cabeça de turco

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GUNTER WALLRAFF Uma viagem nos porões da sociedade alemã &DBO

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O jornalista Günter Wallraff pretendiaescrever sobre a situaçãode milhões de estrangeiros — emespecial turcos, iugoslavos, gregos,espanhóis — que vivem naAlemanha. Então, assumiu a aparênciade um turco, provavelmenteo ser humano que ocupa o lugarmais baixo na escala de valoresda sociedade alemã contemporânea.Após intenso treinamentopara aprender a falar alemãocomo um turco, Wallraffcompletou seu disfarce com lentesde contato escuras, peruca decabelos pretos, bigode, documentosfalsos, e saiu a campo.

TRANSCRIPT

GUNTER WALLRAFF

Uma viagem nos porões da sociedade alemã

&DBO

G Ü N T E R W A L L R A F F

CABEÇA DE TURCOTradução

Nicolino Simone Neto Prefácio

William Waack

2? Edição

B B GKOPPWÔ 288-2109

Titulo do original alemõo:Ganz untenCopyright © 1985 Kiepenheuer & Witsch Crédito das fotos de miolo: PAN-Foto, Gfinter Zint Arquivo particular de GOnter Wallraff Projeto grdfico: Haroldo Jereissati Rodrigues Composição: Editora Globo

CIP-BnaU. C*Uüogaç2o-na-íonte — Câmara Brasileira do Livro, SP

Wallraff, Gfinter, 1942- W187c Cabeça dc turco / Güntcr Wallraff: tradução Nicolino Simonc Neto; pre-2.ed. fádo William Waadc. —2. ed. — Rio de Janeiro : Globo, 1988.

ISBN 85-250-0599-11. Discriminaçto racial - Alemanha 2. Trabalhadores estrangeiros turcos

• Alemanha 3. Turcos • Emprego • Alemanha I. Título

CDD-305.89435043e»-i606 -331.62561043

íodtecs pxia catálogo sistm átko:1. Alemanha : Discriminação contra turcos : Sociologia 305.894350432. Alemanha : Trabalhadores Turcos 331.625610433. Turcos : Trabalhadores na Alemanha 331.625610434. Turcos na Alemanha : Discriminação racial: Sodologia 305.89435043

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravaç&o etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados, sem a expressa autorização da editora.Direitos de edição em língua portuguesa, para o Brasil, adquiridos por Editora GloboEditora Globo é denominação comercial de fantasia utilizada pela Editora Rio Gráfica Ltda.Rua Itapiru, 1209, CEP 20251, Rio de Janeiro.Td.: (021)273-5522, telex: (021)23365, RJ.Brasil.

Sumário

Prefácio 11por William Waack

Advertência 17 A metamorfose 19 O ensaio geral 22 Os primeiros passos 24 Matéria-prima: o espírito 31 “O prazer de comer" (ou: A última ração) 37 O canteiro de obras 47A conversão (ou: Cortar cabeças sem bênção) 60

Do lado de cá do Éden 80 O enterro (ou: Livrando-se do corpo) 87 Atolado na lama (ou: “Longe de casa e fora da lei") 94

“É uma emergência*' 110 “É melhor fingir que não entendeu" 114 Conversa no horário de descanso 117 A odisséia de Mehmet 123 Em outro lugar 127 A suspeita 130Os parapeitos: questão de mícron e “mico” 136 Como no faroeste 141 A fúria de Yüksel 144 “Chuveiro de emergência" 150

O teste 160Cobaia humana 160

A promoção 173 A assembléia do pessoal 189 A radiação 213A missão (ou: Pegar e largar) 224

A missão secreta 225 Epflogp (ou: A banalÍ2#ção do crime) 254

ParaCemal Kemal Altun Semra Ertam Selcuk Sevinc e todos os outros

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a todos os amigos e colaboradores que me ajudaram na elaboração deste livro.

Levent (Ali) Sinirlioglu, que me emprestou seu nome.

Taner Alday, Mathias Altenburg, Frank Berger, Anna Bõ- deker, Levent Direkoglu, Emine Erdem, Hüseyin Erdem, Sük- rü Eren, Paul Esser, Jõrg Gfrõrer, Uwe Herzog, Bekir Karade- niz, Rõza Krug, Gesine Lassen, Klaus Liebe-Harkort, Claudia Marquardt, Hans-Peter Martin, Weraer Merz, Heinrich Pachl, Franz Pelster, Frank Reglin, Ilse Rilke, Harry Rosina, Ayetel Sayin, Klaus Schmidt, Günter Zint.

Agradecimento especial ao prof. dr. Armin Klümper, de Freiburg, que com sua assistência médica “fortaleceu minhas costas", permitindo que eu realizasse os trabalhos mais pesa­dos, não obstante uma lesão no disco vertebral.

Prefácio

A Alemanha não é fácil de explicar. Nem se trata só do pro­blema de se enveredar por seu passado recente, que apesar dos esquemas mentais consagrados ainda oferece enorme campo aberto à reflexão. Buscar as causas do impressionante processo de recuperação econômica do país até agora foi o menos árduo, mas interpretar essa complexa sociedade pós-industrial é tarefa que só começou muito mais tarde. Infelizmente, terminou cedo demais para alguns que se consagraram tentando entendê-la: Heinrich Bõll e Wemer Fassbinder, ambos já mortos.

Talvez um dos aspectos mais enigmáticos, falando em tom estritamente pessoal, associado à Alemanha e aos alemães, se­ja a dificuldade de ir afundo nas regras e motivos que regem o comportamento de pessoas naquele país. Seria injusto afir­mar que a sociedade alemã atual é hermética e fechada, prin­cipalmente se comparada às barreiras que determinados círcu­los na França e Inglaterra opõem à integração de qualquer es­tranho. Quem concede submeter-se à forma metódica e organi­zada com que os alemães trocam idéias vai achá-los até bastan­te comunicativos.

Para facilitar as coisas, convém começar por aquilo que me­lhor se compreende em relação à Alemanha: seus sistemas for­mais econômico e político. É um caso único, deve-se reconhe­cer. O país foi praticamente outorgado pelas potências de ocu­pação ocidentais (o mesmo processo, às avessas, ocorreu nos territórios ocupados pelo Exército Vermelho) com um modelo político de representação parlamentar praticamente inédito pa­ra as condições alemãs. Ele provou ser até agora, a despeito de muitas críticas até bem fundamentadas, suficientemente maleá­vel e flexível.

Surpresos? Todos deveriam estar, de verdade. Basta lem­brar o auge da revolta antiautoritária da década de 60, a qual um governo de coligação entre socialdemocratas e liberais rea­giu impondo restrições à admissão ao serviço público de pes­soas consideradas radicais. Ou o surgimento dos fortíssimos mo­vimentos de ecologistas e pacifistas, quase dez anos depois. Fo­

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ram imediatamente qualificados pelos conservadores; que vol­taram ao poder em 1982, como perigosos extremistas; perseguin­do a destruição do sistema político e econômico.

Espeéialmente o surgimento dos Verdes e sua absorção no sistema parlamentar talvez tenha sido o teste mais importante para as instituições políticas que os alemães tiveram de implan­tar no final da década de 40. Foi um importante gesto de reno­vação que coincidiu justamente com um escândalo — o famoso caso Flick —, no qual ficou claro que a base comum entre os democratas alemães era sobretudo o amor às finanças ilegais pa­ra todos os partidos. As conseqüências que tudo isso terá para o comportamento de gerações futuras é outra conversa — o fa­to é que o sistema político alemão, até agora, deu provas de in- suspeitada vitalidade.

Há mais de 150 anos que a Alemanha se tomou uma im­pressionante história de sücesso econômico. Na segunda meta­de do século XX, após o cataclismo de 1945, as causas dessa recuperação e vigor são suficientemente conhecidas. A guerra destruiu, menos do que se pensa, instalações industriais alemãs. Nas regiões ocidentais, ocupadas por americanos, ingleses e, mais tarde, franceses, houve menos desmontagens de instalações a título de reparação de guerra. Além disso, entre os milhões de fugitivos dos territórios a leste encontrava-se farta, barata e bem treinada mão-de-obra.

Bem cedo, americanos e ingleses iniciaram a integração da Alemanha Ocidental nos seus respectivos sistemas financeiro, comercial e monetário. Um programa de ajuda e recuperação— o Plano Marshall —, habilmente administrado (parte desses fundos até hoje é redistribuído pelos alemães), permitiu que a Alemanha tivesse amplo acesso a recursos financeiros, aplica­dos numa economia com enormes possibilidades de expansão.

É fácil perceber que, para os alemães, aparentemente o mundo não precisa de grandes explicações. Com a economia fun­cionando do jeito que está — não há outro exemplo de potên­cia capitalista capaz de fornecer um padrão de vida tão alto a tantos milhões de pessoas— eas instituições políticas razoavel­mente equilibradas, o motivo principal de preocupação nesse meio social onde reina a opulência é o que fazer com o tempo livre — cada vez maior, aliás. É que, para o alemão normal, as grandes linhas do debate histórico e ideológico dos últimos sessenta anos de conflagração global transformaram-se em as­

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sunto maçante. Em termos de política internacional, por exem­plo, os alemães preferiram continuar uma potência de segunda categoria, até mesmo no cenário europeu.

Seria necessário aqui abrir um parêntese para a Ostpolitik, a tão famosa política de reaproximação com os países socialis­tas europeus; no começo da década de 70. Ajustada com o rit­mo imposto pelas duas superpotências; esse considerável ato de coragem política, personificado na figura do Kanzler Willy Brandi, levou evidentemente a muita reflexão sobre o papel da Alemanha— ou melhor, dos alemães de leste e oeste — no sis­tema das relações internacionais. Contudo, com o passar dos anos, os sucessivos governos alemães preferiram estreitar os la­ços comerciais com todos os países socialistas, especialmente a Alemanha Oriental, e não parecem seriamente interessados em nenhum tipo de embate ideológico.

A questão alemã é tão velha quanto as articulações políti­cas na Europa dos últimos duzentos anos, mais ou menos, mas momentaneamente reina aí absoluta Ruhe — tranqüilidade. Os alemães trocaram sua identidade nacional por essa calma e pelo acesso ampliado, irrestrito e fantástico a bens de consumo. Mas o problema da identidade não se restringe a estabelecer que ti­po de papel os alemães pretendem desempenhar no mundo, nem como a acomodação de seus interesses pode significar ou não um abalo de proporções sísmicas para seus vizinhos. A busca de identidade envolve sobretudo uma difícil reflexão e ocupa­ção com o passado recente.

É nesse sentido que se pode dizer que a alma alemã tomou- se fechada e hermética a tudo que possa parecer constrangedor ou difícil de ser confrontado. Oferece um dos contrastes mais interessantes da Alemanha atual: por detrás da aparente inten­sa participação política, entendida como dever cívico de votar, os alemães mostram-se, no fundo, apáticos. Estão muito mais interessados em planejar suas férias, cada vez mais exóticas e caras, e têm horror a qualquer coisa que possa parecer altera­ção de seus hábitos de vida regulamentados, metódicos, a qual­quer coisa que possa significar alteração de sua Ruhe.

Esse paraíso não está aberto, evidentemente, para todos; Há uma parcela substancial de trabalhadores estrangeiros, os famosos Gastarbeiters — cerca de 2,5 milhões em 1973, quase

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um milhão a menos em 1987— que teve acesso a apenas miga­lhas desse sistema, o que já era algo considerável em se tratan­do de seus países de origem, principalmente no caso dos turcos. Tomou-se supérfluo, a esta altura» discutir ou quantificar em número a real participação dessa força de trabalho na realiza­ção do milagre econômico alemão. O fato é que há pouco reco­nhecimento, por parte da população alemãde um fato razoa­velmente evidente.

Há, isto sim, enorme preocupação com o legado social e político dessa considerável minoria, que chega a constituir 20% da população de alguns grandes centros urbanos. Já existe uma geração perdida de filhos de trabalhadores estrangeiros que não se sentem em casa em lugar algum: perderam a identificação com os países de origem de seus pais e não são aceitos na Alemanha, embora dominem perfeitamente o idioma, por sua aparência fí­sica ou alguns hábitos culturais. A melhor maneira que muita gente na Alemanha imagina para poder resolver o problema apresentado por essa bomba-relógio social é simplesmente reexportá-la para o lugar de onde veio — o que é evidentemente impossível. Assim como no começo do século, quando milha­res de poloneses ocuparam as regiões produtoras de carvão no Ruhr e se transformaram em mão-de-obra abundante e barata, novamente a Alemanha virou um país de imigração.

O surgimento de preconceitos contra minorias étnicas não é característica apenas dos alemães. Basta lembrar os aguçados sentimentos antiestrangeiros na França (em relação aos árabes), na Suíça, na Áustria ou na Inglaterra, invadida agora por aqueles que os soldados de Sua Majestade (ou os comerciantes, não im­porta) conquistaram há mais de um século. Em todos esses paí­ses esse tipo de manifestação preconceituosa é imediatamente explorado por grupos radicais de direita. A gravidade do pro­blema alemão reside na relutância com que a opinião pública, como um todo, se sensibiliza frente a esse tipo de problema.

O livro de Günter Wallraff se propõe a quebrar "a frieza glacial de uma sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontestável e imparcial”. Na verdade, Wallraff confessa que, após sua aventura pelos porões dessa sociedade, só conseguiu saber o que um trabalhador estrangeiro tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano na Alemanha. Mas está longe ainda de entender como esse trabalhador consegue engo­lir as humilhações, a hostilidade e o ódio cotidiano.

Para o leitor brasileiro, muitas das denúncias contidas no livro vão parecer surpreendentemente fracas. Parte delas se re­fere à não-observância de regras de segurança e comportamen­to em empresas industriais, ao não-pagamento integral de en­cargos e benefícios sociais; às formas precárias de atendimen­to médico e hospitalar, à exploração incontida de mão-de-obra barata. Para os brasileiros isso não constitui absolutamente a menor novidade; e muita gente aqui estaria satisfeita em con­seguir algum tipo de ocupação, pouco se importando se o veí­culo que transporta os trabalhadores de um lugar para outro tem bancos dignos ou não, ou se ele mora num barraco ao in­vés de numa casa.

Em primeiro lugar, é claro que as denúncias de Wallraff têm de ser consideradas em relação aos padrões mínimos de sub­sistência na Alemanha e não no Brasil — e diante do abismo entre as propostas de um estado assistencialista, como o alemão, e a realidade vivida pela minoria de estrangeiros. A í surge a gra­vidade dos fatos mostrados nessa reportagem. Seu conteúdo, aliás, não chega a ser novidade muito menos para os alemães. Existe desde o final da década de 60 abundante literatura pro­duzida por e sobre os Gastarbeiters, incluindo o difícil relacio­namento dos sindicatos alemães com essa questão.

Em segundo lugar, e esse é o ponto mais relevante; os ele­mentos intrínsecos do que acontece a “Ali”, o Gastarbeiter no qual Günter Wallraff se fantasia para viver sua viagem aos po­rões da Alemanha, não são os mais importantes, e sim a descri­ção da atmosfera de frieza e intolerância que só mesmo o estra­nho, o estrangeiro, consegue perceber com tanta clareza. É in­teressante notar como o próprio Wallraff mostra-se surpreso com o grau de incompreensão, distância ou desprezo com o qual “Ali** tem de se acostumar a ser tratado — embora se tivesse treinado para isso.

O método de Wallraff tem sido tão eficiente quanto polê­mico. Nos anos 80 ele já havia adquirido considerável notorie­dade ao disfarçar-se de repórter para mostrar como se produzia a manipulação de notícias no Bild Zeitung, um jornal popular com tiragem diária de milhões de exemplares. A utilização do recurso do disfarce vai bem mais adiante, no caso de “Ali**, para provocar também situações, e não apenas vivê-las.

E o que acontece quando Wallraff, disfarçado de turco, procura diversos setores da Igreja católica alemã, em busca de

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batismo. Ou quando tenta» através de uma armadilha, mover um de seus patrões — Adler, o homem que comercializa mão- de-obra ilegal—a literalmente entregar estrangeiros para a morte lenta. Houve, na Alemanha, fortíssimo debate sobre alguns dos aspectos éticos encerrados no comportamento do repórter Wall- raff — e que, em alguns casos, podiam ser descritos como se um policial provocasse um crime para depois denunciá-lo.

Para o leitor brasileiro, nem se trata de aprofundar esse as­pecto da questão. Com ou sem provocação, com ou sem exage­ro, com ou sem disfarce, o que Wallraff simplesmente põe em linguagem simples, direta e acusadora são fatos que nenhum de seus críticos pensou em contestar. No final do século XX e, ainda màis, na Alemanha, onde se viveu tragicamente o extremo a que pode chegar a manifestação incontida de preconceitos e racis­mo, nenhum deles é fácil de explicar.

William Waack

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Advertência

Grande parte dos honorários recebidos pela venda des­te livro foi colocada à disposição do recém-criado Fundo de Solidariedade aos Estrangeiros. Esses recursos serviram para financiar serviços gratuitos de aconselhamento e as­sistência jurídica, campanhas de esclarecimento e um pro­jeto de habitação comunitária para alemães e estrangeiros.

Nem todas as experiências e nem todos os documen­tos disponíveis puderam ser explorados neste livro; longe disso. Alguns amigos e colaboradores, cada qual em sua área, continuam trabalhando sobre o mesmo tema. Quem deseja relatar suas próprias experiências e fornecer infor­mações, por favor, escreva para o seguinte endereço:

Hilfsfond ‘ ‘Auslàndersolidaritàt’ ’Postfach 30 14 43 5000 Kõln 30

Ou para:Günter Wallraffc/o Verlag Kiepenheuer & Witsch Rondorfer Strasse 5 5000 Kõln 51

Prevendo eventuais processos, novos capítulos foram preparados com o material inédito para completar este li­vro, assegurando edições ampliadas.

Colônia, 7 de outubro de 1985.

A metamorfose

Durante dez anos afastei de mim este papel. Sem dú­vida porque já pressentia o que iria me acontecer. Eu sim­plesmente estava com medo.

Através de relatos de amigos e de várias publicações eu já podia fazer uma idéia da vida dos estrangeiros na República Federal da Alemanha. Sabia que mais da me­tade dos imigrantes jovens sofre de doenças psíquicas. Não conseguem mais digerir os inúmeros desaforos. Pratica­mente não têm chances no mercado de trabalho. Para eles, que aqui cresceram, não há possibilidade de regresso a seus países de origem. São apátridas.

O aviltamento do direito de asilo, o ódio aos estran­geiros, os confinamentos crescentes em guetos — tudo is­so eu conhecia, mas nunca havia vivenciado.

Em março de 1983 publiquei em diversos jornais o seguinte anúncio:

Estrangeiro, robusto, procura qualquer tipo de trabalho, mesmo que seja muito pesado e sujo, mesmo que paguem pouco. Propostas sob n? 358 458

Não foi preciso muito para me marginalizar, para fa­zer parte de uma minoria rejeitada, para ficar na pior. Mandei um especialista fazer um par de lentes de contato bem escuras, que eu podia usar dia e noite. “Agora o se­nhor tem o mesmo olhar penetrante dos meridionais", surpreendeu-se o oculista. E que normalmente seus clien­tes só desejam olhos azuis.

1*

1 W allraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).

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A fim de parecer alguns anos mais jovem, passei a disfarçar o cabelo ralo com uma meia peruca preta. Des­se modo aparentava ter entre 26 e 30 anos. Foi assim que consegui alguns trabalhos dos quais não teria sequer me aproximado se tivesse confessado minha idade real: 43 anos. É verdade que nesse papel eu me comportava como um sujeito mais jovem, vigoroso e produtivo; ao mesmo tempo, contudo, esse papel me transformou num foras­teiro, no último dos miseráveis. Durante o tempo de mi­nha metamorfose, eu falava um “alemão de estrangeiro” , tão tosco e canhestro que quem tivesse se dado ao traba­lho de ouvir um turco ou um grego que mora aqui perce­beria que alguma coisa não soava bem. Eu apenas elimi­nava artigos, deixava de lado a concordância verbal, en­golia certas preposições. Mas ò resultado foi espantoso: ninguém suspeitou de nada. Eram suficientes as asneiras que eu dizia. Minha dissimulação fazia com que me en­tendessem precisamente por aquilo que me tomavam. Si­mulando tolices, tomei-me mais esperto; meus olhos se abriram para o embrutecimento e a frieza glacial de uma sociedade que se julga muito sensata, soberana, incontes­tável e imparcial. Eu era o tolo a quem se diz a verdade sem hipocrisia.

É óbvio que eu não era um turco de verdade. No en­tanto, foi necessário usar um disfarce para desmascarar a sociedade; foi necessário mentir e fingir para descobrir a verdade.

Continuo, porém, sem saber como um imigrante con­segue engolir as humilhações, as hostilidades e o ódio co­tidianos. Mas agora sei o que ele tem de suportar e até onde pode chegar o desprezo humano neste país. Reflexos do apartheid projetam-se aqui entre nós — em nossa demo­cracia. Os fatos ultrapassaram todas as minhas expectati­vas. De modo negativo, é claro. Em plena República Fe­deral da Alemanha vivenciei situações que só estão des­critas nos livros de História do século XIX.

O trabalho foi sujo e extenuante, mais ainda quando passei a sentir o desprezo e as humilhações; o trabalho pre-

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judicou minha saúde, mas por outro lado, no plano psí­quico, edificou-me. Nas fábricas e nos canteiros de obras— lugares muito diferentes da redação do Bild Zeitung1— recebi solidariedade e fiz amigos, aos quais não podia revelar minha identidade por motivos de segurança.

Pouco antes da publicação deste livro, compartilhei meu segredo com alguns deles. E ninguém me censurou pelo disfarce. Ao contrário: não só compreenderam, co­mo perceberam as intenções libertadoras de meu papel. Mesmo assim, foi necessário trocar os nomes de muitos colegas para protegê-los.

Günter WallraffColônia, 7 de outubro de 1985

1 Wallraff trabalhou sob falsa identidade como repórter do Bild Zeitung para desmascarar esse jornal sensacionalista (N. do E.).

O ensaio geral

Para testar meu disfarce e verificar se minha aparên­cia era convincente, fui a alguns bares que costumo fre­qüentar. Ninguém me reconheceu.

Mesmo assim, ainda não me sentia seguro. Tinha medo de que pudessem me desmascarar num momento crucial.

Na noite de 6 de março de 1983, a alta cúpula da União Democrata-Cristã comemorava no Salão Konrad Ade- nauer, em Bonn, a vitória da direita nas eleições. Apro­veitei a oportunidade para meu ensaio geral. Evitando des­pertar suspeitas logo na chegada, muni-me de um refletor manual e, misturando-me a um pessoal da televisão, con­segui entrar no edifício. O salão estava repleto, e a luz cin­tilante dos refletores alcançava até os cantos mais escon­didos. E lá estava eu, bem no meio do salão, vestido com meu único temo escuro (que já devia ter uns quinze anos), iluminando aqui e ali uma e outra autoridade. Alguns fun­cionários estranharam meu comportamento. Vieram me perguntar qual era minha nacionalidade, certamente para assegurar-se de que eu nada tinha a ver com um atentado anunciado pelos iranianos. Uma mulher, num elegante ves­tido de noite, perguntou, olhando-me de soslaio:

— Mas o que um tipo como esse está fazendo aqui? E um velhote com jeito de funcionário público respondeu:

— Isto aqui está bem internacional. Até o Cáucaso veio festejar!

Eu me entendi muito bem com os figurões. Apresentei- me ao membro dirigente da UDC Kurt Biedenkopf como emissário de Türkes, um dos políticos dirigentes dos fas­cistas turcos. Conversamos animadamente sobre a vitória da coalizão de direita nas eleições. Norbert Blüm, minis­tro do Trabalho, é favorável ao entendimento entre os po­

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vos; espontaneamente, tomou-me pelo braço e, junto com os outros, cantou a plenos pulmões: “Que dia maravilho­so o de hoje” .

Enquanto Helmut Kohl fazia seu discurso de vitória, aproximei-me bastante do palanque. Depois de prestar vá­rias homenagens aos outros e a si mesmo, ele fez menção de descer. Estive prestes a oferecer meus ombros para carregá-lo pelo salão numa volta triunfal. Mas preferi de­sistir de tal propósito para não sucumbir sob o peso con­siderável do chanceler.

Os inúmeros agentes de segurança, todos treinados para desmascarar impostores, não perceberam meu dis­farce. Após passar nesse teste, meu medo de futuras difi­culdades diminuiu. Eu me senti mais seguro e confiante: já não temia ser reconhecido pelas várias pessoas que iria encontrar.

Os primeiros passos

Em resposta ao anúncio que publiquei, recebi, de fa­to, algumas ofertas de “emprego” : quase todas para ser­viços pesados e com salários que variavam de 5 a 9 mar­cos por hora1. Nenhuma delas era para um emprego fi- * xo. Experimentei algumas para ao mesmo tempo ensaiar meu papel.

Uma dessas ofertas, por exemplo, era para reformar uma estrebaria nos arredores residenciais de Colônia. Por 7 marcos a hora e sob o nome de Ali, consegui um traba­lho “de alto nível” : balançava-me nos andaimes para pin­tar o teto. Meus colegas eram poloneses, todos em situa­ção irregular. Não sei se era impossível comunicar-me com eles ou se simplesmente não desejavam falar comigo. Ig­noravam-me, deixavam-me de lado. Até a patroa, que pos­suía também uma loja de antiguidades, evitava qualquer contato comigo; limitava-se a dar ordens curtas: “Faça is­so, faça aquilo, rápido” . Naturalmente eu tomava minhas refeições sozinho, afastado dos outros. Tive contatos mais próximos com uma cabra que costumava andar pela es­trebaria do que com os outros empregados. A cabra vi­nha roer minha sacola de plástico para devorar as fatias de pão com manteiga.

Um dia o sistema de alarme da loja de antiguidades enguiçou. Naturalmente puseram a culpa no turco. Depois de muitos interrogatórios, resolveram chamar a polícia, que também passou a suspeitar de mim. No começo, ig­noravam-me; agora me hostilizavam abertamente. Depois de algumas semanas, larguei esse emprego.

Minha próxima parada foi num sítio na Baixa Saxô-

10 salário-referênda por hora na Alemanha Ocidental é de aproximadamente11 marcos (N. do T.).

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Ali em seu alojamento no sítio. O balde serve como vaso sanitário

nia, perto da usina nuclear de Grohnde. A proprietária e sua filha, refugiadas do Leste, cuidavam de tudo sozinhas e decidiram recorrer à mão-de-obra masculina. Tendo certa vez empregado um turco, sabiam exatamente como falar com um deles: “ Qualquer coisa que você já tenha feito não nos interessa. Mesmo que tenha matado alguém, não queremos saber. O importante é que faça seu serviço. Em troca, pode morar e comer aqui, e ainda vai receber um dinheirinho para as despesas pequenas” .

Do “ dinheirinho” não vi nem a cor. Em compensa­ção, trabalhei dez horas por dia, arrancando urtigas e ti­rando a lama dos canais de irrigação. Quanto ao aloja­mento, ela até me permitiu escolher entre um calhambe­que enferrujado que estava parado diante da casa e um malcheiroso estábulo em ruínas que deveria repartir com um gato. Aceitei uma terceira opção: um espaço numa construção abandonada com o chão ainda coberto de en­

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Ali e seu realejo

tulhos e a porta sem chave. E dentro da casa havia vários cômodos quentes, limpos e desocupados...

Eu era obrigado a me esconder dos vizinhos para que ninguém pudesse xingar a propriedade de “ o sítio do tur­co” . Também estava proibido de aparecer na cidade; não podia mostrar a cara nas lojas ou no bar. Tratavam-me como um animal de carga. Mas para a sitiante isso certa­mente era um ato cristão de amor ao próximo. Perceben­do estar diante de alguém que pertence à “ minoria mu­çulmana” , ela foi mais longe ainda: prometeu-me alguns pintinhos. Eu deveria criá-los, já que não podia comer car­ne de porco. Diante de tamanha caridade, resolvi fugir.

Durante quase um ano tentei me manter com os mais diversos serviços. Fosse eu realmente Ali, com certeza não teria sobrevivido. Por isso mesmo é que eu estava literal­mente preparado para aceitar qualquer função. Para o do­no de um restaurante e de uma cadeia de cinemas de Wup-

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pertal, troquei os estofados das poltronas e ajudei na re­forma do bar. Numa indústria alimentícia, meu trabalho era remexer com uma pá a farinha de peixe. E em Strau- bing, na Baviera, tentei a sorte como tocador de realejo: durante horas ficava parado, tocando inutilmente.

Nada mais me espantava. O ódio habitual aos imi­grantes já não era novidade. Surpreso eu ficava quando não me hostilizavam. As crianças, principalmente, eram mais gentis. Paravam diante desse estranho tocador de rea­lejo e de sua tabuleta — Turco sem trabalho HÁ on­ze anos n a Alem a n h a , quer continuar a q u i. Obri­gado: — até que os pais vinham arrancá-las dali. E houve também o casal de saltimbancos que se instalou bem a mi­nha frente, na praça do mercado de Staubing, e também tocava realejo; pois esse casal me convidou — a mim, seu concorrente — para visitar sua carroça. Foi uma bela noite.

Em geral, porém, as coisas aconteciam de modo bem menos agradável. Por exemplo, num dia de carnaval em Regensburg. Nenhum bar alemão precisa ter na porta um cartaz dizendo: Im igrantes não são bem-vindos. Quando eu, Ali, entrava num deles, era totalmente igno­rado. Ninguém vinha me atender. Assim, qual não foi mi­nha surpresa quando, num bar de Regensburg, repleto de bons cristãos fantasiados de bufão, um deles me cumpri­mentou com um sonoro “olá” e disse:

— Agora é a sua vez de nos pagar uma rodada.— Não — respondi. — Vocês paga. Eu não tem em­

prego. Eu já trabalhou para vocês, eu já pagou imposto para vocês.

O homem ficou rubro, inchou como um sapo (mais tarde descobri que Franz-Josef Strauss também costuma fazer isso) e, furioso, atirou-se sobre mim. Querendo pro­teger seu mobiliário, o dono do bar me protegeu. Alguns fregueses levaram para fora o bávaro que havia perdido o controle. Durante o incidente, um cidadão (que mais tarde se apresentou como figurão político da localidade) ficou sentado, quieto, aparentemente pensativo. Tão lo­go a situação se acalmou, puxou uma faca e, cravando-a

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no balcão, disse-me: “Dê o fora! Rápido, seu turco de merda!”

Raras vezes vi tanto ódio. No entanto, em certo sen­tido, os olhares de desprezo eram ainda piores. Ofendem tanto como quando se está sentado num ônibus lotado e o assento ao lado continua vazio.

Já que a tal integração de estrangeiros, evocada por muitos, não se concretiza nos transportes públicos, fui testá-la, junto com um amigo turco, num bar alemão. Ten­tamos conseguir uma mesa cativa (Türk Masasi, em tur­co) em qualquer bar onde pudéssemos nos encontrar sem­pre à mesma hora. Chegamos a confeccionar uma flâmu- la com a inscrição bilingüe, em turco e alemão: “Serefe! Prost!** (“Saúde!”). Nem mesmo nossas promessas de con­sumir muito adiantaram. Perguntamos a uma dúzia de do­nos de bar, e nenhum tinha uma mesa livre.

Meu colega Orthan Oztürk, de 27 anos, tem sofrido experiências semelhantes há quinze ános, desde que chegou à Alemanha Ocidental. Fala alemão quase sem sotaque. Tem boa aparência e até tingiu o cabelo de loiro para dis­farçar suas origens. Mas até agora não conseguiu namo­rar uma jovem alemã. Basta dizer seu nome e tudo termina.

Geralmente os imigrantes não são insultados. Ao me­nos não de modo que possam ouvir. Por trás, as pessoas se queixam do suposto mau cheiro de alho. No entanto, os gastrônomos alemães comem, hoje em dia, muito mais alho que a maior parte dos turcos, que se permitem no máximo um dente desse saudável condimento no fim de semana. Eles se renegam para ser aceitos. Mas as barreiras continuam.

É claro que algumas vezes os imigrantes são atendi­dos de forma gentil nos bares alemães. Desde que sejam servidos por outros imigrantes. Passei por essa experiên­cia no Gürzenich, em Colônia, durante as festividades do carnaval. Minha primeira surpresa foi permitirem que eu, um “turco” , entrasse. E lá dentro, atendido por garçons

' iugoslavos extremamente amáveis, quase me senti bem. Até que começou a tradicional cantoria com todo mundo se balançando de braço dado. E lá fiquei eu, no meio daqueles

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Ali no Estádio Olímpico da Berlim

alucinados, como um rochedo no mar ondulante. Ninguém quis me dar o braço.

De vez em quando o ódio aos imigrantes revela-se abertamente. Quase sempre nas partidas internacionais de futebol. Fazia algumas semanas que se temia o pior du­rante o jogo Alemanha Ocidental x Turquia, realizado no Estádio Olímpico de Berlim, nesse verão de 1983. Num tom claramente suplicante, Richard von Weizsácker1 dirigiu-se a todos pela televisão: “Vamos fazer deste jogo um exemplo da convivência pacífica entre alemães e tur­cos em nossa cidade. Vamos transformá-lo numa prova de compreensão entre os povos” . Para tanto foi mobili­zada uma força policial jamais vista.

Ainda como Ali, comprei um ingresso na arquiban­cada da torcida alemã. Queria aparecer como turco, tan-

1 Em julho de 1984, Richard von Weizsácker tornou-se presidente da Repúbli­ca Federal da Alemanha (N. do T.).

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to que levei um barrete com o emblema turco e uma pe­quena bandeira. Mas logo tive de dar sumiço nessas coi­sas. Fui parar bem no meio de um grupo de alemães neo­nazistas. Neonazistas? É possível que, individualmente, se­jam bons sujeitos, pelo menos a maior parte deles tem um rosto simpático, franco. Mas, juntos, na multidão, eram máscaras de histeria. Nesse dia, trêmulo, pela primeira e única vez, reneguei minha condição de turco; desisti de meu idioma estropiado e conversei com os fanáticos torcedo­res num alemão perfeito. Mesmo assim, continuaram a me tomar por imigrante. Atiravam-me pontas de cigarro no cabelo e derrubavam cerveja em minha cabeça. Nunca, em toda a minha vida, senti tamanho alívio ao ver policiais passando perto de mim. Jamais sonhei que iria vê-los um dia como verdadeiro poder de ordem. Os torcedores gri­tavam: “Vitória!” , “Morte aos vermelhos!” . E um coro sem fim vociferava: “Turcos, vão embora do nosso país! A Alemanha para os alemães!” Felizmente não correu san­gue: houve apenas um pouco mais de feridos do que nas partidas “normais” . Não quero nem imaginar o que teria acontecido se o time alemão perdesse. Não sou fanático por futebol. Porém ali, no Estádio Olímpico, eu berrava, incentivando o time da Alemanha. De puro medo. ^

Matéria-prima: o espírito

Eu, Ali, vou a Passau, assistir ao espetáculo da quarta- feira de cinzas que Franz-Josef Strauss, dirigente da União Sodal-Crístã, organizou para sete mil pessoas. Não sei se um cigano que tomasse parte de um congresso nazista na Bürgerbrãukeller, a tradicional cervejaria de Munique., não teria sentido o mesmo que sinto agora. Pelo menos tenho uma pista. Ali é o leproso, de quem todos se afastam.

Nove horas da manhã em Passau. Nem foi preciso procurar o Salão dos Nibelungos. Por todas as ruas, o aflu- xo dos partidários de Strauss — muitos deles nitidamente não-bávaros — levava diretamente ao grande salão. Às on­ze horas, Strauss deverá inaugurar sua “quarta-feira po­lítica” ; duas horas antes, porém, praticamente todos os bancos ao longo das mesas compridas estão ocupados. O gigantesco salão está tomado pela fumaça de cigarros. To­dos já devem ter bebido dois ou três litros de cerveja. Pei­xe e queijo são servidos em abundância. É o primeiro dia da quaresma.

Encaminho-me para um dos poucos lugares ainda de­socupados. Antes, porém, que eu consiga me espremer na ponta do banco, meu vizinho de mesa se estica inteiro, ocu­pando todo o espaço, e assim me cumprimenta:

— Mas o que é isso? Onde estamos, afinal? Nem aqui a gente fica livre desses carroceiros? Vocês não conhecem seu lugar?

Olham-me com espanto de todos os lados. O cidadão politicamente engajado que está a minha esquerda baba cerveja, tão cheio já está. Tento deixá-los de bom humor.

— Eu é grande amigo Strauss. Homem forte!Em resposta, uma chuva de gargalhadas.— Como é que é? Vocês ouviram isso? Ele diz que

é amigo de Strauss! Essa é muito boa.

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Ali e os bebedores de cerveja

Só me deixam em paz quando passa por ali uma mu­lher robusta, servindo as bebidas. Seu traje típico, bem decotado, e principalmente o líquido que ela carrega são bem mais interessantes que eu.

Até que um gole de cerveja cairia bem agora. Mas... nada. A garçonete simplesmente me ignora. Resolvo en­tão ir ao balcão das bebidas: ninguém me escuta. Depois de uma terceira tentativa, o rapaz do balcão me diz com um chiado áspero:

— Dê o fora daqui. Rapidinho!Nesse instante, Strauss entra no salão sob grande ova­

ção e o rufar dos metais da marchinha bávara. Os organi­zadores do comício esforçam-se para abrir caminho entre a multidão ensandecida e chegar até o palanque, onde já se encontra a mulher de Strauss, Marianne. Os não-bávaros são os que mais gritam e agitam seus cartazes (NÓS, DE P e in e , A q u i P el a Sétim a Vez).

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As primeiras frases do dirigente da USC são abafa­das pelo barulho. O discurso dura três horas. É difícil acompanhar o que ele diz, no meio da multidão pingando suor. E também só é possível acompanhar sua lógica de­pois de três litros de cerveja: “Somos um partido de pes­soas inteligentes. Temos eleitores inteligentes e, por isso, somos a maioria no país. Se nossos eleitores não fossem tão inteligentes, não seriamos a maioria!” Aplausos e pa- teadas estrondosos. A sala ferve.

As pessoas apinham-se nos banheiros, que não con­seguem dar conta de seu aperto. Nos corredores, poças de urina. Até mesmo no salão, uns e outros se aliviam pela perna da calça.

No palanque, Strauss fala muito sobre o espírito: “ Precisamos fazer melhor uso da nossa matéria-prima, o espírito. Esse espírito que Deus nos legou, não obstante todas as tolices ditas por alguns funcionários públicos” .

Antes disso, porém, as cervejas é que precisam ser mais bem distribuídas. Sanitaristas e assistentes da Cruz Vermelha têm de se arrastar com dificuldades. Em todas as mesas há folhetos informativos: “Nós e nosso partido” . As apresentações são feitas pelos próprios simpatizantes da USC. Como, por exemplo, a de um comerciante mui­to gordo: “Nunca tive complexo por ser de direita. Não conheço outro partido que me caia tão bem como a USC. É o partido que me convém, assim como Strauss. Gosto muito dele. Somos bem parecidos. Não há nada, com ex­ceção do futebol, talvez, que me irrite mais que os im­postos” .

Ou talvez um turco sedento, nesse Salão dos Nibe- lungos branco e azul. Quase de contrabando, consigo uma cerveja. Assim que o rapaz do balcão olha para o lado, apanho uma caneca e deixo ali *5 marcos. Strauss está fa­zendo suas ameaças: “Precisamos voltar a pensar nos ci­dadãos normais, nas mulheres e nos homens normais, e não em alguns marginais” . Pouco depois, ao falar da “massa de anônimos” e da “identidade nacional” que ele quer “preservar” , e ao vangloriar-se da “ liberdade e da

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dignidade de todos na Alemanha” , é que percebo clara­mente que não se refere a mim, Ali.

Tento voltar para o banco e ainda encontro dois lu­gares livres. Sento-me e o lugar ao meu lado fica desocu­pado, embora todos continuem se apertando. “Esse fede a alho” , diz um sujeito. “Você é turco?” pergunta outro.

Finalmente o “bávaro feliz” (Strauss falando de Strauss) termina seu discurso de quaresma. Durante cin­co ou seis horas seus admiradores agüentaram-no. Um cor­dão de segurança protege-o dos fãs. Os pedidos de autó­grafos não podem ser atendidos. Pelo menos não ali. Quem desejar autógrafo deverá fazer sua solicitação por escrito num papel adequado e colocá-la numa das umas que cir­culam pelo salão.

Apesar de tantas precauções, consigo me aproximar com facilidade do dirigente bávaro. Muito simples. Apresento-me como observador do congresso e emissário de Türkes, o líder fascista dos Lobos Cinzentos. Esse tal Türkes, fã entusiasta de Hitler, já havia se encontrado se­cretamente com Strauss alguns anos antes em Munique. No encontro, segundo Türkes, 'o presidente da USC garantiu-lhe que, com a propaganda adequada, no futu­ro se criaria na Alemanha um clima político favorável à MHP, organização turca neofascista, e aos Lobos Cinzen­tos. Eis o grito de guerra de Türkes: “Morte a todos os porcos judeus, a todos os comunistas filhos da puta e a todos os cães gregos!”

Como representante de tal pessoa, tenho acesso livre a Strauss, que me cumprimenta com cordialidade e põe o braço em meus ombros, exatamente como um padrinho poderoso trata um parente pofcre da província. Escreve uma dedicatória pessoal na página de rosto do livro edi­tado em sua homenagem, Franz-Josef Strauss — Um gran­de livro de fotografias: “Para Ali, com cordiais saudações, F.-J. Strauss” .

Os fotógrafos presentes não deixam escapar a ocasião para mais um instantâneo.

De acordo com o prefácio desse livro luxuoso, Strauss

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Dedicatória de Franz-Josef Strauss a Ali

“entrou para a política obedecendo ao apelo instintivo do dever” (da Providência, talvez?). Em todo caso, foi um privilégio para mim chegar bem perto de um dos po­líticos do pós-guerra mais obcecados pelo poder, um dos maiores inimigos da democracia, um homem que me le­vou várias vezes às barras dos tribunais. A primeira vez em que me encontrei pessoalmente com ele foi há mais de dez anos, durante um debate organizado pela Acade­mia Católica de Munique (tema dò debate: “ Jornalista ou agitador?”). Sentei-me entre ele e Wischnewski, polí­tico do Partido Social-Democrata. Strauss estava num de seus bons dias e quis brilhar diante do público mais libe­ral da academia. E, evidentemente, quis se mostrar sim­pático para comigo.

— Até que enfim tenho a oportunidade de lhe per­guntar uma coisa. O senhor é parente do padre Josef Wall- raff, o jesuíta?

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Não permiti que por trás de tanta “familiaridade” ele pudesse ocultar dos presentes sua hostilidade para com pes­soas como eu.

— Sou seu filho ilegítimo — respondi. — Mas, por favor, não diga nada a ninguém.

Durante todo o resto da discussão, Strauss manteve- se fiel a si mesmo.

“O prazer de comer”(ou: A última ração)

Muitos de nossos críticos são verdadeiros mestres na técnica do aves­truz. Nem sequer se dão ao trabalho de investigar corretamente o que há por trás dos bastidores do McDonald ‘s. Quem não enxerga direi­to não pode se aproximar da verdade.Texto publicado em página inteira no jornal Die Zeit, de 10 de maio de 198S.

Recentemente o McDonald’s deu início a uma gran­de ofensiva contra seus detratores nas associações de con­sumidores e sindicatos: “Esses ataques não nos impedi­rão de continuar a nos expandir e a oferecer a um número ainda grande de desempregados uma colocação sólida e com todas as possibilidades de ascensão” .

Uma oportunidade para os imigrantes e os refugia­dos políticos? Nada como ir até lá, digo a mim mesmo. Na Alemanha, já existem 207 McDonald's. Em pouco tem­po, esse número deverá dobrar. Vou tentar a sorte em •Hamburgo, numa das maiores filiais do McDonald’s na Alemanha. Consigo o emprego. Agora não me faltará mais o prazer, já que nosso lema é “ o prazer de comer” . Pelo menos é o que está escrito no prospecto de boas-vindas. Mas o que isso realmente significa?

“O McDonald’s é um restaurante familiar, onde se pode co­mer bem e barato, num ambiente extremamente limpo, e on­de todos se sentem bem e se divertem — este é o sucesso do McDonald’s. Estamos felizes por tê-lo em nossa equipe e de­sejamos a você muito sucesso e prazer!”

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Numa equipe tão feliz, prefiro dizer que tenho 26 anos. Se revelasse minha idade real (43), não teria muita razão para rir.

Igual aos hambúrgueres, também sou embrulhado com as embalagens da casa: boné, camiseta e calça. Nos três, o logotipo McDonakTs. Só falta me colocarem na grelha. A calça não tem bolsos. Se recebo alguma gorje­ta, corro a mão inutilmente pela costura lateral até que, por fim, coloco o dinheiro exatamente onde a empresa quer tê-lo: dentro da caixa registradora. O golpe de mestre da calça sem bolsos também impede que tenhamos um len­ço. Portanto, se “o nariz escorrer” , vai escorrer por cima dos hambúrgueres ou provocar chiados sobre a grelha a cada pingo.

O gerente logo se mostra satisfeito comigo, elogian­do meu trabalho e minha destreza em virar os hambúr­gueres na chapa.

— Você faz isso muito bem! E rápido! A maioria co­mete erros enormes quando está começando.

— Acho que porque eu faz esporte — digo-lhe.— Qual?— Pingue-pongue.O hambúrguer é uma rodela de carne marrom e sua­

da, com 98 milímetros de diâmetro, no mínimo, e de 125 a 145 gramas de peso. Atirado na chapa, pula como uma ficha de plástico. Congelado, estala como uma moeda ao bater num vidro. Depois de frito, tem, no máximo, dez minutos “ de vida” ; porém na maioria da vezes fica mui­to mais tempo nos balcões. Se o deixam degelar, começa a cheirar mal. Por isso é que, ainda congelado, jogam-no imediatamente na chapa. Depois, é recoberto com os co­nhecidos condimentos e ingredientes, colocado entre duas fatias de pão esponjoso e embalado em isopor. “Há mui­to de gracioso na silhueta delicadamente abobadada de um pãozinho de hambúrguer! Perceber tal coisa requer um es­tado de espírito muito especial!” , afirma, com seriedade, Ray Kroc, o fundador da empresa.

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O Big Mac“O amor é como um Big Mac: dois corpos que se mistu­

ram num movimento harmonioso, tornando-se uma só car­ne. O delicado pãozinho enlaça o corpo num abraço pleno de ternura. Os beijos são como uma pitada úmida de molho especial. Os corações amantes se consomem como as cebo­las. A esperança, jovem ainda, verdeja como a salada. E o queijo e o pepino dão o sabor de querer mais.”

(Extraído do jornal do McDonakTs do Rio de Janeiro, de abril de 1983.)

O local de trabalho, atrás do balcão, é estreito; o chão, engordurado e escorregadio; e a chapa mantém permanen­temente uma temperatura de 180°. Não há medida de se­gurança. Na realidade, deveríamos usar luvas — pelo me­nos é o que prevêem as normas de segurança. Mas não te­mos luva nenhuma: diminuiria o ritmo de nossa ativida­de. Muitas pessoas que trabalharam ou trabalham aqui têm ferimentos e cicatrizes de queimaduras. Pouco antes de eu começar neste emprego, um dos colegas foi levado para o hospital porque, na pressa, tinha colocado a mão direto na grelha. Logo na primeira noite, ganhei algumas bolhas de queimadura, graças às gotas de óleo fervente que es­pirram da chapa.

Ingenuamente imagino que meu expediente termine às duas e meia da madrugada, conforme o combinado. Só então percebo que começam a falar de mim, de Ali, o no­vato. O gerente trata-me com rispidez e pergunta por que estou saindo antes de terminar o serviço. Explico-lhe que estou só fazendo o que me disseram. Mas eu deveria tê-lo avisado pessoalmente de que ia embora. Ameaçando-me, pergunta se limpei a calçada. Respondo que sim, pois aca­bava de voltar de lá — só de camiseta, em plena madru­gada de dezembro. Mas um empregado particularmente atencioso avisa que ainda há papéis espalhados lá fora.

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E já são quase três horas da manhã! O gerente acha qüè não estoú me adaptando muito bem e que me falta um pouco de garra. Meu rosto não demonstra felicidade. E, se cheguei a pensar que não seda vigiado, estou redon­damente enganado. Por exemplo, hoje fiquei cinco minu-

. tos plantado no mesmo lugar. Digo que não é possível, pois passei ò tempo todo correndo de um lado para o ou­tro. “Trabalho para mim é esporte” , acrescento.

Lendo uma circular distribuída pela empresa, descu­bro que as horas noturnas e as extras só são computadas como horas inteiras. Isto significa que qualquer trabalho extraordinário inferior a trinta minutos não é, considera­do; já os quê ultrapassarem trinta minutos serão arredon-' dados para uma hora. Na prática, porém, há muito mais desconto que arredondamento. Só podemos marcar o pon­to depois de vestirmos os uniformes. E na saída é o in­verso: primeiro marcamos o ponto e depois trocamos de roupa. Desse modo, somos duas vezes roubados.

Estamos na época de Natal. Há um número enorme de pessoas e, nas horas de pico, atingem-se os recordes de movimento. Meu salário bruto é de 7,55 marcos por ho­ra, numa atividade comparável a qualquer outro trabalho de produção em série. Além disso, descontam 1 marco por hora, a título de alimentação. Depois de oito horas de tra­balho, o gerente comunica-me que agora posso escolher com calma uma das especialidades do McDonald’s. Quan­do peço os talheres, ele começa a rir. Talheres no McDo­nald^? É algo que não tem o menor sentido. A minha volta só gargalhadas.

Meu local de trabalho é aberto. Assim como vejo os fregueses, eles também me vêem. Não tenho sequer a chan­ce de me afastar por alguns minutos e beber alguma coisa para enfrentar o calor que faz ali. Toda essa fritura e os molhos— principalmente o de mostarda — provocam mui-, ta sede.

Uma fatia de pepino para um hambúrguer, duas para o Big Mac; uma fatia de queijo e as esguichadelas dos vá­rios molhos: de peixe, de galinha, especial para o Big Mac.

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A toda hora estão nos pressionando, porque os pedi­dos não param: uma torta de maçã aqui, um filé de peixe ali. £ , assim, com os dedos sujos de peixe, passamos para o próximo hambúrguer.

É no horário de descanso que aproveito para experi­mentar a comida. Como o frango — os tais nuggets — e sinto o sabor de peixe. Isto deixa um gosto ruim na bo­ca. Como a torta de maçã, a mesma coisa: não é que até aqui entra em cena o peixe?

Só depois de algum tempo consigo entender por que isso acontece. As gigantescas cubas para fritura estão sem­pre cheias de óleo em ebulição. Todas as noites esse óleo é filtrado para ser reaproveitado. Assim, tanto o óleo das tortas de maçã, quanto o do peixe, quanto o do frango passam pelo mesmo filtro de papel, que é utilizado nas dez diferentes cubas.

Nas horas de pico, o trabalho é febril; formam-se fi­las diante do balcão. Por todos os lados ouço gritos para andarmos mais depressa. Com tanta agitação, penso que seria mais produtivo retirar os hambúrgueres um pouco antes do tempo. Mas o gerente — o único que não usa boné— repreende-me:

— Você não tem que pensar em absolutamente na­da. As máquinas se encarregam disso. Portanto, só retire o hambúrguer quando a máquina apitar. Não queira se antecipar!

Faço como ele diz. Não se passam nem cinco minu­tos e ele volta.

— Por que está demorando tanto?— Senhor disse máquina pensa e eu espera.— Você espera, mas os fregueses não! Acha que de­

vem esperar?— Mas quem é decide? Senhor ou máquina? Como

eu vai saber? Eu faz como...— Espere até a máquina apitar, entendeu?— Sim.A palavra de ordem por aqui é serviço rápido. O “ob­

jetivo final” é que “ninguém fique esperando” . Para tanto,

41*

todos os tipos de truques são recomendados ao gerente. O lema é o seguinte: “Um minuto de espera no balcão é tempo demais. É o máximo para quem está na fila. Esta­beleça como meta trinta segundos. Acelerar os serviços é só uma questão de afinação. Concentre-se na rapidez du­rante os próximos trinta dias. Risque do vocabulário a pa­lavra ‘devagar’. Da maneira como você atua dependem 2°7o de suas vendas. E viva a rapidez!”

Aqui fastfood quer realmente dizer questão de mi­nuto, embora alguns colegas que nãò entendem muito bem a língua inglesa achem que fa stfood significa “ quase- comida” 1.

Nossa filial é conhecida por suas vendas recordes. Eu mesmo vi o diretor regional do McDonakTs entregar a nos­so gerente um troféu com a seguinte inscrição: “Pelo ex­celente desempenho no tocante aos lucros” .

O McDonakTs também tem em mira as crianças. Nu­ma circular interna, o departamento de marketing da cen­tral de Munique afirma: "Fastfood não é apenas um mer­cado jovem. Na Alemanha, é antes de mais nada um mer­cado da juventude... E pensar que dizem que os jovens não t§m dinheiro!”

As instalações obedecem a essa diretriz: trincos, me­sas, cadeiras — quase tudo da altura de uma criança. As filiais recebem instruções especiais: “As crianças multipli­cam suas vendas!” Há diversas programações para atrair os pequenos e, com eles, toda a família. A mais requisita­da é “A festa de aniversário no McDonakTs” . Um pra­zer programado do início ao fim.

> Em alemão fast significa “quase” (N. do T.).

“As sete etapas de uma festa de aniversário:1.a etapa: preparativos..............................aprox. 15 min2.a etapa: receber os convidados...............aprox. 10 min3.a etapa: anotar os pedidos.....................aprox. 5 min4.a etapa: retirar os pedidos.....................aprox. 10 min5.a etapa: o prazer de comer.....................aprox. 15 min6.a etapa: jogos ou passeio pelalanchonete................................................ aprox. 10 min7.a etapa: despedida........................................................

Anotar, em seguida, no quadro de avaliações.’* (Documento interno do McDonakTs)

Depois de passar pela fritura, pela chapa e pelo aten­dimento no balção, sou iniciado, no terceiro dia, na téc­nica dos “serviços no salão” : recolher as embalagens e lim­par os restos de comida deixados sobre as mesas. Para es­sa tarefa, entregam-me dois panos: um para as mesas e o outro para os cinzeiros. Na pressa costumeira, freqüen­temente os confundo. Mas ninguém se importa. Muitas vezes limpamos os banheiros com os mesmos panos. É a forma de encerrarmos o ciclo da alimentação. O que me dá nojo. Porém, se peço outro pano, respondem-me com arrogância que os que tenho já são mais que suficientes.

Um dia, o gerente mandou um colega diretamente da cozinha para um banheiro entupido. Com o raspador da chapa na mão, ele se apressou em executar meticulosamente sua tarefa, o que lhe valeu uma bronca descomunal por parte do subgerente.

A limpeza externa também é motivo de atenção rigo­rosa. Cinqüenta metros à direita e cinqüenta metros à es­querda da porta de entrada, tudo deve estar minuciosa­mente limpo. Um trabalho insano, pois os fregueses vi­vem jogando as embalagens na calçada.

Na sala de descanso, a gente se diverte com as bara­tas, que ninguém consegue eliminar. No começo, elas só andavam pelo sótão, mas agora já aparecem também na

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cozinha. Há pouco tempo, uma delas caiu direto sobre a grelha. De outra vez, um freguês encontrou um belo exem­plar em seu Big Mac.

Alguns fregueses, principalmente os jovens um tanto tocados pela bebida, costumam jogar no chão o resto das batatas fritas, que ficam espalhadas e são pisoteadas. E lá vou eu limpar o chão engordurado.

Uma colega turca tem dificuldades ainda maiores. Por ser mulher, é cantada; por ser imigrante, é menospreza­da. Vivem atirando cinzeiros no chão quando ela passa. Isso também já aconteceu comigo. Uma vez jogaram um cinzeiro bem a minha frente. Eu me abaixei para recolher os cacos e logo ouvi o barulho de outro cinzeiro sendo que­brado. E depois outro, e mais outro. Não consegui desco­brir o autor. A meu redor, só gargalhadas. Acho que de­ve ser esse tal “prazer” .

Mesmo no horário de descanso, deve-se permanecer no serviço. Não é permitido sair para tomar um café ou uma cerveja. Já tiveram experiências desagradáveis, co­mo a do funcionário que durante o horário de descanso foi para um bordel.

Uma colega conta que freqüentemente a proíbem de descansar durante as oito horas de jornada diária. Quan­do ela reclama, recebe como resposta: “Rápido! Rápido!”

A mesma coisa acontece se alguém precisa ir ao mé­dico. O gerente diz: “Sou eu que decido o horário de ir ao médico” .

Uma vez perguntei se podia descansar. A resposta já era minha velha conhecida: “Sou eu que decido o horário de descanso!”

Não há comissão de empregados.Através de uma circular escrita há seis anos, o chefe

do departamento do pessoal dá o seguinte conselho a to­dos os McDonald’s da Alemanha Ocidental: “ Se durante uma entrevista com um candidato ficar comprovado que ele é ‘politizado’, faça-lhe outras perguntas e pare por aí. Prometa-lhe uma resposta para alguns dias depois. E na­turalmente não o contrate em hipótese alguma” .

44 ■»

Há algumas razões para que tudo tenha o mesmo gosto. É a seguinte a opinião da União dos Consumidores de Ham­burgo sobre os produtos McDonald*s: “O sabor provém de numerosos aromas artificiais que são acrescentados. Para con­servar as bebidas o maior tempo possível, adicionam-se con­servantes” . Um milk-shake contém 22% de açúcar, o equi­valente a cerca de dezesseis porções ou 40 a 45 gramas. Tudo com um “toquezinho” para torná-lo tragável. Edmund Brandt, especialista da indústria da carne nos Estados Uni­dos, diz que, para os hambúrgueres, não se podem utilizar carnes magras, como pescoço ou paleta, pois se despedaça­riam. É preciso então submeter a carne a um tratamento es­pecial, à base de “sal e proteínas líquidas” . “A carne muito fresca” , continua Brandt, “é aquosa demais para a produ­ção de hambúrgueres.” A muito velha perde a cor: “Neste caso, jogam-se cubos de gelo na máquina de moer para que a carne se tome avermelhada” . E, apesar de seu aspecto per­feitamente magro, a carne de hambúrguer, uma vez prepa­rada, contém ainda 25% de gordura. Na dispendiosa publi­cidade do McDonakTs os consumidores não encontrarão uma só palavra sobre esses truques. O pseudo-repasto industrial do McDonald’s destaca-se principalmente por causa de sua astuciosa embalagem — uma espécie de Bild Zeitung comes­tível. Mas, assim como os leitores do Bild muitas vezes sa­bem, sem maiores informações, que devem estar sendo en­ganados, assim também alguns fregueses do McDonakTs lá não voltam após uma primeira tentativa. Um dia, limpando o local, encontrei num guardanapo a seguinte mensagem: “McDonakTs — vomitar é grátis!” E em outra ocasião: “Pela primeira vez é pior o que entra pela boca do que o que sai!” Fast food é um alimento insuficiente que pode causar sérios danos à saúde: em crianças que abusam de lanches rápidos, nutricionistas americanos diagnosticaram sinais de elevada agressividade, insônia, pesadelos. A causa: a gostosa fast food reduz as reservas de tiamina e acarreta carência de vitamina B-l, que prejudica o sistema nervoso.

