinas para impedir que o sol da tarde atrapalhe a imagem no vídeo. A antena está quebrada, é preciso segurá-la para que a imagem ganhe algum contorno definido. A sala cheira a fumaça e ponta de cigarro. O filme termina, mas praticamente ninguém quer ir dormir. Até meia-noite ficamos sentados no pátio, em silêncio, fumando e bebendo uma água insípida em copinhos de papel — a única coisa que ainda nos deixam ingerir.
Os que estão deitados têm os olhos pregados no teto, tentando dormir. Alguém pegou no sono, ao lado de seu radinho de pilha: “Música depois da meia-noite” a pleno volume. Ninguém apaga a luz. A partir das duas e meia,
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“Música até o amanhecer". Desligo o rádio e apago a luz que me ofusca.
Na estação ferroviária, os vagões são manobrados ininterruptamente, com um barulho ensurdecedor. Através da janela aberta chega o ruído dos copinhos de papel arrastados pelo vento. Alguém se masturba incansavelmente sob o cobertor.
Às seis horas da manhã, abre-se a porta. “Levantar!” Obedecemos em silêncio, sem nos cumprimentar. Cada um de nós está muito ocupado consigo mesmo. Meu frasco de urina recebe o número quatro. Isto significa: às 6h04, cateter no braço; às 7h04, medicamentos; às 8h04, coleta de sangue e assim por diante.
Nas primeiras vezes ficamos em fila. Depois, conhecendo já os que estão à frente e atrás, sabemos quandò é nossa vez. O homem que está atrás de mim acabou de sair da prisão e não conseguiu arranjar emprego em lugar nenhum. Aqui ninguém lhe faz perguntas. Dois sujeitos jovens, que nos enfiam os cateteres nos braços, conversam sobre os próximos exames na faculdade. Ainda não terminaram seus estudos de medicina. Vigiam-nos para certificar-se de que todos nós tomamos os remédios. Tenho de engolir as duas pílulas debaixo de seus olhares. A primeira coisa que sinto é que meu campo visual se reduz. Tento olhar para o pátio, mas o sol me ofusca, dói-me a vista. Deito-me na cama sonolento e apático. De hora em hora vou como um sonâmbulo para a coleta de sangue. Os outros também estão pálidos e abatidos. Com freqüência cada vez maior deixam de comparecer aos exames e precisam ser arrancados da cama. Uma mulher queixa-se de calor, vertigem e distúrbios circulatórios. Tem o braço frio, áspero e dormente.
No dia seguinte encontro-me num estado ainda mais lastimável. Esses testes são absurdos, pois já se conhecem todos os efeitos colaterais. Já os sentimos: vertigem violenta, fortes dores de cabeça e distúrbios de percepção, além de estupor permanente. A gengiva sangra muito. O sangue é coletado sete vezes por dia e devemos estar sem
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pre à disposição. Os outros também se queixam. Basta um de nós se queixar para praticamente todos admitirem que têm fortes dores de cabeça. Evidentemente não dizem nada diante dos funcionários, pois temem não ser aceitos em outros testes. Um deles conta: “Muitas vezes eu me sentia um trapo. Numa ocasião participei de dois testes diferentes ao mesmo tempo, porque precisava de dinheiro com urgência. Ai, sim, me ferrei por completo. O coração disparou, batendo como louco. Até pensei que fosse pifar..."
Um sujeito mais jovem diz que não ficou até o final de um teste porque lhe aplicavam tranqüilizantes muito fortes. Tranqüilizantes são sedativos que rapidamente levam ao vício. Depois do teste, todos os participantes ficaram meio “abobalhados” . “Alguns caíam, sem conseguir ficar em pé e precisavam ser carregados. Se por acaso você puder dar uma olhada no relatório a seu respeito, vai ver que na coluna ‘efeitos colaterais' tem uma cruz no ‘não’.”
Depois dessa “primeira série” — isto é, depois de 24 horas — decido interromper o teste. Eu deveria ficar “aquartelado” ainda mais três vezes nas onze semanas seguintes. Com os efeitos colaterais agravando-se. Sem contar que durante esse período deveria estar no instituto todos os dias — inclusive sábados e domingos —, às sete da manhã, para coleta de sangue e entrega dos recipientes plásticos com minha urina. Abandonando os testes antes do término, não recebo um centavo.
Para Eberhard Greiser, professor da Universidade de Bremen, “aproximadamente, dois terços desses estudos far- macológicos são desnecessários. São estudos que têm propósitos comerciais, e não há nenhuma relação entre sua utilização e as despesas que acarretam” .
Há dois anos esses testes provocaram a morte de Neill Rush, jovem “cobaia profissional” de Dublin, que estava “testando” para a firma Kali-Chemie, de Hannover, um medicamento para arritmia cardíaca. A firma não quis se responsabilizar pela morte de Rush. Para ela, “tratou-se de um ato irresponsável por parte do voluntário” , pois um dia antes Neill havia testado em outro instituto um sedativo
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Ali submete-se ao teste
muito forte: o deporil. A autópsia revelou que a combinação dos dois medicamentos provocou a morte fulminante.
Uma “ cobaia” do LAB furtivamente me dá o endereço de outro laboratório, o Bio-Design, em Freiburg. “Vivem precisando de gente e pagam bem. Além disso, a comida é muito melhor que a ração daqui.” Resolvo ir até lá.
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Ao contrário do LAB, o Bio-Design está instalado num prédio futurista semelhante a uma estação espacial. A recepcionista faz a mesma pergunta precavida que Adler costuma fazer aos novatos, só que usa palavras mais elaboradas:
— Quem nos recomendou ao senhor?Digo-lhe o nome do meu colega do LAB e imediata
mente recebo uma proposta tentadora: 2 500 marcos por quinze dias — mas, é claro, não posso sair dali. Então pergunto:
— Desconta imposto?Responde a mulher:— Não, não. Não declaramos imposto. Esse serviço
é considerado como de saúde pública.Tenho a impressão de que não andam conseguindo
muitos voluntários, pois tentam atrair-me com uma nova proposta:
— Caso o senhor resolva participar dos testes, poderemos excepcionalmente falar de um adiantamento. — E mais ainda: — O senhor será bem tratado. A comida é de graça.
— E por que tanto dinheiro? O que vocês fazem?Uma jovem funcionária dá algumas explicações,
acompanhadas, segundo me parece, de um sorriso pérfido:— Trata-se de uma substância chamada mesperinon,
antagonista do aldosteron. É um mineral corticóide que influi no sistema hormonal. Já está sendo comercializado um produto desse tipo pertencente ao grupo dos espiro- nolactons. Sabe-se que o uso prolongado dessa substância provoca uma espécie de... digamos... efeminação, ou seja, um desenvolvimento de seios nos homens. Mas isso não acontece com um uso terapêutico de duas semanas.
— E isso é seguro? — pergunto.— É o que esperamos. Mas esse é exatamente o ob
jetivo do teste. Nunca se tem certeza com essas coisas — responde a moça.
— E se acontece, depois some?— Claro — diz ela, tranqüilizando~me. — Tudo volta
para o seu devido lugar.
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É evidente que está mentindo. Uma ginecomastia — nome correto na linguagem médica para a formação de seios nos homens — só é removido por cirurgia. Pelo menos essa é a opinião unânime dos especialistas.
Sobre outro ponto ela também não diz a verdade. Pergunto:
— E a potência sexual? Tudo bem?Resposta:— Claro, com relação a isso não há nada a temer.Na realidade, ainda não há resultados precisos quan
to ao uso de mesperinon em homens. Um texto explicativo que acompanha o teste sublinha expressamente que se deve esperar efeitos colaterais como “ dor de cabeça, tontura, confusão mental, dor de estômago, reações cutâneas” e, nas doses mais elevadas, “ginecomastia e impotência” . O Bio-Design não mede esforços para prender suas cobaias humanas. Uma cláusula do contrato diz: “No caso de abandono sem aviso prévio, a Sociedade Bio-Design pode exigir dos voluntários uma indenização pelas despesas provenientes da realização dessa pesquisa...” O Bio-Design está bem pouco preocupado com o fato de esse contrato atar as mãos de quem o assina e ser, sem dúvida alguma, imoral. As “ cobaias” são completamente pressionadas a resistir, apesar de eventuais dores e sintomas.
Por trás da amável e elegante fachada de uma firma de beleza, esconde-se um dr. Mabuse; que, servindo aos grandes trastes farmacêuticos, convenientemente encaminha aos testes químicos pessoas necessitadas para chegar- se a uma conveniente estratégia comercial.
Felizmente posso me reservar o direito de recusar tal proposta tentadora e a grande soma oferecida pela Bio- Design. Outros, contudo, não podem fazer o mesmo. Firmas como a LAB e a Bio-Design lucram com a crise econômica, que obriga mais e mais pessoas a procurá-las.
Os responsáveis por esses institutos escusam-se nas chamadas “comissões de ética” , das quais tomam parte cientistas e até eclesiásticos. Comissões de ética são comissões de controle voluntárias, cujas resoluções devem ser
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cumpridas sob forma de lei. É o que ocorre em países como os Estados Unidos e o Japão, mas não na República Federal da Alemanha.
Nesse contexto, ética não passa de cinismo. Os responsáveis pelas firmas podem a qualquer momento substituir essas condições a seu bel-prazer ou colocá-las imediatamente de lado sem a menor cerimônia. E mesmo que se tratasse de organismos oficiais, como é o caso em outros países, nada se alteraria: quando muito, as comissões de “ética” só podem julgar questões médicas. Mas a ética humana exigiria, no mínimo, que se preocupassem com esses homens desesperados que foram impelidos para a margem da sociedade e por esse motivo se candidatam ao suicídio a prazo.
Minha proposta: promulgar uma lei que obrigue todos aqueles que têm grandes lucros nas indústrias farmacêuticas a submeter-se aos testes. As vantagens dessa solução seriam ilimitadas: a maior parte dessas pessoas tem condições físicas muito melhores que as “ cobaias profissionais” (geralmente extenuadas); e, graças aos lucros, poderiam tirar férias maiores e fazer tratamentos adequados. Assim, o número de testes cairia verticalmente, limitando-se ao mínimo necessário.
Não é uma proposta leviana. Há cerca de sessenta anos os pesquisadores de medicamentos testavam em si mesmos as substâncias novas que descobriam.
Pude sentir na pele os efeitos colaterais que, segundo me diziam, aparecem muito “raramente” . Ao regressar dessa viagem pelos laboratórios farmacêuticos, minha gengiva inferior começou a inchar e supurar. O dentista diagnosticou “gengivite” e, presumindo corretamente, perguntou-me: “O senhor tem tomado algum remédio à base de fenitoína?” (Fenitoína era um dos compostos do medicamento testado no LAB em Ulm.) Respondi que sim, e ele, relacionando esse efeito colateral com minha suposta doença, perguntou de imediato: “O senhor é epiléptico?”
A promoção
Sinto-me tão esgotado que não me considero em condições de continuar trabalhando na Thyssen. No entanto, tenho muitos colegas que não deixaram o serviço a despeito de doenças ou acidentes. Colegas que, gripados ou febris, mantêm-se firmes durante dezesseis horas por dia, temendo ser substituídos. Colegas como Mehmet, em cujo pé caiu uma barra de ferro. Sem calçados de proteção, seu pé inchou de tal maneira que ele teve de cortar o sapato e prendê-lo com um arame. E com dores fortíssimas, os dentes cerrados, lá vem ele mancando para o trabalho, sem nunca se queixar.
Posso me dar ao luxo de arriscar tudo numa só cartada, fazendo da necessidade virtude. Fico sabendo que Adler tem problemas com seu ajudante e motorista e tento obter esse cargo por meio de um estratagema. Marco um encontro com Adler alegando problemas com meu salário. Como sempre, ele está mal-humorado e pergunta como me atrevi a faltar tantos dias sem dizer nada. Peço- lhe mil desculpas, digo que estou bem de novo e que isso não voltará a acontecer. Condescendente, marca o encontro para o dia seguinte: “Mas seja pontual, se me faz o favor! Esteja aqui às duas em ponto!”
O velho truque: quem não aparece é o próprio Adler. Três horas depois, por volta das cinco da tarde, consigo pegá-lo em casa.
Adler (tentando se livrar de mim): Agora não dá! Eu disse para você vir mais cedo. Não vê que estou pronto para tomar banho? (Está completamente vestido.)
EU: Não faz mal, eu pode esperar. Eu já esperei três horas aqui em porta. Eu fica sentado em escada.
Adler (irritado): Não! Agora não dá! Volte amanhã!EU: Eu não quer dinheiro. Só pergunta.
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ADLER: Também não! Telefone amanhã!EU: Só cinco minutos, por favor! É mais de uma ho
ra viagem para chegar aqui.Adler: Telefone amanhã! Poderemos conversar por
telefone. Não vou mudar de idéia.EU: É que eu tem uma coisa para senhor que pode
ajudar.ADLER: (curioso e espantado): E o que é?EU: Se eu não ajuda senhor, alguma coisa pode acon
tecer com senhor...ADLER: Comigo? Por quê?EU: Eu volta depois de banho.ADLER: Não! Espere um pouco. Entre!Hesitante, acompanho-o a seu escritório e conto-lhe
que um dos operários, a quem Adler deve dinheiro, quer dar-lhe uma surra. Mas não o permitirei. Passo a representar o papel de fiel escudeiro, um pouco simplório, pronto a sacrificar a própria vida por seu senhor, se necessário for.
— Eu sabe caratê, caratê especial de Turquia. Chama sisu. — E claro que se trata de um total disparate. Não só não sei lutar caratê, como sisu não quer dizer absolutamente nada disso; é uma palavra finlandesa que significa “perseverança” , “paciência” , “insistência” . Mas felizmente ele não sabe disso. — Eu ajuda se alguém bate senhor. Eu sabe golpe especial tiro queda. — E para demonstrar minha energia selvagem esmurro a escrivaninha com toda a força. Adler me encara meio irritado, meio impressionado.
— Quem quer me bater? Está certo e é justo que você queira me defender, mas quem é o sacana que quer fazer isso comigo?
— Eu não lembro o nome. Mas eu já disse para ele que quem quiser matar Adler, precisa me'ítíàtar primeiro, porque eu sou homem de guarda de Adler!
Sem perceber que, em minha exaltação, esqueci de errar nos verbos, Adler morde a isca. Durante uns cinco minutos, lê em voz alta a lista de nomes dos empregados turcos e árabes que trabalharam ou ainda trabalham para ele e para os quais evidentemente deve dinheiro. A seus olhos,
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portanto, são todos assassinos em potencial. Para que não desconfie de nada, peço que repita alguns nomes, como se entre eles estivesse o procurado. Mas logo sacudo a cabeça negativamente: o nome do vingador não consta da lista. Evitando que ele passe a suspeitar de algum dos meus colegas, invento um vingador fantasma, um “árabe sócio de academia de boxe turca e com pata em lugar de mão” (com um gesto mostro o tamanho das mãos). Há pouco tempo esse árabe “com murro só, quebrou cara de alemão” que o tinha feito de idiota. “ Sujeito fica todo arrebentado, com olho que não abria mais e cara torta.”
Adler está verdadeiramente impressionado. Aproveito para falar de meus outros méritos especiais. Conto que, além de lutar caratê, também já fui motorista de táxi durante muito tempo e antes disso trabalhei como chofer particular do proprietário de uma grande fábrica.
— Que tipo de fábrica? — pergunta Adler, fazendo- se de profundo conhecedor do asssunto.
— Fábrica faz maquininha para gente falar com outro — explico.
— Você quer dizer walkie-talkies?Confirmo, orgulhoso. Se for necessário, posso con
seguir uma carta de referência, assinada pelo dono da fábrica, que evidentemente é um velho conhecido meu.
— Eu ainda tem uniforme em guarda-roupa — continuo, vaidoso. — E também quepe bonito, bom pano!
— Interessante... E você dirige bem?— Eu dirige sim. Não tem problema. Chefe sempre
dormia quando eu dirigia. E eu também sabe consertar carro quando quebra.
Mentira deslavada. Mas confio em que o Mercedes 280 SE de Adler, quase novo, com acessórios especiais e todos os equipamentos imagináveis, nunca precise de conserto.
— Está certo! Podemos falar sobre isso — diz ele. — Estou mesmo precisando de um motorista. Além disso você poderá me manter afastado desses sujeitos chatos. É só me dizer os nomes. Bato um fio imediatamente para a polida de estrangeiros, e eles são expulsos num piscar de olhos.
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— Senhor deixa para Ali — declaro, tentando desviá- lo do assunto. — Senhor não precisa ter medo. Eu conta para eles que eu é homem de Adler, e eles fica calminho. Um soco de Ali, e pronto! Melhor que polícia.
— Está bem, Venha na segunda-feira, às dez e meia da manhã. Faremos um teste.
Foi assim que consegui minha “promoção” : de en- golidor de pó e trabalhador braçal a motorista particular e guarda-costas. Prova de que em nossa sociedade ainda há oportunidade de ascensão inesperada. Mesmo para o último dos operários imigrantes.
Por sua vez, Adler logo tenta um de seus habituais golpes.
— Você ainda está doente — diz. — Preste atenção... vou registrá-lo na previdência. Depois você procura um médico e pede um atestado. Então a previdência paga o seu salário. E você fica trabalhando para mim.
Precisei de muita abnegação para trabalhar como motorista de Adler nas semanas seguintes. Bastava eu tocar no volante para ele começar com sua rabugice. “Faça o favor de prestar atenção!” Ou: “Pare de me pôr em risco” . Ou então: “ Quantas vezes preciso dizer que isso que você está dirigindo é um objeto de valor?” Ou ainda: “ Gostaria muito que você guiasse com segurança e seriedade quando estou no carro. Sua responsabilidade é nos deixar, a mim e ao carro, sãos e salvos em casa” .
Assim, sou obrigado a dirigir bem devagar e prudentemente, três vezes mais devagar do que dirijo meu próprio carro. Já nem se pode chamar isso de dirigir: é como um leve balanço de rede. Mas Adler continua apavorado. Ou quem sabe se essa mania de resmungar não é apenas uma necessidade de auto-afirmação?
A cada dia ele me convoca para estar em sua casa mais cedo. Sinto-me usado como “serviço de despertador” . Toco a campanhia. Passam-se alguns minutos até que Adler, com voz de sono, grite lá de cima: “Espere aí! Só demoro dez minutos!” E espero, espero, espero... Fora, diante da casa, não há nenhum local coberto em que eu possa me
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abrigar se chover. Não ocorre a Adler jogar-me as chaves do carro para que eu possa ficar lá dentro.
Por volta das oito, nove horas é que o bairro começa a se animar. Persianas são erguidas, janelas se abrem com lentidão. Automaticamente, as portas das garagens vão se levantando, e empresários bem-sucedidos, em suas limusines impecáveis, partem rumo ao mundo dos negócios. Uma mulher coloca ao lado da janela uma gaiola luxuosa com pássaros exóticos. Todos os jardins são bem cuidados, a grama perfeitamente aparada.
É muito raro Adler exigir que eu apareça em sua casa às sete ou oito da manhã. Quando isso acontece, fico esperando trinta minutos, às vezes uma hora, para só então sair com meu senhor. Em geral, o dia para Adler não começa antes das dez ou onze e termina às duas ou três, no máximo às quatro da tarde — e muitas vezes com um intervalo de uma hora para o almoço. Seu trabalho cotidiano resume-se em ir aos vários bancos, em Oberhausen e Dislaken, para consultar os depósitos de dinheiro. Curiosamente todos esses bancos não ficam no bairro onde ele mora. De vez em quando, Adler vai visitar Remmert, seu amigo e sócio. Quase sempre no horário em que os empregados não estão voltando de seus turnos, para evitar as costumeiras “perguntas insolentes” e “absurdas exigências salariais” . Adler costuma ligar o sistema de alarme do automóvel, porque nunca se sabe...
Na volta, às vezes passamos por seu clube de tênis em Duisburg, onde há um restaurante, para que ele possa “dar uma olhada no que está acontecendo” ou encontrar seu “ fraudador de impostos” — isto é, seu consultor fiscal e amigo intimo. Adler declara oficialmente como rendimento anual alguma coisa “ entre 500 mil e 1 milhão de marcos”— quantia que mal daria para seus gastos reais. Se somássemos apenas as contribuições sociais não recolhidas de todos os seus operários que se encontram em situação ilegal, obteríamos com certeza um múltiplo desse total.
É um martírio ser seu motorista. Ele sempre encontra alguma coisa para criticar, sempre acha que sua vida
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corre perigo. Tenho a impressão de estar transportando não um ser humano de carne e osso, mas uma múmia aper- gaminhada, extremamente frágil, conservada numa caixa de vidro e capaz de se desmanchar a uma simples freada. Irritado, Adler continua botando defeitos em seu motorista, quando não berra de uma vez: “Não ultrapasse! Dirija devagar, seu estúpido!” Ou então sua fórmula corriqueira adaptada para a situação: “Faça o favor de prestar atenção!” Ou mais ainda: “ Sejamos sérios! Não somos provocadores!” E tudo isso a menos de 50 quilômetros por hora na cidade e a menos de 140 na rodovia. Porém ele não está preocupado com a segurança alheia; é mais o medo abstrato por sua própria vida, preciosa e muito cara. A polícia provoca-lhe uma fobia instantânea. Basta avistar um guarda ou uma viatura policial para ordenar que eu desvie ou mude de caminho e ficar fora do alcance o mais depressa possível.
Adler nunca olha para trás, seria um desperdício. Aliás, é um dos lemas de sua vida, pois, fiel à letra de sua música favorita — a “Canção do mercenário” — deixa para trás “a terra queimada” : “ Cem homens e um só co- mando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sabe para onde?/Terra queimada, qual é a razão?”
Certa vez quase sou desmascarado. Adler percebe que fiz um sinal para o fotógrafo que, do outro lado da rua, ia perdendo nossa saída.
— Para quem você fez sinal? — pergunta desconfiado.— Não é sinal — respondo, tentando afastar suas sus
peitas. — É exercício caratê. Gente fica muito tempo sentado, precisa fazer exercício, mexer braço, perna, mão, bem rápido.
