a arte como intermediador terapêutico

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA SHEILA DE MARCHI A arte como intermediador terapêutico para o desenvolvimento humano São Paulo 2012

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A Arte Como Intermediador Terapêutico.

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    SHEILA DE MARCHI

    A arte como intermediador teraputico para o

    desenvolvimento humano

    So Paulo 2012

  • 1

    SHEILA DE MARCHI

    A arte como intermediador teraputico para o

    desenvolvimento humano (Verso corrigida)

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para obteno de ttulo de Mestre em Psicologia Clnica Projeto apoiado pela Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo. Processo n 2009/07003-0

    rea de concentrao: Psicologia Clnica Orientador: Prof. Dr. Andrs Eduardo Aguirre Antnez

    So Paulo 2012

  • 2

    AUTORIZO REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicao Biblioteca Dante Moreira Leite

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    De Marchi, Sheila.

    A arte como intermediador teraputico para o desenvolvimento humano / Sheila De Marchi; orientador Andrs Eduardo Aguirre Antnez. -- So Paulo, 2012.

    100 f. Dissertao (Mestrado Programa de Ps-graduao em

    Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Arte 2. Fenomenologia 3. Psicanlise 4. Hermenutica I.

    Ttulo.

    NX152

  • 3

    Nome: De Marchi, Sheila Ttulo: A arte como intermediador teraputico para o desenvolvimento humano

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para a obteno de ttulo de Mestre em Psicologia Clnica.

    Aprovado em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr. ___________________________ Instituio:_____________________

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________

    Prof. Dr. ___________________________ Instituio:_____________________

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________

    Prof. Dr. ___________________________ Instituio:_____________________

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________

    Prof. Dr. ___________________________ Instituio:_____________________

    Julgamento: ________________________ Assinatura: ____________________

  • 4

    Aos meus pais, sempre. minha irm, que tanto amo.

  • 5

    AGRADECIMENTOS

    Primeiramente gostaria de agradecer minha amiga e companheira de jornada,

    Fernanda de Paola, que esteve ao meu lado ao desbravarmos um caminho ainda

    desconhecido.

    A toda a equipe do Caps-Unifesp, que acreditou neste projeto, em especial

    Dra. Wilma Szarf Szwarc, coordenadora deste servio, que possibilitou que ele

    acontecesse.

    Ao MAM, por acreditar na importncia da arte e possibilitar que ela faa parte

    da vida das pessoas.

    Meu abrao carinhoso e gratido a Daina Leyton, Karina Bacci, Leya Mira

    Brander e Renata Madureira por tornar a possibilidade de conhecer tcnicas

    artsticas em realidade, principalmente a pessoas cujas realidades muitas vezes so

    dificilmente compreendidas, atravs de um trabalho profissional, cuidadoso e

    carinhoso.

    Ao Prof. Dr. Andrs Eduardo Aguirre Antnez por ter compreendido minha

    paixo pelo ser humano, por ter compartilhado seu conhecimento comigo, pela

    ateno e apoio durante o processo de definio e orientao deste trabalho.

    Ao Instituto de Psicologia da USP, pela oportunidade de realizao do curso de

    mestrado.

    Fundao de Amparo Pesquisa do Estado de So Paulo, pela concesso da

    bolsa de mestrado e pelo apoio financeiro para a realizao desta pesquisa.

    Ao Prof. Dr. Cristiano Roque Antunes Barreira, Prof. Dr. Kleber Duarte

    Barreto e Prof. Jos Atlio Bombana por suas contribuies e conhecimentos que

    me ajudaram em minha investigao.

  • 6

    Minha profunda gratido a Daniela Batalha Trettel por sua pacincia, leitura e,

    principalmente, amizade.

    Ao Rodrigo Luiz Reganhan, que, ao meu lado, me trouxe conforto e apoiou

    este trabalho.

    Agradeo principalmente aos pacientes que participaram desta jornada comigo.

    Sem vocs, nada disso seria possvel.

  • 7

    RESUMO

    DE MARCHI, S. A arte como intermediador teraputico para o desenvolvimento humano. 2011. 85 f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012. Este estudo trata do uso da arte como procedimento intermedirio para o acompanhamento teraputico de pacientes que frequentam um Centro de Ateno Psicossocial-. Para esta investigao focalizamos a experincia vivenciada com pacientes psiquitricos em um curso intitulado Foto e Imagem, ministrado pelo Museu de Arte Moderna de So Paulo MAM , durante um ano e nove meses. Utilizamos como mtodo de compreenso dos resultados clnicos observados atravs de anlise fenomenolgica a articulao com conceitos clnicos de Donald Winnicott e hermenuticos de Gilberto Safra. Observaram-se mudanas comportamentais e psquicas nos pacientes, tais como maior interao interpessoal naqueles distantes dos outros e com certa apatia; maior expresso verbal; retorno aos estudos e trabalho aps anos de afastamento; melhora no relacionamento familiar, segundo os pais; aumento do interesse por atividades sociais. A aproximao das potencialidades de cada um dos participantes do curso foi possvel a partir do reconhecimento de seu idioma pessoal e do sentido de sua existncia a partir das produes fotogrficas e artsticas realizadas. Esta perspectiva de trabalho teraputico trata de um reposicionamento da clnica psicolgica como elemento tico-ontolgico, que possibilita dupla profissional-paciente se sentirem enraizados na experincia humana. A arte permite ao indivduo expressar-se, sem haver cobranas e expectativas; vista como um meio de comunicao entre os indivduos e para si mesmo. Atravs da arte pode-se auxiliar o indivduo a lidar com a tenso ao relacionar a realidade interna externa. O contato com a arte foi compreendida como uma experincia que pode ajudar o indivduo a resgatar recursos adormecidos em seu Self, atravs do acompanhamento cuidadoso e atento de psiclogas, com a incluso da famlia, no tratamento interdisciplinar em sade mental.

    Palavras-chave: Arte, fenomenologia, psicanlise, hermenutica.

  • 8

    ABSTRACT

    DE MARCHI, S. Art as an intermediary therapy for human development. 2011. 85 f. Dissertao (Mestrado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2012. This work deals with the use of art as an intermediate procedure for therapeutic monitoring of patients attending a Psychosocial Care Center-Caps. For this research we focus on their experience with psychiatric patients in a course titled Photo and Imaging, taught by the Museum of Modern Art of So Paulo MAM , for one year and nine months. Used as a method of understanding of clinical outcomes through phenomenological analysis, coordination with clinical concepts of Donald Winnicott and hermeneutics of Gilberto Safra. Observed behavioral and psychological changes in patients such as increased interpersonal interaction in those distant from others, and with apathy, increased verbal expression; return to studies or work after years of absence; improvement in family relationships, according to the parents; increased interest as social activities. The approximation of the potential of each of the participants of the course was made possible through the recognition of their personal language and sense of personal existence, from photographic and artistic productions performed. This perspective of therapeutic work is a repositioning of clinical psychology as an ethical-ontological allowing dual professional-patient feel rooted in human experience. Art allows the individual to express themselves, with no demands and expectations, is seen as a means of communication between individuals and for himself. Through art we can help the individual to cope with the stress by relating internal to external reality. The experience of art was understood as an experience that can help the individual recover resources dormant in your Self, through careful monitoring and attention of psychologists, with the inclusion of family in interdisciplinary mental health treatment. Keywords: Art, phenomenology, psychoanalysis, hermeneutic.

  • 9

    SUMRIO

    1. INTRODUO E JUSTIFICATIVA 10

    1.1 OBJETIVO 19

    2. PROGRAMA IGUAL-DIFERENTE 20

    3. REVISO DE LITERATURA 22

    4. FENOMENOLOGIA 26

    5. PSICANLISE 34

    6. HERMENUTICA 39

    7. MATERIAL E MTODO 43

    8. RESULTADOS DIRIO DE CAMPO 48

    9. DISCUSSO 73

    10. CONCLUSO 76

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 81

    ANEXOS 84

  • 10

    1. INTRODUO E JUSTIFICATIVA

    O presente trabalho visa discutir os benefcios do contato de pacientes diante

    de um curso de arte como um procedimento teraputico e auxiliador no

    acompanhamento a pacientes tratados em Centro de Ateno Psicossocial

    Caps.

    O interesse por este tema surgiu a partir da experincia obtida em curso de

    especializao em Psicologia da Sade, no Departamento de Psiquiatria da

    Universidade Federal de So Paulo, quando apresentado um projeto assistencial

    ao Centro de Ateno Psicossocial desta instituio (Caps-Unifesp)1

    Um projeto foi elaborado e consistiu em oferecer aos pacientes uma atividade

    diferente das oferecidas pelo servio na tentativa de ampliar suas possibilidades

    de desenvolvimento pessoal.

    .

    Os pacientes, usurios deste dispositivo para tratamento psiquitrico, foram

    convidados a frequentar o Museu de Arte Moderna (MAM) sendo acompanhados

    por duas psiclogas. Os pacientes que participaram apresentavam melhora de seu

    quadro psicopatolgico no momento da convocao, mas ainda apresentavam

    falta de iniciativa e dificuldade na sua reinsero social sem melhora em sua

    qualidade de vida.

    Tendo em vista que o dispositivo Caps prope a reinsero social e que

    estes pacientes apresentam, em grande parte, dificuldade em iniciar uma

    atividade externa a este ambiente de tratamento e mant-la, pois a vinculao

    com um novo espao exige maior cuidado e suporte, pensou-se no 1 O Caps-Unifesp o Centro de Ateno Psicossocial vinculado Universidade Federal de So Paulo, onde se encontram pacientes psiquitricos em tratamento interdisciplinar ambulatorial e intensivo. Conta em sua equipe profissional com mdicos psiquiatras, psiclogos, terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, tcnicos de enfermagem, cozinheira e secretria.

  • 11

    acompanhamento semanal dos pacientes participantes por psiclogas

    idealizadoras deste projeto assistencial. Com isso, pensou-se na criao de maior

    possibilidade de serem trabalhadas as dificuldades e os anseios que os pacientes

    costumam apresentar quando em contato com algo incomum em seu cotidiano, a

    arte.

    Este acompanhamento tambm foi feito mensalmente por uma terapeuta

    ocupacional do Caps, juntamente com psiclogas, no primeiro ano do projeto, j

    que se tratava de um projeto piloto e nos auxiliava nas discusses.

    Juntamente com o Museu de Arte Moderna (MAM) da cidade de So Paulo

    foi possvel oferecer uma atividade com arte para estes pacientes, pelo projeto

    Igual-Diferente, o qual recebe subsdios de patrocinadores.