Bom proveito!

Ray Kroc, o criador da rede McDonald’s, sabe exa­tamente o que quer: “Quero dinheiro, do mesmo modo como se quer luz ao acionar um interruptor” . E Abrams, general americano, considera o McDonald’s uma escola- modelo: “É muito saudável para um jovem trabalhar no McDonald’s. O McDonald’s faz dele um homem eficien­te. Se o hambúrguer não está bom, o sujeito é posto na rua. Este sistema é uma máquina que funciona silenciosa­mente, e nosso Exército deveria inspirar-se nele” .

O canteiro de obras

Logo que cheguei ao bairro de Pempelfort, em Düs- seldorf, às seis da manhã, meia dúzia de pessoas espera­vam diante da porta da GBI, uma empreiteira localizada na Franklinstrasse. Como eu, também se dirigiram para lá depois de ler um anúncio publicado no jornal. Um fun­cionário abre a porta. O escritório fica logo ali, no tér­reo: duas escrivaninhas — uma ao lado da outra — e um telefone. Nem arquivos nem armários. E mesmo as escri­vaninhas parecem nunca ter sido ocupadas. No quadro de aviso, uma mensagem: “Esta firma registra seus empre­gados de acordo com a legislação vigente! ** Mas ninguém me pede documentos e nem chego a dizer meu nome.

Antes de nos enviarem, em pequenos grupos, a nos­sos locais de trabalho, ficamos aguardando num dos dois cômodos ao lado, que serve como sala de espera. Papéis de parede descolados, janelas engorduradas, nenhum ba­nheiro: eis o novo status que conquistamos.

Siggi, um sujeito grosseirão, de cabelo encaracolado, as mãos e o pescoço cobertos de ouro, precisa de quatro ajudantes “para uma bela construção em Colônia” . Apresento-me como candidato, e ele me inclui na equipe de operários. Só nos fala a respeito do salário e das con­dições de trabalho dentro do veículo, a caminho do local de serviço.

— O mestre-de-obras quer que vocês trabalhem dez horas por dia — explica-nos. — Vocês vão receber 9 mar­cos por hora; portanto, 90 marcos por dia.

Meia hora depois, ao desembarcarmos no canteiro de obras em Hohenstaufenring, em Colônia, leio numa ta­buleta: A qui E stão Sendo Construídas as Casas Mais bon ita s e as Mansões Mais Elegantes, Todas Com Vista Para um Tranqüilo P a rq u e . O encarre

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gado, que já trabalha há algum tempo para a GBI, leva- nos até os vestiários. Mal acabamos de mudar de roupa, Siggi reaparece.

— Preciso de seus nomes, para o mestre-de-obras —diz.

— Ali — respondo. É o bastante.Nossa equipe está subordinada a um mestre-de-obras

da firma Walter Thosti Boswau (WTB), a sexta maior em­presa de construção civil da Alemanha Ocidental, como descubro mais tarde. As ordens de trabalho nos são da­das exclusivamente por ele. Todo o material utilizado — da vassoura às chapas metálicas — também é fornecido pela WTB. A GBI “simplesmente” se encarrega de con­seguir os operários; nem sequer tem ferramentas e não es­tá encarregada de qualquer construção.

Nenhum de nós entregou os documentos para a GBI; todos, sem exceção, trabalhamos “clandestinamente” . Não há seguro de saúde. Pergunto a um colega:

— Que acontece quando a gente tem acidente?— Eles dizem que você estava aqui só há três dias e

fazem sua inscrição na previdência fora da época. Quan­do muito, só a metade dos trabalhadores... e são cente­nas... está registrada.

Durante os horários de descanso, vamos nos sentar com mais quinze pessoas num barracão que deve ter uns doze metros quadrados. Um carpinteiro, recrutado pelo escritório da GBI de Colônia, conta-nos: “Faz trinta anos que trabalho em construção e nunca precisei dizer para o mestre-de-obras quando eu ia cagar!”

Alguns afirmam que, com o tempo gasto no percur­so de ida e volta, a jornada diária de trabalho passa a ser de quinze horas. “E claro que só pagam por dez horas, nem um centavo a mais.”

Um dos colegas turcos, com mais ou menos cinqüen­ta anos de idade, é uma das vitimas prediletas do mestre- de-obras da WTB. Mesmo executando seu serviço no mí­nimo duas vezes mais depressa que os operários alemães, é sempre xingado de “molóide” . “Se não trabalhar mais

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depressa, vou despejar você junto com o entulho!” — grita o mestre-de-obras.

Quase todas as sextas-feiras temos de esperar algu­mas horas além do expediente, até que tragam de fora o dinheiro de nosso pagamento. Alguns operários parecem saber como o dinheiro chega ali. Enquanto esperamos no barracão, um alemão, trabalhador habitual da GBI, não registrado, conta: “Primeiro, Klose vai até Langenfeld, onde eles têm conta; é de lá que vem a nossa grana” . O colega sabe também por que não sacam o dinheiro de um dos bancos de Colônia ou Düsseldorf: “A conta de Lan­genfeld está no nome de um testa-de-ferro que deposita os cheques da WTB e de outras firmas de construção. Elas não podem abrir conta em Düsseldorf de jeito nenhum, porque o imposto de renda vai direto lá e bloqueia tudo” .

Portanto, temos de esperar por nosso pagamento du­rante duas horas, evidentemente não remuneradas.

Mas a nebulosidade não encobre só as contas da em­presa; todo um clima de conspiração contribui para escon­der também nossa presença no canteiro de obras. É claro que assinamos recibo, porém não temos nenhum compro­vante de pagamento. Inclusive as fichas de controle, em que o mestre-de-obras anota as horas trabalhadas, são re­colhidas após o pagamento. E isso tem uma razão: na cons­trução civil o trabalho temporário, pago por hora, é proi­bido por lei. Para driblar a proibição, subempreiteiras co­mo a GBI costumam emitir faturas, cobrando das cons­trutoras “ quarenta metros quadrados de cimento” — o que significa que devem pagar por quarenta horas de tra­balho temporário (em muitos casos, os mestres-de-obras dispõem de tabelas codificadas para converter as horas de trabalho dos empregados temporários em metros quadra­dos de cimento ou metros cúbicos de areia). Para poder comprovar que em nosso canteiro de obras também é há­bito esconder as fichas com os horários anotados, distraio o mestre-de-obras num momento propício e apanho suas anotações. Numa delas está escrito: “WTA S.A., trinta horas” , logo abaixo a data e sua assinatura.

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Somente na construção civil estão empregados ilegalmen­te cerca de 200 mil turcos, paquistaneses, iugoslavos e gre­gos. Isso representa, por ano, um déficit de 10 bilhões de mar­cos em impostos e contribuições sociais.

Os mercadores de homens beneficiam-se não raramente de proteção política para escapar das penalidades. As leis são muito frouxas. E o governo federal hesita em pôr fim a tais tramóias. Os Estados recusam-se a reconhecer como um de­lito esse tráfico ilegal. É por isso que no plano jurídico o trá­fico de alemães e de outros estrangeiros da Comunidade Eu­ropéia continua sendo só uma infração do regulamento.

Polícia, inspetores trabalhistas ou procuradores da re­pública raramente conseguem agarrar os pequenos partidá­rios da máfia da construção civil: “Mal conseguimos dar con­ta do problema’*, queixa-se, por exemplo, o procurador-geral de Colônia, dr. Franzheim. Atualmente, só na Renânia do Norte-Vestfália, há 4.000 processos em andamento. Os tra­ficantes de mão-de-obra costumam passar calote nos empre­gados ou, por meio de pancadas e ameaças, tomam dóceis os imigrantes “insatisfeitos com o trabalho” . Os inquéritos — pelo menos aqueles que tramitam no Ministério Público de Düsseldorf — referem-se até mesmo a chantagens, com tentativas da extorsão e suspeitas de assassinato.

Mas não são apenas os empresários privados que, indi­retamente, apelam para as locadoras de mão-de-obra. Tam­bém nos encargos públicos as “subfirmas” entram no négocio.

Em 1984, durante a construção do Parlamento de Düs­seldorf, ocorreram várias rusgas: diferentes mercadores de homens queriam fornecer a mão-de-obra.

Uma fiscalização na recém-construída agência oficial de empregos de Munique descobriu cinqüenta operários ilegais. A própria polícia não ignora que operários de empreiteiras foram recrutados para as obras de ampliação do quartel da polícia federal em Hilden. A mesma coisa ocorreu quando da construção do novo Ministério dos Transportes, Correios e Telecomunicações, em Bonn (Bad Godesberg).

Por ocasião da concorrência, o ministro Christian Schwarz-Schilling absteve-se de mandar fiscalizar; assim, pelo menos uma firma de locação ilegal teve lucros gigantescos.

Como em Palermo

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Se tivesse havido real interesse por parte das autoridades, o négocio teria sido desfeito com facilidade. Os traficantes de mão-de-obra da DIMA de Düsseldorf forneceram os operá­rios à sexta maior empresa de construção civil da Alemanha Ocidental, a WTB, que teve papel preponderante na constru­ção do Ministério dos Transportes, Correios e Telecomuni­cações. A própria DIMA é resultante da GBI, a empresa pa­ra a qual trabalhei ilegalmente em Colônia.

Já no primeiro dia de trabalho, fazem-me compreen­der qual é meu verdadeiro lugar. Há mais de uma semana os banheiros dos operários estão entupidos. A poça de uri­na chega quase à altura do tornozelo. “Vá pegar um bal­de, um esfregão e panos de limpeza! Quero tudo isso lim­po e bem depressa!” Vou ao depósito e retiro o material contra recibo. “ Basta assinar com três cruzes” , diz o res­ponsável pelo almoxarifado, um alemão que, enfiado ali, parece não se esforçar muito no serviço.

Os trailers onde ficam os banheiros exalam um chei­ro horrível. Todo o encanamento está entupido. Tenho a impressão de que este trabalho é um trote. O motivo de tanta inundação — os canos entupidos — nunca é resol­vido satisfatoriamente, já que esse serviço nunca é feito por um profissional competente. Portanto, logo tudo volta a alagar. No canteiro de obras há vários encanadores, mas seu trabalho é muito caro. Estão ali para instalar os lu­xuosos banheiros dos futuros proprietários.

Os mestres-de-obras e os encarregados usam banhei­ros particulares, que são trancados a chave. Os operários estão proibidos de entrar lá. Só as faxineiras, que os lim­pam diariamente, têm acesso a eles. Procuro o mestre-de- obras e digo-lhe que meu trabalho não faz sentido, por­que primeiro deveriam mandar um encanador verificar o problema. “Você não foi contratado para pensar, mas para fazer o que lhe mandam. Deixe isso para os burros. Eles pensam melhor porque têm a cabeça maior que a sua!” , diz sem rodeios. Muito bem! Como inúmeros outros imi­

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grantes, sou obrigado a fazer o que me ordenam sem pro­testar, e ainda agradecendo por ter um emprego. Pensar assim — agora e em situações posteriores — ajuda-me um pouco a controlar a repugnância, a humilhação e a vergo­nha e a transformá-las numa fúria solidária para com os outros.

Enquanto limpo toda esta imundície com panos, es­fregões e baldes, ouço as observações dos alemães que usam o banheiro. Um deles, ainda jovem, diz num tom amável:

— Até que enfim arranjaram uma faxineira para lim­par o banheiro!

Dois outros, de uns 45 anos, põem-se a conversar:— O que fede mais que o mijo e a merda? — per­

gunta um deles.— O trabalho! — responde o segundo.— Não! Os turcos! — grita o primeiro, de seu

mictório.Outro operário alemão, que está urinando, pergunta-

me qual é minha nacionalidade.— Turco — respondo.Ele se mostra simpático:— Mas, claro! É bem típico. Vocês é que dão sumi-

ço na nossa merda. Nenhum trabalhador alemão aceita­ria tal serviço.

De vez em quando, Hugo Leine, o mestre-de-obras, vem verificar o que estou fazendo. A distância, consigo perceber que se aproxima graças a seu radiotransmissor, que vive chiando, estalando e emitindo outros ruídos. As­sim, acelero o ritmo do trabalho.

— Presto, prestissimo, amigo! — estimula-me.— Eu não é italiano — explico-lhe num tom amisto­

so. — Eu é turco.Então ele resolve engrossar:— Mais um bom motivo para já ter terminado o ser­

viço. Vocês, tocos, conhecem bem esse trabalho, porque seus banheiros vivem entupidos!

Sem qualquer aviso, Hugo Leine já mandou embora vários imigrantes que durante o expediente foram fazer

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uma ligação importante na cabine telefônica situada bem em frente ao canteiro de obras.

Nos dias seguintes, debaixo de um calor de trinta graus, arrastamos placas de concreto até o sexto andar. Somos mais baratos que o guindaste, deslocado para ou­tro canteiro de obras. Leine vigia para impedir descansos suplementares. Na semana seguinte, sou transferido para os serviços de transporte do cimento. Minha tarefa é em­purrar os “japoneses” — nome que dão aos enormes car­rinhos de mão — cheios de cimento já preparado para ser despejado nos alicerces. O carrinho quase arranca os bra­ços da gente, e é preciso apoiar-se com toda a força para que ele não vire. O encarregado Heinz — um dos homens da GBI — diverte-se enchendo generosamente meu carri­nho para em seguida assistir ao esforço que faço para man­ter em equilíbrio o “japonês” que vai ficando mais pesa­do. Atribuo meu cansaço ao calor. Durante o trajeto, o carrinho de mão bate numa tábua e dá um pequeno sola­vanco. Não consigo mais segurá-lo: ele vira e o cimento espalha-se pelo chão. Alguns trabalhadores correm para me ajudar a recolher o cimento antes que endureça. O mestre-de-obras aparece e começa a gritar: “Você aí, mal­dito gambá! Além de não saber contar nem até três, não olha por onde anda. Mais uma dessas e pode voltar para a sua Anatólia e ficar por lá, brincando na areia!” Na via­gem seguinte, o encarregado lança-me um sorriso sardô- nico e enche o carrinho até a borda, apesar de meus pro­testos. Já no primeiro solavanco, o “japonês” começa a transbordar. Merda! Mesmo com todo o esforço, não con­sigo mantê-lo equilibrado. Na primeira curva, o carrinho quase me derruba, e, mais uma vez, toda a carga se espar­rama nos entulhos. Alguns operários alemães põem-se a dar vivas. Rodeiam-me, porém não me ajudam. E eu, so­zinho com a pá, me esfalfo para separar o cimento dos entulhos. Enquanto trabalho ferozmente, vigio para ver se Hugo Leine se aproxima. Por sorte, o mestre-de-obras enfiou-se em outro lugar. Um dos trabalhadores alemães avisa-me que o pneu de meu “japonês” está furado. Há

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um prego cravado nele. Eis por que eu não conseguia equilibrá-lo! Ao longe, o encarregado ri sem parar. E, quando passo novamente a seu lado, diz-me num tom de triunfo: “Quem sabe assim vocês acabam entendendo que não têm nada a fazer aqui!”

Mais tarde, supreendendo-o no banheiro rabiscando a parede com uma caneta hidrográfica: “Morte a todos os tur... ” Tento pedir explicações, porém ele me cospe nos pés e sai, deixando incompleta sua obra.

Poucos dias depois, ao remover com a pá o cascalho do quinto andar, quase caí dentro de um poço para insta­lações elétricas coberto por uma fina placa de isopor. Fe­lizmente só escorreguei e enfiei uma perna dentro do bu­raco. Sofri uma leve luxação, e um tornozelo ficou esfo­lado. Poderia ter quebrado o pescoço, pois o poço tem oito metros de profundidade. O encarregado Heinz surgiu co­mo por acaso e disse: “Você teve uma sorte danada! Ima­gine só se tivesse caído lá dentro! Mais uma vaga por aqui!' ’

Certa vez, roubaram do armário de um colega ale­mão sua carteira com 100 marcos. Evidentemente, logo suspeitaram de mim.

— Olhe aqui! Durante o trabalho você sumiu por uns quinze minutos. Aonde é que foi?

E outro alemão complementou:— É isso aí! Mande esse cara abrir a carteira!Um terceiro operário alemão, Alfons, às vezes cha­

mado de Alfi, tomou meu partido:— Mesmo que Ali tenha 100 marcos na carteira, is­

so não prova nada. Qualquer um de nós poderia ter rou­bado o dinheiro. Ou até algum estranho. Por que logo ele?

É ainda Alfi quem me estimula a aprender melhor a lingua alemã, dando-me um tapinha no ombro. “Você fala melhor do que.pensa” , diz ele. “É só se esforçar mais um pouco...”

Alfi ficou desempregado durante vários anos porque a agência oficial de empregos de Düsseldorf lhe arranjara uma colocação na firma Bastuba. Ele trabalhava o dia in­teiro dentro da água fria, limpando os canais e suas mar-

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Ali, operário clandestino da construção civil

gens, por ordem do Estado da Renânia do Norte-Vestfália. Só algum tempo depois percebeu que a Bastuba não o re­gistrara e, portanto, ele trabalhava ali ilegalmente, na mes­ma situação de seus colegas iugoslavos. Quando levantou essa questão junto ao chefe, foi posto na rua. Tempos de­pois um amigo deu-lhe o endereço da GBI.

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Uma vez perguntei a Klose, chefe da filial de Colô­nia, o que significa GBI. Foi esta a explicação que me deu: “É a sigla de Giraffe (girafa), Bar (urso) e Igel (ouriço)” 1. Desse modo, continua ludibriando todo mundo, e a maior parte dos operários acredita no que ele diz. A empresa já é tão estranha e seu nome muda com tanta freqüência que é bem possível acreditar em semelhante explicação.

Temos um novo colega alemão: Fritz, um loiro de vin­te anos que se alistou nas Forças Armadas e aguarda sua convocação. Para ele esse emprego não passa de uma so­lução provisória. Fritz introduz no canteiro de obras uma espécie de jogo a dinheiro, que passamos a praticar nos porões da construção durante o horário de descanso. O jogo é o seguinte: quem conseguir atirar uma moeda o mais perto possível da parede sem tocá-la ganha as moedas dos outros participantes. Estou com sorte e venço sempre. Fritz se irrita: “Vocês, turcos, só pensam em embolsar a nossa grana. Só visam os próprios interesses e, assim que vira­mos as costas, tentam nos passar a perna” .

Em outra ocasião ele me diz: “Nós, alemães, é que somos inteligentes. Vocês, não! Vocês se reproduzem co­mo coelhos só para viver à nossa custa!”

E, voltando-se para os outros, acrescenta: “De vez em quando eles saem da toca” .

Devido à imprudência dos telhadores, a armação do telhado se incendeia. Logo chegam várias viaturas do corpo de bombeiros e da polícia. Com o telhado ainda fumegante, sou mandado para lá, junto com outros operários, para remover os escombros. A sola de meu tênis começa a der­reter tão logo piso as vigas que estalam por causa do fogo.

Perto de nós, um grupo de bombeiros e policiais nos observa enquanto jogamos no chão os objetos ainda fumegantes. Sem qualquer roupa de proteção, ali esta­mos nós, debatendo-nos sob seus olhos. Tudo absoluta­mente irregular. Não consigo nem imaginar se têm conhe­

1 GBI é, na verdade, a sigla de Gesellschaft für Bauausfuhrungen und Indus- triemontage (Sociedade de Construção e Montagem Industrial) (N. do E.).

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cimento ou, pelo menos, uma vaga idéia disso. Nada di­zem. Também lucram conosco. Fazemos o trabalho sujo e perigoso.

Hinrich, um colega alemão de vinte anos, casado, pai de um filho, inquilino com o aluguel atrasado, já há al­guns dias anda de lá para cá com o rosto inchado. Está com febre alta e vários dentes supurados. É pressionado a não procurar um dentista. Até que, não agüentando mais, pede a Klose, o homem da GBI de Colônia, uma folha de consulta1. Hinrich ignorava que não havia sido registra­do e, portanto, trabalha ilegalmente. Fica furioso:

— Mas isso é proibido! Vou denunciar todos vocês!Resposta de IQose:— Suma daqui! Não quero mais ver a sua cara! Posso

processar você por calúnia, se continuar afirmando que trabalha aqui ilegalmente. A culpa é sua. Foi você que de­morou para nos entregar os documentos, e por isso não pudemos registrá-lo. Você mesmo cometeu o delito.

Em face de tudo isso, Hinrich não se atreve a dar parte à polícia. No dia seguinte, uma ambulância leva-o para o hospital. Septicemia. Risco de vida.

Numa sexta-feira, após o término do expediente — havíamos acabado de trocar de roupa —, Hugo Leine apa­rece e diz: “O serviço mais pesado já foi feito. Não preci­samos mais de vocês” .

E, assim, depois de seis semanas, termina minha pas­sagem pelo canteiro de obras. Alguns operários da equipe da GBI são enviados para outra construção em Bonn/Bad Godesberg. Sempre em situação ilegal, são contratados pela mesma empresa, agora com o nome alterado: DIMA. O ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações manda construir um novo ministério. Infelizmente o “ tur­co” Ali não está entre os operários.

1 Na Alemanha Ocidental, o empregado recebe do empregador uma folha de consulta, que lhe dá direito a tratamento médico e remédios gratuitos (N. do T.).

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Alfred Keitel, cinqüenta anos, natural de Düsseldorf, foi um dos empresários que, nos últimos anos, levantou uma for­tuna quase incalculável. Em 1971, junto com um sócio, fun­dou a Keitel & Frich S. A. e rapidamente se lançou como in­termediário de mão-de-obra da indústria da construção ci­vil. Desde 1982 esse ramo de atividade é proibido por lei. Pou­co antes, Keitel adquiriu a Sociedade de Construção e Mon­tagem Industrial (ou GBI) e começou a se expandir.

Quando fui trabalhar para a GBI em Colônia, no verão de 1984, fazia muito tempo que os fiscais do imposto de ren­da estavam atrás de Keitel. Contudo, os negócios ilegais con­tinuaram correndo às mil maravilhas. As investigações pro­varam que Keitel havia desviado mais de 11 milhões de mar­cos entre impostos sobre transações e salários, além de mi­lhões e milhões em contribuições sociais que foram omitidas. Decretaram a prisão preventiva de Keitel, que, no final de 1984, foi condenado a quatro anos e meio. Mas conseguiu se safar, sem grandes prejuízos, porque apresentou um ates­tado médico de que era vítima de “paixão patológica pelo jogo” . Porém, o grande jogo, o que praticava com seus qui­nhentos empregados, segundo informações dos fiscais do im­posto de renda, não foi mencionado.

E hoje em dia Keitel continua a assumir francamente o que faz: “Não tenham dúvida, conheço muito bem esse ra­mo. Todas as indústrias da construção civil, é .claro, todas as manhas necessárias... Só que, ao fazer negócios com elas, tomamos cuidado para não nos comprometer” .

No entanto prossegue: “Os grandes projetos, as gran­des obras não iriam adiante sem as empreiteiras. Os Centros de Estudos para Grandes Obras é que se encarregam dessas coisas, e todos trabalham com as empreiteiras. Não se cons­truiria nada, em grande escala, sem as empreiteiras” .

Eis o que Keitel fala de si mesmo: “Se eu não tivesse si­do traído, meus negócios continuariam a pleno vapor! Nin­guém conhece todos os truques desse setor, nem os fiscais nem a previdência social — exceto as pessoas que estão diretamente envolvidas. Esta é a vantagem quando se é processado: nin­guém pode determinar como as diferentes empresas se inter­ligam. Os contratos com as grandes empresas são apenas for­mais. Faço um acordo com elas — salários por hora sem adi-

Um empresário moderno

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cionais —, mas, na prática, assinamos outro contrato, já que os salários por hora são proibidos. Quem vai controlar? No tribunal se poderia dizer: 'Provem o contrário!’

“Quem está de fora nem sequer imagina o que aconte­ce. Aliás, não teriam me pegado, se meu sócio, que também participou de tudo, não tivesse enlouquecido. Já fazia muito tempo que a polícia e o fisco andavam atrás de mim. Mas nunca haviam conseguido” .

Keitel também fornece informações a respeito de suas margens de lucro: “Os operários recebem um bom dinheiro, ali, na mão. Bem, nem sempre é um bom dinheiro, mas está na mão!

“As firmas de construção civil costumam pagar de 22 a 33 marcos por hora de trabalho. O lucro dos empreiteiros vai depender de quanto eles pagam para seus operários. De quantos trabalhadores eles registram, se todos ou só alguns.

“ Hoje em dia, o salário bruto de um operário especiali­zado está por volta de 16 marcos. Quanto aos imigrantes... bem, são sempre explorados, trabalham por qualquer ninha­ria. Mas os alemães não. Os alemães conhecem seus direitos, pelo menos em parte. Já os imigrantes... 10,8 marcos... tan­to faz” .

Fazendo um simples cálculo, temos o seguinte:Para cada hora de trabalho, Keitel embolsa a quantia

de 14 a 25 marcos. Ora, normalmente um operário da cons­trução civil trabalha dez horas por dia o que perfaz a soma de 140 a 250 marcos por dia e por trabalhador. Um total de quinhentos operários resulta em algo entre 70 mil e 125 mil marcos diariamente. Desse dinheiro Keitel deduz um míni­mo para despesas com transporte e contabilidade, encargos fiscais e contribuições sociais. Ou não.

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A conversão(ou: Cortar cabeças sem bênção)

(...) fui forasteiro, e me abrigastes (...). Em verdade vos digo, quan­tas vezes fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.

(Mateus 25, 35 e 40).

Sempre na pele de Ali, tento a sorte junto à Igreja Católica, pois, como muçulmano, ouvi dizer que também Jesus foi expulso de sua terra, conviveu com estrangeiros e condenados de sua época e expôs-se aos ataques e às per­seguições mais injuriosas. Mesmo assim, não procuro a Igreja na condição de suplicante — o que seria presumí­vel. Não vou pedir asilo nem ajuda material. Não tenho a intenção de exigir demais do funcionário do Senhor nem de levá-lo a cair em tentação. Só quero o batismo! Por quê?

a) Porque desejo ser membro da Igreja, não por opor­tunismo, mas porque depois de muito tempo familiarizei- me com a vida e os ensinamentos de Cristo e achei-os con­vincentes.

b) Porque minha namorada — alemã e católica — só pode casar comigo depois que eu pertencer à comunidade dos fiéis, como os pais dela exigem.

c) Porque espero escapar da ameaça de expulsão imi­nente tomando-me católico.

(Ficarão no anonimato os padres e dignitários católi­cos. As conversas com os membros da Igreja são au­tênticas.)

Visto-me como operário, com uma roupa miserável. Na sacola a tiracolo, levo uma garrafa térmica.

Primeira visita: residência paroquial num bairro ele­gante, com jardins que lembram um parque. Um padre

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do escalão superior, com cerca de sessenta anos, abre li­geiramente a pesada porta de carvalho, ornamentada com ferro forjado, e olha para mim com muita reserva.

— Não tenho nada para dar. Procure a assistência social. — Percebe minha perplexidade (eu não contava com isso) e, sem me dar tempo para expor meu pedido, expli­ca claramente:' — Muitas pessoas vêm até aqui pedir es­molas, mas não dou. É uma questão de princípio! Esta é uma residência paroquial e não...

Interrompo-o:— Eu não quer dinheiro, só batismo.Ele abre um pouco mais a porta e examina-me com

um olhar crítico e curioso.— Ah, bom! — exclama. — É que me aparecem tan­

tos malandros que querem viver à custa dos outros... Mas onde o senhor mora? Que idade tem a criança? Quando será o batismo?

Digo-lhe meu verdadeiro endereço e, como se trata de uma rua elegante, onde Ali, segundo sua aparência, mal poderia pagar uma semana de aluguel, acrescento:

— Eu mora lá em porão. Batismo não é para crian­ça. É para mim. Eu é turco, muçulmano. Mas agora eu quer batismo, porque Cristo é melhor. Mas depressa, porque...

Ele me fita, espantado e incrédulo, como se, ao invés do sacramento do batismo, eu tivesse pedido minha cir­cuncisão. Volta a fechar a porta, deixando apenas uma fresta minúscula, e diz:

— Um momento! Vamos com calma, com muita cal­ma... A coisa não é tão simples. Em primeiro lugar, algu­mas condições precisam ser preenchidas... — E, com um olhar de desprezo para minha roupa esfarrapada, acres­centa: — Além do mais, não aceitamos qualquer um em nossa paróquia.

Chamo-lhe a atenção para a urgência de meu pedido porque corro o risco de ser expulso do país a qualquer mo­mento. Mas isso não o comove.

— Calma, vamos com calma. Não tenha tanta pres­

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sa! Antes de mais nada, preciso discutir o assunto com o conselho paroquial. Enquanto isso, vá providenciando um atestado de residência, assinado por uma autoridade po­licial, como é de praxe.

Atrevo-me a responder:— Mas Cristo também sem residência fixa, teto!Como se ouvisse uma blasfêmia, o padre, sem qual­

quer explicação, bate a porta de um só golpe. Toco a cam­painha novamente para convencê-lo da seriedade de mi­nha determinação em tomar-me membro da valorosa co­munidade católica. Ele abre a porta bruscamente e põe-se a repreender-me:

— Isto aqui não é albergue noturno. Se não me dei­xar em paz, vou chamar a policia!

Pela última vez tento lembrá-lo de sua consciência cris­tã e de seu dever profissional. Caio de joelhos e, com as mãos postas, suplico:

— Em nome Cristo, batismo!Como resposta, ele bate a porta com violência.Eu não contava com isso. É claro que me enganei de

endereço. Há ovelhas negras por toda parte. E aqui, nes­te subúrbio residencial, onde os ricos desejam ficar entre os ricos, eu como Ali obviamente não teria vez.

Não desisto. Vou procurar outro padre, na paróquia vizinha, onde as casas não se escondem atrás de muros al­tos nem possuem enormes jardins. Em frente de cada ca­sa, há um pequeno retângulo de terra, um pouco maior que uma sala de estar, a que todos têm acesso. Aqui vive a classe média e inclusive operários, nos vários conjuntos residenciais.

Inseguro por causa da primeira experiência hostil e querendo me prevenir, peço a AbduUah, um de meus co­legas de trabalho, que me acompanhe para servir de teste­munha e, eventualmente, de protetor.

São cinco horas da tarde. A igreja está deserta. Os si­nos tocam mecanicamente, chamando os fiéis para a missa. Mas ninguém atende ao chamado, talvez porque faz muito frio. A igreja não tem aquecimento, e em seu interior o frio

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é tanto que há uma camada de gelo na pia de água benta. Com passos vagarosos e um pouco embaraçados, Abdul- lah e eu começamos a caminhar na direção do altar, o que desperta a atenção do padre, abandonado e sozinho.

Certamente ele já havia se preparado para o fim dos trabalhos do dia, pois, assim que nos vê, tenta se esguei­rar para a sacristia. Porém, sou mais rápido.

— Desculpa — digo, barrando-lhe o caminho. — Só uma pergunta. Eu é turco e quer batizar, virar cristão. Possível?

O padre nos olha espantado.— Não, não é possível! Não dá! — responde baixi­

nho, já sem nos encarar, erguendo o olhar para o céu, co­mo se seu superior hierárquico pudesse abençoá-lo por essa atitude tão pouco cristã.

— Por que não? — quero saber.— Não é possível. Isso demanda um ensinamento de

alguns anos — murmura.— Mas eu conhece bem livro de Cristo, eu sempre lê...— Não, não posso fazer isso. Sem a autorização do

cardeal, não posso. De jeito nenhum...— Mas pastor faz batismo, não?— Não, de jeito nenhum!— Eles não permite?— Não, não e não! Ser batizado significa oficialmente

ser admitido na Igreja Católica, não...— Ah! Senhor não é padre? — provoco-o.É óbvio que ele não fica contente com a pergunta. Está

ferido em sua vaidade.— Mas claaaaaro que sou!— Senhor é chefe desta igreja? — insisto.— Sim! — responde energicamente.— Então pode fazer batismo! — insisto.— Só posso batizar crianças. No caso de um adulto

preciso da autorização do arcebispo de Colônia. Além dis­so, há um curso de ensinamento religioso de no mínimo... no mínimo... — Hesita. Parece compreender que não sou tão ignorante. — No mínimo um ano.

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— Tanto tempo? Um ano?...Minha pergunta inquieta e angustiada provoca-lhe no­

vo impulso (não sem satisfação) de se desembaraçar de mim:

— Às vezes pode levar mais tempo ainda. É um pro­cesso vagaroso, gradual...

Aponto para a pia batismal, querendo demonstrar- lhe meu conhecimento do assunto.

— E depois batismo. Molha corpo todo ou só cabeça?A seus olhos sou provavelmente o último dos sel­

vagens.— Não — responde lacônico, fingindo não ter ouvi­

do minha observação sacrílega.— Mas quem sabe chefe, arcebispo, pode fazer al­

guma coisa.' O padre não quer que eu tenha nènhuma ilusão:

— É pouco provável! Bem pçuco provável!Continuo sem entender nada. Tentando encontrar

uma explicação para sua recusa, pergunto-lhe:— É porque muita gente quer entrar na igreja?Não parece ser o caso.— Não, não é isso, mas...O “mas” fica suspenso no frio glacial. Não,há ne­

nhuma outra explicação. Já que no campo transcenden­tal os argumentos não foram satisfatórios, tento levá-lo para o lado prático. Indico-lhe com o dedo a grossa ca­mada de gelo na pia de água benta:

— Joga poüco descongelante, e gente logo faz sinal- de-cruz.

Essa proposta construtiva também não o impressio­na, e ele sai, abandonando-nos. Porém sou mais rápido e chego antes à residência paroquial, do lado da igreja. Toco a campainha. Como numa farmácia de plantão, abre- se uma estreita portinhola. Uma criada velha espia pela fresta. O padre, que acaba de chegar, ao nos ver ali per­cebe que não ficará livre tão facilmente, tamanha é mi­nha determinação em receber o sacramento do batismo. Deixa-nos entrar em seu escritório paroquial.

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— Para que o senhor não me perturbe mais, vou lhe dar um endereço aonde deve ir. Mas, como já lhe disse, não se iluda. Tudo tem seu tempo!

Com passos lentos, refugia-se atrás de uma imponente escrivaninha e põe-se a folhear cerimoniosamente um anuá­rio da igreja. Com uns 55 anos, aparência saudável e tran­qüila, não ostenta aquele ar dè desprezo e arrogância de seu colega da paróquia vizinha. Mais benevolente e sosse­gado, possui algo da nulidade do funcionário que passa a vida inteira atrás de um guichê, atendendo ao público, mesmo que não tenha mais selos para vender, ninguém se interesse por timbres comemorativos e a tabuleta deixada por ele — Fechado PROVISORIAMENTE — ainda sirva para prevenir os últimos fregueses extraviados.

Não quero que ele se furte à responsabilidade tão fa­cilmente, até porque, a seus olhos, minha exigência pare­ce uma proposta imoral.

— Se eu era criança, batismo mais rápido? — insisto.— Sim, seria mais rápido. Se o senhor fosse um be­

bê, no colo da mãe, aí, sim! Mesmo nesse caso, não seria tão rápido. Deveriam assegurar que a criança receberia uma educação católica...

EU: Hoje muita criança batizada, muito pai não- ca­tólico de verdade!

Padre (franzindo o cenho, severo): Tem razão. Mas isso não acontece conosco.

EU: Eu tem muito colega batizado, mas não católico de verdade. Colega ri de mim porque eu acredita em Cris­to e fala de livro de Cristo. Más todo mundo tem Deus, não é?

Padre (sem se afastar do assunto e com um tom bas­tante formal): Para batizar adultos preciso da autoriza­ção do arcebispo de Colônia, o cardeal Hõffner.

EU: Ele é boa pessoa?PADRE: É ele quem autoriza e diz se o ensinamento

gradual... enfim, se o ensinamento deverá durar no míni­mo um ano...

EU (contente): Então ele também faz batismo?

65 r

Padre (categórico): Não!EU: Mas eu ouve dizer qualquer padre pode fazer

batismo...Padre (folheando sem sucesso o livro, à procura do

endereço): Em princípio, sim, mas...EU: E eu tem mais um problema. Eu quer casar, mas

pais de moça não deixa ela casar com muçulmano... E se eu casa com ela, eu pode continuar aqui; senão, eu preci­sa ir embora, expulso para Turquia.

ABDULLAH: (vindo em meu socorro para explicar o problema deforma convincente): Ele vai parar na prisão se voltar para a Turquia!

Padre (fingindo nâo ter ouvido essa observação in­cômoda e3 sereno, continuando a folhear seu anuário): Mas onde é que está o endereço do Felicitas?

ABDULLAH: É por isso que ele precisa ser batizado bem depressa.

EU: Hoje mesmo, era bom! Ou amanhã, depois de trabalho.

PADRE: Está fora de questão. Não é possível!EU: Eu pode pagar alguma coisa.PADRE: Não. É de graça. O batismo não custa na­

da. Todos os sacramentos são gratuitos.Eu: Mas se eu dá um pouco dinheiro para criança pa-

gã, coisa anda mais rápido?PADRE: Não e não! Não há nada a fazer, absoluta­

mente nada!ABDULLAH: É que ele não quer prestar serviço

militar.EU: Eu não quer dar tiro em ninguém. Eu não quer

matar gente. Turquia agora igualzinha Alemanha de an­tigamente, com Hitler. Turquia é ditadura...

PADRE: Este assunto não tem nada a ver com o ba­tismo. São motivos alheios às convicções religiosas.

Eu: E quando gente é batizado tem grande festa com paróquia, e coisa assim, não?

Padre (tentando desiludir-me): Não.

6 6 v

EU: Não?! Eu achava que tinha grande festa, dança, tudo.

PadrE: Não, de jeito nenhum. Não. Pelo menos não aqui, conosco.

Eu: Eu já leu Bíblia trás para frente, frente para trás...Padre: É o que todos dizem. Acham que já sabem

tudo...Eu: Senhor, faz pergunta. Qualquer pergunta!PADRE: Pergunta? Para quê?EU: Para ver se eu...Padre: Não é esse o problema. O problema são as

prescrições segundo as quais a Igreja admite pessoas adul­tas. E que perguntas eu deveria fazer?

EU: Sobre Cristo...Padre (como se eu tivesse dito um disparate): Ah!

Sobre Cristo?EU: Sobre vida dele, coisa assim...Padre (como se Cristo nunca tivesse vivido): Ah, a

vida dele? Sei. Bem, vejamos... Espere um pouco... (En­tão, à queima-roupa): Como foi fundada a Igreja?

Eu (sem precisar pensar muito): Cristo fala assim pa­ra Pedro: “Faz Igreja por mim. Agora!”

Padre: Hum... Hum... Sim, podemos dizer que sim...EU: E agora pergunta mais difícil!Padre: Não é preciso. Isso não leva a nada, só lhe

cria falsas esperanças.Eu: Por favor! Uma só mais!Padre (com grande sacrifício): Está bem... Por que

hoje em dia existem tantas igrejas que invocam o nome de Cristo?

EU: Ah, eu sabe! Por causa Lutero. Ele fez revolu­ção. Ele não acreditava em papa. Por isso tem muita igre­ja também boa. Elas quer Cristo vive, mas não sabe mui­ta coisa; Lutero quer fazer igreja própria, porque outra não era bem dirigida, perde pastores...

Padre (surpreso): Sim, sim, já está bom...Eu: Eu leu tudo. Eu leu também livro que vem com

Bíblia. Cate... Cate... Como chama?

6 7 '

Padre: Catecismo. Está certo. Acredito que o senhor conheça bem a Bíblia, sem problemas. Mas isto não serve para nada neste momento. Preciso da autorização do ar­cebispo para batizar um adulto.

EU: Mas, se agora... se agora eu estava muito doen­te, meu coração não batia mais, e eu pedia: “Por favor, batismo” ?

Padre: Em caso de morte, é claro que sim. Quero dizer, se realmente há risco de vida...

EU: E se eu tinha muita dor agora? Assim, de repen­te? Não podia fazer batismo? Coração não anda bem. Verdade!

Padre: Sei, sei. Seu coração não anda bem, não é?EU: É! Não bate direito. Quando eu trabalha pesa­

do, eu vê tudo preto em frente. Uma vez eu foi parar em hospital. Seção intensa terapia. É assim que gente diz?

P a d re (corrigindo): Unidade de terapia intensiva. Ainda assim, não vejo motivo para abreviar o tempo de sua formação religiosa. Só através do curso é que sabere­mos se o senhor realmente se firmou na fé cristã, se real­mente faz parte dela.

EU: Mas isso não adianta nada se eu morre antes. Se eu não casa com noiva alemã, eles me manda voltar para Turquia. E, quem sabe, eu até morre sem batismo. E daí eu não fica com Cristo, em céu.

P ad re (suspirando): Eu não disse isso. Claro que po­de haver exceções.

EU: (contente): Então eu vai ter batismo logo?P a d re (desesperado com minha lentidão de raciocí­

nio): Não, meu Deus! Não! Ainda que o senhor morra sem ser batizado, isto não significa necessariamente que será amaldiçoado por toda a eternidade. Em determinadas cir­cunstâncias podemos contar com uma espécie de batismo inconsciente. E Cristo, em sua bondade incomensurável, também dá oportunidade a pagãos e adeptos de outras re­ligiões de viverem em seu espírito.

Eu: Mas isso não muito seguro. Melhor ter logo ba­tismo. Vem! Coração nada bom.

68 *

PADRE (indiferente): Já sei, mas a coisa não funcio­na assim. Há alguns empecilhos.

EU: Mas principal é que eu já vai ser católico.Padre (desesperado): Sim, pode-se dizer que sim.

Mas um batismo sem certificado não vale nada. Mais uma vez, nãol Não vou batizá-lo porque sei que o senhor está fingindo.

EU: Mas é verdade! Senhor pode chamar médico!Padre: Não é preciso. Além disso, se eu o batizas­

se, estaria sujeito a medida disciplinar.EU: Com Maomé coisa é mais fácil. Quem quer po­

de logo ser maometano.Padre (não sem algum desprezo): É... Maomé faci­

litou as coisas para vocês.EU: Qualquer modo, Maomé mais tolerante. (O pa­

dre finge não ter ouvido a censura e se cala.) Mas, antiga­mente, missionário chegou com conquistador em país es­trangeiro e foi logo dizendo: “Você, você e você... agora tudo católico” . Mesmo quem não queria. E por que hoje leva tanto tempo?

PADRE: É verdade, mas que católicos deveriam ser! Naquela época, as coisas eram assim... como posso di­zer?... feitas muito mecanicamente. Carlos Magno, por exemplo, dizia para os saxões: “ Batismo ou a cabeça ro­la!” (Ri com prazer.)

EU: Assim... zás!PADRE: Mas isso aconteceu no ano 800 depois de

Cristo.EU: É, mas com índio também zás! E ínclio nem sa­

bia por quê.PADRE: Mas viu no que resultou tudo isso? Eles pas­

saram a ter um ódio mortal de todos os cristãos.Eu: E índio fez mesma coisa (gesto de cortar cabeça)

com cristão?PADRE: Mas claaaaaro!EU: E papa abençoou?PADRE: Abençoou? Que bênção? Ninguém precisa de

bênção para cortar cabeças! (A expressão de seu rosto, até

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então bondosa, dá lugar a um sorriso irônico, infantil, in- quisitorial.)

Eu: Mas papa falou “tudo bem” ?PADRE: Não sei qual era a atitude dos papas naque­

la época. Eles não deveriam saber o que os missionários faziam lá na América. (Lembrando-se do propósito de mi­nha visita, muda de assunto): Quem quer expulsá-lo da Alemanha?

EU: Policia de estrangeiro.Padre: (bastante impressionado): Ah, a polida de es­

trangeiros!EU: E se gente casa com alemã, eles entra no quarto

para ver se gente dorme junto.Padre: Aqui em nossa escola temos muitos turcos. Eles

sempre participaram de minhas aulas de religião, mas não tinham grande interesse... nem sabiam o que é ser católico.

EU: E agora que eles quer batismo?Padre (horrorizado): Pelo contrário! Nem um úni­

co sequer...EU: E eu? Eu vai ter que aprender muita coisa? Re­

za, hino?PADRE: O senhor tem que aprender é internamente,

com a alma e não externamente. Internamente, entendeu?Começo a rezar o Pai-Nosso. Quando chego ao fim

— “livrai-nos de todo mal” — ele me interrompe e volta a me humilhar:

— Como todo muçulmano, o senhor tem o costume de ficar repetindo as orações sem ao menos entendê-las, igual às crianças. Bem, mas agora preciso fechar a igreja.— Levanta-se, disposto a se livrar de mim, e põe em mi­nha mão um pedaço de papel: — Aí está o endereço do Centro de Orientação para a Fé, Felicitas. Eles decidi­rão o que fazer.

O responsável pelo Centro de Orientação para a Fé, Felicitas, é um padre magro, alto, de certa idade. Tem os modos elegantes e ligeiramente distanciados de um aris­

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tocrata. Lembra-me um pouco o “ Grande Inquisidor” de El Greco.

Esta instituição da Igreja Católica, destinada àque­les que desejam se converter, não me parece muito freqüen­tada. Sou a única pessoa na sala de espera e me dou conta dos imensos escritórios vazios que impressionam por seus móveis antigos; nada que sugira um local de trabalho.

Vestido com minha surrada roupa de trabalho, sinto- me um pouco deslocado e miserável neste lugar. Depois de relatar meu caso de forma convincente, mas um pouco desesperada, apelo ao padre responsável pela instituição para que tome uma decisão rápida, não burocrática, e le­ve em conta a urgência da situação.

Eu: Por favor, por isso eu precisa batismo depressa.P a d re (não levando a sério meu pedido, reage um

pouco ironicamente): E quanto tempo acha que isso pode levar? Uma hora, por exemplo?

Eu (alegrando-me): Pode? Muito obrigado! Se leva mais de uma semana, eu vai para a cadeia, lá em Turquia. Quando é batismo?

P a d re (lacônico e formal): Sou um especialista, mas não posso dizer.

Eu*. Então senhor pode fazer pergunta. Eu já leu tu­do que Cristo falou. Eu acha tudo muito bom.

P ad re (sem se impressionar): Quem o mandou aqui?Eu (dizendo o nome do padre que, para se ver livre

de mim, me deu este endereço): E ele disse que não podia fazer batismo, mas que aqui pode e eu também ganha cer­tificado.

PADRE: Há quanto tempo o senhor está na Alemanha?

EU: Dez anos. E eu quer continuar aqui. Porque eu é curdo e lá em Turquia eu vai para cadeia. Eu fez traba­lho político contra a ditadura.

PADRE: Se o senhor deseja permanecer na Alemanha, não precisa voltar para a Turquia.

EU: Mas eu vai precisar ir, porque eu não tem traba­lho, e visto de permanência é só para mais três meses. E

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eu também acha Cristo melhor que Maomé, Maomé proíbe muita coisa. Cristo está do lado de perseguido.

P adre (parece ter outra idéia sobre Cristo): Sei. E o senhor conhece outros cristãos, além de sua noiva?

EU: Sim. Colegas de trabalho, tudo batizado. Só que eles sempre dá risada quando eu fala de Cristo. Eles fica lendo Bild em hora de descanso. Mas eu não, eu fica len­do Bíblia.

PADRE (ignorando a realidade): Tudo vai depender dos bons contatos com outros cristãos alemães. Aqui não há propriamente uma aprendizagem, mas um comporta­mento. Importa mais a vida que o estudo.

EU: Sim, eu entende. Eu quer viver e me comportar. E o que eu precisa fazer para me aceitar?

PADRE: Viver com a Igreja.EU: Fazer... quê?!PADRE: Ir à igreja. ■Eu (com orgulho): Mas eu vai. Eu sempre vai domin­

go. (Para que ele acredite em mimt digo-lhe o nome da paróquia e da igreja.)

PADRE: Sei, sei.EU: Verdade! E eu também sabe rezar. E canta bem.PADRE: E quantas vezes o senhor costuma ir à igreja?EU: Uma vez, domingo.PADRE: E nestes últimos dois anos, há quanto tem­

po o senhor tem ido?EU: Quatro meses, todo domingo.P adre (calculando): Quatro vezes quatro... de­

zesseis.EU: Mas antes também. É que às yezes eu precisa tra­

balhar fim de semana. Eu acha bonita missa. E Cristo é amigo de verdade.

Padre (que parece ter uma relação um pouco menos amigável e mais distante com seu Senhor): Mas é difícil acreditar em Cristo.

Eu (profundamente convencido): Nãããão!P adre (incrédulo): Não...?EU: Cristo mostrou e mostra como gente deve viver,

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e não só dentro de livro, mas por ele mesmo. Ele viveu para nós. Mas senhor pode fazer pergunta, ver se está certo...

PADRE: Isto aqui não é escola. Vamos conhecendo os candidatos através dos encontros e de suas próprias vi­das. (Em tom ligeiramente repreensivo): Se o senhor ti­vesse vindo há dez anos, tudo estaria solucionado agora.

EU: Mas senhor não faz pergunta para ver se eu sabe...

PADRE: O problema não é a aprendizagem. Não se pode apressar o crescimento de uma planta com adubo. Tudo tem seu tempo.

EU: Mas quando primeiro cristão chegou Novo Mun­do, foi logo batizando tudo, mesmo quem não queria.

PADRE: É verdade, mas a Igreja tinha uma outra for­ça e outra inspiração. Hoje levamos em conta o contato com outros cristãos.

EU: Gente não tem muito contato porque alemão não quer viver com turco.

PADRE: São prescrições do bispo. Todos devemos nos submeter à mesma disciplina.

Eu: (numa última tentativa desesperada de conven­cer o padre a não agir de forma burocrática): Mas então eu não vai ter certificado. E polícia de estrangeiro me ex­pulsar, e eu precisa voltar para Turquia, vai para prisão, e quem sabe eles me tortura...

PADRE: Não posso ser pressionado a batizá-lo por causa de sua situação política desesperadora. Seria uma irresponsabilidade. Nenhum bispo responderia por isso.

EU: E se eu pergunta para bispo?PADRE: O senhor não pode procurar o bispo.EU: Mas ele também mora aqui!PADRE: Mas o senhor não pode procurar o bispo!EU: E se eu telefona e pergunta direto para ele?PADRE (em tom de desprezo): Certamente ele não re­

ceberá alguém como o senhor. Ele não fica em casa, ente- diado, esperando que lhe telefonem. O bispo é o senhor supremo de mais de um milhão de católicos nesta dioce­

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se. Sua agenda é tão cheia quanto a de um primeiro- ministro. Os dois, aliás, estão no mesmo nível.

EU: Mas bispo também faz batismo, se ele quer.P a d re (irritado): É claro que o bispo pode celebrar

batizados a qualquer momento.EU: E se eu fala com bispo quando ele dá uma volta?PADRE: Impossível! O senhor pensa que pode sim­

plesmente ir agarrando o bispo durante seu passeio? Ele está sempre cercado de policiais.

Eu: Mas, então, senhor faz pergunta! Para ver se eu entende bastante de Cristo...

P a d re (depois de suspirar e refletir longamente): Je­sus é Deus?

EU: Ele foi homem e Deus, e junto também com Es­pírito Santo. Uma só em três pessoa...

P a d re (espantado): É uma boa resposta. A respos­ta, como tal, está correta.

Eu (sem desistir): E Cristo diz que ama todos ho­mens, mesmo que não são de Igreja. E cristão deve amar até inimigo, só que não faz isso com turco... Eu sei que Cristo ficava do lado de perseguido. Em Turquia, curdo é que nem cristão de antigamente. Mandam ele para ca­deia porque querem ter cultura própria. E Cristo também está do lado deles.

P a d re (furioso, levantando-se com muita cerimô­nia): Está bem, mas agora precisamos interromper nossa conversa. Se o senhor fizer a gentileza de retomar à outra sala, minha secretária o acompanhará até a saída...

A diferença do padre rude de minha primeira visita e o de agora é que este último me expulsou de forma ele­gantemente aristocrática. Também aqui não sou deseja­do. Embora se trate de uma exceção absoluta — encon­trar na Alemanha um turco que deseja converter-se à fé católica é um verdadeiro milagre, quando presenciamos as hostilidades que os servos de Cristo lhes manifestam e as humilhações que lhes impõem —, não querem, em hi­pótese alguma, admitir-me na comunidade hierarquizaçla desses cristãos satisfeitos, presunçosos e enfastiados de si

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mesmos. Já é bastante suportá-los nas escolas, nos subúr­bios e nas estações de trem. Mas as igrejas — mesmo que continuem completamente desertas — devem ficar limpas e livres de turcos.

Vou visitar outro padre. Todos os andares da residên­cia paroquial estão equipados com retrovisores de cami­nhão. Ao lado de cada uma das aproximadamente doze janelas foi colocado um desses retrovisores, cuja função é permitir examinar atentamente o visitante que está jun­to à porta de entrada.

Toco a campainha; a porta não abre. Resolvo tentar novamente meia hora depois. Assim que toco a campai­nha, afasto-me e colo-me à porta, escapando, assim, do retrovisor.

A porta abre automaticamente, e, entrincheirado no primeiro andar, vejo um padre de meia-idade. Impassível e indiferente, escuta meu pedido, mas não me convida a entrar.

— Isso é idéia fixa! — repreende-me. — Quem lhe sugeriu tal coisa?

— Cristo me chamou — respondo, no melhor estilo daquelas biografias de santos escritas para crianças. — Eu quer seguir Cristo.

— O senhor está fingindo só para conseguir a auto­rização de permanência com mais facilidade. Admita que são motivos políticos que o levam a procurar'guarida na Igreja. O senhor só quer tirar proveitos pessoais de tudo isso.

— Cristo também ajudou perseguido político — respondo.

— Se o senhor se rebela contra as leis do Estado, se­rá perseguido em qualquer lugar. Aqui na Alemanha tam­bém é exatamente assim.

— Turquia não é democracia, é ditadura — digo, em objeção.

— Isso não passa de um chavão político. Cada povo

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tem o governo que merece. Há povos que ainda não estão maduros para a democracia parlamentarista. — E, depois de pensar um instante: — Mas, afinal, o que o senhor de­seja? A Turquia já tem um parlamento eleito.

— Controlado por militar — respondo. — Partido democrático proibido e perseguido.

— Deve haver alguma razão para isso — prossegue ele na discussão política. — Só assim é que se pôde aca­bar com o terror e a rebelião.

— Mas polícia e Exército faz terror e tortura preso político — replico.

— Confesse que o senhor é comunista e quer se in­filtrar entre nós para ter um bom disfarce. Damos assis­tência espiritual nas prisões e confortamos até o pior dos pecadores, desde que ele se arrependa. Mas aqui não há lugar para elementos sem consciência... É melhor o senhor voltar para o lugar de onde veio! — E, como eu fico olhando-o perplexo, continua em tom mais condescenden­te: — Bem, caso eu tenha me enganado com o senhor, ve­nha procurar-me depois da Páscoa, e então marcaremos uma entrevista. Assim terei tempo para sondá-lo um pou­co mais e avaliar seus verdadeiros sentimentos com rela­ção a Cristo.

Registro isso. É o bastante para mim. Considero um despropósito uma segunda conversa. A idéia que esse pa­dre fez de Cristo já me parece suficientemente clara.

— Cumprimento, então, para Cristo, quando senhor vê ele — despeço-me. E digo mais para mim mesmo que para meu interlocutor: — Oh, não. Há muito tempo que Cristo está morto aqui. — E, deixando o padre desnor­teado, desço a escada, assobiando “Senhor, nós te louva­mos...” , minha canção preferida.

Mas não desisto. Preciso encontrar ao menos um pa­dre que leve a sério minha missão cristã; que não tenha, por comodismo, preconceitos; que não seja um xenófo­bo mal disfarçado. Um padre que aceite a evidência do

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batismo, sem formalidades burocráticas, e o mais rápido possível.

Dois outros padres que procuro também não levam em conta a urgência do caso. Um capelão, bem jovem, manda-me passear: “Não fazemos questão de ter entre nós pessoas que querem se tomar católicas só para agradar os outros e obter eventuais benefícios. Não somos uma com­panhia de seguros, fique o senhor sabendo!”

Vou visitar outro padre, já de certa idade, que mora numa suntuosa residência episcopal e é conhecido como pastor de almas da classe alta. Ele me faz recitar o Pai- Nosso, rezar a Ave-Maria e ainda cantar um hino religio­so. Escolho o de Christof von Schmidt: " ... e ele morreu, com o coração cheio de amor, para nos salvar...” E de­pois disso tudo, sou recusado.

Antes, porém, o padre coloca-me numa situação di­fícil, pois deseja saber como se diz “acólito” em turco. “Gurtil, GuruF\ invento. “Gurul, GuruV\ repete ele, ver­dadeiramente impressionado.

PADRE: Onde o senhor mora?Eu (acrescentando depois de dizer o endereço): Po­

rão de família Sonne. Mas ninguém pode saber, porque proibido alugar porão, sem janela, úmido.

PADRE: Mas o senhor não tem uma declaração de re­sidência registrada na polícia?

Eu (hesitante): Não. Família Sonne não quer. E aqui ninguém aluga boa moradia para turco.

Padre (num tom severo): Sendo assim, não posso aceitá-lo no curso de catecismo de nossa paróquia. Antes de mais nada, o senhor terá que providenciar a declaração de residência, como é de praxe. Aí sim, poderá participar do curso de preparação, que dura no mínimo um ano. Vai ver como esse curso lhe fará bem. O senhor se familiarizará com a fé cristã e então poderá realmente fazer parte dela!

Eu (protestando): E isso serve para quê? Eu já vai estar preso em Turquia.

Padre (sem se abalar): Estes são motivos políticos secundários que não devem influenciar nossas decisões.

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Já estou a ponto de desistir. Recordo-me das pala­vras da Bíblia: “É mais fácil um camelo passar pelo bura­co de uma agulha que um rico entrar no reino do céu” . E acho que elas se aplicam exatamente aos padres católicos.

Até então eu havia escolhido as paróquias de forma aleatória, procurando as que ficavam perto de casa ou em locais já cqnhecidos. Desta vez decido sair da cidade, ir para o campo, a uma distância de uns cem quilômetros. Só paro quando chego a um local bem miserável, com uma igreja muito pobre. Dirijo-me à casa paroquial. Um ho­mem bastante jovem abre a porta.

Eu pode falar com padre? — pergunto.— Claro, sou eu! — diz o homem, vestido como uma

pessoa comum, com a camisa aberta. -É a primeira vez que eu, Ali, vejo um eclesiástico sem

roupas de clérigo. O jovem convida-me a entrar em seu escritório.