E para fornecer-lhe uma prova evidente do que acabo de dizer começo a fazer movimentos espasmódicos com os braços e as mãos, enquanto dirijo. Isso o deixa assombrado. E ainda como reforço de minha dedicação ao exercício (e também para mantê-lo afastado de mim, caso me desmascare), conto-lhe que, na academia de caratê, todos têm medo de meus reflexos, rápidos como um raio:
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— Uma vez colega de academia fez movimento falso e levou golpe sem querer. Resultado... quatro dias coma. — E para que me respeite digo-lhe que sou capaz de quebrar tijolos com um golpe de caratê, mas tijolo velho, não novo! Um golpe, e pronto, tudo acabado! — Faço um gesto brusco em sua direção. E, para não continuar assustando-o, acrescento: — Gente precisou assinar papel lá em academia. Gente só pode brigar se alguém ataca primeiro, nunca pode começar briga! — Se ele soubesse que sou, por princípio, contra golpes e armas de qualquer espécie e em tais situações minha bravura é sair correndo...
— Faça o favor de não se agitar assim dentro do carro! Vai estragar todo o banco. Quando estiver lá fora, então pode fazer essas coisas — começa a gritar de repente. Sem motivo, porque os bancos são tão firmes que meus movimentos inofensivos não poderiam causar nenhum dano.
De qualquer forma, reforçando a seriedade de meus exercícios de caratê e afastando suas suspeitas, ponho-me a simular um lutador diante do carro, enquanto ele visita a empresa Ruhrkohle-Wãrmetechnik, em Essen. Meus movimentos atraem a atenção das secretárias que trabalham do outro lado da rua, nos escritórios da União dos Médicos Previdenciários. Apinhadas nas janelas do prédio, elas começam a fazer sinais, encorajando esse guarda-costas que se agita como um louco diante da limusine. Respondo a seus acenos, o que provoca uma interrupção de no mínimo quinze minutos no expediente da União dos Médicos.
Assim que retoma e vê toda a pantomima, Adler fica furioso.
— Pare com isso imediatamente, seu idiota! Você ainda vai me comprometer. Deixe para fazer essas coisas lá na sua jaula de macacos da Dieselstrasse ou na academia turca!
— Tudo bem! Mas senhor disse que fora de carro eu podia fazer... — argumento e corro a abrir a porta do automóvel; depois, submisso, volto a sentar-me ao volante.
Às vezes, ouço o chefe despedindo pelo telefone do carro alguns empregados “incômodos” ou “insubordinados” . Ao contrário do que se poderia supor, sua voz nunca
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se altera, não demonstra menor irritação; há, sim, um tom meio lascivo. “Alô, meu bem, escute só” , sussurra, “acabo de me livrar de uma daquelas moscas varejeiras. Foi ainda há pouco, na Ruhrkohle. O T. vai ser despedido amanhã. Não é fantástico?11
Ao convidar industriais e políticos — entre os quais um deputado federal — para um fim de semana em seu iate, na Holanda, relata a um sócio: “Um peso a menos! Hoje o botei na rua! Assim, zap! O que esse sujeitinho me irritou!”
Em outra ocasião, sempre pelo telefone, ele se põe a filosofar: “Às vezes é preciso virar a mesa. Então todos se pelam! O pior de tudo é amolecer. Aí eles montam em cima, e você pode ir fazendo a trouxa...”
De fato. Adler pode pôr gente na rua segundo sua vontade e seu humor. O desemprego, cada vez maior, atira- lhe nos braços novos desesperados, que procuram qualquer trabalho sob qualquer condição — ou quase. Ele está longe de conhecer todas as vítimas de sua exploração; quando muito, sabe o nome desses infelizes. Só quer o dinheiro que lucra com eles.
Novamente ao telefone: “O pessoal da Ruhrkohle me procurou. Eles montaram uma nova instalação e me disseram: ‘Olhe, as contratações estão suspensas, mas precisamos de eletricistas1. Então foram a uma agência oficial de empregos, lá para os lados de Colônia, aplicaram um golpe qualquer e pronto! Conseguiram os eletricistas como se tivessem sido contratados por mim. Eu nunca os vi, só recebo meu dinheiro todo mês.” Ri. “É, a gente precisa saber se ajudar. É só querer e sempre se acha uma solução.”
Mais uma de suas conversas: “Para mim as melhores são as grandes como Steag. Já trabalhamos com todas as centrais elétricas: Thyssen, Ruhrkohle, Ruhechemie, General Electric da Holanda. Todas empresas de fama mundial. Por isso é que, em geral, nem a inspeção do trabalho nem fiscais de outras repartições ousam se meter nos negócios delas. Assim, podemos fazer ou deixar de fazer o que bem entendemos. Os empregados podem trabalhar até
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cair. Elas não querem nem saber; só querem que a gente faça o trabalho depressa e discretamente. Quanto menos empregados, melhor para elas, porque não dá na vista. E dai eu tenho que me virar com menos empregados, o que se reflete nos ganhos**.
Às vezes ele reconhece, com muito despeito, que alguns de seus concorrentes conseguem superá-lo em matéria de cinismo e trapaça. Conta como alguns deles, encarregados pelas grandes empresas de se “ livrar” dos dejetos tóxicos, “ganham duas vezes” pelo serviço: “ O F. está encarregado pela Ruhrkohle de remover o lixo despejado no rio Emscher. Só com esse serviço ele já está ganhando um dinheirão no mole. Mas dobra toda essa grana com os dejetos de carvão, que ele passa num tritura- dor, pulveriza e revende como combustível. O único problema é que não pode armazenar o pó em silos porque produz gases e vapores que podem provocar uma explosão. A mesma coisa acontece com toda aquela montanha de resíduos de minérios de Oberhausen. A cidade concedeu a posse a um holandês, que transporta até a estrada os resíduos não aproveitáveis de minério e recebe por metro cúbico. E sabe o que o sujeito faz? Mói todo o material e revende por um bom preço para as quadras de tênis. É o negócio do momento essa história com as quadras de tênis. Só que com isso elas têm muito ácido venenoso. Se alguém cai numa quadra dessas fica com feridas nojentas. Mas todas essas coisas são necessárias: ganhar dinheiro com a merda e se tornar mais caro. É assim, meu jovem, tem gente que enfia o dedo na merda e quando o tira... pronto, transformou tudo em ouro!”
Adler construiu sua fortuna sobre o lixo, o pó e a sujeira — ou, para usar sua própria terminologia, sobre a merda. Mas isso não o impede de zelar meticulosamente por sua higiene pessoal. Tem um pavor histérico de contaminar-se com a sujeira desse mundo. Seus trabalhadores, verdadeiros escravos, representam para ele a casta dos impuros, dos intocáveis, dos repugnantes, e bem que Adler gostaria de mantê-los o mais longe possível. E quando pre
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cisa recebê-lost sua indignação não se baseia apenas na perspectiva ameaçadora de se desfazer de algum dinheiro para pagar salários atrasados, mas também no confronto direto com o suor, a sujeira e a miséria — embora todos sempre tenham se apresentado em sua casa limpos e corretamente vestidos. A única exceção sou eu. Muitas vezes fiz questão de aparecer por lá com minha roupa de trabalho coberta de graxa e lama, o rosto preto de fuligem e pó. E, para seu pavor, ficava parado sobre o capacho como um escravo que volta do trabalho, esfarrapado e prostrado.
Mas adaptei meu novo uniforme ao Mercedes: calça com vinco, camisa branca ou cinza, sempre impecável, gravata e sapatos de couro reluzentes de tão engraxados (não mais aqueles enlameados calçados de trabalho). No entanto, Adler continua considerando-me como um de seus escravos, vindos do submundo proletário. Só meu endereço — Dieselstrasse — já é um estigma. Para Adler, devo ser a última das criaturas para viver naquela sujeira e trabalhar bem ao lado numa imundície ainda maior.
Um dia lá pelas sete e meia da manhã, estou plantado diante de casa de Adler, esperando-o há bem uns trinta minutos, quando de repente sinto vontade de ir ao banheiro. Toco a campainha e pergunto se poderia usar o toalete.
Adler: Vai cagar ou mijar?EU: Tudo.A d le r (com repugnância): Pois faça tudo aí fora
mesmo.EU: Fora?! Mas onde?ADLER: Num canto qualquer, mas longe daqui,EU: Mas qual canto?Adler: Tanto faz!(Sou enxotado como um cachorro. E não há nenhum
local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é descoberto. Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do Mercedes, bem em cima da estrela. Dez minutos depois, Adler finalmente aparece.)
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Eu: Banheiro de senhor quebrado?Adler: Não, não está quebrado. É que não gosta
mos disso. Vou ser bem franco... tenho medo de pegar doença, entende? É uma questão de princípios. Não fazemos essas coisas na casa de estranhos. Há tantas doenças espalhadas por aí... Nunca se sabe onde a gente pode se contaminar, não é mesmo? E é bem grande o perigo de contaminação desse modo.
EU: E quando vem visita? Também vai fora fazer isso?Adler (embaraçado, hesita antes de responder): Eu
já disse, nunca recebo visitas. Os empregados ou qualquer outra pessoa não entram no meu banheiro. Mas eles já sabem disso. Ninguém pede. Em relação a essas coisas, eu sou muito cuidadoso!
EU: O senhor tem medo de “OIDS” ?ADLER: Você quer dizer AIDS, não é? Bem, todos
têm medo. Mas eu... tomo meus cuidados. Por exemplo, nunca vou ao banheiro na casa de estranhos ou num lugar que não conheço direito. Não vou mesmo.
EU: Sim...Adler: Não vou mesmo. Tento me segurar para só
fazer em casa. Não entro em banheiro que não conheço.EU: Sim...Adler: Nem público nem na casa dos outros. (E
prossegue ponderando): Também quase não dou a mão para ninguém. Se preciso cumprimentar alguém, imediatamente vou lavar as mãos.
Eu: Gente fazendo assim, não acontece nada?ADLER: Claro que não! Assim não haveria mais doen
ças. Só que nem todos pensam como eu. Muitas pessoas são bem porcas nesse aspecto. Pensar nisso até faz mal.
Eu deveria levá-lo para visitar os banheiros da Remmert, assim como se leva um criminoso ao local do crime. Só há dois banheiros para todos os operários. Asquerosamente imundos. A firma nunca os limpa nem fornece papel higiênico. Um dos banheiros não tem nem mesmo porta. Mesmo assim, é bastante concorrido; o pessoal precisa se agachar, exposto a todos os olhares. Um alemão es
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creveu num deles, com uma dessas canetas hidrográficas: “Exclusivo para os broncos” .
Às vezes, durante o trajeto entre Oberhausen e Essen ou rumo a Wesel, Adler esquece o telefone por um instante e, contemplando a paisagem, põe-se a filosofar. Sintoniza a rádio Luxemburg, sua emissora favorita, que ouve de manhã à noite, acalentado pela atmosfera de um mundo feliz e sem problemas. Só baixa o volume durante os boletins noticiosos, transmitidos de hora em hora. Ele, que em geral é tão pouco comunicativo, de repente sente vontade de compartilhar com seu motorista turco, a quem vê cinco ou seis vezes por semana, confidências e convicções sobre a situação política do país. Tudo isso em frases intermináveis.
Nesse momento, começa a tocar no rádio a enérgica canção: “Bom dia, Alemanha, eu te amo...”
EU: (aproveitando a ocasião): Faz tempo que senhor é chefe e patrão de senhor mesmo?
Adler: Cinco anos. Antes, fui chefe de compras da siderúrgica Gutehoffnung Man. Durante esses cinco anos, aprendi muito mais do que em toda minha vida. E também em relação aos embusteiros e outras coisas do gênero.
EU: Mas agora senhor ganha mais dinheiro que antes, não? Que é embusteiro?
Adler: É verdade. Ganhar dinheiro faz parte do jogo. Mas aqui na Alemanha há uma porção de trapaceiros que não querem nada com o trabalho e só querem é ficar bem perto da carteira da gente. Só pensam em passar a perna nos outros. Em termos de assiduidade e competência, os operários de hoje não têm nada a ver com o operário alemão de antigamente. É verdade que Hitler foi um ditador, mas em relação ao...
EU: Ele matou gente.ADLER: É, e também provocou guerras que na ver
dade não eram necessárias.EU: E por que ele perdeu?ADLER: Bem... ele se lançou a todos os tipos de con
quistas e quis continuar a expandir mais e mais... O que ele fez com os judeus... você pode concordar ou não... mas,
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enfim, os judeus não são mesmo bem-vistos em lugar nenhum... As pessoas hoje em dia esquecem muito depressa que ele deu pão e trabalho para todo mundo. Onde ele punha a mão, acabava o desemprego. E agora, que temos um ou dois milhões de desempregados, logo vai aparecer um novo Hitler. Pode ter certeza! Todas essas manifestações políticas, essas agitações e coisas do gênero!
EU: Agora é gente que está em lugar de judeu.Adler (ri): Não tenha medo, não vamos mandá-los
para as câmaras de gás. Não acredito nisso. Precisamos de vocês para o trabalho. Com os judeus foi diferente, era uma coisa que estava enraizada fazia séculos. Você sabe, os judeus estão sempre metidos no comércio, sempre fazendo os outros trabalharem para eles. Compram por uma ninharia o que os outros fabricam e depois vendem muito caro. É esse o método dos judeus. São preguiçosos de nascença, não gostam de trabalhar e enriquecem à custa dos outros. É por isso que ninguém os tolera em lugar nenhum, nem na Alemanha, nem na América, nem na Rússia, nem na Polônia. Mas com os turcos a história é outra. Você sabe melhor que ninguém que podem trabalhar duro aqui. Portanto, não tenha medo! O que pode acontecer é alguém fazer uma lei dizendo que vocês têm que deixar a Alemanha no prazo de um ano. Isso, por exemplo, se mais um milhão de pessoas perder seus empregos.
EU: E senhor acha que vai ter mais gente sem emprego?ADLER: É o que dizem os que entendem do assunto,
os políticos e os figurões das indústrias. Claro que não falam assim, abertamente, para qualquer um. Por exemplo, há cada vez mais computadores e robôs nas empresas. Se eu pudesse substituir pessoas por máquinas... cada máquina custaria 100 mil marcos... isso representa três homens a menos. Se eu pudesse, bem que eu faria. Com as máquinas eu não teria aborrecimentos.
EU: É...ADLER: Você compreende? A máquina é mais con
fiável, trabalha sem problemas. E essa é a tendência geral. Olhe as grandes empresas... tudo é automático. E ca
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da vez mais. E países como a Nigéria ou a Alemanha Oriental produzem serviços mais baratos; por exemplo, nas construções metálicas, nas tubulações... Aqui na Alemanha Ocidental o custo da mão-de-obra é muito elevado. Por isso não somos capazes de concorrer com eles. Vivem dizendo que precisamos reduzir o desemprego, mas com este sistema econômico não é possível. Ao contrário. Todo ano mais e mais jovens saem da escola e querem trabalhar, porém não há trabalho. Os figurões da política só fazem é tapar buracos, com aponsentadorias prematuras e coisasassim. É como no Egito antigo... “Sete anos de vacas gordas, sete anos de vacas magras.” Tivemos quarenta anos de vacas gordas, e agora temos que estar preparados para os anos de vacas magras. Até que venha uma nova guerra ou alguma coisa assim, e então tudo precisará ser reerguido.
EU: Senhor acha que vem guerra nova?A dler: Se o desemprego continuar aumentando, pe
lo menos uma guerra civil na Alemanha. Pode acreditar. Se aparecer mais um milhão de desempregados, vão todos para a rua e montam barricadas. Então será o caos, o fim da nossa democracia! (Cala-separa ouvir uma notícia transmitida pelo rádio do carro.)
RÁDIO: Os estrangeiros que se divorciaram de esposas alemãs poderão ter sua autorização de permanência reduzida ou suspensa...
ADLER: Está ouvindo?RÁDIO: ... rejeitou a ação judicial de um turco que
vive na República Federal da Alemanha há cinco anos. Sua esposa, uma alemã, requereu o divórcio e obteve a guarda do filho. A cidade de Kassel decidiu que a autorização de permanência do estrangeiro será válida somente até o final de agosto deste ano.
Adler: Está ouvindo? Por toda parte já se fala nisso!EU: Mas e senhor, o que senhor acha? Agora são ca
sados, depois talvez ela arranja outro homem, e aí fim, acaba. Mandam ele embora. E ele não pode mais ver o próprio filho?
Adler (impassível): É, o sujeito vai ter que voltar pa
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ra a terra dele. Você acabou de ouvir. De qualquer modo, foi um erro da política alemã. Quando estávamos em pleno milagre econômico, escancaramos as portas do país, e entraram todos os turcos que quiseram vir, todos os italianos que quiseram vir... Foi mesmo um grande erro! Os políticos não poderiam ter feito uma coisa dessas.
EU: É, mas gente não veio sozinho, eles foi buscar gente. E aquela época nada computador. Eles precisavam mesmo gente.
Adler: Mas isso foi uma faca de dois gumes. Hoje nos arrependemos. Chegaram os turcos, e todo trabalho duro passou a ser feito pelos imigrantes. E o alemão, que não trabalhou mais, ficou prejudicado. Essa mentalidade existe até hoje. O alemão não quer mais trabalhar e cria muitas dificuldades. Foi um grande erro deixar os estrangeiros virem para cá. Mas também estou convencido de que, se todos os turcos partissem, não resolveria o problema. Supondo que todos eles partissem, teríamos talvez cem mil desempregados a menos, o que não adiantaria nada.
Rádio (interrompendo novamente a conversa) : ... é acusado de corrupção. Veba, Klõckner, Krupp, Mannes- mann e mais onze grandes trastes... Esses donativos serviriam para suborná-lo...1
EU: Então ministro da Economia vai para cadeia?2Adler: De jeito nenhum. Metade do governo teria
que ir junto. Não vai mesmo, é impossível!Eu*. Ele ganhou milhão e milhão, e ainda queria mais.Adler: Ora, é evidente! Você também. Está sempre
reclamando de dinheiro. Isso faz parte da natureza humana, você não acha?
1 Alusão ao escândalo que explodiu na Alemanha em 1983, quando se soube que Karl Flick, o industrial mais rico do pais, andou distribuindo propinas a dirigentes de todos os partidos parlamentares, exceto o Partido Verde (N. do E.).2 O conde Otto von Lambsdorff, então ministro da Economia, posteriormente foi processado por corrupção (N. do E.).
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tndustriemontagen- RchrfeEttmgsbau • Behfltterbau
- StahtbauEntrostung und Anstrlch
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slch so verdlent genàcfit, daQ wir Ihn selt einlgér
lolt alsChaffahrer einsétzen.
Ihn> pbllegt dle Wartung und Pflego sowlo dle Fahrerel
ratt unserea Mercedes 280 SE.
Uir slnd mlr Herrn SttfMBIpB sèhr zufrteden.
Mlr beabstchtlgen, Ihn zú élnen spüteren Zeltpunkt
ais FUhrungskraft efntusatzen.
Atestado entregue por Adler a Ali depois de sua promoção
A assembléia do pessoal
“Assembléia do pessoal” é o nome que Adler dá a uma reunião com sua gente, convocada por ele mesmo e realizada num salão do Cantinho dos Esportistas, um bar da Skagerrakstrasse, a dez minutos da parada de ônibus da firma J. P. Remmert.
Enquanto o levo lá, ele conversa pelo telefone com um dos seus confidentes. Diz que vai tratar de “manter a calma no front” e fazer com que todos “andem na linha” . E que também decidiu efetivar uma das equipes de trabalho, de acordo com a lei, para não se arriscar a “ ficar atolado na merda” .
A reunião está marcada para as quatro da tarde. A presença de todos é obrigatória, mas evidentemente não é remunerada.
Adler encarrega-me de levar sua pasta de documentos.— E não se afaste de mim! — ordena logo. — Se al
guém chegar muito perto, você agarra e despacha logo.— Certo — declaro, bastante chateado por pensar que
meus antigos colegas e amigos poderão imaginar que me tomei não só um arrivista como um dos gorilas de Adler. Se algum deles se atrevesse mesmo a surrá-lo, eu saberia muito bem a quem ajudar, ainda que precisasse abandonar meu papel antes do tempo. Afinal, a abnegação termina em algum momento.
Os colegas já estão sentados ao redor de uma grande mesa. Há algumas caras novas. Adler senta-se à cabeceira e, com um sinal, faz-me entender que devo me espremer a seu lado. Pisco para alguns colegas, porém duvido que tenham entendido meu gesto de cumplicidade. Com um “ silêncio!” , Adler põe fim às conversas.
— Afinal, não estamos numa escola judaica — acrescenta, usando uma expressão que a maioria não compreen
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de. Todos silenciam imediatamente e olham-no.espantados, à espera do que ele tem a revelar. Adler inicia então seu discurso num tom que é no mínimo surpreendente: — Muito bem, meus caros colaboradores... — Ao ouvir isso Kemal me cutuca por baixo da mesa e não consegue prender o riso. — ... convoquei-os porque está na hora de botar ordem na casa. Andaram dizendo qiie trabalhamos ilegalmente. Até o nome de uma empresa como a Remmert foi mencionado pelo rádio. Uma coisa dessas pode prejudicar os negócios, e eu estou advertindo cada um de vocês contra esse tipo de afirmação. Se tudo continuar como agora, montaremos uma equipe estável, com contratos estáveis. Para tanto, faremos uso das louváveis disposições do governo federal, que nos autorizam a firmar contratos por prazo determinado, inicialmente de seis meses, com gente da nossa confiança. Assim, poderemos avaliar o desempenho de cada um e ver quem é bom para nós e quem não é tão bom. Não se pode confiar em alguém só pela cara. Se formarmos uma equipe estável, poderemos voltar a conversar sobre uma e outra questão. Dentro da Thyssen há muitas firmas que não tratam desse assunto de forma tão legal como estamos tratando agora. — Explica que atualmente a Thyssen lhe assegura “três mil horas por mês*’ mais tarefas especiais extraordinárias, e espera que isso continue “ todos os anos!” — Desde que a conjuntura econômica se mantenha tão favorável como agora e que a Thyssen não venha dizer de repente que acabou. — Pede- me para chamar a garçonete e proclama num tom arrogante: — Agora é a minha vez. Uma bebida para cada um. Soda, coca ou cerveja. A rodada é por minha conta! — E continua falando a seus “caros colaboradores” dos mais céticos aos mais temerosos: — Agora prestem muita atenção! Vou explicar a tabela dos salários. — Menciona “índices** desses salários de fome que ele mesmo fixa arbitrariamente como se tivessem sido estabelecidos por negociações oficiais com os sindicatos. — Os salários serão os seguintes... 8,50 marcos para o pessoal que tem entre 18 e 21 anos; 9 marcos para os solteiros com mais de 21
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anos e 10 marcos para os casados.1 Escalonei um pouco os salários — justifica-se — porque um homem casado evidentemente tem mais despesas. Ou, se preferirem, escalonei essas tarifas segundo critérios sociais. — Olha severamente para todos. — Se alguém não estiver de acordo, levante-se e saia!