    Tal programa disponibiliza cursos gratuitos dentro do ateli, existente no

    complexo do museu, relacionados arte para a populao em geral e a pacientes

    de instituies de sade, especialmente sade mental, da cidade de So Paulo.

    Estes cursos so ministrados por artistas plsticos e fotgrafos profissionais

    contratados pelo museu.

    O curso escolhido foi o denominado FOTO e IMAGEM, devido ao tema,

    ao dia e horrio disponvel pela maioria dos pacientes do Caps-Unifesp e para as

    psiclogas que os acompanharam. O curso anual e tem durao de oito meses

    (maro a novembro, com frias em julho), sendo uma aula semanal de duas

    horas.

    Os profissionais de sade tambm participaram como alunos do curso,

    realizando as mesmas atividades, os mesmos direitos e deveres que os pacientes.

    Em outras palavras, no se estabeleceu uma diferena entre quem trata e quem

  • 12

    tratado, j que ali no era um espao para tratamento, e sim para

    aprendizagem e abertura para o conhecimento ampliado pela relao com a arte.

    Neste curso so apresentadas tcnicas de fotografia e de artes plsticas. As

    atividades so realizadas dentro do prprio ateli ou externamente, no Parque do

    Ibirapuera, onde est inserido o MAM, de acordo com a proposta oferecida no

    dia.

    No decorrer do tempo, este curso mostrou-se interessante para estes pacientes

    no s no mbito da aprendizagem de uma atividade pela qual muitos se

    interessavam, mas tambm como treino para uma autonomia pessoal maior, para

    as possveis elaboraes de questes psicodinmicas atravs da arte e para uma

    mais adequada reinsero social.

    A preocupao com as questes acima se fez importante, pois elas foram

    observadas cotidianamente no local de tratamento durante o curso de

    especializao pelas profissionais como sendo pontos a serem investigados com

    os pacientes que estavam em tratamento psiquitrico, principalmente, crnico.

    Ou seja, uma atividade extraCaps, num espao fsico diferenciado, com pessoas

    que no os tratariam enquanto pacientes, mostrou-se bastante importante como

    coadjuvante no tratamento interdisciplinar oferecido pelo Caps-Unifesp, pois,

    mesmo este no sendo o foco do curso, verificou-se diferenas comportamentais

    em pacientes dentro do espao fsico do Caps-Unifesp, que acreditamos serem

    em decorrncia deste trabalho. No convvio com os pacientes observamos

    mudanas estas como: maiores interaes entre pacientes, que se apresentavam

    distantes dos outros e at com certa apatia; pacientes que pouco se

    expressavam verbalmente comearam a expressar opinies mesmo estas no

    sendo de consenso geral; retornaram aos estudos e trabalhos depois de anos de

  • 13

    afastamento; melhoraram o relacionamento familiar descrito pelos pais; houve

    aumento do interesse por atividades sociais, entre outras situaes que no eram

    observadas anteriormente.

    A escolha do local e do meio de comunicao a arte ocorreu pelo fato

    de as idealizadoras do projeto acreditarem que a arte poderia ser um meio por

    onde questes do mbito psicolgico os mais primitivos pudessem ser

    examinados. Atravs da arte, pode-se investigar questes sensoriais, como as

    descritas por Safra (2005) organizao subjetiva do tempo, do espao, da

    corporeidade, sonoridade ajudando o indivduo a constituir o seu self2

    Para a constituio do self do indivduo necessita-se muito do outro, de um

    ambiente suficientemente bom, do olhar, da recepo ao mundo, das atitudes do

    outro, para que ele consiga se diferenciar, tendo em vista que desde sempre o

    ser humano com o Outro

    .

    Constituio esta que, em decorrncia das patologias instauradas nestes pacientes

    (psicoses e neuroses graves), sofreu prejuzos importantes. Alm disso, pensa-se

    que a prpria experincia artstica, pura e simples, por si s, pode facilitar uma

    experincia constitutiva.

    3

    Tendo isto em vista, o ambiente em que ocorreu o curso, as professoras, o

    acompanhamento psicolgico aos pacientes at o MAM, mostrou-se um espao

    . Se o rosto do Outro no pode ser encontrado como

    acolhida ao mundo humano, a condio originria aparece como sofrimento

    infinito, agonia do anseio pelo Outro (SAFRA, 2004, p.73).

    2 O eu conforme compreendido por D. W. Winnicott (1896-1971). 3 Safra (2004) refere-se ao Outro em letra maiscula como sendo o outro Sobrnost (terminologia que ser discutida mais a frente), que implica ao mesmo tempo o contemporneo, os ascendentes, os descendentes, a coisa, a Natureza, o mistrio.

  • 14

    potencial4

    Ao observar essas possibilidades, as acompanhantes incentivaram cada

    pessoa a fazer o percurso at o local da aula de modo independente, sem

    necessidade de se locomover at o ponto de encontro (Caps-Unifesp) ou ir

    diretamente para sua residncia. O desenrolar desta mudana foi sendo observada

    de maneira cuidadosa; quando o aluno no atingia a proposta da aula e ele j

    tinha subsdios para tal, isto era apontado pelas professoras de maneira sensvel e

    no permissiva, sendo paciente psiquitrico ou no; havia regras durante as

    visitas frequentes s exposies realizadas no museu, que so estabelecidas pelas

    professoras e eram prontamente respeitadas.

    para que o indivduo pudesse vivenciar este contato com o outro e ser

    correspondido por ele, ao passo que as aulas foram realizadas em projetos

    grupais e individuais. As idas do Caps-Unifesp ao MAM foram acompanhadas

    por conversas entre as pessoas. No MAM, s vezes o paciente buscava

    sustentao emocional nas psiclogas, mas a produo de cada aluno era

    demonstrada, discutida com todos, elogiada ou se apontavam pontos para prestar

    mais ateno e melhorar.

    Isso foi importante tambm para auxiliar no senso de autonomia e

    responsabilidade. Winnicott (2000, p.326) afirma que a me suficientemente boa

    parte de uma adaptao quase total s necessidades de seu beb, e com o passar

    do tempo adapta-se cada vez menos inteiramente, de acordo com a capacidade

    crescente do beb de lidar com suas falhas. De modo anlogo, as psiclogas

    observavam despertares de potencialidades nos pacientes. Estes eram

    4 Conceito desenvolvido por Winnicott (1975) referindo-se a um lugar diferente do mundo interno e da realidade externa, mas que ocorre entre eles.

  • 15

    estimulados e paulatinamente dependiam menos delas para irem ao MAM,

    exercendo assim mais autonomia.

    A arte, neste contexto, pode servir como mediadora na comunicao com o

    outro, ao passo que, frequentemente, nos foram apresentadas e discutidas obras

    de artistas renomados, sua histria, a poca em que viveram, sempre

    relacionando com a temtica da aula, com as tcnicas aprendidas, com a

    atualidade, com a vida. E, a partir da, foram realizadas nossas produes

    artsticas pela fotografia, tendo incentivo a prestar ateno na parte tcnica, mas

    tambm em como transmitir a ideia que queramos expor por meio da fotografia.

    Atravs da arte, o indivduo pode expressar sua criatividade que lhe

    inerente e, com ela, buscar o sentido de sua prpria existncia. Tem a

    oportunidade de comunicar para o outro e para si suas emoes, seus

    sentimentos; e a possibilidade de encontrar mais uma via de simbolizao. Esta

    ltima me parece especialmente importante, tendo em vista que

    uma das tarefas fundamentais do ser humano alcanar o registro simblico de suas experincias, pois o registro simblico d ao homem a possibilidade de colocar sob o domnio do seu gesto os aspectos paradoxais de seu ser. (...) Simbolizar importante no s para que significados se estabeleam, mas principalmente por ser um processo de contnuas transformaes de sentido em direo ao porvir. Importante ressaltar que o que estou chamando de registro simblico no o simples representar, mas colocar as questes fundamentais da existncia em devir, por meio da ao criativa. (SAFRA, 2004, p.63)

    A criatividade possibilita acontecimentos, gera eventos, cria o indito no

    campo existencial. Safra (2006a, p.70) afirma que

    o ato de criar paradoxal, pois no momento em que o indivduo cria um evento no mundo a sua criao mesma o desestabiliza, pois reposiciona o lugar em que ele se encontra anteriormente. Isto significa que para o ser humano impossvel criar um evento sem ser atingido, ao mesmo tempo, por este mesmo evento. Ao criar, o homem pe em questo a si mesmo. (...) A questo da criatividade se relaciona com o tema da liberdade, faceta que coloca o ser humano diante da responsabilidade do escolher, do decidir, do destinar-se.

  • 16

    A criatividade inerente ao ser humano, tambm pode mostrar-se importante

    quando dizemos que o fato de haver uma abertura para a compreenso do sentido

    das coisas, independentemente de questes psquicas e intelectuais, auxilia o ser

    humano a responder a estes sentidos, a se apropriar de um saber. Segundo

    Safra (2006a), este saber no fruto da lgica ou da aprendizagem, mas surge da

    prpria experincia de estar vivo, da experincia de beleza, da experincia de

    sofrimento.

    Podemos reportar a fotografia como smbolo em sua funo representativa,

    conforme descrito por Safra (op. cit., p.40), ou seja, o smbolo como sinal que

    faz referncia a um objeto ausente. Algo que pode ocorrer por meio da palavra

    ou pela imagem e auxilia na integrao do tempo e do espao.

    A psicanlise tambm se fundamenta por este conceito, pois ela preconiza

    que a partir do momento em que o indivduo pode suportar a ausncia do outro,

    suportar a no satisfao do desejo, que haveria o acesso representao.

    (Safra, op. cit., p.41).

    Atravs do smbolo representativo, pode-se compreender o indivduo em seu

    registro biogrfico e na sua dinmica pulsional. Opera-se pela lgica racional, o

    que pode nos auxiliar a dialogar e a ajud-lo a se situar frente s significaes

    da sua vida psquica e acompanh-lo em seu processo de ressignificao de sua

    histria. (Safra, op. cit., p.56).

    Durante as aulas, ocorriam brincadeiras feitas pelos participantes durante o

    seu fazer artstico, ao fotografar, desenhar, colar, pintar... Isso mostra quo

    prazerosas e significativas so estas atividades, deixando a imaginao correr

    solta, resultando em pingos de gua que se transformam em astronaves,

  • 17

    copas de rvores que se parecem com brcolis, as paredes que, literalmente,

    tm ouvidos, entre tantas outras coisas.

    Neste momento, pensa-se o quanto o indivduo est lidando com as suas

    iluses, inerentes ao ser humano e que nenhum indivduo jamais a resolve.

