a aposta por uma teoria da abolição do sistema penal - revista verve - n 8 - 2005-2

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246 8 2005 a aposta por uma teoria da abolição do sistema penal 1 louk hulsman e jacqueline bernat de celis* Torna-se difícil a auto afirmação a partir de um rótu- lo negativo: o abolicionista do sistema penal sente em sua própria pele esta dificuldade específica quando é obri- gado a justificar sua recusa pelo sistema estabelecido como passo prévio para obter uma legitimidade e poder falar da sociedade sem sistema penal entendida como essencialmente portadora de positividades. 2 O abolicio- nista vislumbra uma sociedade na qual o sistema esta- tal, criado já faz dois séculos, não tem mais justificati- va. O fato de que este sistema exista o obriga, porém, a se pronunciar previamente sobre as razões pelas quais deseja descartá-lo. De forma definitiva, trata-se de uma imposição saudável que lhe permite unir seus esforços, de uma maneira realista, aos numerosos pesquisado- * Louk Hulsman é Professor Emérito da Universidade de Roterdan e integran- te dos seguintes foros internacionais: Nações Unidas, Conselho da Europa, Sociedades de Direito Penal e Criminologia. Jacqueline Bernat de Celis é dou- tora em direito e criminologia e pesquisadora no Centre de Recherches de Politique Criminelle de Paris. verve, 8: 246-275, 2005

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a aposta por uma teoria daabolição do sistema penal1

louk hulsman e jacqueline bernat de celis*

Torna-se difícil a auto afirmação a partir de um rótu-lo negativo: o abolicionista do sistema penal sente emsua própria pele esta dificuldade específica quando é obri-gado a justificar sua recusa pelo sistema estabelecidocomo passo prévio para obter uma legitimidade e poderfalar da sociedade sem sistema penal entendida comoessencialmente portadora de positividades.2 O abolicio-nista vislumbra uma sociedade na qual o sistema esta-tal, criado já faz dois séculos, não tem mais justificati-va. O fato de que este sistema exista o obriga, porém, ase pronunciar previamente sobre as razões pelas quaisdeseja descartá-lo. De forma definitiva, trata-se de umaimposição saudável que lhe permite unir seus esforços,de uma maneira realista, aos numerosos pesquisado-

* Louk Hulsman é Professor Emérito da Universidade de Roterdan e integran-te dos seguintes foros internacionais: Nações Unidas, Conselho da Europa,Sociedades de Direito Penal e Criminologia. Jacqueline Bernat de Celis é dou-tora em direito e criminologia e pesquisadora no Centre de Recherches de PolitiqueCriminelle de Paris.

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res que hoje desenvolvem trabalhos nos quais se colocaem questão a “justiça penal” e, ao mesmo tempo, convi-dar pensadores e profissionais a superarem o patamardas comprovações para trabalharem expressamente naelaboração de uma lógica alternativa que não se dete-nha na mera crítica do sistema penal, mas que se com-prometa na redefinição dos problemas. É desta formaque o termo abolição contém, em última instância, umtipo de pensamento ativo, e também uma perspectivacognitiva crítica e um movimento criador de liberdade.Tentaremos apresentar aqui os fundamentos e os pro-blemas deste posicionamento.3

I. Fundamentos da teoria da abolição do sistema penal

A dupla fundamentação da perspectiva abolicionistase mostra a partir de duas proposições complementa-res:

1) o sistema penal, longe de resolver os problemasque se propõe enfrentar, cria outros novos: é, de fato,um mal social;

2) mecanismos paralelos de solução de conflitos mos-tram que uma sociedade sem sistema penal já existe, aquie agora.

Reconhecer a existência deste fato, e permitir quese desenvolva, converteria o sistema penal em algo ob-soleto. Examinemos de perto estas proposições.

1) O sistema penal é um mal social

Pesquisas realizadas na área das ciências humanaspuseram em destaque, alguns anos atrás, um fato mui-to importante: o sistema penal, em seu funcionamentoreal, não responde, de maneira alguma, aos objetivos

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que lhe são designados.4 Acredita-se que o sistema pe-nal é o resultado de um processo político e jurídico bas-tante elaborado e coerente que o mantém sob constan-te controle. Acredita-se, também, pelo menos nas de-mocracias ocidentais, que o sistema penal é oinstrumento indispensável de uma justiça que protegeao mesmo tempo os direitos do homem e os valores quetais regimes proclamam como essenciais. Porém, nadadisto corresponde à realidade.

O sistema penal é, de fato, uma máquina burocráti-ca cujas subestruturas, atuando cada uma por seu lado,produzem decisões irresponsáveis. O sistema penalmenospreza as pessoas concretas, expropriando-as dosseus problemas, já que trabalha sem elas e contra elas.

A teoria abolicionista proporciona uma análise bemfundamentada destas duas críticas primordiais dirigi-das contra o sistema penal:

a) O sistema penal é uma máquina burocrática.

Já em 1975, um documento de trabalho elaborado nasNações Unidas, para o V Congresso para a prevenção docrime e o tratamento dos delinqüentes, sublinhava que estásendo considerado como algo coerente e lógico “um sis-tema” que “não atua realmente como tal sistema” e que,levando em consideração sua estrutura, não pode ofe-recer a coesão que habitualmente lhe é conferida.5

O pretenso “sistema de justiça criminal” está de fatoconformado por sub-sistemas hierárquicos que perten-cem a corpos diferentes, por sua vez ligados de modosdiferentes ao poder central, cujas regras profissionais— a deontologia, os critérios de atuação, as orientaçõesideológicas — desenvolvem-se com independência umasdas outras. Não existindo nenhum tipo de coordenaçãoespecífica, dificilmente é possível exigir dessas subes-truturas que assumam em conjunto os excelsos objeti-

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vos que o discurso oficial designa ao sistema penal: lu-tar contra a criminalidade, fazer justiça, proteger, aomesmo tempo, os direitos dos indivíduos e os da socie-dade etc. Diversas pesquisas realizadas em diferentesâmbitos mostram entretanto que a polícia, a magistra-tura, a administração penitenciária, e outras institui-ções que participam, direta ou indiretamente, da justi-ça repressiva, são movidas antes de mais nada por obje-tivos internos que interessam aos corpos a que perten-cem: prestígio do corpo, bem-estar de seus membros,procura de um certo equilíbrio na hora de realizar astarefas que lhe são designadas etc.