Ninguém se mexe. Ninguém se atreve a dar sua opinião. Para a maioria, não é só a subsistência que está em jogo, é a própria sobrevivência. Sabem que lá fora há dúzias de pessoas que ocupariam seus lugares sem nenhuma objeção.
— Esse salário de 8,50 marcos é bruto? — Nedim ousa perguntar.
— Só pagamos salário bruto — responde Adler, lacônico.
— Mas então sobram apenas 5 ou 6 marcos — comenta Nedim.
— Bem, assim de cabeça não lembro as cifras exatas para os solteiros. É possível que seja isso. Mas, de uma vez por todas, os salários são sempre em valor bruto. Pagamos não só conforme a empreitada, mas também segundo a situação social. É um único bolo que deve ser repartido; portanto, devemos levar em conta o aspecto social.
SÓ o “bolo" da Thyssen representa 52 marcos por cabeça e por hora, conforme relatos dos colegas. Estão incluídos os adicionais de insalubridade para o pó, a sujeira, o calor e outros elementos nocivos à saúde; sem falar nas horas extras. Para a Thyssen, esses prêmios pagos ao pessoal da Adler saem mais em conta do que se ela pagasse a seus próprios trabalhadores registrados. Porque assim são suprimidos pagamentos de férias remuneradas, gratificação de Natal, auxílio-doença e tantas outras conquistas dos trabalhadores. Adler reparte os 52 marcos com a firma Remmert, que fica com 27 marcos. Supondo-se que, contrariamente a seus hábitos, Adler não embolse os encargos sociais e pague em média 9 marcos a cada empre
1 São bem poucos os casados (N. do A.).
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gado, restam-lhe ainda 16 marcos por hora; multiplicado por três mil horas no mês, isso dá 48 mil marcos — para Adler, é claro.
— Pois bem, vamos tomar nota dos nomes de um por um — diz ele. Ao olhar, porém, os rostos desanimados e abatidos de seus “guerreiros” , procura em seu repertório habitual algumas palavras de consolo: — Sei que não é muito no momento, porém, como já disse, estou disposto a rever isso. Ainda não nos conhecemos muito bem, mas em seis meses, quando nos conhecermos melhor, falaremos sobre aumento de salário. E estou certo de que poderei fazer alguma coisa a respeito.
“Todos que o conhecem um pouco sabem que se trata de promessas vazias” , penso.
— Muito bem, tenho outra coisa a dizer. — Adler levanta a mão para exigir silêncio. — Não vou mais tolerar que faltem ao serviço. A partir de hoje, infelizmente teremos que demitir quem faltar e pegaremos outra pessoa para ocupar o lugar. Está bem claro? A minha empresa não é botequim para vocês ficarem com entra-e-sai!— A esse ponto volta-se para Mustafá (23 anos), lançando- lhe um olhar crítico. — Isto vale principalmente para você. Anteontem foi a última vez que você faltou.
— Desculpa, senhor. Eu precisei levar a mulher no hospital. Ela foi dar à luz.
Ao invés de felicitá-lo, Adler finge não ter ouvido e repete:
— A última vez! Esteja certo disso!Nunca recebemos qualquer espécie de auxílio-doença
e várias vezes, chegando ao trabalho, éramos mandados de volta para casa porque não havia serviço. E mesmo assim Adler dispõe de nosso tempo e de nossa vida como se fossemos seus servos. Irritado, dirige-se asperamente a Walter Recht:
— Você deve parar duma vez por todas com essas suas faltas constantes, do contrário...
— Mas, senhor, de sábado para domingo trabalhamos vinte horas seguidas — argumenta Walter, cabisbai-
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xo. — Só cheguei em casa às quinze para as três, e às três e meia tive que ir buscar uma ambulância para a minha mulher, que precisou ser operada com urgência. Mas eu logo comuniquei ao sr. Flachmann.
Adler finge não ouvir e põe-se a esclarecer as coisas:— Se vocês não entrarem na linha, volto a fazer co
mo antes. Ao receber um atestado médico, vou até a casa do sujeito e vejo se ele está mesmo com febre. Se não estiver, ponho-o no olho da rua! — Em seguida retoma sua cumplicidade social: — Quando nos conhecermos melhor, nos acostumarmos uns aos outros, saberemos o que fazer. E quando nos reunirmos de novo... para uma festi- nha de Natal, por exemplo... se ainda estivermos juntos até lá... talvez possamos assinar contratos definitivos. Então está tudo certo. A partir de agora vocês são uma equipe, e eu não quero mais ouvir choradeiras por causa de dinheiro. Amanhã e sábado vocês poderão fazer horas extras, virar o dia trabalhando! Isso é tudo. — Despede-se de sua gente. — Amanhã cedo, todo mundo lá, pontualmente. Banho tomado, pescoço limpo e outras partes tam-. bém... — Depois volta-se para Mustafá e pergunta: — Você pagou as suas cervejas? Só me faltava deixar a conta das bebidas para eu pagar! Muito bem, tudo acertado — diz para Wormland, seu futuro cunhado, funcionário e confidente. Manda-me levar sua pasta de documentos para o carro e aproveita para explicar para Wormland: — Ali agora é o meu guarda-costas. Pode dizer para os rapazes. Ele sabe lutar caratê e tem um revólver.1 — Ficou o tempo todo sentado atrás de mim, sem despregar os olhos. Daí apareceram dois sujeitos que queriam dinheiro. Pensei que estava mesmo frito!
Meio divertido, Wormland comenta:— Ouvi dizer que você agora vai registrar o pessoal
todo.— Não leve tudo tão ao pé da letra — Adler respon
de, piscando o olho. — O importante é que haja. um pou-
1 Na verdade eu havia lhe mostrado só um canivete (N. do A.).
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co de paz nos negócios. — E esquiva-se para o canto do balcão ao ver entrar no bar um casal de jovens. O homem olha-o com fúria, e a mulher, uma loira, ostensivamente vira o rosto para o lado. — Fique atento — diz-me Adler.— Talvez você tenha que me defender. — E volta-se para Wormland num tom fanfarrão: — Está vendo? Sou mais conhecido que o papa!
Sua preocupação, porém, é infundada; não há nenhuma provocação.
Mais tarde, chega ao bar um de seus amigos de negócio, e Adler põe-se a falar sobre a assembléia do pessoal:
— E então consegui regatear os preços. Agora estão todos animados a fazer horas extras e turnos dobrados. E para não que ficassem tagarelando e discutindo, mandei- os voltar imediatamente para casa. “Você vai por aqui, você por ali” , disse-lhes. A gente precisa ter muito cuidado com esse pessoal.
À outra ponta do balcão está sentado um colega novo: Walter, um alemão de seus vinte e poucos anos, magro e pálido. Bebe uma cerveja atrás da outra e, levantando o copo para um brinde, evidentemente procura chamar a atenção de Adler, que, contudo, finge não vê-lo. Depois de tomar umas dez cervejas para ganhar coragem, Walter vai ao encontro de Adler e, num tom patético e um pouco alto demais, implora:
— Por favor, me dê uma chance. Eu fiz o curso de mecânico numa fábrica, mas fiquei doente nas vésperas do exame. Então me puseram na rua. Estou falando francamente... Na época eu ainda não era casado... mas agora é diferente; tenho dois filhos para alimentar. Na outra firma onde trabalhei, eu precisava ficar o tempo todo correndo atrás do meu dinheiro. — Põe-se a gritar imitando seu antigo patrão: — “Você não quer trabalhar, só quer meter a mão no meu dinheiro” , ele berrava. E depois me empreguei num estaleiro que faliu enquanto eu estava ainda no período de experiência. Sei fazer muita coisa. Sou qualificado como soldador, sei soldar até pó de zinco. E também sei trabalhar com projetos... Por favor, me dê uma
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chance, um trabalho qualificado. Não posso sustentar a família e pagar aluguel ganhando 6 marcos por hora.
Adler mostra-se claramente aborrecido. Por que o incomodam em seu momento de lazer, quando está já na décima quinta cerveja? Por que o perturbam com essas bobagens? Num tom repreensivo, livra-se de Walter:
— Comece por chegar no horário no trabalho. Aliás, por que você faltou hoje?
— Mas ainda há pouco eu disse que precisei levar minha mulher para o hospital — explica o rapaz, muito agitado. — Ela teve que ser operada com urgência.
— Comece por chegar no horário ao trabalho e depois falaremos sobre o assunto — diz Adler, dando a entender que não acredita na explicação.
— Pode confiar em mim. Todos os dias levanto às três da madrugada e vou para o serviço de bicicleta, que é para não correr o risco de me atrasar. Sempre chego na hora. Pedalo uns trinta ou quarenta quilômetros por dia. Pode confiar em mim! — E continua implorando, como um disco quebrado: — Por favor, me dê uma chance!
Cada vez mais irritado, Adler despacha-o dizendo:— Quem trabalha e chega sempre na hora recebe seu
dinheiro. Portanto, é só andar direito! — E vira-lhe as costas, voltando-se para Wormland.
Mais tarde, no banheiro, Walter me diz:— Viu só? O seu chefe não me deixou na mão. Ele
não é nada daquilo que você me contou no primeiro dia.— E, vendo-me calado, pois não quero desiludi-lo, prossegue: — Você reparou como ele ficou me olhando quando ele percebeu que o meu temo é igual ao dele?
Também resolvo não dizer nada sobre isso. É verdade que ambos vestiam um temo azul de listras. Só que o de Adler foi confeccionado sob medida e deve ter custado uma fortuna, enquanto o de Walter foi comprado por uma ninharia numa lojinha qualquer. A fim de defender melhor sua última oportunidade, Walter chegou a usar camisa branca e gravata, como se fosse fazer um pedido de casamento. Até que na décima oitava cerveja finalmente
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percebe que Adler não quer mais conversa com ele. Cambaleando, deixa o bar e monta em sua bicicleta, pronto para pedalar os quinze quilômetros que o separam de sua casa.
Nesse meio tempo, Adler chegou à vigésima cerveja e começa a discutir com Wormland. Pouco antes ainda proferia frases enérgicas, imaginando estratégias empresariais: “Agora é preciso manter tudo nos eixos!’ ’ “Cuido do meu quadro de pessoal como de um tesouro!” “Considerem como podemos diminuir os custos!” Agora, porém, ataca Wormland violentamente só porque o outro se atreveu a contrariá-lo:
— Você não pode tratar o pessoal desse jeito. Se o H. processar você, até será com razão. Eu mesmo teria feito isso há muito tempo se não fosse seu parente. — E grita,, irritado: — Você é um traidor! Fica do lado desses miseráveis, desses vagabundos, desses bandidos! Você pertence mesmo a essa gentalha!
Wormland mantém-se calmo. No serviço, nunca fui muito com a cara dele, mas aqui demonstra ter alguma personalidade. Faz Adler perceber o desprezo que sente por ele e mantém sua opinião. Indiferente, várias vezes trata o chefe de senhor, para manter distância, e responde:
— Não estou do lado deles, mas quando alguém está no seu direito...
Adler não suporta que se atrevam a contrariá-lo.— Para mim você morreu. Está despedido. A partir
de amanhã, pode ir para Hannover trabalhar na montagem!— Não vou fazer nada disso. Continuarei trabalhan
do na Thyssen. O senhor não pode se livrar de mim!Wormland dá a entender que sabe de algumas ilega
lidades e sujeiras cometidas por Adler... De fato, embora Adler, vermelho de raiva, continue repetindo que o futuro cunhado está demitido ou será transferido para Ruhrkohle1, em Hannover, Wormland mostra-se bastante tranqüilo — e continuará ocupando seu cargo de encarregado na Thyssen.
1 Adler tem um contrato firmado com a Ruhrkohle Wárme de Essen e presta serviços no quartel Freiherr-von-Fritsch em Hannover (N. do A.).
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Quase chegando à vigésima quinta cerveja, Adler entra em sua fase “sentimental” . Olhando para mim com olhos vítreos e um pouco à maneira de Puntilla1, diz:
— Esse aí, sim, está do meu lado. Seria capaz de me proteger com sua própria vida. — E acrescenta com um gesto grandioso, patético: — Um dia vou tirá-lo da miséria, daquele buraco imundo da Dieselstrasse. Vou lhe dar roupas novas, que combinem de verdade com o meu Mercedes. — Comovido com a própria generosidade, põe-se a meditar: — Se ao menos eu soubesse o quanto Ali vale no plano intelectual... — Lança-me um olhar encoraja- dor*. Comporto-me como se não estivesse compreendendo a conversa. — Você sabe o que quero dizer? Sabe o que significa “ intelectual” ?
— Eu sabe — respondo. — É quando gente entende tudo.
— Isso mesmo! Até que você tem algum nível. Sabe o que quer dizer “ nível” ?
— Eu sabe. É quando gente faz parte pessoal de bem. Mas isso depende onde gente está metido. Maior parte de pessoa pode fazer mais quando gente deixa elas fazer.
Wormland intromete-se na conversa:— Você não percebe que ele não está entendendo na
da? O cara fala mal e devagar.Adler tenta tirar proveito de nossa rivalidade:— São só os efeitos secundários dos remédios que ele
andou testando. Ali não é tão estúpido assim e entende bem mais do que você imagina!
— Eu não consegue dizer sempre tudo que eu pensa— declaro, reforçando a opinião de Adler. — Mas muitas vezes eu entende mais do que eu diz.
— Sim?... — Por um instante Adler lança-me um olhar inquisitivo e penetrante, como se buscasse em minhas palavras um significado mais profundo. No entanto, parece acalmar-se à medida que vou falando.
1 Personagem da peça O sr. PuntiUa e seu criado Matti, do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (N. do E.).
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— Eu não sabe se entende tudo certinho. Eu não pode saber tudo... Mas é só fazer pergunta para ver o que eu sabe.
Depois de pensar por alguns momentos, Adler decide submeter-me a um teste de inteligência criado por ele mesmo. Sua primeira pergunta:
— Quem é o colosso de Rodes?Para testar o autor do teste, deliberadamente dou uma
resposta errada, como se tivesse confundido o deus do Sol, uma das sete maravilhas do mundo, com Atlas, o gigante que sustenta o céu:
— Ele precisa carregar o mundo em costas. Mundo pesa muito, e ele fica assim, meio torto, quase não consegue segurar peso todo.
— Correto! Excelente! — Adler felicita-me, dando- me a impressão de que desconhece a resposta certa. E dispara a segunda pergunta: — Como se chama o nosso chanceler?
Respondo corretamente. E também digo corretamente o nome do chanceler anterior quando ele me pergunta. E sei ainda o nome do secretário-geral do Partido Comunista soviético. Para seu espanto, sei o nome do presidente da França. Adler fica admirado. Para ele, seus escravos não passam de selvagens, de homens pré-históricos, de ralé. Adler sente-se superior a todos não só no plano espiritual como também no plano cultural.
Um funcionário de uma financeira, sentado um pouco distante de nós, junto ao balcão, começa a implicar com o interrogatório:
— Mas, afinal, para que serve tanta pergunta idiota?Adler reage com irritação:— É uma conversa de negócios, e não admito suas
alusões! — E prossegue com o teste: — Quem é o governador da Renânia do Norte-Vestfália?
Respondo corretamente. Mas em seguida ele quer saber quem é o ministro do Meio Ambiente. Fico embaraçado. Conheço Klaus Matthiesen porque participei com ele de alguns congressos em Schleswig-Holstein e considero-
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o um dos políticos mais progressistas do PSD. Uma pergunta dessas pode ser uma armadilha, e temo que Adler desconfie de mim se mostrar que sei o nome de uma pessoa tão declaradamente de esquerda.
— Esse eu não sabe — respondo por precaução.— Não faz mal — diz Adler. — Não é mesmo preci
so conhecê-lo. É só alguém que quer reformar o mundo e provoca muitos transtornos. O anterior, Báumer, é um grande amigo meu, de longa data. Tem faro certo e tino empresarial. Esteve lá em casa no meu aniversário. Nele a gente pode confiar!
(Bom saber quem são os “padrinhos" políticos de Adler que estão nos bastidores. Como presidente do PSD de Niederrhein durante muitos anos, Bàumer tomou-se conhecido por suas intrigas contra os social-democratas progressistas. A ele, por exemplo, deve-se a exclusão de Karl- Heinz Hansen1 do partido, com a conivência do ex-chan- celer Helmut Schmidt.)
Não se deve imaginar, sob nenhuma hipótese, que Adler seja uma flor do lodo, muito rara e colorida, dentro de nossa paisagem social. Ao contrário. Ele está perfeitamente integrado, é reconhecido e considerado. Os que o conhecem bem sabem como ele ganha seu dinheiro. No entanto, generosamente não fazem caso dessas “repugnân- cias" flagrantes. A partir de uma certa ordem de grandeza, nesses círculos prevalece a seguinte máxima: “Dinheiro não foi feito para dele se falar, foi feito para se ter!" Como o consegue, à custa de quem e a preço de que crimes — isso eu tenho quase certeza de que Bãumer jamais discutiu com seu amigo Adler.
São coisas que a gente sabe e guarda para si mesmo; de resto, é tratar do lado agradável da vida, freqüentando clubes, viajando de iate. Talvez, algum dia, umas férias no Havaí, um dos locais prediletos de Adler. Aqui na panelinha do Ruhr, ser membro do PSD favorece os ne
1 Representante da ala esquerda do PSD nos anos 70 (N. do T.)-
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gócios e facilita a carreira. Estou certo de que, se vivesse na Baviera, Adler seria membro da USC.
Uma vez, ouvi-o gabar-se de ter gasto 200 mil marcos em gratificações só nos últimos cinco anos para obter certos contratos. Na maioria das vezes, porém, subornos diretos são desnecessários. Basta fazer parte do mesmo “estábulo” para trocar sinecuras e trabalhos. Não é sem motivo que Adler é sócio do finíssimo clube de golfe de Düs- seldorf. Quem o apresentou? Seu velho amigo Alfred Gãrt- ner, vice-govemador da Renânia do Norte-Vestfália.
— Se você fizer por merecer — diz-me Adler —, eu lhe darei um cargo de chefia. — E, como o fito sem entender, explica: — Basta fazer tudo o que eu lhe disser. E outras coisinhas também! — E, como ainda não entendo, resolve falar claro: — Você tem que ficar de olho nos seus colegas turcos. Você se dá bem com eles. Então é só vigiá-los e me contar o que se passa. Por exemplo... se um deles anda fazendo intrigas contra mim... ou se alguém resolve abrir o bico. Ponho o cara na rua imediatamente. Antes que a laranja podre estrague as outras. Os jovens são bonzinhos por natureza, mas não podemos tirar os olhos de cima deles, senão provocam agitações antes mesmo que a gente consiga fazer alguma coisa. Só me pergunto se você está à altura desse serviço.
Vou mesmo é morrer de fome. Não desejo ir tão longe com este papel. Aos poucos aproxima-se o instante em que devo pular fora. Encontro-me numa situação muito delicada perante meus colegas e amigos. Não posso mais titubear. Sinto-me como um mestiço da África do Sul que sempre ficou do lado dos negros, talvez até lutando junto com eles, e, agora, de um momento para o outro, é atraído pelos brancos exatamente porque tem a confiança dos negros. Espião e dedo-duro: esse é o papel que Adler me reservou. Além de minha tarefa de gorila adestrado e guarda-costas!
— Se for necessário, você tomará medidas drásticas. Portanto, continue com os seus treinos de caratê — prossegue Adler, tentando me estimular. — Se tudo correr bem,
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monto uma casinha para você perto da minha e mais tarde lhe dou um carro. Basta ficar sempre perto de mim e estar pronto para entrar em ação a qualquer momento. Sabe, a Dieselstrasse não é um bom lugar para você. Lá você pode se estragar. — E, percebendo minha repulsa, vai mais fundo: — Não há necessidade de você abandonar seus conterrâneos já. No momento, tenho menos raiva deles do que de uns alemães que vivem fazendo cagadas. Dois deles tiveram o desplante de me chamar na Justiça para tentar me arrancar dinheiro. Um dia, mando você cuidar deles. Entende o que quero dizer? Esses porcos de merda tiveram coragem de me caluniar no tribunal. Você vai lá e cuida deles, até que retirem a denúncia contra mim.— Dá o nome e o endereço dos dois operários alemães que há algum tempo não trabalham mais conosco.
— Mas em academia caratê eu prometeu usar esporte só legítima defesa — tento explicar.
— Certo, certo. E precisamente é esse o caso. Eu me encontro em situação de absoluta legítima defesa. Eles me ameaçam, e você me protege. — Como persisto em meu ceticismo, acaba cedendo: — Tudò bem! Então fique fora disso por enquanto. Afinal, vivemos num estado de direito. E eu tenho ótimos advogados. Vamos aguardar o pronunciamento da Justiça. Mas, se não reconhecerem os meus direitos, não restará outra alternativa. Você irá procurá- los e cuidará deles. Estou cheio dessas disposições legais!
Jürgen K. (26 anos) é um dos dois alemães de quem eu devo c‘cuidar* * caso Adler não consiga fazer valer o que chama de “ seus direitos**. Resolvo ir preveni-lo e verifico que ele não está em melhores condições que seus colegas imigrantes. Ficou mais de um ano desempregado. Precisou deixar o serviço por causa de dores na coluna. Foi procurar qualquer trabalho nas grandes indústrias da região, inclusive na Thyssen, mas não encontrou nada. Então, através de um anúncio no jornal, descobriu a firma Adler, onde se apresentou.
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“No primeiro contato, Adler não me causou má impressão. Não fez muitas perguntas e me prometeu mundos e fundos. Só quis saber se eu era do sindicato. ‘Não é? Ótimo', disse. ‘Perfeito! Vamos ver como você se sai no trabalho. Tenho certeza de que chegaremos a um acordo. Afinal, quem trabalha bem merece ser bem pago, não é mesmo?'