    (WINNICOTT, 2000). A iluso se encontra em um estado intermedirio entre a

    incapacidade do beb de reconhecer e aceitar a realidade, e sua crescente

    capacidade em faz-lo (WINNICOTT, op. cit., p.328), ou seja, est localizada

    na base dos primrdios da experincia do ser humano e que inerente arte,

    religio, imaginao e trabalho cientfico criativo na vida adulta.

    Com isso, reflete-se na importncia da arte como um intermediador capaz de

    atingir aspectos do ser humano que ele invariavelmente se depara e que podem

    lhe trazer um reconhecimento do sofrimento. Para Winnicott (op. cit., p.329), a

    aceitao da realidade um processo que realizado pelo ser humano e que

    (...) jamais se completa, que nenhum ser humano est livre da tenso de relacionar a realidade interna realidade externa, e que o alvio para esta tenso proporcionado pela rea intermediria de experincias, a qual no submetida a questionamentos (arte, religio, etc.).

    Pensa-se ser muito difcil tentar compreender o psiquismo humano, seu

    desenvolvimento, as questes subjacentes, sem contextualizarmos onde e em que

    poca o indivduo em questo est inserido, j que ele afetado continuamente

    pelo mundo, por sua histria, cultura, famlia.

    Atualmente, talvez alguns seres humanos encontrem-se dispersos de si

    mesmo, tentando objetivar o subjetivo, coisificar experincias, se

    fragmentando. Isto facilita a promoo do sofrimento em decorrncia da falta da

    constituio de si mesmo e do psquico. Faz-se de suma importncia poder

  • 18

    auxiliar o ser humano a construir seu self, a poder reter e suportar sensaes,

    sentimentos e percepes dentro de si.

    Para Safra (2004), a presena do outro fundamental para o ser humano, pois

    o recepciona no mundo e lhe oferta o cuidado que lhe possibilita o

    estabelecimento do self, assim introduz a concepo de Sobrnost. Esta uma

    noo do pensamento russo que se refere ideia de unidade, conciliar,

    comunitrio; e sua concepo pensada em uma percepo ontolgica, ou seja,

    est no cerne das estruturas a priori que definem as possibilidades realizadas em

    cada existncia humana (nota de rodap p.42), ou seja, cada ser humano a

    singularizao da vida de muitos. Em suas palavras (ibid, p.43-44)

    Compreender o ser humano como a singularizao da vida de muitos implica em dizer que cada ser humano a singularizao da vida de seus ancestrais e o pressentimento daqueles que viro. ... o sentido de si um fenmeno ontolgico comunitrio, isto , acontece em meio comunidade e como comunidade. Evento transgeracional, vindo da histria em direo do futuro. A verdade de si mesmo acontece e se revela somente pelo reflexo do rosto do outro. Em nossa maneira habitual de pensar, o ser constitudo antes da comunidade, Sobrnost assinala-nos que o ser comunidade!... Ele a apario dos ancestrais e clareira do futuro, ele nico e mltiplo.

    Ao contemplar a singularidade do ser humano, por meio da arte pode-se

    buscar, valorizar, olhar esta singularidade, o seu eu, sem necessariamente

    nome-lo, possibilitando assim uma diminuio do que Safra (2006) denominou

    de agonia do totalmente pensado5

    .

    Neste trabalho, o mtodo utilizado para compreender o que se revela nessa

    experincia clnica o fenomenolgico. Deixando-o em suspenso para analisar o

    5 Referncia de seus analisandos frente ao mundo contemporneo, onde tudo excessivamente nomeado e racionalizado, sem que seja levada em conta a dimenso do ser humano que est para alm de qualquer possibilidade de conhecimento e para alm de qualquer tentativa de apreenso da experincia humana, por excessiva nomeao (p.20).

  • 19

    Dirio de Campo a partir dos conceitos de Winnicott e Safra, cujas experincias

    clnicas so acompanhadas do conceito de empatia de Edith Stein.

    No campo hermenutico, a partir do desenvolvimento de Safra, procurar-se-

    refletir essas experincias luz do idioma pessoal de cada paciente,

    compreendidos em seu modo de ser, a partir da semntica de seu estilo pessoal e

    singular que busca sentido para a existncia humana.

    Contribuies da fenomenologia so dadas por Bello (2004), que tambm

    descreve a unidade do ser humano em sua dimenso corprea, dimenso psquica

    e dimenso espiritual. Ou seja, ao observar, analisar, perceber o ser humano,

    imprescindvel olh-lo em toda a sua magnitude e complexidade para poder

    apreend-lo da maneira mais fidedigna possvel.

    Este projeto foi submetido ao comit de tica da Universidade de So Paulo e

    aprovado em 26 de agosto de 2009, pelo Registro CEPH N 2009.033, onde a

    pesquisa clnica-terica est sendo realizada.

    1.1 Objetivo

    O objetivo do estudo refletir as experincias vividas no curso de arte

    intitulado FOTO e IMAGEM como intermediador teraputico em um

    acompanhamento psicolgico para pacientes psiquitricos a partir do referencial

    fenomenolgico, hermenutico e psicanaltico.

  • 20

    2. PROGRAMA IGUAL-DIFERENTE

    O Programa Igual-Diferente visa estimular e orientar a produo e a

    apreciao artstica para diversos pblicos. Sua misso promover o acesso a

    espaos culturais e s atividades neles realizadas, trabalhando a diferena para

    multiplicar as formas de conexo entre vrias linguagens. As atividades so

    personalizadas e elaboradas de acordo com a demanda especfica de cada grupo,

    a fim de proporcionar oportunidades para cada participante desenvolver o seu

    potencial criativo.

    Por meio de parcerias com instituies de sade, educao especial e projetos

    sociais, o Programa Igual-Diferente promove cursos regulares, oficinas e visitas a

    exposies. Pessoas com ou sem necessidades especiais, alunos com experincia

    ou iniciantes compem os grupos de diversas atividades.

    Dentre os inmeros cursos que a instituio promove, optamos pela descrio

    apresentada no curso de fotografia que est em questo no estudo. Este curso

    desenvolvido para iniciantes, com o intuito de possibilitar entrar em contato com

    o universo da fotografia, promovendo a construo de um repertrio artstico

    atravs da fotografia. O objetivo o desenvolvimento de um repertrio artstico

    por meio de produes e apreciaes de imagens, realizadas em aulas tericas e

    prticas (as aulas tericas so alternadas com sadas fotogrficas, quando o aluno

    sai com a cmera para o Parque do Ibirapuera, para o museu onde est havendo

    exposies, para salas onde sero realizadas as fotografias e captura as imagens),

    nas quais os participantes trabalham os procedimentos bsicos da fotografia e as

    modalidades: desenho, pintura, xilogravura e colagem. Tem como pblico-alvo

  • 21

    usurios de servios de sade mental e o pblico em geral interessado em artes.

    (informao pessoal6

    ).

    6 LEYTON, D. Comunicao recebida por e-mail em 01 out. 2009. Daina Leyton, coordenadora do Programa Igual-Diferente.

  • 22

    3. REVISO DE LITERATURA

    Foi realizada uma breve pesquisa em reviso de literatura, trabalhos atuais

    (de 1992 a 2010) que se refiram ao tema que est sendo proposto neste trabalho.

    Primeiramente, tal pesquisa ocorreu na base de dados Lilacs, Scielo e Cochrane,

    buscando pelas palavras arte, Caps e tratamento. Em decorrncia da dificuldade

    em obter resultado esperado quando se buscava pelas trs palavras

    simultaneamente, optou-se por combin-las da seguinte forma: arte e Caps, arte e

    tratamento e Caps e tratamento. Outros fatores de seleo da escolha dos

    trabalhos foram realizados com a populao adulta, pois a pesquisa se refere a

    uma populao psiquitrica em idade adulta, e por terem sido publicados nos

    ltimos oito anos. Foram encontrados no total 181 trabalhos publicados, sendo

    47, 3 e 131 em, Scielo, Cochrane e Lilacs, respectivamente. No entanto, apenas

    trs deles se aproximaram ao objetivo proposto por esta pesquisa.

    Posteriormente foi realizada uma pesquisa literria que estivesse em

    concordncia com o tema e a teoria utilizadas neste trabalho, obtendo uma

    dissertao de mestrado e uma tese de doutorado.

    Tavares (2003), em O papel da arte nos centros de ateno psicossocial-

    -Caps, discorre sobre a abordagem artstica nos cuidados desenvolvidos nos

    CAPS. Ele afirma que os dados obtidos atravs de uma pesquisa exploratria de

    campo de entrevistas com profissionais dos Caps indicam que atividades de base

    artstica so utilizadas visando interao positiva destes profissionais com os

    pacientes na reabilitao social dos pacientes. Com isso, conclui que os CAPS se

    utilizam da potencialidade criativa dos profissionais e usurios, sendo a arte

    tomada como uma estratgia do cuidar.

  • 23

    Na perspectiva social, Martins, Barrezzi & Ferreira (2009) descrevem, em A

    Insero Social de Portadores de Transtornos Mentais Atravs da Arte, uma

    experincia emprica de pacientes de um ambulatrio de sade mental na cidade

    de Bauru (SP), na qual os grupos teraputicos se utilizam de recursos artsticos

    diversificados, como msica, desenho, pintura, literatura, conscincia corporal e

    teatro. Atravs disso, corroboram com a ideia de que tratamentos alternativos

    buscam o sentido de valores humanos, possibilitando manifestaes de valores e

    potencialidades nos pacientes, promovendo insero social, cidadania e melhora

    na qualidade de vida, j que tm a possibilidade de expressar seus sentimentos e

    suas dificuldades de autoconhecimento e aumento da autoestima.

    Castro (1992) utiliza em seu trabalho a discusso emprica de uma forma de

    arte, a dana, como possibilidade de ser um artifcio de tratamento em Caps. Na

    populao estudada de um Caps na cidade de So Paulo (de 1989 a 1991),

    observou-se que, atravs da dana, os pacientes se beneficiam da vivncia do

    corpo inteiro numa perspectiva de autoconhecimento e expresso, desencadeando

    disposio para o ldico, para a comunicao com o outro e para o conhecimento

    de si.

    Em uma dissertao de mestrado intitulada A fotografia como instrumento

    de interveno clnica junto a pacientes psicticos, Andrade (2010) investigou,

    por meio de dois casos clnicos (pacientes esquizofrnicos em regime de

    internao), algumas das potencialidades do uso da fotografia como instrumento

    de interveno clnica. Utilizou como referncia terica as contribuies de

    D.W.Winnicott, no que diz respeito aos conceitos de espao potencial e funo

    especular, sendo o ato fotogrfico um procedimento interventivo-interpretativo,

    explorando suas facetas especular, apresentativo e icnica. Demonstrou que tal

  • 24

    procedimento teve importante repercusso sobre a rea do brincar criativo,

    imagem do corpo e o campo existencial do paciente.