Por outro lado, a enorme divisão de trabalho que seconserva na sucessão de pequenas funções atribuídasa cada um dos agentes que intervém no processo penalmostram até que ponto a compartimentalização e a pro-fissionalização desumanizam esse processo, servindode fachada que se instala entre o interessado e os en-carregados de fazer transitar “seu assunto” de uma fasepara outra. É verdade que este é um traço característicode todas as grandes organizações burocráticas de nos-sas sociedades industriais, mas também é verdade que,na medida em que prepondera no interior de um siste-ma cujo primeiro objetivo é impor castigos, um tal funci-onamento gera conseqüências às que convém dedicarparticular atenção: ninguém governa nem controla estamáquina penal concebida para produzir sofrimento, nin-guém pode se sentir responsável desse sofrimento, nemimpedir que aconteça num ritmo que somente mereceo qualificativo de demencial, já que na França, por exem-plo, o sistema penal manda para a prisão mais de cemmil pessoas por ano. Isto é, estigmatiza por ano, se leva-mos em consideração as famílias afetadas, perto de meiomilhão de pessoas.

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b) O sistema penal opera mediante mecanismos re-ducionistas dos problemas humanos.

O sistema penal transforma os acontecimentos vivi-dos em problemas abstratos. Funciona a partir de filtrosde interpretação estereotipados que uniformizam, re-duzem e deformam a realidade. O mesmo rótulo servepara perseguir acontecimentos muito diferentes: umroubo com arrombamento numa escola vazia é pouco pa-recido ao que se comete na casa de uma pessoa de ida-de ou que mora sozinha. Um comportamento agressivodentro de uma família guarda pouca relação com umato violento perpetrado no contexto anônimo de uma rua.O sistema penal, na medida em que retira de seu con-texto pessoal e social o que persegue, o priva de suadensidade existencial, de uma tal maneira que em últi-mo termo atua sobre falsos problemas, prisioneiro deum universo conceitual que não tem nada a ver com arealidade vivida.

Ainda, o sistema penal, já que sua vocação consisteem designar os culpados para castigá-los, não só rein-terpreta os acontecimentos dos quais se ocupa, lançan-do mão de um rótulo rígido, mas produz, ao mesmo tem-po, uma resposta estereotipada: a estigmatização do au-tor selecionado para ser castigado.

O sistema penal se vê obrigado a castigar, quando hámuitas outras formas possíveis — e geralmente melho-res — de responder a um acontecimento desagradávelou doloroso. Consideremos, por exemplo, o caso da mu-lher que sofre maus-tratos. Condenar e encarcerar omarido é a única resposta possível? As mulheres que defato padecem estas situações já encontraram outras res-postas possíveis, como dirigir-se a um centro de prote-ção, associar-se ou reunir-se com mulheres que se en-contram na mesma situação, aprender técnicas de au-

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todefesa, abandonar o lar, recorrer a uma terapia fami-liar com o marido e os filhos, enfim, lançar mão de me-didas alheias ao sistema penal.

A teoria abolicionista identificou pelo menos cincomodelos de “resposta” a uma situação que o interessadoconsidera que não deve continuar suportando, e que foiprovocada por uma pessoa responsável:6 o modelo puni-tivo e também os modelos compensatório, terapêutico,conciliatório e educativo. Praticamente, o sistema pe-nal conhece apenas o modelo punitivo. De fato, todas as“medidas” diferentes da “pena” que se aplicaram no in-terior do sistema repressivo estatal, e que pretendiamser educativas ou terapêuticas, nunca chegaram a per-der, sabemos isso hoje, seu caráter angustiante e deson-rado. Sem dúvida, isso se explica pela própria gênese dosistema penal, que foi idealizado numa época de transi-ção entre a sociedade religiosa e a sociedade civil, eque continua sendo devedor do modelo escolástico, ra-zão pela qual aparece também impregnado da cosmolo-gia medieval. Uma verdade definida definitivamente eimposta de cima, juízes encarregados de distribuir umajustiça tão absoluta quanto serena, um determinadosofrimento imposto como réplica a atos consideradosmaus que se devem “purificar”, uma filosofia manique-ísta que divide os homens em bons e maus, em inocen-tes e culpados, tal foi sempre, e ainda é, a lógica do sis-tema penal vigente em nossas sociedades, que não é maisdo que a lógica do Juízo Final, na qual o Deus onipre-sente, onisciente e justiceiro dos escolásticos foi subs-tituído pelo código penal e o tribunal de cassação.

Somamos às duas acusações fundamentais que jácolocamos contra o sistema punitivo estatal — ninguémo controla e atua em relação a problemas que ele mes-mo cria — outras que culminam sua deslegitimação.Enumeremos algumas.

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Está claro que o sistema penal se aplica sobre a faixamais pobre ou mais vulnerável da população, enquantoque uma das razões de sua instauração no final do sé-culo XVIII foi, precisamente, acabar com a utilizaçãoarbitrária e abusiva da força dos poderosos contra os fra-cos. O sistema penal atua, de fato, como um instrumentoem mãos das forças com poder, que produz a marginali-zação social dos elementos indesejáveis, supondo as-sim a invalidação da afirmação teórica segundo a quala justiça deve ser igual para todos. Em oposição a suavocação democrática, o sistema penal reforça as desi-gualdades sociais.

Por outro lado, este sistema intervém com violênciana vida dos cidadãos. O sofrimento imposto àqueles quesão condenados pelo sistema — um de cada quatro oude cada cinco são enviados para a prisão — tende a sergeralmente minimizado. E isso é assim, em grande par-te, porque o sofrimento se aplica, como acabamos de lem-brar, sobre uma população da qual não estão próximos,nem psicológica nem socialmente, aqueles que fazemas leis e aqueles que as aplicam. O homem encarcera-do se vê privado de muito mais do que da liberdade. Apreocupação pelos “direitos do homem” fica do lado defora das prisões. Do lado de dentro, os condenados sãoabandonados, sem recursos, em mãos de uma adminis-tração onipotente, que tem reconhecido o direito de fun-cionar na base do segredo. Pois bem, esses bens e essesdireitos, junto à liberdade, que são suprimidos dos pre-sos a despeito das declarações mais solenes, coincidem,justamente, com os valores primordiais da civilizaçãoocidental: o direito à promoção pessoal decorrente daeducação permanente e contatos interpessoais respon-sáveis e enriquecedores; o direito de ter uma família eassumir em relação a ela as próprias responsabilida-des; o direito à saúde; o direito a uma vida afetiva esexual digna; o direito a condições de trabalho não hu-