“Ele me perguntou se eu fazia idéia do salário. ‘O bruto é de 13,50 marcos por hora', foi a minha resposta. Então ele disse que era muito para a firma Adler, era o salário de um operário especializado, e, como eu vinha de outro ramo, não podia me pagar tanto. ‘Está bem para você9 marcos líquidos?' Fiz as contas rapidinho: 9 marcos líquidos correspondem aproximadamente a 13,50 brutos. Disse que concordava. ‘Muito bem, então você pode começar a partir do dia 24 de janeiro.' Fiz questão de que tudo estivesse absolutamente dentro da lei, por causa da previdência social e todas essas coisas. Mas ele me disse: ‘Não vale a pena registrá-lo antes do dia 1.° de fevereiro; é um período pequeno'. Assim, trabalhei ilegalmente sete dias em janeiro, sem ter sido registrado."
Jürgen só descobriu que continuava trabalhando sem registro um mês depois, ao requerer o documento da previdência social a fim de marcar uma consulta para sua filha, que estava doente. Adler deveria tê-lo registrado naquele mesmo dia, 25 de fevereiro. Existe um artigo na legislação trabalhista que autoriza os empregadores a registrarem seus funcionários até um mês depois da contratação. Abutres do gênero de Adler tiram proveito disso, “ registrando retroativamente" seus empregados em caso de necessidade — acidentes ou doenças. E, mesmo assim, ainda o fazem como se o trabalhador em questão tivesse acabado de ser contratado.
“Só me dei conta da águia que é esse tal Adler1 algum tempo depois", continua Jürgen. “Não sou nenhum vagabundo. Trabalhei como um burro de carga. E, no fim
1 Em alemão Adler significa “águia” (N. do T.).
de tudo, o que foi que eu ganhei? 5,91 marcos por hora. Nada de extras, nada de adicional noturno, nada de compensação pelos feriados em que trabalhei. Um verdadeiro pouco caso! E, para completar, as contas nem estavam corretas...
“ ‘O salário é depositado normalmente todo dia 15’, disse Adler. ‘Você precisa abrir uma conta no banco, porque não faço pagamento em dinheiro vivo.' Fui ao banco e abri a conta. No dia 15, nada do dinheiro; no dia 16, nada. Telefonei para Adler: ‘Onde é que está o meu pagamento?' Resposta: ‘Já foi depositado. Deve cair na sua conta hoje ou, o mais tardar, amanhã!' No dia seguinte, voltei ao banco: nada. A coisa já estava indo longe demais. Eu não tinha dinheiro nem para a gasolina. A minha noiva me levava de carro todos os dias para o trabalho, e nunca lhe dei um centavo para a gasolina... Em todo caso, já não havia mesmo jeito de ir trabalhar. A minha noiva telefonou para Adler, lá pelo dia 20, e falou: ‘Não tem nenhum dinheiro depositado na conta’. O cínico debochou dela: ‘É claro que não tem nenhum dinheiro no banco'. ‘Como assim, por quê?', ela perguntou. ‘Porque o dinheiro está com um colega do seu namorado!’ ‘Com um colega? Como?’ ‘Dei o dinheiro, mas ele não pode entregá-lo hoje porque está fazendo hora extra!'
“Lá fui eu procurar Walter, que estava com o meu envelope de pagamento. Walter, o futuro cunhado de Adler, passeava tranqüilamente com o meu dinheiro! Depois de vasculhar a fábrica inteira, finalmente o encontrei, de roupa trocada, prontinho para ir embora. Não era verdade, portanto, que devia fazer hora extra; eram exatamente duas horas da tarde, horário do término do seu turno.
“ ‘Você está com meu envelope de pagamento?', perguntei. ‘Estou’, respondeu e me entregou um recibo. ‘Assine!’ Mas eu falei que não; primeiro queria conferir o dinheiro. Dentro do envelope havia 610 marcos, referentes ao mês de fevereiro. Pagaram-me 79 horas somente, 9 marcos brutos por hora. E eu tinha trabalhado 126 horas! Estavam faltando mais de 40.
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“Então explodi: ‘Assim não dá!’ Ele me prometeu que no mês seguinte não só receberia a diferença como o salário seria maior.
“No mês seguinte, a mesma coisa. Fazem com a gente o que bem entendem. Fui até chantageado: ou dobrava o turno, ou não precisava mais voltar. Pior ainda era quando eu chegava na fábrica e o encarregado me dizia: ‘O chefe não telefonou para você? Não precisava vir hoje, não tem serviço!’ E toca voltar para casa.
“Um dia, cheguei em casa às onze da noite, depois de um turno dobrado, e encontrei uma passagem de trem enviada por Adler. Devia ir imediatamente para Hamburgo. O trem partia à uma e meia e não tinha um leito livre. Cheguei em Hamburgo lá pelas sete da manhã. Trabalhei oito horas seguidas na BAT (uma fábrica de cigarros) e voltei para Duisburg. Fazia 26 horas que eu não parava nem dormia.”
Jürgen mostra-me as fichas correspondentes às horas trabalhadas, assinadas pelos encarregados de equipe e pelo supervisor. Em março, turnos constantes de dezesseis horas, dezessete e meia, catorze, vinte è meia — e “um atrás do outro” .
De vez em quando generosamente concedem algumas horas de descanso entre os diferentes turnos. Por exemplo, no dia 12 de março: o pessoal trabalha das 6 às 22 horas, sem interrupção (16 horas); volta para casa e dorme uma hora e meia; começa novo turno à 0h30 e trabalha direto até as 21 da noite seguinte (vinte horas e meia sem parar).
Dois dias depois, outro turno dobrado, das 16 às 14 do dia seguinte (22 horas sem parar). No dia 18 de março, inicia 0 turno às 6 e trabalha até as 14 (oito horas normais); chega em casa às 15h30, dorme até as 20 (quatro horas e meia), engole às pressas alguma coisa e parte para um novo turno das 21h30 às 7 da manhã (nove horas e meia); dorme das 8h30 às 14 (cinco horas e meia) e sai para 22 horas de trabalho direto, das 16 às 14 do dia seguinte.
“A gente sempre disfarçava a raiva” , conta Jürgen,
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“mas eu pensava que pelo menos tinha um emprego, era melhor que nada. E quando o encarregado precisava de alguém, perguntava se a gente queria dobrar. No começo, eu disse claramente que se precisassem de alguém para trabalhar nos sábados e domingos podiam contar comigo, porque eu ganhava muito pouco e precisava fazer horas extras, senão o dinheiro não dava para as despesas. Com os outros trabalhadores, os turcos — quase só havia turcos na Adler —, era bem pior. O encarregado simplesmente dizia: ‘Ei, você ai! Pode ficar parâ fazer um turno dobrado. Se não quiser, não precisa voltar amanhã. Amanhã?! Pode se mandar hoje mesmo!' ”
Jürgen viu o chefe pouquíssimas vezes. “Ele quase não aparece na nossa frente e vive nos enganando, mandando dizer que não está. Eu o vi pela primeira vez no dia em que fui contratado; depois tomei a vê-lo num canteiro de obras; e a última vez na audiência do tribunal. Só quando ele queria alguma coisa é que telefonava para a gente, intimando: ‘Você tem que vir trabalhar hoje à noite! É um turno extraordinário!’ Ele nunca dizia: ‘Será que você pode?*, mas: ‘Você tem que!...’ Quem se recusava já sabia: ia parar no olho da ma! É um trabalho para condenados, para gente que esfaqueou os pais ou os filhos.
“Um dia, estávamos agarrados no permutador térmico, limpando as espirais. Um calor e um pó infernais; e o pó é alcalino, bastante venenoso. Trabalhamos ali durante dias. Os operários da Thyssen perguntavam: ‘Mas como é? Nunca substituem vocês?*
“Lá dentro devia fazer uns trinta, quarenta graus. E quanto mais a gente se aproximava das espirais, mais aumentava o calor. Tínhamos que limpar as espirais sem nenhuma ferramenta especial, só com as mãos e umas barras de ferro. Elas estavam cobertas de escória da fundição, que normalmente sai pela chaminé e se liqüefaz. Mas a coisa ali estava dura como pedra. Chegou a grudar até no forno do subsolo. Imagine só ficar naquele calor infernal durante dezesseis horas! Os outros dois que trabalhavam comigo foram parar na enfermaria duas vezes se
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guidas; eu fui uma única vez: meus olhos estavam completamente inflamados por causa de tanto pó. Não tínhamos máscaras de proteção; cobríamos a boca com um pano fino para não engolir a poeira. Ninguém nem falou em máscara de proteção para a cabeça toda... E também não havia sistema de ventilação. O pó ficava suspenso no ar. Claro que a gente não podia sair correndo de dois em dois minutos. O pior é que.o serviço devia estar pronto no começo da tarde, quando muito às duas horas, porque iam encher tudo de gás. Trabalhamos como uns condenados! No espaço de dois dias, 36 horas. E alternando: um dia lá embaixo, naquele calor sufocante, outro lá fora, em pleno inverno, até com vinte graus abaixo de zero, arrancando a sujeira com a picareta. Esse trabalho me arruinou completamente as costas, sem falar nas mudanças de temperatura. Houve dias em que cheguei a rastejar, tanto a coluna me doía, mas eu precisava do dinheiro.
“Ainda em pleno inverno, arranjaram outro servici- nho para nós: limpar as esteiras rolantes por onde corre o coque, empoleirados num andaime coberto de lama. Eu mal conseguia me mexer, tamanho era o frio. Um colega turco escorregou, caiu e quebrou o braço. Seis semanas depois, estava de volta como se nada tivesse acontecido.
“Foi um erro largar a mina onde eu trabalhava. Ganhava mais dinheiro e com mais facilidade. Em comparação com a Adler, a mina é um paraíso. Trabalhar lá embaixo, num cilindro de decantação, é moleza perto desse outro serviço. É claro que de vez em quando a gente precisava dar duro se aparecia algum pepino. Mas na Thyssen só aparece pepino, e para a gente resolver com as próprias mãos. Como arrastar barras de ferro superpesadas, porque sai mais em conta que usar guindastes.”
Graças à tática de “ ir empurrando” , típica de Adler, Jürgen acabou recebendo 861 marcos por nove semanas de trabalho escravo. Já não conseguia sustentar a família (dois filhos pequenos). Sua mãe precisou trabalhar como faxineira para não passarem fome de verdade. E ele começou a fazer dívidas, uma atrás da outra.
*206 r
Já no mês de fevereiro, Jürgen começou a entender o jogo desumano de Adler e resolveu anunciar-lhe sua intenção de demitir-se. O outro, porém, acenou-lhe com novas promessas: “ 'Falo sério, se as coisas continuarem assim, eu me demito*. Então ele me disse: ‘Ora, venha cá! Você sabe, vou lhe pagar 12 marcos líquidos!’ Eu falei que isso não passava de palavras e que eu ia buscar o meu dinheiro na segunda-feira. Ele concordou; disse que o dinheiro estaria nas minhas mãos, e que pagaria a diferença. Nunca vi a cor do dinheiro.”
No dia 20 de março, Jürgen resolveu desistir do emprego.
“Eu já tinha pedido demissão por telefone e, no dia seguinte, resolvi escrever uma carta, confirmando a minha decisão e avisando que se não recebesse meu ordenado daria parte dele na Justiça do Trabalho. Nenhuma reação. Voltei a telefonar e fui atendido pela secretária eletrônica. Repeti o texto da minha carta. Nenhuma reação. Alguns dias depois, liguei de novo. Adler perguntou quem estava falando, e respondi: 'Jürgen K .\ Então ele apenas me disse o seguinte: 'Converse com o meu advogado!’ Fui à Justiça do Trabalho. A primeira audiência foi terrível. Adler não compareceu, é esperto demais para isso. Eu me senti como se fosse o próprio acusado. A audiência durou dois minutos e meio. E lá estava eu, outra vez do lado de fora. Só me disseram isso: 'O senhor está processando a empresa errada!* ‘Como?*, perguntei. Não existia uma Sociedade Adler-Heisterkramp, mas só uma Sociedade Adler em Oberhausen. ‘Um momento’, falei, ‘não é possível. Eu trouxe os envelopes de pagamento da empresa Adler-Heisterkramp.’ Mas de que iria adiantar? Quem não conhece muito bem as leis e não tem advogado está perdido. Um tipo como Adler só precisa abrir uma boa falência para se safar de qualquer dificuldade. Resolvi contratar imediatamente um advogado, o que também custa algum dinheiro. Eu não conseguiria assistência jurídica porque estava trabalhando. Arrisquei pagar uns bons mil marcos de honorários. Então finalmente fiz um acordo com
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Adler e só recebi algumas centenas de marcos. Um empresário como ele, esperto e sem escrúpulos, sempre consegue tirar vantagens de tudo, mesmo diante dos tribunais.
“Ele apareceu na segunda audiência e quis me arrasar, dizendo que eu era um vigarista mentiroso. E que as fichas com as horas trabalhadas eram falsas. Elas tinham sido assinadas pelo encarregado em duas vias: uma para a Remmert e a outra para mim. Foi assim que pude provar que só até o dia 20 de março (em fevereiro eu não tinha sido tão esperto) eu trabalhei 129 horas, sendo 36 direto.
“Mas ele apresentou na audiência o meu cartão de contribuição1, onde estava anotado que eu tinha recebido 434 marcos. Não havia carimbo da empres'a. Ele conseguiu dar sumiço no resto. Diante do tribunal, Adler se comportou como se fosse dono da Justiça. O próprio juiz chegou a repreendê-lo, por ofender os vogais. Adler falou que só porque era patrão já o acharam culpado desde o começo e que ele não tinha meios de fazer valer seus direitos. E me chamou de vigarista... falsificador de documentos.
“O advogado me aconselhou a fazer um acordo, pois do contrário o processo ia se arrastar por meses, talvez anos. E eu precisava do dinheiro. Assim, em vez dos 2 735 marcos que ele me devia, tomando como base o salário bruto de 9,50 marcos por hora (o outro preço foi combinado só de boca, sem nada escrito), acabei aceitando o pagamento de 1 750 marcos.
“Depois da audiência, tive que devolver a Adler o cartão de contribuição. Isso já faz quase um mês e até agora não o recebi de volta. E também não vi um centavo do que ele me deve. Como o obrigaram a pagar os encargos sociais, ele fica protelando. Não há nem como processá-lo criminalmente. A Justiça do Trabalho o trata como um
1 Na República Federal da Alemanha, todo empregado possui um cartão de contribuição no qual são anotados sua faixa de imposto de renda descontado na fonte e o total de seu salário (N. do T.).
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homem honrado, apenas um pouco confuso. E a gente é que passa por ignorante!
“Hoje em dia, os patrões podem se permitir qualquer coisa. Do mesmo modo que os subempreiteiros. Há muita gente desempregada, esse que é o problema. E são bem poucos os que resolvem botar a boca no trombone e se defender."
Jürgen não conseguiu arranjar outro emprego porque Adler, num procedimento bem típico, não lhe devolveu o cartão de contribuição.
“O mês de abril passou, maio chegou na metade e nada de eu receber o meu cartão de contribuição. Fui conversar com a firma Remmert sobre a minha contratação, e lá me disseram que tudo bem, eu podia começar a trabalhar com eles, só que precisava apresentar a documentação. O problema é que os documentos não estão comigo, estão com Adler. Consegui uma cópia do cartão de contribuição e voltei lá na Remmert. Disseram que, como eu já tinha trabalhado com eles, devia apresentar o cartão original... Sem dúvida foi só um pretexto, já que Remmert e Adler são carne e unha.
“Acho que Adler se saiu dessa fácil demais. Com certeza outros otários vão cair na armadilha, pois sempre vejo no jornal: ‘Firma Adler precisa de...' Fico me perguntando como consegue contratar alguém... não entendo! Ele mesmo declarou publicamente na audiência: ‘Não contrato ninguém com salário bruto superior a 9 marcos por hora’."
Resta um pequeno consolo para Jürgen: “Existem imigrantes que estão em condições piores ainda. Por exemplo, os paquistaneses que trabalhavam lá por um salário bruto de 6 marcos. E nem sequer tinham visto de permanência".
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Eis os depoimentos de alguns colegas turcos que comprovam as práticás habituais de Adler e o perigo a que estão sujeitos no trabalho.
Hüseyin Atsis (56 anos), que já fez os piores serviços na Turquia, diz o seguinte: “Deve ser bem melhor trabalhar na Sibéria do que aqui". Ele nunca vira “locais de trabalho mais perigosos” .
“Por exemplo, no alto-forno recém-construído obrigavam a gente a arrastar os tubos de lá do sétimo andar. Eu me lembro que havia necessidade de dois homens para arrastar um único tubo. E tínhamos que prestar uma atenção danada durante o trajeto, porque sabíamos que estávamos correndo risco de vida.
“ Também nos fizeram subir num guindaste de uns setenta metros de altura para varrer todo o pó que havia lá em cima. Depois tínhamos que arrastar para baixo os sacos cheios de pó, que pesavam bem uns cinqüenta quilos. Era um trabalho perigoso e prejudicial à saúde. Fui perguntar ao encarregado por que é que eu devia fazer aquele serviço. A resposta dele: (Você pelo menos tem seguro e seus documentos estão em ordem. Diferente dos outros. Se acontecer um acidente poderemos fazer alguma coisa por você’. Foi então que eu soube que Adler tem poucos empregados registrados legalmente, com a documentação em ordem.”
Hüseyin Atsis também precisava correr atrás de seu pagamento. Quando finalmente conseguia receber, depois de muita insistência, verificava que o salário estava muito aquém do que esperava tomando como base o valor combinado do pagamento por hora e as constantes horas extras que fazia. Em lugar dos 10 marcos combinados recebeu apenas 9 marcos por hora, sem falar nos descontos misteriosos. Por 184 horas de trabalho recebeu somente 724,28 marcos. “Assim que peguei o dinheiro, disse para mim mesmo: ‘Não dá para se meter com essa gente. E, se bobear, ainda me expulsam do país’. Resolvi pegar meus documentos e me dar por satisfeito com o dinheiro. Mas aí Adler falou: ‘Não vou lhe entregar os documentos. Primeiro você tem que assinar um papel dizendo que recebeu tudo o que lhe devíamos. Só depois eu devolvo seus documentos’.”
Sait Tümen (25 anos) e Osman Tokar (22) passaram pela mesma experiência.
Sait Tümen: “Eu estava trabalhando com Adler fazia três meses e nunca me pagavam a soma exata que eu deveria receber. Eram 100 marcos a menos aqui, 200 ali... E olhe que eu trabalhava quase todos os dias! Comecei a pedir dinheiro emprestado para poder viver e prometia aos amigos que pagaria tão logo recebesse o meu salário. Adler vivia dizendo que eu ficasse sossegado, pois ia me pagar no dia seguinte. Como não pude pagar as dívidas, os amigos acharam que eu estava mentindo e nunca mais falaram comigo. Por causa disso perdi os amigos. Tentei arranjar emprego em outrò lugar. Mas precisava levar os documentos, ou nada de serviço. Procurei Adler e disse que eu tinha conseguido outro emprego, mas precisava dos documentos e do dinheiro que ainda tinha para receber. Ele falou: ‘Só lhe entrego os documentos se você assinar um papel dizendo que não tem mais nada para receber aqui’. Daí eu pensei: ‘Se eu não levar os documentos amanhã, perco o emprego. Que fazer? E o novo chefe é muito amigo de Adler! * Então assinei o papel, que já estava até datilografado. O Adler tinha um montão deles. No papel, bem no alto, estava escrito: ‘Declaração'. Dizia que a firma Adler — Montagem Industrial não me devia nada e que eu, como empregado temporário, já havia recebido tudo a que tinha direito” .
E Osman Tokar: “Toda semana Adler descontava algumas horas do nosso salário. Então fomos falar com ele e ouvimos a seguinte resposta: ‘A diferença será paga no próximo ordenado'. Mas isso nunca acontecia. E ele vivia repetindo: ‘Na próxima vez, na próxima vez!’ Era assim que conseguia se livrar da gente. Então eu decidi tirar a coisa a limpo. Ele me disse: ‘Se você não quiser receber 9 marcos por hora, menos 40% de descontos, só preciso botar um anúncio no jornal para aparecerem mil pessoas no portão. Vocês deviam ficar felizes por ter um emprego, afinal são estrangeiros’. Foi isso o que ele falou” .
Osman também descreve as condições de trabalho e os efeitos nocivos sobre sua saúde:
“Obrigaram a gente a trabalhar num lugar onde não se enxergava quase nada por causa da poeira. E nem se podia respirar direito, era terrível. Depois de alguns dias, comecei a sentir umas dores medonhas, como se estivessem me furando o coração e os pulmões. Foi então que um colega da Thyssen me contou que o pó de ferro é muito perigoso e pode provo
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car a morte. E que eu devia arranjar com urgência uma máscara de proteção. Fui falar com o chefe da Thyssen. Ele me disse que não era tão grave e que eu fosse trabalhar em vez de dizer asneiras. Viviam nos chantageando: se não acabássemos o serviço em vinte horas, eles nos obrigariam a continuar trabalhando lá dentro. E realmente não pudemos sair.
“Depois do serviço fui procurar um médico, porque eu estava com uma tosse horrível. O médico me examinou e foi logo perguntando onde eu trabalhava. Respondi que numa empreiteira da Thyssen. Então ele quis saber se no local havia gás, pó de ferro ou coisas do gênero, que são nocivas aos pulmões. Falei que havia pó de ferro. Daí ele me disse que eu não era o único da Thyssen que o procurava por causa desse problema. E que se eu quisesse ficar bom de verdade tinha que procurar outro emprego. E me receitou os remédios".
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A radiação
Ainda me falta uma ocupação: na usina nuclear de Würgassen, a mais antiga da Alemanha Ocidental, inaugurada em 1971 e constantemente necessitando de reparos. Para os serviços de revisão, realizados todos os anos, dão preferência a pessoas de confiança. Os imigrantes, principalmente os turcos, são os mais procurados. Talvez por serem verdadeiros nômades.
Na República Federal da Alemanha não há parece- res científicos precisos sobre os efeitos a longo prazo das constantes e ínfimas doses de radiação. As estatísticas não levam em conta a maior parte dos imigrantes enviados às centrais nucleares, onde se encarregam dos serviços de limpeza e reparação nas áreas particularmente “quentes", isto é, expostas à radiação. Desconhece-se, portanto, o número de imigrantes que, depois de alguns anos ou décadas, contraem câncer dos testículos, da próstata ou da glândula tireóide. Além do mais, eles moram em outras cidades ou retomam a seus países de origem, e ninguém lhes perguntará se, alguma vez, há muito tempo, foram contratados por poucos dias, semanas ou meses para fazer um trabalho limpo e relativamente fácil numa usina nuclear alemã. Para o trabalho corriqueiro os responsáveis por essas usinas preferem equipes pequenas, constituídas por seus próprios operários estáveis; mas quando se trata de uma tarefa relativamente perigosa recorrem às subempreiteiras, que, por um curto período, fornecem-lhes um grupo de trabalhadores constantemente renovado. Em poucos dias ou horas, às vezes até mesmo segundos, eles recebem a dose máxima de radiação permitida por ano: 5 000 milirem1. Entrevistei alguns trabalhadores turcos que foram contratados por 10 marcos a hora.