    Tambm utilizando-se do recurso fotogrfico, mas juntamente com cartas,

    Mamede (2002), em sua tese de Doutorado, intitulada Cartas e retratos: uma

    clnica em direo tica, desenvolve uma discusso a partir das complexas

    dificuldades encontradas no trabalho enquanto psicloga da Colnia Feminina do

    antigo Manicmio Judicirio do Estado de So Paulo, apresentando uma

    proposta de clnica em direo tica para o atendimento psicoterpico das

    pacientes internadas nessa instituio. A autora partiu inicialmente do conceito

    de consulta teraputica desenvolvido por Winnicott, e, utilizando-se de

    fotografias e cartas, foi possvel realizar as intervenes teraputicas,

    possibilitando ajud-las no resgate dos sentimentos de pertena, de dignidade, de

    insero e, sobretudo, de constituio do self. Apesar disto, os objetos utilizados

    apresentaram limitaes por no abarcar toda a clnica que estas pacientes

    demandam, restringindo-se ao incio do renascimento tico. Para nortear as

    reflexes sobre o uso dos objetos, suas implicaes e restries, foram escolhidos

    quatro casos dentro da clientela em questo, que foram discutidos no cerne dos

    fundamentos tericos de Winnicott e do filsofo Emmanuel Lvinas, do qual foi

    particularmente importante o conceito de tica, traduzida na responsabilidade que

    um ser humano deve ter em relao ao outro, entendido como presena

    transcendente.

    Os trabalhos apresentados demonstram a importncia do uso da arte no

    tratamento em sade mental. Eles demonstram que a arte possibilita a interao

    entre os indivduos, a reabilitao/reinsero social, a utilizao de

    potencialidades dos pacientes, a expresso de sentimentos e de si, a busca por seu

  • 25

    self; caractersticas que vo de encontro com os dados encontrados nesta

    investigao.

    O que diferencia nosso estudo dos outros anteriores citados que a proposta

    de ida ao MAM no apresenta funo a priori teraputica, pois um curso

    terico-prtico. As aulas aconteciam em um espao fsico que no tinha a

    finalidade de ser um espao para tratamento, mas um espao social, para a

    comunidade. No curso, as psiclogas, mesmo sendo profissionais da rea da

    sade, que tambm tinham a funo de tratar dos pacientes quando no Caps, no

    curso, eram tambm alunas.

  • 26

    4. FENOMENOLOGIA

    Esta corrente filosfica nos auxilia na reflexo da clnica psicolgica a

    partir do estudo da Empatia (STEIN, 2004b), pensando na importncia do Eu, do

    Outro, mas principalmente do Ns, dos acontecimentos vividos nos encontros

    humanos. O estudo da Empatia contribui com a pesquisa no que diz respeito

    aproximao dos profissionais (cuidadores) para com os pacientes, ocorrida no

    decorrer do curso realizado no MAM, e, assim, podermos nos aproximar do

    outro em suas potencialidades e recursos.

    Nos interessa na fenomenologia de Husserl, qual o sentido da existncia

    humana. No busca explicar o ser humano, mas compreend-lo, a partir de uma

    reflexo daquilo que se mostra. Segundo Bello (2004), Husserl teoriza sobre qual

    o sentido que o existir tem para o indivduo. Com isso ele vai em busca da

    essncia das coisas (reduo eidtica) e de saber o sentido das coisas (reduo

    transcendental), no se atendo apenas existncia, mas ao sentido da existncia

    para o homem.

    Frente a isso, pode-se refletir sobre como ocorre a aproximao de duas

    pessoas (intersubjetividades), do profissional que cuida (psiclogo) e o paciente

    que cuidado, onde se busca compreender o paciente e no explic-lo.

    A anlise fenomenolgica (BELLO, 2004) possibilita uma compreenso

    original aos distintos modos de estar e ser das pessoas. Muitos pacientes

    procuram encontrar no profissional-cuidador uma testemunha para suas aflies

    ou um interlocutor para auxili-los a alcanar um sentido para seu existir.

    Podemos pensar que a arte pode ser um intermdio para esta interlocuo quando

    as palavras no podem dar conta do que precisa ser dito, ou revelado?

  • 27

    Segundo Stein (2004b), o ser humano um ser espiritual, capaz de

    transcender e partir do reconhecimento de si. Ele consegue reconhecer no outro o

    que ele tem de humano, dando-se ento a sua capacidade de empatia, o que,

    portanto, algo prprio da condio humana. Alm do carter da percepo

    humana, a empatia o ato de apreender algo, de se dar conta, da vivncia do

    outro.

    A empatia como estudada por Edith Stein um fenmeno de extrema

    importncia para compreendermos a relao profissional-paciente, para

    apreender o sofrimento do outro e assim poder ajud-lo em suas necessidades.

    A estrutura da pessoa humana compreendida em sua forma tripartida e

    dinmica corpo, psique e esprito contribui para ampliar os estudos em

    psicologia. A corporeidade o que nos d a constituio do ser que nos localiza.

    O corpo faz referncia ao objeto fsico e ao espao. O espao vivido est na base

    de todos os conceitos de espao, distinto do espao geomtrico e idealizado da

    fsica (BELLO, 2004).

    O registro dos atos do corpo um terceiro momento, que supera a

    interioridade e a exterioridade, e possibilita ter conscincia das coisas. Pode-se

    controlar o corpo e a psique, porm esse registro do ato de controle no de

    ordem psquica ou corprea, mas de ordem espiritual (BELLO, 2004).

    O estudo sobre empatia (ou entropatia) reposiciona o modo de estar com o

    outro, portanto possibilita outras formas de cuidados, pois demanda uma viso de

    homem peculiar. A partir da empatia e do que acontece neste registro, se

    desenvolve a intersubjetividade, o conhecimento de si e do outro, ou seja, a

    empatia anterior s reaes psquicas de simpatia e antipatia. comum no

    senso comum tratar empatia como simpatia, mas na fenomenologia de Husserl e

  • 28

    Stein, a empatia fundamento e encontro de subjetividades, a maneira como o

    indivduo afetado pelo outro atravs da corporeidade, e a simpatia ou antipatia

    uma reao psquica.

    O mundo contemporneo mostra novas dificuldades que os seres humanos

    tm que enfrentar e considera-se que qualquer tentativa de diagnosticar uma

    pessoa gera um reducionismo de toda a potencialidade que inerente ao ser

    humano. A partir de Edith Stein, o diagnstico se volta experincia vivida.

    Nesse sentido, todo e qualquer sintoma passa a ser mero coadjuvante diante da

    complexidade da condio humana, principalmente pelo vrtice que este trabalho

    se prope a discutir.

    Husserl usava a palavra esprito porque na filosofia que o antecedeu, o

    que no era corpo era considerado da ordem da alma. Ele analisava a alma em

    duas partes: (a) uma formada por atos de carter psquico, cujo representante o

    impulso psquico no desejado ou incontrolvel. No somos ns as origens

    desses impulsos, nem ns que os provocamos, mas os encontramos. Se sentirmos

    um grande rumor, todos tero medo, e o medo no vem desejado por ns, ele

    uma reao e acontece, essa a parte psquica; (b) a outra parte a que reflete,

    decide e avalia, e est ligada aos atos da compreenso, da deciso, da reflexo,

    do pensar, sendo denominada de esprito. Todo ser humano tem potencialmente

    essas trs caractersticas, umas mais, outras menos desenvolvidas. (BELLO,

    2006).

    Acreditamos que algumas de suas facetas podem ser explicitadas por

    meio da arte, tendo a possibilidade de ser vista, sentida ou reconhecida pelo

    outro. Esse trabalho mostra a importncia de se ter algum que os acompanhe

  • 29

    para dar um sentido para a experincia vivida no MAM, no trajeto de ida e volta

    e, talvez, at mesmo nas atividades do curso em si.

    Nesse sentido, pessoas que sofrem por apresentar transtornos

    psiquitricos ou problemas psicolgicos de tal magnitude que impedem as

    mesmas de trabalhar, estudar ou mais profundamente de encontrar um sentido

    para a vida parecem se aproximar da segunda dimenso (psquica), sendo a

    terceira (espiritual) uma conquista ainda no pensada, acontecida, e que talvez se

    encontre em espera.

    Pode-se pensar no desenvolvimento para se potencializar uma integrao

    ou uma autodeterminao terceira dimenso, a do esprito, pois, de acordo com

    Edith Stein (2004a), possvel ter acesso ao esprito atravs da educao e, como

    explicitado, uma das caractersticas do projeto com os pacientes do Caps-

    -Unifesp de participar de um curso de fotografia e imagem. O trabalho

    realizado no MAM tambm educativo.

    Atravs da educao, pode-se haver o autodirecionamento espiritual a

    partir do intelecto, da vontade, isto , um processo cultural de desenvolvimento

    motivacional, tornando-se clara e integradora, utilizando-se da razo. Essa razo

    aberta totalidade, portanto, constituda de totalidade (corporeidade e psiquismo)

    sintetizada na palavra esttica. Esttica no s corpo, no s psique. Implica

    ambos os sentidos. A arte-educao estimularia a abertura expressiva a esse fluxo

    esttico, apreciao, ao aperfeioamento tcnico, expresso, ao

    reconhecimento do objeto e at continncia contida neste objeto, seu valor.

    Objeto, aqui, pode-se entender como a arte, como a fotografia. No entanto, para

    haver este movimento, isso implica que o indivduo expresse a si mesmo no

    objeto, ou que um objeto materialize algo importante para si. Pode-se supor

  • 30

    que o valor que o indivduo d para aquilo que ele est fazendo corresponde ao

    valor que d para si mesmo. (informao verbal)7

    Segundo Bello (2006) conhecem-se as trs dimenses do ser humano

    (corpo, psquica e alma) porque se tem Conscincia, conceito fundamental em

    fenomenologia. A Conscincia no um lugar fsico, nem um lugar especfico,

    nem de carter espiritual ou psquico. A Conscincia um ponto de

    convergncia das operaes humanas, que nos permite dizer o que estamos

    dizendo ou fazer o que estamos fazendo. Somos conscientes da realidade

    corprea, da atividade psquica e de uma atividade espiritual e temos conscincia

    de que registramos esses atos. A distino destes atos ocorre intuitivamente e

    todos os seres humanos tm esta mesma estrutura.