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milhantes; o direito a espaços de intimidade pessoal etc.O criminologista norueguês Nils Christie sublinha in-sistentemente, e com toda razão, este aspecto tantasvezes esquecido do problema: em nossas sociedades oci-dentais, nas quais o nível geral de vida material, cultu-ral e espiritual das populações tende a crescer, o encar-ceramento punitivo se transformou em um castigo bár-baro, desmedido, com o aparecimento de uma distânciainsuportável entre aqueles que são objeto de condena-ção e a condição considerada normal ou desejável pelocidadão de um Estado de Bem-estar. O castigo penal éanacrônico.7

O sofrimento dos encarcerados é um mal absoluto,porque é estéril. Há sofrimentos que permitem um de-senvolvimento pessoal e que fazem dos que padecempessoas melhores. Mas todos os observadores concor-dam em afirmar que nunca é criativo o fato de isolargrupos de homens para obrigá-los a vegetar juntos, arti-ficialmente, num universo que se esforça por infantili-zar e alienar, que se empenha em não humanizar enão socializar. Este sofrimento é um absurdo.

2) Uma sociedade sem sistema penal já existe

Da mesma maneira que foi necessário vencer a for-ça da gravidade para explorar o mundo exterior à terra,é necessário sair da lógica do sistema penal para poderconceber uma sociedade sem ele. Os conceitos e a lin-guagem do sistema penal nos fixam em seu território,razão pela qual é preciso fazer um esforço mental consi-derável para conseguir desligar-se deste campo de gra-vidade.

Com ou sem intenção, ao falar de “crime” ou de “de-lito” surge imediatamente uma imagem: a imagem deum sujeito culpado. Se, ao contrário, se utiliza o termo

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“acontecimento”, a expressão “situação-problema” ouqualquer outra expressão de significação neutra, se abre,então, um espaço em que podem coexistir interpreta-ções diversificadas. Ao substituirmos os termos “delin-qüente” e “vítima” pela expressão “pessoas envolvidas emum problema”, evitamos que mentalmente se outorguema essas pessoas rótulos preconcebidos que limitam sualiberdade de consciência e as transformam, ipso facto,em adversários. Deste modo se abre um âmbito no qual épossível encontrar respostas muito diferentes às do mo-delo punitivo. Apenas quando se abandona a dialética pe-nal é possível libertar-se do ciclo “delinqüência-prisão-reincidência-prisão” que se apresenta como indestrutí-vel na lógica penal. Somente assim as pessoas que caemnas redes do sistema deixam de ser consideradas seresdiferentes, como uma espécie de grupo infra-humano dasociedade que não pára de crescer e para o qual não res-ta outra saída a não ser a marginalização. É a partir des-te momento que é possível imaginar reformas sociais ca-pazes de fazer menos freqüentes e menos pesados certosproblemas interpessoais indesejáveis — para além daspreocupações com a “prevenção”, cujo referencial conti-nua sendo ainda as definições do código penal.

O viajante que aceita adentrar nos territórios exte-riores à órbita de gravidade do sistema penal deve sa-ber, porém, que se arrisca a uma surpresa: descobrirque esse sistema do qual tanto se fala e que, como su-blinhamos insistentemente, constitui um mal social euma aberração, ocupa-se unicamente de uma ínfima par-te das situações teoricamente “criminalizáveis”.

No seio da população de um determinado país, e pen-sando no volume considerável de problemas interpesso-ais sentidos a todo momento, muito poucos são trata-dos, na realidade, com a mecânica repressiva, ora por-que muitos não entram no sistema, ora porque são

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colocados no âmbito da sua competência formal, ora por-que são apropriados por outros mecanismos de resolu-ção de conflitos. Observemos isto de perto.

a) Problemas classificados como de caráter penal nãoentram, de fato, no sistema repressivo.

Foram as pesquisas de sociologia penal que puseramem destaque um fenômeno que é classificado pela óticapenal como “a cifra negra” (fazendo referência aos ca-sos que deveriam passar pelo sistema, mas que de fatolhe escapam). Da perspectiva abolicionista preferimosconsiderar este fenômeno enquanto evidência do cará-ter claramente irrisório do sistema penal, evidência deque este sistema não é, de maneira nenhuma, indis-pensável para nossa sociedade, em contraste ao que odiscurso oficial profere.

Neste sentido, se produz uma série de observaçõesconvergentes: concretamente, as pesquisas de vitimi-zação mostram que um número muito elevado de atosteoricamente passíveis de punição não são sequer de-nunciados à polícia;8 ainda, os estudos sobre os meca-nismos dos quais se alimenta o sistema penal revelamque, em primeiro lugar, a polícia e, em segundo, o Mi-nistério Público (nos sistemas da Europa) acolhem ape-nas um número reduzido dos “casos” que lhe são desig-nados,9 de tal maneira que o exame crítico das estatís-ticas que fazem referência às condenações penaispermite observar que para pequenos assuntos de com-provada freqüência o volume de condenações é pratica-mente insignificante.10

Podemos, portanto, perguntar-nos o que acontece comos problemas dos quais o sistema penal não se ocupa,ainda que sejam de sua competência. É inquestionávelque numa porcentagem elevada de casos as vítimas nãofazem a denúncia devido a sentimentos negativos, como

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o medo de represálias, ou a convicção de que “a justiça”será impotente para resolver estes casos. Em contra-partida, outros que denunciam seu problema diante dapolícia são obrigados a lamentar que seu caso, ao serinterrompido pelos encarregados de realizar os trâmites,não encontra um eixo na via penal. Na realidade, umaanálise um pouco mais profunda das situações nas quese encontram aqueles que não recorrem à justiça mos-tra que os problemas classificados como de tipo penal,que não chegam a alimentar as engrenagens do siste-ma, permanecem à margem devido, normalmente, à von-tade expressa das pessoas diretamente envolvidas.