1 Milirem é uma unidade de medida de radiação utilizada em medicina nuclear(N. do E.).
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Toda vez que um dos tubos condutores de vapor começa a vazar e precisa ser vedado, o responsável pelo reator prefere chamar trabalhadores turcos. Segundo seus depoimentos, por um “salário semanal de 400 marcos” , os turcos trabalham até receber a dose anual de 5 000 mili- rem, o que pode demorar de meio a dois minutos, conforme a intensidade da radiação. Se o tubo continuar mal vedado, outros turcos são enviados para a área de radiação. No jargão nuclear, essa prática recebe o nome de “queimar” . Em princípio, eles ficam “impedidos” de trabalhar pelo resto do ano. “Mas existem meios de continuar fazendo esse serviço em outros locais” , explica-me um dos trabalhadores, que, no entanto, não quis descrever tais meios. “ Se a gente não der um jeito não arranja mais emprego em lugar nenhum.”
Para entender melhor esse trabalho perigoso e muitas vezes fatal e poder dar um testemunho fiel do que acontece lá dentro, decido procurar uma colocação na central de Würgassen. O problema é que fazem uma investigação prévia a título de segurança. Dou o nome e o endereço de meu duplo, além de relacionar os diferentes domicílios que ele ocupou nos últimos dez anos, para que o Serviço Estadual de Defesa da Constituição possa checar todos os dados e vasculhar “minha” vida. Os computadores usam suas “memórias de elefante” : participação em passeatas? atividades suspeitas? Entram também em contato com a polícia federal.
Normalmente essa investigação costuma demorar seis semanas; em casos mais complicados, pode estender-se por até três meses. Comigo — isto é, com meu duplo —, os investigadores parecem muito minuciosos, porque levam dois meses sem me dar resposta positiva ou negativa. Talvez por estarem em período de férias? De qualquer modo, essa demora vem mesmo a calhar. Excepcionalmente resolvo proceder de forma diferente da que previra. (Um amigo médico, radiologista e especialista em problemas de radiação, a quem eu havia confiado meu intuito de trabalhar na central nuclear como turco, preveniu-me seriamente
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sobre o que poderia acontecer. Meu estado de saúde já estava bastante deteriorado graças à bronquite crônica provocada por todo aquele pó na Thyssen e às seqüelas dos testes farmacêuticos. E ainda por cima eu queria me expor a radiações? Isso poderia causar lesões permanentes.
É bem verdade que não estou vivendo uma fase muito brilhante — ao contrário, sinto-me no fim, pois cada vez mais me identifico com meu papel e me desanimo por ver a situação praticamente desesperadora de meus amigos e colegas de trabalho. Ainda assim tenho medo de que um câncer provocado pela radiação me corroa e eu precise lutar contra a morte talvez durante anos.
“Pode ser o tiro de misericórdia!” , advertiu-me o amigo radiologista. Pois bem, admitindo que sou um covarde e um privilegiado, afasto-me dali. Existem, porém, centenas e milhares de imigrantes que, mesmo estando em condições físicas piores que as minhas, aceitam esse tipo de trabalho e colocam em risco sua saúde e, por vezes, até a própria vida. Como se trata de um trabalho que não requer grandes esforços, pessoas doentes, mais velhas ou completamente extenuadas julgam-se aptas a realizá-lo. Acrescente-se que a maior parte dos imigrantes ignora todos os perigos decorrentes de tal serviço. Eu mesmo, quando me candidatei a uma vaga na central de Würgassen, cheguei a fazer a seguinte pergunta:
— Não há perigo nesse trabalho?O chefe do pessoal me tranqüilizou:— Tanto quanto em outras indústrias.Eis alguns depoimentos que mostram como é realmen
te o trabalho em Würgassen. Frank M., encarregado, conta: “Por um lado é um trabalho que dá dinheiro fácil e rápido. Como encarregado recebi no último pagamento 2 SOO marcos líquidos. Por outro lado, eu não trabalharia nisso mais que cinco anos. Preferiria ficar parado e recorrer ao seguro-desemprego. Há muita radioatividade, e as instalações são muito velhas. Além do mais, como o reator é de água fervente, as radiações são muito mais fortes que as de um reator de água pressurizada. Tenho cer
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teza de que tudo está contaminado, até o café que tomamos. É só entrar na usina, e o dosímetro já se põe a marcar 10 milirem, antes mesmo de a gente começar a trabalhar” .
Dosímetro é um aparelho de medição que todos devem portar dentro das “áreas quentes” , indica a quantidade de radiação existente no local ao longo do dia. Mas os operários o manipulam com medo de não poder preencher sua cota de horas. Sobre isso diz um ex-operário de Würgassen: “É uma questão de autocontrole. A gente simplesmente põe o dosímetro de lado; no armário, por exemplo. Ninguém percebe. Durante todo o tempo que trabalhei em Würgassen nunca me perguntaram pelo dosímetro. Se você não está com ele, não há nada para registrar.... Através da subempreiteira Reinhold & Mahler eu soube que mandaram para lá uma porção de trabalhadores iugoslavos — uns dezesseis caras, mais ou menos —, todos em situação ilegal, sem nenhum tipo de documento. Eles não dão muita importância às normas de segurança. Quando o trabalho acabou, foram obrigados a partir: discretamente voltaram para o seu país... Outro exemplo: na usina nuclear de Grohnde só 20% dos soldadores são alemães. O resto é imigrante” .
E Frank M. prossegue: “Na subempreiteira onde trabalho há cerca de 2 500 empregados; no mínimo, 1 500 são imigrantes. A empresa contrata os estrangeiros para os serviços de revisão da usina nuclear; quando terminam a tarefa, são mandados embora. A maior parte só fica algumas semanas. É a turma que vai ser ‘queimada’. Entram, recebem a dose máxima de radiação e partem. Na minha empresa, os mestres-de-obras e os encarregados geralmente ficam mais tempo. Todos os outros estão só de passagem. Fazem um contrato de trabalho por prazo determinado, o tempo de um serviço de revisão. Em duas semanas já recebem um quarto da dose de radiação admitida num ano. Daí o serviço de segurança da usina diz que não podem mais continuar ali, e eles são demitidos.
“Também há muitos turcos que foram mandados pra
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cá. Vieram de avião para uma breve estada. Ficam soldando até receber a dose completa. Se a central precisa de soldadores para uma área onde a radiação é de 1 000 mili- rem por hora, digamos, eles trabalham duas horas; depois são substituídos e mandados pra casa. Os outros trabalham mais duas horas, recebem os 2 000 milirem nas costas e são mandados para casa. E assim vai, até que o serviço esteja pronto.
“A coisa costuma acontecer da seguinte maneira: quando os operários estrangeiros chegam, não têm a menor idéia do que seja uma usina nuclear e não entendem por que devem parar de trabalhar depois de dois dias ou, às vezes, duas horas apenas. Só lhes dizem: 'Bom, a partir de agora vocês estão dispensados!’ Então, eles têm que sair e voltar pra casa".
Depois Frank M. fala sobre o trabalho de limpeza das bacias do reator: “Quando a usina desliga tudo, cerca de 30% dos bastões combustíveis são substituídos e depositados na bacia de sedimentação, onde ficam por mais de um ano, até a radiação não produzir mais efeito. Ao substituir os bastões, a água que há dentro deles escorre. Isso obriga os operários a manterem sempre limpo o chão ao redor da bacia, para que a contaminação não se espalhe por toda a usina1. Assim, um operário trabalha diretamente dentro da bacia e um outro o agarra, isto é, fica segurando-o com uma corda. Porque se o primeiro cair, deverá ser retirado em dez segundos, já que é impossível nadar naquela água” .
Dragan V., operário iugoslavo, declara: “Quando me contrataram ninguém falou nada sobre os riscos da radiação. Só me disseram que a minha dose trimestral era de 2 500 milirem e a anual de 5 000. Foi tudo. Agora, o quanto era perigoso e mesmo se era perigoso, não me disseram nada” .
No dia 20 de agosto de 1982, catorze operários de uma empreiteira foram expostos a fortes radiações enquanto
i O que se chama “ radiação indireta” (N. do A.)-
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substituíam um chamado “ filtro de areia’* na instalação de escape de gás. Fortemente contaminados, precisaram ser levados às pressas para uma clínica de Düsseldorf especializada no tratamento de contaminação nuclear. A direção da usina determinou silêncio absoluto sobre o acidente, mas um operário que o presenciou faz o seguinte depoimento: “ Sempre fico com medo quando tenho que trabalhar lá dentro. Principalmente depois do acidente. Em princípio, eles decidiram fechar temporariamente a usina. Mas o pessoal continuou trabalhando lá dentro ainda meia hora. E então, de repente, ocorreu o fechamento completo. Nossos polidores estavam a sete metros de profundidade. Os outros estavam sentados no vão da escada. A escada dava para uma abertura por onde desciam as ferramentas. O pessoal tinha colocado ali suas caixas de ferramenta, e também havia alguns cabos que corriam para fora. Assim, a porta estava obrigatoriamente aberta. Ninguém percebeu nada até que chegou a ordem de fechamento completo. Na saída, todos quiseram passar pelas máquinas, por aqueles aparelhos de controle1. E então descobriram que estavam completamente contaminados.
“Então aconteceu o seguinte: todos tiveram que tomar um banho atrás do outro. Mas de nada adiantou. Já está- vamos lá fora, e eles continuavam debaixo do chuveiro. Das onze e meia às três da tarde ficaram tomando banho e se esfregando como loucos. Das onze e meia às três da tarde. Nós havíamos entrado um pouco antes das três. Pudemos voltar ao trabalho. Só a sala das máquinas e o portão de entrada ficaram interditados. No dia seguinte, sábado, fomos trabalhar para compensar as horas paradas. E os caras estavam lá, tomando banho até meio-dia. Das sete da manhã até meio-dia! Mas não adiantava, a coisa não diminuía! Então, na segunda-feira, foram mandados para a clínica especializada em Düsseldorf. Mas lá só mediram a radioatividade. E quase todos ficaram proibidos de entrar na usina pelo resto do ano. Não puderam mais voltar” .
1 Aparelhos que medem o grau de radiação (N. do A.).
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Horst T., operário alemão, também sofreu um acidente: “Um dia, na câmara de condensação, meu macacão de proteção se rasgou. Continuei trabalhando e, na saída, ao passar pelo monitor, o quadro inteiro se iluminou. ‘Não é possível*, pensei. Fui tomar um banho. E durante quase duas horas fiquei nisso: banho, monitor, banho, monitor! No fim, já nem secava mais o cabelo. A coisa penetra nos poros, e, uma vez lá dentro, você pode se esfregar durante horas. Disseram que eu devia ter rece- bido uns 2 800 milirem. Mas como é que eu vou saber se não foi muito mais? Depois me mandaram embora, assim, sem mais nem menos! Alegaram contenção de despesas! E disseram que eu não estava preparado para aquele tipo de atividade! Então exigi minha caderneta de radiação, onde são registradas todas as exposições a que você foi submetido. Depois de muitas idas e vindas, por fim me entregaram a caderneta — totalmente em branco! O que significa que eu deveria mandá-la para a subempreiteira de Kassel. Foi o que fiz. E catorze dias mais tarde, me telefonaram perguntando se eu não queria voltar ao trabalho. Mandaram-me uma nova caderneta de radiação. Ao assiná-la, percebi que também estava em branco. Como se eu nunca tivesse trabalhado numa usina nuclear...”
É muito raro haver um controle oficial das cadernetas de radiação, como a lei prevê. Elas costumam ficar nos escritórios das subempreiteiras. Quando as autoridades aparecem para o controle, muitas já foram perdidas ou adulteradas. Os próprios chefes dessas empresas assumem a responsabilidade diante de seus empregados.
Sempre que tem oportunidade, a indústria atômica minimiza os perigos decorrentes das grandes ou pequenas exposições à radiação. Por exemplo, quem é contratado para trabalhar na “área quente” da central nuclear de Wür- gassen tem suas dúvidas “esclarecidas” através de um filme colorido, gravado em videocassete. “A radiação é comparável à luz do sol” , anuncia uma voz enérgica, típica dos filmes de publicidade. E na tela cintilante aparece a imagem de uma jovem bronzeada, deitada sob um guarda-
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sol em alguma praia do Mediterrâneo. Os trabalhadores contam como os encarregados costumam tranqüilizá-los: “É a mesma intensidade de radiação que duas semanas de férias no mar do Norte” . O slogan da Würgassen, repetido algumas vezes ao longo desse filme “esclarecedor” , diz o seguinte: “Evitar as exposições radioativas desnecessárias e reduzir, tanto quanto possível, as exposições ine- vitáveisl”
De fato, a indústria nuclear costuma prever certo número de óbitos. No papel! Pois ninguém tem controle do que realmente acontece com o pessoal.
A prof.a dra. Inge Schmitz-Feuerhake, pesquisadora da Universidade de Bremen e especialista nessas questões, diz o seguinte: “Hoje em dia sabemos que qualquer dose de radiação, grande ou pequena, pode causar danos graves à saúde. Pode propiciar a formação de um câncer ou provocar lesões genéticas nos descendentes. E o mais terrível é que na maior parte das vezes as seqüelas dessas radiações só aparecem muito tempo depois, às vezes até depois de vinte ou trinta anos. A tecnologia nuclear na República Federal da Alemanha é muito recente para que possamos realmente estudar seus efeitos” .
Mas quem irá provar, depois de tanto tempo, que o fato de a vítima ter trabalhado numa das “áreas quentes” de uma usina nuclear pudesse provocar tal câncer? Antes de começar a prestar serviços numa usina nuclear, os operários são submetidos a exames médicos — mas depois, não! Morte a prazo? Sem dúvida. Morte secreta, sem testemunhas, sem provas e em massa. Dezenas de milhares de soldadores e faxineiros anualmente vão trabalhar nas centrais nucleares alemãs (só para as áreas perigosas de Würgassen são enviadas cinco mil pessoas por ano). Aproximadamente a metade são imigrantes que com freqüência retomam a seus países de origem antes de começar a sentir as seqüelas provocadas por essa atividade.
Na República Federal da Alemanha, o órgão responsável pela segurança das centrais nucleares (inclusive dos locais de trabalho) é o Serviço de Fiscalização Técnica (SFT). O Instituto de Pesquisa sobre Acidentes, do SFT da Renânia, com sede em Colônia, enviou ao Ministério do Interior um relatório sobre os “fatores humanos na central nuclear” que nunca foi publicado. Nesse relatório, os especialistas do SFT examinam os “problemas" decorrentes do emprego nas usinas nucleares do chamado “pessoal estrangeiro" — problemas que causam transtornos às indústrias, não ao pessoal em questão.
“Os problemas surgem, em primeiro lugar, ao nível da colaboração com o pessoal auxiliar não-qualificado, fornecido pelas empresas de prestação de serviços e contratado para trabalhar nas áreas de forte radiação —, poupando, assim, os próprios operários da usina nuclear. Segundo declarações dos responsáveis pelas centrais nucleares, essa gente freqüentemente tem pouca motivação e trabalha de má vontade..." Claro: quem trabalharia de bom grado, num local como esse?
Outra passagem do relatório diz o seguinte: “É impensável deixarmos de contratar os serviços desse pessoal estrangeiro, se quisermos levar em consideração o cronograma da empresa". E, freqüentemente, as centrais nucleares “têm falta de pessoal, devido à carga radioativa e às restrições quanto à utilização de operários próprios e estáveis". E mais: “As doses de radiação admitidas são absorvidas em pouco tempo (alguns minutos)". Mais adiante pode-se ler: “Uma das tarefas desses operários estáveis é treinar os trabalhadores estrangeiros — especialmente nos serviços que implicam forte exposição à radiação, onde precisão e rapidez são fundamentais (...) Muitas vezes não é possível um treinamento correto (em virtude das altas doses de radiação); outras vezes, o gasto com esse pessoal estrangeiro é desproposital e sua utilização não corresponde aos objetivos determinados".
O instituto declara secamente: “A maioria dos estrangeiros empregados ignora os riscos a que estão sujeitos. O precário conhecimento das instalações e do sistema de funcionamento é computado como um fator negativo suplementar (...) principalmente porque é impossível exercer uma vigilância eficaz nos locais onde esse pessoal é empregado para poupar (reduzindo as doses de radiação) os operários es-
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táveis (...) Quando são encarregados de algumas tarefas em áreas de radiação intensa, os estrangeiros experimentam uma sensação de impotência em face de um perigo que desconhecem. Isso pode provocar comportamentos de extrema imprudência” .
Somente os iniciados e os cientistas têm condições de decifrar artigos como o que o jornal Frankfurter Allge- meinen publicou no dia 29 de julho de 1982. Com o título de “Mil homens para substituir os encanamentos” , o artigo descreve os trabalhos de reparação efetuados em Würgassen e, na linguagem secreta da indústria atômica, aponta que se deve contar com densidades de “ 1 000 homens-rem” ... “ 1 000 homens-rem” ? Parece código secreto de filmes de espionagem ou freqüência de emissão de receptor de ondas curtas. Mas com certeza os trustes sabem perfeitamente o que isso quer dizer. Os especialistas são capazes de calcular rapidamente os casos de câncer que esse misterioso padrão de medida pode representar. Carl Z. Morgan, ex-diretor do Serviço de Proteção contra Radiações do Centro Americano de Pesquisa Nuclear de Oak Ridge (os cientistas costumam chamá-lo de “o pai da pesquisa sobre proteção contra radiações”) afirma que “ 1 000 homens-rem” correspondem a aproximadamente seis ou oito vitimas de câncer, em termos puramente estatísticos. A morte insidiosa por radiação pode arrebatar um empregado tanto da Adler quanto de qualquer uma daquelas grandes máfias de negociantes que fornecem trabalhadores para as usinas nucleares “digerirem” : Celten em Holzminden; Kapfen em Landshut; Jaffke em Bremen; etc. etc...
Será possível que os responsáveis por essas empresas ignorem o quanto é perigoso esse tipo de trabalho? Um teste intensivo comprova que Adler não quer saber de nada, nem mesmo quando tudo lhe é dito claramente.
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Taxas de câncer mais elevadas nas centrais nucleares
Na Grã-Bretanha os operários das centrais nucleares e de outras instalações atômicas correm maiores riscos de contrair câncer da próstata que a média dos cidadãos. Um estudo publicado pelo Conselho Britânico para Pesquisa Médica revela que, num grupo de mil operários expostos a índices de radiação relativamente elevados, o número de vítimas é oito vezes maior.
Os pesquisadores, que publicaram suas conclusões no British Medicai Journal, uma revista especializada, ocuparam- se de 3 373 casos fatais dentre os 40 mil homens e mulheres que haviam trabalhado no Centro de Energia Atômica da Grã- Bretanha, entre 1946 e 1979.
Segundo esse estudo, o número de casos fatais decorrentes de leucemia, câncer da tireóide e câncer dos testículos também está acima da média. Os médicos descobriram ainda que entre as mulheres expostas por muito tempo a radiação intensa o número de vítimas de câncer dos ovários e da bexiga é maior que a média.
(Informação tirada da Frankfurter Rundschau de 21 de agosto dê 1985.)
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A missão(ou: Pegar e largar)
— Uma encenação da realidade —
Com lucro adequado o capital cria coragem. Com 10% certos, assegura seu emprego em qualquer parte; com 20%, infla-se de entusiasmo; com 50%, é positivamente audacioso; com 100%, calca a seus pés todas as leis humanas; com 300%, não se detém diante de nenhum crime, mesmo sob o risco da forca. Se a turbulência e a cizânia produzem lucros, encorajará a ambas. Provas: contrabando e tráfico de escravos.(F. J. Dunning, Trade Unions and Strikes, Londres, 1860, citado por Karl Marx em O Capital, livro 1, vol.2, nota de rodapé 250.)
Um golpe de sorte: Adler também fornece mão-de- obra para a usina nuclear de Würgassen. Não muita gente, como é de seu feitio. É melhor ser discreto e não chamar atenção sobre essas coisas. Uns trinta trabalhadores aqui, uns dez ali, um outro acolá... Se ocorre algum imprevisto em Hamburgo, não há problema. Adler serve toda a região do Ruhr: Thyssen, Steag, MAN, e por aí afora. Até mesmo a Ruhrkohle, no sul da Alemanha. Enfim, citando seu ditado predileto: “De grão em grão, a galinha enche o papo” . Ou como ele costumava dizer: “As leis foram feitas para serem descumpridas” . O tráfico de mão-de-obra entre Adler e a central nuclear de Würgassen é tão inquietante quanto poderia ser uma relação comercial entre o monstro “Mr. Hyde” e “dr. Mabuse” . A energia criminosa de um Adler a serviço dos “contra-
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tempos técnicos” de uma indústria nuclear. A mercadoria: turcos que serão “queimados” .
Monto uma encenação para ver até que ponto ele chegaria num caso muito grave. Amigos e colegas estão prontos para entrar em ação: Heinrich Pachl, ator profissional de Colônia, assumirá o papel de Schmidt, encarregado de segurança da usina nuclear; meu amigo Uwe Her- zog será Hansen, perito-assistente.
A missão secreta
Um incidente técnico impede que a usina atômica de Würgassen seja acoplada à rede elétrica. Prejuízo de milhões. Precisam de trabalhadores turcos para os serviços de reparo numa área totalmente contaminada pela radiação. Provavelmente receberão doses de radiação bastante elevadas, que provocarão lesões graves à saúde, inclusive câncer. Requisito básico: os turcos devem ignorar por completo os perigos a que estarão expostos e, uma vez executadas as tarefas, retomarão a seu país o mais depressa possível. Schmidt explica que a Adler é conhecida como uma firma bastante segura para essa missão. O primeiro contato é feito pelo telefone instalado no automóvel. Nesse, exato momento estou levando Adler para Oberhausen, depois de passar pela Ruhrkohle-Wãrmetechnik em Essen.