    Nos aproximamos dos pacientes atravs da empatia, que uma

    intencionalidade e orientao que conduz a um eu alheio. A intersubjetividade

    torna a vida comunitria, apesar de cada um permanecer na sua singularidade.

    Todo ser humano tem a qualidade de perceber, mas o que percebe e como

    percebe absolutamente pessoal e singular.

    A contribuio fenomenolgica para a psicologia prope reflexo das

    coisas fsicas ou abstratas que se mostram e como se mostram. Atentar para a

    empatia reconhecer que por meio dela que podemos nos comunicar ao receber

    a comunicao do outro.

    Cada ser humano examinado por suas caractersticas pessoais, ainda que

    haja uma estrutura comum a todos. Como dito anteriormente, o que interessa a

    Husserl o sentido de existir, bem como o fato do ser humano ter facilidade para

    7 Anotaes exame qualificao. Instituto de Psicologia. Universidade de So Paulo. 10 de junho

    de 2011.

  • 31

    identificar sentidos para certas coisas e mais dificuldades para outras. Nem todas

    as coisas so imediatamente compreensveis. Nesse sentido, quando uma pessoa

    est diante de ns, conseguimos acessar e compreender algumas de suas

    caractersticas, outras no (BELLO, 2006).

    Nesta vertente, que une fenomenologia a esta maneira de cuidar dentro da

    perspectiva psicolgica, a agonia relatada ao profissional uma tentativa de

    encontrar um sentido para si. No s a agonia falada, mas a demonstrada por

    meio da arte. E no s a agonia, mas qualquer outro sentimento, compreenso,

    pensamento que fale sobre o indivduo.

    O assunto e os fenmenos imagticos esto presentes nas vivncias entre

    o profissional e o paciente durante o encontro, fazendo parte essencial do campo

    intersubjetivo. Como a terapeuta manejar a situao clnica, depender da

    relao que estabelecer com a pessoa no processo de continuidade e

    descontinuidade da condio humana.

    Como a agonia, a raiva, a tristeza, a alegria ou tantos outros sentimentos

    so parecidos e comuns a muitos, os contedos so singulares. isso que torna

    este encontro do psiclogo com o paciente um espao peculiar para que o sujeito

    possa se encontrar, refletido no olhar do outro.

    No estudo sobre os problemas da empatia, Safra (2006, p.46) comenta

    sobre Edith Stein:

    Ela se prope a fazer uma investigao fenomenolgica do sentido de si, daquilo que se como pessoa. Por meio desse caminho fenomenolgico, Stein afirma que temos a memria de experincias que no vivemos diretamente. Ela mostra que h movimentos psquicos, organizaes de experincias alojadas em ns mesmos, que no realizamos por ns mesmos. Ou seja, h inmeras experincias em ns mesmos que existem porque tivemos a possibilidade de acompanhar a experincia de uma outra pessoa. Edith nos oferece alguns exemplos: ao ouvir a descrio de uma cena repugnante vivida por algum, podemos, pela forma como essa pessoa a descreve, viver

  • 32

    uma experincia de repugnncia que fruto de um percurso em que nos deixamos levar, acompanhando o que esta pessoa nos apresenta a partir de sua sensibilidade. aqui que ela fundamenta o fenmeno da empatia.

    Essas questes so discutidas por Stein para mostrar que, por meio do

    corpo, estamos continuamente acompanhando as experincias de outras pessoas.

    Somos frequentemente banhados pelas descries plsticas e pelo modo como a

    corporeidade do outro nos atinge. nesse fenmeno que Edith Stein fundamenta

    o fenmeno da empatia, bem diferentemente da compreenso meramente

    racionalizada ou excessivamente intelectualizada da vida humana.

    Para essa autora a empatia a possibilidade que temos de acompanhar o circuito da sensibilidade de um outro. Edith afirma que podemos acompanhar dois circuitos: o circuito da sensibilidade e o circuito da articulao do pensamento do outro. Jamais se alcana a experincia originria da sensibilidade do outro, assim como tambm jamais apreendemos pelo conhecimento quais seriam os motivos, os valores ltimos de algum. Podemos intu-los, mas no saber desses valores diretamente. A possibilidade de acompanhar a expresso descritiva plstica ou o modo como a corporeidade do outro aparece permite que realizemos com o nosso prprio corpo o mesmo circuito descrito ou apresentado. Dessa maneira, podemos compreender os sentimentos dos nossos analisandos atravs do que nos apresentam, se tambm os acompanharmos por meio de nossa sensibilidade corporal. O nosso corpo nos fala por meio de imagens (a imagem refere-se a formas sensoriais que se desenham na corporeidade de uma pessoa) que so evocadas em nossa corporeidade pelo modo como o paciente se apresenta ... o analista intui o que se passa, no por telepatia, mas pelo fato de seu corpo estar sendo continuamente afetado pela forma de ser do paciente. (SAFRA, 2006, p.47-48)

    O rigor fenomenolgico enquanto mtodo investigativo til ao processo de

    tratamento do sofrimento humano, pois possibilita conhecer uma pessoa a partir

    do sentido da sua existncia em suas potencialidades e recursos.

    Contudo, o fluxo esttico necessita da conscincia de algo para existir,

    portanto, pode-se pensar que se est atento ordem do sensvel, que no

    irracional, que dependente de um objeto sensvel (arte, mquina fotogrfica,

    tcnicas fotogrficas, direcionamento da aula, etc.), a um limite. Com isso, pode-

  • 33

    -se pensar que esta experincia, portanto, pode ser vivenciada como teraputica,

    pois, a arte, enquanto um ato expressivo e criativo, na qual o indivduo pode ter a

    possibilidade de se (re)conhecer, valorizar, ter conscincia de si, ela tem algo na

    ordem do gratuito e tem materialidade. A arte implica as trs dimenses do ser

    humano (Stein, 2007). No corpo, a questo sensria; no psquico, as atraes

    e/ou repulses da ateno; e na dimenso espiritual, as tomadas de decises e

    reflexes em cada ato fotogrfico, em cada gesto, em cada ao, em cada

    proposta no curso. Isso possibilita no s um aprendizado, mas um processo

    teraputico.

  • 34

    5. PSICANLISE

    A arte da psicanlise consiste nessa

    capacidade de compartilhar espaos mentais secretos

    e proibidos, de maneiras aceitveis pela civilizao,

    com a perspectiva de ampliar as potencialidades dos

    participantes, produzindo novos sentidos e tornando

    suas vidas mais criativas e significativas. assim que

    ela participa da construo da mais importante e

    especfica das caractersticas do humano: a

    subjetividade.

    (ROSSI, 2009)

    No decorrer do curso realizado com os pacientes no MAM, algumas questes

    foram levantadas quando se refletia sobre as razes da importncia da arte no ser

    humano, do acompanhamento at o local novo e at ento desconhecido. Um

    dos pontos que auxiliava esta reflexo era a composio destas vivncias com a

    teoria psicanaltica, com a reflexo sobre o self, espao potencial e a criatividade,

    como postulados por Donald W. Winnicott (1896-1971).

    Pensa-se na arte como um recurso teraputico a ser utilizado, no como uma

    teraputica conforme recomendaes clssicas psicanalticas, mas como uma

    nova possibilidade de o indivduo se encontrar, encontrar seus sentimentos, o que

    no pode ser dito, auxiliando um se colocar enquanto sujeito em sua vida.

    Rossi (2009), em seu artigo intitulado Arte e psicanlise na construo do

    humano, diz que Freud, assim como outros psicanalistas posteriormente,

    utilizou-se da arte como base para algumas de suas postulaes tericas. O autor

    aponta que, para Freud, a arte seria tanto uma fuga da realidade quanto apoios

  • 35

    para o pesado destino do homem civilizado (Ibid.,p.25), ou seja, a arte poderia

    libertar, mas tambm ser usada como instrumento de submisso e como

    ferramenta para a manipulao das massas, tendo o linimento8

    Mas, a partir de um grupo de psicanalistas britnicos, dentre eles, Winnicott,

    a arte passa a ser articulada como um novo espao para a imaginao, a fantasia e

    a iluso (ROSSI, 2009, p.27), no qual

    artstico [...]

    poder curativo limitado [, pois] a presso dos instintos, para ele (Freud), seria

    to grande que jamais o prazer obtido pela descarga em natura das pulses

    poderia ser superado por qualquer atividade artstica ou cultural (Ibid, p.26).

    o brincar passou a ser uma coisa muito sria e poder fantasiar e compartilhar fantasias fusionais em grande sintonia com uma me receptiva passou a ser considerado essencial para que algum desenvolva a capacidade de sentir que a vida vale a pena.

    Tal citao parece importante para o trabalho tendo em vista que, neste

    projeto, a todo momento foi-se pensando no curso de fotografia como sendo um

    brincar, que dava possibilidade de se colocar enquanto sujeito, de lidar com

    seus anseios, emoes.

    Com isso, a realidade factual perde importncia para a capacidade de se

    construir uma viso criativa, tolerante, harmnica e benevolente do mundo e das

    relaes afetivas, pois o espao em que ocorrem os fatos ditos objetivos esto

    miscigenados e ocorrem ao mesmo tempo com a fantasia.

    Pode-se dizer que o indivduo moldado pela realidade que lhe

    apresentada, ao mesmo tempo em que molda sua vivncia nela, a partir do uso,

    8 Medicamento untuoso, isto , para frices, destinado a acalmar dores. Dicionrio Priberan

    da Lngua Portuguesa. (2011). Recuperado em 09 de abril de 2011, de http://www.priberam.pt/DLPO/

  • 36

    neste espao virtual que se forma, de sua criatividade e fantasia, auxiliando, com

    isso, a construo de si, de um indivduo, de um self.

    Para Winnicott (1975), a capacidade de brincar a capacidade de o

    indivduo ter uma relao criativa no mundo, lhe inerente, natural, ocorre em

    um espao potencial (que no nem o mundo interno do indivduo, nem a

    realidade concreta e externa, entre). E no brincar, e talvez apenas no brincar,

    que a criana ou o adulto fruem sua liberdade de criao (...) e somente sendo

    criativo que o indivduo descobre o eu (self) (p.79-80).

    Discutir-se- neste trabalho sobre a possibilidade de a arte contribuir para a

    constituio do self.

    Tendo em vista que o self pode corresponder espontaneidade,

    criatividade, autenticidade, ao saber qual o desejo, pensa-se que a arte pode

    ser um meio para ajudar a se ter acesso a essa dimenso psquica do ser humano.

    Para Winnicott, num nvel mais primitivo, o que estrutura o ser humano a

    crena da capacidade de reparao, ou seja, a iluso de encontrar algo que busca,

    a iluso de que possvel criar aquilo que se necessita. Podemos pensar nesta

    criao atravs da arte, onde o indivduo pode apresentar certa liberdade para se

    expressar utilizando-se de sua criatividade e de sua iluso.