É possível afirmar que muitas vezes a vítima de umacontecimento funesto não pede contas a ninguém por-que não considera que exista um autor culpável ou res-ponsável por ele. Alguns exemplos muito simples per-mitem compreender a diversidade de reações que apa-recem diante de um caso deste tipo. Quando alguémmorre numa mesa de operações, não raro se escuta:“foi um acidente”, ou também: “Deus assim o quis”, en-quanto que se escutam, da mesma maneira, vozes quedenunciam uma responsabilidade profissional. Se al-guém morre por overdose de medicamentos, se compõeum concerto parecido de interpretações divergentes:para alguns “sua hora chegou”, e aceitam o aconteci-mento como se fosse uma fatalidade, outros condenamque o paciente ingerisse por erro a dose mortífera, enão faltam aqueles que suspeitam que o interessadodecidira acabar voluntariamente com sua vida, coisaque alguns aprovarão e outros considerarão condená-vel. No caso de que alguns acreditem que um parenteou uma pessoa próxima ajudara o doente a morrer, apa-recerá uma divisão de opiniões entre aqueles que acu-sarão a esse terceiro de “ajudar ao suicídio”, de “omis-são de assistência a uma pessoa em situação de risco”,

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e aqueles que considerem esta ajuda um gesto de va-lentia, um serviço enorme prestado em nome da ami-zade. A teoria abolicionista colocou, assim, em evidên-cia uma espécie de tipologia dos marcos de referênciapara classificar as interpretações que geralmente seproduzem em relação a uma experiência vivida.11 Umaprimeira classificação distingue os marcos naturais esobrenaturais dos marcos sociais de interpretação. Emum marco natural o acontecimento é pensado como umacidente. No interior dos marcos sociais de interpreta-ção é possível distinguir um prisma social de caráterestrutural e um prisma social de caráter pessoal. No pri-meiro caso, o acontecimento é atribuído a uma estrutu-ra social e, portanto, a resposta passa principalmentepor uma reorganização social. No segundo, o aconteci-mento é atribuído a uma “pessoa” ou a um “grupo perso-nalizado”. No interior deste último prisma distinguimostipos de interpretação que se resumem em cinco mode-los de resposta: punitivo, compensatório, terapêutico,educativo e conciliatório.

Nesta linha, que desloca a interpretação dos fatospara a iniciativa dos interessados, é possível afirmarque, em uma grande quantidade de casos, as pessoasimplicadas em atos que a lei penal considera puníveisnão encontram nisso nenhum tipo de problema quemereça ser resolvido por meio de uma intervenção cri-minalizante.12 Como já comprovamos muitas vezes, oinsulto, a calúnia, a violência em palavras ou gestos,determinados comportamentos sexuais, o abuso do po-der ou da autoridade, assim como outros atos que seproduzem com freqüência em nosso meio social, e nosquais podemos julgar o papel de vítima ou de autor, po-deriam ter provocado uma ação penal se o nosso parâ-metro fosse as regras formais do sistema, ainda que, nagrande maioria dos casos, não se lance mão deste re-

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curso. Se a maior parte dos problemas fosse resolvidaunicamente por via penal, a vida social seria pratica-mente impossível.

Sem negar a existência — compreensível — de ca-sos nos quais os sentimentos de retribuição são explici-tamente, e por vezes violentamente, expressados, pes-quisas coincidentes realizadas em diferentes países apartir de uma ótica de vitimização, mostram que as pes-soas que se consideram vítimas de uma desgraça — quepode ser atribuída, segundo elas mesmas, a um indiví-duo concreto, não recorrem normalmente à via penal; de-sejam geralmente obter reparação, mais do que saberque se castiga ao autor, isto é, desejam entrar num pro-cesso de conciliação.13 Ligam-se assim, sem saber, a umatradição ancestral: a distinção entre assuntos civis eassuntos penais não existe nas sociedades “naturais”,e só apareceu tardiamente no Ocidente.14 Esta distin-ção jurídico-política não recobre nenhuma “natureza”particular dos problemas em questão, e as pessoas viti-mizadas a ignoram saudavelmente, como veremos aseguir.

b) Os problemas classificados como civis ou conside-rados enquanto tais na prática.

Como já dissemos, só uma pequena proporção dosfatos definidos pela lei penal como criminais ou delitu-osos são realmente perseguidos e condenados. Isto de-veria suscitar uma primeira questão — inquietadora —por que isto acontece? Mas a esta pergunta se soma ou-tra, que incrementa a perplexidade do observador avi-sado: por que o legislador (e a jurisprudência) subme-tem à lei penal determinados tipos de atos ou comporta-mentos em lugar de outros?15 Ao observar com cuidado,comprova-se que um número importante de fatos quepoderiam ser objeto da intervenção do sistema penal —

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em virtude das orientações que parecem guiar a ativi-dade criminalizante do poder — na realidade não o são.

O âmbito civil abraça níveis e zonas extraordinaria-mente determinantes e variadas da atividade e das re-lações interpessoais, nas quais importantes aconteci-mentos vitimizantes são observados, a partir de umaaproximação não estigmatizante, pelas pessoas que apre-sentam uma demanda contra alguém, apelando para oprincípio da responsabilidade denominada “civil” e paraa noção de risco.

Naqueles setores que têm um grande peso econômi-co na vida da nação é muito raro se recorrer à via judi-cial, e mais raro ainda o sistema penal entrar em ação.Os importantes problemas alfandegários, financeiros,fiscais e ecológicos que surgem no mundo dos negóciossão habitualmente resolvidos pela via da negociação,da transação e da arbitragem, com o consentimento, epor vezes a proposta, das administrações públicas en-volvidas.

Os acidentes de trabalho são classificados em princí-pio, pelo menos em alguns países europeus, como pro-blemas civis regulamentados pela Segurança Social. Osproblemas que se referem aos contratos e às condiçõesde trabalho figuram também entre os problemas deno-minados civis.

Em que se diferenciam os problemas tratados pela“via civil” daqueles tratados pela “via penal”? A mentali-dade jurídica sabe ser criativa para justificar as clas-sificações do direito positivo; mas nenhum critério podelutar com a observação dos fatos.