Começo a expor meu problema. Antes mesmo de ter­minar, o padre interrompe-me:

•— Já estou entendendo. E agora o senhor irá me pe­dir para batizá-lo, estou certo?

— Sim, está.— É claro que vou batizá-lo. Dentro de poucos dias.

E, então como católico, o senhor terá direito ao certifica­do de batismo, que eu mesmo subscreverei. É isso! — Sem maiores delongas, sem apelar ao bispo, sem perguntas bea­tas, inquisitoriais, hipócritas e pseudocristãs, ele reconhece a seriedade da situação, compreende o que está em jogo e age espontaneamente, de forma .cristã. — Precisamos ter ainda mais uma conversa, e aí o senhor se tomará mem­bro da nossa paróquia. Com o tempo, iremos nos conhe­cendo melhor. E se, depois de tudo isso, o senhor conti­nuar tendo problemas com a polícia de estrangeiros, con­te comigo. Tudo se ajeitará, o senhor vai ver. Não haverá mais problemas — ele me anima.

Agradeço. Percebo que o jovem padre, que não se comporta como um funcionário, fala com leve sotaque da Europa oriental. Mais tarde venho a saber que emigrou

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da Polônia há quatro anos. Talvez sua própria história de vida o tenha levado a identificar-se com um estrangeiro perseguido, ou pelo menos a compreender o. que se sente em tal situação. Talvez ele mesmo tenha começado a per­ceber em seu pais natal o que significa perseguição, ou, se não a vivenciou, pelo menos terá trabalhado sob as ré­deas de uma Igreja sufocante e cheia de privilégios. Tal­vez, ainda, sua vocação para compreender os problemas alheios só tenha se manifestado aqui, nesta nossa Alema­nha “livre” , onde testemunha a acolhida pouco amena que se dá aos estrangeiros.

Seja como for, prefiro mantê-lo no anonimato, pois temo que a revelação do nome deste homem, de compor­tamento tão humano e cristão, atraia a ira de seus supe­riores, que podem considerar esse fato como uma trans­gressão da ordem.

Post-scriptum. Quase sem querer, aprendo que o sa­cramento do batismo pode ser ministrado, em certos ca­sos, com muito liberalismo e não tão burocraticamente. Por exemplo, se um não-católico, um “ateu” , se candi­data ao cargo de diretor de um colégio comandado pela Igreja Católica e seu nome recebe acolhida unânime nos círculos sociais, a Igreja admite-o em poucos dias, para mérito de süa carreira.

Igualmente, quando o futuro diretor de um hospital católico não é batizado, tornam-se desnecessários curso de catecismo ou exames para testar seus conhecimentos bí­blicos. Em três dias realiza-se um batismo-relâmpago, me­diante uma pequena e espontânea contribuição jogada na caixinha da igreja.

Com certeza, reprovam-me por ter poupado os ecle­siásticos protestantes. Talvez isto esteja relacionado com a própria história de minha vida: aos cinco anos de idade fui forçado a uma cerimônia católica de batismo, desne­cessária e extremamente penosa.

As coisas aconteceram da seguinte maneira: meu pai

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estava internado num hospital católico, com septicemia. Três semanas depois, desenganado pelos médicos, relegaram-no a um cubículo chamado, a propósito, de “morredouro” . As freiras que cuidavam dele viviam im­portunando-o porque, na qualidade de católico com cer­tidão de batismo, ele ofendera gravemente a Deus por não ter se casado no religioso e haver batizado seu único filho— eu — segundo os cânones protestantes. Foi assim que, num quartinho minúsculo, realizaram uma cerimônia de casamento e eu fui rebatizado, tudo segundo o ritual ca­tólico. Ainda hoje tenho consciência da hipocrisia e da afe­tação daquele acontecimento. Vestiram-me um camisolão de batismo, enfiaram uma vela em minha mão e um tra- pista disse que a partir de agora eu passaria a me chamar Johannes. Cheguei a protestar, alegando que meu nome é Günter, mas o ritual continuou, sem interrupção.

Foi uma cerimônia absolutamente desnecessária, por­que, segundo os dogmas católicos, uma vez batizado, ba­tizado para sempre.

E mais ainda: poucas semanas depois desse espetá­culo, meu pai recuperou a saúde. As freiras insistiam em falar em milagre, graças ao “efetivo arrependimento” de meu pai. Esqueceram, porém, de mencionar que o dire­tor do hospital havia feito de tudo para conseguir penici­lina junto às autoridades militares da ocupação america­na. Meu pai foi um dos primeiros pacientes de Colônia a utilizar com sucesso esse medicamento.

Em todo caso, foi assim que me tornei católico.

Do lado de cá do Éden

Porque eles têm um ar tão feliz e sereno, com seüs pequenos distintivos ovais de madeira, seus trajes verme­lhos e sua despreocupação infantil, resolvo dar um pulo no lugar onde os jovens da Bhagwan se reúnem.

Um movimento novo, que se define como religião uni­versal, que se propõe experimentar novas formas de vida e de trabalho em comum, que — diferentemente da maior

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parte das religiões — não reduz a sexualidade ao objetivo exclusivo da procriação nem a transforma em tabu. Uma religião lúdica, fácil, ampla sem constrangimentos. É nesse lugar que espero não sofrer nenhum tipo de preconceito como o estrangeiro Ali. Meu amigo e colega de trabalho Abdullah acompanha-me.

Ao contrário de mim, Abdullah nunca teve a menor ilusão ou expectativa quanto ao cristianismo administra­do pela Igreja oficial. Agora está menos prevenido e tam­bém quer tentar seu ingresso na seita Bhagwan.

O local de encontro fica na Lütticherstrasse, num bair­ro próximo ao centro da cidade. Os diversos imóveis on­de está instalada a administração da Bhagwan pertencem à Construções Rajneesh, Koch & Cia. A mobília da sala de recepção é clara, elegante e de bom gosto. Nada do kitsch enfadonho, tão comum entre as seitas.

Quando chegamos, dois “sannyasins” 1 estão falan­do ao telefone, cada qual em seu aparelho, e tão absortos que nos ignoram completamente. Ao que parece não se trata de conversas de evangelização nem de questões de fé. Um deles discute sobre cifras e repetidamente se justi­fica por não ter convertido as somas previstas em valor monetário. O outro parece estar dando a seu interlocutor um curso rápido de investimento. A conversa gira em tor­no de “ donativos antedatados” e de como “contornar de maneira perfeitamente legal o imposto sobre herança” . Além da “previsão mais recente e merecedora de fé, vin­da dos Estados Unidos: vender, sem falta, os dólares nos próximos seis meses e aplicar em ouro!”

Os dois “sannyasins” comportam-se como jovens ge­rentes, ou, melhor ainda, como investidores da bolsa, do tipo descontraído, sossegado, não obstinado mas firme. Ficamos esperando ali uns bons dez minutos, até que um deles, que acabou de transmitir suas cifras, se digna a re­parar em nós.

— O que desejam?

i Os membros da seita Bhagwan autodenominam-se “sannyasins” (N. do T.).

— Eu quer fazer parte daqui — digo-lhe.Ele me olha com desprezo.— Ser um adepto? Mas não é tão simples assim. —

Em seguida, examinando-nos ligeiramente, completa: — Vocês querem é casa e trabalho, não é?

— Também — respondo —, mas não só por dinhei­ro. Eu não quer mais ficar sozinho. Eu quer viver com outros.

— Mas isso leva algum tempo. Acho mesmo que, pa­ra vocês, vai levar muito tempo.

— Muito quanto?O jovem não quer adiantar nada.— Varia muito. Não temos uma regra fixa. Depen­

de do conhecimento que se tem da Bhagwan e da intensi­dade do desejo de fazer parte do grupo.

— Desejo muito, muito forte.— E por que você tem tanta pressa assim? — ele per­

gunta, desconfiado.— Eu quer começar tudo de novo. Senão eles me

manda embora para Turquia, e lá eu vai para cadeia.Conto-lhe minha história da perseguição política.Embora jovem e não-dogmático, guiado (como ele

mesmo acredita) pela inspiração, reage como um clérigo:— Se entendi bem, você quer é encontrar um jeito

de entrar aqui e tirar algum partido da situação, não é?— Não! Eu só quer ficar aqui e fazer parte disto tudo.— Sei... Quer vir para cá porque gostaria de ficar

aqui?— Também.— Mas não é motivo válido. Se for isso, não pode­

mos admiti-lo de jeito nenhum.— Mas não só isso! Eu também quer viver com ou­

tros. E não cada um por si, mas tudo junto, comunidade. Ah, e tem também mulher. Não uma só para cada um, mas tudo junto.

— Acho que é melhor você ficar no lugar de onde veio. Para chegar até nós, o caminho é muito longo.

Mais uma vez meti os pés pelas mãos. A fase frenéti­

82'

ca da vida comunitária só foi propalada no início do mo­vimento Bhagwan. Assim, como uma espécie de isca para fisgar as pessoas frustradas das classes média e alta de to­dos os cantos do mundo. Depois, o Grande Mestre — pre­judicado pela gota e, sem dúvida, com medo da AIDS — passou a pregar maior abstinência e uma vida a dois. Seu novo lema já não é o sexo grupai, mas um tipo de prazer congelado e asséptico: o consumo suntuoso, o luxo pelo luxo. Por exemplo: os Rolls Royce. Objetivo ambiciona­do: um Rolls Royce diferente para cada dia do ano. Pre­ço por unidade: 300 mil marcos. Não para uso de seus adeptos, mas só para ele mesmo, para süa tendência me­galomaníaca.

Assim, para esse jovem minha exigência é pretensio­sa e descarada. Viver em comunidade com gurus de esquer­da semiconvertidos (como, por exemplo, Rudolf Bahro, militante do Partido Verde), ainda é possível. Mas viver com um turco miserável, sem eira nem beira, extenuado pelo trabalho é coisa muito diferente; toda a estrutura pre­conceituosa das antigas raças dos senhores vem à tona.

Tentamos o centro da seita na Vennloèrstrasse, ao lado da Friesenplatz. Na recepção, duas senhoras e um rapaz.

Assim que os dois candidatos turcos entram no lo­cal, as mulheres começam a cochichar e a rir baixinho. Pa­ramos diante delas, que fingem não nos ver e põem-se a mexer em algumas pastas de documentos.

Decidimos, então, inspecionar um pouco o lugar. Nu­ma das salas, há uns trinta adeptos da Bhagwan, alguns sentados, outros em pé, olhando fascinados para um tele­visor. Não estão vendo uma partida de futebol nem um filme de suspense, mas um vídeo sobre o Grande Mestre de Oregon. Ele está rodeado por um grupo de adeptos en­tusiásticos que o aclamam sem cessar, confortavelmente instalado em seu Rolls Royce, que avança bem devagar, acena para os fãs com movimentos parcimoniosos e uma expressão vaidosa e magnânima.

O conjunto é acompanhado pelo “ lá-lá-lá” repetiti­vo e monótono de uma música oriental, e os “sannyasins”

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“O egoísmo é natural. Não é uma questão de bem ou de mal. O mais forte é que sobrevive, e o mais forte é que deve ter o poder. E quem tem o poder tem a razão. Como alemães, vocês deviam compreender isso. (...) Amo esse homem [Hi- tler]. Era um louco. Mas eu sou mais louco ainda. Não ou­via seus generais, apenas seus astrólogos. Mesmo assim, du­rante cinco anos sempre obteve vitórias. Era tão moralista quanto Mahatma Ghandi. Sua natureza era a de um hindu, mais que a de Ghandi. Foi um santo. (...) Sou absolutamen­te inatacável. Ataco todo mundo, mas ninguém me ataca. Esta é a simples verdade.”(Extraído de Der Spiegel n.° 32, 1985.)

Palavras de Bhagwan

de Colônia se balançam, soltos e descontraídos, no mes­mo ritmo que os discípulos de Oregon. Alguns acompa­nham o compasso com as mãos. Ninguém diz uma única palavra.

Para não perturbar o recolhimento daquele grupo, vol­tamos para a recepção, onde novamente me apresento. Mais uma vez somos ignorados por um bom tempo. To­dos fingem não nos ver, porém ficam espiando pelo can­to dos olhos. Finalmente, um homem de uns trinta anos se aproxima. Abdullah já há algum tempo tamborila ner­vosamente no balcão da recepção.

Exponho meu problema, e ele replica, no velho esti­lo antiautoritário:

— Não, não. As coisas não são assim. Isto aqui não é um clube ao qual você pode se filiar. Você deve come­çar pela meditação. Leva algum tempo, e cada sessão de “dinâmica" custa 5 marcos (por hora, naturalmente). De­pois de fazer isso por um tempo suficiente, marcamos uma entrevista com a coordenadora do centro, que verá se po­de lhe dar um “nome de Sannya” .

EU: O que é isso?HOMEM (brusco e enigmático): É o que fazemos aqui.

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A seita Bhagwan é dirigida por Sri Rajneesh, um indiano que vive nos Estados Unidos. Em junho de 1985, ele decidiu romper seu longo silêncio e deu uma entrevista ao canal de televisão ABC, declarando ser “o guru dos ricos’* e ter co­mo o mais nobre objetivo de seu movimento *'‘enriquecer” . “Todas as outras religiões cuidam dos pobres” , respondeu ao lhe perguntarem por que não usava sua imensa fortuna para lutar contra a miséria social em lugar de investir em sua frota de Rolls Royce. “É problema meu se me preocupo só com as pessoas ricas.”

Somente na Alemanha comprou uma dúzia de discotecas, uma cadeia de restaurantes vegetarianos, lanchonetes e em­presas de construção.

— Eu é turco muito sozinho. Eu quer viver em co­munidade, com alemão e outros tudo.

H om em (reservado): Mas não é você que pode jul­gar o que é melhor. São os outros que determinam por você. Mas antes de tudo, precisa começar a sentir...

EU: Mas eu já sente...HOMEM: Mas você não tem nenhum critério que lhe

permita julgar.EU: Chefe, Bhag, também estrangeiro.H om em (ofendido): Bhagwan é nosso mestre. Veio

da índia.EU: Então muitos de vocês veio da índia?H om em (pensando um pouco): Não, na realidade

não. H á mais alemães e americanos.1Eu: E onde mora Bhag?HOMEM: Atualmente na América. Pode-se visitá-lo

na América. (Regularmente, numerosos adeptos viajam pa­ra os Estados Unidos, em vôos fretados, por dez dias, desde que depositem nos cofres de Bhagwan a quantia de 3 000

1 Não há adeptos indianos de Bhagwan, considerado um charlatão em seu pró­prio círculo cultural. Eis porque, para ele, a índia é um “país física e espiritual­mente morto” (N. do A.).

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marcos. Chegando lá, trabalham de graça nas lavouras. Para elesf no entanto, isso se chama “recolhimento” .)

EU: Tem alemão que vive em comunidade com vo­cês, eu sabe. Então por que não turco?

HOMEM: Não se trata de viver ou não em comunida­de. O problema é que temos um mestre espiritual: Bhag­wan. E isso que conta, o resto não importa. Você pode viver sozinho e ter um trabalho lá fora e viajar, uma vez por ano para Oregon, por exemplo. Os que vivem em co­munidade já passaram por um período de adaptação e fo­ram aprovados.

EU: Eu não tem trabalho, eu não tem lugar para mo­rar. Viver com outros bom. Gente não precisa muito di­nheiro.

HOMEM: Sei, sei. Mas aqui as coisas não são assim. O fato de você não ter casa nem dinheiro não é motivo para fazer parte da nossa comunidade. É preciso querer estar com Bhagwan. Entenda que isso se dá em outro pla­no, diferente do que você diz. Eu quase ousaria dizer que não estamos verdadeiramente prontos um para o outro.

O enterro(ou: Livrando-se do corpo)

Com uma única exceção, eu, Ali, fui rejeitado pelos funcionários de Deus, que me mandaram às favas, e cen­surado pelos monomaníacos da seita de Bhagwan, que zombaram de mim. Mas quero ser aceito em algum lugar e fazer parte dele. Já que entre os vivos sou repelido co­mo um estranho e me impõem um silêncio de morte, des­ta vez vou tentar a sorte diretamente entre os mortos. É assim que me sinto... Como se diz: “A gente paga até pa­ra morrer!”

Como preparativo para a viagem ao reino dos mortos, visto meu sombrio temo de domingo e, para reforçar ainda mais a fragilidade, peço emprestado uma cadeira de rodas. Assim, com um amigo empurrando a cadeira, vou a uma das maiores e mais famosas agências funerárias da cidade.

Chego sem hora marcada. Meu acompanhante me em­purra, loja adentro, onde a proprietária me recebe com cortesia. A mulher, aparentando quase quarenta anos, à primeira vista não se comporta de modo antipático. Ex­ponho o problema: trabalhei numa indústria de amianto (a Jurid) e, por isso, estou com câncer nos pulmões. O mé­dico informou-me que tenho dois meses de vida. Portan­to, estou aqui para tratar pessoalmente de meu funeral e do traslado do corpo para a Turquia.

A conversa abaixo (ligeiramente reduzida, mas repro­duzida de forma literal) é um testemunho do desumano, insensível e macabro culto à morte, nos dias de hoje, quan­do um ser ainda vivo é tratado como um objeto morto, algo não mais humano que deve ser removido como lixo. A proprietária da loja nem pergunta como estou, embora eu não tenha a aparência de um moribundo. Não deseja

87*

perder tempo com perguntas do tipo: “ Será que não há mesmo esperança?” Não quer demonstrar nenhuma es­pécie de compaixão e, portanto, vai direto ao assunto:

MULHER: Se o transporte for aéreo, o preço varia conforme o peso. O caixão é colocado dentro de um Con­tainer e pesamos tudo junto. Por isso é que há variação de preço, de acordo com o peso e o local para onde será transportado...

EU: Vai para longe, lá em Turquia. Montanhas Kas- gar, perto de fronteira com Rússia.

MULHER: Sei, mas o senhor precisa decidir se deseja transporte aéreo ou rodoviário. Se for de avião, além de levá-lo ao aeroporto de partida, precisaremos também pegá- lo no aeroporto de chegada, senão o senhor fica por lá. E se fizermos a viagem por terra, poderemos levá-lo direto ao local do enterro... Qual é o seu plano de seguro social?

EU: Plano normal.Mulher: Como ativo ou aposentado?EU: Mais de ano eu está doente.MULHER: O senhor continuou trabalhando depois

que adoeceu?EU: Sim. Indústria de amianto. Sabe, eles não dava

máscara para gente e...Mulher (interrompendo com impaciência): Isso não

vem ao caso agora. A questão é saber se o senhor quer ser transportado de viatura ou de avião. Se for de avião, vai depender do peso.

EU: Eu não é muito pesado. E médico falou que quando eu morre, daqui dois meses, eu vai pesar que nem criança. Todo dia eu emagrece pouquinho.

Mulher: Sei, sei. Mas a estatura continua a mesma, não é? O preço para crianças é bem inferior porque o cai­xão é menor. Colocamos o caixão dentro de um Contai­ner, para que nem os passageiros nem o pessoal do aero­porto saibam que estão transportando um cadáver.

EU: E se eu não precisa caixão? Se eu queima?Mulher: O senhor quer dizer se for cremado? Bom,

nesse caso a uma seria enviada pelo correio.A

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EU: E não custa muito dinheiro?Mulher: Sai bem mais em conta, porque o transpor­

te é eliminado. Se o senhor for cremado aqui, isso custará uns 2 500 marcos, calculando tudo, menos as despesas do serviço postal e as taxas de expedição...

EU: E se meu irmão me leva em saco plástico1?Mulher: De jeito nenhum! Não entregamos isso as­

sim. As cinzas devem ser levadas para o local do enterro mediante solicitação feita por alguém de lá e aprovada aqui. Só após a aprovação desse pedido a urna é liberada.

A mulher conhece muito bem seu serviço e leva a coisa na palma da mão. Ela empurra a cadeira de rodas para junto dos caixões. Quando lhe pergunto: “Qual mais bonito, va­so de cinza ou caixão grandão?” , ela se adapta com espan­tosa rapidez a meu desengonço lingüístico e tenta atrair meu interesse para os caixões de transporte, mais dispendiosos.

— O senhor quer dizer uma urna ou um caixão? Bem, já que me pergunta, um caixão. O senhor ficará mais sa­tisfeito. O caixão é outra coisa! Traga-o aqui! — diz para meu acompanhante alemão e, curvando-se sobre mim, co­meça a tirar minhas medidas. Ouço o rangido da pesada porta corrediça do depósito onde estocam os caixões e, de uma sala ao lado, o barulho da serra da marcenaria. — É melhor o senhor mesmo dar uma espiada em todos e ver qual lhe agrada mais. Cada pessoa tem um gosto!

Isso me soa como se tivesse dito: “ Se quiser experi­mentar, pode deitar dentro deles para ver em qual se sen­te melhor” .

Ela bate levemente com o nó do dedo num caixão de carvalho bem modesto e informa:

1 Esta pergunta está muito longe de ser tão absurda quanto parece. Na verda­de, foi-me inspirada por um acontecimento real, fora dos meios turcos. Recen­temente, um industrial de Colônia, com filiais nos Estados Unidos, multimilio­nário e católico fervoroso, passou pela alfândega trazendo numa sacola de plástico as cinzas do irmão que morrera subitamente no exterior. Isso é, as cinzas esta- vam numa urna barata, colocada dentro de uma dessas sacolas de free shop (N. do A.).

— Este é o nosso modelo padrão. Claro que se o se­nhor desejar algo mais sólido, mais forte... O que acha deste outro? — Sua voz adquire um tom mais suave e in- sinuante, como se estivesse querendo me vender o leito nup­cial para o resto de minha vida. — Autêntico carvalho ale­mão. Maciço e resistente. No momento é o mais resisten­te que temos. Todo de carvalho maciço. E internamente forrado de seda!

— Eu pode ver dentro?Ela se mostra um pouco constrangida como se tives­

se lhe pedido para experimentar a cama de casal bem no meio da loja de móveis.

— Willi, venha me ajudar! — grita para o sócio e/ou marido, que se encontra na sala ao lado.

Willi vem a seu encontro. Ele se dá ares de importem- te, embora pareça um pouco constrangido.

— Trata-se de um traslado para a Turquia. Èsse se­nhor só tem dois meses de vida e quer ver o caixão por dentro. — É assim que sou apresentado.

Os dois levantam a pesada tampa do caixão. Por den­tro, a madeira sem acabamento.

— E onde seda? — reclamo. — Senhora disse tudo macio dentro.

Eles trocam um olhar igual ao de dois impostores apa­nhados com a boca na botija.

— Vamos forrá-lo, pode ficar tranqüilo — garante Willi, com um ar sério. — Dou-lhe minha palavra.

— E quanto custa?— Custa 4 795 marcos — ele responde, depois de con­

sultar um catálogo.Passo a mão de leve pelo caixão e dou uma pancadi­

nha com o nó do dedo na madeira que ressoa.— E dura bastante?— Claro que sim! É um trabalho de marcenaria de

primeira qualidade. Leva uns cinco, seis anos para se de­sintegrar — tranqüiliza-me.

Mas ainda não encontrei um caixão que me agrade.

90*

Como em vida nunca me deram oportunidade de escolha, agora que vou morrer quero ao menos poder optar.

— Não tem caixão menos triste... não parecido com caixão? Coisa colorida, um pouco alegre. Entende? Eu sempre morou em lugar escuro, úmido... Agora eu gosta­va caixão bonito...

Nova troca de olhares entre os dois, que logo deixam de lado a consternação em nome do profissionalismo.

— Bem, colorido é um pouco difícil. Não é muito co­mum. Mas que tal este aqui? — pergunta Willi.

A mulher empurra a cadeira de rodas para perto de uns caixões de mogno, envemizados e reluzentes. Cada um mais medonho e kitsch que o outro.

EU: Plástico?WILLI (com ímpeto): Mogno puro, autêntico. Um

dos modelos mais originais e valiosos que possuímos!EU: E desenho?WILLI: Como? Ah! O senhor quer dizer entalhe? Cla­

ro! Que tal este modelo francês? Está em oferta. Custa apenas 3 600 marcos. Antes, custava mais de 4 000.

EU: E veio mesmo França?Willi: Veio! É um artigo francês legítimo.Eu*. Qual mais bonito?WILLI: Bem, é uma questão de gosto. Este aqui tem

um estilo bem diferente.EU: E gente com dinheiro, alemão, que caixão leva?WILLI: A maioria leva caixões alemães, de carvalho

ou coisas do gênero.EU: E quem leva desse aí?Willi: Esse tipo de caixão é mais usado em transpor­

te para o exterior. Os franceses e os italianos costumam comprar..

EU: E dura muito?WiLLi: Muito! Mas, para a Turquia, é necessário ou­

tro caixão, de zinco. Uma espécie de embalagem de zinco...Eu.* Ah! Eu entende. Lata...WlLLi: Hum... Soldamos um no outro, com o senhor

dentro, é claro! Caso contrário, não deixam passar pela

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fronteira. O serviço é feito aqui mesmo e só depois colo­camos a tampa de madeira.

EU: E quanto custa?WlLLl: Vejamos... Com o reforço de zinco, mais a

solda... uns 6 000 marcos.EU: E desconto?Willl Bem, podemos conversar quanto ao preço.

Desde que o senhor já o encomende e pague adiantado, podemos dar um desconto de 57o. O preço ficaria então em 5 700 marcos. Mas só se o senhor pagar adiantado.

Eu (perplexo): Mas, e se eu não morre, depois tudo? Eu recebe dinheiro de volta?

WlLLl: Não, não fazemos devolução da quantia. O se­nhor compreende, não? É um desconto especial que estamos lhe dando. Mas... se bem entendi... o senhor tem mesmo cer­teza de... de só ter dois meses... (Gagueja. Não consegue pro­nunciar em minha frente a palavra morte.) E, além disso, ainda precisamos saber para que local da Turquia devemos enviar o caixão. Temos de calcular o preço do transporte.

EU: Fica bem alto, montanha em caminho para Rús­sia. País bonito, senhor não acha? Senhor passar férias lá, com minha família. Não precisa pagar nada.

Ele não demonstra a menor emoção e não se comove com minha oferta.

— De qualquer modo, não fazemos o transporte pes­soalmente. Contratamos um motorista e precisamos cal­cular... — Faz uma conta rápida de cabeça — ... Sim, 1,30 marco por quilômetro. Ida e volta, é claro! — Pergunta- me onde fica Kasgar e, depois de fazer as contas, chega à quantia de aproximadamente 10 mil marcos só para o transporte de automóvel.

— Mas se eu vai para lá agora, vivo, então mais ba­rato, não?

Ele fica desconcertado.— Isso não é da nossa alçada! — suspira. — Só po­

demos assumir nosso serviço com o atestado de óbito as­sinado por um médico. E, caso o senhor deseje ser crema­do, precisaremos também de uma autorização judicial.

92*

— Ah! Tanto faz! Se gente morre, está morto mes­mo! — Em seguida aponto para uma uma muito bonita e elegante, exposta ali perto, bem diferente daqueles po­tes horríveis onde se colocam as cinzas. — E aquele? Eu não pode ficar dentro, depois queimado?

— Não, pelo amor de Deus! É impossível! É uma pe­ça de cerâmica, só para exposição. Não está à venda. É um objeto antigo.

Já entendi tudo. Enquanto meu acompanhante me le­va embora, tenho certeza de que a loja bate um fio para a previdência social e discretamente tenta se informar so­bre a indenização do seguro por morte. Para só depois ver se daria pé...

Atolado na lama(ou: “Longe de casa e fora da lei”)

Não acredito que sçfa possível conseguir mudanças profundas sem ter metido os pés na lama Junto com os outros. Desconfio terrivel­mente de toda ação “externa", pois corre o risco de não passar de palavrório vazio.

(Odile Simon, Diário de uma operária.)

Estou tentando arrumar um emprego nas indústrias Jurid em Glinde, perto de Hamburgo. Alguns amigos tur­cos contam-me que os postos mais insalubres são ocupa­dos exclusivamente por turcos. Lá dentro as normas de segurança — rigorosas para a manufatura de amianto — não valem nada. Com o vento, o pó dessa fibra, cancerí­geno e letal, propaga-se pelo ar. Raramente os trabalha­dores usam máscaras de proteção. Conheci alguns ex- operários que, depois de um ano e meio ou dois, contraí­ram graves lesões broncopulmonares. E até hoje tentam provar, sem sucesso, que tais lesões foram provocadas pelo tipo de serviço que executavam.

Deparo-me, porém, com um problema: a admissão de operários está suspensa no momento. É verdade que alguns conseguem ser contratados, lançando mão de dois expedientes: subornam os chefes de equipe com dinheiro vivo ou os “presenteiam” com autênticos tapetes turcos ou moedas de ouro. Trato logo de conseguir de um nu- mismata uma moeda de ouro do antigo Império Otoma- no, um verdadeiro tesouro de família. No entanto descu­bro sem querer que há outro modo de obter o emprego: depois de algum tempo, as indústrias August-Thyssen- Hütte (ATH) costumam demitir parte de seu pessoal efe­tivo e contratar, por intermédio de uma empreiteira, tra­balhadores temporários. Assim usufrui de maiores vanta­

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gens: não enfrenta muitos obstáculos na contratação e, me­nos ainda, na demissão; e gasta bem menos com a aquisi­ção desses novos trabalhadores, quase sempre mais dóceis. Desde: 1974, cerca de dezessete mil trabalhadores efetivos foram dispensados e muitos deles passaram a fazer parte do quadro de pessoal das empreiteiras. Só em Duisburg, a Thyssen mantém contrato com quatrocentas empresas desse tipo.

Faço amizade com um operário turco de 27 anos, en­caminhado para a empreiteira Adler pela agência oficial de empregos. Descubro que a Adler “vende** os operá­rios para a empresa Remmert, a qual, por sua vez, repassa- os para a ATH. Esse meu amigo turco descreve as condi­ções de trabalho e os métodos de exploração — coisas in­críveis para quem não as presenciou nem dispõe de pro­vas concretas. Sua descrição nos faz voltar à época mais sombria do capitalismo selvagem. Mas por que vaguear no tempo? O horror está bem aqui!

Levantar às três da madrugada, para estar às cinco no local indicado pela Remmert: a saída da rodovia Ober- tiausen — Buschhausen. A Remmert é uma empresa em expansão. Em seu letreiro está escrito em verde: PRESTA­ÇÃO De Serviços. Ou seja, a Remmert elimina sujeira de toda espécie. Quantidades grandes ou pequenas de pó, la­ma e dejetos tóxicos, óleos fétidos e pútridos, graxa, lim­peza de filtros na Thyssen, na Mannesmann, na Man, on­de quer que seja. Só o estacionamento da Remmert está avaliado em 7 milhões de marcos. A Adler está integrada à Remmert como aquelas bonecas russas: uma dentro da outra. A Adler nos vende à Remmert, que nos aluga para a Thyssen. Os dois sócios na negociata dividem o grosso do dinheiro pago pela Thyssen. Conforme a tarefa, a quan­tidade de pó e sujeira ou a periculosidade, o preço varia entre 35 e 80 marcos por hora e por pessoa. A Adler paga uma esmola de 5 a 10 marcos àqueles que se matam de trabalhar para ela.

Muitas vezes o pessoal da Remmert e da Adler é em­pregado para atuar na produção; na coqueria, por exem-

'95*

pio, onde trabalham junto com os operários da Thyssen. Além do mais, a Remmert também fornece pessoal de lim­peza e manutenção. Há mais de seiscentas faxineiras da Remmert trabalhando nas grandes indústrias em diferen­tes cidades da República Federal da Alemau£ra>~

Ao lado de um velho e enferrujado microônibus pres­tes a partir está parado o encarregado que anota numa lista os nomes dos trabalhadores.

— Novo? — pergunta-me secamente.— Sim — respondo.— Nunca trabalhou aqui? — Não sabendo que res­

posta poderia influir positivamente na contratação, resolvo encolher os ombros; ele tenta me ajudar: — Não enten­deu o que eu perguntei?

— Novo — respondo, repetindo sua primeira palavra.— Vá se juntar aos colegas — diz, apontando para

o microônibus.Só isso. Do modo mais simples sou contratado para

trabalhar numa das mais modernas indústrias metalúrgi­cas da Europa. Ninguém me pede documentos ou pergunta qual é meu nome. Tampouco minha nacionalidade pare­ce despertar algum tipo de interesse nas pessoas que tra­balham nessa empresa de fama mundial — pelo menos, até o presente momento. Por enquanto, tudo vai muito bem.

Nove estrangeiros e dois alemães amontoam-se no mi­croônibus. Os alemães estão instalados no único banco do veículo. Já os estrangeiros estão sentados no chão de me­tal, gelado e sujo de óleo; afastam-se para dar-me lugar. Um rapaz de uns vinte anos de idade pergunta-me em tur­co se sou seu conterrâneo. Respondo em alemão: “Nacio­nalidade turca” . Explico-lhe que minha mãe era grega e que fui criado na Grécia, no Pireu. “Meu pai era turco. Abandonou minha mãe quando eu tinha um ano.”

E assim justifico meu conhecimento praticamente nulo da língua turca. Engolem minha história, que resistirá na Thyssen durante os próximos seis meses. Caso resolvam

96 ‘

me perguntar sobre o local onde passei a infância, acho que não terei problema. Posso falar um pouco do Pireu porque em 1974, durante a ditadura militar fascista, esti­ve preso lá por dois meses e meio.1 Só uma vez me vi em dificuldade: alguns colegas turcos quiseram a todo custo ouvir o som da língua grega. O que me ajudou foi um da­queles meus delírios na época de estudante, quando, em vez da língua francesa, preferi estudar grego clássico. Até hoje sei de cor trechos de A Odisséia: “Ândra moi énepè moúsa...” (“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou...”). Ninguém desconfiou de nada, embora o grego clássico esteja tão longe do moderno quan­to o alemão antigo do contemporâneo.

Lotado, batendo os pinos e chacoalhando inteiro, o ônibus se põe em movimento. A cada curva, o banco, que está solto, choca-se contra os imigrantes sentados no chão. O aquecimento não funciona. A porta traseira não fecha e alguém a prendeu com um arame; se uma freada brusca jogar alguém para o fundo, a porta poderá ceder e a pes­soa irá parar no meio da rua. Depois de quinze minutos, a assombrosa viagem chega ao fim. Sacudidos e enregela- dos, finalmente estamos diante do portão 20 da Thyssen. O encarregado entrega-me um cartão de ponto; um dos homens da segurança me dá um passe de ingresso e fica escandalizado ao ouvir meu nome.

— Mas isso não é nome, é doença!Sou obrigado a soletrar várias vezes:— S-i-g-i-r-l-i-o-g-l-u.Ainda assim, ele erra e escreve “ Sinnlokus” 2. E na

coluna reservada ao primeiro nome. Como sobrenome, transcreve meu segundo prenome: Levent.

Como é que alguém pode ter um nome desses?! — resmunga, furioso. Parece ignorar que seu próprio nome

1 Em 1974 Giinter Wallraff foi preso em Atenas por distribuir panfletos con­tra a ditadura; torturado e condenado a longa pena de prisão, foi libertado após a queda dos coronéis (N. do E.).2 Em alemão Sinn significa “ sentido” e Lokus, “ latrina” (N. do T.).

(Symanowski ou algo parecido) também é estranho para um turco e sugere certa ascendência polonesa.

Os operários poloneses, chamados para a região do Ruhr no século passado, também sofreram segregação logo no início da imigração e foram obrigados a viver em gue­tos, exatamente como acontece agora com os turcos. Ha­via cidades, na região do Ruhr, em que mais da metade dos habitantes eram poloneses que conservaram sua lín­gua e sua cultura.

Tenho um pouco de dificuldade para bater o ponto, o que faz com que um operário alemão se atrase alguns segundos. “Lá na sua terra, na África, vocês devem bater o ponto com a cabeça!*’, diz ele.

Mehmet, um operário turco, ensina-me a introdu­zir o cartão no relógio. Percebo que a observação do ope­rário alemão também atinge os outros imigrantes. Vejo isso nos olhares envergonhados e resignados. Mas nenhum deles ousa retrucar. Freqüentemente fingem não ouvir os insultos e procuram afastar-se dos alemães. Temem que esse tipo de provocação acabe em pancadaria. A ex­periência tem mostrado que a culpa sempre recai sobre os imigrantes, o que é um bom pretexto para serem demi­tidos. Por isso preferem ficar calados e agüentar as injus­tiças dia após dia, afastando-se para não dar margem a provocações.

O ônibus prossegue seu percurso por dentro do par­que industrial. Depois de alguns minutos de sacolejos, de­sembarcamos perto de um barracão que serve como pon­to de encontro. É aqui que, com chuva, neve ou frio, de­veremos esperar, todos os dias, a chegada do “xerife** com seu Mercedes. O “xerife** é o supervisor-chefe, tipo gros­seiro e atarracado que não se digna a levantar uma palha. Sua tarefa consiste exclusivamente em dividir o pessoal em grupos, distribuir os serviços e cuidar para que todos tra­balhem. Chama-se Zentel e deve ter entre 30 e 35 anos. Faz parte do quadro de pessoal da Remmert. De vez em quando é convidado para as festas de Adler. Aliás, dizem que Zentel é dedo-duro e confidente de Adler.

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Já passa um pouco das seis. Os operários do turno anterior partem nos veículos da Remmert. Duros de frio, ficamos na escuridão. O barraco não passa de um depósi­to de ferramentas, onde são guardados carrinhos de mão, pás, picaretas, aparelhos de ar comprimido e bombas de sucção. Não há espaço para nós.

Ao redor, um barulho inconstante, proveniente das oficinas vizinhas: estrondos, rugidos e silvos estridentes. O céu é um tremular de nuvens avermelhadas; não se con­segue vê-lo daqui. No alto das chaminés, cintila uma luz azulada. Uma cidade industrial de fumaça e fuligem que se estende até o horizonte, até as zonas residenciais vizi­nhas. São vinte quilômetros de comprimento e quase oito de largura.

Percebo certa agitação entre os trabalhadores. O “xe­rife” (que lembra muito um mercenário, com sua roupa cáqui) abaixa ligeiramente o vidro do carro e começa a fazer a chamada. Todos os dias modifica a composição dos gru­pos. Está sempre colocando ou tirando pessoas, impedin­do, assim, que os grupos se tomem coesos. E isso faz com que surjam rivalidades e conflitos dentro deles. Não sei dizer se seu método resulta de arbitrariedade, negligência ou calculismo. Só sei que, numa equipe em que as pessoas têm pouco contato, o espírito de concorrência, a descon­fiança e o temor pairam acima de qualquer comportamento solidário.

Ouço chamar meu nome. Alguém me puxa com for­ça pela orelha. É o encarregado, que desse modo tenta in­dicar o grupo ao qual devo me reunir. Sorri ironicamente para mostrar que não está irritado. Somos tratados como animais domésticos; ou melhor: como burros de carga.

Desembarcamos numa torre de extração e subimos al­guns andares na penumbra, munidos de pás, picaretas, car­rinhos de mão e aparelhos de ar comprimido. Nossa tare­fa: retirar as placas de terra que se formam sob as esteiras rolantes. Venta muito e a temperatura deve estar a uns dez graus abaixo de zero. Decidimos por conta própria traba­lhar bem depressa para não sentir tanto frio. Uma hora

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depois, quando o encarregado se afasta (como pouco tra­balha, padece muito mais com o frio), resolvemos fazer uma pequena fogueira para nos aquecer. Falar é fácil... Ao redor elevam-se as chamas da fundição; o metal em fusão espalha-se automaticamente nos vagões gigantescos, que parecem transportar bombas poderosíssimas. É como lava incandescente, correndo em pequenos canais. Ouvi­mos o borbulhar do metal dentro de cubas altas como uma casa de vários andares. Mas ali na torre de extração preci­samos de muito esforço e imaginação para fazer um sim­ples foguinho. Tiramos pedaços de coque das esteiras ro­lantes, encontramos algumas tábuas — que os outros co­legas usavam como assento durante o horário de descan­so — e as despedaçamos com as perfuratrizes. Ainda fal­ta papel. Acabamos achando uns maços de cigarro vazios e uns lenços de papel sujos de ranho. Com o auxílio do aparelho de ar comprimido, aos poucos avivamos a brasa que fizemos dentro de um dos carrinhos de mão. Porém não temos tempo para desfrutar o calor. O encarregado aparece e ordena: “Todos para baixo! Tragam as ferra­mentas. E rapidinho!” Tentamos salvar nosso fogo, mas não conseguimos empurrar o carrinho de mão, pois havia esquentado demais. Passo a entender a dificuldade dos ho­mens da Idade da Pedra em manter o fogo aceso — seu bem mais precioso e sagrado.

E lá vamos nós, de volta ao velho ônibus. Agacha- dos e amontoados, sacolejamos na escuridão, por vezes traspassada pelos clarões pálidos das oficinas. Desembar­camos em Schwelgem, no setor de trituração do coque, do outro lado do parque industrial. Descemos vários an­dares nas profundezas da terra; a luz infiltra-se cada vez mais fraca. O ar toma-se mais carregado de pó, mais in­suportável. Isso, no entanto, é só o começo. Entregam- nos uma pistola de ar comprimido para retirarmos a poeira que se acumula em grossas camadas nos vãos das máqui­nas. Todo aquele pó eleva-se no ar em segundos e em tal quantidade que não conseguimos enxergar nossas próprias mãos; entra-nos pelas narinas e pela boca asfixiando-nos.

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Cada inspiração é um martírio. E não há como evitar, não conseguimos prender a respiração por muito tempo. O tra­balho precisa ser feito. O encarregado fica parado no alto da escada, onde sopra um pouco de ar fresco. Como um policial vigiando prisioneiros, grita: “Mais rápido! Se tra­balharem mais depressa, podem terminar o serviço em duas ou três horas e sair para respirar bastante” .

Três horas! Mais de três mil inspirações, e os pulmões estarão inteiramente cheios de pó de coque. Como se não bastasse, ainda há as emanações do gás de coque, que pro­voca tontura. Pergunto pelas máscaras de proteção, e Meh­met explica: “Eles não dão máscara para a gente, porque acham que o trabalho ia ser mais lento e também porque o chefe diz que não tem dinheiro para essas coisas!” Mes­mo os operários que trabalham aqui há mais tempo de­monstram um pouco de medo desse serviço. Helmut, um alemão de trinta anos que aparenta cinqüenta, faz o se­guinte relato: “ Há um ano atrás, seis colegas morreram por causa das emanações de gás na área do alto-fomo. Quando começaram a sentir o cheiro, entraram em pâni­co e, em vez de descerem, subiram. Foi onde erraram, por­que o gás também sobe. Um grande amigo meu trabalha­va naquela equipe. Ele conseguiu se salvar porque, um dia antes, tinha tomado um porre tão grande que não conse­guiu sair da cama para ir trabalhar” .

Enquanto retiramos a poeira com as pás e a jogamos dentro de sacos plásticos, no meio de toda uma nuvem, os montadores da Thyssen, que trabalham alguns metros abaixo de nós, passam correndo em direção ao ar livre. Um deles chega a gritar: “Vocês são burros! Como é que alguém consègue trabalhar no meio de tanta sujeira?” Meia hora depois, um encarregado da segurança honra-nos com sua visita. Tapando o nariz: “Os operários estão reclaman­do. Dizem que não podem trabalhar com toda essa imun- dície que vocês estão fazendo. Andem logo com isso!” E retira-se rapidamente. Trabalhamos até quase o final do turno. A última hora é reservada ao transporte dos sacos plásticos cheios de pó. Com eles nas costas, subimos a es-

\\

cada de ferro e vamos jogá-los num tambor. Embora es­tafante, considero essa parte do trabalho uma redenção— pelo menos podemos respirar um pouco de ar “puro” .

Pausa de vinte minutos para descanso. Vamos nos sen­tar na escada de ferro, onde há um pouco menos de pó. Os trabalhadores turcos percebem que eu não trouxe nada para comer. Insistem em repartir seus sanduíches comigo. Ne- dim, o mais velho deles, oferece-me um pouco de chá quen­te, qué traz numa garrafa térmica. Dividem, entre si, o pou­co que têm e conversam num tom suave e amistoso — o que raríssimas vezes vi entre os trabalhadores alemães. Ou­tra coisa que me chama a atenção é o fato de sentarem-se longe dos alemães durante o horário de descanso. E qua­se nunca conversam em turco. Normalmente falam um ale­mão sofrível e preferem ficar calados, enquanto os alemães contam bravatas. Mais tarde Nedim me explica por que quase não conversam em turco: “É que os alemães pen­sam que a gente está falando mal deles. E uns acham que a gente fica mais forte se falar turco. Os alemães querem entender tudo para poder mandar melhor na gente*’.

Tempos depois vejo Alfred, um dos porta-vozes dos alemães, ficar furioso durante um intervalo de descanso ao ouvir os operários turcos conversando em sua língua: “ Se querem conversar, que seja em alemão! Ainda fala­mos alemão na Alemanha! Vocês vão ter muito tempo para falar essa língua de merda quando voltarem para o seu país de merda! E espero que isso não demore muito!”

Mais tarde conto a Nedim a cena que presenciei, e ele me mostra um pequeno cartaz que um colega turco havia encontrado na Casa da Juventude, uma instituição muni­cipal situada em Lünen. O cartaz contém um texto intitu­lado “Regras de conduta para visitantes estrangeiros” , no qual se lê:

• “Na presença de alemães ou pelo menos ao discor­rer sobre alemães [deve-se] falar alemão.

• “Na Alemanha temos por hábito não nos apresen­tar diante dos outros durante dois dias após comer alho. Esperamos o mesmo de nossos hóspedes.

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• “Alguns jovens estrangeiros julgam-se no direito de usar a Casa da Juventude só porque os pais ou um parente qualquer recolhem impostos na Alema­nha; isso só é verdade se os jovens estão integra­dos em nossos hábitos e costumes — e apenas sob essa condição!”

Na Thyssen não há tais‘‘regras de conduta* *, embora muitos operários alemães insistam em impô-las aos cole­gas turcos, que em geral se submetem para não “provocar**.

No dia seguinte, vamos trabalhar numa altura de dez metros, em campo aberto, com temperatura de dezessete graus abaixo de zero. Por toda parte, tabuletas com ca­veiras desenhadas e as inscrições: Proibida a Entrada de Pessoas Não-Autorizadas, Cuidado: Emanações DE GÁS!, e, em certos locais: OBRIGATÓRIO o USO DE Máscaras de Proteção.

Ninguém tinha nos prevenido sobre qualquer tipo de perigo e também não havia nenhuma “máscara de prote­ção**. Nem mesmo sabíamos se fazíamos parte das “pes­soas autorizadas** ou das “não-autorizadas**.

Sobre as plataformas metálicas, nossa “tropa de cho­que** é obrigada a retirar, com pás e picaretas, montes de lama semicongelada que transbordam de canos gigan­tescos.

Nesta altura o vento é glacial; temos as orelhas gela-: das e os dedos completamente entorpecidos, apesar das lu­vas de trabalho. Os próprios operários da Thyssen não são obrigados a trabalhar aqui fora sob tal temperatura; e o pessoal dos canteiros de obras recebe pagamento extra de­vido ao mau tempo. Mas para nós nada! Atacamos a la­ma com as picaretas, e pequenas lascas nos batem em cheio no rosto. Deveríamos estar usando óculos de proteção, mas quem se atreveria a pedi-los? Uma fumaça compacta eleva- se de tanta imundície e nos sufoca, por vezes nos cega. Transportamos a lama nos carrinhos até as calhas. As pás vergam continuamente sob o peso do lixo e até os carri­nhos de mão precisam ser desentortados a golpes de pás e picaretas. Mal conseguimos ouvir o som da própria voz

103 *

devido ao barulho infernal proveniente das salas das má­quinas, situadas nas proximidades. Não há necessidade de vigilância aqui em cima. O encarregado é o primeiro a de­saparecer; com certeza está abrigado em alguma cantina. Trabalhamos num ritmo louco, porque, se pararmos, não agüentaremos o frio. De vez em quando, alguém do gru­po vai se refugiar numa pequena sala de máquinas. O ba­rulho lá dentro é ensurdecedor, como se estivéssemos no meio das cataratas do Niágara. Mas as máquinas pelo me­nos são quentes. Nós nos apertamos contra elas, abraçando-as, para receber um pouco de calor. Corremos algum risco, pois há uma biela que gira permanentemente e, a menor falta de atenção, pode decepar um dedo. As­sim que encosto num lugar impróprio, a máquina põe-se a estalar, a chiar de modo inquietante, a soltar faíscas co­mo se fosse explodir no instante seguinte.

Depois, voltamos para nosso trabalho forçado, ba­tendo o queixo, roxos de frio. Ao cabo de seis horas, Jus- suf, um operário tunisiano, dá a palavra final: “ Inferno de gelo, isto aqui!’* E completa: “Antigamente os escra­vos eram mais bem tratados. Tinham mais valor que nós. O pessoal cuidava para que durassem muito tempo. Com a gente não. Tanto faz se a gente se arrebenta ou não. Tem um montão de homens lá fora querendo nosso lugar*’.

Um engenheiro de segurança da Thyssen está passando por ali. Anda de um lado para o outro, ao redor dos ca­nos, com um aparelho na mão. Bate no mostrador do apa­relho e murmura:

— Não é possível! — Em seguida, olha para nós, as­sustado.

Aproximo-me e pergunto:— Que caixinha essa? Que tem dentro?— E um aparelho para medir o gás. Vocês não têm

um? Então não deviam estar trabalhando nesta área.Começa a explicar como funciona o aparelho: quan­

do o ponteiro ultrapassa uma determinada marca, é sinal de perigo iminente; deve-se abandonar a área o mais rápi­do possível, caso contrário pode-se até desmaiar. Enquanto

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fala, percebo que o ponteiro de seu aparelho se mantém exatamente além da marca; chamo-lhe a atenção para is­so, mas ele me garante que o aparelho está com defeito, pois não é possível o ponteiro registrar essa marca. Vai buscar outro e meia hora depois está de volta. E mais uma vez o ponteiro insiste em ultrapassar a marca permitida. Irritado, dá uns tapas na caixinha, enquanto diz:

— Não pode ser! Esta droga está com o mesmo defeito.

— Está? — pergunto, olhando-o com um ar des­confiado.

E ele me tranqüiliza:— Tudo bem! Mesmo que o aparelho estivesse fun­

cionando bem, não haveria motivo para pânico. O vento empurra o gás para longe. — Dito isso, vai embora, car­regando sua caixinha mágica embaixo do braço. Quanto a nós, ficamos ali, consolando-nos com o vento glacial que nos protegerá das emanações de gás..

Semanas depois, no mesmo local, Helveli Raci, um dos trabalhadores turcos, participa de um episódio seme­lhante: “A gente também tinha um aparelho desses. De repente, ele começou a apitar. Perguntei o que queria di­zer todo aquele barulho, e me disseram que quando o apa­relho começa a apitar é porque está escapando gás. Daí eu disse que o aparelho estava apitando, e isso queria di­zer gás; por que a gente não saía dali? O chefe disse que era para continuar trabalhando. E a gente continuou. Daí o chefe foi embora com o aparelho. Tempos depois, ele voltou, trazendo o tal aparelho., que logo começou a api­tar de novo. Daí eu disse que alguma coisa estava errada, mas ele falou que o aparelho devia estar com defeito. E foi embora de novo. Depois voltou e tentou fazer o apa­relho parar de apitar. Mas o aparelho não parava. Ficava apitando e acendia umas luzes. E isso durou o turno to­do. Alguns colegas começaram a passar mal, mas a gente foi obrigado a continuar trabalhando. E nem deram más­cara de proteção para nós. É assim. A gente, que é de em­preiteira, fica ali, trabalhando e respirando tudo aquilo,

tranqüilamente, até se arrebentar. Eles não querem saber de nada, só que a gente faça o serviço".

O regulamento da Thyssen exige que usemos sapatos com biqueiras de aço e capacetes de proteção. A legisla­ção determina que ambos, além das luvas de trabalho, se­jam fornecidos por Adler, que, no entanto, trapaceia em tudo, nas coisas grandes como nas pequenas. Vive “ eco­nomizando**. Não é à toa que seu ditado preferido é: “De grão em grão a galinha enche o papo” . Quando o pessoal escasseia, os encarregados e supervisores da Thyssen fa­zem vista grossa e não se importam que os operários en­viados por Adler trabalhem de tênis. Estamos sujeitos a todos os tipos de perigo: detritos que caem sobre nós, car­rinhos de mão sobrecarregados, empilhadeiras que circu­lam por toda a parte. Durante o tempo em que trabalhei na TTiyssen, nunca usei sapatos de proteção, como deter­minam as normas de segurança. E muitos outros operá­rios tampouco usaram. Foi muita sorte eu não ter sofrido nenhum acidente.

Conseguimos luvas de trabalho fuçando nos tambo­res de lixo. Em geral estão sujas de óleo e rasgadas. Per­tencem aos operários da Thyssen que as jogam fora tão logo recebem luvas novas.

Quanto aos capacetes, devemos comprá-los. A não ser que um de nós tenha a sorte de encontrar um capacete velho, todo estragado. As cabeças dos operários alemães são mais valiosas e merecem mais proteção que as cabe­ças dos imigrantes. Por duas vezes, o “xerife** Zentel ar­rancou meu capacete para dá-lo a um alemão que havia esquecido o seu. Na primeira vez protestei:

— Ei, momento. Capacete meu! Eu comprou!Mas Zentel logo me fez ver qual era o meu lugar:— Nada aqui é seu. Quando muito aquele monte de

lixo! No fim do turno você vai receber o capacete de volta.É assim: expropriam-nos sem consulta prévia.Na segunda vez, fui escalado para trabalhar com um

alemão que estava sem seu capacete, dado de graça pela Remmert. E novamente tive de oferecer minha cabeça.

106 v

Thyssen informaO arupo Thvssen teve um

bom desempenho no exercício 1984/85. Os fatores de expansão e crescimento mantiveram-se essencialmente nos mesmos patamares do ano anterior. Os setores retardatários puderam recuperar-se. As transações da Thyssen-Weft no exterior cresceram 6% no primeiro semestre. Todos os ramos de atividade da empresa tiveram saldo positivo. Os resultados obtidos pelo grupo no primeiro semestre são comparativamente bem melhores que os do mesmo semestre do ano anterior. Por ocasião da última reunião administrativa, Thyssen anunciou a renovação do pagamento de um dividendo para o corrente ano.

Na siderurgia a produção estabilizou-se no nfvel alcançado no ano anterior. Os preços puderam restabelecer- se paulatinamente nos últimos meses, porque a elevação do

dólar contribuiu também para um aumento considerável no preço das matérias-primas. As transações cresceram 11% no primeiro semestre.Os aços Thyssen deverão ter novamente um saldo positivo no exercício 1984/85.

Atualmente, todas as empresas de Acos Especiais Thvssen estão com suas atividades em nfvel normal ou melhor. Até o momento, as transações cresceram 8%. Os aumentos consideráveis, previstos para as ligas de metal cotadas em dólares, deverão ser suportados. No geral, Aços Especiais Thyssen esperam ter novamente resultados positivos no exercício 1984/85.

No âmbito dos bens de investimento e de manufatura. foi registrado no primeiro semestre um acréscimo global de transações da ordem de

' 7%. Na Indústria Thvssen o volume de encomendas está em forte expansão. Isso e mais os ajustes de programa dos

últimos anos consolidam a rentabilidade. A Indústria Thyssen prevê um saldo positivo para o exercfcio 1984/85. Na Budd. a maior parte das empresas continua em plena atividade e os resultados serão nitidamente positivos. A direção do setor de ferrovias americanas agora está com a Transit America Inc. Os encargos provenientes dos antigos contratos deficitários já foram levados em consideração no balanço do último ano. As Pedreiras do Reno mantêm os resultados positivos.

O setor Comércio e Prestações de Serviço iá há alguns anos tem ampliado consideravelmente seus negócios com o exterior. No primeiro semestre, as transações tiveram um aumento de 6%.

— Capacete meu. Eu não pode dar. Se eu não tem capacete, vai para rua.

Mas Zentel apareceu e ordenou:— Dê o capacete para ele. Senão eu é que ponho vo­

cê no olho da rua. E ande logo!Tive de obedecer e trabalhei o dia inteiro sem capa­

cete, num setor da Brammenstrasse onde fragmentos de minério incandescente caíam com estrondo a alguns me­tros de distância. Se um deles caísse sobre mim, no míni­mo provocaria queimaduras graves.

Werner, o operário alemão, aceita com naturalidade que sua segurança dependa de minha insegurança. Digo- lhe isso, mas ele se contenta em responder: “Não posso

107"

TCWÍ m

A receita permanece estável, e a empresa fechará o ano com lucro.

Quanto às participações ainda não consolidadas pelo balanço, a Thyssen também espera resultados positivos.

Thyssen-Welt 1983/84 (1.° de outubro de 1983 — 30 de setembro de 1984)______

Total de transações dos setores industriaisAço 10,3 BM'Aço especial 3,5 BMBens deinvestimentoe manufatura , 9,8 BMComércio eprestaçõesde serviço 17,6 BMTotal detransações dogrupo Thyssen 41,2 BMTransações internas 8,8 BMTotal detransações daThyssen-Welt 32,4 BM

Empregados efetivos em mécüa anual

Do Balanço

132.950

Total do balanço Capital próprio Investimentos Amortizações Superávit anual

19,2 BM 2,6 BM

986 MM*' 1.120 MM

181 MM

' BM » baiões da marcos * * MM *• nrâhões de marcos

THYSSEN SOCIEDADE ANÔNIMA

fazer nada. Só faço o que me dizem. Você bateu em porta errada, vá se queixar em outra freguesia” . Pouco depois, tem a oportunidade de demonstrar seu desprezo por mim: “Esse pessoal da Adler não vale nada, absolutamente na­da! Ninguém pode levar vocês a sério. Eu não mexeria uma palha se recebesse a miséria que vocês ganham” . Na rea­lidade, o que ele está me dizendo é o seguinte: “Você não tem nenhum direito aqui. Oficialmente, você não existe: não tem documentos, nem contrato de trabalho, nem na­da” . É por isso que me olha com desprezo. É alemão e trabalha para a Remmert: é um privilegiado, portanto. Tem direito a horas extras e descanso semanal remunerados; seu salário bruto é de 11,28 marcos por hora. (Evidente-

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mente, a Remmert não paga adicional de insalubridade, ainda que seus empregados trabalhem a maior parte do tempo manipulando todos os tipos de gordura imunda e de óleo usado e fétido e ainda engulam todo aquele pó de mineração.)

Nós, os empregados da Adler, fazemos o mesmo ser­viço por um salário bem menor — muito menor, diga-se de passagem.