    Em sua obra Da Pediatria Psicanlise, Winnicott (2000) diz que as iluses

    so inerentes ao ser humano e que nenhum indivduo jamais a resolve. A iluso

    se encontra em um estado intermedirio entre a incapacidade do beb de

    reconhecer e aceitar a realidade, e sua crescente capacidade em faz-lo (p.328).

    Com isso, questiona-se a importncia da arte como um intermediador capaz

    de atingir aspectos do ser humano que ele invariavelmente se depara e que

    podem lhe trazer um reconhecimento do sofrimento.

  • 37

    Atravs da arte, o indivduo pode expressar sua criatividade que lhe

    inerente e, com ela, buscar o sentido de sua prpria existncia. Tem a

    oportunidade de comunicar para o outro e para si suas emoes, seus

    sentimentos.

    Nesta forma de apresentao (arte), o indivduo tem a oportunidade de

    exercitar sua onipotncia criativa, de colocar em ao o seu gesto espontneo, o

    que auxilia seu transitar psquico, podendo haver mudanas neste, integrando-

    -o, j que se utiliza de meios mais sofisticados, simblicos de se comunicar.

    Tendo em vista que, no presente trabalho, a populao estudada so pacientes

    psiquitricos, refletiu-se na compreenso que Winnicott (2000, 2005) tem sobre

    as formaes psicopatolgicas no indivduo, como sendo estas uma grave falha

    ambiental num perodo ainda primitivo do desenvolvimento infantil. Juntamente

    com esta perspectiva e o fato desta psicanlise se basear no cuidado a partir de

    uma demanda da necessidade do paciente (WINNICOTT, 2005), compreendeu-

    -se a importncia da criao de um espao e um tempo especficos para o auxlio

    do desenvolvimento do self no indivduo. Este espao se deu, no estudo, a partir

    do momento em que se criou um grupo do curso de fotografia e amos todos

    juntos ao MAM. Esta modalidade de tratamento Winnicott (2005) nomeou de

    placement, ou seja, um lugar ofertado por um outro e que possibilite o processo

    de constituio do self.

    Segundo Safra (2006b), em estudo intitulado Placement: modelo clnico

    para o acompanhamento teraputico

    No placement o que se busca a possibilidade de o indivduo ser colocado em uma situao que corresponda s suas necessidades para que possa ser acompanhado em seu tratamento.[No entanto], ... no se trata de fornecer por meio do placement uma experincia emocional corretiva, mas da possibilidade de vir a se posicionar de forma diferente quilo que houve. (SAFRA, op.cit., p.16-18)

  • 38

    Com a familiaridade das profissionais presentes, por parte dos pacientes,

    questiona-se que isso possa ter contribudo para que um lao de confiabilidade,

    segurana se perpetuasse e facilitasse a possibilidade de uma ligao com o novo

    espao em questo, o MAM. Isso, segundo Winnicott (2005), favorece a

    possibilidade de um desenvolvimento mais saudvel do self.

  • 39

    6. HERMENUTICA

    Dentro da perspectiva de que atravs da arte o indivduo tem a oportunidade de

    comunicar para o outro e para si suas emoes, seus sentimentos; e a possibilidade

    de encontrar mais uma via de simbolizao, tambm ser utilizado para o estudo o

    conceito descrito por Gilberto Safra, a hermenutica9, denominada pelo autor de

    idioma pessoal10

    O autor busca uma outra forma de se colocar na sua prtica clnica e de

    compreender o ser humano que no no campo do excessivamente nomeado e

    racionalizado. Para isso, ele se volta para o ethos e para a prpria condio

    humana.

    .

    Safra (2005) pontua que a palavra e a linguagem discursiva no do conta de

    todo o campo simblico do ser humano.

    O indivduo apresenta o seu existir por gestos, por sonoridade, por formas visuais, por diversos meios disponveis para constituir seu self e seu estilo de ser. So criaes, na maior parte das vezes, de grande complexidade simblica e no passveis de decodificao. (...) H experincias que se expressam melhor pela linguagem discursiva, outras pelos smbolos orgnico-estticos (...) [os quais] veiculam o sentir, o ser e o existir (...) [e por isso], podemos dizer que eles no representam, mas apresentam, e abrem uma determinada experincia de sentir, existir ou ser. (p.24-27)

    9 Hermenutica a arte de interpretar o sentido das palavras, das leis, dos textos (SAFRA, 2006). Vale ressaltar que hermenutica um termo que vem da filosofia. Provm do grego "hermneuein", que significa "declarar", "anunciar", "interpretar", "esclarecer", "traduzir", ou seja, algo que "tornado compreensvel" ou "levado compreenso". Ou ainda derivado do grego "ermneutik", significando "cincia", tcnica". (http://pt.wikipedia.org/wiki/Hermen%C3%AAutica. Acesso em 02 de maio de 2012). 10 Maneira pela qual a singularidade do ser humano aparece em seu modo de ser, em seus gestos, em sua linguagem e em seu estilo pessoal (SAFRA, op.cit., p.20)

  • 40

    Neste trabalho, o autor se detm a um tipo de smbolo esttico, os smbolos de

    self, os quais se articulam em imagens, objetos recortados na materialidade,

    apresentando os enigmas da vida do indivduo e tambm seu estilo de ser.

    Com isso, pode-se refletir que a expresso simblica no exclusivamente

    feita pelo verbal e que a singularidade do ser humano pode ser buscada, valorizada,

    olhada, sem necessariamente ser nomeada.

    No trabalho proposto aqui, observa-se a importncia desta forma de se

    apresentar no mundo, atravs da arte.

    De acordo com Safra (2006a), o homem, sendo ontologicamente um ente

    em precariedade, est sempre aberto compreenso do ser e busca responder s

    questes da sua origem e de seu fim.

    Se a forma de se inscrever no mundo no pde ser realizada pela

    comunicao com algum significativo, certamente tender a acontecer de forma

    impulsiva e desorganizada, expressando o desespero sem nome, vivido pelas

    pessoas que no tiveram aqueles acontecimentos em suas vidas. Ao lidar com

    humanos, estamos diante de seres que buscam intensamente, com os meios

    disponveis, a possibilidade de humanizar-se (SAFRA, 2006). Assim, todo ser

    humano necessita acontecer no registro singular e coletivo, isso fundamental na

    realizao do si mesmo. Na ausncia de um desses registros, h um sofrimento pela

    vivncia de no existncia e de no realizao de si.

    Por meio da arte podem-se evidenciar as questes sensoriais, como descritas

    por Safra (2005), a organizao subjetiva do tempo, do espao, da corporeidade,

    da sonoridade, ajudando o indivduo a constituir o seu self. Acredito que a

    constituio sensorial pode ter sofrido prejuzos importantes diante da

    decorrncia das psicoses e neuroses graves.

  • 41

    Para a constituio do self de um indivduo, necessita-se muito do outro, do

    ambiente suficientemente bom, do olhar, da recepo ao mundo, das atitudes do

    outro, para que ele consiga se diferenciar, tendo em vista que, desde sempre o

    ser humano com o Outro. Se o rosto do Outro no pode ser encontrado como

    acolhida ao mundo humano, a condio originria aparece como sofrimento

    infinito, agonia do anseio pelo Outro (Safra, 2004, p.73).

    Mas para esta busca de si, com o Outro, o indivduo utiliza-se da sua

    criatividade que lhe constitutiva , possibilitando acontecimentos, gerando

    eventos, criando o indito no campo do psquico, do existencial.

    Compreende-se que esta criatividade inerente ao ser humano tambm pode

    mostrar-se importante quando dizemos que o fato de haver uma abertura para a

    compreenso do sentido das coisas, independentemente de questes psquicas e

    intelectuais, auxilia o ser humano a responder a estes sentidos, a se apropriar de

    um saber. Segundo Safra (2006a), este saber no fruto da lgica ou da

    aprendizagem, mas surge da prpria experincia de estar vivo, da experincia de

    beleza, da experincia de sofrimento.

    Podemos nos reportar ao smbolo em sua funo representativa, conforme

    descrito por Safra (2006a), ou seja, o smbolo como sinal que faz referncia a

    um objeto ausente. Algo que pode ocorrer por meio da palavra ou pela imagem

    (ibid, p.40) e auxilia na integrao do tempo e do espao.

    H pacientes que se sentem adoecidos pelas perspectivas racionalistas e

    iluministas que norteiam, segundo Safra (op.cit., p.16), grande parte das teorias

    em psicologia e organizam o mundo em que vivemos. Ele cita uma passagem da

    obra A estrutura da pessoa humana de Edith Stein que indica um distinto

    modo de compreender o outro ser humano:

  • 42

    Se o conhecimento uma captao espiritual de um ente, lcito dizer que conhecemos o modo de ser prprio de um homem: este modo de ser nos mostra atravs de mltiplas formas expressivas nas quais o interior se exterioriza e ns compreendemos essa linguagem. O modo de ser prprio de uma pessoa se expressa em formas que podem seguir existindo separadas dela: em sua letra, no estilo que se reflete em suas cartas ou em outras manifestaes literrias, em todas as suas obras, e tambm nos efeitos que produziram em outros homens. (SAFRA, 2006a, p.16-17)

    Safra (2006a) mostra a importncia de trabalharmos na intuio e na

    compreenso emptica, no como funes mentais, mas como funes corporais,

    j que se intui e se cria empatia por meio de nossa sensibilidade.

    Juntamente com esta perspectiva emptica, pode-se pensar a amizade, e at

    mesmo a solidariedade, como uma questo tica do ser humano, mas, para a

    psicanlise tradicional, isso no visto com bons olhos, pois no compreende o

    ser humano como um ser ontolgico. Porm, com a discusso feita neste

    trabalho, observa-se que esta compreenso do ser humano individual, mas ao

    mesmo tempo em comunho com a condio humana, foi um facilitador no

    decorrer do processo, pois tanto as psiclogas quanto os pacientes estavam na

    mesma condio humana no momento do percurso e do curso no MAM.

    Um outro ponto de extrema importncia, alm do ontolgico, o

    reconhecimento do seu idioma pessoal para contemplar a singularidade do ser

    humano. Isso fundamental para o sucesso teraputico, do cuidado, pensar esta

    singularidade ao planejar a proposta teraputica, o lugar (placement), o que ir

    ser realizado.