Os acidentes de trabalho, que produzem na França3.000 mortes e mais de 300.000 incapacitações perma-nentes de trabalho por ano, apresentam uma variantede extrema gravidade para as famílias afetadas. As práti-

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cas conciliatórias, evocadas em relação ao “mundo dosnegócios”, recobrem atividades eventualmente mui-to vitimizantes para grupos importantes da populaçãoe, por vezes, para a coletividade nacional consideradaem seu conjunto. O fato de que esses problemas pos-sam ser resolvidos pela “via civil” mostra que a im-portância do dano ocasionado não permite situar umacontecimento a priori no campo do penal, nem deli-mitar este âmbito. Um pretendido “valor essencial”que deveria ser resguardado por cima de tudo tam-bém não permite realizar esta delimitação. As trêsquartas partes das pessoas atualmente presas naFrança estão presas — ou estarão, já que 53% sãodetenções preventivas — porque se apropriaram dealguma espécie de bem que pertencia a outro.16 Pode-mos verdadeiramente comprovar que um “valor supe-rior” a todos os outros foi infringido por estes deten-tos? É sem dúvida desagradável, e por vezes doloroso,ser privado dos bens próprios, mas não somos muitomais profundamente atingidos por outros aconteci-mentos que não entram no circuito penal como, porexemplo, os problemas que afetam nossa condição deassalariados, ou por aqueles que surgem no casal ouno interior das famílias?

A inexistência de uma noção ontológica do crime (oudo delito), isto é, o fato de que não seja possível reconhe-cer nos comportamentos atualmente definidos como pu-níveis uma natureza intrínseca específica, fica evidentequando o Poder se propõe deslocar um setor inteiro docampo jurídico para outro em função dos interesses so-cio-políticos em jogo.17 Mostra que tudo poderia ser civili-zado se existisse uma vontade política para tanto. É pre-cisamente isto que reivindicam os abolicionistas do sis-tema penal.

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II. Problema de fundo na teoria da abolição do siste-ma penal

Quando se considera o sistema penal um mal sociale quando se percebe que há áreas de sociabilidade quese desenvolvem à margem deste sistema, como não de-sejar sua total supressão?

Façamos o esforço de evitar um certo vocabulárioascético que tende a esconder a realidade. Como já as-sinalou Nils Christie, quando se fala de “pena privativade liberdade”, de “responsabilidade de tomar conta dealguém”, ou de “internos” esquece-se daquilo que de fatose está tratando. Chamemos, então, as coisas por seunome (penas, administração penitenciária e presos) e ten-temos sair do discurso puramente ideológico para noscolocar as verdadeiras questões, aquelas que faz tantotempo que a sociologia penal formulou, e diante das quaisresponde com suficiente clareza para produzir dor e ver-gonha. Por exemplo estas: Quem está na prisão? Porquais motivos? Por conta de quais mecanismos de discri-minação? Qual o significado da detenção para os homense as mulheres encarcerados em nossas prisões, nascondições em que elas se encontram? Por que as pessoasencarceradas em nossas bastilhas de hoje são privadasdos direitos humanos? Como explicar a estranha impo-tência dos poderes políticos diante da inflação de textospunitivos e o aumento de condenações que pressupõem“penas privativas de liberdade”, quando estes mesmospoderes políticos reafirmam a sua vontade de fazer dareclusão no cárcere a medida excepcional de um siste-ma penal que seria em si mesmo o último ratio da justi-ça oficial?

A história nos ensina que não adianta pretender “hu-manizar” a prisão e que não se muda de sistema sim-plesmente retocando os objetivos da pena, sua duração,

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seus fundamentos teóricos ou suas modalidades. O sis-tema penal, da forma que hoje ele é, não pode ser maisdo que uma máquina produtora de sofrimentos inúteis,tão sobrecarregado por seus mecanismos burocráticose estereotipados que despreza os reais protagonistas.Se verdadeiramente se deseja sair de uma situaçãoesgotada, se pretende-se com seriedade que este siste-ma deixe de gerar um mal que muitos, honestamente,desprezam, é necessário imaginar outra coisa. É issoque pretendem fazer com o sistema penal os partidáriosda abolição que se propuseram, a longo prazo, alcançarseu desaparecimento e, a curto prazo, evidenciar suaspartes. Para consegui-lo trabalham no interior de umnovo marco conceitual, que tentaremos precisar em se-guida e que terá alguns efeitos previsíveis na dinâmicasocial.

1. O novo marco conceitual

Para o abolicionista do sistema penal, o primeiro passonão é reformar os textos legais, e sim instaurar outraspráticas capazes de conduzir a uma visão diferente dasociedade e dos conflitos interpessoais que na atualida-de se amarram e se desamarram.18 Certamente, é im-portante conseguir reformar os textos legais numa li-nha de um máximo de descriminalização, já que estra-tegicamente é impossível, a curto prazo, pensar em seudesaparecimento puro e simples, mas também é neces-sário trabalhar a longo prazo e, neste sentido, o que pro-põem os abolicionistas?

O marco conceitual dominante, posto de lado pela pró-pria política criminal, pelas legitimações do sistemapenal e, também, pela criminologia, pressupõe uma no-ção ontológica do crime. A criminalização primária tentadefinir quais são os comportamentos que respondem a

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esta realidade, enquanto que a criminalização secun-dária tenta reprimi-los. A teoria abolicionista, por suavez, negando a existência de uma noção ontológica docrime, tenta extrair as conseqüências desta negação.Por outro lado, pretende-se, assim, descartar qualquertipo de esquema conceitual que elimine a experiênciavivida pelas pessoas diretamente implicadas em umasituação de vitimização. Estes pontos essenciais per-mitem colocar alguns pontos de apoio na procura do dis-curso alternativo que tentamos elaborar. Poderiam serassim enumerados os pressupostos básicos da lógica quepostulamos:

a) Nenhum acontecimento que implique em vítimasé atribuído por adiantado a um autor culpado.

b) As situações que colocam problemas — a pessoasindividuais ou a coletivos19 — podem servir de circuns-tância para uma intervenção externa às pessoas nelasimplicadas, unicamente no caso de que elas o peçam.

c) As soluções específicas que devem resolver ou tor-nar viáveis as situações-problema não são predetermi-nadas: a escolha do modelo de resposta a ser adotadocorresponde aos interessados.

d) Os conflitos produzidos no interior de um grupo de-vem ser preferencialmente resolvidos no interior dessegrupo.20 Quando uma pessoa envolvida numa situaçãoproblema deseja solucioná-la com ajuda de uma inter-venção externa pode, porém, recorrer ora a uma media-ção psicologicamente próxima, ora a uma justiça oficialque adote o estilo civil de resolução de conflitos.21

e) Quando em uma situação-problema não aparecenenhum recurso concreto para viabilizá-la, devem serproduzidos um apoio e propostas de reconciliação queajudem a vítima a superar a dita situação.