Alugo um apartamento de um cômodo e meio na Die- selstrasse em Duisburg. Assim, aproximo-me um pouco mais de Ali; quero viver realmente como um operário turco vive na Alemanha Ocidental, e não ficar “pulando” de emprego em emprego. Cada vez mais me identifico com meu papel. Já me peguei, durante o sono, falando um ale­mão canhestro. Agora sei quanta energia é preciso ter pa­ra suportar provisoriamente aquilo que meus colegas imi­grantes suportam ao longo de suas vidas. Não foi muito difícil arranjar esse apartamento: Bruckhausen é um bairro que está morrendo. Durante muitos anos praticamente só turcos moravam aqui, mas a grande maioria voltou para seu país. Muitas casas estão abandonadas ou tão velhas que não servem mais para habitação. Meu apartamento não tem pia nem chuveiro; o banheiro é coletivo e fica no corredor. Pago 180 marcos de aluguel. Com uma peque­na reforma pude me permitir o luxo de ter uma banheira bem no meio do quarto, instalada por um amigo meu.

Procuro tornar meu novo lar mais confortável. Con­sigo arranjar dois caixotes de lixo para colocar no jardim. Os vizinhos viviam atirando lixo no jardim, consideran­do que isso não poderia piorar a “qualidade de vida” do local. Bruckhausen fica bem perto da Thyssen. Se alguém desejar envelhecer neste bairro precisará ter uma saúde de ferro. Por todos os lados há cartazes instruindo a popula­ção para chamar um certo número de telefone, caso o mau cheiro se torne insuportável. Mas ele é quase sempre insu­portável.

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Apesar de tudo, é em Bruckhausen que eu quero me instalar. Aqui ainda não estou completamente só. Quem sabe, num dia de verão, eu dê uma festa para os vizinhos e amigos no pequeno jardim que passei a conservar...

“É ama emergência!

Alguns operários trabalham o mês inteiro sem um dia de folga. São tratados como bestas de carga. Não têm vi­da privada. Vão para casa depois do trabalho porque fica mais barato para a empresa (para eles, é claro, seria mais prático pernoitar na fábrica ou mesmo na Remmert). Em geral são jovens. Depois de alguns anos trabalhando no meio de tanta sujeira, ficam extenuados e doentes — muitas vezes pelo resto da vida. Para os patrões não passam de pessoas descartáveis, que podem ser substituídas a qual­quer momento, já que nas portas das indústrias sempre há extensas filas de desempregados à espera de um servi­ço qualquer, pelo qual ficariam imensamente gratos. Es­se tipo de trabalho desgastante explica por que raramente alguém consegue suportá-lo por um ano ou dois. Depois de um par de meses a saúde já está comprometida para o resto da vida. Principalmente quando se tem de dobrar ou mesmo triplicar o horário de trabalho. Um colega meu, de apenas vinte anos, trabalha até 350 horas por mês. Os supervisores da Thyssen sabem disso, a siderúrgica lucra com isso, e os relógios de ponto comprovam isso.

É muito comum a Thyssen requisitar as “ tropas de choque” da Remmert de uma hora para outra. O “xeri­fe” tira os operários do chuveiro, depois que já se mata­ram de trabalhar, e manda-os voltar de Duisburg para Oberhausen, para toda aquela imundície, pois é necessá­rio cumprir mais um turno. Ou então um telefonema arranca-os da cama, convocando-os para o serviço, pre­cisamente quando acabaram de pegar no sono. Interro­gada, a maioria dos trabalhadores (inclusive os mais jo­vens e robustos) afirma não agüentar mais de quinze ou dezesseis turnos semanais. E nas raras folgas de fim de se

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mana passam o tempo todo dormindo, como mortos. Pe­guemos o jovem F. como exemplo: quase todos os sába­dos e domingos faz dois turnos seguidos. Nunca se revol­ta e nunca se queixa. Está sempre metido nos buracos mais imundos, esgaravatando camadas de graxa fétida e quen­te, raspando a ferrugem das máquinas — sempre sujo, dos pés à cabeça. Tem sempre um ar um pouco ausente, e o rosto, envelhecido, parece guardar certa luz. Pouquíssi­mas vezes consegue formular uma frase coerente. É o mais velho de uma família de doze filhos, dos quais quatro não moram mais com os pais num apartamento de cem me­tros quadrados. Está sempre com fome. Se alguém deixar de comer o lanche, lá está ele! Contribui mensalmente com 100 marcos para ajudar a equilibrar o orçamento do­méstico.

Quando algum colega se queixa do serviço, F. pro­testa: “A gente deve ficar feliz por ter um emprego!” Ou então costuma dizer: “Eu faço qualquer trabalho” . Cer­ta vez, um vigia da Thyssen nos pegou parados num in­tervalo de descanso que fizemos por conta própria; F. era o único que continuava trabalhando, e seu exemplo foi lou­vado pelo vigia.

Ele conta que seu recorde de trabalho contínuo é de quarenta horas, com cinco ou seis de descanso. Há pou­cas semanas chegou a trabalhar 24 horas seguidas. Vive remexendo no lixo à procura de luvas que os operários da Thyssen usam e jogam fora. Recolhe inclusive as que não têm par. Mais cedo ou mais tarde encontrará a que está faltando. Já deve ter umas vinte. Intrigado, resolvo per­guntar:

— Mas que você faz com elas? Não pode usar tudo junto.

— Nunca se sabe — responde-me. — A gente não re­cebe luva. Por isso é bom sempre ter algumas. Você nem imagina quantas coisas eu já tenho. Também é bom ter muitos capacetes, porque sempre alguma coisa cai na ca­beça da gente.

Sinto pena dele. Está sempre radiante... Algumas se­

111 *

manas depois, ao ser novamente escalado para um turno extra no fim de semana, vejo-o suplicar ao “xerife” :

— Não posso mais! Não posso, não consigo!— O quê! Você sempre agüentou.— Mas hoje não, por favor! Hoje não!— Vou me lembrar disso — diz o “xerife” . — Eu

sempre pude contar com você.Dou os parabéns a F.:— Ainda bem você recusou. Você se mata trabalhar.Na verdade, ele não conseguiria mesmo. Mal podia

ficar em pé. Estava pálido como um cadáver, e suas mãos tremiam sem parar.

Um colega conta que, no ano passado, durante os fe­riados da Páscoa, trabalharam 36 horas ininterruptas: “A Remmert ficou encarregada de limpar a linha de monta­gem de pintura da Opel em Bochum. O trabalho devia es­tar pronto antes que a equipe de pintores voltasse para ò serviço, ou seja, na terça-feira depois da Páscoa, às seis horas” . Mas essa maratona na fábrica de automóveis não foi o “ponto culminante” para os operários. “Há dois anos a gente foi trabalhar na construção de um centro esporti­vo perto de Frankfurt. Junto com outra equipe, que já es­tava lá, trabalhamos cinqüenta horas seguidas, até cair de cansaço.”

Hermann T., operário alemão de aproximadamente 35 anos, é um dos mais obstinados “recordistas de horas” da Remmert. E isso está estampado em seu rosto pálido, cinzento, magérrimo e acabado. Ficou algum tempo de­sempregado e, como poucos, está muito grato por poder trabalhar até cair. Entrou na Remmert em fevereiro de 1985 e de lá para cá trabalha como um possesso. Ele mesmo declara: em abril de 1985, pela primeira vez, trabalhou 350 horas no mês. A mesma coisa em junho, quando “acu­mulou todas as horas” e já havia completado trezentas ho­ras no dia 25, “antes mesmo do fim do mês” . Prossegue em seu relato: “Na semana passada, trabalhei quatro tur­nos seguidos, sexta e sábado. Cheguei junto com vocês na Thyssen, às seis da manhã, e só fui sair no sábado, às duas

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e quinze, quando bati o ponto” . Para Hermann, esse ti­po de maratona nada tem de excepcional. É claro que cons­titui uma infração flagrante à legislação do tempo de tra­balho, mas, para não dar na vista, a cada turno Hermann é escalado para um lugar diferente dentro do imenso par­que industrial da Thyssen. “Sexta-feira de manhã eu es­tava em Ruhrort, limpando uma oficina. Ao meio-dia, já estava na Oxy I. À noite, fui para a central elétrica de Voer- de e no sábado de manhã já estava de volta a Ruhrort.” Em frangalhos, com as pernas bambas, foi se arrastando para casa. “ Comi alguma coisa, mas na verdade não ti­nha um pingo de fome. Antes de me atirar na cama, ain­da pedi para minha mulher me acordar às oito e quinze da noite, porque eu queria ver o filme que ia passar na televisão. Que ilusão! Cai na cama e só fui acordar ao meio- dia de domingo!”

Hermann conta como as coisas funcionavam na Thyssen: “Trabalhos de dezesseis, doze, treze horas num único dia — todos os sábados, todos os domingos, todos os feriados — sem parar. Páscoa, Pentecostes, não impor­ta. Lá estávamos nós. Muita coisa precisava ser feita. Ha­viam desligado o alto-forno para ser totalmente limpo. Já imaginou? Trabalhamos como escravos, debaixo de chu­va, vento, neve, frio — não importa. Os uniformes fica­vam ensopados. Uma equipe de dez a quinze trabalhado­res da Remmert, mais o pessoal da Adler. No total, tra­balhamos ali quase cinco meses” .

Sezer O. (44 anos), operário turco, afirma deter o re­corde de permanência no mesmo serviço. Foi durante a construção do metrô de Munique, quando a equipe da qual participava trabalhou 72 horas num poço subterrâneo. Os operários aproveitavam os intervalos de trinta minutos para dormir. Sezer conta que, nessa maratona, muitos se aci­dentaram. Todos eram imigrantes.

É bastante comum o “xerife” nos obrigar a fazer tur­no dobrado (coação é o termo jurídico para isso). Esgo­tados dentro do ônibus, prontos para voltar para casa, al­guns até já dormindo nos assentos, chega o “xerife” e,

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com a maior naturalidade, diz: “O trabalho não pode ser interrompido agora. Vamos ter que fazer turno dobrado” . Alguns protestam, querem ir embora, estão exaustos. Mas a Thyssen exige que continuemos trabalhando.

T., um operário argelino, precisa impreterivelmente ir para casa. E demitido na hora. Retiram-no do ônibus e o abandonam no meio da rua, para que saiba exatamente qual é seu lugar. Eis o diálogo que precedeu sua demissão:

XERIFE: Vocês têm que continuar trabalhando até as dez da noite.

Operário Argelino.* Puta que pariu! Eu não sou robô!

XERIFE: Todos vocês!Operário Argelino: Mas eu preciso ir para casa

sem falta!XERIFE: Acontece que é uma emergência. Se você for

para casa não precisa voltar.Operário Argelino: Mas eu preciso ir...XERIFE: Então vá! Mas não volte! Chega! Acabou!

Rua! Não quero mais saber. Pode ir embora! (Voltando- se para os outros, que estão calados e com medo). Preci­so de quarenta homens para amanhã também. Ordens da Thyssen! Acham que eu também não gostaria de ter uma noite de descanso? Mas isso ninguém me pergunta, não é? Hoje à tarde eu deveria ter ido ao dentista, por caiisa da minha jaqueta, mas não pude. E daí? Então, o que é que vocês pensam? Queria ver se fosse na guerra... Aí, sim, seria mil vezes pior.

“É melhor fingir que não entendeu”

Durante um intervalo para descanso, num daqueles quilométricos corredores sombrios e desertos da oficina de concreção III, aparece o supervisor da Thyssen acom­panhado de seu encarregado. Vem verificar a quantidade de lama e pó de concreção que já havíamos desentulha- do. A instalação só voltaria a funcionar depois que tivés­semos terminado o serviço.

114“

A aparência oriental de Jussuf faz com que o jovem supervisor volte a se lembrar das últimas férias:

— Você é da Tunísia?— Sou — Jussuf responde.— Que país fantástico! Vamos voltar lá, nas próxi­

mas férias, müiha mulher e eu. Lá, sim, a gente pode des­cansar de verdade. E as coisas são bem mais baratas.

Surpreso, Jussuf sorri agradecido. É tão raro ver um superior, e ainda por cima alemão, conversar com um imi­grante sobre assuntos que não dizem respeito ao trabalho! E, mais raro ainda, ouvi-lo falar bem do país do outro. Jussuf conta que seus pais moram perto da praia e dá-lhe o endereço, convidando-o a visitá-los quando estiver na Tunísia. O supervisor aceita de imediato:

— Pode estar certo que eu vou! Mas o que eu queria mesmo é que você me arranjasse outros endereços. Sabe o que estou querendo dizer, não? As mulheres do seu país são muito gostosas e trepam como ninguém. É uma ma­ravilha! Quanto elas estão cobrando agora?

— Não sei — responde Jussuf.— Com 20 marcos a gente tem tudo que quer no seu país!Ferido em sua honra, Jussuf ainda responde:— Não sei!Mas o supervisor insiste, enfiando o polegar da mão

esquerda entre o indicador e o médio da direita:— As mulheres de lá estão sempre muito excitadas.

Como gatas selvagens. É só puxar o véu, pronto, ficam logo no cio. Você não tem uma irmã, por acaso? Ou será que ela ainda é muito criança? Vocês casam tão cedo...

* Jussuf tenta disfarçar a humilhação diante dos colegas.— Mas o senhor não vai viajar com a sua mulher?— Isso não tem a menor importância. Ela fica o dia

inteiro na praia e não vê coisa nenhuma. Aliás, é um ho­tel maravilhoso, igual ao Intercontinental daqui. Dois mil e poucos marcos por duas semanas com tudo incluído. Da última vez, demos um pulo até um país ali perto... Como é mesmo o nome?

— Marrocos — Jussuf responde polidamente.

115'

— É claro, Marrocos! Eu tinha esquecido. Também está cheio de mulheres gostosas. Mas me diga... que lín­gua vocês falam? Espanhol?

Jussuf não agüenta mais:— Não! Árabe! Com licença, eu vou ao banheiro.O supervisor aproveita para sentar-se no chão perto

de nós e continuar recordando suas férias com entusiasmo.— Ah, se eu estivesse no Mediterrâneo agora... Na­

da de trabalho, só o sol... E mulheres, é claro, muitas mu­lheres! — De repente, vira-se para mim e pergunta: — É verdade que na Anatólia a gente pode comprar uma mu­lher com uma cabra? — Resolvo olhar para o outro lado, mas ele insiste: — Não é verdade? Se não é, como foi que você se livrou da sua mãe?

— Alemão sempre acha que pode comprar tudo — respondo. — Mas coisas mais bonita do mundo gente não consegue com dinheiro. Por isso alemão tão pobre, mes­mo se tem dinheiro.

O supervisor sente-se atacado e desforra:— Nem de graça eu queria uma daquelas putas dos

seus haréns! São umas porcas, estão sempre fedendo. A gente primeiro tem que dar um banho nelas. E quando ter­mina de arrancar aqueles trapos que elas vestem, pronto... a gente já está de pinto mole de novo.

Mais tarde, Jussuf leva-me para um canto e diz: “Sa­ber alemão não é boa coisa. A gente sempre se aborrece. É melhor fingir que não entendeu!” E conta o exemplo de alguns jovens tunisianos que, em virtude das constan­tes humilhações, decidiram não aprender a língua alemã! “Só falam ‘sim, senhor’, para qualquer coisa que o chefe diz. Assim, não tem discussão!”

Vários banheiros da Thyssen vivem rabiscados com frases e insultos xenófobos. Nas paredes da fábrica tam­bém sempre há alguma pichação ofensiva aos imigrantes, e ninguém se encarrega de apagá-la. Eis alguns exemplos típicos dessa literatura de mictÒrio, recolhidos dentre cen­tenas nas instalações Oxygen I: Merda boiando = turco nadando. Perto dali, na cantina, há a seguinte frase: Fo­

116'

ra, turcos! A Alemanha para os alemães! Ao lado, al­guém que gosta de animais teve o bom gosto de pregar um adesivo com a figura de um ursinho e os dizeres: “Prote­ja as espécies em extinção!” Vinte metros adiante, uma inscrição com letras garrafais: M o rte a todos os tur­cos! Inscrição que também se encontra no banheiro do setor de laminação na Kaltwalzstrasse. Anotei algumas, já meio envelhecidas, o que prova que estão ali há muito tempo:

Melhor mil ratos na cama que um turco no porão! Enforquem todos os turcos e todas as alemãs que andaram com eles!Com outra caligrafia:Turcos de merda, nenhuma forca é bastante alta para vocês! Fuzilem todos esses turcos de merda!E em outra caligrafia:Tenho orgulho de ser alemão!A Alemanha para nós, alemães!E em outra ainda:Antes a merda de um nazista que um turco de merda! Nunca houve um alemão melhor que Adolf Hitler!Seja um bom alemão: mate um turco no porão!

Conversa no horário de descanso

Os operários alemães Michael (34 anos), Udo (26) e Alfred (53), seu porta-voz, montaram uma espécie de ponto de encontro num compartimento subterrâneo da Bramm- strasse. Improvisaram um banco, colocando uma tábua sobre dois barris, e nele se instalaram para beber e fumar. Sentado sobre uma página do jornal turco Hürriyet (“ Li­berdade”), vejo-me condenado ao papel de ouvinte. A con­versa é interrompida sem cêssar pelo estrondo do minério caindo na terra.

ALFRED: Podem crer! Na época de Hitler quem rou-

bava qualquer coisa de um companheiro, nem que fosse um cadarço, era levado para o paredão e fuzilado. É ver­dade, podem crer! E era bem feito! Quem roubava de um companheiro, era linchado ou fuzilado. Devia ser assim ainda hoje. Não se rouba nada dos amigos, isso não se faz!

EU: Mas chefe pode roubar você?Alfred: Isso não tem nada a ver! Agora, quem dá

cabo de um companheiro ou lhe rouba...EU: Mas chefe também vai para paredão se roubar?A lfred (ligeiramente ameaçador): As coisas deviam

ser como no tempo de Hitler. Aí, sim, a Europa estaria em ordem!

EU: Muita gente fuzilada?Alfred: Você precisava estar lá para ver.UdO: Naquela época os velhos podiam andar na rua.A lfred: É verdade. Naquela época uma vovozinha

de setenta anos podia andar à noite pela rua com 10 mil marcos na bolsa que nada acontecia.

EU: Com tanto dinheiro, vovozinha ia de carro, não a pé sozinha...

Alfred: Meu pai morava numa cidade grande, mui­to grande... Leipzig, a cidade das feiras, onde eu nasci. Meu pai tini» moto, carro e bicicleta. A bicicleta ficava no quintal, o ano inteiro e quando enferrujava ele comprava uma no­va. Então deixava essa nova no quintal. Nunca foi roubada.

EU: E quem ia querer bicicleta estragada?A lfred (tentando apelar para minha consciência, co­

mo se todos os imigrantes fossem ladrões em potencial): Limpe bem essas suas orelhas de jumento e preste aten­ção no que eu digo!

EU: Como assim?ALFRED: Sobre quem rouba, quem surrupia! Veja

bem, antigamente não era como hoje, que todo mundo tem máquina de lavar. A gente tinha uma lavadeira, a sra. Müller, porque meus pais tinham uma lojinha. Todos os meses era aquele montão de roupa, entende? No inverno, ela estendia a roupa no chão; no verão, pendurava no quin­tal. E nunca sumiu nada, nem mesmo um lenço.

118»

Eu (voliando-me para os outros): Eu não ia querer lenço sujo ranho, eu ter lenço papel.

A lfre d (sem se perturbar): Nem mesmo um lenço...EU: Mas aquela época estrangeiro não vivia muito

bem, não?Alfred: Preste atenção! Naquela época a disciplina

e a ordem imperavam na Alemanha inteira.EU: É... Mas e judeu? Vocês matou judeu, não

matou?ALFRED: Vá à merda com os seus judeus! Naquela

época a gente aprendia a respeitar os mais velhos. Era is­so que nos ensinavam, que enfiavam na nossa cabeça. O professor na escola, e os pais em casa. Você pensa que uma criança se atrevia a sentar no trem? Meteram na cabeça da gente que era para deixar o lugar para os mais velhos e isso estava muito claro!

EU: Você quer dizer que pais era melhor?Alfred: Na verdade era uma ditadura, mas eu me

sentia bem melhor naquela época do que hoje, com toda essa merda de gente que vive aqui.

EU: Mas por que vocês matou tanto judeu?UDO (querendo dar a deixa para Alfred): Porque

eram estrangeiros.ALFRED: Quer mesmo saber por quê? Quer mesmo

saber?Eu (como se ignorasse o motivo): Eu quer, sim.Alfred: Hitler só cometeu um erro... devia ter vivi­

do mais uns cinco anos. Então não ia sobrar ninguém, ne­nhum deles, nenhum! Basta um judeu meter o dedo em alguma coisa para tudo começar a descambar.. E não im­porta se é um judeu rico ou pobre. Tem muito judeu rico por aí. Por exemplo: Rockefeller, Morgenthau, e outros. Estão sempre provocando desgraça, desordem e terror; é só ler os livros de História. Eles têm dinheiro para con­trolar as pesquisas científicas. Têm dinheiro, têm poder de vida e morte. São assim. Veja bem, se Hitler tivesse vi­vido mais uns cinco anos, se as coisas tivessem corrido bem para ele, esse tipo de gente não existiria mais, pode crer!

119 *

EU: É... Vocês também màtou cigano.Michael: Não eram alemães de raça pura, por isso

ele acabou com todos. Só não acabou com os alemães de raça pura.

UDO: É verdade! Mas não foi só Hitler!EU: E ele também acabava comigo? (Não obtenho

resposta.)ALFRED: Você quer saber quem foi que começou com

toda essa história de campo de concentração? Falando bem sério mesmo? (E, elevando a voz, responde à própria per­gunta.) Foram os ingleses!

UDO: Os americanos! Foram os americanos que co­meçaram tudo isso!

A lfre d (insistindo): Não e não! Foram os ingleses! Churchili, sim, Churchill começou tudo isso quando era primeiro-tenente do Exército inglês. Sabe, na época das guerras coloniais ele era primeiro-tenente... enfim, sargento.

MICHAEL: Hitler não devia ter feito uma coisa dessas!

ALFRED: E sabe o que Churchill fez?M ichael (insistindo): Não, ele não podia ter feito

essa sujeira!ALFRED: Churchill lutou em duas frentes.Michael: Não importa, Hitler não devia...A lfre d (cortando-lhe a frase): Churchill, com aquele

exército colonialista, nos expulsou do sudoeste da África. Fez isso com a gente, e também com os bôeres... Você já ouviu falar dos bôeres, não? Pois Churchill prendia as mu­lheres e crianças bôeres num acampamento no meio do de­serto e deixava todo mundo morrer...

MICHAEL: Isso também não é direito. Mas Hitler foi o maior assassino de todos os tempos...

A lfre d (irritado com Michael, volta-se contra mim): Você não é nenhum idiota, é?

EU: Bom, depende...Alfred: Sabe qual é a diferença entre um turco e um

judeu?

‘ 120 4

EU: Não tem diferença. Dois gente, ser humano.A lfre d (triunfantef. Mas claro que tem! Para os ju­

deus o pior já passou!UDO (pede a palavra a Alfred): Ei, conheço uma

melhor.ALFRED: Então conte!Udo (voltando-separa mim): Quantos turcos cabem

dentro de um fusca?EU: Eu não sabe.UDO: Vinte mil. Não acredita?EU: Se você diz...UDO: Não quer saber como?EU: Melhor não.UDO: É muito simples. Dois na frente, dois atrás, e

o resto no cinzeiro.A lfre d (rispidamente): Muito engraçado! Fazia tem­

po que eu não ria tanto. Essa é tão velha que tem barba, já a escutei no mínimo cem vezes. Mas vocês conhecem a última? Um garotinho turco está passeando com o ca­chorro, um pastor alemão. De repente, eles passam por um homem, um alemão, que pergunta: *'‘Aonde é que vo­cê vai com esse porco?** E o turquinho responde: “Não é porco, é cão de raça, pastor alemão, com pedigree e tu­do!** Então o homem diz: “ Cale a boca, não estou falan­do com você!** (E cai na risada, acompanhado por Udo.)

Michael: Não acho legal vocês contarem essas coi­sas diante do Ali. Ele pode não entender muito bem.

EU: Eu não acha graça. E também eu não acha gra­ça piada com judeu. (Voltando-mepara Alfred): Eu acha vocês não têm muita coisa rir, por isso vocês faz piada com outro.

A lf re d (irritado): Foi só uma brincadeira. E não se metam nos nossos assuntos, porque aí é que não vão ter do que rir. (Provocando-me): Você conhece Mengele?

EU: Sim. Médico assassino de campo concentração.ALFRED: Mengele não era tão burro. Por exemplo,

nunca usou turcos nas experiências que fazia. E sabe por quê? (Percebendo que prefiro ficar calado, lança-me um

' 1219

olhar cheio de ódio.) Porque vocês não servem para na­da, nem para ser usados em experiências. .

MlCHAEL: Toda vez que eu vejo e escuto coisas da­quela época, sinto vergonha de ser alemão. No duro!

A lf re d (com certo prazer): Mengele prendia as pes­soas no gelo e ficava observando quanto tempo elas agüen­tavam ali, agachadas. (Voltando-se para mm): Você não é um turco de verdade, é? O que você é, afinal? Sua mãe é meio negra, não?

Eu: Minha mãe grega, meu pai turco.Alfred: Sei. Mas e você? O que você é? Turco ou

grego?Eu: Duas coisas. E também pouco alemão. Eu já es­

tá aqui dez anos.A lfre d (para os outros): Ouviram só o que esse idio­

ta disse? Ele se acha um pouco de tudo. É isso que acontece quando começam a misturar as raças.. Chega uma hora que já não são mais nada. Não têm mais pátria. Que nem os comunistas. Aliás, lá no lugar de onde ele veio está assim de comunistas! Parece um formigueiro. Sabe o que estão fazendo na Mannesmann? Pondo todos os turcos no olho da rua. Aqui na Remmert também a gente pode tocar fogo em todos os turcos; é só olhar para eles que dá vontade de vomitar... (Voltando-separa mim): Lembra o que eu disse ontem? Se não me obedecer direitinho, dou-lhe um tama­nho pontapé no rabo que você vai parar no olho da rua.

MlCHAEL: O que podemos fazer? Não podemos che­gar e dizer: “Tudo bem, vocês trabalham aqui, precisá­vamos de vocês, mas agora fim, acabou!" Eles estão aqui!

Eu: Gente não veio assim, livre vontade. Vocês foi buscar gente. Vocês foi lá, com conversa: “Vem, vem! Gente ganha muito dinheiro lá. Vem, nós precisa vocês!" Ninguém veio sozinho, porque quis.

MlCHAEL: É verdade! E nós devíamos recom- pensá-los.

UDO: É... Como a Mannesmann está fazendo.MlCHAEL: Tem muita gente sem emprego. Estamos .

atolados em plena crise.

122'

UDO: Na Mannesmann o pessoal foi logo falando: “ Vamos dar a cada um uma ajuda de custo no valor de 10 a 30 mil marcos para voltarem para os seus países” .

EU: Mas se todo imigrante vai embora, acaba dinhei­ro para pagar vocês. Vocês não têm nada para receber, se eles paga para gente esse dinheiro.

ALFRED: Não diga besteira! Não tem tanto turco por aqui!

EU: Milhão e meio. Vocês fica arruinado!Alfred: Sabe como é na Suíça? Se você trabalha na

Suíça como imigrante, assina um contrato por onze me­ses. No décimo-segundo mês, quando você está de férias lá no seu país, eles mandam uma carta dizendo se você pode voltar ou não. É ássim que a Suíça resolve essas coi­sas. Durante as férias, eles decidem se você volta ou fica lá mesmo na sua terra, tomando conta dos camelos.

A odisséia de Mehmet

Mehmet, um dos trabalhadores turcos, já com certa idade, sempre me impressionou por sua calma. É com uma paciência quase estóica que se encarrega das tarefas mais pesadas e perigosas. Gentil, com os cabelos embranqueci­dos e o rosto redondo e enrugado, tem um ar paternal. Fico chocado ao saber, por intermédio de Klaus, um ope­rário da Remmert, que Mehmet tem exatamente 49 anos. Eu lhe dava uns sessenta.

Um dia, Mehmet vem despedir-se pois segue para a Turquia em “ férias de cinco semanas” . Pergunto a um colega:

— Remmert costuma dar tanto tempo férias? Em Adler, impossível! Se gente pede cinco semanas eles põem gente em olho de rua.

— Aqui também — diz o empregado da Remmert.— Ninguém consegue cinco semanas de férias. Só Meh­met. É porque só num ano ele sofreu três acidentes gra­ves. Por isso o chefão resolveu ser bonzinho!

Vou me informar direito, e todos os colegas confir­

123 *

mam: Mehmet sofreu mesmo três acidentes graves. O pri­meiro nâo ocorreu dentro da Thyssen, mas na luxuosa vi­la que Remmert possui em Mülheim. Mehmet e um tra­balhador alemão estavam instalando uma sauna no porão da casa. Tiveram de cafar a terra e derrubar algumas paredes. +

“Foi assim que aconteceu’% conta um dos trabalha* dores. “O alemão estava cavando, e Mehmet percebeu que uma parede ia ruir. Rapidamente conseguiu tirar o alemão, que de outro modo teria morrido, e a parede caiu em cheio em cima do seu ombro esquerdo.” O médico tirou algu­mas radiografias e constatou que o osso estava esmigalha- do. Mehmet teria sua capacidade de trabalho reduzida em 46%. Precisou ficar no hospital mais de dois meses. A Remmert não lhe pagou um centavo de indenização nem de seguro. Em compensação, o próprio Remmert, aquele mercador de seres humanos, prometeu arranjar-lhe uma colocação na Thyssen, a despeito do grave ferimento.

No mês de fevereiro, Mehmet estava de novo na equi­pe, escalado para trabalhar na concreção no turno da noite, em pleno estado de alerta devido à poluição e debaixo de um frio de matar. Ele escorregou e, tentando instintiva­mente proteger o braço fraturado, caiu bem em cima do outro. Deslocou a omoplata, que teve de ser imobilizada. Nem bem se restabeleceu, Mehmet voltou ao trabalho, no turno da noite (afinal, tem mulher e três filhos, um deles com deformidade física congênita). Depois de catorze noi­tes consecutivas, atirou-se na cama, morto de cansaço. Duas horas depois, telefonaram para sua casa exigindo que se apresentasse para o turno do dia. Mehmet foi. Às oito das noite, quis ir para casa. O encarregado ordenou-lhe que voltasse para a fábrica imediatamente após o jantar, pois estava escalado para o turno da noite. Mehmet voltou.

Numa instalação subterrânea, Mehmet limpava os ca­nos por onde escoa o metal em fusão; o trabalho provoca muitas nuvens de vapor e impede que se enxergue um pal­mo adiante do nariz. Exausto e combalido, Mehmet en­fiou o pé dentro de um buraco e caiu. No hospital diag­

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nosticaram: rotura dos ligamentos. Mehmet foi submeti­do a duas operações, mas sua perna não se recuperou to­talmente. E ele continuou trabalhando.

Ao voltar das férias, Mehmet me diz: “ O que pode fazer? Eu precisa trabalhar. Criança, dívida...”

É muito difícil conversar com ele. Poucos dias depois de seu retomo, já está novamente exausto e combalido. Só consegue medir o tempo em turnos de trabalho e fre­qüentemente se esquece do que aconteceu durante meses inteiros. Só é capaz de lembrar se fazia;muito frio ou era um daqueles serviços nojentos que a Thyssen oferece. Mora na Alemanha desde 1960, mas seu alemão é canhestro. A luta pela sobrevivência não lhe dá tempo para aprender corretamente a língua. Sendo assim, precisei “arrancar” dele uma conversa (um colega turco serviu de intérprete).

A duras penas, Mehmet conseguiu realizar aquilo que os alemães consideram uma virtude: instalar-se com a fa­mília num país estranho. Ele conta que, durante os dez primeiros anos, trabalhou em todos os lugares onde ha­via serviço. Até que, em 1970, conseguiu uma colocação estável como motorista de empilhadeira na Thyssen, em Duisburg. Ganhava um salário líquido de 1 600,1 700 mar­cos, em turnos alternados. Por isso, arranjou outro emprego.

Depois de muitos anos de economia e com emprésti­mo bancário, finalmente pôde comprar uma casinha ge­minada, meio decrépita, em Duisburg-Mettmann. “ Se eu tivesse continuado na Thyssen, ela já estaria totalmente paga.” Seu chefe liquidou-lhe as modestas pretensões. “Foi no ano de 1980. Eu ia sair de férias. O chefe do turno apa­receu e falou para nós: ‘Eu quero que me tragam um ta­pete da Turquia. Mas autêntico!’ Então eu disse: ‘Olhe, um autêntico tapete turco deve custar uns 5 000 marcos. Eu não tenho tanto dinheiro’. ‘Não quero nem saber! Se você não me trouxer um daqueles tapetes, vai ver só uma coisa!’ ”

Assim que Mehmet voltou da Turquia, o chefe pas­sou a esfolar-lhe a pele como “reprimenda” pelo “pre­

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sente” recusado. “Um dia ele me disse: ‘Venha até meu escritório!’ Chegando lá, começou a me xingar, e eu fi­quei quieto. Três horas depois, apareceu um dos guardas de segurança da fábrica, agarrou meu braço e disse para eu ir embora. Foram falar que eu tinha batido no chefe. Mas claro que eu não fiz isso.”

Depois de dez anos de trabalho, Mehmet foi despe­dido sem nenhuma prova concreta contra ele e sem rece­ber aviso prévio. Tampouco foi intimado a depor para ex­plicar as “lesões corporais” que supostamente provoca­ra. A repartição de assistência judiciária recusou-se a defendê-lo porque a administração da Thyssen alegara “agressão a colega” para justificar sua demissão. Meh­met chegou a apresentar testemunhas — entre as quais, alguns operários alemães —, e todos depuseram a seu fa­vor, dizendo que o motivo da dispensa era uma farsa.

“Fiquei muito chocado com essa história. Comecei a procurar emprego em todos os lugares. Durante dois ou três meses não encontrei nada. Até que consegui uma co­locação numa fábrica de aparas de chapa, em Duisburg- Homberg. Motorista de empilhadeira. Já estava lá fazia uns cinco meses, e tudo corria muito bem, sem nenhum problema. Mas um dia chegou um telegrama dizendo que minha mãe tinha morrido. Fui procurar o chefe e pergun­tei se podia tirar uma semana de licença, para ir ao enter­ro. ‘Como é que é? Tirar férias com cinco meses de em­prego? Onde já se viu uma coisa dessas?’ Insisti: ‘Mas é que minha mãe morreu...’ Ele respondeu que não tinha nada a ver com isso. Mesmo assim, decidi ir; quando vol­tei uma semana depois... rua!”

Pressionado pelas dívidas feitas com a compra da casa, Mehmet pôs-se novamente a procurar emprego. Em vão. Mais uma vez ficou desempregado durante três meses. “En­tão fui tirar uma carteira de motorista profissional para poder dirigir caminhão. Preenchi fichas de pedido de em­prego em toda parte. Acabei conseguindo uma colocação numa firma pequena, como motorista de furgão e com sa­lário bem baixo. Dois dias depois, recebi uma proposta

126*

da Rheinperle, onde eu já havia trabalhado consertando encerados de caminhões. Procurei o chefe do pessoal, e ele me disse: ‘Você pode começar imediatamente, mas co­mo motorista de empilhadeira. Mais tarde, quem sabe, po­derá dirigir um caminhão’. Fiquei nessa firma durante qua­tro anos.”

Uma proposta “melhor” fez Mehmet mudar de em­prego: 13 marcos por hora numa transportadora de Düs- seldorf. “E mais 18 marcos para as despesas gerais. Cla­ro que aceitei!” Cinco semanas depois, foi demitido: “Contenção de despesas” . “E mais uma vez corri pa­ra todo canto. Na agência oficial de empregos disseram para eu voltar dali a três ou quatro meses. ‘Não há na­da no momento!’ Comecei a procurar em todas as em­presas. Então um vizinho me falou que a Remmert esta­va precisando de motorista. ‘E onde é que fica essa tal Remmert?’ ‘Pergunte na Mannesmann!’, ele respondeu. Fui até lá: todos os dias, durante uma semana. E nada de o encarregado da Remmert aparecer. E eu ali, parado diante do portão quatro. Até que perguntei para um dos soldados: ‘Onde é que fica o escritório da Remmert?’ ‘Em Oberhausen.’ Fui correndo para lá. Cheguei em Oberhau- sen por volta das três ou quatro horas da tarde. O encar­regado me disse: ‘Tudo bem, pode começar agora mes­mo. Só que é um serviço pesado, nojento*. E eu falei: ‘Gosto de trabalhar, não faz mal que seja um serviço pe­sado ou nojento. Preciso trabalhar. Tenho que sustentar minha família*.”

A Remmert paga-lhe um salário bruto de 12,24 mar­cos por hora; e Mehmet paga com sua saúde.

Em outro lugar

Adler adoraria tomar-se “ tão grande quanto Rem­mert’*. Esse é seu sonho.

Na realidade, a distância que separa Adler de Rem­mert não é tão grande. É a mesma distância que separa a ralé das pessoas de reputação duvidosa: Adler “vende”

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seus empregados de forma totalmente ilegal, enquanto Rem­mert — pelo menos algumas vezes — trabalha dentro dálei.

Os negócios de Alfred Remmert, proprietário da em­presa do mesmo nome, enriqueceram-no tanto que ele pra­ticamente não faz outra coisa senão contar o dinheiro pro­veniente da Sociedade de Limpeza Industrial (para a qual Adler vende seus trabalhadores), com 170 empregados, e da SWI, firma de limpeza de edifícios, com seiscentas fa­xineiras e mais o pessoal de manutenção.

Os que trabalham para Remmert na Thyssen ou na Mannesmann (tarefa tão árdua quanto um trabalho de de­molição de imóveis ou de construção civil) recebem 11,28 marcos por hora — ou seja, a tarifa em vigor para o pes­soal de manutenção. Quem consegue agüentar o serviço mais de um ano recebe um aumento de 60 centavos. O sa­lário para operários qualificados na construção civil é de 14,09 marcos por hora.

Os trinta imigrantes da Sociedade de Limpeza Indus­trial estão em piores condições. Um turco obrigado a tra­balhar pela Remmert na Mannesmann descreve as condi­ções de trabalho e as falsas promessas que viviam fazen­do. “Disseram que se a gente queimasse mais de vinte to­néis por dia, nos pagariam um adicional de 2 marcos por tonel. Trabalhamos feito loucos e, no final do mês, tínha­mos queimado 1 600 tonéis suplementares, o que daria 3 200 marcos. Como éramos onze — oito turcos e três ale­mães — cada um de nós receberia quase 300 marcos. Mas a Remmert não nos pagou nem um centavo a mais.”

Eis o relato de Ylmaz G.: “Os colegas que trabalha­vam na coqueria, todos da Remmert, não estavam satis­feitos com o salário, porque a grande parte dos trabalha­dores de outras empreiteiras ganhava mais para fazer o mesmo serviço. Havia gente que veio de uma firma de de­molição de Duisburgganhando até 3,50 marcos pór hora” .

Tanto na Thyssen quanto na Mannesmann, as horas extras são feitas “ regularmente” . Ylmaz calcula que um operário da Remmert trabalha na Mannesmann cerca de 230 a 250 horas por mês.

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A Mannesmann também costuma empregar esse tipo de mão-de-obra quase sempre em “missões suicidas” : onde quer que trabalhe, o pessoal está sempre imerso em pó e fumaça. Conseqüentemente, o risco de acidentes é muito grande. Um dos membros do conselho de empregados da Mannesmann faz o seguinte relato: “Aqueles que são es­calados para trabalhar com os maçaricos passam todo o turno numa posição incômoda, encurvados. Sem falar no calor constante que provém dos maçaricos” .

“Como antigamente, na época das galés” , diz Ali K., “ quem não tem mais forças é jogado ao mar! Mehmet, um trabalhador turco da Remmert, prestava serviços na Mannesmann. Um dia, ao carregar o ferro fundido, uma corrente bateu-lhe em cheio nos joelhos. Mehmet quebrou as duas pernas e teve que ficar seis ou sete meses no hos­pital. Depois de tudo isso, a Remmert jogou o coitado no olho da rua. Nem bem sarou direito, ele foi até a fábrica perguntar se poderia ser readmitido para um serviço de quatro ou cinco horas, porque depois do acidente não po­dia ficar muito tempo em pé. Mehmet nem terminou de falar; o chefe simplesmente o mandou embora.”

Freqüentemente a Remmert obriga seus empregados a dobrar ou triplicar os turnos, razão pela qual os aciden­tes ocorrem de modo quase automático. Colegas contam que alguns motoristas chegaram a fazer 36 horas conse­cutivas dirigindo seus caminhões. Isso é perigoso não só para eles mesmos, como para todos que circulam pela em­presa. “Se um cara passa 36 horas na boléia de um cami­nhão, é evidente que, mais dia menos dia, vai acontecer um acidente sério” , diz Ali K., inquieto.

A empresa Staschel, de Duisburg (especializada, co­mo a Remmert, em fornecer mão-de-obra temporária pa­ra a Mannesmann), costuma fazer seus empregados tra­balharem na coqueria de manhã, na fundição à tarde e nu­ma filial de laminação de tubos, em Mülheim, à noite. O que totaliza 24 horas de trabalho ininterrupto.

Esse “tráfico de escravos” teve início na Mannes- mann, logo que o truste começou a dispensar em série os

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imigrantes que faziam parte de seu quadro de pessoal efe­tivo. Para livrar-se deles, a Mannesmann chegou a ofere­cer 40 mil marcos como “ajuda de retorno” . O objetivo era reduzir seu efetivo em seiscentas pessoas. Ao mesmo tempo, a direção da empresa persuadia os operários ale­mães de que seus empregos estariam ameaçados se um nú­mero suficiente de imigrantes não retornasse a seus paí­ses. O medo provocou um clima de tensão dentro da fir­ma; muitos operários alemães passaram a querer a saída imediata dos turcos. Imaginavam que assim conseguiriam uma colocação estável para seus filhos, que haviam feito estágio na Mannesmann como aprendizes. Os turcos mais antigos foram submetidos a testes de língua alemã — uma tentativa de provar suas “qualificações deficientes” . E aqueles que, apesar de tudo, insistiam em não “regressar voluntariamente” , eram pressionados com redução do ho­rário de trabalho ou dispensa pura e simples, sob a justi­ficativa de “plano de reclassificação” . Desse modo, mais de mil turcos foram obrigados a deixar a Mannesmann. Foi o ponto de partida para que as empresas como a Rem­mert crescessem dentro da Mannesmann.

A suspeita

“Todo o pessoal da Adler, venha aqui!” Batendo pal­mas, o “xerife” nos chama durante um intervalo de des­canso. “ O sr. Adler mandou dizer a todos que hoje à tar­de, depois do serviço, vai encontrar vocês, às quatro ho­ras no bar Cantinho dos Esportistas, na Skagerrakstras- se. Ele vai falar sobre a organização do trabalho e resol­ver problemas de pagamento. Sejam pontuais, porque ele não tem tempo a perder!”

Exatamente em nosso horário livre; claro que não nos pagará um centavo sequer. Somos obrigados a ficar mais uma hora no serviço para chegar pontualmente ao local indicado. Então aguardamos quinze minutos, meia hora, e nada de Adler. “Ele faz a gente de bobo” , diz Mehmet. “ Vamos para casa.”

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Wormland, o fiel encarregado da Adler, seu irmão Fritz (23 anos) e eu, Ali, somos os únicos a permanecer no bar, sentados junto ao balcão. De repente, dois poli­ciais fardados e um à paisana entram no local e começam a encarar os fregueses, aproximadamente uns vinte. Um dos policiais pergunta:

— Alguém viu entrar aqui um sujeito loiro, de mais ou menos quarenta anos, um metro e setenta de altura? O Banco do Comércio, aÚ na esquina, acaba de ser assal­tado e levaram quase 40 mil marcos.

O homem a meu lado, que deve ter uns sessenta anos e já está na oitava cerveja, põe-se a rir baixinho.

— Mesmo que o tivesse visto, eu não diria nada — declara num tom de voz suficientemente alto para que os policiais escutem. — Ele dividiria o dinheiro comigo, e eu ficaria de boca fechada.

— De quem é aquele carro verde, com placa de Co­lônia, estacionado ali em frente? — pergunta rispidamen­te o guarda mais velho.

Olho pela janeja e vejo uma viatura parada bem em frente de meu enferrujado calhambeque, que alguns poli­ciais examinam com curiosidade. Droga, se me identifi­cam aqui, vai tudo por água abaixo. Claro que eu preca- vidamente licenciei o veículo em nome de outra pessoa; mas o problema é que não estava com os documentos.

De fato, meu carro parece bastante suspeito (para mim, um automóvel não é um objeto de prestígio, mas um simples meio de transporte), corresponde perfeitamente ao clichê policial: quem anda num calhambeque desses só pode ser mesmo um assaltante de bancos.

Não esboço nenhuma reação e olho para o outro la­do. Mas meu colega Fritz me cutuca e diz:

— Ei! Aquele não é o seu carro? Por que não fala para eles?

— Cala a boca! Eu não tem documento em ordem, eles vai multar.

Fritz prontamente resolve tirar vantagem da situação em que me encontro.

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— O que é que eu ganho se ficar com a boca fecha­da? Você me dá 100 marcos, ou conto tudo — ameaça, lançando um olhar eloqüente para os policiais.

— Eu não tem tanto dinheiro — respondo, e consi­go baixar o preço para uma caixa de cerveja.

Nesse interim, os policiais começam a perguntar a cada freguês se sabe a quem pertence o carro suspeito. Tam­bém nos interrogam, mas não podemos ajudar, não sabe­mos de nada. Eles deixam o bar. Respiro aliviado e já penso em sumir dali quando aparece um novo destacamento po­licial: três guardas uniformizados e dois à paisana. A gran­de operação de captura não parece minto bem coordena­da, porque o chefe da patrulha começa a fazer exatamen­te a mesma pergunta que seu colega formulara pouco an­tes: se alguém viu entrar um sujeito loiro, mais ou menos quarenta anos, cerca de um metro e setenta, com uma sa­cola de plástico branca contendo 40 mÜ marcos. Alguns fregueses riem alto e passam a fazer uma grande piada.

— Ele acabou de entrar no banheiro. Foi dar uma mijada! — diz um quarentão ligeiramente embriagado cuja aparência corresponde à do criminoso.

— Não é hora para gracinhas — replica o chefe da patrulha, que parece não ter gostado da brincadeira. — Posso prendê-lo por desacato à autoridade e perturbação da ordem pública. — Seu olhar percorre todo o local e pára em mim. Sou o único estrangeiro e, ainda por cima, estou todo sujo de graxa, com a roupa de trabalho quase em far­rapos. Enfim, um verdadeiro molambo!

— Você, aí! Acompanhe-me! — aponta-me para seus dois jovens subordinados, que correm para meu lado, ávi­dos de ação.

Sinto-me esmorecer, vejo todo o meu trabalho cair por terra. Por um instante penso em sair correndo, pro­curar a salvação na fuga. Mas a rua está apinhada de po­liciais, e qualquer um deles poderia me dar um tiro nas costas. “ Calma, muita calma” , digo para mim mesmo. “Nada de nervosismo. A lei está do meu lado, com certe­za! Não podem ter nada contra mim.” E passo à ofensiva:

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— Acompanhar? Como assim? Eu tem 28 anos, um metro e oitenta e três, cabelo preto. O ladrão é mais ve­lho, mais baixo. — Tento mostrar o despropósito de sua suspeita.

Mas o chefe da patrulha não se guia pela lógica. Ao que tudo indica, meu aspecto deu-lhe uma boa pista.

— Acompanhe-me — repete asperamente. — E limite-se a responder quando lhe perguntarem alguma coisa!

Um de seus subordinados tenta segurar-me pelo bra­ço, porém me desvencilho, dizendo:

— Não precisa disso! Eu vai.Lá fora, sou cercado pelos outros policiais e também

por alguns civis. “Puta merda, como vou sair dessa?” Os guardas estão frustrados, pois o verdadeiro criminoso de­sapareceu. Agora precisam de um bode expiatório.

— Documentos! — exige o chefe da patrulha.— Eu não tem. Tudo com Adler, meu chefe. Eu tra­

balha em Thyssen todo dia, mas ele não paga dinheiro de gente.— Tento confundi-los, mudando de assunto.

O chefe da patrulha, porém, não se deixa enganar:— Nome? Endereço? — interroga-me.Lentamente soletro: ‘‘S-i-n-i-r-l-i-o-g-l-u’’ e sorrio de

modo amistoso ao ouvi-lo xingar enquanto tenta escrever meu nome. Procuro animá-lo:

— Nome difícil, não? Senhor pode me chamar Ali.Longe de se acalmar, ele me lança um olhar mais fu­

rioso ainda. Dou-lhe meu endereço — Dieselstrasse, 10 —, mesmo não o tendo registrado na polícia. Pelo rádio, lo­go verificam que não existe nenhum Ali Sinirlioglu regis­trado em tal endereço. O policial jovem agarra-me nova­mente pelo braço:

— Vamos até a sua casa. Lá você poderá nos mos­trar seus documentos!

— Documentos com chefe, ele vem logo. Chefe gran­de bandido, vive roubando dinheiro de gente, precisa ir

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para cadeia! Vão pegar chefe! — Em seguida, desvio o as­sunto para a Thyssen: — Vocês pode ir junto lá, portão vinte. Tem meu cartão de ponto. Vocês pode ver que eu trabalha lá.

Os policiais ficam um pouco irritados, mas nem por um instante pensam em averiguar os negócios de meu pa­trão, embora tudo que eu disse cheire bastante a “tráfico de escravos". Aparentemente o envolvimento da Thyssen não constitui um ato delituoso; com certeza, não querem se queimar.

— Acho melhor levá-lo até o banco e fazer a confron­tação — um dos policiais propõe ao chefe.

— Boa idéia! Eu concorda! — digo, já entrando na viatura com meu uniforme sujo de graxa.

O chefe da patrulha rapidamente me puxa para forà, gritando:

— Saia dai! Vai emporcalhar 9 assento com essa gra­xa toda!

Entrementes, formou-se uma roda de curiosos a nos­sa volta.

— Ele tentou atacar uma moça alemã! — grita uma dona-de-casa cinqüentona que deixou a sacola de compras encostada a um muro.

Um senhor de seus 65 anos concorda com ela:— Vejam só que olhos frios e cruéis! Um verdadeiro

zumbi enlouquecido! Foi uma sorte ele ter sido preso!— Não é nada disso! Ele só assaltou um banco —

corrige um rapaz sentado em sua bicicleta.Começa uma polêmica no grupo. A maioria dá ra­

zão ao jovem da bicicleta; outros preferem a teoria da vio­lação — uma mulher chega a afirmar que ouviu a vítima “ gritar" enquanto era transportada na ambulância.

Todo o interrogatório prolonga-se por uns vinte mi­nutos — durante os quais o verdadeiro ladrão sem dúvida fugiu tranqüilamente —, até que o chefe da patrulha to­ma uma decisão:

— Volte para o bar e aguarde nosso regresso com as testemunhas para fazermos a confrontação! E não tente

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fugir! Vou deixar um homem vigiando a porta. Você não conseguirá escapar!

Espero durante quase uma hora, e nada de testemu­nhas. Os policiais devem ter achado sua suspeita tão ab­surda que desistiram de fazer um papel ridículo. Assim que o vigia desaparece, esgueiro-me cautelosamente até meu carro e dou o fora. Que alívio!

Antes de partir, ainda me dirijo aos fregueses do bar:— Vocês viu? Só porque eu é estrangeiro eles queria

me levar. Ladrão verdadeiro era loiro, tinha só um metro e setenta, era mais velho...

— É, mas você podia estar usando uma peruca! — caçoa um velhote funcionário da Fazenda, sentado junto ao balcão. Todos riem. — Se bem entendi — confidencia- me ele, já do lado de fora —, você trabalha na Thyssen ilegalmente. Mas você não é o único! Há um número in­crível de histórias como a sua que nos chegam aos ouvi­dos, mas os meus superiores não se atrevem a tomar pro­vidências. Mesmo que eu resolvesse denunciar a sua his­tória, não adiantaria nada!

Três meses depois vivo nova experiência com a polí­cia, desta vez mais arriscada.

Uma tarde, saio do trabalho, morto de cansaço, en­tro no calhambeque (estacionado a alguns quarteirões de .distância) e, ao manobrar em marcha à ré, bato num car­ro novinho em folha. Num abrir e fechar de olhos, forma- se uma multidão a meu redor. Bastante agitada, a proprie­tária do veículo aproxima-se. Imediatamente reconheço mi­nha culpa, prometo pagar todos os prejuízos e proponho- me a assinar quantos papéis forem necessários. Mas, de­sinteressados, os alemães gritam:

— Não acredite nele, é estrangeiro e está mentindo! Chame a polícia!

Estou com a carta de motorista de um operário tur­co, cuja fotografia nem de longe se parece comigo. Se a

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polícia vier e descobrir minha verdadeira identidade, to­da a minha representação terminará de maneira bem es­túpida. Imploro à mulher:

— Por favor, polícia não! Eu já tem questão com po­lícia Flensburg. Eu vai levar outra multa e perde carta mo­torista. E, quem sabe, eles me expulsa para Turquia!

A mulher hesita, mas a multidão é unânime:— Chame a polícia!Um sujeito sai correndo e entra numa loja. Telefo­

na. Logo em seguida aparece um policial de meia-idade. Olha-me da cabeça aos pés, bastante desconfiado, toma nota da ocorrência e intima-me a acompanhá-lo à delega­cia mais próxima.

— Se houver alguma coisa contra ele, a senhora fi­cará sabendo imediatamente — garante à mulher.

Compara a fotografia da carta de motorista com mi­nha fisionomia e balança a cabeça, como se quisesse di­zer: “Está certo!” , mesmo não havendo o menor traço de semelhança. Checa as outras informações pelo compu­tador da delegacia e mostra-se realmente surpreso ao ver que nada consta contra Ali Sigirlioglu.

— Não há nada, pode ir embora!— Bom trabalho — cumprimento-o. — Em Turquia

gente precisa dois dias para saber tudo isso.— Mas estamos na Alemanha! — diz com orgulho.— É, eu sabe — replico. — Mesmo assim, parabéns!E fico radiante ao colocar os pés na rua.

Os parapeitos: questão de mícron e “mico”

Para variar um pouco, Adler arranja para mim uma coisa muito especial.

— Apresente-se amanhã, às sete horas, na firma de Theo Remmert, o irmão do nosso Remmert. Você vai pin­tar parapeitos. Pagamento por empreitada.

— Muito trabalho? — pergunto. — Quanto tempo leva?— Você pode trabalhar lá durante um ano.— E quanto eu recebe?

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Adler atrapalha-se um pouco com uma pergunta tão inoportuna. Finge fazer alguns cálculos e depois responde:

— Digamos 1 marco por metro.Na manhã seguinte apresento-me a um encarregado

que já está a par de tudo. Digo-lhe que Adler me man­dou, e ele, com um sorriso complacente, pergunta-me pe­lo pagamento estipulado.

— Eu vai ganhar 1 marco cada metro.— Então você vai ter que trabalhar feito louco se qui­

ser ganhar algum dinheiro. Nem pense em parar para des­cansar!

Tudo indica que a empresa de Theo Remmert está com os prazos estourando. Os parapeitos devem estar prontos e montados numa nova instalação da Ruhrchemie o mais breve possível.

Durante quase uma semana, trabalho como um con­denado, de manhã à noite, com um descanso de no máxi­mo dez minutos. E só consigo pintar cinqüenta metros, por dia, quando muito. Os parapeitos têm um metro e vinte e cinco de altura, cada um possui três arcos, e há também toda a moldura. Nos cantos e nas fendas diminutas é ne­cessário utilizar um pincel menor. E mais: depois de pintá- los, devo transportá-los para o outro lado da oficina com o auxílio de um guindaste. Por esse serviço, não recebo um centavo. Também não ganho nada quando o chefe re­clama que alguns parapeitos não estão bem pintados ou que falta um pouco de tinta nuns cantinhos minúsculos. O que significa remover os pesados parapeitos novamen­te com o guindaste.

Para ganhar tempo, trabalho com um pincel em ca­da mão. E ainda não é o bastante. Um alemão, operário estável da Remmert, que pintava os parapeitos recebendo como diarista, olha para mim com comiseração e diz: “Ninguém agüenta um ritmo desses durante um dia intei­ro. Você vai se arrebentar. Não tenha tanta pressa!” E, ao saber quanto ganho, sacode a cabeça: “Por esse dinheiro eu largaria o serviço na hora. Não daria uma pincelada” . De bom grado, admite trabalhar no máximo a metade do

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que eu trabalho e receber 13 marcos por hora. Nesse rit­mo, porém, vou receber entre 5 e 7 marcos.

A despeito do salário miserável, percebo que aqui tra­balho com outro estado de espírito. E claro que sou pres­sionado, mas é uma forma diferente de pressão. Não há ninguém o tempo todo atrás de mim, gritando e dando or­dens. Não há o medo permanente de chefes, superiores, supervisores. O ambiente é um pouco mais agradável que na Thyssen. Ainda que, ao voltar para casa, eu esteja com­pletamente moído. Olho para o relógio e surpreendo-me ao ver que já é tão tarde. Preferiria que fosse mais cedo. Exatamente o oposto do que acontecia na Thyssen, onde as horas se arrastavam. Lá eu ficava muito contente ao perceber que elas estavam passando! Contava-as uma a uma e me agoniava ao verificar que ainda faltavam qua­tro horas para o fim do expediente. O trabalho por em­preitada é a categoria mais baixa e aviltante da pretensa atividade independente, já que não apresenta quaisquer vantagens reais ligadas a essa condição.

Todos os dias o encarregado da Remmert vem con­trolar e cronometrar meu serviço. Às vezes obriga-me a pintar novamente algumas partes dos parapeitos ou a ar­rancar as bolhas que se formaram e depois dar outra de­mão de tinta. Ninguém me paga pelo tempo gasto com esse trabalho.

Digo que é impossível viver com os 5 ou 6 marcos que me pagam por hora e que me sinto explorado. Ele sim­plesmente me responde: “Não temos nada com isso. Pa­gamos diretamente a Adler, que recebe um bom dinheiro. Vá reclamar com 616!**

Não me revela o lucro de Adler. Calculo, porém, que ele deve cobrar umas três ou cinco vezes o que eu ganho só para servir de intermediário entre seus escravos e a Rem­mert. Sem precisar mover um dedo.

Minha tarefa está terminada: 210 metros de parapei­to pintados de ocre (de alto a baixo, atrás, na frente, por toda a volta). Sapatos, calça e camisa inteiramente respin- gados de tinta. O encarregado da Remmert avisa-me que

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os parapeitos serão instalados o mais rápido possível nu­ma nova construção da Ruhrchemie. E só dali a algumas semanas serão montados novos parapeitos.

Eis o ano de trabalho estável que Adler prometeu! Te­lefono para ele, informando-o sobre minha situação.

— Não tem importância! — diz. — Apresente-se amanhã de manhã, às cinco horas, na Thyssen. Há uma equipe nova.