— Bom dia! Meu nome é Schmidt e sou encarregado de segurança da central nuclear de Würgassen. Estamos com um probleminha na usina, portanto vou direto ao assunto. Houve uma pane, um incidente sério, e não temos condições de corrigir o defeito sozinhos. Então pensei que o senhor seria a pessoa ideal para pôr tudo em ordem. Só o senhor poderia fornecer mão-de-obra para um serviço como esse, de curta duração, mas muito delicado. Como temos urgência, talvez possamos nos encontrar o mais rápido possível. Estou justamente pelas imediações, na região do Ruhr. Poderíamos nos encontrar à uma e meia no restaurante da rodovia Lichtendorf, entre o cruzamento de Westhofen e o de Unna. O que acha?
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Adler retira do porta-luvas o mapa da região do Ruhr e estuda-o atentamente e em seguida me diz:
— Temos que nos apressar. Leve-me depressa para a Remmert, em Oberhausen. Preciso estar à uma e meia no restaurante da rodovia Lichtendorf. Um cliente me espera com uma nova tarefa. — Na volta da Remmert, ele tem muita pressa. Encoraja-me a ignorar os limites de velocidade: — Acelere, vamos! Não posso chegar atrasado.— E perde o controle ao perceber que a mulher a nossa frente insiste em manter seu carro na faixa da esquerda:— Que filha da puta! Fique na cola até ela mudar de faixa. Desse jeito vamos nos atrasar. — Tamanho é seu medo de chegar atrasado que ele se põe a dizer “nós” , contrariamente a seu hábito. Chegando ao restaurante, cinco minutos depois da hora marcada, Adler agarra a maleta de documentos e, com passos rápidos, dirige-se para sua nova missão, não sem antes me incumbir de outra tarefa:— Apanhe no porta-luvas a escova e o pano de pó e limpe tudo por dentro. Inclusive o cinzeiro. Não quero ver um cisco de pó, quando voltar!
— Certo! — digo e descubro que essa resposta curta é a que mais lhe agrada.
Satisfeito, constato que o automóvel de meus amigos já está estacionado ali perto. Enquanto começo a lustrar o carro, Adler entra no restaurante ao encontro de sua nova missão.
À uma e meia da quarta-feira, 7 de agosto, os dois encarregados especiais da usina atômica sentam-se diante de Adler para uma primeira conversa.
SCHMIDT: Estão nos pressionando, pois trata-se de uma questão de tempo. O trabalho deve estar pronto na sexta-feira impreterivelmente.
ADLER: Bem, os senhores sabem, eu tenho uma empresa de médio porte. Faço de tudo. Costumo prestar serviço para as grandes indústrias, como a Ruhrkohle, a Steag e outras. Inclusive já trabalhamos várias vezes para a central de Würgassen.
SCHMIDT: Precisamos de oito homens de absoluta confiança que nunca tenham trabalhado nessa área.
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ADLER: Certo!SCHMIDT: Eles devem ser enviados para o local. Es
se é o primeiro ponto. É possível que tudo possa ser reparado em pouco tempo. Ou não.
Essas frases preliminares, ligeiramente alusivas à “missão quente” , bastam para que Adler se sinta à vontade. Apressa-se em afirmar que “amanhã mesmo” pode mandar para a usina “oito ou dez homens de total confiança” e aproveita para formular uma questão que trai todo o profissionalismo do negócio: — E as cadernetas de radiação? Podemos fazer alguma coisa quanto a isso?
Schmidt já esperava por algo semelhante e faz sua primeira exigência ilegal:
— É claro. Nada de cadernetas de radiação! Não há tempo para isso. Todo esse transtorno deve estar resolvido até sexta-feira no final da tarde.
Adler não vacila:— Como quiser... Pois bem, amanhã mesmo lá es
tarão oito trabalhadores sem caderneta. Eu faço minha parte, e o senhor faz a sua. E tudo na surdina, supersecreto.
Schmidt continua então com suas exigências. Deixa claro que só interessam pessoas que “não sejam do local” , portanto “mão-de-obra estrangeira” , porque podem “ ser imediatamente despachadas para seus países” . Em seguida explica que o principal motivo para o rápido desaparecimento dos trabalhadores é a possibilidade de acontecer alguma coisa, porém logo o tranqüiliza:
— Se alguém acabar canceroso, ninguém poderá dizer que foi por esse ou aquele motivo... Além do mais um câncer pode ficar latente bem por uns vinte anos.
ADLER (aliviado): Mas claro!SCHMIDT (num tom paternal): Ninguém jamais po
derá provar nada.HANSEN (mostrando alguns croquis que indicam, sem
a menor sombra de dúvida, tratar-se de uma missão suicida): Veja! Estes são os encanamentos. Têm 67 centímetros de diâmetro. O pessoal deve entrar aqui...
Adler: Mas onde fica o... núcleo?
227 ‘
HANSEN: Aqui fica o depósito de pressão; os canos que conduzem o vapor radioativo para a turbina fazem a ligação entre o depósito de pressão e a sala de máquinas. E é bem no meio deste cano que o nosso “rato” está entalado.
ADLER: Como?...HANSEN: O “rato” é um pequeno aparelho a laser
que circula no interior dos canos detectando eventuais avarias. O problema é que o “ rato” agora está entalado não sabemos onde. Por isso o pessoal tem que entrar lá. O trabalho não exige esforço físico, mas os homens devem ter boa saúde...
ADLER: Ah, eles têm! Claro que têm!HANSEN:... para entrar lá. O outro problema é que,
por motivos técnicos, desconhecemos o índice de radioatividade na área. Pode ser infernalmente elevado.
ADLER: Um momento! Teremos que levar aparelhos de detecção ou coisa do gênero?
HANSEN: Não, nós fornecemos os dosímetros. Isso não é problema. E também damos roupas de proteção. Enfim, tudo. Só não sabemos qual é o índice de radiação no local. Só vamos saber quando eles saírem de lá.
Adler (falando de seus empregados como um pro- xeneta): Bem, vejamos! Tenho gente trabalhando na Thyssen. Posso selecionar oito homens, os melhores. Damos o transporte, e amanhã cedo eles estarão lá. É claro que são... estrangeiros. Pode haver um alemão no meio mas, em princípio, são todos estrangeiros. Não entendem nada dessas coisas. Além do mais, mando todo mundo ficar de bico fechado, e na semana seguinte já voltam para a prateleira. A propósito... como homem de négocios, estou interessado em conseguir novos contratos para os trabalhadores. Seria ótimo para mim. Serviços de limpeza e coisas do gênero, por um período superior...
SCHMIDT (interrompendo-o): Proponho fechar este negócio primeiro. Se tudo correr bem, tanto para o senhor quanto para nós, então tomaremos a entrar em contato para outras tarefas. Está bem assim? Ah, outra coisa... se ocorrer algum... digamos... algum problema...
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ADLER: Sim?...SCHMIDT:... o senhor eventualmente teria outras pes
soas disponíveis...Adler: Claro, claro! Tenho um fichário completo.
Posso trocar os empregados quantas vezes forem necessárias.
SCHMIDT: Eu me refiro a pessoas que, por um motivo ou outro, precisem ser despachadas para seus países em pouco tempo.
H an sen : Devemos estar preparados para qualquer eventualidade. O risco é grande. Talvez pudéssemos estimular o pessoal a voltar para a Turquia oferecendo uma gratificação, por exemplo.
Adler: Talvez... Se for uma quantia razoável.SCHMIDT (mostrando-se bastante generoso): O que
acha de uns 120 mil, 150 mil marcos?...A d ler: Está bem. Os senhores já expuseram o pro
blema. Vou lhes dizer uma coisa. Esse é o meu serviço. Como empresário, faço de tudo. Quero ganhar dinheiro, e o pessoal deve ganhar seu dinheirinho suado. Agora que estou a par de tudo, posso montar a equipe de que os senhores precisam. Muito bem... Vejamos... quais as pessoas disponíveis? As que estão na lista negra do consulado? Conheço algumas. As que têm problemas com a polícia de estrangeiros? Também conheço algumas. É esse o tipo de gente que vamos usar, não? (Já entendeu claramente. Mais uma vez confirma os nomes dos dois “encarregados de segurança”.) Sr. Schmidt e sr.?...
HANSEN: Hansen!A d le r (parecendo meditar por alguns instantes):
Mas claro! Já ouvi seu nome... Hansen... de Würgassen, claro... (O negócio rendoso reforça sua confiança. Novamente garante aos “sócios” que tudo correrá bem e por fim chega ao ponto essencial: o dinheiro.) Os meus empregados já estão acostumados comigo. Quando os mando para um cliente, é para trabalhar! De olhos e bico fechados. Trabalhar, apenas isso! Quem se atreve a olhar para os lados e abrir a boca... rua! É assim em todo-togat
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onde trabalhamos. Na Thyssen, por exemplo, já fizemos um servicinho, e ninguém abriu o bico... Fica tudo morto e sepultado... Mas vejamos... começamos a trabalhar amanhã, dia 8 de agosto de 1985. Quanto os senhores pretendem investir?
SCHMIDT: Calculamos algo em torno de 120 mil, 150 mil marcos. Mas os riscos correm por sua conta. Portanto, se acontecer qualquer coisa, mesmo depois de tudo terminado, o senhor é quem vai bancar. E os empregados já deverão estar longe.
Adler: Só mais uma pergunta, para não haver dúvidas... O meu pessoal estará bem quando sair de lá, não?
SCHMIDT: Pensei que já tivéssemos nos entendido. Estamos pagando por isso também. Os operários vão receber uma dose de radiação e talvez posteriormente necessitem de tratamento médico. E é aí que está o problema. Não podemos permitir que comecem a perguntar para eles quanto tempo trabalharam lá e coisas desse tipo. Nem podemos deixar que eles mesmos dêem com a língua nos dentes. Precisamos evitar isso por todos os meios.
H an sen : Os operários deverão partir imediatamente! Imediatamente!
ADLER: Certo! Mas... vamos falar com franqueza. O meu trabalho é montar uma equipe e enviá-la para os senhores, que, por sua vez, vão mandá-la para as zonas de perigo. É isso, não? Então não há problema.
Claro que não há problema. Enviar os empregados para as zonas de perigo nunca foi verdadeiramente um “ problema” para Adler. Agora só falta fazer os últimos acertos. A questão do transporte é resolvida: Schmidt mandará um microônibus da central nuclear apanhar o pessoal em Duisburg na manhã seguinte. Adler ainda esclarece que no momento tem uma equipe trabalhando em Würgassen e alojada no hotel Na Curva. E está disposto a ir encontrar esses homens no dia seguinte para resolver de vez o problema do pagamento.
Os três saem juntos do restaurante. Ao perceber o ar satisfeito de Adler, deduzo que teve êxito na transação de
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sua mercadoria. Abro-lhe a porta do automóvel, como exige de mim. Sem dizer uma palavra, ele aciona o mecanismo automático do assento estofado e macio até ajustá-lo à posição mais confortável e relaxante.
— Vamos voltar para Oberhausen — ordena e novamente fica em silêncio, meditando.
Começo a pensar que estou sendo injusto. Ele não é tão inescrupuloso. Nenhum homem, sem exceção, pode ser tão insensível. Adler não vai pôr em perigo a vida de seres humanos... Claro que seu pessoal que trabalha na Thyssen também “se queima” de certo modo — mais lento e indireto — e também pode ter câncer, ingerindo todo aquele pó espesso de metal pesado que é uma espécie de bomba de efeito retardado. Porém, a situação na Thyssen é bem mais clara: todos podem falar do pó, embora poucos saibam exatamente o que isso acarreta para a saúde. Em compensação, os que vão trabalhar na usina atômica nem desconfiam de que serão vítimas de radiações muito perigosas, por vezes letais. Quem sabe se neste exato momento Adler não está lutando consigo mesmo? Quem sabe se não irá recusar a proposta?
Logo percebo que seus pensamentos se inclinam para outra direção. Ele rabisca alguns números em seu caderno de anotações e põe-se a fazer contas. De repente, rompendo o silêncio, pergunta:
— Você consegue me arranjar até amanhã, sem falta, sete ou oito conterrâneos seus que queiram ganhar algum dinheiro? É um bom trabalho, mas eles têm que estar em perfeitas condições. — E, enquanto finjo pensar, declara: — Se você achar que tem pouco tempo para isso, vou falar com o K. Ele sempre tem gente disponível. — Refere-se a um trabalhador turco que foi elevado ao cargo de “pau para toda obra” . Quando precisa de empregados, K. sempre arranja.
— Eu pode conseguir pessoal — digo. — Mas que eles precisa saber?
— Nada de especial. Basta que sejam pobres. Você pode inclusive dizer que eu também já fui pobre.
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— Senhor, pobre? — pergunto, espantado. — Quando?
— Depois da guerra, é claro. Todo mundo era pobre naquela época. Bem, mas o que eu preciso é de pessoas que tenham medü de ser expulsas do país. — E, percebendo minha perplexidade, rapidamente apresenta um motivo: — É que eu quero ajudá-los, porque estão muito mal aqui, entende? Você sabe, sempre tive idéias sociais avançadas. Afinal, sou social-democrata. E isso vem de família.
— Que é social-democrata?— E um partido que luta pelos operários. Sou mem
bro dele.— E que tipo trabalho eles precisa fazer? Quanto eles
vai ganhar?— Um bom dinheiro... 500 marcos em dois dias.
Quanto ao trabalho... bem... é fácil, coisa de limpeza. Eles nem vão sujar as mãos.
— E onde fica?Ele me enrola e mente de novo, encurtando em mais
ou menos dois terços a distância real:— A uns cem quilômetros. E embora não tenha a me
nor importância eles viverem aqui ilegalmente — prossegue —, tão logo terminem o serviço, precisarão voltar para a Turquia. Se me arranjar esse tipo de gente, você também ganha 500 marcos.
— E pode ser gente de Exército de Salvação?— Pode, só que nada disso é oficial, entende? — Pro
cura defender-se. — Você precisa saber. Nada é oficial. Tudo black, até o dinheiro.
— “Bleque?” O que é isso?— Negro, sem impostos, por baixo do pano. Eles re
cebem em dinheiro vivo, ali, na mão. Em troca, não precisam mostrar documento nem nada. Inclusive é melhor para eles. Ganham dinheiro para voltar para a Turquia e recomeçar a vida por lá. Ah, sim... diga para trazerem roupas de dormir... pijama, coisas do gênero. O resto a gente fornece. Mas onde é que você vai encontrar esses caras?
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— Eles vive tudo escondido em porão.— Ótimo! Se moram em porões é porque não têm
muitos contatos. E quantos são?— Uns cinco.— Hum... Procure direitinho. Quem sabe você con
segue reunir os oito. E pode me telefonar a qualquer hora. Inclusive lá para o clube de tênis. Mas preste muita atenção numa coisa... não leve esse pessoal ao meu escritório! É melhor levá-los para a sua casa, na Dieselstrasse. Eu vou me encontrar com vocês, pode deixar. Outra coisa muito importante também... eles precisam sumir depois que terminarem o trabalho. Quero que isso fique bem claro! Vão ter que desaparecer! Afinal, mais dia menos dia, deverão mesmo deixar o país, não é verdade? A polícia de estrangeiros não anda na cola deles?
— Anda.— Pois então... Está claro? Eles precisam se man
dar. Ai de quem eu encontrar depois vagabundeando por aqui... É esta a condição para o emprego!
— Mas qual é trabalho? — insisto em saber.— Deixa para lá. Você não entenderia mesmo. Eu ex
plico direitinho para eles. Não haverá problema. O importante é ajudar essa gente que vive em dificuldades. — Adler fala como um pastor, com qualquer coisa de melífluo e solene na voz. Isso, no entanto, dura pouco e ele volta a falar como o patrão: — Então? Posso contar com você?
— Pode! — respondo.Fico de telefonar à noite para informá-lo sobre as ne
gociações. Às nove horas consigo localizá-lo no restaurante do clube. Nesse ínterim, Schmidt já lhe comunicara que seis homens eram suficientes. (Em tão pouco tempo eu não conseguiria reunir um número maior.) Aparentemente, Adler não pode falar à vontade pelo telefone. Diante de seus amigos e de empregados — que o conhecem muito bem —, é impossível representar o papel de benfeitor dos turcos ou confessar, em plena região do Ruhr, sua filiação ao “partido que luta pelos operários” . Todos cairiam na gargalhada. Tentando colocá-lo em situação embaraçosa, pergunto:
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— Que diz para colega acreditar?— No momento não posso falar — responde um pou
co reticente. — Ligue para a minha casa daqui a uma hora.Já em casa, sua voz adquire novamente aquele tom
de pastor. Insisto na pergunta:— O que eu diz para colega? Eles quer saber por que
senhor é tão bom.Um novo ímpeto de generosidade: põe-se a falar não
dos “pobres” , e sim dos “mais pobres dos pobres” , aos quais gostaria muito de “poder ajudar” . Aproveito a ocasião para pintar-lhe um quadro eloqüente da miséria em que vivem certos trabalhadores turcos. É muito, no entanto, para ele, que já não consegue disfarçar sua falta de interesse pelo relato. Temendo que eu desista da tarefa, ainda se dá ao trabalho de dizer:
— Voltaremos a falar sobre isso. — E áté promete que vai arranjar visto de permanência e autorização de trabalho para os “mais pobres dos pobres” . Embora tenha prometido aos “encarregados de segurança” que se livraria dos estrangeiros!
Nove e meia da manhã do dia seguinte.Schmidt, o encarregado de segurança da central nu
clear, liga para Adler e pergunta se está tudo arranjado conforme combinaram.
— Sim, já reuni o pessoal. Estão prontos para entrar em ação. Mas me diga uma coisa com toda a honestidade... Quem é o senhor? Não é Schmidt, encarregado de segurança da central nuclear de Würgassen. Sei que não é. O que está planejando? Quem é o senhor? Com quem estou negociando? Só vamos tratar de negócios depois que responder a essas perguntas.
Havíamos contado com a possibilidade de Adler telefonar para Würgassen e descobrir que o verdadeiro encarregado de segurança não se ausentou da usina. Prevendo isso, Schmidt responde:
— Não tente ligar para o meu escritório! O negócio que estamos fazendo é supersecreto. Se o senhor ligar, serei obrigado a dizer que não o conheço, que nunca o vi
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e que jamais lhe encomendei um serviço dessa espécie. Entenda, somos um setor extremamente sensível, uma área de segurança extrema, e o inimigo está em toda parte, até mesmo dentro de casa.
Aparentemente Adler conseguiu as informações através não de um telefonema à usina, mas de terceiros. Também havíamos previsto essa possibilidade e preparamos uma versão adequada.
SCHMIDT: Fique descansado. Compreenda, devemos agir o mais discretamente possível. E, para sua informação, devo dizer que este seu amigo Schmidt é muito pequeno para tratar de uma coisa tão grande. Está tudo nas mãos da diretoria.
Adler: Compreendo.Schmidt: E para agir discretamente é necessário um
mínimo de confiança!Adler: É claro, mas eu confio...Schmidt: Se o senhor não confiar em nós, reconsi
deraremos todo o trato. Entenda, para nós é uma situação...ADLER: Sim...Schmidt (elevando a voz num tom patético): Exa
tamente porque estamos encarregados de fornecer energia à Alemanha não nos resta outra solução...
ADLER: Sim...SCHMIDT: Ontem mesmo eu lhe disse que se o senhor
me telefonasse esbarraria no serviço de segurança. Está compreend...
Adler (interrompendo-o): Claro! Claro! (Suas suspeitas dissipam-se aos poucos, graças à atitude segura de Schmidt; mesmo assim, ele procura se garantir.): Diga-me mais uma coisa... Eu poderia receber uma confirmação do serviço por escrito?
SCHMIDT: Por escrito? De jeito nenhum! Será que não entende?
ADLER: Sim...Schmidt: Preste atenção! Em primeiro lugar, vamos
usar só seis dos oito trabalhadores. Portanto, a quantia estipulada de 130 mil passou a ser 95 mil marcos...
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ADLER: Hum...SCHMIDT: Bem, digamos... 110 mil marcos...Adler.: Hum...Schmidt: ... incluindo, é claro, a gratificação de re
tomo ao país, aquele pequeno estímulo para voltarem à terra natal.
Adler: Sim, claro.Schmidt: De acordo com os nossos cálculos a aju
da de custo para a viagem ficaria em tomo de uns 5 000 marcos por pessoa. Esperamos que tudo dê certo e que o senhor se encarregue de pagar ao pessoal.
Adler: Mas é lógico!SCHMIDT: Em segundo lugar precisamos ter a garan
tia de que os operários sejam realmente fortes.Adler: São, sim.SCHMIDT: Não queremos que o mais leve contato
com alguns milirem os derrube.Adler: Não, não! Não se preocupe, eles podem su
portar. Não são derrubados tão facilmente!SCHMIDT: E se houver necessidade de um encarrega
do, este também deverá ser um imigrante...A d le r (cortando-lhe a frase): Certo! Mas o traba
lho é mesmo para a usina central nuclear de Würgassen?SCHMIDT: Lógico!ADLER: Não é que a coisa ainda não esteja muito
clara...SCHMIDT: O senhor já entendeu perfeitamente. Quais
são suas dúvidas? O senhor me pediu para' ser franco. Já lhe mostrei o máximo de boa vontade.
ADLER: Claro!SCHMIDT: E quanto ao senhor? Será que não vai sair
por aí contando para Deus e o mundo esse nosso negócio? Se ainda tem alguma dúvida, vamos conversar mais um pouco. Mas antes é preciso que...
A d le r (cortando-lhe a frase): Sei, sei, compreendo que tudo deve ser feito o mais discretamente possível. Entendo perfeitamente que em determinados negócios deve- se permanecer incógnito. O problema é que de repente me
236 *
aparece alguém dizendo que é Schmidt, da usina nuclear de Würgassen, e eu percebo que não é bem assim... O senhor entende, tenho as minhas dúvidas... ou reservas, como o senhor costuma dizer... Será que estou mesmo negociando com a Central Geral de Energia? Eu não gostaria nada de me meter em negócios imprudentes ou criminosos... (tosse) Enfim, eu não sei... como vou dizer... eu gostaria de saber se estou mesmo negociando com a Central Geral de Energia.
SCHMIDT: Não entendi direito o que o senhor quis dizer com imprudentes...
ADLER: Mas é que...SCHMIDT: ... ou criminosos. A menos que o senhor
mesmo esteja acostumado a agir dessa forma...ADLER: Eu?! Nunca!SCHMIDT: Neste caso, eu é que gostaria muito de
saber...ADLER: Não, não, não há problema! Mandarei o pes
soal amanhã. (Propõe um novo encontro, dessa vez na rodoviária, diante da estação de trem.)