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O abandono dos esquemas mentais próprios do siste-ma penal — que aparecem esboçados nestas propostas— repousa num processo sobre o qual convém sublinharsua originalidade. O abolicionista pretende problemati-zar a noção de crime (ou de delito), provocar uma revira-volta radical em relação ao sistema penal e procurarapoio numa noção flexível e possível de ser aplicada aqualquer tipo de conflito interpessoal que demande so-luções: nos referimos à noção de situação-problema.22

O abolicionista não pretende atuar, como acontececom a maior parte dos reformadores, no momento dafase final do sistema, quando, depois de ter atravessadotodas as seqüências anteriores, o incriminado se con-verterá irremediavelmente em um excluído. O abolicio-nista, na medida em que está convencido de que as pes-soas apanhadas pelo sistema penal sofrem sempre umprocesso de degradação (inclusive saindo absolvidos), nãointervém como um aval quando tudo já foi decidido, esim previamente tenta, por todos os meios, evitar que aspessoas entrem no sistema penal.

A utilização privilegiada da noção de situação-proble-ma, que implica numa rejeição ao conceito legal de cri-me (ou de delito), permite adotar uma postura de exteri-oridade que caracteriza a perspectiva abolicionista.

Destaquemos que a noção de situação-problema nãofoi proposta para substituir a noção de crime, como se setratasse de procurar uma chave melhor para abrir amesma fechadura. Em oposição à noção de crime, da for-ma em que esta é utilizada no sistema penal, a de situ-ação-problema aparece como um conceito aberto quedeixa nas mãos dos interessados a possibilidade de es-colher o marco de interpretação do acontecimento, as-sim como a orientação que deve levar a uma possívelresposta. Pretendemos também evitar que novas estru-

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turas, em último termo bastante próximas do sistemapenal, sejam introduzidas graças a um nome diferente,por exemplo, com o pretexto de terapia ou de educação.

O abolicionista se apóia nas observações que desta-camos antes, isto é, na idéia de que um grande númerode situações que entram atualmente no raio de ação dosistema penal não têm motivo para serem contempladascomo situações que precisam de uma intervenção externa.Em uma sociedade sem sistema penal não apenas fatoalgum, comportamento algum, será definido e rotuladopreviamente como fato punível (crime ou delito), mastambém nenhuma situação será considerada previa-mente um problema a resolver até que os interessadosse pronunciem.

Conceber, pois, uma sociedade sem sistema penalnão significa de maneira alguma forjar um sistema desubstituição que preencheria os moldes nos quais se fun-dava o sistema retirado. A sociedade sem sistema pe-nal supõe, sim, o contrário: que nenhuma intervençãoexterna terá modo de existir sem a demanda expressadas pessoas interessadas, já que, em última instância,delas depende a solução do conflito.

2. Em direção a uma nova dinâmica da vida social

As vantagens do delineamento abolicionista nos pa-recem evidentes: em primeiro lugar, obviamente, se su-prime drasticamente o mal social que representa o sis-tema penal, do qual nos ocupamos extensamente emoutros trabalhos; mas, além disso, se produzirão por deri-vação outras conseqüências positivas da nova prática.

Considerar uma situação em suas múltiplas dimen-sões, e não como um ato e seu ator imediato: deste modose desvanece a idéia de que a única solução está na

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intervenção direta na vida desse ator. É possível tentarinfluenciar em outros fatores que puderam contribuirpara a existência desta situação. Por exemplo, é possí-vel que a única medida para evitar os acidentes nasestradas não passe pelo castigo aos condutores. Em al-guns países se começa a aplicar uma política de preven-ção, no sentido neutro do termo (sem referência ao pe-nal), modificando os traçados das estradas, impedindo acomercialização de determinados tipos de veículos eregulamentando de outra maneira a circulação ou aspermissões para dirigir. Com isto se espera fazer baixara crescente curva de acidentes. Um caso muito dife-rente, mas que pode servir de ilustração, é a política denão dramatização de determinados atos que na atuali-dade os meios de comunicação tendem a apresentarcomo muito freqüentes, o que poderia fazer diminuir osentimento de insegurança e criar um contexto socialmais saudável, no qual os riscos reais poderiam ser ava-liados, perdendo-se o medo fantasma e sendo possível,deste modo, fazer frente aos verdadeiros problemas.23

Somos conscientes de que pelo fato de descriminali-zar um ato este não deixa de ser problemático, mas ofato de não enquadrá-lo como um ato punível por princí-pio permite muitas vezes que apareçam outras dimen-sões do problema: nos países nos quais o aborto não épenalizado, as mulheres que decidem abortar sabem quepodem experimentar problemas psicossomáticos, e osdependentes químicos são mais conscientes do fenôme-no de dependência que pode brecar o desenvolvimentode suas atividades ou seu enriquecimento pessoal. Emtodo caso, a descriminalização outorga aos interessa-dos a possibilidade de colocar explicitamente seus pro-blemas, de consultar outras pessoas para obter conse-lhos úteis etc. A supressão da ameaça penal criou umasituação positiva de maior diálogo e solidariedade.24

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Quando uma situação conflitiva se apresenta nestemarco de tolerância, os grupos aos que pertencem osinteressados (família, igreja, empresa, associações eoutros) podem desempenhar um papel primordial, comojá acontece com os problemas que não foram tragadospelo sistema penal. Pois bem, a sociedade sem sistemapenal requereria, sem dúvida, a multiplicação de pe-quenas instâncias de mediação flexíveis e especializa-das que estão muito presentes nas sociedades “natu-rais” e que estão sendo recuperadas com êxito em algu-mas regiões do mundo.25 Estas instâncias diferem doconciliador, na medida em que não são árbitros queimpõem uma solução, mas pessoas que tentam ajudaros interessados a compreender sua situação e a encon-trar, eles mesmos, a solução. O mediador é uma perso-nagem que é necessário promover em nossas socieda-des de tecidos flexíveis. Uma sociedade na qual se acei-tasse prazerosamente a mediação, na qual as pessoastentassem assumir solidariamente seus problemas,apresentaria traços mais acolhedores e cálidos que aque-les das sociedades que nós conhecemos, nas quais a mo-nopolização da justiça pelos mecanismos oficiais incitaos cidadãos a descarregar nestes mecanismos questõesque unicamente eles podem, na realidade, resolver deum modo satisfatório (se é que existe uma solução).