— E quando senhor paga para mim pintura de para­peito? — pergunto.

— Vamos acertar isso quando a Remmert me fizer o pagamento — responde. — De qualquer modo, você já pode pintar parapeitos nos fins de semana!

Passam-se três semanas e nada dos 210 marcos a que tenho direito pela tarefa especial e pesada. Vou pedir ex­plicações a Adler, que me diz sem o menor constrangimen­to: “ Você não fez o serviço direito. Por que eu deveria lhe pagar, se tive muitos aborrecimentos por sua causa? E até agora também não recebi o dinheiro” .

Pergunto qual foi o problema, e ele começa a me ta­pear, fala de um tal “medida mícron” que aparentemen­te tem a ver com a camada de tinta empregada, que não era bastante espessa. Considero isso mais um de seus tru­ques habituais. Contudo, mesmo que fosse o caso, a cul­pa não seria minha. O encarregado da Remmert fiscali­zou o serviço e disse que estava tudo em ordem. Decido ir pessoalmente cobrar do sr. Remmert. Para impressioná- lo, vou logo depois do trabalho, com a roupa e o rosto negros de sujeira. Dirijo-me ao prédio administrativo da empresa Remmert. Logo no salão de entrada e bem à vis­ta do público, os dizeres de um quàdro gigantesco resu­mem a filosofia de vida de Theo Remmert:

A lg u m a s pessoas c onsideram o p a tr ã o u m c ã o sa r n en ­t o QUE DEVE SER ABATIDO. OUTRAS PENSAM QUE O PATRÃO É UMA VACA QUE SE PODE PUXAR PELO CABRESTO. POUCOS VÊEM NELE O HOMEM QUE CONDUZ A CARROÇA.

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E, assim, Ali, o comedor de pó, o lustrador de ferro, o burro de carga, o trabalhador explorado, vai ao encon­tro de Theo Remmert, o condutor da carroça e criador de máximas. Sem ser visto, consigo passar pela recepcionis­ta e subir até o andar onde se localiza o escritório do pa­trão. Remmert não está, mas encontro um de seus direto­res, que fala ao telefone sobre uma transação milionária. Ele arregala os olhos ao ver-me entrar.

— Que história essa mico? — pergunto-lhe à queima- roupa. — Eu fez trabalho, chefe falou “tudo bem” , mas agora, dinheiro nada. Por quê?

— “Mico” ?! Ah, o senhor deve estar querendo di­zer “mícron” — corrige-me. — É a espessura da tinta. Mas não estou a par do assunto. Procure Adler; é ele quem deve lhe pagar!

O empurra-empurra continua. Adler manda-me pa­ra a Ruhrchemie, “repintar tudo” . Do contrário, “nem um centavo!”

Durante horas, procuro os parapeitos naquele imen­so parque industrial, nos confins de Oberhausen, um lu­gar fétido e de difícil acesso. Até que, finalmente, encontro- os instalados sobre uma armação metálica, numa altura vertiginosa. Um vigia impede-me de subir até lá, dizendo que é muito perigoso. Quando lhe falo do tal “mícron” ou “ mico” , ele pergunta: “ O que é isso? O que importa é que os parapeitos já estão lá em cima” .

Volto a reclamar com Adler (por telefone):— É, é Ali, outra vez! Chefe diz “mico” não tem im­

portância. Diz parapeito lá e ninguém mais vai cair.— Primeiro, repintar tudo — responde, irritado. —

E só me apareça aqui a semana que vem! Caso contrário, nada de dinheiro!

Minha visita seguinte à Ruhrchemie também não pro­duz nenhum resultado. Se fosse realmente necessário re­pintar os parapeitos já instalados, teria um desconto de 2 marcos por hora em meu salário, uma vez que deman­daria muito tempo trabalhar pendurado naquela altura.

Como sempre, não recebi um centavo por essa tarefa

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especial. E foi um serviço duro e imponente. Colocados lado a lado, os parapeitos cercariam metade de um cam­po de futebol.

Como no faroeste

tfeceber pelo menos uma parte do salário exige enor­mes esforços.

Adler mora num bairro elegante de Oberhausen, a cer­ca de quinze quilômetros das indústrias August Thyssen. Mas os dejetos industriais lançados pelas chaminés da Thyssen não chegam até ali: são filtrados por um cintu­rão de floresta natural que cerca o bairro. Para ir dos imun­dos e poluídos bairros fabris à residência de Adler é pre­ciso tomar vários ônibus — quando passam, bem enten­dido! Depois, quem quer falar com ele deve esperar um bom tempo diante da porta de sua casa. Àgora mesmo um operário que havia marcado um encontro com Adler está ali parado, esperando. O melhor a fazer é chegar de fini- nho, tocar a campainha e se encolher junto à porta; assim ele não consegue ver a gente pela janela.

Adler tem sempre uma coleção de fórmulas prontas para se livrar de seu pessoal.

“No momento, é impossível verificar isso!”“Não fico sem pagar nem mesmo por uma hora!” “Não estou com meu talão de cheques e não tenho

dinheiro trocado.”“Há dias que ando atrás do senhor; sua folha de pa­

gamento estará pronta na segunda-feira.” (O que é abso­lutamente falso.)

“ Meu escritório fica em Danslaken, onde tenho uma empresa de construções metálicas; deixei tudo lá.”

Então, ele marca um novo encontro para outro dia e não aparece. Ou diz, como falou para mim: “ Se tudo continuar correndo bem, não me recusarei a dar um au­mento de 1 marco por hora. Pode confiar em mim! Vol­taremos a falar sobre isso no mês que vem” .

Jamais dá o aumento. Ao invés de dar 1 marco, co­

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mo me prometeu, diminui 1 marco dois meses depois. E sua justificativa para não pagar horas extras, mesmo quan­do o pessoal trabalha durante a Páscoa, Pentecostes ou Natal, é a seguinte: “Trabalhamos por um preço menor. É por isso que a Thyssen contrata firmas pequenas e mé­dias como a nossa. Porque, na maior parte das vezes, so­mos mais baratos que seus próprios empregados! É por isso! Se a Thyssen pudesse, despediria seus operários e só contrataria serviços de empresas como a nossa, porque saí­mos bem mais em conta!"

Adler utiliza uma série de truques para manter uma aparência de legalidade. “Recibos de trabalho temporá­rio, por exemplo! De acordo com a lei, uma pessoa pode receber até 390 marcos por mês sem pagar imposto; e se a pessoa usar o nome de um parente, serão 780 marcos de trabalho temporário. E tudo dentro da lei!” Outro tru­que: inscrever retroativamente na previdência social o tra­balhador que fica doente.

Quando os empregados reclamam dos salários atra­sados, ele se esquiva dizendo: “Os boletins de freqüência! Tragam-me os boletins de freqüência assinados por Zen- tel, ou nada de dinheiro! Sem eles, não posso fazer coisa nenhuma!” Tenho a impressão de que combinou esse golpe com Zentel, porque o “xerife” sempre se recusa a assinar nossos boletins de freqüência. “Não tenho tempo a per­der com essas coisas” , declara, e assim se livra de nós. “Se­ja como for, todos os dias informo Adler sobre o número de horas que vocês fizeram.” E ficamos assim: correndo de um lado para o outro, sem conseguir os boletins de fre­qüência e, conseqüentemente, sem receber nosso salário. Entretanto, os cartões de ponto da Thyssen documentam com precisão nosso horário de trabalho. Adler não os con­sidera: “Não me interessam! Não provam nada!”

Junto com Osman, vou procurar Adler. Sem aVisá- lo, chegamos por volta das seis e meia, horário em que normalmente ele já se encontra em casa. É o último dia de Osman na Alemanha; ele resolveu voltar de ônibus pa­ra a Turquia e ficar por lá definitivamente. Um dia antes,

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Osman havia tentado falar com Adler, que, no entanto, não o recebeu, embora tivesse concordado com o encontro.

Ao me ver, Adler leva um susto:— Que figura! Você está com uma aparência péssima!— Por causa trabalho. Tudo sempre sujo e cheio poei­

ra. Eu precisa limpar tudo. E depois sujeira não sai direi­to quando eu lava. Muito pó entra dentro de pele.

Preocupado com seu papel de parede, Adler ordena:— Fique longe da parede! No mínimo a um metro

de distância. Capenga como você está, pode acabar en­costando nela. - r Depois volta-se para Osman: — E vo­cê? Vir assim, sem avisar... Deve ter merda na cabeça. Que cara de pau! Rastejar até aqui a esta hora da noite!

— Eu vou amanhã para Turquia. Preciso comprar alguma coisa, mas não tenho um centavo.

— Não posso fazer nada! De qualquer forma, foi uma sujeira ter vindo. — Ele se descontrola, e desta vez sua indignação não parece ensaiada. Ainda repete umas três vezes que “ foi uma sujeira* * antes de dizer, com a voz mais elevada: — Logo, logo vocês vão aparecer lá pelas dez, onze da noite!

— Não! Senhor não tem medo — asseguro-lhe. — Gente também precisa dormir.

Adler, porém, não se acalma:— Vocês têm mesmo merda na cabeça. Virem à mi­

nha casa a esta hora, mas que saco! Que caras de pau! Não se atrevam a fazer isso novamente. Não sou privada para virem aqui cagar. Voltar amanhã para a Turquia? claro que está mentindo! Não admito que mintam para mim!

— Mas é verdade! — intervenho. — Amanhã eu vai com ele até ônibus.

— Ninguém lhe perguntou nada. Faça o favor de fi­car de fora! Francamente, visitas como essas... às sete, sete e quinze da noite... vocês pensam que estamos no faroeste?

Osman não desiste:— Mas como é que eu faço? Amanhã eu não estou

aqui. E eu praticamente não recebo nada!

ia y '

— Eu também — acrescento. — Já faz muita sema­na que eu não tem dinheiro nem para comer.

— Você acha que eu sou algum energúmeno? Fora daqui, seus imbecis!

Já na rua, os olhos de Osman enchem-se de lágrimas.— Ele roubou meu pagamento. Agora eu volto para

Turquia e não posso fazer nada.

A fúria de Yüksel

De novo na Thyssen. Depois do expediente, conver­so com Yüksel Atasayar, um moço de vinte anos. Exaus­tos e cobertos de pó até o último fio de cabelo, esperamos nosso transporte.

YÜKSEL: Eu jogo na loteria uns 30, 40 marcos. Não sempre.

EU: Uma vez semana?YÜKSEL: Às vezes. Quem sabe, um dia, tenho sorte.

Melhor gastar 30 ou 40 marcos com isso do que com cigar­ros. Pense bem. Todo dia um maço. Já imaginou quantos por mês? É só fazer as contas: 4 marcos vezes trinta...

Eu: Dá 120 marcos. No ano, 1,440. Em dez anos, 14 mil. Sem falar juros. Em vinte anos, quase 30, 40 mil marcos...

YÜKSEL: Isso se a gente ainda viver vinte anos.EU: Eu acha não. Gente trabalha sujeira toda. Dez

anos, gente já está enterrado. Câncer... Ou quem sabe en­terra daqui cinco anos.

YÜKSEL: É mesmo! Primeiro começa a doer, de­pois... pronto, morto! Se ao menos a gente pudesse eco­nomizar um pouco e gastar tudo antes de morrer... Um dia, quando eu tiver coragem, acabo com tudo. Quanto tempo você quer viver? Uma vida de merda como essa! Você acredita em Deus?

EU: Não. Eu acredita em gente, não em coisa de fo­ra. Você não pode acreditar nele! Ele não ajuda gente!

YÜKSEL: Mas, se ele existe, por que criou alguém co­mo Adler?

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EU: Erro fabricação! Ele queria coisa diferente e errou.

YÜKSEL: Se Deus existe, não pode errar. Deus é Deus. Não tem direito de errar.

EU: Quem sabe ele é tapado, doido. Ou vai ver que aquele dia estava muito cansado. Senão Adler não exis­tia, nem trabalho de merda.

YÜKSEL: É, é uma merda! Trabalho maldito!Yüksel Atasayar é um dos mais argutos observado­

res dentre os colegas turcos. Sabe muito bem reconhecer os alemães que têm preconceito contra os turcos, mesmo quando não o manifestam abertamente. Consegue até pres­sentir o estado de espírito dos encarregados e superviso­res e previne os amigos contra o mau humor e as amea­ças. “Tomem cuidado, Zentel hoje está procurando uma vítima” , nos diz logo de manhã cedo, em nosso local de encontro, enquanto o “xerife” ainda cochila, sentado em seu carro. Yüksel percebe nos mínimos sinais a aproxima­ção da tempestade. Realmente, algumas horas depois, Zen­tel tem um acesso de raiva e põe na rua um operário turco que ousou deixar o local de trabalho durante o horário de folga (não remunerado, é claro).

Na verdade, Yüksel Atasayar só tem de turco o no­me. Cresceu na Alemanha, fala alemão sem sotaque e sente-se mesmo alemão. Até seu aspecto não corresponde ao estereótipo de um turco: tem cabelo ligeiramente loiro e olhos castanho-azulados. Somente seu nome o impele pa­ra o grupo de operários turcos, com os quais, aliás, tem algumas dificuldades de comunicação. Tivesse ele um no­me alemão e certamente escaparia do ódio de Alfred, o encarregado, que por qualquer ninharia despeja sua agres­sividade sobre Yüksel e outros imigrantes. Uma vez Yük­sel ousa lembrar a Alfred (que, trabalhando como um pos- sesso, perdeu completamente a noção do tempo) que o ho­rário de descanso já passou. Alfred planta-se diante dele e grita:

— Primeiro o trabalho! Depois o descanso! Sempre foi assim na Alemanha. Nós, alemães, crescemos apren­

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dendo isso. E quer saber o que você é? Um filho da puta, grandessíssimo filho da puta! — Mais tarde, durante o in­tervalo, volta à carga com maior intensidade: — Escute bem! Se um dia desses você se encontrasse com Menge- le... Sabe quem é, não? Mengele foi um dos nossos me­lhores médicos e cientistas. Tenho certeza de que ainda está vivo. Ninguém conseguiu pegá-lo até hoje. Então, se Men­gele estivesse naquela rampa e você passasse por ali, sabe o que ele iria dizer? “Ei, você! Saia pela direita! Direto para a câmera de gás! Não se pode fazer nenhuma expe­riência com você!” E sabe por quê!

Pálido, Yüksel não ousa replicar. Apenas balbucia:— Não. Por quê?— Porque você não serve para nada! Absolutamen­

te nada! Você veio para cá só para escapar da ditadura militar no seu país. Para ser criado num jardim-de-infância da Alemanha, para ser mimado e bem tratado. Se tivesse ficado por lá, então, sim, você ia ver o que é bom! Vocês, turcos, nunca souberam o que é uma democracia. Não fa­zem a menor idéia. Primeiro deviam aprender a viver nu­ma ditadura militar. E não vir para cá para serem papari­cados e viverem à nossa custa!

Yüksel já desistiu de se defender contra explosões desse tipo. Sabe quanto vale a lei do mais forte. Prefere afastar-se dos insultos. Pega seu sanduíche e, sem dizer uma pala­vra, vai sentar-se do outro lado da oficina, longe da vista e do alcance de seu perseguidor. Quinze minutos depois, ao retomar ao trabalho, há em seu rosto empoeirado duas listras claras, traçadas pelas lágrimas.

A propósito, Yüksel é o único a reparar que fico es­crevendo durante os curtos intervalos. As vezes, pisca um olho para mim dando a entender que está de acordo, que me ajudará. Mesmo assim, fico inseguro e preocupado. Não sei se ele não acabaria contando para os outros.

Um dia, depois de trabalhar na área do alto-fomo, num calor infernal, sentamo-nos no chão, com as costas apoiadas na parede, à espera do microônibus. Yüksel en­tão resolve me perguntar:

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— Você toma nota de tudo?— Por favor, não conte a ninguém — respondo,

aproveitando a oportunidade. — Ainda não posso falar sobre isso, mas logo você vai saber de tudo.

Ele percebe meu temor e vê que a coisa é mesmo sé­ria. Não me pergunta mais nada. Saberá guardar segredo durante meses e meses.

— Você deve tomar nota de tudo que esses porcos fazem conosco — murmura-me no ouvido. — Não deixe passar nada!

Yüksel parece pressentir meus propósitos e muitas ve­zes me passa informações oportunas sem perguntar nada. É apolítico, mas — quase uma criança ainda — respeita a disciplina do silêncio, movido por um profundo senti­mento de humilhação e desespero, do qual provém o sen­so de solidariedade.

Yüksel Atasayar descreve sua situação:“ Quando meus pais vieram para a Alemanha, eu ti­

nha acabado de nascer. Isso foi há vinte anos. Somos de Amassia. Não sei exatamente onde fica; sei que é para os lados da Armênia. Mas onde, ao certo, não sei.

“Em casa conversamos em turco; isto é, as coisas mais simples. Mas não sei falar fluentemente. Não consigo acompanhar os assuntos mais complexos. Quando leio jor­nais turcos, só entendo a metade. Meus pais falam turco perfeitamente; só conversam em turco. Não sabem muito bem alemão. Eu me sinto mais alemão do que turco.

“Meu pai também trabalha na Thyssen, no setor de laminação. E também ganha uma miséria: 1 200, 1 300 marcos.

“Como vim parar nesse trabalho? Um amigo me deu a indicação. Só precisei me apresentar ao encarregado. Esse meu amigo me disse para eu vir com uniforme de traba­lho. Foi o que fiz. Perguntei se estavam precisando de em­pregados. Disseram que sim, era só subir no ônibus. Su­bi, o ônibus seguiu para a Thyssen e depois fomos dividi­dos em grupos, cada um para um canteiro de obras.

“ O primeiro dia foi um inferno. Sujeira, pó, fuma­

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ça: um verdadeiro inferno; terrível para a saúde. Fomos trabalhar na fundição. Limpamos as máquinas e as ferra­mentas e engolimos fumaça e poeira. Alguns começaram a vomitar e houve um que até desmaiou. Outros caíram, não conseguiam mais respirar.

“Dámuita raiva trabalhar num local tão imundo. Não nos dão nem sapatos de proteção. Adler não tem a menor compaixão das pessoas. Pouco se importa se um de nós se arrebenta. Para ele, tanto faz se alguém morrer. E to­da aquela lenga-lenga, quando ele fala do salário: ‘Você não precisa de tanto dinheiro. Você é solteiro, devia ficar feliz por trabalhar aqui*.

“Não quer nem saber se a gente está bem ou mal. Para ele é a mesma coisa se você está ferrado ou não. Na ver­dade, Adler não passa de um cafetão, é isso que ele é. A única coisa que lhe interessa é o dinheiro que damos para ele. É um bandido, mas está limpo, porque sempre age por baixo do pano.

“Nunca me pagou o salário corretamente. Ainda ago­ra me deve mais de 800 marcos.

“Há dias em que a gente fica completamente moído, só deseja morrer. E na verdade é quase sempre por causa do pó e da fumaça. Tudo isso vai enfraquecendo a gente. Ataca diretamente os pulmões. Eu sinto isso porque gos­to de praticar esportes. Antes eu vivia correndo, no míni­mo uma hora. Mas hoje... basta correr alguns minutos e os pulmões começam a queimar. O pessoal mais antigo também tem um aspecto horrível. Inclusive os da Remmert.

“ Os que já estão trabalhando há três ou quatro anos parecem muito debilitados. Têm trinta, quarenta anos de idade, mas aparentam cinqüenta. Ou mesmo sessenta. O cabelo caiu quase todo, o rosto é magro, encovado, páli­do. Às vezes, acho que estou com câncer, câncer nos pul­mões, por causa de tudo isso que respiramos. Uma cama­da tão grossa de pó que é impossível enxergar um palmo adiante do nariz. Lá no setor Oxy é pavoroso. Eu tenho medo de sofrer muito com uma morte assim.

“Um dia, eu tive a exata sensação de estar bem no

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meio de uma guerra atômica: pó, fumaça e tudo mais. Igual aos filmes de guerra que a gente costuma ver.

“ Sem falar naqueles outros locais extremamente pe­rigosos. Por exemplo? Os lugares onde escapa o gás. A gente pode se ferrar num local desses. E é obrigado a tra­balhar lá dentro, nesses locais superperigosos. Por toda parte há tabuletas avisando que a gente pode se ferrar se escapar muito gás. O pior é que nem conseguimos perce­ber, nem conseguimos sentir o cheiro do gás. Tem aquele aparelho para indicar se há perigo. Eu freqüentemente te­nho tontura, vontade de vomitar. Há dias que não dá pa­ra agüentar. Muitas vezes perco a fome, não coloco nada na boca, o tempo todo só engulo aquele pó. Dá até para mastigar o pó, de tão espesso que é. Cheio de chumbo, cádmio e um monte de outra coisa, quem sabe ao certo? Às vezes vou para um canto e vomito; depois me sento um pouco para respirar.

“É preciso mesmo ver para crer... Mesmo depois do banho, quando você chega do trabalho, aquilo tudo ain­da fica depositado nos pulmões. Por fora, você está lim­po; mas por dentro... fica tudo lá dentro. Essa merda te deixa imundo. Daí você vai e faz ela desaparecer. Mas, no dia seguinte, lá está você de novo no meio de toda essa merda. E assim sem parar.

“Não entendo como podem pagar tão pouco por um trabalho desses. Eles querem enriquecer depressa. Querem ganhar mais e mais, e já são tão ricos... Mesmo que pren­dessem Adler, não ia mudar nada. A Remmert continua­ria com o serviço, e a gente continuaria a se ferrar. E a Thyssen sabe de tudo, claro! É ela que nos dá emprego, portanto deve saber de tudo.

“Para mim a vida não tem nenhum valor. Não tem nada de significativo. Antes, com catorze, quinze anos, já quase um adulto, a gente tem uma namorada e quer ir para a cama com ela, não é? Mas, depois, o que sobra? Não, isso não é o máximo! Só quando a gente tenta con­seguir alguma coisa, quando tem um objetivo, é que a vi­da passa a ter sentido. A gente sente vontade de fazer al­

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guma coisa... mas, se não for assim, a vida não tem senti­do. Para que é que ela serve, hein?

“ Quando eu fui mais feliz? Quando viajei de férias para a Turquia, junto com meus pais. Eu tinha doze anos. Foi muito legal. Tive uma sensação ótima, completamen­te diferente. E quando me senti pior? Agora, trabalhan­do para Adler, aqui na Thyssen. É a pior coisa. Eu prefe­ria estar morto” .

“ Chuveiro de emergência”

No mínimo uma vez por semana somos enviados ao setor Oxygen, para limpar o pó que vive se acumulando por lá.

Numa altura de cinqüenta ou sessenta metros, em salas fechadas, devemos tirar todo o pó das máquinas deixando- o amontoar-se no chão em camadas de um a três centíme­tros. Depois o recolhemos e levamos para fora em carri­nhos de mão. Esse pó é composto por partículas de chumbo e outros metais nocivos à saúde (manganês e titânio), além de grande quantidade de partículas de ferro. Certa vez Yük- sel teve violento ataque de tosse e, sufocado, pediu a um dos controladores da Thyssen uma máscara de proteção. “Para vocês não temos disso” , disse o homem. “Mas não se preocupe, ferro faz bem para a saúde, fortalece o san­gue.” E completou: “Se engolir bastante pó de ferro, de­pois de um certo tempo você pode até grudar um ímã no peito” . Yüksel, que não estava para brincadeiras, mais tar­de perguntou ao supervisor se era verdadeira a tal histó­ria do ímã. Foi ridicularizado diante de todos e o chefe chamou-o de “turco cretino” .

Durante nosso trabalho os sinais de alarme e as luzes vermelhas de emergência não param de tocar e acender, o que significa que deveríamos abandonar a área imedia­tamente. Para reforçar, por toda parte avisos luminosos piscam sem cessar: Em Caso db Ventania, Deixar Ime­diatamente A ÁREA DO CONVERSOR! PERIGO DE EXPLO­SÃO! Emanação de Oxigênio! E nós ali, trabalhando.

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Assustado, um operário turco quis afastar-se da zona pe­rigosa. O encarregado da Thyssen ordenou-lhe que conti­nuasse a trabalhar; do contrário sua atitude seria consi­derada como abandono do posto de serviço e ele poderia ir definitivamente para casa.

Um dos encarregados explica-nos para que servem tan­tos dispositivos: “Uma vez houve um acidente na área do conversor, e por isso a empresa foi obrigada a instalar es­se sistema de alarme e prevenção. Se acontecer alguma coi­sa, a Thyssen não será responsável. Vocês foram muito bem informados de que não deviam trabalhar naquele se­tor” . É desse modo que a Thyssen se isenta de responsa­bilidade. Se algo acontecer, nós mesmos seremos os cul­pados — graças a nossa estupidez, já que a advertência foi bem clara. Mas, para nossa tranqüilidade, instalaram vários chuveiros na zona perigosa. Em caso de incêndio, basta correr para baixo da água. Mesmo os imigrantes que não sabem alemão entendem para que servem os chuvei­ros: há tabuletas esmaltadas com a silhueta de um operá­rio munido de equipamento completo de segurança e ro­deado pelas chamas sob o jato de água. Nas tabuletas es­tá escrito: Chuveiro de Emergência.

Finalmente uma tarefa agradável perto da concreção III: do alto do telhado baixamos, através de cordas, cai­xotes com baldes repletos de pó e lama. É um trabalho cansativo, que nos faz suar às bicas, mas pelo menos per­mite que respiremos um ar suportável. E ainda nos dá a chance de admirar toda a paisagem industrial que se es­tende ao redor. Conseguimos até avistar o Reno ao lon­ge! A vida adquire novo brilho quando a gente escapa da­quelas masmorras sombrias e empoeiradas. Até a chuva é bem-vinda. É mesmo um prazer desfrutar aquela visão ampla, e sem sofrer crises de asfixia. Sentimo-nos como se tivéssemos saído de uma prisão. Depois de quase três horas de deleite nessa liberdade relativa, somos obrigados a regressar repentinamente ao setor Oxygen. Acomodamo- nos no ônibus como podemos, agachados entre ferramentas e carrinhos de mão. Um turco de certa idade quase foi atro­

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pelado devido à pouca visibilidade. Comentário do encar­regado a nosso motorista turco: “Passe por cima, rápi­do! Há uma recompensa para cada turco a menos!”

O “xerife” Zentel, expõe o problema: a máquina de transbordo do ferro-bruto — um monstro gigantesco — enguiçou. Toda a produção está parada. Cada minuto que passa representa um prejuízo imenso para a siderúrgica. O bloqueio provocou ainda a ruptura de uma peça da má­quina. Já providenciaram uma nova e estão tentando colocá-la. Nossa tarefa: entrar nos estreitos dutos de as­piração do pó e desobstruir a máquina.

“Apressem-se e dêem duro lá dentro!” diz o “xeri­fe” . “Só poderão sair quando o equipamento voltar a fun­cionar. Quero que tudo esteja em ordem até uma da tar­de, no máximo!”

Empoleirados nas oscilantes escadas de mão, precisa­mos fazer muita ginástica para nos espremer naquelas aber­turas que mal têm a largura de nossos ombros. A golpes de pés-de-cabra, pás e malhos gigantescos, tentamos remo­ver o minério de ferro ali incrustado, mas ele não se solta, está grudado. Alfred, o encarregado, que está ali apenas para acelerar o trabalho, espuma de ódio ao ver que só con­seguimos retirar uma pequena parte daquela massa espessa.

— Bando de macacos africanos, cambada de capa- dócios, turcos de merda, judeus dos infernos! — põe-se a enumerar aos berros. — Vocês não servem para nada mesmo! Devíamos encostar todos vocês na parede e me­ter um tiro na nuca de cada um! — Quando perde o fôle­go de tanto gritar, passa às vias de fato e joga um pé-de- cabra na cabeça de um operário indiano, felizmente atingindo-o só de raspão. — Da próxima vez, fique em casa! — esbraveja. — Não tenha medo, que eu não vou trabalhar na Turquia.

— Ele não é turco — tento explicar-lhe. — Indiano.Mas Alfred não desiste:— Conheço de longe quem vem da Anatólia! Todos

têm a mesma cara de burro! Esse aí também é de lá, desse lugar onde o pessoal apaga a luz com o martelo!

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(Um dia, Alfred fez um comentário sobre mim para um dos trabalhadores alemães. Disse que eu também sou da Anatólia porque sempre faço “perguntas cretinas, des­sas que nem passam pela cabeça da gente” . E certa vez perguntou-me por que não fiz a gentileza de ficar na Tur­quia. “Motivo político” , respondo, “ditadura militar.” Minha resposta levou-o a dizer a um colega alemão: “Ali não pode mais voltar para a terra dele, por isso é que tra­balha aqui. Na Turquia eles têm um Khomeini enlou­quecido!”)

Depois de uma hora de ofensas e tormentos, o “xeri­fe” aparece e constata que é impossível prosseguir com essas ferramentas primitivas. Manda buscar perfuratrizes, brocas e compridas raspadeiras. Sem máscaras, voltamos a atacar a massa compacta, provocando nuvens de pó. Sob os constantes insultos dos dois chefes, rastejamos para o interior da máquina. O barulho estrondoso das perfura­trizes ecoa nos estreitos dutos metálicos, ensurdece-nos completamente. Protetor de ouvidos? Nunca ouvimos fa­lar nisso... os olhos ardem, o nariz escorre, todos come­çam a escarrar. É o inferno! Mais tarde, Mehmet conta- me que, em situações como essa, é preferível passar alguns meses na prisão a suportar tanto horror por algumas ho­ras. Em tais situações, imaginamos os piores métodos pa­ra assassinar Adler; em tais situações, como quem arrisca tudo numa cartada, tomamos algumas decisões: um rou­bo mirabolante ou um assalto a banco. Porque quem se enfia neste buraco não tem nada a perder, não tem nem medo da prisão!

Os joelhos estão ensangüentados; as calças, esfarra­padas; as luvas de trabalho, despedaçadas. E a máquina de transbordo continua parada! Já fez treze, catorze, quin­ze horas que estamos aqui dentro, batendo com estas fer­ramentas pesadas e engolindo todo este pó.

Nesse meio tempo, um dos chefões da Thyssen apa­rece e põe-se a xingar todo mundo, porque a equipe do turno seguinte está esperando para colocar a máquina em

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A li e alguns colegas de trabalho

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A dra. Jutta Wetzel, gastroenterologista, relata a situa­ção de seus pacientes imigrantes:

“Em geral, os operários imigrantes trabalham nas con­dições mais desfavoráveis. E não estamos falando só dos fa­mosos trabalhos insalubres, mas também — e isso tem um peso ainda maior — daquelas atividades em que o operário é obrigado a permanecer durante horas em posturas força­das. A conseqüência disso são os fenômenos de desgastes pre­maturos na coluna vertebral e nas articulações. Da mesma forma, a presença maciça de fumaça e pó favorece o apare­cimento de bronquite e gastrite. E há ainda o perigo de en­trar em contato com substâncias altamente nocivas, como, por exemplo, o amianto.

“Entretanto só conheço tais locais de trabalho através das descrições fiéis de alguns pacientes. Pois sempre que ma­nifestei desejo de visitar esses locais, impediram-me de fazê- lo. A despeito do alto índice de desemprego, as indústrias ra­ramente encontram alemães dispostos a aceitar esse tipo de serviço. As empresas (companhia de mineração, siderúrgica, fábrica de automóveis, pavimentadora, estaleiro, indústria química) precisam tanto de operários imigrantes que aceitam como inevitável a taxa relativamente alta de enfraquecimen­to doentio. Portanto, é imprescindível relacionar o enfraque­cimento doentio dos operários alemães e imigrantes com suas diferentes condições de trabalho” .

uso. Ordena que, por gentileza, retiremos nossos cus can­sados o mais depressa possível.

“Vocês vão ficar aí o tempo que for preciso para fa­zer a máquina funcionar” , grita o encarregado. “Nem que leve vinte horas!”

Yüksel toma uma decisão e literalmente suplica ao che- fão da Thyssen que nos forneça máscaras protetoras. “Não temos! Vocês precisam é terminar o trabalho, porra!” , res­ponde ele.

Às seis e quinze, doze horas depois, nossa missão sui­cida chega ao fim. No ônibus, a caminho de casa, quase

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todos os trabalhadores dormem em posição incômoda, sen­tados sobre as ferramentas.

A partir desse dia tenho os brônquios quase constan­temente irritados. E ainda hoje — seis meses depois —, ao escarrar após um acesso de tosse, verifico que o catar­ro continua preto.

Há tal concentração de pó nos diferentes setores de nos­so trabalho que não só inalamos toda essa sujeira, como tam­bém a mastigamos literalmente. Ninguém se preocupa em exa­minar nosso estado de saúde nem as substâncias que ingeri­mos. Às vezes nos dão um pouco de leite. E isso é tudo. Fur­tivamente juntei algumas amostras de pó de cores cintilan­tes. Um punhado pesa tanto quanto uma pedra. Entreguei o material ao Instituto do Meio Ambiente da Universidade de Bremen, órgão totalmente independente das indústrias. Há muitos anos pesquisas como essa já se tomaram rotina em Bremen. Por exemplo: ali foram avaliadas as amostras de ter­ra proveniente da indústria de pilhas Sonnenschein, de Ber­lim. A empresa apareceu em todas as manchetes de jornais, pois pertencia então ao ministro dos Transportes, Correios e Telecomunicações Schwarz-Schwilling e hoje está nas mãos de sua mulher.

Os primeiros resultados da análise do pó da Thyssen só me foram apresentados pouco antes da publicação deste li­vro. Até então o instituto jamais havia constatado tamanha concentração de substâncias altamente tóxicas. Os pesquisa­dores tiveram dificuldade para analisar a primeira amostra porque os aparelhos de precisão mal conseguiram detectar tan­tas substâncias nocivas concentradas. Descobriu-se um ver­dadeiro catálogo do mundo dos metais pesados: ástato, bá- rio, bromo, chumbo, cobalto, cobre, cromo, estrôndo, fer­ro, gadolinio, ítrio, mercúrio, molibdênio, nióbio, paládio, ródio, rubídio, rutênio, selênio, tecnédo, titânio, tungstênio, vanádio, zinco e zircônio — no total, 25 substâncias nocivas diferentes.

Dois metais particularmente concentrados no pó anali­sado são os mais perigosos: mercúrio e chumbo. Eis o que diz o Instituto da Universidade de Bremen:

“O chumbo é um veneno acumulável, isto é, concentra- se no corpo, mesmo absorvido em pequenas quantidades. Essa acumulação do chumbo pode provocar intoxicação crônica... Não estão excluídos: alteração da personalidade, distúrbios psíquicos, paralisia e distúrbios genéticos” .

Não menos terríveis são os efeitos do mercúrio descri­tos pelos cientistas: “Os primeiros sintomas patológicos pro­vocados por envenenamento com mercúrio aparecem no cen­

“Braços e pernas pesados como chumbo”

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tro nervoso e manifestam-se através de formigamento e en­torpecimento das mãos e dos pés seguidos de crescente insen­sibilidade na região bucal. Simultaneamente aparecem lesões oculares, com redução do campo de visão. O sistema nervo­so central é afetado, provocando redução da mobilidade mus­cular e perturbação da função coordenadora, além de graves danos ao equilíbrio. Braços e pernas agitam-se em espasmos freqüentes, e os músculos são atacados por tétano. O cére­bro atrofia-se em 35%...”

Mesmo as “concentrações mais diminutas*' desses ele­mentos podem produzir efeitos tóxicos (venenosos). Por isso a legislação autoriza “no máximo" 1 mg de mercúrio por qui­lo (1 ppm) e 10 mg de chumbo por quilo (10 ppm) nos pro­dutos alimentícios. Nossa “refeição” indesejada da Thyssen contém oitenta vezes mais mercúrio (77,12 ppm, exatamen­te) e 2 500 vezes mais chumbo (2 501 ppm).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que a absorção semanal de 3 mg de chumbo por pessoa é o máxi­mo tolerável. Ironicamente, a expressão “ter os braços (ou as pernas) pesados como chumbo" corresponde à realidade, pois 90% da quantidade de chumbo absorvida concentram- se nos ossos.

A mesma coisa vale para o mercúrio, que também se con­centra no corpo.

Só com um exame de sangue pode-se determinar a quan­tidade em que essas substâncias nocivas estão concentradas nos pulmões, sangue e ossos dos operários da siderúrgica. A maior parte de meus colegas queixa-se regularmente de difi­culdades respiratórias, náuseas, falta de apetite, vômito, dis­túrbios circulatórios e bronquite aguda. Entre os cientistas não há a menor dúvida: a bronquite está diretamente rela­cionada com a irritação provocada pela absorção do pó. Ou­tros distúrbios manifestados são sintomas clássicos de into­xicação por metais pesados — e especialmente pelo chumbo.

“Uma vez doente, sempre doente'*Há décadas, os cientistas que estudam as causas das

doenças têm pesquisado os perigos que ameaçam a saúde dos operários nas coquerias do mundo inteiro. Não há nenhuma dúvida: trabalhar em coqueria afeta a saúde.

O maior perigo provém do pó em suspensão produzido pelo gás de coque, porque contém alcatrão. “O alcatrão e todas as substâncias que ele engloba têm efeito cancerígeno” , escreve na revista especializada Arbeitsmedizin o prof. dr. A. Manz, da Universidade de Hamburgo.

Diversas estatísticas têm sido publicadas sobre a ocor­rência de doenças cancerosas entre os operários de coqueria. Até o momento, porém, somente o câncer da pele foi reco­nhecido pelas autoridades da República Federal da Alema­nha como doença do trabalho, conseqüência do contato com o alcatrão de hulha. Esse, porém, não é o maior problema.

Os operários de coqueria contraem em média três vezes mais câncer dos pulmões que o resto da população masculi­na alemã e duas vezes mais câncer da bexiga, do estômago e do intestino. Os números são ainda mais alarmantes quan­do se comparam os operários de coqueria com os emprega­dos de escritório: os operários morrem de câncer da bexiga numa proporção dez vezes maior e contraem câncer dos pul­mões numa proporção oito vezes maior.

A ciência conhece a causa: o benzopireno, substância al­tamente cancerígena contida no alcatrão de hulha. O benzo­pireno também é encontrado na fumaça do cigarro; só que na coqueria sua concentração é de trezentas a quatrocentas vezes maior.

Um estudo minucioso feito com operários de coquerias da Polônia revelou estreita relação entre “certas afecções crô­nicas das vias respiratórias” (por exemplo, bronquite crôni­ca) e o gás de coque. Mas não é só: quem já sofreu de bron­quite está particularmente propenso a contrair outras doen­ças, porque o gás das coquerias afeta o sistema imunológico do corpo.

“Uma vez doente, sempre doente", reza o dito popular.O prof. dr. Manz nos dá a conclusão: os operários que

trabalham nas coquerias têm uma expectativa de vida signi­ficativamente menor.

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O testeParem de usar animais como cobaias — usem os turcos!(Grafite num muro em Disburg/Wedau)

Cobaia humana

Osman Tokar (22 anos), um de meus colegas turcos, foi despejado. Há algum tempo Adler prometeu-lhe pagar os salários atrasados. Seu senhorio, porém, não quis espe­rar mais: Osman teve de sair do local onde morava. Sua mobília humilde ficou lá como penhor, trancada no po­rão, até o proprietário receber os 620 marcos de aluguel atrasado. A partir daí Osman não tem residência fixa. Às vezes dorme na casa de um primo, num colchão colocado no corredor; às vezes procura amigos que o abrigam por algumas noites. Mas não pode fícar muito tempo, pois não há espaço suficiente nem mesmo para os moradores.

Osman confessa, envergonhado, que chegou a passar a noite num banco de jardim. Corre o risco de ser expulso do país porque não pode comprovar um endereço fixo, além de já ter recorrido aos serviços de assistência social. Mas não quer voltar para a Turquia, para onde só ia como visi­tante. Sente-se mais em casa nesta Alemanha glacial, onde não passa de um estranho, que em seu país de origem, on­de passou apenas os dois primeiros anos de sua vida. Fala alemão um pouco melhor que turco, mas as duas línguas continuam sendo estrangeiras para ele. Desconhece seu ver­dadeiro lugar; é como se lhe tivessem “roubado a alma” .

Proponho-lhe que venha morar comigo, na Diesels- trasse, mas ele recusa. Devido ao trabalho na Thyssen, ad­quiriu uma tosse crônica e agora tem medo de dormir “nu­ma cama envenenada pela proximidade da coqueria” . Às vezes pensa em se matar. Um dia, depois de trabalhar um turno inteiro num depósito de carvão e inalar quilos de sujeira até vomitar, fomos descansar um pouco ao ar li-

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vre. Foi então que ele me disse: “Às vezes eu penso em me atirar dentro do alto-forno. Faria um pequeno chiado e não sentiria nada mais*'. Eu me calo, consternado, e Os- man continua: “A gente só tem medo porque é novidade e ninguém ainda tentou. Mas se arrastar no pó feito ver­me e ao mesmo tempo ser espezinhado é mil vezes pior” .

Conta-me a história de um operário que caiu aciden­talmente no alto-forno e num segundo virou brasa. Co­mo nada restou, pegaram simbolicamente um pouco de aço fundido e entregaram à família para o “enterro” . Na verdade, o corpo do operário fundiu-se no aço e foi parar na laminação, onde se transformou em chapa para auto­móveis, panelas ou tanques.

Osman anuncia que vai visitar o tio em Ulm. Pode ficar morando lá com ele e conseguir um serviço que no

a mínimo será tão nocivo quanto o da Thyssen, mas pelo menos será remunerado. No começo, não diz exatamente do que se trata, apenas comenta que “na Thyssen, temos que engolir o pó e trabalhar como escravos; nesse outro serviço, só temos que engolir e dar o sangue” . Conta-me que requisitam muitos estrangeiros — turcos, indonésios, refugiados políticos sul-americanos, paquistaneses — pa­ra esse trabalho especial que consiste em servir de “cobaia” para a indústria farmacêutica. Pergunto se posso tomar seu lugar num teste que deverá ter início dentro de alguns dias; como compensação, eu lhe daria a metade do salá­rio: 1 000 marcos. Ele concorda. O tal serviço vem mes­mo a calhar. Com os ombros doloridos e uma bronquite que aos poucos se toma crônica, eu já deveria ter aban­donado o trabalho pesado na Thyssen há muito tempo.

Osman me dá o endereço do Instituto LAB em Neu Ulm. É um prédio imponente, um pouco sombrio, com o mau cheiro característico dos albergues de juventude dos anos 50. Um jovem de seus 25 anos, bem-humorado, está sentado na recepção como o autêntico * ‘pai do albergue* *. Ele se esforça para tornar o ambiente mais descontraído e tranqüilizar a todos. Na sala de espera estão algunspunks (fregueses habituais), estrangeiros do tipo mediterrâneo,

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O LAB, em Ulm, é um dos maiores institutos de testes da Europa. Em seus fichários há os nomes de 2 800 provadores — ou seja, cobaias humanas. Isto também pode ser dito de outra forma: testam em nós o que é bom para os lucros da indústria farmacêutica e os efeitos colaterais que podem apa­recer nos pacientes.

Apenas uma ínfima percentagem das novas substâncias é realmente testada. De acordo com a lei de medicamentos de 1976, milhares de remédios antigos devem ser novamente tes­tados. Mas na verdade o que se faz é um sem-número de estu­dos apenas para descobrir melhores estratégias de venda. Pes­quisas sérias e significativas são muito raras. Estudam-se cam­panhas de publicidade, ampliação de mercado ou um modo de lançar um novo medicamento totalmente supérfluo, igual a de­zenas de outros que se encontram à venda sob nomes diferen­tes, mas contêm, quase todos, as mesmas substâncias químicas.

Muitas pessoas insurgem-se — e com razão — contra os testes dolorosos e desnecessários realizados em animais. Mas quase ninguém se incomoda com os testes inúteis e perigosos realizados em pessoas. Nenhum serviço público os fiscaliza.

Está mais que comprovado que as indústrias farmacêu­ticas adulteram e até mesmo copiam os pareceres emitidos por clínicas conceituadas, ainda que estes se fundamentem em testes realizados em hospitais públicos. Já imaginou co­mo devem ser os testes feitos nos diversos institutos particu­lares que, na prática, dependem totalmente da indústria far­macêutica e experimentam os medicamentos em cobaias até então *'‘saudáveis" pagas para isso?

Uma coisa está muito clara: os resultados negativos ou alarmantes são prejudiciais aos negócios — não importando se chegam ao conhecimento do público através dos médicos que trabalham em hospitais ou através dos “institutos" que fazem o teste em suas cobaias.

O prof. Eberhard Greiser, diretor do conhecido Institu­to de Bremen para Pesquisa e Medicina Preventiva — órgão que critica esse método da indústria farmacêutica —, decla­ra o seguinte: “Na prática, testes com resultados negativos concernentes a determinado medicamento não são publica­dos. Foi o que relataram muitos especialistas que encontrei ao longo do tempo na ‘comissão de transparência' (comis­são especializada dentro do Ministério da Saúde)".

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Os trustes farmacêuticos encomendam inumeráveis sé­ries de testes com os devidos pareceres de peritos, mas apre­sentam aos organismos federais da Saúde Pública apenas os resultados favoráveis. As autoridades só tomam conhecimento dos resultados negativos quando alguns médicos e/ou cola­boradores desse truste econômico não podem mais se respon­sabilizar por tal prática e acabam soltando essas informações. Os serviços encarregados da autorização e vigilância dos me­dicamentos n'à República Federal da Alemanha não sabem sequer o nome do instituto em que tais testes são realizados. O poder dos trustes farmacêuticos em nosso país é tão gran­de que torna isso possível. Em outros países há uma legisla­ção severa, que os obriga a declarar todos os testes realizados.

jovens desempregados e dois típicos vagabundos de esta­ção ferrroviária, um deles com ligeiro bafo alcoólico.

Apresento o papel que Osman me entregou e pergunto ao “chefe da recepção” se não me arranjaria um teste um pouco menos perigoso. Osman tinha me avisado que a ex­periência prevista provocaria efeitos colaterais violentos e desagradáveis. “Não tenha medo” , diz ele, tentando me acalmar. “ Todos que saíram daqui estão vivos até hoje. A coisa é feita bem de leve.” O “pai do albergue” usa um tom familiar com todos aqueles que serão usados nos testes. “Primeiro temos que ver se você está em condições” , informa-me.

Enviam-me para um check-up de rotina. Colhem amostras de sangue, examinam a urina, fazem eletrocar- diograma, tiram minhas medidas, pesam-me. Um médico confere os resultados. Levo um susto porque acho que é um “conterrâneo” meu. Felizmente não é turco, mas búl­garo; pediu asilo na Alemanha. Conhece bem “meu país” e põe-se a falar um pouco sobre a Turquia. Conta-me que antigamente havia muito mais “cobaias” turcas, porém nos últimos tempos têm voltado em grande número para seu país. Diz também que fizeram boas experiências com meus “conterrâneos” , que são “ duros na queda” e não

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“vivem se lamuriando por qualquer dorzinha” . Examina- me os olhos e percebe que uso lentes de contato; por sor­te, não se dá conta de que são coloridas. Explico-lhe que foram prescritas por causa de meu trabalho como solda­dor, já que os óculos são desvantajosos para esse tipo de serviço.

Sou aprovado. Estou pronto para o uso. Tomarei me­dicamentos em forma de pílulas e injeções que, com cer­teza, me transformarão numa pessoa doente.

Obrigam-me a assinar uma declaração de que consinto em submeter-me aos testes. Entregam-me um boletim in­formativo de cinco páginas escrito em alemão: “Boletim informativo sobre os testes de estudo comparado farma- codinâmico de quatro preparados diferentes combinados com substâncias que contêm fenobarbital e fenitoína” . Nunca ouvi falar de tais medicamentos; até o “pai do al­bergue” tem dificuldade em pronunciar fluentemente “ fe­nobarbital” e “ fenitoína” . “Não há jeito de gravar esses nomes” , diz. “Segundo o boletim informativo, tais me­dicamentos não são para uma doença comum, mas para epilepsia e convulsões febris nas crianças.”

Quase todos os cientistas que não dependem da in­dústria farmacêutica criticam com violência o uso de se­melhantes preparados. A combinação de dois agentes im­pede uma dosagem adaptada às necessidades individuais dos pacientes. No entanto, médicos inescrupulosos mos­tram boa vontade para com esses preparados. Poderão ocupar-se menos com seus pacientes. A substância com­posta fenobarbital pertence à classe dos barbitúricos, dro­gas que logo criam dependência. Exatamente porque seu uso é perigoso, centenas de remédios contendo barbitúri­cos foram proibidos nos últimos anos. Trata-se, pois, de medicamentos bastante conhecidos que, na verdade, de­veriam ser retirados de circulação. Mas ninguém explica por que ainda devem ser testados.

O teste está programado para onze semanas no total, com quatro séries de 24 horas de reclusão. Honorários: 2 000 marcos. O boletim informativo aponta alguns efei­

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tos colaterais mais freqüentes: “ fadiga, alteração de hu­mor, distúrbios motores ou nervosos, alteração do tipo san­guíneo, modificação do campo visual, manifestações alér­gicas sob forma de reações cutâneas” . E avisa que em cerca de “20% dos pacientes pode haver inflamação das gengi­vas” . Além disso, com um pouco de azar podem surgir também “ eczemas, distúrbios respiratórios, sensação de calor e náusea, vômitos eventuais” . Em casos mais raros, podem ocorrer “ estados perigosos, com crise de asfixia e distúrbios circulatórios, que requerem imediata interven­ção médica” .

Mas nem tudo é tão ruim, porque, em caso de urgên­cia, o seguro paga: “Se, contra todas as expectativas, a saúde dos participantes desse estudo experimental ficar pre­judicada, o LAB e seus encarregados oferecem gratuita­mente serviços médicos em níveis ilimitados” . Entretan­to: “Estão expressamente excluídos os danos relaciona­dos de forma indireta com os participantes desse estudo experimental (por exemplo, acidente de trânsito durante o percurso)” . Então o que acontece se um dos “voluntá­rios” sofrer um acidente de trânsito provocado por “ dis­túrbios motores” ou “ distúrbios circulatórios” ?

Depois de assinar a declaração, recebo uma planilha com os horários para a ingestão dos medicamentos e as coletas de sangue, que são feitas de hora em hora.

Comunicam-me que o teste só começará amanhã, mas, a partir de agora, não posso deixar o local — isto é, a ca­sa e o pátio interno. “Detenção voluntária.” Entregam- nos cobertor, lençóis e fronha. No primeiro andar ficam as “ salas de tratamento” : laboratório, local p.ara coleta de sangue e enfermeira de urgência. No segundo andar, a sala de televisão e os dormitórios.

O homem que está sentado na cama inferior de um beliche nem ergue os olhos quando entro no dormitório. Dois outros, sentados à mesa, continuam fazendo suas palavras cruzadas. Dirijo-me para o segundo dormitório, que dá vista para o pátio. À esquerda, uma oficina de automóveis; à frente, entre um muro e um tambor de li­

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xo, alguns móveis de plástico cinzento para jardim; à di­reita, um entreposto de produtos biólogicos; nos fundos, a estação ferroviária para as mercadorias. Uma paisagem desolada.

Como se evocassem a sorte, todos os voluntários re­petem insistentemente que não correm o menor risco. “ O perigo é maior para eles que para nós” , diz alguém. “Por­que, se acontecer alguma coisa, vai haver um tremendo escândalo. E eles não podem se permitir isso.” Para al­guns, esta não é a primeira vez. “Faz muito tempo que circulo pelas indústrias farmacêuticas” , conta um deles, que vai de instituto a instituto. “Turistas-cobaia” : é as­sim que a indústria os chama. Outro voluntário fala de um “ profissional” que viaja com seu trailer por todo o pais; parece que, além de servir de “cobaia” , recruta ou­tras pessoas, cobrando comissão.

No jantar todos nos encontramos diante de uma lon­ga fila de mesas. Quatro mulheres estão entre nós. Para ser admitidas, tiveram de submeter-se a testes de gravidez. Se engravidarem durante os experimentos — que em ge­ral demoram meses —, o bebê poderá ter lesões sérias e permanentes. Neste caso, porém, o LAB presta “assistência médica e psicológica” , seja lá o que for isso.

Cada um de nós pega seu prato através de uma porti­nhola: pão, manteiga, algumas fatias de queijo, um toma­te, um pepino e um pimentão. Na televisão está passando Bonnie and Clyde. Fecharam as cortinas para impedir que o sol da tarde atrapalhe a imagem no vídeo. A antena está quebrada, é preciso segurá-la para que a imagem ganhe al­gum contorno definido. A sala cheira a fumaça e ponta de cigarro. O filme termina, mas praticamente ninguém quer ir dormir. Até meia-noite ficamos sentados no pátio, em si­lêncio, fumando e bebendo uma água insípida em copinhos de papel — a única coisa que ainda nos deixam ingerir.

Os que estão deitados têm os olhos pregados no teto, tentando dormir. Alguém pegou no sono, ao lado de seu radinho de pilha: “Música depois da meia-noite” a pleno volume. Ninguém apaga a luz. A partir das duas e meia,

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“Música até o amanhecer". Desligo o rádio e apago a luz que me ofusca.

Na estação ferroviária, os vagões são manobrados ininterruptamente, com um barulho ensurdecedor. Atra­vés da janela aberta chega o ruído dos copinhos de papel arrastados pelo vento. Alguém se masturba incansavelmen­te sob o cobertor.

Às seis horas da manhã, abre-se a porta. “Levantar!” Obedecemos em silêncio, sem nos cumprimentar. Cada um de nós está muito ocupado consigo mesmo. Meu frasco de urina recebe o número quatro. Isto significa: às 6h04, cateter no braço; às 7h04, medicamentos; às 8h04, coleta de sangue e assim por diante.

Nas primeiras vezes ficamos em fila. Depois, conhe­cendo já os que estão à frente e atrás, sabemos quandò é nossa vez. O homem que está atrás de mim acabou de sair da prisão e não conseguiu arranjar emprego em lugar nenhum. Aqui ninguém lhe faz perguntas. Dois sujeitos jovens, que nos enfiam os cateteres nos braços, conver­sam sobre os próximos exames na faculdade. Ainda não terminaram seus estudos de medicina. Vigiam-nos para certificar-se de que todos nós tomamos os remédios. Te­nho de engolir as duas pílulas debaixo de seus olhares. A primeira coisa que sinto é que meu campo visual se reduz. Tento olhar para o pátio, mas o sol me ofusca, dói-me a vista. Deito-me na cama sonolento e apático. De hora em hora vou como um sonâmbulo para a coleta de sangue. Os outros também estão pálidos e abatidos. Com freqüên­cia cada vez maior deixam de comparecer aos exames e precisam ser arrancados da cama. Uma mulher queixa-se de calor, vertigem e distúrbios circulatórios. Tem o braço frio, áspero e dormente.

No dia seguinte encontro-me num estado ainda mais lastimável. Esses testes são absurdos, pois já se conhecem todos os efeitos colaterais. Já os sentimos: vertigem vio­lenta, fortes dores de cabeça e distúrbios de percepção, além de estupor permanente. A gengiva sangra muito. O sangue é coletado sete vezes por dia e devemos estar sem­

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pre à disposição. Os outros também se queixam. Basta um de nós se queixar para praticamente todos admitirem que têm fortes dores de cabeça. Evidentemente não dizem na­da diante dos funcionários, pois temem não ser aceitos em outros testes. Um deles conta: “Muitas vezes eu me sen­tia um trapo. Numa ocasião participei de dois testes dife­rentes ao mesmo tempo, porque precisava de dinheiro com urgência. Ai, sim, me ferrei por completo. O coração dis­parou, batendo como louco. Até pensei que fosse pifar..."

Um sujeito mais jovem diz que não ficou até o final de um teste porque lhe aplicavam tranqüilizantes muito for­tes. Tranqüilizantes são sedativos que rapidamente levam ao vício. Depois do teste, todos os participantes ficaram meio “abobalhados” . “Alguns caíam, sem conseguir fi­car em pé e precisavam ser carregados. Se por acaso você puder dar uma olhada no relatório a seu respeito, vai ver que na coluna ‘efeitos colaterais' tem uma cruz no ‘não’.”

Depois dessa “primeira série” — isto é, depois de 24 horas — decido interromper o teste. Eu deveria ficar “aquartelado” ainda mais três vezes nas onze semanas se­guintes. Com os efeitos colaterais agravando-se. Sem con­tar que durante esse período deveria estar no instituto to­dos os dias — inclusive sábados e domingos —, às sete da manhã, para coleta de sangue e entrega dos recipientes plás­ticos com minha urina. Abandonando os testes antes do término, não recebo um centavo.

Para Eberhard Greiser, professor da Universidade de Bremen, “aproximadamente, dois terços desses estudos far- macológicos são desnecessários. São estudos que têm pro­pósitos comerciais, e não há nenhuma relação entre sua utilização e as despesas que acarretam” .

Há dois anos esses testes provocaram a morte de Neill Rush, jovem “cobaia profissional” de Dublin, que estava “testando” para a firma Kali-Chemie, de Hannover, um medicamento para arritmia cardíaca. A firma não quis se responsabilizar pela morte de Rush. Para ela, “tratou-se de um ato irresponsável por parte do voluntário” , pois um dia antes Neill havia testado em outro instituto um sedativo

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Ali submete-se ao teste

muito forte: o deporil. A autópsia revelou que a combina­ção dos dois medicamentos provocou a morte fulminante.

Uma “ cobaia” do LAB furtivamente me dá o ende­reço de outro laboratório, o Bio-Design, em Freiburg. “Vi­vem precisando de gente e pagam bem. Além disso, a co­mida é muito melhor que a ração daqui.” Resolvo ir até lá.

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Ao contrário do LAB, o Bio-Design está instalado num prédio futurista semelhante a uma estação espacial. A re­cepcionista faz a mesma pergunta precavida que Adler cos­tuma fazer aos novatos, só que usa palavras mais elaboradas:

— Quem nos recomendou ao senhor?Digo-lhe o nome do meu colega do LAB e imediata­

mente recebo uma proposta tentadora: 2 500 marcos por quinze dias — mas, é claro, não posso sair dali. Então pergunto:

— Desconta imposto?Responde a mulher:— Não, não. Não declaramos imposto. Esse serviço

é considerado como de saúde pública.Tenho a impressão de que não andam conseguindo

muitos voluntários, pois tentam atrair-me com uma nova proposta:

— Caso o senhor resolva participar dos testes, po­deremos excepcionalmente falar de um adiantamento. — E mais ainda: — O senhor será bem tratado. A comida é de graça.

— E por que tanto dinheiro? O que vocês fazem?Uma jovem funcionária dá algumas explicações,

acompanhadas, segundo me parece, de um sorriso pérfido:— Trata-se de uma substância chamada mesperinon,

antagonista do aldosteron. É um mineral corticóide que influi no sistema hormonal. Já está sendo comercializado um produto desse tipo pertencente ao grupo dos espiro- nolactons. Sabe-se que o uso prolongado dessa substân­cia provoca uma espécie de... digamos... efeminação, ou seja, um desenvolvimento de seios nos homens. Mas isso não acontece com um uso terapêutico de duas semanas.