SCHMIDT: Às duas horas? Ótimo! Lá acertaremos a questão do dinheiro e a forma de pagamento. Combinado?
Adler (satisfeito): Claro, claro! Combinado!(Todas as suspeitas foram destruídas. A ganância pelo
lucro impele-o a cometer imprudências.)Quinta-feira, 8 de agosto, meio-dia.Adler contratou provisoriamente um motorista tur
co que o levará em seu Mercedes 280-SE para Duisburg- Bruckhausen, ao encontro de seu comando suicida. Ordena ao chofer que, em vez de entrar na Dieselstrasse, pare um pouco mais afastado, na Kaiser-Wilhelm-Strasse, a rua principal, bem em frente à coqueria das indústrias Thyssen.
O automóvel luxuoso provoca sensação neste bairro miserável. Por trás das cortinas, as mulheres turcas espreitam, assustadas. Temem que a invasão esteja associada à demolição de uma casa ou a um despejo forçado, quando,
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alegando razões de higiene, vedam com muro as portas e janelas de uma das casas em ruína. As crianças turcas admiram o carro a distância, sem coragem de aproximar- se. Adler não sabe como agir. Fuma um cigarro atrás'do outro e não pára de olhar ao redor.
As chaminés da Thyssen expelem nuvens de fuligem praticamente ininterruptas e basta uma leve brisa para espalhar toda a sujeira sobre o bairro. As pessoas não só respiram a fuligem, como a engolem, literalmente mastigando os grãos concentrados nela. Por vezes os olhos inflamam e ardem, tamanha é a poluição. Dependendo da hora e das condições meteorológicas, há no ar uma concentração tão grande de gás sulfuroso que realmente sufoca as pessoas. Aqui o número de asmáticos e portadores de bronquite é bem superior à média. A palidez das crianças salta aos olhos. Lembro-me bem de um menino franzino — devia ter uns cinco ou seis anos — cujo rosto infinitamente sério e esgotado lhe dava a aparência de um adulto.
No centro de Duisburg, o sol com certeza está brilhando; aqui, no entanto, paira uma luz cinzenta, sombria. O sol está atrás da cortina de fumaça, porém não consegue romper o bloqueio. Do outro lado da rua, observo Adler já há um bom tèmpo e percebo como se sente pouco à vontade. A Dieselstrasse e suas imediações representam para ele as portas do inferno. Mas o inferno real situa-se atrás das cercas e dos muros vigiados pelo serviço de segurança da Thyssen, onde o ar é ainda mais poluído, e o barulho é ensurdecedor.
Adler nunca se desviou de seu trajeto em nosso local de trabalho: isso poderia pesar em sua alma sensível e, quem sabe, provocar-lhe pesadelos. Aqui, trajando um terno sob medida, ele parece totalmente deslocado, quase obsceno, irreal como as fotografias dos candidatos das últimas eleições, espalhadas pelo bairro. A propaganda não funciona muito por aqui, a não ser, talvez, para algumas marcas de cerveja e cigarro.
Nossa “última oferta” consiste em seis amigos turcos, todos de confiança. Para minha surpresa, estão mui
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to menos espantados que eu com o tipo e a finalidade desta missão e com a descarada falta de escrúpulos de Adler. Já há muito tempo convivem com esta realidade e conhecem-na bastante bem. Evito contar-lhes que sou alemão. Isto poderia não só criar uma distância muito grande entre nós como despertar a desconfiança de Adler.
Sem que ele nos veja, discretamente conduzo o pequeno grupo por uma rua paralela até meu apartamento da Dieselstrasse. Depois vou buscá-lo. Seria melhor que o “pessoal" — como ele diz — viesse encontrá-lo na rua, mas eu me oponho.
— Não bom. Perigoso, porque eles não têm documentos. — Ao dizer isso, começo a tramar o final da história, sobre o qual só falarei no momento oportuno.
— Bem, se é mesmo perigoso... — Adler segue-me até a Dieselstrasse, 10. Logo na entrada do prédio sente um forte cheiro de urina, pois os banheiros ficam todos do lado de fora, e um deles está entupido. Adler apressa- se e sobe a escada. No primeiro andar, abro a porta do apartamento e apresento-lhe meus amigos turcos, prontos para entrar em ação. — Bom dia — cumprimenta secamente ao entrar na sala e põe-se a contar: — Dois... quatro... seis... Ótimo! Agora prestem atenção no que vou dizer. Antes, porém, só uma coisa... todos entendem alemão?
— Sim, maioria — respondo. Não é verdade, mas com isso obrigo-o a pronunciar um pequeno discurso no qual pouco a pouco ele se revela.
— Como vocês já devem saber, somos uma empresa de montagem industrial sediada em Oberhausen — assim começa sua apresentação. — Nossa missão é executar alguns reparos na central nuclear de Würgassen. Um serviço fácil, que não levará mais de dois dias. Para tanto, precisamos de cinco ou seis homens. Vão nos pagar um bom dinheiro, o que significa que vocês também serão bem pagos. Se tiverem alguma dúvida, não hesitem. Estou pronto a responder todas as questões.
Adler tem um ar simpático, franco. Quem não o co
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nhece deixa-se levar facilmente. Para que ele se revelasse ainda mais, combinei com meus amigos que lhe fizessem algumas perguntas em turco. Quanto a mim, não sei uma palavra de turco, mas me ofereci para traduzir “ livremente” as questões mais relevantes. Nunca ocorreu a Adler que eu jamais tenha conversado em turco com meus colegas turcos; e muito menos que meu alemão não seja como o alemão falado pelos imigrantes. Ele não se surpreendeu com minhas palavras esdrúxulas, meus verbos mal conjugados, meus artigos omitidos. Por vezes tais embustes lingüísticos dão bons resultados, arrancando-lhe as mais extraordinárias declarações. Adler nada percebe: para ele, “ seus imigrantes” não passam de burros de carga. Desde que trabalhem como animais e sejam dóceis na execução dos serviços, nada tem contra eles; ao contrário! É um dos poucos que, em certo sentido, até sabe valorizá-los. Mas a partir do instante em que começam a se defender, exigindo o pagamento dos salários atrasados, passam a ser “gentalha, corja, bandidos, vagabundos” .
. — Colega quer saber — digo-lhe — como gente vai até local de trabalho.
Adler põe-se falar da viagem como o dono de uma agência de turismo promovendo excursões de ônibus com direito a café e bolo grátis.
— Tudo é de graça! — exclama. — Às três horas, um ônibus irá apanhá-los na rodoviária de Duisburg e os trará de volta dois dias depois. O alojamento é grátis, a alimentação é grátis, tudo é grátis!
Isso me lembra o refrão de sua cantiga preferida: “ ... longe de casa e fora da lei/ cem homens, e eu entre eles...”
— Outro colega — digo. — Ele quer saber por que SOO marcos? Muito dinheiro, pouco trabalho...
Desta vez a águia abre as asas, pronta para voar.— Prestem atenção! Vocês conhecem a Alemanha e
sabem que temos diferentes tipos de usinas. Vamos trabalhar numa usina nuclear. No momento ela está parada, não produz energia. Ficou comprovado que algumas coisas precisam de conserto. E esse conserto deve ser feito
em pouco tempo, porque a usina voltará a funcionar na próxima semana. E tem outra coisa... nada disso pode ser comentado. Os jornais não devem saber do defeito, por- que senão aparecem os caras do Partido Verde e aí já sabem... vem aquela lenga-lenga toda e ainda por cima conseguem fechar a usina. — E com sincero desprezo: — Vocês conhecem bem esses grupinhos políticos que existem na Alemanha... Bom, mas o importante é que o trabalho deve ser feito imediatamente para que tudo esteja funcionando direitinho na próxima semana. É por isso que estão nos pagando bem. E, naturalmente, vocês também vão receber um bom dinheiro!
— Mas ele diz que não confia alemão — insisto. — Alemão sempre engana gente.
Adler engole em seco. Para ganhar tempo, finge não ter compreendido:
— Como assim?— Ele diz que alemão engana ele.— Pergunte-lhe se alguma vez eu o enganei.É uma pena que ainda não seja o momento propício
para o ajuste de contas, para enumerar-lhe na cara todos os seus trambiques: os 2 000 marcos que ele ainda me deve, os constantes calotes no pagamento dos empregados, o fato de embolsar dinheiro dos impostos e contribuições sociais, e “outras coisas do gênero” , como costuma dizer.
— Conta para eles tudo que senhor faz para turcos— consigo dizer, disfarçando o mal-estar provocado pela situação.
Era a deixa que Adler esperava. Endireitando-se na cadeira, pede fogo a seu novo motorista e começa a representar o papel de benfeitor dos humilhados e ofendidos, ou seja de todos os que são explorados por ele e por outros da mesma laia. Assume os modos de um doador de empregos — ele, que passa a vida devorando e explorando a saúde e os meios de subsistência de seus empregados!
— Desde que passei a trabalhar como autônomo, sempre tive colaboradores turcos. E até o presente momen
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to nunca me deixaram na mão. Sempre me dei muito bem com eles, ao contrário do que tem acontecido com os colaboradores alemães... Portanto, quero continuar trabalhando com os turcos e é por isso que lhes ofereço emprego.
Trabalhar “com” os turcos... Explorá-los, isso sim! Obrigá-los a se esfalfar como escravos até que caiam de cansaço ou estiquem as canelas. Ele realmente doura a pílula tratando-os de “colaboradores” ... A palavra deve soar como bálsamo aos ouvidos dos massacrados e oprimidos.
— Bom, esta turma que a gente vai expulsar para a Turquia — digo, procurando trazê-lo ao assunto principal.
— Talvez não seja necessário — declara magnânimo.— Vou dizer uma coisa com toda a honestidade... não queremos alemães para esse serviço porque eles falam demais. Fazem o trabalho e depois contam para todo mundo. Conheço bem os trabalhadores turcos e sei que vocês ficam de boca fechada. Estão entendendo por que eu não quero trabalhadores alemães? Não vale a pena!
— Ayth lá — aponto para um dos colegas turcos — mora em porão e...
Adler interrompe-me com um gesto.— Não faz mal. Não tem importância. Vou fingir que
não sei de nada.— Mas gente não podia ajudar ele?Pronto! Mais uma vez Adler assume o papel de me
lhor patrão do pós-guerra.— Ajudá-lo? Mas sem dúvida! Estou sempre pron
to a ajudar os mais necessitados... Saibam que isso é uma tradição da minha família. Somos social-democratas, membros do PSD. Costumamos lutar pelos operários. Sempre que podemos ajudamos as pessoas a ganhar um pouco de dinheiro. Como estou fazendo agora. E se vocês tiverem mesmo que voltar para a Turquia, pelo menos já têm 500 marcos... Já é alguma coisa...
— Aquele, ó — aponto para Sinan, outro colega turco —, quer saber se trabalho perigoso.
Mais uma deixa para Adler, que se põe a falar como verdadeiro porta-voz de uma central nuclear:
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— Perigoso? De jeito nenhum! É uma grande usina, e as normas de segurança são extremamente rigorosas, como em todas as centrais nucleares da Alemanha. Vocês sabem que as centrais nucleares alemãs são as mais seguras do mundo. Milhares de pessoas trabalham nelas. Como estão vendo, não há o menor perigo!
— Mas nunca aconteceu acidente? — pergunto.— Numa usina nuclear da Alemanha? Nunca!Dentro da usina pode ser que não... Mas um avião
de caça já caiu bem perto de Würgassen: se tivesse caído sobre as instalações, teria certamente provocado uma catástrofe de gigantescas proporções. Em caso de acidente, as pessoas que trabalham dentro das usinas são atingidas mais rapidamente. Até o momento a indústria atômica da Alemanha Ocidental admite, oficialmente, cinco casos fatais nas centrais nucleares do país.
De qualquer forma, o trabalho “não é perigoso", segundo Adler. Nem mesmo difícil, como também nos assegura.
— Gente precisa subir lugar alto? — pergunto.— Não. Isto é, sim... Quero dizer... não sei. Você
sabe, uma central nuclear tem vários andares, entende?— Sinan quer saber qual é mesmo serviço de gente
— insisto.— São trabalhos de reparação, trabalhos com solda...
coisas simples que precisam ser feitas. Por isso há necessidade de cinco ou seis homens. Para tudo estar terminado em dois dias. Já fizemos os cálculos. Está tudo acertado. Vocês vão ver que lá dentro o que mais importa é o ser humano! — Suas palavras devem ter lhe soado tão monstruosas que ele prefere continuar falando, na tentativa de ocultar o desprezo e o desrespeito que sente pelo ser humano: — E é evidente que não há nenhum perigo para quem trabalha lá dentro. As normas de segurança são rigorosíssimas. É verdade que uma central nuclear, mesmo desligada, sempre tem um pouco de radioatividade. Mas fiquem tranqüilos. O pessoal de lá vai dizer aonde vocês podem ir sem o menor risco. E, caso haja algum pro
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blema, mínimo que seja, o trabalho é suspenso. Sua saúde não corre perigo. Vocês mesmos terão oportunidade de comprovar o que estou dizendo. Se as coisas não forem assim, nem precisam vir me contar. Podem abandonar o serviço. Mas uma coisa é muito importante... Vocês fazem o trabalho, pegam o dinheiro e esquecem tudo. Nada de ficar por aí contando para todo mundo que a usina tinha um pequeno defeito. É muito importante que essas coisas não sejam divulgadas. Portanto... trabalho terminado, tudo esquecido! Claro, antes disso, vocês pegam o dinheiro! E depois ficam esperando o próximo serviço. Precisamos desse tipo de trabalho. Por isso é que devemos ser discretos e ficar de boca fechada. Então... trabalho terminado, tudo esquecido! Combinado? Partimos hoje depois do almoço e sábado à tarde, no máximo, o ônibus os trará de volta para a rodoviária de Duisburg. Vocês vão voltar para suas casas, e encerramos o assunto. Recebem o dinheiro e não se fala mais nisso. Não é razoável?
Silêncio consternado. De repente ninguém mais tem prazer na encenação.
Como todo mentiroso contumaz, Adler novamente reitera sua honestidade:
— As pessoas que eu contrato sempre recebem seu dinheiro. Quanto a isso nunca houve o menor problema. Amanhã mesmo vocês receberão 250 marcos. O restante será pago quando terminarem o serviço. E em dinheiro vivo! Ali, o meu motorista, irá com vocês. Confiem nele, pois é a garantia de que receberão o seu dinheiro. — E mais uma vez exalta a perfeição e a segurança da indústria atômica alemã: — Vocês receberão uniforme de segurança. Sapatos, capacete, tudo. Mas repito, não comentem nada sobre o serviço. Principalmente com esses palhaços da imprensa. Senão... — Com um gesto teatral, tira da carteira uma nota de 50 marcos passa-a para mim, dizendo: — Este dinheiro é para você levar o pessoal para comer alguma coisa. Vocês devem se alimentar para não perder logo a força quando começarem o trabalho. Não é verdade? — E antes de sair ainda nos diz, com um ar
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paternal e protetor: — Tudo de bom, meus jovens! Até às três da tarde! Conto com vocês. Combinado?
Dividindo 50 marcos por sete, cada um de nós terá direito à última refeição no valor de 7,14 marcos.
Lembro-me novamente daquela canção piegas que ele não se cansa de ouvir: “ Cem homens e um só comando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sabe para onde?/Terra queimada, qual é a razão?” E por aí afora. Talvez seja sua canção predileta pela alusão a seu nome. Mas ele não faz caso do patético e, cinicamente, vai repetindo o refrão: “ longe de casa e fora da lei...” 1.
As duas da tarde, Adler encontra o encarregado de segurança Schmidt e o perito-assistente Hansen no restaurante da estação ferroviária de Duisburg. Os dois repassam com clareza e precisão todos os detalhes do negócio para que mais tarde Adler não possa dizer que não entendeu muito bem.
HANSEN: Hoje cedo fomos medir mais uma vez os índices de radiação. E os resultados superaram as nossas piores expectativas. Assim, o trabalho passa a ser muito mais delicado. A radiação junto aos encanamentos, onde eles irão trabalhar... (olhapara as mesas ao lado e baixa a voz)... a radiação eqüivale a trinta vezes a dose anual máxima, e seu pessoal vai receber tudo isso de um só golpe... A coisa pode acabar mal.
ADLER: E se não fizermos o serviço?HANSEN: Não poderemos acoplar a usina à rede elé
trica. Impossível! E todos os canos poderão ficar destruídos. Milhões, bilhões de marcos de prejuízo!
Adler: É, isso não é bom... Eles precisam entrar lá e botar tudo em ordem, (em seguida, para isentar-se, declara): De qualquer forma, oficialmente não sei de nada. Os senhores me pediram alguns trabalhadores, eu montei uma equipe e a coloquei dentro de um ônibus. Os se-
1 ‘Tora da lei** corresponde ao alemão Vogeffrei, que literalmente também quer dizer “ pássaro livre” . A palavra Vogel alude ao nome de Adler, “ águia” (N. do T.).
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Equipe da Adler na central nuclear
nhores levaram o pessoal para Würgassen. Para mim a história termina aí. Fim! Não costumo cometer delitos... Posso lhes garantir que ninguém da equipe vai fazer muitas perguntas. Eles nem sabem onde fica Würgassen... (A única coisa que lhe interessa é money, black, cash, isenção de impostos.) Gostaria muito de saber como será feito o pagamento... A central vai participar?
Schmidt: Não, de jeito nenhum! Isso não passa pelos canais oficiais. Se assim fosse, por que estaríamos agindo de forma tão discreta?
ADLER: Quando se faz um deal desses, o trabalho deve ser recíproco, não acham? Quanto a mim, vou ajudá- los a... digamos... limpar a imundície. Em contrapartida, os senhores, com boa vontade, poderiam me pagar toda a quantia no black...
Schmidt: O nosso acordo é uma coisa especial. Não vai aparecer de jeito nenhum.
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Adler (ávido): Enfim, como é que os senhores vão me pagar? Em cheque ou em dinheiro?
Schmidt (firme em sua posição): A primeira metade, em dinheiro; a segunda, em cheque cruzado.
ADLER: Cheque da central de Würgassen?SCHMIDT: Não, não pode ser às claras... O cheque
é de um terceiro...Adler: Não quero que nada apareça e o imposto de
renda fique sabendo.Hansen: O senhor já teve algum problema com as
autoridades?ADLER: Eeeeu?... Nunca! Os senhores sabem quan
do devem cumprir com seus deveres. Estou sempre limpo com a previdência e com o imposto de renda. A própria agência oficial de empregos sempre manda pessoas para a minha empresa... oficialmente. (Ri.) Só querem é ver a grana! Se pagamos pontualmente, eles nos deixam em paz!
Hansen: E o que acontece quando um dos seus empregados sofre um acidente de trabalho? Como é que o senhor se vira? Estou perguntando porque não queremos que procurem um médico ou qualquer coisa assim.
ADLER: Pode deixar. Eu me encarrego disso. Os meus clientes nunca foram incomodados por essas coisas. Elas não aparecem nas estatísticas de acidente. Há pouco tempo tivemos um acidente na Ruhrchemie. O cliente nem precisou se preocupar... Mas o que pode acontecer na pior das hipóteses? Cair todo mundo morto de repente?
Hansen.- Seria muito ruim se um deles perdesse o equílibrio e caísse dentro do tubo. O infeliz iria parar a uns dez metros de profundidade.
Adler (com desenvoltura): E não se poderia puxá- lo com um cabo ou qualquer coisa do gênero?
HANSEN: Poderíamos tentar, mas seria terrivelmente difícil. O tubo é cheio de curvas. Precisaríamos ver se o sujeito não ficou entalado lá... preso pelos ombros.
Adler (tranqüilizando-o): Eles não têm ombros largos. Na verdade são uns pobres-diabos que nem se alimentam direito. A gente consegue até ver as costelas deles!
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HANSEN: Vamos torcer para que ninguém perca o equilíbrio. Teoricamente, quando uma pessoa sofre uma forte dose de radiação, os sintomas agudos de contaminação começam a aparecer em quatro semanas... queda de cabelo, impotência, vômitos, diarréia, prostração... É imprescindível que eles já tenham dado o fora. Quanto aos efeitos a longo prazo, não há como provar, não há mais controle. Mesmo que um deles, anos mais tarde, venha a ter um câncer, já nem se lembrará que trabalhou conosco.
ADLER: Nada disso me intimida. Essas coisas não me dão medo. Não gelam meu sangue. Trabalho é trabalho, e sei que o que acontece dentro dessas usinas não pode vir a público. Eu faço a minha parte, e cada um faça a sua!
HANSEN: No nosso meio costumam dizer que Würgassen é uma sucata.
Adler: Eu sei. É porque é muito antiga. Mas... por acaso o senhor é o mesmo Hansen com quem fiz negócio há alguns anos?
Hansen (enigmático): Não vá acreditar que eu seja a pessoa que está a sua frente.
Adler (vendo que me aproximo da mesa): Ah, aí está ele! Senhores, este é Ali. Ele reuniu a equipe e vai acompanhá-la e cuidar de tudo. (Voltando-se para mim): O que esses senhores disserem é lei, compreendeu? Está tudo bem com o pessoal?
EU: Eles continua fazer perguntas. Eles quer saber de tudo, que nem criança. Pergunta e mais pergunta. Eles pensa que precisa lutar com dragão... Eles acha que serviço vai ser muito perigoso.
Adler: Pare com isso! Nossas centrais nucleares são muito seguras; na verdade são as mais seguras do mundo. Já disse isso a eles hoje de manhã. Não há o menor risco, todas as normas de segurança são cumpridas.
EU: Certo!Adler: Volte para sua tropa de choque. (Depois que
saio, diz aos encarregados da usina atômica): É evidente que esse aí não sabe de nada. O pessoal da equipe confia minto nele. Basta Ali dizer que boi voa para que todos acre
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ditem. De mais a mais, ele vai tomar conta do pessoal. Não quero saber de corpo mole. Estão lá para trabalhar direito. São como crianças, dá para entender? Querem se sentir seguros, por isso é que fazem tantas perguntas!
Hansen: Nós também podemos confiar no tal Ali?Adler (posando novamente de benfeitor e começan
do uma de suas incríveis histórias): O pobre-diabo! Se os senhores vissem o estado em que o encontrei, há um ano e meio... Sabem o que precisou fazer para ganhar a vida?