Efetivamente, alguns problemas, sublinhemos umavez mais, não têm solução, e o exacerbado poder que seconfere em nossas sociedades aos sistemas oficiais dejustiça contribui, sem dúvida, para promover a crençanas soluções milagrosas que esta poderia dar. Em umasociedade na que se desse maior importância às media-ções naturais, as pessoas atingidas por um acontecimen-to vitimizador estariam menos tentadas a acreditar nes-sas soluções milagrosas e começariam desde muito cedoa realizar sobre si mesmas o indispensável trabalho de

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amadurecimento que lhes permitiria assumir as adver-sidades.

Não se trata, obviamente, de suprimir a idéia de res-ponsabilidade pessoal, que poderia muito bem ser as-sumida em algum momento do processo de mediação doqual falamos. Também não se trata de privar os inte-ressados de recorrer aos mecanismos do Estado, namedida em que desejem beneficiar-se de uma garantiaoficial, ou também em situações de crise, mas não éeste o momento de aprofundar todos esses pontos.26 As-sinalemos simplesmente que o abolicionista do siste-ma penal que, como ficará claro, não idealiza o âmbitocivil designando a ele uma função substitutiva, vê no sis-tema penal um último recurso do qual poderá lançarmão quando se considere indispensável a mobilizaçãode uma força física procedente do monopólio estatal, quepor sua vez não é objeto de contestação por parte do abo-licionista.

A abolição do sistema penal não implica também nodesaparecimento de todas as medidas de pressão dasque a polícia dispõe atualmente, e sim numa reorgani-zação de sua utilização. Não se trata de responder àsnecessidades de um procedimento criminalizante, masde fazer frente às necessidades de uma situação proble-ma concreta. Estas medidas de coação deveriam sersubmetidas a diferentes tipos de controle. No interiordestes controles, a posição do juiz, como guardião efeti-vo dos direitos humanos, é, numa perspectiva abolicio-nista, redefinida e reforçada. O abolicionista, em ter-mos gerais, convida o conjunto do corpo de polícia e dosmagistrados a passar para uma situação muito maisgratificante que a que ocupam atualmente quando tra-balham no sistema penal. É este um aspecto capitaldesta nova perspectiva.

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Esta lógica alternativa que propomos tem possibilida-des de ser favoravelmente acolhida pelos meios especi-alizados e pela opinião pública? Pode parecer impruden-te esperar que isto seja assim, se levarmos em conside-ração a força da inércia e as resistências psicológicasque fazem ainda que se manifeste a necessidade de umsistema penal, eventualmente reduzido a uma expres-são mínima. Estas reações repousam, porém, sobre umfalso consenso, e certos sinais antecipadores de um des-contentamento mostram que é importante elaborar umateoria da abolição para o momento em que forças impor-tantes e convergentes percebam que este é um objetivodo futuro.

O defensor da abolição do sistema penal em sua posi-ção teórica se afirma, sem dúvida, claramente frente atodos os revisionismos e reformismos, mas não é em pri-meiro termo um ideólogo. Depois de chegar a esta posi-ção pelas vias realistas da observação empírica e cientí-fica, continua sendo um homem da rua, solidário comtodos aqueles que são esmagados pelo sistema penal,27 edisposto a trabalhar com os pesquisadores, gestores, pe-nalistas e outras pessoas que desaprovem este sistema.

Numerosas equipes de pesquisa vêm orientando seustrabalhos, já faz alguns anos, numa direção que permi-te que hoje se fale da “não evidência do penal”, comotambém programar toda uma nova série de pesquisasdestinadas a fundamentar este diagnóstico de maneirainequívoca.28 Outras pesquisas, realizadas a partir dosacontecimentos vitimizantes, contribuem também paramostrar a viabilidade de uma sociedade sem sistemapenal que para nós, como mostramos, já existe na atua-lidade.29 Umas e outras preparam o momento em queserá possível e indispensável aos olhos de todos umareinterpretação global do setor normalmente chamadode política criminal.

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Se fizermos referência à opinião pública, já são mui-tos os que percebem os aspectos nefastos e as contradi-ções, para não dizer o absurdo total, do sistema penal.São levantadas atas, denunciados escândalos, inicia-dos movimentos, esporádicos ou organizados, que expres-sam uma inquietação popular em relação aos presos eàs vítimas; sindicatos de magistrados, de advogados, deespecialistas que trabalham no campo do para-penal edo para-penitenciário; por exemplo, sindicatos dos fun-cionários penitenciários, põem em evidência, nas suaspublicações, a crise de consciência que vai ganhandoterreno lentamente entre todos aqueles encarregadosde fazer funcionar o sistema penal.

Ainda não sabemos se as dúvidas e expectativas quemanifestam estes vários movimentos chegarão a diluir-se para poder colocar claramente o que denominamos overdadeiro debate.30 Portanto, é urgente que exista umavontade política que se atreva a questionar os velhos con-dicionamentos sobre os quais descansa um sistemadefasado e que se preocupe em implementar reformassociais adaptadas à mentalidade e às necessidades denossa época. Contribuir para que esta se torne realida-de constitui, talvez, uma das principais apostas na atu-alidade para os defensores da teoria da abolição do sis-tema penal.

Tradução do espanhol por Natalia Montebello.

Notas1 Este artigo foi publicado na Revue de l’Université de Bruxelles (1-2, 1984, pp. 297-317) numa edição monográfica dedicada à “razão penal”. Publicado em espanholpela revista espanhola Archipiélago Nº 3, em um dossiê sobre “O peso da justiça”, em1989.