— E isso é seguro? — pergunto.— É o que esperamos. Mas esse é exatamente o ob­

jetivo do teste. Nunca se tem certeza com essas coisas — responde a moça.

— E se acontece, depois some?— Claro — diz ela, tranqüilizando~me. — Tudo volta

para o seu devido lugar.

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É evidente que está mentindo. Uma ginecomastia — nome correto na linguagem médica para a formação de seios nos homens — só é removido por cirurgia. Pelo me­nos essa é a opinião unânime dos especialistas.

Sobre outro ponto ela também não diz a verdade. Pergunto:

— E a potência sexual? Tudo bem?Resposta:— Claro, com relação a isso não há nada a temer.Na realidade, ainda não há resultados precisos quan­

to ao uso de mesperinon em homens. Um texto explicati­vo que acompanha o teste sublinha expressamente que se deve esperar efeitos colaterais como “ dor de cabeça, ton­tura, confusão mental, dor de estômago, reações cutâneas” e, nas doses mais elevadas, “ginecomastia e impotência” . O Bio-Design não mede esforços para prender suas cobaias humanas. Uma cláusula do contrato diz: “No caso de abandono sem aviso prévio, a Sociedade Bio-Design po­de exigir dos voluntários uma indenização pelas despesas provenientes da realização dessa pesquisa...” O Bio-Design está bem pouco preocupado com o fato de esse contrato atar as mãos de quem o assina e ser, sem dúvida alguma, imoral. As “ cobaias” são completamente pressionadas a resistir, apesar de eventuais dores e sintomas.

Por trás da amável e elegante fachada de uma firma de beleza, esconde-se um dr. Mabuse; que, servindo aos grandes trastes farmacêuticos, convenientemente encami­nha aos testes químicos pessoas necessitadas para chegar- se a uma conveniente estratégia comercial.

Felizmente posso me reservar o direito de recusar tal proposta tentadora e a grande soma oferecida pela Bio- Design. Outros, contudo, não podem fazer o mesmo. Fir­mas como a LAB e a Bio-Design lucram com a crise eco­nômica, que obriga mais e mais pessoas a procurá-las.

Os responsáveis por esses institutos escusam-se nas chamadas “comissões de ética” , das quais tomam parte cientistas e até eclesiásticos. Comissões de ética são comis­sões de controle voluntárias, cujas resoluções devem ser

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cumpridas sob forma de lei. É o que ocorre em países co­mo os Estados Unidos e o Japão, mas não na República Federal da Alemanha.

Nesse contexto, ética não passa de cinismo. Os res­ponsáveis pelas firmas podem a qualquer momento subs­tituir essas condições a seu bel-prazer ou colocá-las ime­diatamente de lado sem a menor cerimônia. E mesmo que se tratasse de organismos oficiais, como é o caso em ou­tros países, nada se alteraria: quando muito, as comissões de “ética” só podem julgar questões médicas. Mas a éti­ca humana exigiria, no mínimo, que se preocupassem com esses homens desesperados que foram impelidos para a margem da sociedade e por esse motivo se candidatam ao suicídio a prazo.

Minha proposta: promulgar uma lei que obrigue to­dos aqueles que têm grandes lucros nas indústrias farma­cêuticas a submeter-se aos testes. As vantagens dessa so­lução seriam ilimitadas: a maior parte dessas pessoas tem condições físicas muito melhores que as “ cobaias profis­sionais” (geralmente extenuadas); e, graças aos lucros, po­deriam tirar férias maiores e fazer tratamentos adequados. Assim, o número de testes cairia verticalmente, limitando-se ao mínimo necessário.

Não é uma proposta leviana. Há cerca de sessenta anos os pesquisadores de medicamentos testavam em si mesmos as substâncias novas que descobriam.

Pude sentir na pele os efeitos colaterais que, segundo me diziam, aparecem muito “raramente” . Ao regressar dessa viagem pelos laboratórios farmacêuticos, minha gen­giva inferior começou a inchar e supurar. O dentista diag­nosticou “gengivite” e, presumindo corretamente, pergun­tou-me: “O senhor tem tomado algum remédio à base de fenitoína?” (Fenitoína era um dos compostos do medica­mento testado no LAB em Ulm.) Respondi que sim, e ele, relacionando esse efeito colateral com minha suposta doen­ça, perguntou de imediato: “O senhor é epiléptico?”

A promoção

Sinto-me tão esgotado que não me considero em con­dições de continuar trabalhando na Thyssen. No entanto, tenho muitos colegas que não deixaram o serviço a des­peito de doenças ou acidentes. Colegas que, gripados ou febris, mantêm-se firmes durante dezesseis horas por dia, temendo ser substituídos. Colegas como Mehmet, em cu­jo pé caiu uma barra de ferro. Sem calçados de proteção, seu pé inchou de tal maneira que ele teve de cortar o sapa­to e prendê-lo com um arame. E com dores fortíssimas, os dentes cerrados, lá vem ele mancando para o trabalho, sem nunca se queixar.

Posso me dar ao luxo de arriscar tudo numa só car­tada, fazendo da necessidade virtude. Fico sabendo que Adler tem problemas com seu ajudante e motorista e ten­to obter esse cargo por meio de um estratagema. Marco um encontro com Adler alegando problemas com meu sa­lário. Como sempre, ele está mal-humorado e pergunta co­mo me atrevi a faltar tantos dias sem dizer nada. Peço- lhe mil desculpas, digo que estou bem de novo e que isso não voltará a acontecer. Condescendente, marca o encontro para o dia seguinte: “Mas seja pontual, se me faz o fa­vor! Esteja aqui às duas em ponto!”

O velho truque: quem não aparece é o próprio Adler. Três horas depois, por volta das cinco da tarde, consigo pegá-lo em casa.

Adler (tentando se livrar de mim): Agora não dá! Eu disse para você vir mais cedo. Não vê que estou pron­to para tomar banho? (Está completamente vestido.)

EU: Não faz mal, eu pode esperar. Eu já esperei três horas aqui em porta. Eu fica sentado em escada.

Adler (irritado): Não! Agora não dá! Volte amanhã!EU: Eu não quer dinheiro. Só pergunta.

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ADLER: Também não! Telefone amanhã!EU: Só cinco minutos, por favor! É mais de uma ho­

ra viagem para chegar aqui.Adler: Telefone amanhã! Poderemos conversar por

telefone. Não vou mudar de idéia.EU: É que eu tem uma coisa para senhor que pode

ajudar.ADLER: (curioso e espantado): E o que é?EU: Se eu não ajuda senhor, alguma coisa pode acon­

tecer com senhor...ADLER: Comigo? Por quê?EU: Eu volta depois de banho.ADLER: Não! Espere um pouco. Entre!Hesitante, acompanho-o a seu escritório e conto-lhe

que um dos operários, a quem Adler deve dinheiro, quer dar-lhe uma surra. Mas não o permitirei. Passo a represen­tar o papel de fiel escudeiro, um pouco simplório, pronto a sacrificar a própria vida por seu senhor, se necessário for.

— Eu sabe caratê, caratê especial de Turquia. Chama sisu. — E claro que se trata de um total disparate. Não só não sei lutar caratê, como sisu não quer dizer absolutamen­te nada disso; é uma palavra finlandesa que significa “per­severança” , “paciência” , “insistência” . Mas felizmente ele não sabe disso. — Eu ajuda se alguém bate senhor. Eu sabe golpe especial tiro queda. — E para demonstrar mi­nha energia selvagem esmurro a escrivaninha com toda a força. Adler me encara meio irritado, meio impressionado.

— Quem quer me bater? Está certo e é justo que vo­cê queira me defender, mas quem é o sacana que quer fa­zer isso comigo?

— Eu não lembro o nome. Mas eu já disse para ele que quem quiser matar Adler, precisa me'ítíàtar primei­ro, porque eu sou homem de guarda de Adler!

Sem perceber que, em minha exaltação, esqueci de er­rar nos verbos, Adler morde a isca. Durante uns cinco mi­nutos, lê em voz alta a lista de nomes dos empregados tur­cos e árabes que trabalharam ou ainda trabalham para ele e para os quais evidentemente deve dinheiro. A seus olhos,

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portanto, são todos assassinos em potencial. Para que não desconfie de nada, peço que repita alguns nomes, como se entre eles estivesse o procurado. Mas logo sacudo a ca­beça negativamente: o nome do vingador não consta da lista. Evitando que ele passe a suspeitar de algum dos meus colegas, invento um vingador fantasma, um “árabe sócio de academia de boxe turca e com pata em lugar de mão” (com um gesto mostro o tamanho das mãos). Há pouco tempo esse árabe “com murro só, quebrou cara de ale­mão” que o tinha feito de idiota. “ Sujeito fica todo arre­bentado, com olho que não abria mais e cara torta.”

Adler está verdadeiramente impressionado. Aproveito para falar de meus outros méritos especiais. Conto que, além de lutar caratê, também já fui motorista de táxi du­rante muito tempo e antes disso trabalhei como chofer par­ticular do proprietário de uma grande fábrica.

— Que tipo de fábrica? — pergunta Adler, fazendo- se de profundo conhecedor do asssunto.

— Fábrica faz maquininha para gente falar com ou­tro — explico.

— Você quer dizer walkie-talkies?Confirmo, orgulhoso. Se for necessário, posso con­

seguir uma carta de referência, assinada pelo dono da fá­brica, que evidentemente é um velho conhecido meu.

— Eu ainda tem uniforme em guarda-roupa — con­tinuo, vaidoso. — E também quepe bonito, bom pano!

— Interessante... E você dirige bem?— Eu dirige sim. Não tem problema. Chefe sempre

dormia quando eu dirigia. E eu também sabe consertar car­ro quando quebra.

Mentira deslavada. Mas confio em que o Mercedes 280 SE de Adler, quase novo, com acessórios especiais e todos os equipamentos imagináveis, nunca precise de conserto.

— Está certo! Podemos falar sobre isso — diz ele. — Estou mesmo precisando de um motorista. Além disso vo­cê poderá me manter afastado desses sujeitos chatos. É só me dizer os nomes. Bato um fio imediatamente para a po­lida de estrangeiros, e eles são expulsos num piscar de olhos.

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— Senhor deixa para Ali — declaro, tentando desviá- lo do assunto. — Senhor não precisa ter medo. Eu conta para eles que eu é homem de Adler, e eles fica calminho. Um soco de Ali, e pronto! Melhor que polícia.

— Está bem, Venha na segunda-feira, às dez e meia da manhã. Faremos um teste.

Foi assim que consegui minha “promoção” : de en- golidor de pó e trabalhador braçal a motorista particular e guarda-costas. Prova de que em nossa sociedade ainda há oportunidade de ascensão inesperada. Mesmo para o último dos operários imigrantes.

Por sua vez, Adler logo tenta um de seus habituais golpes.

— Você ainda está doente — diz. — Preste atenção... vou registrá-lo na previdência. Depois você procura um médico e pede um atestado. Então a previdência paga o seu salário. E você fica trabalhando para mim.

Precisei de muita abnegação para trabalhar como mo­torista de Adler nas semanas seguintes. Bastava eu tocar no volante para ele começar com sua rabugice. “Faça o favor de prestar atenção!” Ou: “Pare de me pôr em ris­co” . Ou então: “ Quantas vezes preciso dizer que isso que você está dirigindo é um objeto de valor?” Ou ainda: “ Gostaria muito que você guiasse com segurança e serie­dade quando estou no carro. Sua responsabilidade é nos deixar, a mim e ao carro, sãos e salvos em casa” .

Assim, sou obrigado a dirigir bem devagar e pruden­temente, três vezes mais devagar do que dirijo meu pró­prio carro. Já nem se pode chamar isso de dirigir: é como um leve balanço de rede. Mas Adler continua apavorado. Ou quem sabe se essa mania de resmungar não é apenas uma necessidade de auto-afirmação?

A cada dia ele me convoca para estar em sua casa mais cedo. Sinto-me usado como “serviço de despertador” . To­co a campanhia. Passam-se alguns minutos até que Adler, com voz de sono, grite lá de cima: “Espere aí! Só demoro dez minutos!” E espero, espero, espero... Fora, diante da casa, não há nenhum local coberto em que eu possa me

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abrigar se chover. Não ocorre a Adler jogar-me as chaves do carro para que eu possa ficar lá dentro.

Por volta das oito, nove horas é que o bairro começa a se animar. Persianas são erguidas, janelas se abrem com lentidão. Automaticamente, as portas das garagens vão se levantando, e empresários bem-sucedidos, em suas limu­sines impecáveis, partem rumo ao mundo dos negócios. Uma mulher coloca ao lado da janela uma gaiola luxuosa com pássaros exóticos. Todos os jardins são bem cuida­dos, a grama perfeitamente aparada.

É muito raro Adler exigir que eu apareça em sua ca­sa às sete ou oito da manhã. Quando isso acontece, fico esperando trinta minutos, às vezes uma hora, para só en­tão sair com meu senhor. Em geral, o dia para Adler não começa antes das dez ou onze e termina às duas ou três, no máximo às quatro da tarde — e muitas vezes com um intervalo de uma hora para o almoço. Seu trabalho coti­diano resume-se em ir aos vários bancos, em Oberhausen e Dislaken, para consultar os depósitos de dinheiro. Cu­riosamente todos esses bancos não ficam no bairro onde ele mora. De vez em quando, Adler vai visitar Remmert, seu amigo e sócio. Quase sempre no horário em que os empregados não estão voltando de seus turnos, para evi­tar as costumeiras “perguntas insolentes” e “absurdas exi­gências salariais” . Adler costuma ligar o sistema de alar­me do automóvel, porque nunca se sabe...

Na volta, às vezes passamos por seu clube de tênis em Duisburg, onde há um restaurante, para que ele possa “dar uma olhada no que está acontecendo” ou encontrar seu “ fraudador de impostos” — isto é, seu consultor fiscal e amigo intimo. Adler declara oficialmente como rendimento anual alguma coisa “ entre 500 mil e 1 milhão de marcos”— quantia que mal daria para seus gastos reais. Se somás­semos apenas as contribuições sociais não recolhidas de to­dos os seus operários que se encontram em situação ilegal, obteríamos com certeza um múltiplo desse total.

É um martírio ser seu motorista. Ele sempre encon­tra alguma coisa para criticar, sempre acha que sua vida

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corre perigo. Tenho a impressão de estar transportando não um ser humano de carne e osso, mas uma múmia aper- gaminhada, extremamente frágil, conservada numa caixa de vidro e capaz de se desmanchar a uma simples freada. Irritado, Adler continua botando defeitos em seu moto­rista, quando não berra de uma vez: “Não ultrapasse! Di­rija devagar, seu estúpido!” Ou então sua fórmula corri­queira adaptada para a situação: “Faça o favor de pres­tar atenção!” Ou mais ainda: “ Sejamos sérios! Não so­mos provocadores!” E tudo isso a menos de 50 quilôme­tros por hora na cidade e a menos de 140 na rodovia. Po­rém ele não está preocupado com a segurança alheia; é mais o medo abstrato por sua própria vida, preciosa e muito cara. A polícia provoca-lhe uma fobia instantânea. Basta avistar um guarda ou uma viatura policial para ordenar que eu desvie ou mude de caminho e ficar fora do alcance o mais depressa possível.

Adler nunca olha para trás, seria um desperdício. Aliás, é um dos lemas de sua vida, pois, fiel à letra de sua música favorita — a “Canção do mercenário” — deixa para trás “a terra queimada” : “ Cem homens e um só co- mando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sabe para onde?/Terra queimada, qual é a razão?”

Certa vez quase sou desmascarado. Adler percebe que fiz um sinal para o fotógrafo que, do outro lado da rua, ia perdendo nossa saída.

— Para quem você fez sinal? — pergunta desconfiado.— Não é sinal — respondo, tentando afastar suas sus­

peitas. — É exercício caratê. Gente fica muito tempo sen­tado, precisa fazer exercício, mexer braço, perna, mão, bem rápido.

E para fornecer-lhe uma prova evidente do que aca­bo de dizer começo a fazer movimentos espasmódicos com os braços e as mãos, enquanto dirijo. Isso o deixa assom­brado. E ainda como reforço de minha dedicação ao exer­cício (e também para mantê-lo afastado de mim, caso me desmascare), conto-lhe que, na academia de caratê, todos têm medo de meus reflexos, rápidos como um raio:

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— Uma vez colega de academia fez movimento fal­so e levou golpe sem querer. Resultado... quatro dias co­ma. — E para que me respeite digo-lhe que sou capaz de quebrar tijolos com um golpe de caratê, mas tijolo velho, não novo! Um golpe, e pronto, tudo acabado! — Faço um gesto brusco em sua direção. E, para não continuar assustando-o, acrescento: — Gente precisou assinar pa­pel lá em academia. Gente só pode brigar se alguém ataca primeiro, nunca pode começar briga! — Se ele soubesse que sou, por princípio, contra golpes e armas de qualquer espécie e em tais situações minha bravura é sair correndo...

— Faça o favor de não se agitar assim dentro do carro! Vai estragar todo o banco. Quando estiver lá fora, então pode fazer essas coisas — começa a gritar de repente. Sem motivo, porque os bancos são tão firmes que meus movi­mentos inofensivos não poderiam causar nenhum dano.

De qualquer forma, reforçando a seriedade de meus exercícios de caratê e afastando suas suspeitas, ponho-me a simular um lutador diante do carro, enquanto ele visita a empresa Ruhrkohle-Wãrmetechnik, em Essen. Meus mo­vimentos atraem a atenção das secretárias que trabalham do outro lado da rua, nos escritórios da União dos Médicos Previdenciários. Apinhadas nas janelas do prédio, elas co­meçam a fazer sinais, encorajando esse guarda-costas que se agita como um louco diante da limusine. Respondo a seus acenos, o que provoca uma interrupção de no míni­mo quinze minutos no expediente da União dos Médicos.

Assim que retoma e vê toda a pantomima, Adler fi­ca furioso.

— Pare com isso imediatamente, seu idiota! Você ain­da vai me comprometer. Deixe para fazer essas coisas lá na sua jaula de macacos da Dieselstrasse ou na academia turca!

— Tudo bem! Mas senhor disse que fora de carro eu podia fazer... — argumento e corro a abrir a porta do au­tomóvel; depois, submisso, volto a sentar-me ao volante.

Às vezes, ouço o chefe despedindo pelo telefone do carro alguns empregados “incômodos” ou “insubordina­dos” . Ao contrário do que se poderia supor, sua voz nunca

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se altera, não demonstra menor irritação; há, sim, um tom meio lascivo. “Alô, meu bem, escute só” , sussurra, “acabo de me livrar de uma daquelas moscas varejeiras. Foi ain­da há pouco, na Ruhrkohle. O T. vai ser despedido ama­nhã. Não é fantástico?11

Ao convidar industriais e políticos — entre os quais um deputado federal — para um fim de semana em seu iate, na Holanda, relata a um sócio: “Um peso a menos! Hoje o botei na rua! Assim, zap! O que esse sujeitinho me irritou!”

Em outra ocasião, sempre pelo telefone, ele se põe a filosofar: “Às vezes é preciso virar a mesa. Então todos se pelam! O pior de tudo é amolecer. Aí eles montam em cima, e você pode ir fazendo a trouxa...”

De fato. Adler pode pôr gente na rua segundo sua von­tade e seu humor. O desemprego, cada vez maior, atira- lhe nos braços novos desesperados, que procuram qual­quer trabalho sob qualquer condição — ou quase. Ele es­tá longe de conhecer todas as vítimas de sua exploração; quando muito, sabe o nome desses infelizes. Só quer o di­nheiro que lucra com eles.

Novamente ao telefone: “O pessoal da Ruhrkohle me procurou. Eles montaram uma nova instalação e me disse­ram: ‘Olhe, as contratações estão suspensas, mas precisa­mos de eletricistas1. Então foram a uma agência oficial de empregos, lá para os lados de Colônia, aplicaram um golpe qualquer e pronto! Conseguiram os eletricistas como se ti­vessem sido contratados por mim. Eu nunca os vi, só rece­bo meu dinheiro todo mês.” Ri. “É, a gente precisa saber se ajudar. É só querer e sempre se acha uma solução.”

Mais uma de suas conversas: “Para mim as melho­res são as grandes como Steag. Já trabalhamos com todas as centrais elétricas: Thyssen, Ruhrkohle, Ruhechemie, Ge­neral Electric da Holanda. Todas empresas de fama mun­dial. Por isso é que, em geral, nem a inspeção do trabalho nem fiscais de outras repartições ousam se meter nos ne­gócios delas. Assim, podemos fazer ou deixar de fazer o que bem entendemos. Os empregados podem trabalhar até

180*

cair. Elas não querem nem saber; só querem que a gente faça o trabalho depressa e discretamente. Quanto menos empregados, melhor para elas, porque não dá na vista. E dai eu tenho que me virar com menos empregados, o que se reflete nos ganhos**.

Às vezes ele reconhece, com muito despeito, que al­guns de seus concorrentes conseguem superá-lo em maté­ria de cinismo e trapaça. Conta como alguns deles, encar­regados pelas grandes empresas de se “ livrar” dos deje­tos tóxicos, “ganham duas vezes” pelo serviço: “ O F. es­tá encarregado pela Ruhrkohle de remover o lixo despe­jado no rio Emscher. Só com esse serviço ele já está ga­nhando um dinheirão no mole. Mas dobra toda essa gra­na com os dejetos de carvão, que ele passa num tritura- dor, pulveriza e revende como combustível. O único pro­blema é que não pode armazenar o pó em silos porque produz gases e vapores que podem provocar uma explo­são. A mesma coisa acontece com toda aquela montanha de resíduos de minérios de Oberhausen. A cidade conce­deu a posse a um holandês, que transporta até a estrada os resíduos não aproveitáveis de minério e recebe por me­tro cúbico. E sabe o que o sujeito faz? Mói todo o mate­rial e revende por um bom preço para as quadras de tênis. É o negócio do momento essa história com as quadras de tênis. Só que com isso elas têm muito ácido venenoso. Se alguém cai numa quadra dessas fica com feridas nojen­tas. Mas todas essas coisas são necessárias: ganhar dinheiro com a merda e se tornar mais caro. É assim, meu jovem, tem gente que enfia o dedo na merda e quando o tira... pronto, transformou tudo em ouro!”

Adler construiu sua fortuna sobre o lixo, o pó e a su­jeira — ou, para usar sua própria terminologia, sobre a merda. Mas isso não o impede de zelar meticulosamente por sua higiene pessoal. Tem um pavor histérico de con­taminar-se com a sujeira desse mundo. Seus trabalhado­res, verdadeiros escravos, representam para ele a casta dos impuros, dos intocáveis, dos repugnantes, e bem que Adler gostaria de mantê-los o mais longe possível. E quando pre­

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cisa recebê-lost sua indignação não se baseia apenas na perspectiva ameaçadora de se desfazer de algum dinheiro para pagar salários atrasados, mas também no confronto direto com o suor, a sujeira e a miséria — embora todos sempre tenham se apresentado em sua casa limpos e cor­retamente vestidos. A única exceção sou eu. Muitas vezes fiz questão de aparecer por lá com minha roupa de traba­lho coberta de graxa e lama, o rosto preto de fuligem e pó. E, para seu pavor, ficava parado sobre o capacho co­mo um escravo que volta do trabalho, esfarrapado e prostrado.

Mas adaptei meu novo uniforme ao Mercedes: calça com vinco, camisa branca ou cinza, sempre impecável, gra­vata e sapatos de couro reluzentes de tão engraxados (não mais aqueles enlameados calçados de trabalho). No entan­to, Adler continua considerando-me como um de seus es­cravos, vindos do submundo proletário. Só meu endere­ço — Dieselstrasse — já é um estigma. Para Adler, devo ser a última das criaturas para viver naquela sujeira e tra­balhar bem ao lado numa imundície ainda maior.

Um dia lá pelas sete e meia da manhã, estou planta­do diante de casa de Adler, esperando-o há bem uns trin­ta minutos, quando de repente sinto vontade de ir ao ba­nheiro. Toco a campainha e pergunto se poderia usar o toalete.

Adler: Vai cagar ou mijar?EU: Tudo.A d le r (com repugnância): Pois faça tudo aí fora

mesmo.EU: Fora?! Mas onde?ADLER: Num canto qualquer, mas longe daqui,EU: Mas qual canto?Adler: Tanto faz!(Sou enxotado como um cachorro. E não há nenhum

local onde eu possa me aliviar. O jardim inteiro é desco­berto. Tenho vontade de dar uma bela cagada no capô do Mercedes, bem em cima da estrela. Dez minutos depois, Adler finalmente aparece.)

182*

Eu: Banheiro de senhor quebrado?Adler: Não, não está quebrado. É que não gosta­

mos disso. Vou ser bem franco... tenho medo de pegar doença, entende? É uma questão de princípios. Não faze­mos essas coisas na casa de estranhos. Há tantas doenças espalhadas por aí... Nunca se sabe onde a gente pode se contaminar, não é mesmo? E é bem grande o perigo de contaminação desse modo.

EU: E quando vem visita? Também vai fora fazer isso?Adler (embaraçado, hesita antes de responder): Eu

já disse, nunca recebo visitas. Os empregados ou qualquer outra pessoa não entram no meu banheiro. Mas eles já sa­bem disso. Ninguém pede. Em relação a essas coisas, eu sou muito cuidadoso!

EU: O senhor tem medo de “OIDS” ?ADLER: Você quer dizer AIDS, não é? Bem, todos

têm medo. Mas eu... tomo meus cuidados. Por exemplo, nunca vou ao banheiro na casa de estranhos ou num lu­gar que não conheço direito. Não vou mesmo.

EU: Sim...Adler: Não vou mesmo. Tento me segurar para só

fazer em casa. Não entro em banheiro que não conheço.EU: Sim...Adler: Nem público nem na casa dos outros. (E

prossegue ponderando): Também quase não dou a mão para ninguém. Se preciso cumprimentar alguém, imedia­tamente vou lavar as mãos.

Eu: Gente fazendo assim, não acontece nada?ADLER: Claro que não! Assim não haveria mais doen­

ças. Só que nem todos pensam como eu. Muitas pessoas são bem porcas nesse aspecto. Pensar nisso até faz mal.

Eu deveria levá-lo para visitar os banheiros da Rem­mert, assim como se leva um criminoso ao local do crime. Só há dois banheiros para todos os operários. Asquerosa­mente imundos. A firma nunca os limpa nem fornece pa­pel higiênico. Um dos banheiros não tem nem mesmo por­ta. Mesmo assim, é bastante concorrido; o pessoal preci­sa se agachar, exposto a todos os olhares. Um alemão es­

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creveu num deles, com uma dessas canetas hidrográficas: “Exclusivo para os broncos” .

Às vezes, durante o trajeto entre Oberhausen e Essen ou rumo a Wesel, Adler esquece o telefone por um instante e, contemplando a paisagem, põe-se a filosofar. Sintoniza a rádio Luxemburg, sua emissora favorita, que ouve de manhã à noite, acalentado pela atmosfera de um mundo fe­liz e sem problemas. Só baixa o volume durante os boletins noticiosos, transmitidos de hora em hora. Ele, que em geral é tão pouco comunicativo, de repente sente vontade de compartilhar com seu motorista turco, a quem vê cinco ou seis vezes por semana, confidências e convicções sobre a situação política do país. Tudo isso em frases intermináveis.

Nesse momento, começa a tocar no rádio a enérgica canção: “Bom dia, Alemanha, eu te amo...”

EU: (aproveitando a ocasião): Faz tempo que senhor é chefe e patrão de senhor mesmo?

Adler: Cinco anos. Antes, fui chefe de compras da siderúrgica Gutehoffnung Man. Durante esses cinco anos, aprendi muito mais do que em toda minha vida. E tam­bém em relação aos embusteiros e outras coisas do gênero.

EU: Mas agora senhor ganha mais dinheiro que an­tes, não? Que é embusteiro?

Adler: É verdade. Ganhar dinheiro faz parte do jo­go. Mas aqui na Alemanha há uma porção de trapaceiros que não querem nada com o trabalho e só querem é ficar bem perto da carteira da gente. Só pensam em passar a perna nos outros. Em termos de assiduidade e competên­cia, os operários de hoje não têm nada a ver com o operá­rio alemão de antigamente. É verdade que Hitler foi um ditador, mas em relação ao...

EU: Ele matou gente.ADLER: É, e também provocou guerras que na ver­

dade não eram necessárias.EU: E por que ele perdeu?ADLER: Bem... ele se lançou a todos os tipos de con­

quistas e quis continuar a expandir mais e mais... O que ele fez com os judeus... você pode concordar ou não... mas,

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enfim, os judeus não são mesmo bem-vistos em lugar ne­nhum... As pessoas hoje em dia esquecem muito depressa que ele deu pão e trabalho para todo mundo. Onde ele pu­nha a mão, acabava o desemprego. E agora, que temos um ou dois milhões de desempregados, logo vai aparecer um novo Hitler. Pode ter certeza! Todas essas manifesta­ções políticas, essas agitações e coisas do gênero!

EU: Agora é gente que está em lugar de judeu.Adler (ri): Não tenha medo, não vamos mandá-los

para as câmaras de gás. Não acredito nisso. Precisamos de vocês para o trabalho. Com os judeus foi diferente, era uma coisa que estava enraizada fazia séculos. Você sabe, os judeus estão sempre metidos no comércio, sempre fa­zendo os outros trabalharem para eles. Compram por uma ninharia o que os outros fabricam e depois vendem muito caro. É esse o método dos judeus. São preguiçosos de nas­cença, não gostam de trabalhar e enriquecem à custa dos outros. É por isso que ninguém os tolera em lugar nenhum, nem na Alemanha, nem na América, nem na Rússia, nem na Polônia. Mas com os turcos a história é outra. Você sabe melhor que ninguém que podem trabalhar duro aqui. Portanto, não tenha medo! O que pode acontecer é alguém fazer uma lei dizendo que vocês têm que deixar a Alema­nha no prazo de um ano. Isso, por exemplo, se mais um milhão de pessoas perder seus empregos.

EU: E senhor acha que vai ter mais gente sem emprego?ADLER: É o que dizem os que entendem do assunto,

os políticos e os figurões das indústrias. Claro que não fa­lam assim, abertamente, para qualquer um. Por exemplo, há cada vez mais computadores e robôs nas empresas. Se eu pudesse substituir pessoas por máquinas... cada máqui­na custaria 100 mil marcos... isso representa três homens a menos. Se eu pudesse, bem que eu faria. Com as má­quinas eu não teria aborrecimentos.

EU: É...ADLER: Você compreende? A máquina é mais con­

fiável, trabalha sem problemas. E essa é a tendência ge­ral. Olhe as grandes empresas... tudo é automático. E ca­

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da vez mais. E países como a Nigéria ou a Alemanha Orien­tal produzem serviços mais baratos; por exemplo, nas cons­truções metálicas, nas tubulações... Aqui na Alemanha Oci­dental o custo da mão-de-obra é muito elevado. Por isso não somos capazes de concorrer com eles. Vivem dizendo que precisamos reduzir o desemprego, mas com este siste­ma econômico não é possível. Ao contrário. Todo ano mais e mais jovens saem da escola e querem trabalhar, porém não há trabalho. Os figurões da política só fazem é tapar buracos, com aponsentadorias prematuras e coisasassim. É como no Egito antigo... “Sete anos de vacas gordas, sete anos de vacas magras.” Tivemos quarenta anos de vacas gordas, e agora temos que estar preparados para os anos de vacas magras. Até que venha uma nova guerra ou al­guma coisa assim, e então tudo precisará ser reerguido.

EU: Senhor acha que vem guerra nova?A dler: Se o desemprego continuar aumentando, pe­

lo menos uma guerra civil na Alemanha. Pode acreditar. Se aparecer mais um milhão de desempregados, vão to­dos para a rua e montam barricadas. Então será o caos, o fim da nossa democracia! (Cala-separa ouvir uma notí­cia transmitida pelo rádio do carro.)

RÁDIO: Os estrangeiros que se divorciaram de espo­sas alemãs poderão ter sua autorização de permanência re­duzida ou suspensa...

ADLER: Está ouvindo?RÁDIO: ... rejeitou a ação judicial de um turco que

vive na República Federal da Alemanha há cinco anos. Sua esposa, uma alemã, requereu o divórcio e obteve a guar­da do filho. A cidade de Kassel decidiu que a autorização de permanência do estrangeiro será válida somente até o final de agosto deste ano.

Adler: Está ouvindo? Por toda parte já se fala nisso!EU: Mas e senhor, o que senhor acha? Agora são ca­

sados, depois talvez ela arranja outro homem, e aí fim, acaba. Mandam ele embora. E ele não pode mais ver o próprio filho?

Adler (impassível): É, o sujeito vai ter que voltar pa­

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ra a terra dele. Você acabou de ouvir. De qualquer modo, foi um erro da política alemã. Quando estávamos em ple­no milagre econômico, escancaramos as portas do país, e entraram todos os turcos que quiseram vir, todos os ita­lianos que quiseram vir... Foi mesmo um grande erro! Os políticos não poderiam ter feito uma coisa dessas.

EU: É, mas gente não veio sozinho, eles foi buscar gente. E aquela época nada computador. Eles precisavam mesmo gente.

Adler: Mas isso foi uma faca de dois gumes. Hoje nos arrependemos. Chegaram os turcos, e todo trabalho duro passou a ser feito pelos imigrantes. E o alemão, que não trabalhou mais, ficou prejudicado. Essa mentalidade existe até hoje. O alemão não quer mais trabalhar e cria muitas dificuldades. Foi um grande erro deixar os estran­geiros virem para cá. Mas também estou convencido de que, se todos os turcos partissem, não resolveria o problema. Supondo que todos eles partissem, teríamos talvez cem mil desempregados a menos, o que não adiantaria nada.

Rádio (interrompendo novamente a conversa) : ... é acusado de corrupção. Veba, Klõckner, Krupp, Mannes- mann e mais onze grandes trastes... Esses donativos ser­viriam para suborná-lo...1

EU: Então ministro da Economia vai para cadeia?2Adler: De jeito nenhum. Metade do governo teria

que ir junto. Não vai mesmo, é impossível!Eu*. Ele ganhou milhão e milhão, e ainda queria mais.Adler: Ora, é evidente! Você também. Está sempre

reclamando de dinheiro. Isso faz parte da natureza huma­na, você não acha?

1 Alusão ao escândalo que explodiu na Alemanha em 1983, quando se soube que Karl Flick, o industrial mais rico do pais, andou distribuindo propinas a dirigentes de todos os partidos parlamentares, exceto o Partido Verde (N. do E.).2 O conde Otto von Lambsdorff, então ministro da Economia, posteriormente foi processado por corrupção (N. do E.).

187 '

INDUSTRIEMONTAQEN KQ

BRHAU8CN

tndustriemontagen- RchrfeEttmgsbau • Behfltterbau

- StahtbauEntrostung und Anstrlch

HV/UH 26,7.1985

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Herr A M Levent S l M l H M F , «ohnhaft Dleselstr. Io, 41 Dulsburg Ist bei uns bescMf tlgt.

Ourch selne hervot-ragende Arbett, PUnktlIchkelt,

FleíBIgkelt auf varsehladenen Baustellen hater

slch so verdlent genàcfit, daQ wir Ihn selt einlgér

lolt alsChaffahrer einsétzen.

Ihn> pbllegt dle Wartung und Pflego sowlo dle Fahrerel

ratt unserea Mercedes 280 SE.

Uir slnd mlr Herrn SttfMBIpB sèhr zufrteden.

Mlr beabstchtlgen, Ihn zú élnen spüteren Zeltpunkt

ais FUhrungskraft efntusatzen.

Atestado entregue por Adler a Ali depois de sua promoção

A assembléia do pessoal

“Assembléia do pessoal” é o nome que Adler dá a uma reunião com sua gente, convocada por ele mesmo e realizada num salão do Cantinho dos Esportistas, um bar da Skagerrakstrasse, a dez minutos da parada de ônibus da firma J. P. Remmert.

Enquanto o levo lá, ele conversa pelo telefone com um dos seus confidentes. Diz que vai tratar de “manter a calma no front” e fazer com que todos “andem na li­nha” . E que também decidiu efetivar uma das equipes de trabalho, de acordo com a lei, para não se arriscar a “ fi­car atolado na merda” .

A reunião está marcada para as quatro da tarde. A presença de todos é obrigatória, mas evidentemente não é remunerada.

Adler encarrega-me de levar sua pasta de documentos.— E não se afaste de mim! — ordena logo. — Se al­

guém chegar muito perto, você agarra e despacha logo.— Certo — declaro, bastante chateado por pensar que

meus antigos colegas e amigos poderão imaginar que me tomei não só um arrivista como um dos gorilas de Adler. Se algum deles se atrevesse mesmo a surrá-lo, eu saberia muito bem a quem ajudar, ainda que precisasse abando­nar meu papel antes do tempo. Afinal, a abnegação ter­mina em algum momento.

Os colegas já estão sentados ao redor de uma grande mesa. Há algumas caras novas. Adler senta-se à cabecei­ra e, com um sinal, faz-me entender que devo me espre­mer a seu lado. Pisco para alguns colegas, porém duvido que tenham entendido meu gesto de cumplicidade. Com um “ silêncio!” , Adler põe fim às conversas.

— Afinal, não estamos numa escola judaica — acres­centa, usando uma expressão que a maioria não compreen­

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de. Todos silenciam imediatamente e olham-no.espanta­dos, à espera do que ele tem a revelar. Adler inicia então seu discurso num tom que é no mínimo surpreendente: — Muito bem, meus caros colaboradores... — Ao ouvir isso Kemal me cutuca por baixo da mesa e não consegue pren­der o riso. — ... convoquei-os porque está na hora de bo­tar ordem na casa. Andaram dizendo qiie trabalhamos ile­galmente. Até o nome de uma empresa como a Remmert foi mencionado pelo rádio. Uma coisa dessas pode preju­dicar os negócios, e eu estou advertindo cada um de vocês contra esse tipo de afirmação. Se tudo continuar como ago­ra, montaremos uma equipe estável, com contratos está­veis. Para tanto, faremos uso das louváveis disposições do governo federal, que nos autorizam a firmar contratos por prazo determinado, inicialmente de seis meses, com gente da nossa confiança. Assim, poderemos avaliar o desem­penho de cada um e ver quem é bom para nós e quem não é tão bom. Não se pode confiar em alguém só pela cara. Se formarmos uma equipe estável, poderemos voltar a con­versar sobre uma e outra questão. Dentro da Thyssen há muitas firmas que não tratam desse assunto de forma tão legal como estamos tratando agora. — Explica que atual­mente a Thyssen lhe assegura “três mil horas por mês*’ mais tarefas especiais extraordinárias, e espera que isso con­tinue “ todos os anos!” — Desde que a conjuntura eco­nômica se mantenha tão favorável como agora e que a Thyssen não venha dizer de repente que acabou. — Pede- me para chamar a garçonete e proclama num tom arro­gante: — Agora é a minha vez. Uma bebida para cada um. Soda, coca ou cerveja. A rodada é por minha conta! — E continua falando a seus “caros colaboradores” dos mais céticos aos mais temerosos: — Agora prestem muita aten­ção! Vou explicar a tabela dos salários. — Menciona “ín­dices** desses salários de fome que ele mesmo fixa arbi­trariamente como se tivessem sido estabelecidos por ne­gociações oficiais com os sindicatos. — Os salários serão os seguintes... 8,50 marcos para o pessoal que tem entre 18 e 21 anos; 9 marcos para os solteiros com mais de 21

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anos e 10 marcos para os casados.1 Escalonei um pouco os salários — justifica-se — porque um homem casado evi­dentemente tem mais despesas. Ou, se preferirem, escalo­nei essas tarifas segundo critérios sociais. — Olha severa­mente para todos. — Se alguém não estiver de acordo, levante-se e saia!

Ninguém se mexe. Ninguém se atreve a dar sua opi­nião. Para a maioria, não é só a subsistência que está em jogo, é a própria sobrevivência. Sabem que lá fora há dú­zias de pessoas que ocupariam seus lugares sem nenhuma objeção.

— Esse salário de 8,50 marcos é bruto? — Nedim ou­sa perguntar.

— Só pagamos salário bruto — responde Adler, la­cônico.

— Mas então sobram apenas 5 ou 6 marcos — co­menta Nedim.

— Bem, assim de cabeça não lembro as cifras exatas para os solteiros. É possível que seja isso. Mas, de uma vez por todas, os salários são sempre em valor bruto. Pa­gamos não só conforme a empreitada, mas também segun­do a situação social. É um único bolo que deve ser repar­tido; portanto, devemos levar em conta o aspecto social.

SÓ o “bolo" da Thyssen representa 52 marcos por ca­beça e por hora, conforme relatos dos colegas. Estão in­cluídos os adicionais de insalubridade para o pó, a sujei­ra, o calor e outros elementos nocivos à saúde; sem falar nas horas extras. Para a Thyssen, esses prêmios pagos ao pessoal da Adler saem mais em conta do que se ela pagas­se a seus próprios trabalhadores registrados. Porque as­sim são suprimidos pagamentos de férias remuneradas, gra­tificação de Natal, auxílio-doença e tantas outras conquis­tas dos trabalhadores. Adler reparte os 52 marcos com a firma Remmert, que fica com 27 marcos. Supondo-se que, contrariamente a seus hábitos, Adler não embolse os en­cargos sociais e pague em média 9 marcos a cada empre­

1 São bem poucos os casados (N. do A.).

191 *

gado, restam-lhe ainda 16 marcos por hora; multiplicado por três mil horas no mês, isso dá 48 mil marcos — para Adler, é claro.

— Pois bem, vamos tomar nota dos nomes de um por um — diz ele. Ao olhar, porém, os rostos desanimados e abatidos de seus “guerreiros” , procura em seu repertó­rio habitual algumas palavras de consolo: — Sei que não é muito no momento, porém, como já disse, estou disposto a rever isso. Ainda não nos conhecemos muito bem, mas em seis meses, quando nos conhecermos melhor, falare­mos sobre aumento de salário. E estou certo de que pode­rei fazer alguma coisa a respeito.

“Todos que o conhecem um pouco sabem que se tra­ta de promessas vazias” , penso.

— Muito bem, tenho outra coisa a dizer. — Adler levanta a mão para exigir silêncio. — Não vou mais tole­rar que faltem ao serviço. A partir de hoje, infelizmente teremos que demitir quem faltar e pegaremos outra pes­soa para ocupar o lugar. Está bem claro? A minha em­presa não é botequim para vocês ficarem com entra-e-sai!— A esse ponto volta-se para Mustafá (23 anos), lançando- lhe um olhar crítico. — Isto vale principalmente para vo­cê. Anteontem foi a última vez que você faltou.

— Desculpa, senhor. Eu precisei levar a mulher no hospital. Ela foi dar à luz.

Ao invés de felicitá-lo, Adler finge não ter ouvido e repete:

— A última vez! Esteja certo disso!Nunca recebemos qualquer espécie de auxílio-doença

e várias vezes, chegando ao trabalho, éramos mandados de volta para casa porque não havia serviço. E mesmo as­sim Adler dispõe de nosso tempo e de nossa vida como se fossemos seus servos. Irritado, dirige-se asperamente a Walter Recht:

— Você deve parar duma vez por todas com essas suas faltas constantes, do contrário...

— Mas, senhor, de sábado para domingo trabalha­mos vinte horas seguidas — argumenta Walter, cabisbai-

192'

xo. — Só cheguei em casa às quinze para as três, e às três e meia tive que ir buscar uma ambulância para a minha mulher, que precisou ser operada com urgência. Mas eu logo comuniquei ao sr. Flachmann.

Adler finge não ouvir e põe-se a esclarecer as coisas:— Se vocês não entrarem na linha, volto a fazer co­

mo antes. Ao receber um atestado médico, vou até a casa do sujeito e vejo se ele está mesmo com febre. Se não esti­ver, ponho-o no olho da rua! — Em seguida retoma sua cumplicidade social: — Quando nos conhecermos melhor, nos acostumarmos uns aos outros, saberemos o que fa­zer. E quando nos reunirmos de novo... para uma festi- nha de Natal, por exemplo... se ainda estivermos juntos até lá... talvez possamos assinar contratos definitivos. En­tão está tudo certo. A partir de agora vocês são uma equi­pe, e eu não quero mais ouvir choradeiras por causa de dinheiro. Amanhã e sábado vocês poderão fazer horas ex­tras, virar o dia trabalhando! Isso é tudo. — Despede-se de sua gente. — Amanhã cedo, todo mundo lá, pontual­mente. Banho tomado, pescoço limpo e outras partes tam-. bém... — Depois volta-se para Mustafá e pergunta: — Vo­cê pagou as suas cervejas? Só me faltava deixar a conta das bebidas para eu pagar! Muito bem, tudo acertado — diz para Wormland, seu futuro cunhado, funcionário e confidente. Manda-me levar sua pasta de documentos para o carro e aproveita para explicar para Wormland: — Ali agora é o meu guarda-costas. Pode dizer para os rapazes. Ele sabe lutar caratê e tem um revólver.1 — Ficou o tem­po todo sentado atrás de mim, sem despregar os olhos. Daí apareceram dois sujeitos que queriam dinheiro. Pen­sei que estava mesmo frito!

Meio divertido, Wormland comenta:— Ouvi dizer que você agora vai registrar o pessoal

todo.— Não leve tudo tão ao pé da letra — Adler respon­

de, piscando o olho. — O importante é que haja. um pou-

1 Na verdade eu havia lhe mostrado só um canivete (N. do A.).

193

co de paz nos negócios. — E esquiva-se para o canto do balcão ao ver entrar no bar um casal de jovens. O homem olha-o com fúria, e a mulher, uma loira, ostensivamente vira o rosto para o lado. — Fique atento — diz-me Adler.— Talvez você tenha que me defender. — E volta-se para Wormland num tom fanfarrão: — Está vendo? Sou mais conhecido que o papa!

Sua preocupação, porém, é infundada; não há nenhu­ma provocação.

Mais tarde, chega ao bar um de seus amigos de negó­cio, e Adler põe-se a falar sobre a assembléia do pessoal:

— E então consegui regatear os preços. Agora estão todos animados a fazer horas extras e turnos dobrados. E para não que ficassem tagarelando e discutindo, mandei- os voltar imediatamente para casa. “Você vai por aqui, você por ali” , disse-lhes. A gente precisa ter muito cuida­do com esse pessoal.

À outra ponta do balcão está sentado um colega no­vo: Walter, um alemão de seus vinte e poucos anos, ma­gro e pálido. Bebe uma cerveja atrás da outra e, levantan­do o copo para um brinde, evidentemente procura cha­mar a atenção de Adler, que, contudo, finge não vê-lo. Depois de tomar umas dez cervejas para ganhar coragem, Walter vai ao encontro de Adler e, num tom patético e um pouco alto demais, implora:

— Por favor, me dê uma chance. Eu fiz o curso de mecânico numa fábrica, mas fiquei doente nas vésperas do exame. Então me puseram na rua. Estou falando fran­camente... Na época eu ainda não era casado... mas ago­ra é diferente; tenho dois filhos para alimentar. Na outra firma onde trabalhei, eu precisava ficar o tempo todo cor­rendo atrás do meu dinheiro. — Põe-se a gritar imitando seu antigo patrão: — “Você não quer trabalhar, só quer meter a mão no meu dinheiro” , ele berrava. E depois me empreguei num estaleiro que faliu enquanto eu estava ainda no período de experiência. Sei fazer muita coisa. Sou qua­lificado como soldador, sei soldar até pó de zinco. E tam­bém sei trabalhar com projetos... Por favor, me dê uma

194 ‘

chance, um trabalho qualificado. Não posso sustentar a família e pagar aluguel ganhando 6 marcos por hora.

Adler mostra-se claramente aborrecido. Por que o in­comodam em seu momento de lazer, quando está já na décima quinta cerveja? Por que o perturbam com essas bobagens? Num tom repreensivo, livra-se de Walter:

— Comece por chegar no horário no trabalho. Aliás, por que você faltou hoje?

— Mas ainda há pouco eu disse que precisei levar mi­nha mulher para o hospital — explica o rapaz, muito agi­tado. — Ela teve que ser operada com urgência.

— Comece por chegar no horário ao trabalho e de­pois falaremos sobre o assunto — diz Adler, dando a en­tender que não acredita na explicação.

— Pode confiar em mim. Todos os dias levanto às três da madrugada e vou para o serviço de bicicleta, que é para não correr o risco de me atrasar. Sempre chego na hora. Pedalo uns trinta ou quarenta quilômetros por dia. Pode confiar em mim! — E continua implorando, como um disco quebrado: — Por favor, me dê uma chance!

Cada vez mais irritado, Adler despacha-o dizendo:— Quem trabalha e chega sempre na hora recebe seu

dinheiro. Portanto, é só andar direito! — E vira-lhe as cos­tas, voltando-se para Wormland.

Mais tarde, no banheiro, Walter me diz:— Viu só? O seu chefe não me deixou na mão. Ele

não é nada daquilo que você me contou no primeiro dia.— E, vendo-me calado, pois não quero desiludi-lo, pros­segue: — Você reparou como ele ficou me olhando quan­do ele percebeu que o meu temo é igual ao dele?

Também resolvo não dizer nada sobre isso. É verda­de que ambos vestiam um temo azul de listras. Só que o de Adler foi confeccionado sob medida e deve ter custado uma fortuna, enquanto o de Walter foi comprado por uma ninharia numa lojinha qualquer. A fim de defender me­lhor sua última oportunidade, Walter chegou a usar ca­misa branca e gravata, como se fosse fazer um pedido de casamento. Até que na décima oitava cerveja finalmente

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percebe que Adler não quer mais conversa com ele. Cam­baleando, deixa o bar e monta em sua bicicleta, pronto para pedalar os quinze quilômetros que o separam de sua casa.

Nesse meio tempo, Adler chegou à vigésima cerveja e começa a discutir com Wormland. Pouco antes ainda proferia frases enérgicas, imaginando estratégias empresariais: “Ago­ra é preciso manter tudo nos eixos!’ ’ “Cuido do meu quadro de pessoal como de um tesouro!” “Considerem como pode­mos diminuir os custos!” Agora, porém, ataca Wormland violentamente só porque o outro se atreveu a contrariá-lo:

— Você não pode tratar o pessoal desse jeito. Se o H. processar você, até será com razão. Eu mesmo teria feito isso há muito tempo se não fosse seu parente. — E grita,, irritado: — Você é um traidor! Fica do lado desses miseráveis, desses vagabundos, desses bandidos! Você per­tence mesmo a essa gentalha!

Wormland mantém-se calmo. No serviço, nunca fui muito com a cara dele, mas aqui demonstra ter alguma personalidade. Faz Adler perceber o desprezo que sente por ele e mantém sua opinião. Indiferente, várias vezes tra­ta o chefe de senhor, para manter distância, e responde:

— Não estou do lado deles, mas quando alguém es­tá no seu direito...

Adler não suporta que se atrevam a contrariá-lo.— Para mim você morreu. Está despedido. A partir

de amanhã, pode ir para Hannover trabalhar na montagem!— Não vou fazer nada disso. Continuarei trabalhan­

do na Thyssen. O senhor não pode se livrar de mim!Wormland dá a entender que sabe de algumas ilega­

lidades e sujeiras cometidas por Adler... De fato, embora Adler, vermelho de raiva, continue repetindo que o futu­ro cunhado está demitido ou será transferido para Ruhrkohle1, em Hannover, Wormland mostra-se bastante tranqüilo — e continuará ocupando seu cargo de encarre­gado na Thyssen.

1 Adler tem um contrato firmado com a Ruhrkohle Wárme de Essen e presta serviços no quartel Freiherr-von-Fritsch em Hannover (N. do A.).

196 ‘

Quase chegando à vigésima quinta cerveja, Adler en­tra em sua fase “sentimental” . Olhando para mim com olhos vítreos e um pouco à maneira de Puntilla1, diz:

— Esse aí, sim, está do meu lado. Seria capaz de me proteger com sua própria vida. — E acrescenta com um gesto grandioso, patético: — Um dia vou tirá-lo da misé­ria, daquele buraco imundo da Dieselstrasse. Vou lhe dar roupas novas, que combinem de verdade com o meu Mer­cedes. — Comovido com a própria generosidade, põe-se a meditar: — Se ao menos eu soubesse o quanto Ali vale no plano intelectual... — Lança-me um olhar encoraja- dor*. Comporto-me como se não estivesse compreenden­do a conversa. — Você sabe o que quero dizer? Sabe o que significa “ intelectual” ?

— Eu sabe — respondo. — É quando gente entende tudo.

— Isso mesmo! Até que você tem algum nível. Sabe o que quer dizer “ nível” ?

— Eu sabe. É quando gente faz parte pessoal de bem. Mas isso depende onde gente está metido. Maior parte de pessoa pode fazer mais quando gente deixa elas fazer.

Wormland intromete-se na conversa:— Você não percebe que ele não está entendendo na­

da? O cara fala mal e devagar.Adler tenta tirar proveito de nossa rivalidade:— São só os efeitos secundários dos remédios que ele

andou testando. Ali não é tão estúpido assim e entende bem mais do que você imagina!

— Eu não consegue dizer sempre tudo que eu pensa— declaro, reforçando a opinião de Adler. — Mas mui­tas vezes eu entende mais do que eu diz.

— Sim?... — Por um instante Adler lança-me um olhar inquisitivo e penetrante, como se buscasse em mi­nhas palavras um significado mais profundo. No entan­to, parece acalmar-se à medida que vou falando.

1 Personagem da peça O sr. PuntiUa e seu criado Matti, do dramaturgo ale­mão Bertolt Brecht (N. do E.).

197*

— Eu não sabe se entende tudo certinho. Eu não pode saber tudo... Mas é só fazer pergunta para ver o que eu sabe.

Depois de pensar por alguns momentos, Adler deci­de submeter-me a um teste de inteligência criado por ele mesmo. Sua primeira pergunta:

— Quem é o colosso de Rodes?Para testar o autor do teste, deliberadamente dou uma

resposta errada, como se tivesse confundido o deus do Sol, uma das sete maravilhas do mundo, com Atlas, o gigante que sustenta o céu:

— Ele precisa carregar o mundo em costas. Mundo pesa muito, e ele fica assim, meio torto, quase não conse­gue segurar peso todo.

— Correto! Excelente! — Adler felicita-me, dando- me a impressão de que desconhece a resposta certa. E dis­para a segunda pergunta: — Como se chama o nosso chanceler?

Respondo corretamente. E também digo corretamente o nome do chanceler anterior quando ele me pergunta. E sei ainda o nome do secretário-geral do Partido Comunista soviético. Para seu espanto, sei o nome do presidente da França. Adler fica admirado. Para ele, seus escravos não passam de selvagens, de homens pré-históricos, de ralé. Adler sente-se superior a todos não só no plano espiritual como também no plano cultural.

Um funcionário de uma financeira, sentado um pou­co distante de nós, junto ao balcão, começa a implicar com o interrogatório:

— Mas, afinal, para que serve tanta pergunta idiota?Adler reage com irritação:— É uma conversa de negócios, e não admito suas

alusões! — E prossegue com o teste: — Quem é o gover­nador da Renânia do Norte-Vestfália?

Respondo corretamente. Mas em seguida ele quer sa­ber quem é o ministro do Meio Ambiente. Fico embara­çado. Conheço Klaus Matthiesen porque participei com ele de alguns congressos em Schleswig-Holstein e considero-

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o um dos políticos mais progressistas do PSD. Uma per­gunta dessas pode ser uma armadilha, e temo que Adler desconfie de mim se mostrar que sei o nome de uma pes­soa tão declaradamente de esquerda.

— Esse eu não sabe — respondo por precaução.— Não faz mal — diz Adler. — Não é mesmo preci­

so conhecê-lo. É só alguém que quer reformar o mundo e provoca muitos transtornos. O anterior, Báumer, é um grande amigo meu, de longa data. Tem faro certo e tino empresarial. Esteve lá em casa no meu aniversário. Nele a gente pode confiar!

(Bom saber quem são os “padrinhos" políticos de Adler que estão nos bastidores. Como presidente do PSD de Niederrhein durante muitos anos, Bàumer tomou-se co­nhecido por suas intrigas contra os social-democratas pro­gressistas. A ele, por exemplo, deve-se a exclusão de Karl- Heinz Hansen1 do partido, com a conivência do ex-chan- celer Helmut Schmidt.)

Não se deve imaginar, sob nenhuma hipótese, que Adler seja uma flor do lodo, muito rara e colorida, den­tro de nossa paisagem social. Ao contrário. Ele está per­feitamente integrado, é reconhecido e considerado. Os que o conhecem bem sabem como ele ganha seu dinheiro. No entanto, generosamente não fazem caso dessas “repugnân- cias" flagrantes. A partir de uma certa ordem de grande­za, nesses círculos prevalece a seguinte máxima: “Dinhei­ro não foi feito para dele se falar, foi feito para se ter!" Como o consegue, à custa de quem e a preço de que cri­mes — isso eu tenho quase certeza de que Bãumer jamais discutiu com seu amigo Adler.

São coisas que a gente sabe e guarda para si mesmo; de resto, é tratar do lado agradável da vida, freqüentan­do clubes, viajando de iate. Talvez, algum dia, umas fé­rias no Havaí, um dos locais prediletos de Adler. Aqui na panelinha do Ruhr, ser membro do PSD favorece os ne­

1 Representante da ala esquerda do PSD nos anos 70 (N. do T.)-

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gócios e facilita a carreira. Estou certo de que, se vivesse na Baviera, Adler seria membro da USC.

Uma vez, ouvi-o gabar-se de ter gasto 200 mil mar­cos em gratificações só nos últimos cinco anos para obter certos contratos. Na maioria das vezes, porém, subornos diretos são desnecessários. Basta fazer parte do mesmo “es­tábulo” para trocar sinecuras e trabalhos. Não é sem mo­tivo que Adler é sócio do finíssimo clube de golfe de Düs- seldorf. Quem o apresentou? Seu velho amigo Alfred Gãrt- ner, vice-govemador da Renânia do Norte-Vestfália.

— Se você fizer por merecer — diz-me Adler —, eu lhe darei um cargo de chefia. — E, como o fito sem en­tender, explica: — Basta fazer tudo o que eu lhe disser. E outras coisinhas também! — E, como ainda não enten­do, resolve falar claro: — Você tem que ficar de olho nos seus colegas turcos. Você se dá bem com eles. Então é só vigiá-los e me contar o que se passa. Por exemplo... se um deles anda fazendo intrigas contra mim... ou se alguém resolve abrir o bico. Ponho o cara na rua imediatamente. Antes que a laranja podre estrague as outras. Os jovens são bonzinhos por natureza, mas não podemos tirar os olhos de cima deles, senão provocam agitações antes mes­mo que a gente consiga fazer alguma coisa. Só me per­gunto se você está à altura desse serviço.