SCHIMIDT: Não.ADLER: Foi servir de cobaia humana nesses testes far
macêuticos. Tomou um monte de injeções e...HANSEN: Lá na Turquia?ADLER: Aqui mesmo, na Alemanha! Não sei muito
bem como essas coisas funcionam. Só sei que já é bastante ruim fazerem isso com animais.
Hansen: E fizeram mesmo essas coisas com ele?ADLER: Fizeram! Um dia, ele chegou completamen
te tonto, cambaleando. Foi o que me chamou a atenção. Resolvi perguntar o que tinha acontecido. O infeliz me contou que um médico lhe aplicava injeções em troca de 800 marcos por semana. Decidi cuidar dele e falei que tudo estava acabado a partir daquele momento. Disse que o que fizeram com ele foi uma sujeira, mas que agora havia terminado. Ali é um bom sujeito.•
HANSEN: E o que foi que o senhor disse, exatamente, para o pessoal da equipe, quando lhe perguntaram sobre o tipo de trabalho?
Adler (como que lendo um relatório): Que eles vão para uma usina nuclear; que farão trabalhos de reparação indispensáveis para a usina voltar a funcionar; que o serviço deve ser feito o mais rápido possível; que tudo deve ficar em sigilo, especialmente em relação à imprensa; que não devem imaginar que a coisa seja um bicho de sete cabeças... Disse também que tudo foi devidamente planejado; que as centrais nucleares alemãs são as mais seguras do mundo... o que é uma verdade, não?... E falei que eles vão receber uniformes de segurança e estarão muito bem protegidos.
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SCHMIDT: Com a condição de que desapareçam nos próximos catorze dias!
Adler: Mas claro! Em catorze dias terão partido!SCHMIDT: Levados pelo vento!ADLER: Claro, claro! Não se preocupem. Além do
mais, é uma equipe pequena. Nenhum deles sabe exatamente do que se trata. Eu sou o único que estou a par de tudo, e é muito bom que seja assim! Já imaginaram se eu tivesse que ficar explicando todo o serviço para umas dez pessoas, por exemplo? Eu desistiria do negócio. Confiem em mim! Nós fazemos de tudo!
“Nós fazemos de tudo” é a máxima de Adler e da maioria de seus comparsas, de todos aqueles que fornecem mão-de-obra aos trustes das indústrias e da construção civil.
“Nós fazemos de tudo” 1 é a palavra de ordem do capitalismo e a ela deveria acrescentar-se “ ... tudo que dê lucro” . E se até agora o III Reich foi o único a fazer sabão de despojos humanos (de prisioneiros assassinados nos campos de concentração; 11,50 marcos era o preço do cadáver; e com a gordura e os ossos ainda faziam cola), não é porque essa prática se choque contra os princípios hu
1 “ Nós fazemos de tudo*' é o slogan publicitário do truste Krupp. Na verdade isso quer dizer: “ Meu objetivo é fornecer ao Estado um número enorme de sujeitos submissos e às fábricas trabalhadores de todo tipo” . E esses sujeitos submissos funcionaram tão bem que, em 1914, provocaram uma guerra e foram dilacerados pelas granadas inglesas, nas quais estavam gravadas as iniciais “KPZ” (Krupp-Patent-Zeitzünder: “detonador patenteado pela Krupp”). Graças à guerra, Krupp pôde dobrar sua fortuna. Graças aos soldados ingleses e alemães que tombaram mortos. Para cada soldado alemão que morria, Krupp cobrava 60 marcos de royalties do fabricante de armas britânico Vickers. Quando a Alemanha foi derrotada, Krupp estava 400 milhões de marcos-ouro mais rico. E ainda antes de 1933 começou a investir — precisamente 4 738 448 marcos — no mais novo especialista em planejamento de guerra: Hitler. Em tudo que desse lucro, pequeno ou grande, Krupp punha a mão; fosse com a morte de soldados, fosse com a vida de milhares de prisioneiros, obrigados a trabalhar para ele, confinados dentro das fábricas em verdadeiras casinhas de cachorro — em condições piores que a de escravos. Nos muros externos das fábricas Krupp havia cartazes com a inscrição: “ Eslavos são escravos” (N. do A.).
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manitários, mas porque fazer sabão com despojos humanos não dá lucro.
Adler sai do restaurante com Schmidt e Hansen para despachar a “tropa” que está à espera do ônibus.
O problema é que não podemos prosseguir com a encenação: arranjar um ônibus e partir para Würgassen. No dia seguinte Adler estaria lá — sem a menor sombra de dúvida — para receber parte de seus “honorários” : cash e black, como ele mesmo diz... Por um momento considerei a idéia de provocar-lhe um grande susto: exibir-lhe os resultados do que ele supõe que provocará. Eichmann também nunca chegou a ver as pilhas de cadáveres; “ somente” organizava o transporte das pessoas ainda vivas para os campos de extermínio em massa... Em princípio, planejei levar Adler a um dos pequenos cômodos do hotel Na Curva, em Würgassen, e apresentar-lhe alguns colegas turcos “deformados” pela radiação. É claro que todos estariam devidamente maquilados — com “pedaços de pele” desprendendo-se do rosto, tufos de cabelos caindo — e totalmente apáticos, deitados nas camas e no chão.
Porém seria demais. Só falta é uma cena final para que ele não desconfie de que tudo não passou de uma representação teatral e acabe fugindo do país — evidentemente depois de apagar os vestígios e destruir documentos comprometedores.
O melhor mesmo é que todo o negócio desapareça diante de seus olhos tão rapidamente quanto uma cuspi- dela seca ao sol. Assim como o gênio que, para retomar à garrafa, se dissolve em fumaça e num zás-trás é arro- lhado dentro dela.
Logo que Adler, Hansen, Schmidt e Ali se aproximassem da “tropa” , “policiais à paisana” deveriam entrar bruscamente em cena, exibindo suas “credenciais” . Uma batida para averiguação de documentos. Dois turcos sairiam correndo e os outros seriam “encanados” . Tudo num ritmo bem lento, como no teatro, num primeiro ensaio improvisado. Adler deveria viver essa cena em câmera lenta, como num pesadelo.
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Mas um imprevisto quase dificultou as coisas. Um amigo meu — diretor de colégio e pastor — deveria representar o papel de um dos policiais e, por precaução, vem equipado com um par de algemas e um revólver de brinquedo. Só que confunde Adler com nosso fotógrafo, Günter Zint, escondido ali por perto, e cumprimenta o primeiro. Schmidt rapidamente inventa uma desculpa e consegue tirar partido da situação. Faz as apresentações:
— Este senhor é do serviço de segurança da usina. Foi destacado para essa missão especial a fim de se certificar de que nada sairá errado.
Adler tece elogios:— Realmente, tudo muito bem organizado.É, tudo muito bom... Mas e agora? Como represen
tar a cena final? Pergunto a meus amigos turcos se se importariam de ser interrogados por policiais de verdade. Alguns estão sem documento, porém isso contribuiria para dar maior verossimilhança à história se tivesse mesmo que parar na delegacia.
Um de nós telefona para a policia e descreve com exatidão o local onde está havendo tráfico de mão-de-obra com a participação de turcos que vivem em situação ilegal na Alemanha. Pronto! Cinco minutos depois, dois veículos de passeio param a nossa frente, seis policiais saltam na calçada e caminham em direção ao grupo de turcos. Mas avistam o fotógrafo Günter Zint, postado a uns quinze metros de distância e apontando a câmera. Obviamente imaginam que estão sob o foco da câmera e supõem— como descubro mais tarde através de informações extra- oficiais na delegacia de Duisburg — que um jornal qualquer deseja criar um caso com eles demonstrando a desenvoltura e os métodos pelos quais intimam os estrangeiros após uma simples denúncia. Retornam a seus veículos e partem rapidamente.
Voltamos à estaca zero. E o tempo urge.Adler começa a ficar inquieto, pois o “ônibus da usi
na” ainda não chegou. Gesine, namorada de Sinan, um dos membros de nossa “tropa” , tem uma idéia brilhante:
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vai até um bar de estudantes, localizado perto da estação ferroviária, e arruma dois novos participantes. Como não dispomos de muito tempo, não podemos contar-lhes toda a história com riqueza de detalhes. Só lhes dizemos que se trata de desmascarar um grande especialista no tráfico de mão-de-obra simulando sua captura. Ambos mostram- se dispostos a cooperar. Mais tarde descobrimos que um deles é conselheiro municipal do Partido Verde.
Da forma mais antiautoritária e amigável, “prendem” nossos amigos turcos. Exatamente o oposto da brutalidade policial. De acordo com as regras habituais, pegam nossos amigos pelo braço como se os conduzissem. Mesmo assim, Adler engole a encenação.
Para tomar as coisas mais reais, um dos “policiais” aplica uma chave de braço em Ayth que “se rebela” . Sem acreditar nos próprios olhos — afinal, vê todo o seu negócio cair por terra —, Adler me pergunta, assustado:
— Mas o que está acontecendo?— Polícia pega eles porque não têm documento —
respondo e saio correndo.Ligeiramente cabisbaixo, olhando para todos os la
dos, Adler dirige-se a passos acelerados para o carro estacionado diante de um ponto de ônibus. Evita correr para não atrair a atenção dos outros e também porque o pudor o impede.
Simplesmente abandona os sócios ali na ma. Schmidt ainda corre atrás dele, exigindo uma explicação:
— O que que houve? Por que todos saíram correndo? Como foi que isso aconteceu? O senhor mesmo nos disse que não haveria nenhum problema!
Sem diminuir suas passadas largas, Adler responde ofegante:
— Está tudo bem! Telefone para mim sem demora!— E pula para dentro do carro, que parte impetuosamente. Schmidt ainda grita:
— Mas temos um trabalho a fazer...
Epílogo(ou: A banalização do crime)
Para que tudo fique na mais perfeita ordem, à noite Schmidt telefona para Adler.
Adler (ligeiramente embaraçado, tentando minimizar o incidente): Pois é, que aventura tivemos hoje, não?
Schmidt (censurando-o energicamente): É! Mas o senhor pode me dizer o que aconteceu, afinal?
Adler: Não sei. Acho que os rapazes tinham a ficha suja. Como é que vou saber?
SCHMIDT: E como o senhor imagina resolver o nosso caso?
Adler: Ora, eu organizei aquela equipe... Posso muito bem organizar outra...
SCHMIDT: Não, não será mais necessário. Nós mesmos vamos resolver tudo sozinhos. O senhor sabia muito bem que o serviço devia ser feito imediatamente. Tudo precisa estar pronto até amanhã no fim da tarde. Pensávamos estar tratando com um profissional.
Adler (na defensiva): Mas só pegaram dois! Dois emseis!
SCHMIDT (interrompendo-o): Dois, dois... O senhor tem idéia da proporção... dois em seis?
Adler: Tenho...SCHMIDT: Faça o cálculo. Éum terço, não é mesmo?Adler: Sim, é. Mas o que vamos fazer agora?SCHMIDT: O que vamos fazer? Temos o nosso pró
prio pessoal, ainda bem... Da nossa parte tudo correu às mil maravilhas. Tínhamos o ônibus. Mas o senhor o que fez? Saiu correndo para o carro! E até agora não nos deu nenhuma explicação convincente. E ainda por cima quer saber o que faremos agora? Eu lhe digo... Vamos ter que
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começar tudo de novo. Mas sem o senhor! Até logo! (Bate o telefone.)
(Meia hora depois, apresento-me na casa de Adler e já vou levando uma descompostura.)
ADLER: Que raio de gente foi aquela que você me arrumou? Viu só o rolo que deu?
EU: Mas eu disse para senhor que aqueles dois não tinha documento. Polícia pegou eles.
Adler (ri, achando a coisa engraçada): É, eu vi.EU: Outros quer dinheiro. Eles não têm culpa. Eles
deixou serviço que tinha para pegar aquele outro, e agora nada.
Adler (com desdém): Mas que caras-de-pau! Diga que o negócio está morto e enterrado. Acabou!
EU: Mas senhor disse que ajudava eles.ADLER: Só depois do serviço feito.EU: A polícia foi em minha casa me procurar. Eles
quer saber de tudo. Eu não estava. E agora eu precisa depor e...
Adler (interrompendo-me): Obviamente você não pronunciará o meu nome, está entendendo? Não tenho nada a ver com aquela história, percebe?
Eu (fazendo-me de inocente): Mas que eu vai contar em polícia?
ADLER: Diga, por exemplo, que um tal Müller... ou qualquer outro nome... prometeu um serviço aos rapazes. Daí você foi procurá-los e então...
EU: Mas e se eles pergunta como é Müller? O que eu fala?
(Silêncio).ADLER: Diga que não sabe de nada!EU: Que eu não sabe nada?ADLER: É! Finja que não entende. Ou melhor, aja co
mo se não soubesse uma palavra de alemão.Eu: Tudo bem. Mas gente não podia fazer coisinha
para eles?Adler: Para os rapazes? Não! Mas para você...
quem sabe? Falaremos disso mais tarde... O meu cliente
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deve ter se borrado de medo quando viu tudo aquilo. Deve ter cagado na calça. Mas que merda... Bom, se alguém perguntar alguma coisa, diga que foi um tal Müller, ou qualquer outro nome, de Duisburg... Você não sabe onde ele mora, não sabe onde fica seu escritório, não sabe nada. Ele só pediu que você arranjasse umas pessoas para um servicinho.
Eu*. E eu fala aquelas coisa de radiação?ADLER: Claro que não! Não, não, não, não! (Em se
guida começa a rir.) Quais foram os rapazes que eles prenderam?
EU: Aqueles dois que mora em porão. Agora policia mandam eles para Turquia.
A d le r (satisfeito, feliz e tranqüilo ao mesmo tempo): Pobres diabos! Mandados para a Turquia... Mas que merda! Como é que eu podia adivinhar que os policiais estavam circulando pela estação ferroviária?...
Eu: Mas senhor falou para encontrar em estação de trem.
A d le r (repreensivo): Você devia ter sugerido outra coisa... Outro lugar para o encontro...
Sexta-feira, 9 de agosto (o dia seguinte).Adler manda seu novo motorista Abdullah (meu “ir
mão”) apanhá-lo às dez horas. Como de hábito, percorre os bancos, verificando, com satisfação, os depósitos feitos em sua conta. Depois recolhe sua parte do saque na Remmert. Durante o percurso, revela a Abdullah suas preocupações:
— Os prazos para entrega são muito longos... Você precisa encomendar um Mercedes último tipo quase um ano antes, se quiser receber a tempo.
É, o crescimento a qualquer preço continua sendo a divisa do capitalismo contemporâneo, mesmo que a sua expansão e suas explosões não aparentem ser tão selvagens como realmente são. “ Quem não avança, recua” é a máxima que exprime a angústia original de todos os senhores da guerra, de todos os conquistadores e capitalistas, ainda em vigor em nossa época. Diante da conjuntura econômica, Adler se resigna:
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— Vou trocar de Mercedes. Em vez deste 280 SE, vou comprar o 300 SE, último tipo. Mas só no outono. Até lá, este já terá um ano e meio. (Com todos os acessórios e equipamentos, seu carro atual custou 100 mil marcos; o novo será bem mais caro.)
Abdullah (tentando atrair Adler para o assunto que lhe interessa)\ Os dois turcos estão na cadeia.
AdleR: Provavelmente já foram expulsos do país. Eu tenho muita pena deles. Mas, por outro lado, quer saber de uma coisa? Deve ter sido bem melhor para eles. Afinal, o que é que conseguiram aqui na Alemanha? Não podiam nem andar livremente pelas ruas, não é verdade?
Abdullah: Lá isso é l Go clima é bem melhor na Turquia.
ADLER: É verdade! O que eles querem aqui? Moram em porões, vivem com medo da polícia, não têm empregos, não conseguem se manter, não têm nada!
Abdullah.* É... não têm emprego...AdleR: E o que os prende aqui?Abdullah: Mas Ali está bem triste...AdleR: Claro. Deve estar se cagando de medo. A gente
devia ter marcado o encontro em outro local, não na estação. Que merda! A polícia está sempre circulando por ali.
Abdullah*. É... esse foi o problema.ADLER: Foi mesmo!Abdullah: O senhor acha que ainda vai receber al
gum tipo de trabalho daquele pessoal da usina?Adler: Claro! Há muito tempo que trabalho para
eles. Todos os anos...Abdullah: Eles devem pagar uma nota, não?AdleR: Pagam. E sempre nos dão serviço. Não te
mos problemas com eles. Bem, claro que no momento a coisa está preta. Mas é um trabalho sério. Raramente nos convocam para uma missão um pouco duvidosa. Têm medo que a coisa transpire e os jornais comecem a publicar que a usina pifou e coisas desse gênero.
Abdullah: É, mas os dois sujeitos ficaram com muito medo. (Ri.)
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Adler (rindo também): Com muito medo! Saíram na disparada... cagando na calça... Ah, ah... Normalmente, só quem tem caderneta de radiação em ordem pode entrar numa usina nuclear. É o Estado que determina isso. Mas a direção da usina manda a lei à merda, e o pessoal entra sem caderneta. O que já caracteriza um delito. Portanto, deve-se tomar muito cuidado! Eles infringem as leis! Por isso têm tanto medo da polícia... (Ri.)
ABDULLAH: Mas eles pagam bem pelos serviços, não pagam?
Adler: Pagam, pagam bem. Mas é porque violam as leis. A gente, não! A gente só viola as leis pela metade. É por isso que eles pagam bem. E é uma coisa boa para nós. Se as autoridades soubessem o que eles fizeram e o que andam fazendo, botavam as mãos em cima deles ra- pidinho. É uma merda mesmo! A gente está sempre aprendendo, todos os dias. Você não acha? (Ri.)
Abdullah: Eu também fiquei com medo quando os guardas pegaram os colegas.
ADLER: Eu vi um dos policiais agarrar dois homens de uma vez só. Assim, ó! (Faz o gesto.) Por pouco não me levaram também. Daí eu ia ter que responder a um monte de perguntas cretinas... E um homem na minha posição não pode passar por isso. Não quero nada com a polícia ou com qualquer outra coisa do gênero.
Abdullah: Lá no nosso país, na Turquia, não tem leis como essa...
ADLER: Eu sei. Lá há muito mais liberdade. Mas aqui... para cada coisinha existe uma lei. Muitas vezes você comete uma infração sem saber. É assim que acontece na Alemanha. E estão sempre atrás da gente, querendo aplicar um castigo severo. Se toda essa nossa história viesse à tona, o diretor geral da usina nuclear iria para a cadeia por um ano e meio, no mínimo. É fogo! Por isso que a gente deve prestar atenção para não ser pego lá dentro. Para continuar com a ficha limpa... Bem, de qualquer modo, não me aconteceria nada. Se houvesse algum delito, o pessoal da usina é que o teria cometido. Foram eles que
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me pediram para arrumar seis homens para um serviço de reparo. Eu só arrumei os caras, mas nem quis saber o que iam fazer com eles. Se iam deixar os fulanos entrar na usina sem caderneta ou qualquer coisa do gênero, isso era da conta deles. Não é verdade?
AbdullaH: Não entendo nada dessas coisas.ADLER: Deixe para lá. De qualquer forma, aprende
mos uma lição. Na próxima vez, nada de encontros na estação de trem. Pode ter certeza. Merda!
Toda essa encenação foi conduzida do começo ao fim como um pequeno “acidente postulado". Mas talvez na vida real estejam acontecendo “missões" desse tipo em menor ou maior proporção. Se nossa encenação contribuir para reforçar a vigilância da opinião pública e dos meios de comunicação, chamando a atenção para esses mundos secretos, valeu a pena o esforço. Adler, enquanto tal, não está em jogo. Com toda a sua energia e a sua imaginação criminosas, não passa de um medíocre. Nada seria mais falso que pintá-lo como um demônio. Ele é um dos milhares e milhares de comparsas e beneficiários de um sistema baseado na exploração sem limites e no menosprezo pelo ser humano.
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Ali Sinirlioglu é um dos milhares de imigrantes turcos que vivem na República Federal da Alemanha. Para sobreviver, sujeita-se aos mais duros trabalhos. Hostilizado, sofre toda espécie de discriminação. Mas, por trás desse operário marginalizado, esconde-se Günter Wallraff, jornalista alemão de fama internacional. Disfarçado de turco, Wallraff passou dois anos registrando suas experiências e recolhendo depoimentos para a elaboração de Cabeça de turco, um relato assombroso sobre o cotidiano das minorias étnicas na Alemanha. Ousado, polêmico, corajoso, recordista de venda, Cabeça de turco é uma reportagem literária que põe a nu “ a frieza glacial de uma sociedade que se julga bastante sensata, soberana, incontestável e imparcial” .
©E O I T O R A
QTOBO
Günter Wallraff nasceu em 1942, filho de um funcionário público e de uma mulher proveniente da alta burguesia. Em 1963 recusou-se a prestar serviço militar e foi convocado ao serviço psiquiátrico das Forças Armadas Federais. Datam dessa época suas primeiras reportagens. Após vinte anos de intensa atuação na área jornalística — e com várias matérias editadas em livros —, Wallraff ultrapassou o status de escritor bem-sucedido e tornou-se personagem da história contemporânea alemã. Ele já se disfarçou em porteiro de uma grande organização financeira sob suspeita de práticas ilegais, camuflou-se de repórter para apurar denúncias de manipulação de informações e investigou a situação dos imigrantes no papel de um operário turco. Uma versatilidade que não oculta o ideal maior: desvendar aspectos pouco divulgados da realidade social.
Sucesso absoluto — mais de dois milhões de exemplares vendidos na República Federal da Alemanha —, Cabeça de turco é a narrativa de uma incursão nos sórdidos porões de uma civilização moderna.
O jornalista Günter Wallraff pretendia escrever sobre a situação de milhões de estrangeiros — em especial turcos, iugoslavos, gregos, espanhóis — que vivem na Alemanha. Então, assumiu a aparência de um turco, provavelmente o ser humano que ocupa o lugar mais baixo na escala de valores da sociedade alemã contemporânea. Após intenso treinamento para aprender a falar alemão como um turco, Wallraff completou seu disfarce com lentes de contato escuras, peruca de cabelos pretos, bigode, documentos falsos, e saiu a campo.
O resultado dessa investigação é Cabeça de turco, um documento inesquecível que demonstra até que ponto podem chegar a incompreensão, a distância e o desprezo de um homem pelo seu semelhante.