  • 43

    7. MATERIAL E MTODO

    Trata-se de uma pesquisa qualitativa, a qual no se utiliza de um modelo

    nico de tcnicas exclusivo e estandardizado, pois parte do pressuposto que as

    cincias humanas tm sua especificidade e que o pesquisador pode optar por

    descrever o ser humano de acordo com o seu momento e sua cultura, porm ele

    dever expor e validar os meios e as tcnicas adotadas, demonstrando

    cientificidade dos dados colhidos e dos conhecimentos produzidos.

    (CHIZZOTTI, 1988).

    No mtodo qualitativo, trabalha-se com a compreenso dos fenmenos, com

    aquilo que se mostra, que se manifesta conscincia, que pode ser trazido luz

    (MARTINS e BICUDO, 1990). Segundo Turato (2003), esta metodologia tem

    como principal base filosfica a fenomenologia.

    Para descrever a experincia vivida no curso de FOTO e IMAGEM

    ministrado por artistas plsticos e fotgrafos do Museu de Arte Moderna de So

    Paulo utilizamos aquilo que se revela conscincia (fenomenologia), verificando

    o potencial teraputico (psicanlise winnicottiana) e um conhecimento a partir do

    registro comunitrio (clnica ontolgica de Gilberto Safra).

    Foram analisadas as oficinas realizadas, nas quais, tanto a pesquisadora,

    quanto os pacientes em tratamento no Caps-Unifesp participaram. Focou-se nas

    observaes feitas pela pesquisadora diante dos acontecimentos, das evolues e

    dos dados desta atividade. Ou seja, os resultados da pesquisa foram a partir das

    observaes da experincia vivida pela pesquisadora, buscando ampliar as

    elaboraes, tanto nas oficinas no MAM quanto nas observaes de mudanas

  • 44

    comportamentais e emocionais ocorridas nos pacientes e relatadas em um dirio

    clnico.

    Foi elaborado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido11

    Os pacientes no foram identificados, apenas citados alguns dados como

    sexo, idade, transtorno psiquitrico diagnosticado e vinhetas clnicas, quando se

    fez necessrio para o contexto do trabalho.

    (ANEXO 1)

    e entregue aos pacientes em tratamento no Caps-Unifesp participantes do curso

    FOTO e IMAGEM em 2007 e 2008.

    Por ser uma observao j realizada nos anos de 2007 e 2008, os dados ou

    resultados foram resgates mnmicos das experincias vivenciadas pela

    pesquisadora e registrados em um dirio de campo.

    A atitude fenomenolgica da pesquisadora permitiu olhar para o campo da

    arte visando conhecimento, descoberta, relacionando com o desenvolvimento

    psquico humano e com sua experincia profissional, esforando-se para alcan-

    -lo de modo no preconceituoso, conforme a reduo fenomenolgica orienta.

    Ou seja, buscou-se a reduo eidtica (reduo essncia) e, posteriormente, a

    reduo transcendental (reduo ao sujeito), atravs da anlise das vivncias,

    seguindo os passos do mtodo de Husserl, e realizando uma descrio qualitativa

    dos atos e das vivncias (BELLO, 2004).

    Stein (2007) descreve como o princpio mais importante do mtodo

    fenomenolgico o de fixar a ateno nas coisas mesmas. Isso quer dizer que no

    apenas apreender as coisas, os momentos, pelo empirismo, mas dirigir a

    11 O projeto foi aprovado pelo comit de tica da Universidade de So Paulo, pelo Registro CEPH N 2009.033, em 26 de agosto de 2009.

  • 45

    ateno para o essencial, abordar as coisas com um olhar livre de preconceitos e

    beber da intuio imediata12

    Para Husserl, a intuio uma percepo espiritual que reside em toda

    experincia particular como um fator que no pode faltar, que universal e que

    inseparvel da experincia particular e afetada por si mesma (STEIN, 2007).

    .

    Atravs da anlise fenomenolgica, torna-se possvel evidenciar a dimenso

    psquica, isolando-a para estud-la por si mesma, mesmo sabendo que na vida

    concreta impossvel separar a psique do corpo. Por isto, se quisermos

    examinar o que psquico, necessitamos fazer uma reflexo e pela reflexo,

    temos conscincia das vivncias, pois estas tm a caracterstica de serem

    intencionais (BELLO, 2004, p.108-109). Alm disso, por esta perspectiva,

    torna-se possvel alcanar os nveis do corpo, da psique e do esprito atravs das

    vivncias, possibilitando, com isso, adentrar na interioridade do sujeito, entender

    como ele constitudo. Em outras palavras, escavar a subjetividade humana,

    colocando em evidncia seus significados.

    Tendo em vista que o objeto da psicologia o ser humano, a anlise visa

    estrutura do ser humano, assim Husserl denominou a psicologia

    fenomenolgica:

    A psicologia fenomenolgica a descrio do conjunto da estrutura psquica do homem, pois Husserl pensava em poder oferecer, atravs desta psicologia fenomenolgica, a base para uma psicologia como cincia. ... [Alm disso, pode aplicar-se tambm] no plano emprico, sendo que essa aplicao leva exatido, ou seja, elaborao de conceitos descobertos de maneira verdadeiramente rigorosa e vlida(BELLO, 2004 p.104-121).

    12 A autora assinala que a intuio no somente a percepo sensvel de uma coisa determinada e particular, assim como aqui e agora. H uma intuio de que as coisas so por essncia, e isso pode ter, por sua vez, um duplo significado: de que a coisa por seu ser prprio e o que por sua essncia universal. (p.33). [traduo nossa].

  • 46

    A pesquisadora levou em conta sua prpria experincia no decorrer do curso,

    pois, segundo Bello (op.cit, p.53)

    Entre todas as vivncias que cada um de ns est vivendo neste momento, ns no podemos conhecer as que esto ocorrendo nos outros, mas apenas aquelas que estamos vivendo em ns. Todavia, ns podemos entender um pouco o que os outros esto vivendo, pois ns temos a possibilidade de ver a expresso do rosto e a atitude do corpo. Conseguimos captar o que os outros esto vivendo, pois ns podemos viver as mesmas coisas, mesmo que no seja neste instante.

    Podemos entender o que as outras pessoas esto vivendo por meio de suas

    falas e produes, sejam elas artsticas ou no, pois, segundo o mtodo

    fenomenolgico, deve-se captar o sentido da essncia das coisas (reduo

    eidtica).

    A anlise fenomenolgica do perceber supera o plano da percepo e atua no nvel de uma outra vivncia que a reflexo. (...) A fenomenologia (...) trata de analisar, mais do que partir de conceitos, princpios e deduzir. No se parte da conscincia, mas, por exemplo, da percepo e daquilo que est por baixo da percepo, chegando ao corpo, psique e ao esprito. (BELLO, 2004, p.90-100)

    Como podemos ver tambm dentro do campo da filosofia, em contato com a

    psiquiatria, no mbito da psicopatologia, temos Minkowski (2000), ao examinar

    um paciente (e aqui se pode compreender tambm ao examinar uma situao, um

    momento), no se utiliza apenas do mtodo das cincias naturais, com

    enumerao das reaes presentes, anlises e classificaes, mas o examinador

    deve tambm deixar-se guiar por sua prpria intuio, ou seja, levar em conta

    tambm o ponto de vista psicolgico, sua afetividade e sentimentos.

    Aps a coleta dos dados e da escrita do dirio de campo, o mtodo

    fenomenolgico foi suspenso para que fossem articulados os conceitos clnicos

    de Winnicott, Safra e Edith Stein.

  • 47

    Usamos as concepes de Winnicott sobre a importncia da iluso na

    constituio psquica, do ambiente suficientemente bom e do potencial criativo

    da natureza humana.

    No pensamento desenvolvido por Gilberto Safra, buscou-se compreender as

    pessoas em seu idioma pessoal, de uma clnica ancorada na relao, no encontro

    humano e na comunidade de destino.

  • 48

    8. RESULTADOS DIRIO DE CAMPO

    Este dirio de campo foi escrito de maneira retrospectiva, coletando

    informaes de minha memria, minhas anotaes, visualizando o resultado dos

    trabalhos realizados (os quais eu possua, j que as professoras deram para mim e

    para minha colega de projeto um DVD com todas as fotos tiradas, dos dois anos)

    e de conversas posteriores com esta colega, parceira de projeto.

    Nesta escrita no identificarei os alunos pelos nomes, apenas atravs de

    iniciais quando julgar necessrio para melhor compreenso do texto; no

    pretendo expor o diagnstico psiquitrico dos pacientes, pois para mim o mais

    importante o sujeito, seus comportamentos e sentimentos, e no a doena.

    Utilizarei a denominao paciente quando me referir s pessoas que fazem

    tratamento psiquitrico no Caps-Unifesp. A fim de exemplificar a experincia

    com eles vivida, apresentarei relatos de alguns pacientes quando julgar oportuno.

    Ser realizado o relato do primeiro ano do curso e do segundo ano,

    identificando-os durante a descrio quando se fizer pertinente.

    A ideia de realizar um projeto com os pacientes do Caps-Unifesp se deu a

    partir de um incmodo meu e de uma colega, psicloga, que frequentava curso

    de especializao comigo. Estvamos no ltimo ano da especializao em Sade

    Mental do Departamento de Psiquiatria da Unifesp e nosso ltimo estgio ocorria

    no Caps desta instituio. Dos servios pelos quais estagiei, o Caps, minha

    colega e eu j tnhamos mais intimidade com o local, com alguns dos pacientes,

    com os profissionais que l trabalhavam e com o trabalho em si. Estvamos mais

    vontade e conhecamos um pouco mais sobre sade mental, suas possibilidades

    e alguns limites. O estgio durou mais 4 meses corridos de imerso no servio.

  • 49

    Neste tempo de convivncia com o trabalho realizado no Caps-Unifesp

    percebemos que muitos pacientes ficavam deitados no sof, fumando no quintal

    ou dormindo, e no participavam das atividades teraputicas propostas, mesmo

    com o incentivo do corpo profissional. Alm disso, era um tanto comum

    observarmos uma regresso no quadro patolgico de pacientes quando passavam

    para um estgio no qual o acompanhamento ou o tempo que permaneciam no

    espao fsico do Caps-Unifesp diminua. Ou seja, quando passavam do

    tratamento intensivo (acompanhamento dirio) para o semi-intensivo

    (comparecimento no Caps-Unifesp apenas alguns dias na semana, em alguns

    grupos teraputicos), ou do semi-intensivo para o ambulatrio (participao em

    grupos de medicao e, eventualmente, um ou outro grupo teraputico semanal),

    alguns pacientes apresentavam recadas sintomatolgicas que j haviam

    superado. Sabe-se que nos quadros psiquitricos pode haver crises e o retorno

    de alguns sintomas, necessitando de acompanhamento mais intenso ou at

    mesmo de internao psiquitrica, porm era comum isso acontecer quando

    ocorriam as mudanas teraputicas de tipo de interveno (intensivo, semi-

    -intensivo ou ambulatorial). Estou levando em conta neste relato que no houve

    mudana ou diminuio na ingesta medicamentosa destes pacientes.