Vou mesmo é morrer de fome. Não desejo ir tão lon­ge com este papel. Aos poucos aproxima-se o instante em que devo pular fora. Encontro-me numa situação muito delicada perante meus colegas e amigos. Não posso mais titubear. Sinto-me como um mestiço da África do Sul que sempre ficou do lado dos negros, talvez até lutando junto com eles, e, agora, de um momento para o outro, é atraí­do pelos brancos exatamente porque tem a confiança dos negros. Espião e dedo-duro: esse é o papel que Adler me reservou. Além de minha tarefa de gorila adestrado e guarda-costas!

— Se for necessário, você tomará medidas drásticas. Portanto, continue com os seus treinos de caratê — pros­segue Adler, tentando me estimular. — Se tudo correr bem,

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monto uma casinha para você perto da minha e mais tar­de lhe dou um carro. Basta ficar sempre perto de mim e estar pronto para entrar em ação a qualquer momento. Sabe, a Dieselstrasse não é um bom lugar para você. Lá você pode se estragar. — E, percebendo minha repulsa, vai mais fundo: — Não há necessidade de você abando­nar seus conterrâneos já. No momento, tenho menos rai­va deles do que de uns alemães que vivem fazendo caga­das. Dois deles tiveram o desplante de me chamar na Jus­tiça para tentar me arrancar dinheiro. Um dia, mando você cuidar deles. Entende o que quero dizer? Esses porcos de merda tiveram coragem de me caluniar no tribunal. Você vai lá e cuida deles, até que retirem a denúncia contra mim.— Dá o nome e o endereço dos dois operários alemães que há algum tempo não trabalham mais conosco.

— Mas em academia caratê eu prometeu usar espor­te só legítima defesa — tento explicar.

— Certo, certo. E precisamente é esse o caso. Eu me encontro em situação de absoluta legítima defesa. Eles me ameaçam, e você me protege. — Como persisto em meu ceticismo, acaba cedendo: — Tudò bem! Então fique fora disso por enquanto. Afinal, vivemos num estado de direi­to. E eu tenho ótimos advogados. Vamos aguardar o pro­nunciamento da Justiça. Mas, se não reconhecerem os meus direitos, não restará outra alternativa. Você irá procurá- los e cuidará deles. Estou cheio dessas disposições legais!

Jürgen K. (26 anos) é um dos dois alemães de quem eu devo c‘cuidar* * caso Adler não consiga fazer valer o que chama de “ seus direitos**. Resolvo ir preveni-lo e verifico que ele não está em melhores condições que seus colegas imigrantes. Ficou mais de um ano desempregado. Preci­sou deixar o serviço por causa de dores na coluna. Foi pro­curar qualquer trabalho nas grandes indústrias da região, inclusive na Thyssen, mas não encontrou nada. Então, através de um anúncio no jornal, descobriu a firma Adler, onde se apresentou.

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“No primeiro contato, Adler não me causou má im­pressão. Não fez muitas perguntas e me prometeu mun­dos e fundos. Só quis saber se eu era do sindicato. ‘Não é? Ótimo', disse. ‘Perfeito! Vamos ver como você se sai no trabalho. Tenho certeza de que chegaremos a um acor­do. Afinal, quem trabalha bem merece ser bem pago, não é mesmo?'

“Ele me perguntou se eu fazia idéia do salário. ‘O bru­to é de 13,50 marcos por hora', foi a minha resposta. En­tão ele disse que era muito para a firma Adler, era o salá­rio de um operário especializado, e, como eu vinha de ou­tro ramo, não podia me pagar tanto. ‘Está bem para você9 marcos líquidos?' Fiz as contas rapidinho: 9 marcos lí­quidos correspondem aproximadamente a 13,50 brutos. Disse que concordava. ‘Muito bem, então você pode co­meçar a partir do dia 24 de janeiro.' Fiz questão de que tudo estivesse absolutamente dentro da lei, por causa da previdência social e todas essas coisas. Mas ele me disse: ‘Não vale a pena registrá-lo antes do dia 1.° de fevereiro; é um período pequeno'. Assim, trabalhei ilegalmente sete dias em janeiro, sem ter sido registrado."

Jürgen só descobriu que continuava trabalhando sem registro um mês depois, ao requerer o documento da pre­vidência social a fim de marcar uma consulta para sua fi­lha, que estava doente. Adler deveria tê-lo registrado na­quele mesmo dia, 25 de fevereiro. Existe um artigo na le­gislação trabalhista que autoriza os empregadores a regis­trarem seus funcionários até um mês depois da contrata­ção. Abutres do gênero de Adler tiram proveito disso, “ re­gistrando retroativamente" seus empregados em caso de necessidade — acidentes ou doenças. E, mesmo assim, ain­da o fazem como se o trabalhador em questão tivesse aca­bado de ser contratado.

“Só me dei conta da águia que é esse tal Adler1 al­gum tempo depois", continua Jürgen. “Não sou nenhum vagabundo. Trabalhei como um burro de carga. E, no fim

1 Em alemão Adler significa “águia” (N. do T.).

de tudo, o que foi que eu ganhei? 5,91 marcos por hora. Nada de extras, nada de adicional noturno, nada de com­pensação pelos feriados em que trabalhei. Um verdadeiro pouco caso! E, para completar, as contas nem estavam corretas...

“ ‘O salário é depositado normalmente todo dia 15’, disse Adler. ‘Você precisa abrir uma conta no banco, por­que não faço pagamento em dinheiro vivo.' Fui ao banco e abri a conta. No dia 15, nada do dinheiro; no dia 16, nada. Telefonei para Adler: ‘Onde é que está o meu pa­gamento?' Resposta: ‘Já foi depositado. Deve cair na sua conta hoje ou, o mais tardar, amanhã!' No dia seguinte, voltei ao banco: nada. A coisa já estava indo longe de­mais. Eu não tinha dinheiro nem para a gasolina. A mi­nha noiva me levava de carro todos os dias para o traba­lho, e nunca lhe dei um centavo para a gasolina... Em to­do caso, já não havia mesmo jeito de ir trabalhar. A mi­nha noiva telefonou para Adler, lá pelo dia 20, e falou: ‘Não tem nenhum dinheiro depositado na conta’. O cíni­co debochou dela: ‘É claro que não tem nenhum dinheiro no banco'. ‘Como assim, por quê?', ela perguntou. ‘Por­que o dinheiro está com um colega do seu namorado!’ ‘Com um colega? Como?’ ‘Dei o dinheiro, mas ele não pode entregá-lo hoje porque está fazendo hora extra!'

“Lá fui eu procurar Walter, que estava com o meu envelope de pagamento. Walter, o futuro cunhado de Adler, passeava tranqüilamente com o meu dinheiro! Depois de vasculhar a fábrica inteira, finalmente o encontrei, de roupa trocada, prontinho para ir embora. Não era verdade, por­tanto, que devia fazer hora extra; eram exatamente duas horas da tarde, horário do término do seu turno.

“ ‘Você está com meu envelope de pagamento?', per­guntei. ‘Estou’, respondeu e me entregou um recibo. ‘As­sine!’ Mas eu falei que não; primeiro queria conferir o di­nheiro. Dentro do envelope havia 610 marcos, referentes ao mês de fevereiro. Pagaram-me 79 horas somente, 9 mar­cos brutos por hora. E eu tinha trabalhado 126 horas! Es­tavam faltando mais de 40.

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“Então explodi: ‘Assim não dá!’ Ele me prometeu que no mês seguinte não só receberia a diferença como o salá­rio seria maior.

“No mês seguinte, a mesma coisa. Fazem com a gen­te o que bem entendem. Fui até chantageado: ou dobrava o turno, ou não precisava mais voltar. Pior ainda era quan­do eu chegava na fábrica e o encarregado me dizia: ‘O chefe não telefonou para você? Não precisava vir hoje, não tem serviço!’ E toca voltar para casa.

“Um dia, cheguei em casa às onze da noite, depois de um turno dobrado, e encontrei uma passagem de trem enviada por Adler. Devia ir imediatamente para Hambur­go. O trem partia à uma e meia e não tinha um leito livre. Cheguei em Hamburgo lá pelas sete da manhã. Trabalhei oito horas seguidas na BAT (uma fábrica de cigarros) e voltei para Duisburg. Fazia 26 horas que eu não parava nem dormia.”

Jürgen mostra-me as fichas correspondentes às ho­ras trabalhadas, assinadas pelos encarregados de equipe e pelo supervisor. Em março, turnos constantes de dezes­seis horas, dezessete e meia, catorze, vinte è meia — e “um atrás do outro” .

De vez em quando generosamente concedem algumas horas de descanso entre os diferentes turnos. Por exem­plo, no dia 12 de março: o pessoal trabalha das 6 às 22 horas, sem interrupção (16 horas); volta para casa e dor­me uma hora e meia; começa novo turno à 0h30 e traba­lha direto até as 21 da noite seguinte (vinte horas e meia sem parar).

Dois dias depois, outro turno dobrado, das 16 às 14 do dia seguinte (22 horas sem parar). No dia 18 de março, inicia 0 turno às 6 e trabalha até as 14 (oito horas nor­mais); chega em casa às 15h30, dorme até as 20 (quatro horas e meia), engole às pressas alguma coisa e parte para um novo turno das 21h30 às 7 da manhã (nove horas e meia); dorme das 8h30 às 14 (cinco horas e meia) e sai pa­ra 22 horas de trabalho direto, das 16 às 14 do dia seguinte.

“A gente sempre disfarçava a raiva” , conta Jürgen,

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“mas eu pensava que pelo menos tinha um emprego, era melhor que nada. E quando o encarregado precisava de alguém, perguntava se a gente queria dobrar. No come­ço, eu disse claramente que se precisassem de alguém pa­ra trabalhar nos sábados e domingos podiam contar co­migo, porque eu ganhava muito pouco e precisava fazer horas extras, senão o dinheiro não dava para as despesas. Com os outros trabalhadores, os turcos — quase só havia turcos na Adler —, era bem pior. O encarregado simples­mente dizia: ‘Ei, você ai! Pode ficar parâ fazer um turno dobrado. Se não quiser, não precisa voltar amanhã. Ama­nhã?! Pode se mandar hoje mesmo!' ”

Jürgen viu o chefe pouquíssimas vezes. “Ele quase não aparece na nossa frente e vive nos enganando, man­dando dizer que não está. Eu o vi pela primeira vez no dia em que fui contratado; depois tomei a vê-lo num can­teiro de obras; e a última vez na audiência do tribunal. Só quando ele queria alguma coisa é que telefonava para a gente, intimando: ‘Você tem que vir trabalhar hoje à noi­te! É um turno extraordinário!’ Ele nunca dizia: ‘Será que você pode?*, mas: ‘Você tem que!...’ Quem se recusava já sabia: ia parar no olho da ma! É um trabalho para con­denados, para gente que esfaqueou os pais ou os filhos.

“Um dia, estávamos agarrados no permutador tér­mico, limpando as espirais. Um calor e um pó infernais; e o pó é alcalino, bastante venenoso. Trabalhamos ali du­rante dias. Os operários da Thyssen perguntavam: ‘Mas como é? Nunca substituem vocês?*

“Lá dentro devia fazer uns trinta, quarenta graus. E quanto mais a gente se aproximava das espirais, mais au­mentava o calor. Tínhamos que limpar as espirais sem ne­nhuma ferramenta especial, só com as mãos e umas bar­ras de ferro. Elas estavam cobertas de escória da fundi­ção, que normalmente sai pela chaminé e se liqüefaz. Mas a coisa ali estava dura como pedra. Chegou a grudar até no forno do subsolo. Imagine só ficar naquele calor in­fernal durante dezesseis horas! Os outros dois que traba­lhavam comigo foram parar na enfermaria duas vezes se­

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guidas; eu fui uma única vez: meus olhos estavam com­pletamente inflamados por causa de tanto pó. Não tínha­mos máscaras de proteção; cobríamos a boca com um pa­no fino para não engolir a poeira. Ninguém nem falou em máscara de proteção para a cabeça toda... E também não havia sistema de ventilação. O pó ficava suspenso no ar. Claro que a gente não podia sair correndo de dois em dois minutos. O pior é que.o serviço devia estar pronto no co­meço da tarde, quando muito às duas horas, porque iam encher tudo de gás. Trabalhamos como uns condenados! No espaço de dois dias, 36 horas. E alternando: um dia lá embaixo, naquele calor sufocante, outro lá fora, em ple­no inverno, até com vinte graus abaixo de zero, arrancan­do a sujeira com a picareta. Esse trabalho me arruinou completamente as costas, sem falar nas mudanças de tem­peratura. Houve dias em que cheguei a rastejar, tanto a coluna me doía, mas eu precisava do dinheiro.

“Ainda em pleno inverno, arranjaram outro servici- nho para nós: limpar as esteiras rolantes por onde corre o coque, empoleirados num andaime coberto de lama. Eu mal conseguia me mexer, tamanho era o frio. Um colega turco escorregou, caiu e quebrou o braço. Seis semanas depois, estava de volta como se nada tivesse acontecido.

“Foi um erro largar a mina onde eu trabalhava. Ga­nhava mais dinheiro e com mais facilidade. Em compara­ção com a Adler, a mina é um paraíso. Trabalhar lá em­baixo, num cilindro de decantação, é moleza perto desse outro serviço. É claro que de vez em quando a gente pre­cisava dar duro se aparecia algum pepino. Mas na Thyssen só aparece pepino, e para a gente resolver com as próprias mãos. Como arrastar barras de ferro superpesadas, por­que sai mais em conta que usar guindastes.”

Graças à tática de “ ir empurrando” , típica de Adler, Jürgen acabou recebendo 861 marcos por nove semanas de trabalho escravo. Já não conseguia sustentar a família (dois filhos pequenos). Sua mãe precisou trabalhar como faxineira para não passarem fome de verdade. E ele co­meçou a fazer dívidas, uma atrás da outra.

*206 r

Já no mês de fevereiro, Jürgen começou a entender o jogo desumano de Adler e resolveu anunciar-lhe sua in­tenção de demitir-se. O outro, porém, acenou-lhe com no­vas promessas: “ 'Falo sério, se as coisas continuarem as­sim, eu me demito*. Então ele me disse: ‘Ora, venha cá! Você sabe, vou lhe pagar 12 marcos líquidos!’ Eu falei que isso não passava de palavras e que eu ia buscar o meu di­nheiro na segunda-feira. Ele concordou; disse que o di­nheiro estaria nas minhas mãos, e que pagaria a diferen­ça. Nunca vi a cor do dinheiro.”

No dia 20 de março, Jürgen resolveu desistir do emprego.

“Eu já tinha pedido demissão por telefone e, no dia seguinte, resolvi escrever uma carta, confirmando a mi­nha decisão e avisando que se não recebesse meu ordena­do daria parte dele na Justiça do Trabalho. Nenhuma rea­ção. Voltei a telefonar e fui atendido pela secretária ele­trônica. Repeti o texto da minha carta. Nenhuma reação. Alguns dias depois, liguei de novo. Adler perguntou quem estava falando, e respondi: 'Jürgen K .\ Então ele apenas me disse o seguinte: 'Converse com o meu advogado!’ Fui à Justiça do Trabalho. A primeira audiência foi terrível. Adler não compareceu, é esperto demais para isso. Eu me senti como se fosse o próprio acusado. A audiência du­rou dois minutos e meio. E lá estava eu, outra vez do lado de fora. Só me disseram isso: 'O senhor está processando a empresa errada!* ‘Como?*, perguntei. Não existia uma Sociedade Adler-Heisterkramp, mas só uma Sociedade Adler em Oberhausen. ‘Um momento’, falei, ‘não é pos­sível. Eu trouxe os envelopes de pagamento da empresa Adler-Heisterkramp.’ Mas de que iria adiantar? Quem não conhece muito bem as leis e não tem advogado está perdi­do. Um tipo como Adler só precisa abrir uma boa falên­cia para se safar de qualquer dificuldade. Resolvi contra­tar imediatamente um advogado, o que também custa al­gum dinheiro. Eu não conseguiria assistência jurídica por­que estava trabalhando. Arrisquei pagar uns bons mil mar­cos de honorários. Então finalmente fiz um acordo com

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Adler e só recebi algumas centenas de marcos. Um em­presário como ele, esperto e sem escrúpulos, sempre con­segue tirar vantagens de tudo, mesmo diante dos tribunais.

“Ele apareceu na segunda audiência e quis me arra­sar, dizendo que eu era um vigarista mentiroso. E que as fichas com as horas trabalhadas eram falsas. Elas tinham sido assinadas pelo encarregado em duas vias: uma para a Remmert e a outra para mim. Foi assim que pude pro­var que só até o dia 20 de março (em fevereiro eu não ti­nha sido tão esperto) eu trabalhei 129 horas, sendo 36 direto.

“Mas ele apresentou na audiência o meu cartão de contribuição1, onde estava anotado que eu tinha recebi­do 434 marcos. Não havia carimbo da empres'a. Ele con­seguiu dar sumiço no resto. Diante do tribunal, Adler se comportou como se fosse dono da Justiça. O próprio juiz chegou a repreendê-lo, por ofender os vogais. Adler fa­lou que só porque era patrão já o acharam culpado desde o começo e que ele não tinha meios de fazer valer seus di­reitos. E me chamou de vigarista... falsificador de docu­mentos.

“O advogado me aconselhou a fazer um acordo, pois do contrário o processo ia se arrastar por meses, talvez anos. E eu precisava do dinheiro. Assim, em vez dos 2 735 marcos que ele me devia, tomando como base o salário bruto de 9,50 marcos por hora (o outro preço foi combi­nado só de boca, sem nada escrito), acabei aceitando o pa­gamento de 1 750 marcos.

“Depois da audiência, tive que devolver a Adler o car­tão de contribuição. Isso já faz quase um mês e até agora não o recebi de volta. E também não vi um centavo do que ele me deve. Como o obrigaram a pagar os encargos sociais, ele fica protelando. Não há nem como processá-lo criminalmente. A Justiça do Trabalho o trata como um

1 Na República Federal da Alemanha, todo empregado possui um cartão de contribuição no qual são anotados sua faixa de imposto de renda descontado na fonte e o total de seu salário (N. do T.).

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homem honrado, apenas um pouco confuso. E a gente é que passa por ignorante!

“Hoje em dia, os patrões podem se permitir qualquer coisa. Do mesmo modo que os subempreiteiros. Há mui­ta gente desempregada, esse que é o problema. E são bem poucos os que resolvem botar a boca no trombone e se defender."

Jürgen não conseguiu arranjar outro emprego por­que Adler, num procedimento bem típico, não lhe devol­veu o cartão de contribuição.

“O mês de abril passou, maio chegou na metade e na­da de eu receber o meu cartão de contribuição. Fui con­versar com a firma Remmert sobre a minha contratação, e lá me disseram que tudo bem, eu podia começar a tra­balhar com eles, só que precisava apresentar a documen­tação. O problema é que os documentos não estão comi­go, estão com Adler. Consegui uma cópia do cartão de contribuição e voltei lá na Remmert. Disseram que, como eu já tinha trabalhado com eles, devia apresentar o car­tão original... Sem dúvida foi só um pretexto, já que Rem­mert e Adler são carne e unha.

“Acho que Adler se saiu dessa fácil demais. Com cer­teza outros otários vão cair na armadilha, pois sempre vejo no jornal: ‘Firma Adler precisa de...' Fico me perguntan­do como consegue contratar alguém... não entendo! Ele mesmo declarou publicamente na audiência: ‘Não contrato ninguém com salário bruto superior a 9 marcos por hora’."

Resta um pequeno consolo para Jürgen: “Existem imi­grantes que estão em condições piores ainda. Por exem­plo, os paquistaneses que trabalhavam lá por um salário bruto de 6 marcos. E nem sequer tinham visto de perma­nência".

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Eis os depoimentos de alguns colegas turcos que com­provam as práticás habituais de Adler e o perigo a que estão sujeitos no trabalho.

Hüseyin Atsis (56 anos), que já fez os piores serviços na Turquia, diz o seguinte: “Deve ser bem melhor trabalhar na Sibéria do que aqui". Ele nunca vira “locais de trabalho mais perigosos” .

“Por exemplo, no alto-forno recém-construído obriga­vam a gente a arrastar os tubos de lá do sétimo andar. Eu me lembro que havia necessidade de dois homens para arras­tar um único tubo. E tínhamos que prestar uma atenção da­nada durante o trajeto, porque sabíamos que estávamos cor­rendo risco de vida.

“ Também nos fizeram subir num guindaste de uns se­tenta metros de altura para varrer todo o pó que havia lá em cima. Depois tínhamos que arrastar para baixo os sacos cheios de pó, que pesavam bem uns cinqüenta quilos. Era um tra­balho perigoso e prejudicial à saúde. Fui perguntar ao encar­regado por que é que eu devia fazer aquele serviço. A respos­ta dele: (Você pelo menos tem seguro e seus documentos es­tão em ordem. Diferente dos outros. Se acontecer um acidente poderemos fazer alguma coisa por você’. Foi então que eu soube que Adler tem poucos empregados registrados legal­mente, com a documentação em ordem.”

Hüseyin Atsis também precisava correr atrás de seu pa­gamento. Quando finalmente conseguia receber, depois de muita insistência, verificava que o salário estava muito aquém do que esperava tomando como base o valor combinado do pagamento por hora e as constantes horas extras que fazia. Em lugar dos 10 marcos combinados recebeu apenas 9 mar­cos por hora, sem falar nos descontos misteriosos. Por 184 horas de trabalho recebeu somente 724,28 marcos. “Assim que peguei o dinheiro, disse para mim mesmo: ‘Não dá para se meter com essa gente. E, se bobear, ainda me expulsam do país’. Resolvi pegar meus documentos e me dar por satis­feito com o dinheiro. Mas aí Adler falou: ‘Não vou lhe en­tregar os documentos. Primeiro você tem que assinar um pa­pel dizendo que recebeu tudo o que lhe devíamos. Só depois eu devolvo seus documentos’.”

Sait Tümen (25 anos) e Osman Tokar (22) passaram pe­la mesma experiência.

Sait Tümen: “Eu estava trabalhando com Adler fazia três meses e nunca me pagavam a soma exata que eu deveria receber. Eram 100 marcos a menos aqui, 200 ali... E olhe que eu trabalhava quase todos os dias! Comecei a pedir dinheiro emprestado para poder viver e prometia aos amigos que pa­garia tão logo recebesse o meu salário. Adler vivia dizendo que eu ficasse sossegado, pois ia me pagar no dia seguinte. Como não pude pagar as dívidas, os amigos acharam que eu estava mentindo e nunca mais falaram comigo. Por causa dis­so perdi os amigos. Tentei arranjar emprego em outrò lugar. Mas precisava levar os documentos, ou nada de serviço. Pro­curei Adler e disse que eu tinha conseguido outro emprego, mas precisava dos documentos e do dinheiro que ainda tinha para receber. Ele falou: ‘Só lhe entrego os documentos se você assinar um papel dizendo que não tem mais nada para rece­ber aqui’. Daí eu pensei: ‘Se eu não levar os documentos ama­nhã, perco o emprego. Que fazer? E o novo chefe é muito amigo de Adler! * Então assinei o papel, que já estava até da­tilografado. O Adler tinha um montão deles. No papel, bem no alto, estava escrito: ‘Declaração'. Dizia que a firma Adler — Montagem Industrial não me devia nada e que eu, como empregado temporário, já havia recebido tudo a que tinha direito” .

E Osman Tokar: “Toda semana Adler descontava algu­mas horas do nosso salário. Então fomos falar com ele e ou­vimos a seguinte resposta: ‘A diferença será paga no próxi­mo ordenado'. Mas isso nunca acontecia. E ele vivia repetin­do: ‘Na próxima vez, na próxima vez!’ Era assim que conse­guia se livrar da gente. Então eu decidi tirar a coisa a limpo. Ele me disse: ‘Se você não quiser receber 9 marcos por hora, menos 40% de descontos, só preciso botar um anúncio no jornal para aparecerem mil pessoas no portão. Vocês deviam ficar felizes por ter um emprego, afinal são estrangeiros’. Foi isso o que ele falou” .

Osman também descreve as condições de trabalho e os efeitos nocivos sobre sua saúde:

“Obrigaram a gente a trabalhar num lugar onde não se enxergava quase nada por causa da poeira. E nem se podia respirar direito, era terrível. Depois de alguns dias, comecei a sentir umas dores medonhas, como se estivessem me furando o coração e os pulmões. Foi então que um colega da Thyssen me contou que o pó de ferro é muito perigoso e pode provo­

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car a morte. E que eu devia arranjar com urgência uma más­cara de proteção. Fui falar com o chefe da Thyssen. Ele me disse que não era tão grave e que eu fosse trabalhar em vez de dizer asneiras. Viviam nos chantageando: se não acabás­semos o serviço em vinte horas, eles nos obrigariam a conti­nuar trabalhando lá dentro. E realmente não pudemos sair.

“Depois do serviço fui procurar um médico, porque eu estava com uma tosse horrível. O médico me examinou e foi logo perguntando onde eu trabalhava. Respondi que numa em­preiteira da Thyssen. Então ele quis saber se no local havia gás, pó de ferro ou coisas do gênero, que são nocivas aos pul­mões. Falei que havia pó de ferro. Daí ele me disse que eu não era o único da Thyssen que o procurava por causa desse pro­blema. E que se eu quisesse ficar bom de verdade tinha que procurar outro emprego. E me receitou os remédios".

212

A radiação

Ainda me falta uma ocupação: na usina nuclear de Würgassen, a mais antiga da Alemanha Ocidental, inau­gurada em 1971 e constantemente necessitando de repa­ros. Para os serviços de revisão, realizados todos os anos, dão preferência a pessoas de confiança. Os imigrantes, principalmente os turcos, são os mais procurados. Talvez por serem verdadeiros nômades.

Na República Federal da Alemanha não há parece- res científicos precisos sobre os efeitos a longo prazo das constantes e ínfimas doses de radiação. As estatísticas não levam em conta a maior parte dos imigrantes enviados às centrais nucleares, onde se encarregam dos serviços de lim­peza e reparação nas áreas particularmente “quentes", isto é, expostas à radiação. Desconhece-se, portanto, o núme­ro de imigrantes que, depois de alguns anos ou décadas, contraem câncer dos testículos, da próstata ou da glându­la tireóide. Além do mais, eles moram em outras cidades ou retomam a seus países de origem, e ninguém lhes per­guntará se, alguma vez, há muito tempo, foram contrata­dos por poucos dias, semanas ou meses para fazer um tra­balho limpo e relativamente fácil numa usina nuclear ale­mã. Para o trabalho corriqueiro os responsáveis por essas usinas preferem equipes pequenas, constituídas por seus próprios operários estáveis; mas quando se trata de uma tarefa relativamente perigosa recorrem às subempreiteiras, que, por um curto período, fornecem-lhes um grupo de trabalhadores constantemente renovado. Em poucos dias ou horas, às vezes até mesmo segundos, eles recebem a dose máxima de radiação permitida por ano: 5 000 milirem1. Entrevistei alguns trabalhadores turcos que foram contra­tados por 10 marcos a hora.

1 Milirem é uma unidade de medida de radiação utilizada em medicina nuclear(N. do E.).

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Toda vez que um dos tubos condutores de vapor co­meça a vazar e precisa ser vedado, o responsável pelo rea­tor prefere chamar trabalhadores turcos. Segundo seus de­poimentos, por um “salário semanal de 400 marcos” , os turcos trabalham até receber a dose anual de 5 000 mili- rem, o que pode demorar de meio a dois minutos, con­forme a intensidade da radiação. Se o tubo continuar mal vedado, outros turcos são enviados para a área de radia­ção. No jargão nuclear, essa prática recebe o nome de “queimar” . Em princípio, eles ficam “impedidos” de tra­balhar pelo resto do ano. “Mas existem meios de conti­nuar fazendo esse serviço em outros locais” , explica-me um dos trabalhadores, que, no entanto, não quis descre­ver tais meios. “ Se a gente não der um jeito não arranja mais emprego em lugar nenhum.”

Para entender melhor esse trabalho perigoso e mui­tas vezes fatal e poder dar um testemunho fiel do que acon­tece lá dentro, decido procurar uma colocação na central de Würgassen. O problema é que fazem uma investigação prévia a título de segurança. Dou o nome e o endereço de meu duplo, além de relacionar os diferentes domicílios que ele ocupou nos últimos dez anos, para que o Serviço Es­tadual de Defesa da Constituição possa checar todos os dados e vasculhar “minha” vida. Os computadores usam suas “memórias de elefante” : participação em passeatas? atividades suspeitas? Entram também em contato com a polícia federal.

Normalmente essa investigação costuma demorar seis semanas; em casos mais complicados, pode estender-se por até três meses. Comigo — isto é, com meu duplo —, os investigadores parecem muito minuciosos, porque levam dois meses sem me dar resposta positiva ou negativa. Tal­vez por estarem em período de férias? De qualquer mo­do, essa demora vem mesmo a calhar. Excepcionalmente resolvo proceder de forma diferente da que previra. (Um amigo médico, radiologista e especialista em problemas de radiação, a quem eu havia confiado meu intuito de traba­lhar na central nuclear como turco, preveniu-me seriamente

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sobre o que poderia acontecer. Meu estado de saúde já es­tava bastante deteriorado graças à bronquite crônica pro­vocada por todo aquele pó na Thyssen e às seqüelas dos testes farmacêuticos. E ainda por cima eu queria me ex­por a radiações? Isso poderia causar lesões permanentes.

É bem verdade que não estou vivendo uma fase mui­to brilhante — ao contrário, sinto-me no fim, pois cada vez mais me identifico com meu papel e me desanimo por ver a situação praticamente desesperadora de meus ami­gos e colegas de trabalho. Ainda assim tenho medo de que um câncer provocado pela radiação me corroa e eu preci­se lutar contra a morte talvez durante anos.

“Pode ser o tiro de misericórdia!” , advertiu-me o ami­go radiologista. Pois bem, admitindo que sou um covar­de e um privilegiado, afasto-me dali. Existem, porém, cen­tenas e milhares de imigrantes que, mesmo estando em con­dições físicas piores que as minhas, aceitam esse tipo de trabalho e colocam em risco sua saúde e, por vezes, até a própria vida. Como se trata de um trabalho que não re­quer grandes esforços, pessoas doentes, mais velhas ou completamente extenuadas julgam-se aptas a realizá-lo. Acrescente-se que a maior parte dos imigrantes ignora to­dos os perigos decorrentes de tal serviço. Eu mesmo, quan­do me candidatei a uma vaga na central de Würgassen, cheguei a fazer a seguinte pergunta:

— Não há perigo nesse trabalho?O chefe do pessoal me tranqüilizou:— Tanto quanto em outras indústrias.Eis alguns depoimentos que mostram como é realmen­

te o trabalho em Würgassen. Frank M., encarregado, con­ta: “Por um lado é um trabalho que dá dinheiro fácil e rápido. Como encarregado recebi no último pagamento 2 SOO marcos líquidos. Por outro lado, eu não trabalha­ria nisso mais que cinco anos. Preferiria ficar parado e re­correr ao seguro-desemprego. Há muita radioatividade, e as instalações são muito velhas. Além do mais, como o reator é de água fervente, as radiações são muito mais for­tes que as de um reator de água pressurizada. Tenho cer­

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teza de que tudo está contaminado, até o café que toma­mos. É só entrar na usina, e o dosímetro já se põe a mar­car 10 milirem, antes mesmo de a gente começar a tra­balhar” .

Dosímetro é um aparelho de medição que todos de­vem portar dentro das “áreas quentes” , indica a quanti­dade de radiação existente no local ao longo do dia. Mas os operários o manipulam com medo de não poder preen­cher sua cota de horas. Sobre isso diz um ex-operário de Würgassen: “É uma questão de autocontrole. A gente sim­plesmente põe o dosímetro de lado; no armário, por exem­plo. Ninguém percebe. Durante todo o tempo que traba­lhei em Würgassen nunca me perguntaram pelo dosíme­tro. Se você não está com ele, não há nada para registrar.... Através da subempreiteira Reinhold & Mahler eu soube que mandaram para lá uma porção de trabalhadores iu­goslavos — uns dezesseis caras, mais ou menos —, todos em situação ilegal, sem nenhum tipo de documento. Eles não dão muita importância às normas de segurança. Quan­do o trabalho acabou, foram obrigados a partir: discreta­mente voltaram para o seu país... Outro exemplo: na usi­na nuclear de Grohnde só 20% dos soldadores são alemães. O resto é imigrante” .

E Frank M. prossegue: “Na subempreiteira onde tra­balho há cerca de 2 500 empregados; no mínimo, 1 500 são imigrantes. A empresa contrata os estrangeiros para os serviços de revisão da usina nuclear; quando terminam a tarefa, são mandados embora. A maior parte só fica al­gumas semanas. É a turma que vai ser ‘queimada’. En­tram, recebem a dose máxima de radiação e partem. Na minha empresa, os mestres-de-obras e os encarregados ge­ralmente ficam mais tempo. Todos os outros estão só de passagem. Fazem um contrato de trabalho por prazo de­terminado, o tempo de um serviço de revisão. Em duas semanas já recebem um quarto da dose de radiação admi­tida num ano. Daí o serviço de segurança da usina diz que não podem mais continuar ali, e eles são demitidos.

“Também há muitos turcos que foram mandados pra

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cá. Vieram de avião para uma breve estada. Ficam soldan­do até receber a dose completa. Se a central precisa de sol­dadores para uma área onde a radiação é de 1 000 mili- rem por hora, digamos, eles trabalham duas horas; depois são substituídos e mandados pra casa. Os outros traba­lham mais duas horas, recebem os 2 000 milirem nas cos­tas e são mandados para casa. E assim vai, até que o ser­viço esteja pronto.

“A coisa costuma acontecer da seguinte maneira: quando os operários estrangeiros chegam, não têm a me­nor idéia do que seja uma usina nuclear e não entendem por que devem parar de trabalhar depois de dois dias ou, às vezes, duas horas apenas. Só lhes dizem: 'Bom, a par­tir de agora vocês estão dispensados!’ Então, eles têm que sair e voltar pra casa".

Depois Frank M. fala sobre o trabalho de limpeza das bacias do reator: “Quando a usina desliga tudo, cerca de 30% dos bastões combustíveis são substituídos e deposi­tados na bacia de sedimentação, onde ficam por mais de um ano, até a radiação não produzir mais efeito. Ao subs­tituir os bastões, a água que há dentro deles escorre. Isso obriga os operários a manterem sempre limpo o chão ao redor da bacia, para que a contaminação não se espalhe por toda a usina1. Assim, um operário trabalha direta­mente dentro da bacia e um outro o agarra, isto é, fica segurando-o com uma corda. Porque se o primeiro cair, deverá ser retirado em dez segundos, já que é impossível nadar naquela água” .

Dragan V., operário iugoslavo, declara: “Quando me contrataram ninguém falou nada sobre os riscos da radia­ção. Só me disseram que a minha dose trimestral era de 2 500 milirem e a anual de 5 000. Foi tudo. Agora, o quan­to era perigoso e mesmo se era perigoso, não me disseram nada” .

No dia 20 de agosto de 1982, catorze operários de uma empreiteira foram expostos a fortes radiações enquanto

i O que se chama “ radiação indireta” (N. do A.)-

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substituíam um chamado “ filtro de areia’* na instalação de escape de gás. Fortemente contaminados, precisaram ser levados às pressas para uma clínica de Düsseldorf es­pecializada no tratamento de contaminação nuclear. A di­reção da usina determinou silêncio absoluto sobre o aci­dente, mas um operário que o presenciou faz o seguinte depoimento: “ Sempre fico com medo quando tenho que trabalhar lá dentro. Principalmente depois do acidente. Em princípio, eles decidiram fechar temporariamente a usina. Mas o pessoal continuou trabalhando lá dentro ainda meia hora. E então, de repente, ocorreu o fechamento comple­to. Nossos polidores estavam a sete metros de profundi­dade. Os outros estavam sentados no vão da escada. A es­cada dava para uma abertura por onde desciam as ferra­mentas. O pessoal tinha colocado ali suas caixas de ferra­menta, e também havia alguns cabos que corriam para fo­ra. Assim, a porta estava obrigatoriamente aberta. Nin­guém percebeu nada até que chegou a ordem de fechamen­to completo. Na saída, todos quiseram passar pelas má­quinas, por aqueles aparelhos de controle1. E então des­cobriram que estavam completamente contaminados.

“Então aconteceu o seguinte: todos tiveram que tomar um banho atrás do outro. Mas de nada adiantou. Já está- vamos lá fora, e eles continuavam debaixo do chuveiro. Das onze e meia às três da tarde ficaram tomando banho e se esfregando como loucos. Das onze e meia às três da tarde. Nós havíamos entrado um pouco antes das três. Pudemos voltar ao trabalho. Só a sala das máquinas e o portão de entrada ficaram interditados. No dia seguinte, sábado, fo­mos trabalhar para compensar as horas paradas. E os ca­ras estavam lá, tomando banho até meio-dia. Das sete da manhã até meio-dia! Mas não adiantava, a coisa não di­minuía! Então, na segunda-feira, foram mandados para a clínica especializada em Düsseldorf. Mas lá só mediram a radioatividade. E quase todos ficaram proibidos de entrar na usina pelo resto do ano. Não puderam mais voltar” .

1 Aparelhos que medem o grau de radiação (N. do A.).

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Horst T., operário alemão, também sofreu um aci­dente: “Um dia, na câmara de condensação, meu maca­cão de proteção se rasgou. Continuei trabalhando e, na saída, ao passar pelo monitor, o quadro inteiro se ilumi­nou. ‘Não é possível*, pensei. Fui tomar um banho. E du­rante quase duas horas fiquei nisso: banho, monitor, ba­nho, monitor! No fim, já nem secava mais o cabelo. A coisa penetra nos poros, e, uma vez lá dentro, você pode se esfregar durante horas. Disseram que eu devia ter rece- bido uns 2 800 milirem. Mas como é que eu vou saber se não foi muito mais? Depois me mandaram embora, as­sim, sem mais nem menos! Alegaram contenção de des­pesas! E disseram que eu não estava preparado para aquele tipo de atividade! Então exigi minha caderneta de radia­ção, onde são registradas todas as exposições a que você foi submetido. Depois de muitas idas e vindas, por fim me entregaram a caderneta — totalmente em branco! O que significa que eu deveria mandá-la para a subempreiteira de Kassel. Foi o que fiz. E catorze dias mais tarde, me te­lefonaram perguntando se eu não queria voltar ao traba­lho. Mandaram-me uma nova caderneta de radiação. Ao assiná-la, percebi que também estava em branco. Como se eu nunca tivesse trabalhado numa usina nuclear...”

É muito raro haver um controle oficial das caderne­tas de radiação, como a lei prevê. Elas costumam ficar nos escritórios das subempreiteiras. Quando as autoridades aparecem para o controle, muitas já foram perdidas ou adulteradas. Os próprios chefes dessas empresas assumem a responsabilidade diante de seus empregados.

Sempre que tem oportunidade, a indústria atômica minimiza os perigos decorrentes das grandes ou pequenas exposições à radiação. Por exemplo, quem é contratado para trabalhar na “área quente” da central nuclear de Wür- gassen tem suas dúvidas “esclarecidas” através de um fil­me colorido, gravado em videocassete. “A radiação é com­parável à luz do sol” , anuncia uma voz enérgica, típica dos filmes de publicidade. E na tela cintilante aparece a imagem de uma jovem bronzeada, deitada sob um guarda-

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sol em alguma praia do Mediterrâneo. Os trabalhadores contam como os encarregados costumam tranqüilizá-los: “É a mesma intensidade de radiação que duas semanas de férias no mar do Norte” . O slogan da Würgassen, re­petido algumas vezes ao longo desse filme “esclarecedor” , diz o seguinte: “Evitar as exposições radioativas desneces­sárias e reduzir, tanto quanto possível, as exposições ine- vitáveisl”

De fato, a indústria nuclear costuma prever certo nú­mero de óbitos. No papel! Pois ninguém tem controle do que realmente acontece com o pessoal.

A prof.a dra. Inge Schmitz-Feuerhake, pesquisado­ra da Universidade de Bremen e especialista nessas ques­tões, diz o seguinte: “Hoje em dia sabemos que qualquer dose de radiação, grande ou pequena, pode causar danos graves à saúde. Pode propiciar a formação de um câncer ou provocar lesões genéticas nos descendentes. E o mais terrível é que na maior parte das vezes as seqüelas dessas radiações só aparecem muito tempo depois, às vezes até depois de vinte ou trinta anos. A tecnologia nuclear na Re­pública Federal da Alemanha é muito recente para que pos­samos realmente estudar seus efeitos” .

Mas quem irá provar, depois de tanto tempo, que o fato de a vítima ter trabalhado numa das “áreas quentes” de uma usina nuclear pudesse provocar tal câncer? Antes de começar a prestar serviços numa usina nuclear, os ope­rários são submetidos a exames médicos — mas depois, não! Morte a prazo? Sem dúvida. Morte secreta, sem tes­temunhas, sem provas e em massa. Dezenas de milhares de soldadores e faxineiros anualmente vão trabalhar nas centrais nucleares alemãs (só para as áreas perigosas de Würgassen são enviadas cinco mil pessoas por ano). Apro­ximadamente a metade são imigrantes que com freqüên­cia retomam a seus países de origem antes de começar a sentir as seqüelas provocadas por essa atividade.

Na República Federal da Alemanha, o órgão responsá­vel pela segurança das centrais nucleares (inclusive dos locais de trabalho) é o Serviço de Fiscalização Técnica (SFT). O Ins­tituto de Pesquisa sobre Acidentes, do SFT da Renânia, com sede em Colônia, enviou ao Ministério do Interior um rela­tório sobre os “fatores humanos na central nuclear” que nun­ca foi publicado. Nesse relatório, os especialistas do SFT exa­minam os “problemas" decorrentes do emprego nas usinas nucleares do chamado “pessoal estrangeiro" — problemas que causam transtornos às indústrias, não ao pessoal em questão.

“Os problemas surgem, em primeiro lugar, ao nível da colaboração com o pessoal auxiliar não-qualificado, forne­cido pelas empresas de prestação de serviços e contratado para trabalhar nas áreas de forte radiação —, poupando, assim, os próprios operários da usina nuclear. Segundo declarações dos responsáveis pelas centrais nucleares, essa gente freqüen­temente tem pouca motivação e trabalha de má vontade..." Claro: quem trabalharia de bom grado, num local como esse?

Outra passagem do relatório diz o seguinte: “É impen­sável deixarmos de contratar os serviços desse pessoal estran­geiro, se quisermos levar em consideração o cronograma da empresa". E, freqüentemente, as centrais nucleares “têm falta de pessoal, devido à carga radioativa e às restrições quanto à utilização de operários próprios e estáveis". E mais: “As doses de radiação admitidas são absorvidas em pouco tempo (alguns minutos)". Mais adiante pode-se ler: “Uma das ta­refas desses operários estáveis é treinar os trabalhadores es­trangeiros — especialmente nos serviços que implicam forte exposição à radiação, onde precisão e rapidez são fundamen­tais (...) Muitas vezes não é possível um treinamento correto (em virtude das altas doses de radiação); outras vezes, o gas­to com esse pessoal estrangeiro é desproposital e sua utiliza­ção não corresponde aos objetivos determinados".

O instituto declara secamente: “A maioria dos estran­geiros empregados ignora os riscos a que estão sujeitos. O precário conhecimento das instalações e do sistema de fun­cionamento é computado como um fator negativo suplemen­tar (...) principalmente porque é impossível exercer uma vi­gilância eficaz nos locais onde esse pessoal é empregado pa­ra poupar (reduzindo as doses de radiação) os operários es-

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táveis (...) Quando são encarregados de algumas tarefas em áreas de radiação intensa, os estrangeiros experimentam uma sensação de impotência em face de um perigo que desconhe­cem. Isso pode provocar comportamentos de extrema impru­dência” .

Somente os iniciados e os cientistas têm condições de decifrar artigos como o que o jornal Frankfurter Allge- meinen publicou no dia 29 de julho de 1982. Com o títu­lo de “Mil homens para substituir os encanamentos” , o artigo descreve os trabalhos de reparação efetuados em Würgassen e, na linguagem secreta da indústria atômica, aponta que se deve contar com densidades de “ 1 000 homens-rem” ... “ 1 000 homens-rem” ? Parece código se­creto de filmes de espionagem ou freqüência de emissão de receptor de ondas curtas. Mas com certeza os trustes sabem perfeitamente o que isso quer dizer. Os especialis­tas são capazes de calcular rapidamente os casos de cân­cer que esse misterioso padrão de medida pode represen­tar. Carl Z. Morgan, ex-diretor do Serviço de Proteção contra Radiações do Centro Americano de Pesquisa Nu­clear de Oak Ridge (os cientistas costumam chamá-lo de “o pai da pesquisa sobre proteção contra radiações”) afir­ma que “ 1 000 homens-rem” correspondem a aproxima­damente seis ou oito vitimas de câncer, em termos pura­mente estatísticos. A morte insidiosa por radiação pode arrebatar um empregado tanto da Adler quanto de qual­quer uma daquelas grandes máfias de negociantes que for­necem trabalhadores para as usinas nucleares “digerirem” : Celten em Holzminden; Kapfen em Landshut; Jaffke em Bremen; etc. etc...

Será possível que os responsáveis por essas empresas ignorem o quanto é perigoso esse tipo de trabalho? Um teste intensivo comprova que Adler não quer saber de na­da, nem mesmo quando tudo lhe é dito claramente.

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Taxas de câncer mais elevadas nas centrais nucleares

Na Grã-Bretanha os operários das centrais nucleares e de outras instalações atômicas correm maiores riscos de con­trair câncer da próstata que a média dos cidadãos. Um estu­do publicado pelo Conselho Britânico para Pesquisa Médica revela que, num grupo de mil operários expostos a índices de radiação relativamente elevados, o número de vítimas é oito vezes maior.

Os pesquisadores, que publicaram suas conclusões no British Medicai Journal, uma revista especializada, ocuparam- se de 3 373 casos fatais dentre os 40 mil homens e mulheres que haviam trabalhado no Centro de Energia Atômica da Grã- Bretanha, entre 1946 e 1979.

Segundo esse estudo, o número de casos fatais decorren­tes de leucemia, câncer da tireóide e câncer dos testículos tam­bém está acima da média. Os médicos descobriram ainda que entre as mulheres expostas por muito tempo a radiação in­tensa o número de vítimas de câncer dos ovários e da bexiga é maior que a média.

(Informação tirada da Frankfurter Rundschau de 21 de agosto dê 1985.)

223*

A missão(ou: Pegar e largar)

— Uma encenação da realidade —

Com lucro adequado o capital cria coragem. Com 10% certos, assegura seu emprego em qualquer parte; com 20%, infla-se de entusiasmo; com 50%, é positivamente auda­cioso; com 100%, calca a seus pés todas as leis humanas; com 300%, não se detém diante de nenhum crime, mes­mo sob o risco da forca. Se a turbulência e a cizânia pro­duzem lucros, encorajará a ambas. Provas: contrabando e tráfico de escravos.(F. J. Dunning, Trade Unions and Strikes, Londres, 1860, citado por Karl Marx em O Capital, livro 1, vol.2, nota de rodapé 250.)

Um golpe de sorte: Adler também fornece mão-de- obra para a usina nuclear de Würgassen. Não muita gen­te, como é de seu feitio. É melhor ser discreto e não cha­mar atenção sobre essas coisas. Uns trinta trabalhadores aqui, uns dez ali, um outro acolá... Se ocorre algum im­previsto em Hamburgo, não há problema. Adler serve to­da a região do Ruhr: Thyssen, Steag, MAN, e por aí afo­ra. Até mesmo a Ruhrkohle, no sul da Alemanha. Enfim, citando seu ditado predileto: “De grão em grão, a gali­nha enche o papo” . Ou como ele costumava dizer: “As leis foram feitas para serem descumpridas” . O tráfico de mão-de-obra entre Adler e a central nuclear de Würgas­sen é tão inquietante quanto poderia ser uma relação co­mercial entre o monstro “Mr. Hyde” e “dr. Mabuse” . A energia criminosa de um Adler a serviço dos “contra-

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tempos técnicos” de uma indústria nuclear. A mercado­ria: turcos que serão “queimados” .

Monto uma encenação para ver até que ponto ele che­garia num caso muito grave. Amigos e colegas estão pron­tos para entrar em ação: Heinrich Pachl, ator profissio­nal de Colônia, assumirá o papel de Schmidt, encarrega­do de segurança da usina nuclear; meu amigo Uwe Her- zog será Hansen, perito-assistente.

A missão secreta

Um incidente técnico impede que a usina atômica de Würgassen seja acoplada à rede elétrica. Prejuízo de mi­lhões. Precisam de trabalhadores turcos para os serviços de reparo numa área totalmente contaminada pela radia­ção. Provavelmente receberão doses de radiação bastante elevadas, que provocarão lesões graves à saúde, inclusive câncer. Requisito básico: os turcos devem ignorar por com­pleto os perigos a que estarão expostos e, uma vez execu­tadas as tarefas, retomarão a seu país o mais depressa pos­sível. Schmidt explica que a Adler é conhecida como uma firma bastante segura para essa missão. O primeiro con­tato é feito pelo telefone instalado no automóvel. Nesse, exato momento estou levando Adler para Oberhausen, de­pois de passar pela Ruhrkohle-Wãrmetechnik em Essen.

— Bom dia! Meu nome é Schmidt e sou encarrega­do de segurança da central nuclear de Würgassen. Esta­mos com um probleminha na usina, portanto vou direto ao assunto. Houve uma pane, um incidente sério, e não temos condições de corrigir o defeito sozinhos. Então pen­sei que o senhor seria a pessoa ideal para pôr tudo em or­dem. Só o senhor poderia fornecer mão-de-obra para um serviço como esse, de curta duração, mas muito delicado. Como temos urgência, talvez possamos nos encontrar o mais rápido possível. Estou justamente pelas imediações, na região do Ruhr. Poderíamos nos encontrar à uma e meia no restaurante da rodovia Lichtendorf, entre o cruzamento de Westhofen e o de Unna. O que acha?

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Adler retira do porta-luvas o mapa da região do Ruhr e estuda-o atentamente e em seguida me diz:

— Temos que nos apressar. Leve-me depressa para a Remmert, em Oberhausen. Preciso estar à uma e meia no restaurante da rodovia Lichtendorf. Um cliente me es­pera com uma nova tarefa. — Na volta da Remmert, ele tem muita pressa. Encoraja-me a ignorar os limites de ve­locidade: — Acelere, vamos! Não posso chegar atrasado.— E perde o controle ao perceber que a mulher a nossa frente insiste em manter seu carro na faixa da esquerda:— Que filha da puta! Fique na cola até ela mudar de fai­xa. Desse jeito vamos nos atrasar. — Tamanho é seu me­do de chegar atrasado que ele se põe a dizer “nós” , con­trariamente a seu hábito. Chegando ao restaurante, cinco minutos depois da hora marcada, Adler agarra a maleta de documentos e, com passos rápidos, dirige-se para sua nova missão, não sem antes me incumbir de outra tarefa:— Apanhe no porta-luvas a escova e o pano de pó e limpe tudo por dentro. Inclusive o cinzeiro. Não quero ver um cisco de pó, quando voltar!

— Certo! — digo e descubro que essa resposta curta é a que mais lhe agrada.

Satisfeito, constato que o automóvel de meus amigos já está estacionado ali perto. Enquanto começo a lustrar o carro, Adler entra no restaurante ao encontro de sua nova missão.

À uma e meia da quarta-feira, 7 de agosto, os dois encarregados especiais da usina atômica sentam-se diante de Adler para uma primeira conversa.

SCHMIDT: Estão nos pressionando, pois trata-se de uma questão de tempo. O trabalho deve estar pronto na sexta-feira impreterivelmente.

ADLER: Bem, os senhores sabem, eu tenho uma em­presa de médio porte. Faço de tudo. Costumo prestar ser­viço para as grandes indústrias, como a Ruhrkohle, a Steag e outras. Inclusive já trabalhamos várias vezes para a cen­tral de Würgassen.

SCHMIDT: Precisamos de oito homens de absoluta confiança que nunca tenham trabalhado nessa área.

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ADLER: Certo!SCHMIDT: Eles devem ser enviados para o local. Es­

se é o primeiro ponto. É possível que tudo possa ser repa­rado em pouco tempo. Ou não.

Essas frases preliminares, ligeiramente alusivas à “mis­são quente” , bastam para que Adler se sinta à vontade. Apressa-se em afirmar que “amanhã mesmo” pode man­dar para a usina “oito ou dez homens de total confian­ça” e aproveita para formular uma questão que trai todo o profissionalismo do negócio: — E as cadernetas de ra­diação? Podemos fazer alguma coisa quanto a isso?

Schmidt já esperava por algo semelhante e faz sua pri­meira exigência ilegal:

— É claro. Nada de cadernetas de radiação! Não há tempo para isso. Todo esse transtorno deve estar resolvi­do até sexta-feira no final da tarde.

Adler não vacila:— Como quiser... Pois bem, amanhã mesmo lá es­

tarão oito trabalhadores sem caderneta. Eu faço minha par­te, e o senhor faz a sua. E tudo na surdina, supersecreto.

Schmidt continua então com suas exigências. Deixa claro que só interessam pessoas que “não sejam do local” , portanto “mão-de-obra estrangeira” , porque podem “ ser imediatamente despachadas para seus países” . Em segui­da explica que o principal motivo para o rápido desapare­cimento dos trabalhadores é a possibilidade de acontecer alguma coisa, porém logo o tranqüiliza:

— Se alguém acabar canceroso, ninguém poderá di­zer que foi por esse ou aquele motivo... Além do mais um câncer pode ficar latente bem por uns vinte anos.

ADLER (aliviado): Mas claro!SCHMIDT (num tom paternal): Ninguém jamais po­

derá provar nada.HANSEN (mostrando alguns croquis que indicam, sem

a menor sombra de dúvida, tratar-se de uma missão suici­da): Veja! Estes são os encanamentos. Têm 67 centíme­tros de diâmetro. O pessoal deve entrar aqui...

Adler: Mas onde fica o... núcleo?

227 ‘

HANSEN: Aqui fica o depósito de pressão; os canos que conduzem o vapor radioativo para a turbina fazem a liga­ção entre o depósito de pressão e a sala de máquinas. E é bem no meio deste cano que o nosso “rato” está entalado.

ADLER: Como?...HANSEN: O “rato” é um pequeno aparelho a laser

que circula no interior dos canos detectando eventuais ava­rias. O problema é que o “ rato” agora está entalado não sabemos onde. Por isso o pessoal tem que entrar lá. O tra­balho não exige esforço físico, mas os homens devem ter boa saúde...

ADLER: Ah, eles têm! Claro que têm!HANSEN:... para entrar lá. O outro problema é que,

por motivos técnicos, desconhecemos o índice de radioa­tividade na área. Pode ser infernalmente elevado.

ADLER: Um momento! Teremos que levar aparelhos de detecção ou coisa do gênero?

HANSEN: Não, nós fornecemos os dosímetros. Isso não é problema. E também damos roupas de proteção. En­fim, tudo. Só não sabemos qual é o índice de radiação no local. Só vamos saber quando eles saírem de lá.

Adler (falando de seus empregados como um pro- xeneta): Bem, vejamos! Tenho gente trabalhando na Thys­sen. Posso selecionar oito homens, os melhores. Damos o transporte, e amanhã cedo eles estarão lá. É claro que são... estrangeiros. Pode haver um alemão no meio mas, em princípio, são todos estrangeiros. Não entendem nada dessas coisas. Além do mais, mando todo mundo ficar de bico fechado, e na semana seguinte já voltam para a pra­teleira. A propósito... como homem de négocios, estou in­teressado em conseguir novos contratos para os trabalha­dores. Seria ótimo para mim. Serviços de limpeza e coisas do gênero, por um período superior...

SCHMIDT (interrompendo-o): Proponho fechar este negócio primeiro. Se tudo correr bem, tanto para o senhor quanto para nós, então tomaremos a entrar em contato para outras tarefas. Está bem assim? Ah, outra coisa... se ocorrer algum... digamos... algum problema...

228 ' \

ADLER: Sim?...SCHMIDT:... o senhor eventualmente teria outras pes­

soas disponíveis...Adler: Claro, claro! Tenho um fichário completo.

Posso trocar os empregados quantas vezes forem neces­sárias.

SCHMIDT: Eu me refiro a pessoas que, por um moti­vo ou outro, precisem ser despachadas para seus países em pouco tempo.

H an sen : Devemos estar preparados para qualquer eventualidade. O risco é grande. Talvez pudéssemos esti­mular o pessoal a voltar para a Turquia oferecendo uma gratificação, por exemplo.

Adler: Talvez... Se for uma quantia razoável.SCHMIDT (mostrando-se bastante generoso): O que

acha de uns 120 mil, 150 mil marcos?...A d ler: Está bem. Os senhores já expuseram o pro­

blema. Vou lhes dizer uma coisa. Esse é o meu serviço. Como empresário, faço de tudo. Quero ganhar dinheiro, e o pessoal deve ganhar seu dinheirinho suado. Agora que estou a par de tudo, posso montar a equipe de que os se­nhores precisam. Muito bem... Vejamos... quais as pes­soas disponíveis? As que estão na lista negra do consula­do? Conheço algumas. As que têm problemas com a polí­cia de estrangeiros? Também conheço algumas. É esse o tipo de gente que vamos usar, não? (Já entendeu clara­mente. Mais uma vez confirma os nomes dos dois “en­carregados de segurança”.) Sr. Schmidt e sr.?...

HANSEN: Hansen!A d le r (parecendo meditar por alguns instantes):

Mas claro! Já ouvi seu nome... Hansen... de Würgassen, claro... (O negócio rendoso reforça sua confiança. Nova­mente garante aos “sócios” que tudo correrá bem e por fim chega ao ponto essencial: o dinheiro.) Os meus em­pregados já estão acostumados comigo. Quando os man­do para um cliente, é para trabalhar! De olhos e bico fe­chados. Trabalhar, apenas isso! Quem se atreve a olhar para os lados e abrir a boca... rua! É assim em todo-togat

• 229'

onde trabalhamos. Na Thyssen, por exemplo, já fizemos um servicinho, e ninguém abriu o bico... Fica tudo morto e sepultado... Mas vejamos... começamos a trabalhar ama­nhã, dia 8 de agosto de 1985. Quanto os senhores preten­dem investir?

SCHMIDT: Calculamos algo em torno de 120 mil, 150 mil marcos. Mas os riscos correm por sua conta. Portan­to, se acontecer qualquer coisa, mesmo depois de tudo ter­minado, o senhor é quem vai bancar. E os empregados já deverão estar longe.

Adler: Só mais uma pergunta, para não haver dú­vidas... O meu pessoal estará bem quando sair de lá, não?

SCHMIDT: Pensei que já tivéssemos nos entendido. Estamos pagando por isso também. Os operários vão re­ceber uma dose de radiação e talvez posteriormente ne­cessitem de tratamento médico. E é aí que está o proble­ma. Não podemos permitir que comecem a perguntar pa­ra eles quanto tempo trabalharam lá e coisas desse tipo. Nem podemos deixar que eles mesmos dêem com a língua nos dentes. Precisamos evitar isso por todos os meios.

H an sen : Os operários deverão partir imediatamen­te! Imediatamente!

ADLER: Certo! Mas... vamos falar com franqueza. O meu trabalho é montar uma equipe e enviá-la para os senhores, que, por sua vez, vão mandá-la para as zonas de perigo. É isso, não? Então não há problema.

Claro que não há problema. Enviar os empregados para as zonas de perigo nunca foi verdadeiramente um “ problema” para Adler. Agora só falta fazer os últimos acertos. A questão do transporte é resolvida: Schmidt man­dará um microônibus da central nuclear apanhar o pes­soal em Duisburg na manhã seguinte. Adler ainda escla­rece que no momento tem uma equipe trabalhando em Würgassen e alojada no hotel Na Curva. E está disposto a ir encontrar esses homens no dia seguinte para resolver de vez o problema do pagamento.

Os três saem juntos do restaurante. Ao perceber o ar satisfeito de Adler, deduzo que teve êxito na transação de

230Í

sua mercadoria. Abro-lhe a porta do automóvel, como exi­ge de mim. Sem dizer uma palavra, ele aciona o mecanis­mo automático do assento estofado e macio até ajustá-lo à posição mais confortável e relaxante.

— Vamos voltar para Oberhausen — ordena e no­vamente fica em silêncio, meditando.

Começo a pensar que estou sendo injusto. Ele não é tão inescrupuloso. Nenhum homem, sem exceção, pode ser tão insensível. Adler não vai pôr em perigo a vida de seres humanos... Claro que seu pessoal que trabalha na Thyssen também “se queima” de certo modo — mais lento e indireto — e também pode ter câncer, ingerindo todo aquele pó espesso de metal pesado que é uma espécie de bomba de efeito retardado. Porém, a situação na Thyssen é bem mais clara: todos podem falar do pó, embora pou­cos saibam exatamente o que isso acarreta para a saúde. Em compensação, os que vão trabalhar na usina atômica nem desconfiam de que serão vítimas de radiações muito perigosas, por vezes letais. Quem sabe se neste exato mo­mento Adler não está lutando consigo mesmo? Quem sa­be se não irá recusar a proposta?

Logo percebo que seus pensamentos se inclinam pa­ra outra direção. Ele rabisca alguns números em seu ca­derno de anotações e põe-se a fazer contas. De repente, rompendo o silêncio, pergunta:

— Você consegue me arranjar até amanhã, sem fal­ta, sete ou oito conterrâneos seus que queiram ganhar al­gum dinheiro? É um bom trabalho, mas eles têm que es­tar em perfeitas condições. — E, enquanto finjo pensar, declara: — Se você achar que tem pouco tempo para isso, vou falar com o K. Ele sempre tem gente disponível. — Refere-se a um trabalhador turco que foi elevado ao car­go de “pau para toda obra” . Quando precisa de empre­gados, K. sempre arranja.

— Eu pode conseguir pessoal — digo. — Mas que eles precisa saber?

— Nada de especial. Basta que sejam pobres. Você pode inclusive dizer que eu também já fui pobre.

231'

— Senhor, pobre? — pergunto, espantado. — Quando?

— Depois da guerra, é claro. Todo mundo era po­bre naquela época. Bem, mas o que eu preciso é de pes­soas que tenham medü de ser expulsas do país. — E, per­cebendo minha perplexidade, rapidamente apresenta um motivo: — É que eu quero ajudá-los, porque estão muito mal aqui, entende? Você sabe, sempre tive idéias sociais avançadas. Afinal, sou social-democrata. E isso vem de família.

— Que é social-democrata?— E um partido que luta pelos operários. Sou mem­

bro dele.— E que tipo trabalho eles precisa fazer? Quanto eles

vai ganhar?— Um bom dinheiro... 500 marcos em dois dias.

Quanto ao trabalho... bem... é fácil, coisa de limpeza. Eles nem vão sujar as mãos.

— E onde fica?Ele me enrola e mente de novo, encurtando em mais

ou menos dois terços a distância real:— A uns cem quilômetros. E embora não tenha a me­

nor importância eles viverem aqui ilegalmente — prosse­gue —, tão logo terminem o serviço, precisarão voltar pa­ra a Turquia. Se me arranjar esse tipo de gente, você tam­bém ganha 500 marcos.

— E pode ser gente de Exército de Salvação?— Pode, só que nada disso é oficial, entende? — Pro­

cura defender-se. — Você precisa saber. Nada é oficial. Tudo black, até o dinheiro.

— “Bleque?” O que é isso?— Negro, sem impostos, por baixo do pano. Eles re­

cebem em dinheiro vivo, ali, na mão. Em troca, não preci­sam mostrar documento nem nada. Inclusive é melhor para eles. Ganham dinheiro para voltar para a Turquia e reco­meçar a vida por lá. Ah, sim... diga para trazerem roupas de dormir... pijama, coisas do gênero. O resto a gente for­nece. Mas onde é que você vai encontrar esses caras?

232k

— Eles vive tudo escondido em porão.— Ótimo! Se moram em porões é porque não têm

muitos contatos. E quantos são?— Uns cinco.— Hum... Procure direitinho. Quem sabe você con­

segue reunir os oito. E pode me telefonar a qualquer ho­ra. Inclusive lá para o clube de tênis. Mas preste muita aten­ção numa coisa... não leve esse pessoal ao meu escritório! É melhor levá-los para a sua casa, na Dieselstrasse. Eu vou me encontrar com vocês, pode deixar. Outra coisa muito importante também... eles precisam sumir depois que ter­minarem o trabalho. Quero que isso fique bem claro! Vão ter que desaparecer! Afinal, mais dia menos dia, deverão mesmo deixar o país, não é verdade? A polícia de estran­geiros não anda na cola deles?

— Anda.— Pois então... Está claro? Eles precisam se man­

dar. Ai de quem eu encontrar depois vagabundeando por aqui... É esta a condição para o emprego!

— Mas qual é trabalho? — insisto em saber.— Deixa para lá. Você não entenderia mesmo. Eu ex­

plico direitinho para eles. Não haverá problema. O impor­tante é ajudar essa gente que vive em dificuldades. — Adler fala como um pastor, com qualquer coisa de melífluo e solene na voz. Isso, no entanto, dura pouco e ele volta a falar como o patrão: — Então? Posso contar com você?

— Pode! — respondo.Fico de telefonar à noite para informá-lo sobre as ne­

gociações. Às nove horas consigo localizá-lo no restauran­te do clube. Nesse ínterim, Schmidt já lhe comunicara que seis homens eram suficientes. (Em tão pouco tempo eu não conseguiria reunir um número maior.) Aparentemente, Adler não pode falar à vontade pelo telefone. Diante de seus ami­gos e de empregados — que o conhecem muito bem —, é impossível representar o papel de benfeitor dos turcos ou confessar, em plena região do Ruhr, sua filiação ao “parti­do que luta pelos operários” . Todos cairiam na gargalha­da. Tentando colocá-lo em situação embaraçosa, pergunto:

233'

— Que diz para colega acreditar?— No momento não posso falar — responde um pou­

co reticente. — Ligue para a minha casa daqui a uma hora.Já em casa, sua voz adquire novamente aquele tom

de pastor. Insisto na pergunta:— O que eu diz para colega? Eles quer saber por que

senhor é tão bom.Um novo ímpeto de generosidade: põe-se a falar não

dos “pobres” , e sim dos “mais pobres dos pobres” , aos quais gostaria muito de “poder ajudar” . Aproveito a oca­sião para pintar-lhe um quadro eloqüente da miséria em que vivem certos trabalhadores turcos. É muito, no en­tanto, para ele, que já não consegue disfarçar sua falta de interesse pelo relato. Temendo que eu desista da tarefa, ainda se dá ao trabalho de dizer:

— Voltaremos a falar sobre isso. — E áté promete que vai arranjar visto de permanência e autorização de tra­balho para os “mais pobres dos pobres” . Embora tenha prometido aos “encarregados de segurança” que se livra­ria dos estrangeiros!

Nove e meia da manhã do dia seguinte.Schmidt, o encarregado de segurança da central nu­

clear, liga para Adler e pergunta se está tudo arranjado conforme combinaram.

— Sim, já reuni o pessoal. Estão prontos para en­trar em ação. Mas me diga uma coisa com toda a honesti­dade... Quem é o senhor? Não é Schmidt, encarregado de segurança da central nuclear de Würgassen. Sei que não é. O que está planejando? Quem é o senhor? Com quem estou negociando? Só vamos tratar de negócios depois que responder a essas perguntas.

Havíamos contado com a possibilidade de Adler te­lefonar para Würgassen e descobrir que o verdadeiro en­carregado de segurança não se ausentou da usina. Prevendo isso, Schmidt responde:

— Não tente ligar para o meu escritório! O negócio que estamos fazendo é supersecreto. Se o senhor ligar, se­rei obrigado a dizer que não o conheço, que nunca o vi

234 v

e que jamais lhe encomendei um serviço dessa espécie. En­tenda, somos um setor extremamente sensível, uma área de segurança extrema, e o inimigo está em toda parte, até mesmo dentro de casa.

Aparentemente Adler conseguiu as informações atra­vés não de um telefonema à usina, mas de terceiros. Tam­bém havíamos previsto essa possibilidade e preparamos uma versão adequada.

SCHMIDT: Fique descansado. Compreenda, devemos agir o mais discretamente possível. E, para sua informa­ção, devo dizer que este seu amigo Schmidt é muito pe­queno para tratar de uma coisa tão grande. Está tudo nas mãos da diretoria.

Adler: Compreendo.Schmidt: E para agir discretamente é necessário um

mínimo de confiança!Adler: É claro, mas eu confio...Schmidt: Se o senhor não confiar em nós, reconsi­

deraremos todo o trato. Entenda, para nós é uma situação...ADLER: Sim...Schmidt (elevando a voz num tom patético): Exa­

tamente porque estamos encarregados de fornecer ener­gia à Alemanha não nos resta outra solução...

ADLER: Sim...SCHMIDT: Ontem mesmo eu lhe disse que se o senhor

me telefonasse esbarraria no serviço de segurança. Está compreend...

Adler (interrompendo-o): Claro! Claro! (Suas sus­peitas dissipam-se aos poucos, graças à atitude segura de Schmidt; mesmo assim, ele procura se garantir.): Diga-me mais uma coisa... Eu poderia receber uma confirmação do serviço por escrito?

SCHMIDT: Por escrito? De jeito nenhum! Será que não entende?

ADLER: Sim...Schmidt: Preste atenção! Em primeiro lugar, vamos

usar só seis dos oito trabalhadores. Portanto, a quantia estipulada de 130 mil passou a ser 95 mil marcos...

235'

ADLER: Hum...SCHMIDT: Bem, digamos... 110 mil marcos...Adler.: Hum...Schmidt: ... incluindo, é claro, a gratificação de re­

tomo ao país, aquele pequeno estímulo para voltarem à terra natal.

Adler: Sim, claro.Schmidt: De acordo com os nossos cálculos a aju­

da de custo para a viagem ficaria em tomo de uns 5 000 marcos por pessoa. Esperamos que tudo dê certo e que o senhor se encarregue de pagar ao pessoal.

Adler: Mas é lógico!SCHMIDT: Em segundo lugar precisamos ter a garan­

tia de que os operários sejam realmente fortes.Adler: São, sim.SCHMIDT: Não queremos que o mais leve contato

com alguns milirem os derrube.Adler: Não, não! Não se preocupe, eles podem su­

portar. Não são derrubados tão facilmente!SCHMIDT: E se houver necessidade de um encarrega­

do, este também deverá ser um imigrante...A d le r (cortando-lhe a frase): Certo! Mas o traba­

lho é mesmo para a usina central nuclear de Würgassen?SCHMIDT: Lógico!ADLER: Não é que a coisa ainda não esteja muito

clara...SCHMIDT: O senhor já entendeu perfeitamente. Quais

são suas dúvidas? O senhor me pediu para' ser franco. Já lhe mostrei o máximo de boa vontade.

ADLER: Claro!SCHMIDT: E quanto ao senhor? Será que não vai sair

por aí contando para Deus e o mundo esse nosso negó­cio? Se ainda tem alguma dúvida, vamos conversar mais um pouco. Mas antes é preciso que...

A d le r (cortando-lhe a frase): Sei, sei, compreendo que tudo deve ser feito o mais discretamente possível. En­tendo perfeitamente que em determinados negócios deve- se permanecer incógnito. O problema é que de repente me

236 *

aparece alguém dizendo que é Schmidt, da usina nuclear de Würgassen, e eu percebo que não é bem assim... O se­nhor entende, tenho as minhas dúvidas... ou reservas, co­mo o senhor costuma dizer... Será que estou mesmo ne­gociando com a Central Geral de Energia? Eu não gosta­ria nada de me meter em negócios imprudentes ou crimi­nosos... (tosse) Enfim, eu não sei... como vou dizer... eu gostaria de saber se estou mesmo negociando com a Cen­tral Geral de Energia.

SCHMIDT: Não entendi direito o que o senhor quis di­zer com imprudentes...

ADLER: Mas é que...SCHMIDT: ... ou criminosos. A menos que o senhor

mesmo esteja acostumado a agir dessa forma...ADLER: Eu?! Nunca!SCHMIDT: Neste caso, eu é que gostaria muito de

saber...ADLER: Não, não, não há problema! Mandarei o pes­

soal amanhã. (Propõe um novo encontro, dessa vez na ro­doviária, diante da estação de trem.)

SCHMIDT: Às duas horas? Ótimo! Lá acertaremos a questão do dinheiro e a forma de pagamento. Com­binado?

Adler (satisfeito): Claro, claro! Combinado!(Todas as suspeitas foram destruídas. A ganância pelo

lucro impele-o a cometer imprudências.)Quinta-feira, 8 de agosto, meio-dia.Adler contratou provisoriamente um motorista tur­

co que o levará em seu Mercedes 280-SE para Duisburg- Bruckhausen, ao encontro de seu comando suicida. Or­dena ao chofer que, em vez de entrar na Dieselstrasse, pare um pouco mais afastado, na Kaiser-Wilhelm-Strasse, a rua principal, bem em frente à coqueria das indústrias Thyssen.

O automóvel luxuoso provoca sensação neste bairro miserável. Por trás das cortinas, as mulheres turcas esprei­tam, assustadas. Temem que a invasão esteja associada à demolição de uma casa ou a um despejo forçado, quando,

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alegando razões de higiene, vedam com muro as portas e janelas de uma das casas em ruína. As crianças turcas admiram o carro a distância, sem coragem de aproximar- se. Adler não sabe como agir. Fuma um cigarro atrás'do outro e não pára de olhar ao redor.

As chaminés da Thyssen expelem nuvens de fuligem praticamente ininterruptas e basta uma leve brisa para espa­lhar toda a sujeira sobre o bairro. As pessoas não só respi­ram a fuligem, como a engolem, literalmente mastigando os grãos concentrados nela. Por vezes os olhos inflamam e ardem, tamanha é a poluição. Dependendo da hora e das condições meteorológicas, há no ar uma concentração tão grande de gás sulfuroso que realmente sufoca as pessoas. Aqui o número de asmáticos e portadores de bronquite é bem superior à média. A palidez das crianças salta aos olhos. Lembro-me bem de um menino franzino — devia ter uns cinco ou seis anos — cujo rosto infinitamente sé­rio e esgotado lhe dava a aparência de um adulto.

No centro de Duisburg, o sol com certeza está brilhan­do; aqui, no entanto, paira uma luz cinzenta, sombria. O sol está atrás da cortina de fumaça, porém não consegue romper o bloqueio. Do outro lado da rua, observo Adler já há um bom tèmpo e percebo como se sente pouco à von­tade. A Dieselstrasse e suas imediações representam para ele as portas do inferno. Mas o inferno real situa-se atrás das cercas e dos muros vigiados pelo serviço de segurança da Thyssen, onde o ar é ainda mais poluído, e o barulho é ensurdecedor.

Adler nunca se desviou de seu trajeto em nosso local de trabalho: isso poderia pesar em sua alma sensível e, quem sabe, provocar-lhe pesadelos. Aqui, trajando um ter­no sob medida, ele parece totalmente deslocado, quase obs­ceno, irreal como as fotografias dos candidatos das últi­mas eleições, espalhadas pelo bairro. A propaganda não funciona muito por aqui, a não ser, talvez, para algumas marcas de cerveja e cigarro.

Nossa “última oferta” consiste em seis amigos tur­cos, todos de confiança. Para minha surpresa, estão mui­

238’

to menos espantados que eu com o tipo e a finalidade desta missão e com a descarada falta de escrúpulos de Adler. Já há muito tempo convivem com esta realidade e conhecem-na bastante bem. Evito contar-lhes que sou ale­mão. Isto poderia não só criar uma distância muito gran­de entre nós como despertar a desconfiança de Adler.

Sem que ele nos veja, discretamente conduzo o pe­queno grupo por uma rua paralela até meu apartamento da Dieselstrasse. Depois vou buscá-lo. Seria melhor que o “pessoal" — como ele diz — viesse encontrá-lo na rua, mas eu me oponho.

— Não bom. Perigoso, porque eles não têm docu­mentos. — Ao dizer isso, começo a tramar o final da his­tória, sobre o qual só falarei no momento oportuno.

— Bem, se é mesmo perigoso... — Adler segue-me até a Dieselstrasse, 10. Logo na entrada do prédio sente um forte cheiro de urina, pois os banheiros ficam todos do lado de fora, e um deles está entupido. Adler apressa- se e sobe a escada. No primeiro andar, abro a porta do apartamento e apresento-lhe meus amigos turcos, pron­tos para entrar em ação. — Bom dia — cumprimenta se­camente ao entrar na sala e põe-se a contar: — Dois... qua­tro... seis... Ótimo! Agora prestem atenção no que vou dizer. Antes, porém, só uma coisa... todos entendem alemão?

— Sim, maioria — respondo. Não é verdade, mas com isso obrigo-o a pronunciar um pequeno discurso no qual pouco a pouco ele se revela.

— Como vocês já devem saber, somos uma empresa de montagem industrial sediada em Oberhausen — assim começa sua apresentação. — Nossa missão é executar al­guns reparos na central nuclear de Würgassen. Um servi­ço fácil, que não levará mais de dois dias. Para tanto, pre­cisamos de cinco ou seis homens. Vão nos pagar um bom dinheiro, o que significa que vocês também serão bem pa­gos. Se tiverem alguma dúvida, não hesitem. Estou pron­to a responder todas as questões.

Adler tem um ar simpático, franco. Quem não o co­

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nhece deixa-se levar facilmente. Para que ele se revelasse ainda mais, combinei com meus amigos que lhe fizessem algumas perguntas em turco. Quanto a mim, não sei uma palavra de turco, mas me ofereci para traduzir “ livremen­te” as questões mais relevantes. Nunca ocorreu a Adler que eu jamais tenha conversado em turco com meus cole­gas turcos; e muito menos que meu alemão não seja co­mo o alemão falado pelos imigrantes. Ele não se surpreen­deu com minhas palavras esdrúxulas, meus verbos mal con­jugados, meus artigos omitidos. Por vezes tais embustes lingüísticos dão bons resultados, arrancando-lhe as mais extraordinárias declarações. Adler nada percebe: para ele, “ seus imigrantes” não passam de burros de carga. Desde que trabalhem como animais e sejam dóceis na execução dos serviços, nada tem contra eles; ao contrário! É um dos poucos que, em certo sentido, até sabe valorizá-los. Mas a partir do instante em que começam a se defender, exi­gindo o pagamento dos salários atrasados, passam a ser “gentalha, corja, bandidos, vagabundos” .

. — Colega quer saber — digo-lhe — como gente vai até local de trabalho.

Adler põe-se falar da viagem como o dono de uma agência de turismo promovendo excursões de ônibus com direito a café e bolo grátis.

— Tudo é de graça! — exclama. — Às três horas, um ônibus irá apanhá-los na rodoviária de Duisburg e os trará de volta dois dias depois. O alojamento é grátis, a alimentação é grátis, tudo é grátis!

Isso me lembra o refrão de sua cantiga preferida: “ ... longe de casa e fora da lei/ cem homens, e eu entre eles...”

— Outro colega — digo. — Ele quer saber por que SOO marcos? Muito dinheiro, pouco trabalho...

Desta vez a águia abre as asas, pronta para voar.— Prestem atenção! Vocês conhecem a Alemanha e

sabem que temos diferentes tipos de usinas. Vamos tra­balhar numa usina nuclear. No momento ela está parada, não produz energia. Ficou comprovado que algumas coi­sas precisam de conserto. E esse conserto deve ser feito

em pouco tempo, porque a usina voltará a funcionar na próxima semana. E tem outra coisa... nada disso pode ser comentado. Os jornais não devem saber do defeito, por- que senão aparecem os caras do Partido Verde e aí já sa­bem... vem aquela lenga-lenga toda e ainda por cima con­seguem fechar a usina. — E com sincero desprezo: — Vo­cês conhecem bem esses grupinhos políticos que existem na Alemanha... Bom, mas o importante é que o trabalho deve ser feito imediatamente para que tudo esteja funcio­nando direitinho na próxima semana. É por isso que es­tão nos pagando bem. E, naturalmente, vocês também vão receber um bom dinheiro!

— Mas ele diz que não confia alemão — insisto. — Alemão sempre engana gente.

Adler engole em seco. Para ganhar tempo, finge não ter compreendido:

— Como assim?— Ele diz que alemão engana ele.— Pergunte-lhe se alguma vez eu o enganei.É uma pena que ainda não seja o momento propício

para o ajuste de contas, para enumerar-lhe na cara todos os seus trambiques: os 2 000 marcos que ele ainda me de­ve, os constantes calotes no pagamento dos empregados, o fato de embolsar dinheiro dos impostos e contribuições sociais, e “outras coisas do gênero” , como costuma dizer.

— Conta para eles tudo que senhor faz para turcos— consigo dizer, disfarçando o mal-estar provocado pela situação.

Era a deixa que Adler esperava. Endireitando-se na cadeira, pede fogo a seu novo motorista e começa a re­presentar o papel de benfeitor dos humilhados e ofendi­dos, ou seja de todos os que são explorados por ele e por outros da mesma laia. Assume os modos de um doador de empregos — ele, que passa a vida devorando e explo­rando a saúde e os meios de subsistência de seus em­pregados!

— Desde que passei a trabalhar como autônomo, sempre tive colaboradores turcos. E até o presente momen­

24 f

to nunca me deixaram na mão. Sempre me dei muito bem com eles, ao contrário do que tem acontecido com os co­laboradores alemães... Portanto, quero continuar traba­lhando com os turcos e é por isso que lhes ofereço emprego.

Trabalhar “com” os turcos... Explorá-los, isso sim! Obrigá-los a se esfalfar como escravos até que caiam de cansaço ou estiquem as canelas. Ele realmente doura a pí­lula tratando-os de “colaboradores” ... A palavra deve soar como bálsamo aos ouvidos dos massacrados e oprimidos.

— Bom, esta turma que a gente vai expulsar para a Turquia — digo, procurando trazê-lo ao assunto principal.

— Talvez não seja necessário — declara magnânimo.— Vou dizer uma coisa com toda a honestidade... não que­remos alemães para esse serviço porque eles falam demais. Fazem o trabalho e depois contam para todo mundo. Co­nheço bem os trabalhadores turcos e sei que vocês ficam de boca fechada. Estão entendendo por que eu não quero trabalhadores alemães? Não vale a pena!

— Ayth lá — aponto para um dos colegas turcos — mora em porão e...

Adler interrompe-me com um gesto.— Não faz mal. Não tem importância. Vou fingir que

não sei de nada.— Mas gente não podia ajudar ele?Pronto! Mais uma vez Adler assume o papel de me­

lhor patrão do pós-guerra.— Ajudá-lo? Mas sem dúvida! Estou sempre pron­

to a ajudar os mais necessitados... Saibam que isso é uma tradição da minha família. Somos social-democratas, mem­bros do PSD. Costumamos lutar pelos operários. Sempre que podemos ajudamos as pessoas a ganhar um pouco de dinheiro. Como estou fazendo agora. E se vocês tiverem mesmo que voltar para a Turquia, pelo menos já têm 500 marcos... Já é alguma coisa...

— Aquele, ó — aponto para Sinan, outro colega turco —, quer saber se trabalho perigoso.

Mais uma deixa para Adler, que se põe a falar como verdadeiro porta-voz de uma central nuclear:

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— Perigoso? De jeito nenhum! É uma grande usina, e as normas de segurança são extremamente rigorosas, co­mo em todas as centrais nucleares da Alemanha. Vocês sabem que as centrais nucleares alemãs são as mais segu­ras do mundo. Milhares de pessoas trabalham nelas. Co­mo estão vendo, não há o menor perigo!

— Mas nunca aconteceu acidente? — pergunto.— Numa usina nuclear da Alemanha? Nunca!Dentro da usina pode ser que não... Mas um avião

de caça já caiu bem perto de Würgassen: se tivesse caído sobre as instalações, teria certamente provocado uma ca­tástrofe de gigantescas proporções. Em caso de acidente, as pessoas que trabalham dentro das usinas são atingidas mais rapidamente. Até o momento a indústria atômica da Alemanha Ocidental admite, oficialmente, cinco casos fa­tais nas centrais nucleares do país.

De qualquer forma, o trabalho “não é perigoso", se­gundo Adler. Nem mesmo difícil, como também nos as­segura.

— Gente precisa subir lugar alto? — pergunto.— Não. Isto é, sim... Quero dizer... não sei. Você

sabe, uma central nuclear tem vários andares, entende?— Sinan quer saber qual é mesmo serviço de gente

— insisto.— São trabalhos de reparação, trabalhos com solda...

coisas simples que precisam ser feitas. Por isso há neces­sidade de cinco ou seis homens. Para tudo estar termina­do em dois dias. Já fizemos os cálculos. Está tudo acerta­do. Vocês vão ver que lá dentro o que mais importa é o ser humano! — Suas palavras devem ter lhe soado tão monstruosas que ele prefere continuar falando, na tenta­tiva de ocultar o desprezo e o desrespeito que sente pelo ser humano: — E é evidente que não há nenhum perigo para quem trabalha lá dentro. As normas de segurança são rigorosíssimas. É verdade que uma central nuclear, mes­mo desligada, sempre tem um pouco de radioatividade. Mas fiquem tranqüilos. O pessoal de lá vai dizer aonde vocês podem ir sem o menor risco. E, caso haja algum pro­

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blema, mínimo que seja, o trabalho é suspenso. Sua saú­de não corre perigo. Vocês mesmos terão oportunidade de comprovar o que estou dizendo. Se as coisas não forem assim, nem precisam vir me contar. Podem abandonar o serviço. Mas uma coisa é muito importante... Vocês fa­zem o trabalho, pegam o dinheiro e esquecem tudo. Nada de ficar por aí contando para todo mundo que a usina ti­nha um pequeno defeito. É muito importante que essas coisas não sejam divulgadas. Portanto... trabalho termi­nado, tudo esquecido! Claro, antes disso, vocês pegam o dinheiro! E depois ficam esperando o próximo serviço. Pre­cisamos desse tipo de trabalho. Por isso é que devemos ser discretos e ficar de boca fechada. Então... trabalho ter­minado, tudo esquecido! Combinado? Partimos hoje de­pois do almoço e sábado à tarde, no máximo, o ônibus os trará de volta para a rodoviária de Duisburg. Vocês vão voltar para suas casas, e encerramos o assunto. Recebem o dinheiro e não se fala mais nisso. Não é razoável?

Silêncio consternado. De repente ninguém mais tem prazer na encenação.

Como todo mentiroso contumaz, Adler novamente reitera sua honestidade:

— As pessoas que eu contrato sempre recebem seu dinheiro. Quanto a isso nunca houve o menor problema. Amanhã mesmo vocês receberão 250 marcos. O restante será pago quando terminarem o serviço. E em dinheiro vi­vo! Ali, o meu motorista, irá com vocês. Confiem nele, pois é a garantia de que receberão o seu dinheiro. — E mais uma vez exalta a perfeição e a segurança da indús­tria atômica alemã: — Vocês receberão uniforme de se­gurança. Sapatos, capacete, tudo. Mas repito, não comen­tem nada sobre o serviço. Principalmente com esses pa­lhaços da imprensa. Senão... — Com um gesto teatral, ti­ra da carteira uma nota de 50 marcos passa-a para mim, dizendo: — Este dinheiro é para você levar o pessoal para comer alguma coisa. Vocês devem se alimentar para não perder logo a força quando começarem o trabalho. Não é verdade? — E antes de sair ainda nos diz, com um ar

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paternal e protetor: — Tudo de bom, meus jovens! Até às três da tarde! Conto com vocês. Combinado?

Dividindo 50 marcos por sete, cada um de nós terá direito à última refeição no valor de 7,14 marcos.

Lembro-me novamente daquela canção piegas que ele não se cansa de ouvir: “ Cem homens e um só comando/E um caminho que ninguém deseja/Dia após dia, quem sa­be para onde?/Terra queimada, qual é a razão?” E por aí afora. Talvez seja sua canção predileta pela alusão a seu nome. Mas ele não faz caso do patético e, cinicamente, vai repetindo o refrão: “ longe de casa e fora da lei...” 1.

As duas da tarde, Adler encontra o encarregado de segurança Schmidt e o perito-assistente Hansen no restau­rante da estação ferroviária de Duisburg. Os dois repas­sam com clareza e precisão todos os detalhes do negócio para que mais tarde Adler não possa dizer que não enten­deu muito bem.

HANSEN: Hoje cedo fomos medir mais uma vez os índices de radiação. E os resultados superaram as nossas piores expectativas. Assim, o trabalho passa a ser muito mais delicado. A radiação junto aos encanamentos, onde eles irão trabalhar... (olhapara as mesas ao lado e baixa a voz)... a radiação eqüivale a trinta vezes a dose anual máxima, e seu pessoal vai receber tudo isso de um só gol­pe... A coisa pode acabar mal.

ADLER: E se não fizermos o serviço?HANSEN: Não poderemos acoplar a usina à rede elé­

trica. Impossível! E todos os canos poderão ficar destruí­dos. Milhões, bilhões de marcos de prejuízo!

Adler: É, isso não é bom... Eles precisam entrar lá e botar tudo em ordem, (em seguida, para isentar-se, de­clara): De qualquer forma, oficialmente não sei de nada. Os senhores me pediram alguns trabalhadores, eu montei uma equipe e a coloquei dentro de um ônibus. Os se-

1 ‘Tora da lei** corresponde ao alemão Vogeffrei, que literalmente também quer dizer “ pássaro livre” . A palavra Vogel alude ao nome de Adler, “ águia” (N. do T.).

245*

Equipe da Adler na central nuclear

nhores levaram o pessoal para Würgassen. Para mim a his­tória termina aí. Fim! Não costumo cometer delitos... Pos­so lhes garantir que ninguém da equipe vai fazer muitas perguntas. Eles nem sabem onde fica Würgassen... (A úni­ca coisa que lhe interessa é money, black, cash, isenção de impostos.) Gostaria muito de saber como será feito o pagamento... A central vai participar?

Schmidt: Não, de jeito nenhum! Isso não passa pe­los canais oficiais. Se assim fosse, por que estaríamos agin­do de forma tão discreta?

ADLER: Quando se faz um deal desses, o trabalho de­ve ser recíproco, não acham? Quanto a mim, vou ajudá- los a... digamos... limpar a imundície. Em contrapartida, os senhores, com boa vontade, poderiam me pagar toda a quantia no black...

Schmidt: O nosso acordo é uma coisa especial. Não vai aparecer de jeito nenhum.

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Adler (ávido): Enfim, como é que os senhores vão me pagar? Em cheque ou em dinheiro?

Schmidt (firme em sua posição): A primeira meta­de, em dinheiro; a segunda, em cheque cruzado.

ADLER: Cheque da central de Würgassen?SCHMIDT: Não, não pode ser às claras... O cheque

é de um terceiro...Adler: Não quero que nada apareça e o imposto de

renda fique sabendo.Hansen: O senhor já teve algum problema com as

autoridades?ADLER: Eeeeu?... Nunca! Os senhores sabem quan­

do devem cumprir com seus deveres. Estou sempre limpo com a previdência e com o imposto de renda. A própria agência oficial de empregos sempre manda pessoas para a minha empresa... oficialmente. (Ri.) Só querem é ver a grana! Se pagamos pontualmente, eles nos deixam em paz!

Hansen: E o que acontece quando um dos seus em­pregados sofre um acidente de trabalho? Como é que o senhor se vira? Estou perguntando porque não queremos que procurem um médico ou qualquer coisa assim.

ADLER: Pode deixar. Eu me encarrego disso. Os meus clientes nunca foram incomodados por essas coisas. Elas não aparecem nas estatísticas de acidente. Há pouco tem­po tivemos um acidente na Ruhrchemie. O cliente nem pre­cisou se preocupar... Mas o que pode acontecer na pior das hipóteses? Cair todo mundo morto de repente?

Hansen.- Seria muito ruim se um deles perdesse o equílibrio e caísse dentro do tubo. O infeliz iria parar a uns dez metros de profundidade.

Adler (com desenvoltura): E não se poderia puxá- lo com um cabo ou qualquer coisa do gênero?

HANSEN: Poderíamos tentar, mas seria terrivelmen­te difícil. O tubo é cheio de curvas. Precisaríamos ver se o sujeito não ficou entalado lá... preso pelos ombros.

Adler (tranqüilizando-o): Eles não têm ombros lar­gos. Na verdade são uns pobres-diabos que nem se alimen­tam direito. A gente consegue até ver as costelas deles!

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HANSEN: Vamos torcer para que ninguém perca o equilíbrio. Teoricamente, quando uma pessoa sofre uma forte dose de radiação, os sintomas agudos de contami­nação começam a aparecer em quatro semanas... queda de cabelo, impotência, vômitos, diarréia, prostração... É imprescindível que eles já tenham dado o fora. Quanto aos efeitos a longo prazo, não há como provar, não há mais controle. Mesmo que um deles, anos mais tarde, venha a ter um câncer, já nem se lembrará que trabalhou conosco.

ADLER: Nada disso me intimida. Essas coisas não me dão medo. Não gelam meu sangue. Trabalho é trabalho, e sei que o que acontece dentro dessas usinas não pode vir a público. Eu faço a minha parte, e cada um faça a sua!

HANSEN: No nosso meio costumam dizer que Wür­gassen é uma sucata.

Adler: Eu sei. É porque é muito antiga. Mas... por acaso o senhor é o mesmo Hansen com quem fiz negócio há alguns anos?

Hansen (enigmático): Não vá acreditar que eu seja a pessoa que está a sua frente.

Adler (vendo que me aproximo da mesa): Ah, aí es­tá ele! Senhores, este é Ali. Ele reuniu a equipe e vai acompanhá-la e cuidar de tudo. (Voltando-se para mim): O que esses senhores disserem é lei, compreendeu? Está tudo bem com o pessoal?

EU: Eles continua fazer perguntas. Eles quer saber de tudo, que nem criança. Pergunta e mais pergunta. Eles pen­sa que precisa lutar com dragão... Eles acha que serviço vai ser muito perigoso.

Adler: Pare com isso! Nossas centrais nucleares são muito seguras; na verdade são as mais seguras do mundo. Já disse isso a eles hoje de manhã. Não há o menor risco, todas as normas de segurança são cumpridas.

EU: Certo!Adler: Volte para sua tropa de choque. (Depois que

saio, diz aos encarregados da usina atômica): É evidente que esse aí não sabe de nada. O pessoal da equipe confia minto nele. Basta Ali dizer que boi voa para que todos acre­

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ditem. De mais a mais, ele vai tomar conta do pessoal. Não quero saber de corpo mole. Estão lá para trabalhar direi­to. São como crianças, dá para entender? Querem se sen­tir seguros, por isso é que fazem tantas perguntas!

Hansen: Nós também podemos confiar no tal Ali?Adler (posando novamente de benfeitor e começan­

do uma de suas incríveis histórias): O pobre-diabo! Se os senhores vissem o estado em que o encontrei, há um ano e meio... Sabem o que precisou fazer para ganhar a vida?

SCHIMIDT: Não.ADLER: Foi servir de cobaia humana nesses testes far­

macêuticos. Tomou um monte de injeções e...HANSEN: Lá na Turquia?ADLER: Aqui mesmo, na Alemanha! Não sei muito

bem como essas coisas funcionam. Só sei que já é bastan­te ruim fazerem isso com animais.

Hansen: E fizeram mesmo essas coisas com ele?ADLER: Fizeram! Um dia, ele chegou completamen­

te tonto, cambaleando. Foi o que me chamou a atenção. Resolvi perguntar o que tinha acontecido. O infeliz me con­tou que um médico lhe aplicava injeções em troca de 800 marcos por semana. Decidi cuidar dele e falei que tudo estava acabado a partir daquele momento. Disse que o que fizeram com ele foi uma sujeira, mas que agora havia ter­minado. Ali é um bom sujeito.•

HANSEN: E o que foi que o senhor disse, exatamen­te, para o pessoal da equipe, quando lhe perguntaram so­bre o tipo de trabalho?

Adler (como que lendo um relatório): Que eles vão pa­ra uma usina nuclear; que farão trabalhos de reparação in­dispensáveis para a usina voltar a funcionar; que o serviço deve ser feito o mais rápido possível; que tudo deve ficar em sigilo, especialmente em relação à imprensa; que não devem imaginar que a coisa seja um bicho de sete cabeças... Disse também que tudo foi devidamente planejado; que as cen­trais nucleares alemãs são as mais seguras do mundo... o que é uma verdade, não?... E falei que eles vão receber unifor­mes de segurança e estarão muito bem protegidos.

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SCHMIDT: Com a condição de que desapareçam nos próximos catorze dias!

Adler: Mas claro! Em catorze dias terão partido!SCHMIDT: Levados pelo vento!ADLER: Claro, claro! Não se preocupem. Além do

mais, é uma equipe pequena. Nenhum deles sabe exata­mente do que se trata. Eu sou o único que estou a par de tudo, e é muito bom que seja assim! Já imaginaram se eu tivesse que ficar explicando todo o serviço para umas dez pessoas, por exemplo? Eu desistiria do negócio. Confiem em mim! Nós fazemos de tudo!

“Nós fazemos de tudo” é a máxima de Adler e da maioria de seus comparsas, de todos aqueles que forne­cem mão-de-obra aos trustes das indústrias e da constru­ção civil.

“Nós fazemos de tudo” 1 é a palavra de ordem do ca­pitalismo e a ela deveria acrescentar-se “ ... tudo que dê lucro” . E se até agora o III Reich foi o único a fazer sa­bão de despojos humanos (de prisioneiros assassinados nos campos de concentração; 11,50 marcos era o preço do ca­dáver; e com a gordura e os ossos ainda faziam cola), não é porque essa prática se choque contra os princípios hu­

1 “ Nós fazemos de tudo*' é o slogan publicitário do truste Krupp. Na verdade isso quer dizer: “ Meu objetivo é fornecer ao Estado um número enorme de su­jeitos submissos e às fábricas trabalhadores de todo tipo” . E esses sujeitos sub­missos funcionaram tão bem que, em 1914, provocaram uma guerra e foram dilacerados pelas granadas inglesas, nas quais estavam gravadas as iniciais “KPZ” (Krupp-Patent-Zeitzünder: “detonador patenteado pela Krupp”). Graças à guer­ra, Krupp pôde dobrar sua fortuna. Graças aos soldados ingleses e alemães que tombaram mortos. Para cada soldado alemão que morria, Krupp cobrava 60 marcos de royalties do fabricante de armas britânico Vickers. Quando a Ale­manha foi derrotada, Krupp estava 400 milhões de marcos-ouro mais rico. E ainda antes de 1933 começou a investir — precisamente 4 738 448 marcos — no mais novo especialista em planejamento de guerra: Hitler. Em tudo que des­se lucro, pequeno ou grande, Krupp punha a mão; fosse com a morte de solda­dos, fosse com a vida de milhares de prisioneiros, obrigados a trabalhar para ele, confinados dentro das fábricas em verdadeiras casinhas de cachorro — em condições piores que a de escravos. Nos muros externos das fábricas Krupp ha­via cartazes com a inscrição: “ Eslavos são escravos” (N. do A.).

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manitários, mas porque fazer sabão com despojos huma­nos não dá lucro.

Adler sai do restaurante com Schmidt e Hansen para despachar a “tropa” que está à espera do ônibus.

O problema é que não podemos prosseguir com a en­cenação: arranjar um ônibus e partir para Würgassen. No dia seguinte Adler estaria lá — sem a menor sombra de dúvida — para receber parte de seus “honorários” : cash e black, como ele mesmo diz... Por um momento consi­derei a idéia de provocar-lhe um grande susto: exibir-lhe os resultados do que ele supõe que provocará. Eichmann também nunca chegou a ver as pilhas de cadáveres; “ so­mente” organizava o transporte das pessoas ainda vivas para os campos de extermínio em massa... Em princípio, planejei levar Adler a um dos pequenos cômodos do ho­tel Na Curva, em Würgassen, e apresentar-lhe alguns co­legas turcos “deformados” pela radiação. É claro que to­dos estariam devidamente maquilados — com “pedaços de pele” desprendendo-se do rosto, tufos de cabelos cain­do — e totalmente apáticos, deitados nas camas e no chão.

Porém seria demais. Só falta é uma cena final para que ele não desconfie de que tudo não passou de uma re­presentação teatral e acabe fugindo do país — evidente­mente depois de apagar os vestígios e destruir documen­tos comprometedores.

O melhor mesmo é que todo o negócio desapareça diante de seus olhos tão rapidamente quanto uma cuspi- dela seca ao sol. Assim como o gênio que, para retomar à garrafa, se dissolve em fumaça e num zás-trás é arro- lhado dentro dela.

Logo que Adler, Hansen, Schmidt e Ali se aproximas­sem da “tropa” , “policiais à paisana” deveriam entrar bruscamente em cena, exibindo suas “credenciais” . Uma batida para averiguação de documentos. Dois turcos sai­riam correndo e os outros seriam “encanados” . Tudo num ritmo bem lento, como no teatro, num primeiro ensaio im­provisado. Adler deveria viver essa cena em câmera len­ta, como num pesadelo.

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Mas um imprevisto quase dificultou as coisas. Um amigo meu — diretor de colégio e pastor — deveria re­presentar o papel de um dos policiais e, por precaução, vem equipado com um par de algemas e um revólver de brinquedo. Só que confunde Adler com nosso fotógrafo, Günter Zint, escondido ali por perto, e cumprimenta o pri­meiro. Schmidt rapidamente inventa uma desculpa e con­segue tirar partido da situação. Faz as apresentações:

— Este senhor é do serviço de segurança da usina. Foi destacado para essa missão especial a fim de se certi­ficar de que nada sairá errado.

Adler tece elogios:— Realmente, tudo muito bem organizado.É, tudo muito bom... Mas e agora? Como represen­

tar a cena final? Pergunto a meus amigos turcos se se im­portariam de ser interrogados por policiais de verdade. Al­guns estão sem documento, porém isso contribuiria para dar maior verossimilhança à história se tivesse mesmo que parar na delegacia.

Um de nós telefona para a policia e descreve com exa­tidão o local onde está havendo tráfico de mão-de-obra com a participação de turcos que vivem em situação ile­gal na Alemanha. Pronto! Cinco minutos depois, dois veí­culos de passeio param a nossa frente, seis policiais sal­tam na calçada e caminham em direção ao grupo de tur­cos. Mas avistam o fotógrafo Günter Zint, postado a uns quinze metros de distância e apontando a câmera. Obvia­mente imaginam que estão sob o foco da câmera e supõem— como descubro mais tarde através de informações extra- oficiais na delegacia de Duisburg — que um jornal qual­quer deseja criar um caso com eles demonstrando a de­senvoltura e os métodos pelos quais intimam os estrangeiros após uma simples denúncia. Retornam a seus veículos e partem rapidamente.

Voltamos à estaca zero. E o tempo urge.Adler começa a ficar inquieto, pois o “ônibus da usi­

na” ainda não chegou. Gesine, namorada de Sinan, um dos membros de nossa “tropa” , tem uma idéia brilhante:

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vai até um bar de estudantes, localizado perto da estação ferroviária, e arruma dois novos participantes. Como não dispomos de muito tempo, não podemos contar-lhes toda a história com riqueza de detalhes. Só lhes dizemos que se trata de desmascarar um grande especialista no tráfico de mão-de-obra simulando sua captura. Ambos mostram- se dispostos a cooperar. Mais tarde descobrimos que um deles é conselheiro municipal do Partido Verde.

Da forma mais antiautoritária e amigável, “prendem” nossos amigos turcos. Exatamente o oposto da brutalida­de policial. De acordo com as regras habituais, pegam nos­sos amigos pelo braço como se os conduzissem. Mesmo assim, Adler engole a encenação.

Para tomar as coisas mais reais, um dos “policiais” aplica uma chave de braço em Ayth que “se rebela” . Sem acreditar nos próprios olhos — afinal, vê todo o seu ne­gócio cair por terra —, Adler me pergunta, assustado:

— Mas o que está acontecendo?— Polícia pega eles porque não têm documento —

respondo e saio correndo.Ligeiramente cabisbaixo, olhando para todos os la­

dos, Adler dirige-se a passos acelerados para o carro esta­cionado diante de um ponto de ônibus. Evita correr para não atrair a atenção dos outros e também porque o pudor o impede.

Simplesmente abandona os sócios ali na ma. Schmidt ainda corre atrás dele, exigindo uma explicação:

— O que que houve? Por que todos saíram corren­do? Como foi que isso aconteceu? O senhor mesmo nos disse que não haveria nenhum problema!

Sem diminuir suas passadas largas, Adler responde ofegante:

— Está tudo bem! Telefone para mim sem demora!— E pula para dentro do carro, que parte impetuosamen­te. Schmidt ainda grita:

— Mas temos um trabalho a fazer...

Epílogo(ou: A banalização do crime)

Para que tudo fique na mais perfeita ordem, à noite Schmidt telefona para Adler.

Adler (ligeiramente embaraçado, tentando minimi­zar o incidente): Pois é, que aventura tivemos hoje, não?

Schmidt (censurando-o energicamente): É! Mas o se­nhor pode me dizer o que aconteceu, afinal?

Adler: Não sei. Acho que os rapazes tinham a fi­cha suja. Como é que vou saber?

SCHMIDT: E como o senhor imagina resolver o nos­so caso?

Adler: Ora, eu organizei aquela equipe... Posso muito bem organizar outra...

SCHMIDT: Não, não será mais necessário. Nós mes­mos vamos resolver tudo sozinhos. O senhor sabia muito bem que o serviço devia ser feito imediatamente. Tudo pre­cisa estar pronto até amanhã no fim da tarde. Pensáva­mos estar tratando com um profissional.

Adler (na defensiva): Mas só pegaram dois! Dois emseis!

SCHMIDT (interrompendo-o): Dois, dois... O senhor tem idéia da proporção... dois em seis?

Adler: Tenho...SCHMIDT: Faça o cálculo. Éum terço, não é mesmo?Adler: Sim, é. Mas o que vamos fazer agora?SCHMIDT: O que vamos fazer? Temos o nosso pró­

prio pessoal, ainda bem... Da nossa parte tudo correu às mil maravilhas. Tínhamos o ônibus. Mas o senhor o que fez? Saiu correndo para o carro! E até agora não nos deu nenhuma explicação convincente. E ainda por cima quer saber o que faremos agora? Eu lhe digo... Vamos ter que

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começar tudo de novo. Mas sem o senhor! Até logo! (Ba­te o telefone.)

(Meia hora depois, apresento-me na casa de Adler e já vou levando uma descompostura.)

ADLER: Que raio de gente foi aquela que você me ar­rumou? Viu só o rolo que deu?

EU: Mas eu disse para senhor que aqueles dois não tinha documento. Polícia pegou eles.

Adler (ri, achando a coisa engraçada): É, eu vi.EU: Outros quer dinheiro. Eles não têm culpa. Eles

deixou serviço que tinha para pegar aquele outro, e agora nada.

Adler (com desdém): Mas que caras-de-pau! Diga que o negócio está morto e enterrado. Acabou!

EU: Mas senhor disse que ajudava eles.ADLER: Só depois do serviço feito.EU: A polícia foi em minha casa me procurar. Eles

quer saber de tudo. Eu não estava. E agora eu precisa de­por e...

Adler (interrompendo-me): Obviamente você não pronunciará o meu nome, está entendendo? Não tenho na­da a ver com aquela história, percebe?

Eu (fazendo-me de inocente): Mas que eu vai contar em polícia?

ADLER: Diga, por exemplo, que um tal Müller... ou qualquer outro nome... prometeu um serviço aos rapazes. Daí você foi procurá-los e então...

EU: Mas e se eles pergunta como é Müller? O que eu fala?

(Silêncio).ADLER: Diga que não sabe de nada!EU: Que eu não sabe nada?ADLER: É! Finja que não entende. Ou melhor, aja co­

mo se não soubesse uma palavra de alemão.Eu: Tudo bem. Mas gente não podia fazer coisinha

para eles?Adler: Para os rapazes? Não! Mas para você...

quem sabe? Falaremos disso mais tarde... O meu cliente

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deve ter se borrado de medo quando viu tudo aquilo. De­ve ter cagado na calça. Mas que merda... Bom, se alguém perguntar alguma coisa, diga que foi um tal Müller, ou qualquer outro nome, de Duisburg... Você não sabe onde ele mora, não sabe onde fica seu escritório, não sabe na­da. Ele só pediu que você arranjasse umas pessoas para um servicinho.

Eu*. E eu fala aquelas coisa de radiação?ADLER: Claro que não! Não, não, não, não! (Em se­

guida começa a rir.) Quais foram os rapazes que eles prenderam?

EU: Aqueles dois que mora em porão. Agora policia mandam eles para Turquia.

A d le r (satisfeito, feliz e tranqüilo ao mesmo tem­po): Pobres diabos! Mandados para a Turquia... Mas que merda! Como é que eu podia adivinhar que os policiais estavam circulando pela estação ferroviária?...

Eu: Mas senhor falou para encontrar em estação de trem.

A d le r (repreensivo): Você devia ter sugerido outra coisa... Outro lugar para o encontro...

Sexta-feira, 9 de agosto (o dia seguinte).Adler manda seu novo motorista Abdullah (meu “ir­

mão”) apanhá-lo às dez horas. Como de hábito, percorre os bancos, verificando, com satisfação, os depósitos feitos em sua conta. Depois recolhe sua parte do saque na Remmert. Durante o percurso, revela a Abdullah suas preocupações:

— Os prazos para entrega são muito longos... Você precisa encomendar um Mercedes último tipo quase um ano antes, se quiser receber a tempo.

É, o crescimento a qualquer preço continua sendo a divisa do capitalismo contemporâneo, mesmo que a sua expansão e suas explosões não aparentem ser tão selva­gens como realmente são. “ Quem não avança, recua” é a máxima que exprime a angústia original de todos os se­nhores da guerra, de todos os conquistadores e capitalis­tas, ainda em vigor em nossa época. Diante da conjuntu­ra econômica, Adler se resigna:

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— Vou trocar de Mercedes. Em vez deste 280 SE, vou comprar o 300 SE, último tipo. Mas só no outono. Até lá, este já terá um ano e meio. (Com todos os acessórios e equipamentos, seu carro atual custou 100 mil marcos; o novo será bem mais caro.)

Abdullah (tentando atrair Adler para o assunto que lhe interessa)\ Os dois turcos estão na cadeia.

AdleR: Provavelmente já foram expulsos do país. Eu tenho muita pena deles. Mas, por outro lado, quer saber de uma coisa? Deve ter sido bem melhor para eles. Afi­nal, o que é que conseguiram aqui na Alemanha? Não po­diam nem andar livremente pelas ruas, não é verdade?

Abdullah: Lá isso é l Go clima é bem melhor na Turquia.

ADLER: É verdade! O que eles querem aqui? Moram em porões, vivem com medo da polícia, não têm empre­gos, não conseguem se manter, não têm nada!

Abdullah.* É... não têm emprego...AdleR: E o que os prende aqui?Abdullah: Mas Ali está bem triste...AdleR: Claro. Deve estar se cagando de medo. A gente

devia ter marcado o encontro em outro local, não na esta­ção. Que merda! A polícia está sempre circulando por ali.

Abdullah*. É... esse foi o problema.ADLER: Foi mesmo!Abdullah: O senhor acha que ainda vai receber al­

gum tipo de trabalho daquele pessoal da usina?Adler: Claro! Há muito tempo que trabalho para

eles. Todos os anos...Abdullah: Eles devem pagar uma nota, não?AdleR: Pagam. E sempre nos dão serviço. Não te­

mos problemas com eles. Bem, claro que no momento a coisa está preta. Mas é um trabalho sério. Raramente nos convocam para uma missão um pouco duvidosa. Têm me­do que a coisa transpire e os jornais comecem a publicar que a usina pifou e coisas desse gênero.

Abdullah: É, mas os dois sujeitos ficaram com mui­to medo. (Ri.)

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Adler (rindo também): Com muito medo! Saíram na disparada... cagando na calça... Ah, ah... Normalmen­te, só quem tem caderneta de radiação em ordem pode en­trar numa usina nuclear. É o Estado que determina isso. Mas a direção da usina manda a lei à merda, e o pessoal entra sem caderneta. O que já caracteriza um delito. Por­tanto, deve-se tomar muito cuidado! Eles infringem as leis! Por isso têm tanto medo da polícia... (Ri.)

ABDULLAH: Mas eles pagam bem pelos serviços, não pagam?

Adler: Pagam, pagam bem. Mas é porque violam as leis. A gente, não! A gente só viola as leis pela metade. É por isso que eles pagam bem. E é uma coisa boa para nós. Se as autoridades soubessem o que eles fizeram e o que andam fazendo, botavam as mãos em cima deles ra- pidinho. É uma merda mesmo! A gente está sempre apren­dendo, todos os dias. Você não acha? (Ri.)

Abdullah: Eu também fiquei com medo quando os guardas pegaram os colegas.

ADLER: Eu vi um dos policiais agarrar dois homens de uma vez só. Assim, ó! (Faz o gesto.) Por pouco não me levaram também. Daí eu ia ter que responder a um monte de perguntas cretinas... E um homem na minha po­sição não pode passar por isso. Não quero nada com a po­lícia ou com qualquer outra coisa do gênero.

Abdullah: Lá no nosso país, na Turquia, não tem leis como essa...

ADLER: Eu sei. Lá há muito mais liberdade. Mas aqui... para cada coisinha existe uma lei. Muitas vezes você comete uma infração sem saber. É assim que acontece na Alemanha. E estão sempre atrás da gente, querendo apli­car um castigo severo. Se toda essa nossa história viesse à tona, o diretor geral da usina nuclear iria para a cadeia por um ano e meio, no mínimo. É fogo! Por isso que a gente deve prestar atenção para não ser pego lá dentro. Para continuar com a ficha limpa... Bem, de qualquer mo­do, não me aconteceria nada. Se houvesse algum delito, o pessoal da usina é que o teria cometido. Foram eles que

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me pediram para arrumar seis homens para um serviço de reparo. Eu só arrumei os caras, mas nem quis saber o que iam fazer com eles. Se iam deixar os fulanos entrar na usina sem caderneta ou qualquer coisa do gênero, isso era da conta deles. Não é verdade?

AbdullaH: Não entendo nada dessas coisas.ADLER: Deixe para lá. De qualquer forma, aprende­

mos uma lição. Na próxima vez, nada de encontros na es­tação de trem. Pode ter certeza. Merda!

Toda essa encenação foi conduzida do começo ao fim como um pequeno “acidente postulado". Mas talvez na vida real estejam acontecendo “missões" desse tipo em me­nor ou maior proporção. Se nossa encenação contribuir para reforçar a vigilância da opinião pública e dos meios de comunicação, chamando a atenção para esses mundos secretos, valeu a pena o esforço. Adler, enquanto tal, não está em jogo. Com toda a sua energia e a sua imaginação criminosas, não passa de um medíocre. Nada seria mais falso que pintá-lo como um demônio. Ele é um dos mi­lhares e milhares de comparsas e beneficiários de um sis­tema baseado na exploração sem limites e no menosprezo pelo ser humano.

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Ali Sinirlioglu é um dos milhares de imigrantes turcos que vivem na República Federal da Alemanha. Para sobreviver, sujeita-se aos mais duros trabalhos. Hostilizado, sofre toda espécie de discri­minação. Mas, por trás desse operário marginalizado, esconde-se Günter Wallraff, jornalista alemão de fama internacional. Disfar­çado de turco, Wallraff passou dois anos registrando suas expe­riências e recolhendo depoimentos para a elaboração de Cabeça de turco, um relato assombroso sobre o cotidiano das minorias ét­nicas na Alemanha. Ousado, polêmico, corajoso, recordista de ven­da, Cabeça de turco é uma reportagem literária que põe a nu “ a frieza glacial de uma sociedade que se julga bastante sensata, so­berana, incontestável e imparcial” .

©E O I T O R A

QTOBO

Günter Wallraff nasceu em 1942, filho de um funcionário público e de uma mulher proveniente da alta burguesia. Em 1963 recu­sou-se a prestar serviço militar e foi convocado ao serviço psi­quiátrico das Forças Armadas Federais. Datam dessa época suas primeiras reportagens. Após vinte anos de intensa atua­ção na área jornalística — e com várias matérias editadas em li­vros —, Wallraff ultrapassou o status de escritor bem-sucedido e tornou-se personagem da his­tória contemporânea alemã. Ele já se disfarçou em porteiro de uma grande organização finan­ceira sob suspeita de práticas ilegais, camuflou-se de repórter para apurar denúncias de mani­pulação de informações e inves­tigou a situação dos imigrantes no papel de um operário turco. Uma versatilidade que não ocul­ta o ideal maior: desvendar as­pectos pouco divulgados da rea­lidade social.

Sucesso absoluto — mais de dois milhões de exemplares ven­didos na República Federal da Alemanha —, Cabeça de turco é a narrativa de uma incursão nos sórdidos porões de uma ci­vilização moderna.

O jornalista Günter Wallraff pre­tendia escrever sobre a situação de milhões de estrangeiros — em especial turcos, iugoslavos, gre­gos, espanhóis — que vivem na Alemanha. Então, assumiu a apa­rência de um turco, provavelmen­te o ser humano que ocupa o lu­gar mais baixo na escala de va­lores da sociedade alemã con­temporânea. Após intenso treina­mento para aprender a falar ale­mão como um turco, Wallraff completou seu disfarce com len­tes de contato escuras, peruca de cabelos pretos, bigode, docu­mentos falsos, e saiu a campo.

O resultado dessa investiga­ção é Cabeça de turco, um do­cumento inesquecível que de­monstra até que ponto podem chegar a incompreensão, a dis­tância e o desprezo de um ho­mem pelo seu semelhante.