    As experincias obtidas em um curto perodo de estgio ilustraram tambm

    as dificuldades que se estabeleciam no percurso de um encaminhamento

    possvel vinculao com um novo ambiente, principalmente quando os pacientes

    apresentavam melhora sintomatolgica e um plano teraputico que envolvia um

    encaminhamento para cursos, atividades que eles verbalizavam ter interesse. De

    modo geral, os pacientes apresentam dificuldades em iniciar atividades externas

  • 50

    ao Caps, fato comum na socializao de pacientes psicticos e neurticos graves,

    que apresentavam dificuldades na insero e manuteno de novas atividades.

    Com isso, refletimos sobre o lugar em que estas pessoas se colocavam ou

    se reconheciam. Pareceu-nos que talvez no existisse, pelo menos no o

    suficiente, o reconhecimento de si enquanto indivduo, enquanto pessoa, mas sim

    enquanto paciente, passivo. E que talvez, at mesmo dentro da famlia, do meio

    em que vivem, tambm tivessem este tipo de reconhecimento. Ou ento que

    talvez s se sentissem reconhecidos em um lugar de tratamento?

    Se esta suposio estivesse correta, como iramos incentiv-los a um

    retorno vida social, ao trabalho, aos estudos, ao lazer? Como incentivar a uma

    autonomia que os auxiliasse a enfrentar os percalos da vida, as dificuldades do

    dia a dia? Estes pacientes iriam ser apenas pacientes e nunca mais sair do Caps?

    Mas tambm o Caps no tem a proposta de um tratamento que englobe o

    indivduo como um todo e que o auxilie a uma reinsero social? Como fazer

    isso com pessoas que parecem no querer (ou conseguir) sair de uma posio

    passiva?

    Enfim, os questionamentos eram muitos diante da observao que fazamos

    e pensamos em, ao terminar o perodo de estgio, apresentar uma proposta ao

    Caps-Unifesp. Neste projeto inicial poderamos ver se conseguiramos auxiliar

    estes pacientes a terem certa autonomia na vida, a poderem experimentar uma

    vivncia alm dos muros do Caps e de sua casa, a terem contato com pessoas que

    os vissem enquanto seres humanos, pessoas, e no se eram esquizofrnicos,

    bipolares, borderlines, depressivos, ou qualquer outro rtulo dentro do

    espectro classificatrio dos transtornos mentais.

  • 51

    Ainda no processo de elaborao do projeto, cogitamos levar os pacientes

    ao MAM, posto ter um funcionrio do museu nos informado, meses antes, que l

    existiam cursos gratuitos abertos populao e que buscavam pessoas que no

    tinham muito acesso arte e cultura, inclusive aquelas que realizavam

    tratamento psiquitrico.

    Aps nossas indagaes, fomos at l verificar do que se tratava.

    Conversamos com a coordenadora do Projeto Igual-Diferente, Daina Leyton, que

    nos apresentou os cursos oferecidos, a proposta, os horrios, as vagas e a

    possibilidade de fazermos uma parceria, assim como alguns hospitais

    psiquitricos e outros Caps. Havia tambm a oportunidade de esta parceria ser

    mantida nos anos seguintes, com vagas preferenciais aos pacientes do Caps-

    -Unifesp. Alm disso, a pedido do MAM, foram realizadas reunies semestrais

    com a equipe do projeto do museu e outros parceiros, para uma avaliao da

    repercusso que as oficinas propagam no contexto do Caps-Unifesp e nos outros

    servios, e se havia maneiras de aprimorar os cursos oferecidos.

    Prximo do trmino do nosso curso de especializao no final do ano de

    2006, com um sentimento de vazio e abandono se aproximando j que no

    teramos mais nossas 40 horas semanais preenchidas e, o mais forte de tudo,

    o desejo de poder continuar em um lugar que gostvamos de estar, fazendo o que

    achvamos importante, com pessoas que julgvamos que teriam muito mais a

    contribuir alm de fazer seu tratamento, retornamos ao nosso estgio no Caps-

    -Unifesp com muitas ideias, que foram amadurecendo com o tempo. Reunimo-

    -nos para delinear o projeto, a sua importncia, o que poderamos oferecer

    terapeuticamente e que ao mesmo tempo no fosse configurada uma atividade

    teraputica clssica, tradicional j que isso os pacientes j tinham no Caps.

  • 52

    Ao trmino do curso de especializao, em janeiro de 2007, oferecemos um

    projeto e discutimos com a coordenadora13

    Nessa mesma reunio com a equipe do Caps pedimos para que pudessem

    avaliar o benefcio da insero dos pacientes nessa atividade, assim como o

    cuidado de avaliar a indicao caso a caso. Com a aceitao de todos os

    membros da equipe, fez-se novo contato com o MAM para acerto do contrato e

    informaes finais.

    do Caps-Unifesp nossa proposta e

    apresentamos este projeto em uma reunio de equipe na qual estavam presentes

    todos os profissionais da equipe fixa do Caps-Unifesp, o qual foi bem aceito e

    frisado por parte de alguns destes profissionais a importncia que este teria, j

    que no conseguiam, por falta de tempo, monitorar mais de perto os

    acompanhamentos externos que faziam.

    Finalmente, na manh do dia 15/02/07, marcamos uma reunio com os

    pacientes que ns e a equipe identificamos como potenciais beneficirios do

    curso e da proposta oferecida. Na apresentao frisamos que a participao nesse

    curso no era obrigatria, que no tinha o intuito teraputico tradicional, mas sim

    de aprender uma nova atividade, novas tcnicas fotogrficas, e que as professoras

    no eram profissionais da rea da sade, mas artistas plsticas e fotgrafas.

    Comunicamos as informaes que tnhamos sobre o curso, como a localizao, a

    durao, o perodo de frias, como eram as aulas e seu horrio, que se usavam

    mquinas digitais, que iramos aprender tcnicas de fotografia como o uso da luz,

    a funo da mquina a usar, ngulos, intervenes, etc.

    13 Dra. Wilma Szarf Szwarc, a quem agradecemos a autorizao para viabilizar o projeto e reflet--lo nessa investigao strictu-sensu.

  • 53

    Outra questo apresentada como de extrema importncia para os pacientes

    era a de que o MAM havia disponibilizado 20 vagas para o Caps e o restante para

    outros pblicos interessados que no fosse do Caps-Unifesp. Destas 20 vagas,

    uma seria para mim, uma para minha colega de projeto e 18 para os pacientes

    interessados ou at mesmo os familiares que quisessem participar. Com isso, eles

    teriam que se comprometer com a assiduidade para que no pegassem a vaga de

    outra pessoa.

    Foi apresentado desde o incio que o percurso de ida e volta seria realizado

    com o transporte fornecido pelo hospital e com o acompanhamento das

    psiclogas.

    Gradativamente o transporte seria modificado pelo transporte pblico,

    havendo a possibilidade de os pacientes optarem pelo percurso desejado de

    acordo com a prpria convenincia.

    Pensamos o projeto desta maneira, pois consideramos que estes processos

    proporcionam desenvolvimento de compromisso e autonomia, no qual cada

    participante poderia repensar seu horrio, no deixando de comparecer ao

    compromisso e progressivamente construindo a prpria autonomia. Este percurso

    se asseguraria na continncia do acompanhamento, e a permanncia do paciente

    na construo de possvel nova conduta. Vale ressaltar que o espao do MAM

    contribui para esse processo por estar inserido no parque do Ibirapuera e,

    portanto, favorecer aos pacientes a circulao interna neste ambiente, pois um

    espao aberto, amplo, arborizado, pblico e com possibilidades de entrar em

    contato com exposies de artistas famosos.

    Na reunio com os pacientes, as preocupaes apresentadas por eles foram:

    e se eu no quiser continuar? Por que ir de nibus pblico e no com o

  • 54

    transporte do hospital para sempre? E se eu no me sentir bem? Mas por que

    eles no vm at aqui no Caps para dar as aulas?

    Frente a esses questionamentos, buscamos mostrar a eles como estavam

    grudados ao Caps-Unifesp; que queriam receber, mas no dar; que estavam

    acomodados; que colocavam empecilhos para no ir ou no continuar; que seria

    importante eles saberem ir e vir ao MAM, que nibus pegar.

    As psiclogas informavam aos pacientes que, caso no gostassem ou

    quisessem desistir, poderiam conversar sobre isso antes de desistirem. O que

    achvamos contraindicado era continuar no curso e no comparecer, pois no era

    uma atividade obrigatria. Gostar ou no do curso poderia ser experimentado j

    nas primeiras aulas e ainda poderia haver tempo de disponibilizar a vaga a outra

    pessoa interessada, que no perderia muitas aulas. Alm disso, caso ocorresse

    uma eventualidade e precisassem faltar, foi acordado com os pacientes que

    teriam que nos avisar antecipadamente. Porm, dissemos que eles no

    precisariam dar a resposta naquele dia, que era importante refletir e que iramos

    ter mais dois encontros nas duas semanas seguintes, no mesmo horrio, para falar

    deste curso, tirar dvidas e para se acostumar com a ideia.

    A maioria dos pacientes gostou da proposta de ser um curso de fotografia e,

    mesmo alguns estando um tanto receosos, aceitaram participar.

    No projeto tambm foi contemplada a importncia da participao dos

    familiares enquanto incentivadores ou no da posio passiva dos pacientes. Por

    isso, no decorrer do ano de 2007 realizamos cinco reunies com os familiares

    inseridos no programa. Os pacientes foram informados dessas reunies e

    pedimos para que falassem em casa sobre o curso, as reunies e que os membros

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    da famlia poderiam tambm ir ao curso se tivessem interesse. Ainda assim,

    buscamos comunicar por telefone o convite s reunies familiares.

    Estes encontros com a famlia tinham o propsito de integr-los nesse

    projeto e ter maior conhecimento das ressonncias destas atividades, alm de

    inform-los quanto ao contedo do curso oferecido. Durante o perodo de 8

    meses no estgio da especializao, pudemos observar que, mesmo diante das

    iniciativas positivas advindas dos pacientes, suas famlias geralmente reagiam

    com estresse e insegurana, podendo prejudicar tanto o desenvolvimento no

    tratamento, como na vinculao a ambientes externos. Para tanto, promovemos

    esses encontros para que houvesse maior parceria com essas fam