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2 Isto não significa que com o desaparecimento do sistema penal desapareçam asdificuldades ou se resolvam determinados problemas que coloca a sociedade civili-zada: exclusões, desigualdades, relações de força entre as pessoas e os grupos etc.3 Uma apresentação abrangente do abolicionismo pode ser vista em Louk Huls-man e Jacqueline Bernat de Celis. Peine perdues, le système pénal en question, Le Centu-rion, Paris, 1982 (o livro foi traduzido para o espanhol com o título Sistema penal yseguridad ciudadana: hacia una alternativa, Ariel, Barcelona, 1984). [A publicação emportuguês, Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução de Maria LúciaKaram. Niterói, Luam, 1993, encontra-se esgotada aguardando nova edição.N. E.]4 Fique claro que distinguimos explicitamente o sistema de seus administradores:polícia, tribunais, prisões... Nossa reflexão política se dirige contra o próprio siste-ma, na medida em que funciona à margem das pessoas que o fazem atuar.5 Ver U.N. Publications, New York, 1975. Conference Paper A/Conf. 56/4, p.16.6 Muitos acontecimentos vitimizadores não são imputados a um autor mal-intenci-onado, mas são interpretados por outros marcos de referência.7 Nils Christie. Limits to Pain. Oxford, Martin Robertson, 1981.8 É possível admitir, em termos gerais, que menos de 1% dos fatos “criminalizáveis”é denunciado à polícia. Contrariamente ao que se poderia pensar, os que não sedenunciam não são pequenos delitos, e sim casos sérios, inclusive muito graves. Oestudo deste fenômeno tende a sistematizar-se nos Estados Unidos, no Canadá eem certos países da Europa, como nos Países Baixos. Uma pesquisa de vitimizaçãorealizada na Alemanha, entre funcionários de uma grande empresa, apresentou esteresultado surpreendente: entre 800 atos teoricamente puníveis, atestados por essesfuncionários, somente um foi denunciado à polícia.9 Consultar especialmente o livro de P. Robert e C. Faugeron. Les forces cachées de lajustice. Paris, Le Centurion, 1980. Destacamos, também, que os critérios para filtraros fatos castigáveis não permanecem constantes. Os trabalhos do L.A. 313 (antigoServiço de estudos penais e criminológicos) de Paris mostram concretamente que deter-minados fatos entram ou não no aparato penal em função da sua capacidade detrabalho em um dado momento. Quando a máquina penal não pode absorver oscasos que lhe são enviados, os expulsa. Ainda por cima, os critérios de seleção dosfatos considerados puníveis não são os mesmos em cada jurisdição, como tampoucopara um mesmo tipo de delito, o que supõe uma negação prática da descriçãoteórica da lei penal. Por exemplo, no Tribunal de Paris o sistema penal acolhe osassuntos rotulados como “roubo” numa porcentagem muito maior se o autor nãotem domicílio fixo, se não tem trabalho ou se é um estrangeiro que não regularizousua situação administrativa, todos critérios alheios à lei penal.10 Por exemplo, nos Países Baixos houve apenas 600 condenações por abuso deconfiança em 1980, enquanto que as situações deste tipo são extraordinariamente

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freqüentes na prática. (Ver Louk Hulsman e Jacqueline Barnart de Celis, 1982,op. cit., p. 81).11 Ver Ver Louk Hulsman e Jacqueline Barnart de Celis, 1982, op. cit., pp. 94 e ss.12 As pesquisas de vitimização realizadas periodicamente nos Estados Unidos mos-tram que quase ninguém se reconhece vítima de atos de violência “criminal” nafamília, enquanto que, na prática, os serviços sociais mostram a freqüência destesatos violentos. É possível inferir disso que aqueles que padecem desses atos, apesardeles representarem um grande peso em suas vidas, optam por pensar que umaintervenção criminalizante não resolveria de maneira alguma seu problema.13 Consultar J. Bernat de Celis. “L’experience du service d’accueil des temoins etvictimes du Tribunal de Paris” in Revue de Sciences Criminelles, 3, 1981. Tais consta-tações mostram com clareza até que ponto há extrapolação em se defender anecessidade de um sistema punitivo que assumisse os sentimentos de pretensavingança de todas as vítimas. Insistamos, porém, em que a teoria abolicionista nãodescarta o modelo punitivo de reação social, e sim descarta a materialização quedele faz um sistema estatal, completamente alheio aos modos de sanção aplicados nasociedade. De fato, há muitas outras maneiras de experimentar como castigodeterminadas reações, especialmente no marco do sistema civil. Ver Louk Huls-man e Jacqueline Barnart de Celis, 1982, op. cit., p. 154.14 A partir do século XIII se consagrou um poder crescente do Estado no processopenal, que produziu como efeito mais característico o distanciamento das vítimas.15 A sociologia penal fala de criminalização primária para designar comportamentos-tipo que devem ser submetidos ao direito penal e de criminalização secundária aoreferir-se à atividade que tem por objetivo selecionar os casos concretos para enviá-los ao sistema penal.16 A estatística foi realizada segundo os critérios oficiais do Poder. Por que apropri-ar-se de maçãs numa banca é punível sob a classificação de roubo, enquanto que nãopagar uma dívida continua sendo assunto civil?17 O Ministro de justiça francês, numa entrevista televisionada em 1983, insinuouque estava sendo estudada a possibilidade de transferir todos os contenciosos parao âmbito do civil. Como se sabe, é nesse campo onde surgem numerosos e impor-tantes litígios e, apesar de que a maior parte dos problemas de trânsito automo-tivo é resolvida através de multas administrativas ou através de seguros, os“casos” que são designados, mesmo assim, ao penal representam um volumetão importante que ameaçam obstruir a máquina repressiva. Convém, então,prestar atenção à confirmação eventual de uma notícia cuja importância parecenão ter sido muito bem captada pelos meios de comunicação, já que passoupraticamente desapercebida.18 Se não lhe damos especial atenção, deixamos que funcione um sistematotalmente inapto para os problemas contemporâneos, na medida em que se

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baseia em uma visão já superada da sociedade. Os autores dos códigos, e entreeles os dos códigos vigentes, ignoravam de que maneira se estrutura um serhumano, como se adquire um comportamento ou se estrutura a relação comoo outro. Desconheciam a enorme complexidade sócio-política e técnica denossas super-estruturas industriais ou pós-industriais. Não podiam imaginaro tipo de relações que se estabeleceriam entre os homens e as mulheres queviveriam na sociedade posterior a Marx e a Freud, no século dos movimentosfeministas, das correntes ecológicas e das reivindicações regionalistas. Empe-nhar-se em conservar códigos de fundamentos anacrônicos equivale a conde-nar-se a reorganizações sem solidez e a reformas sem sentido.19 Não desconhecemos que o Ministério Público deve representar o interesse dascoletividades ou da coletividade, mas justamente criticamos a esse órgão especi-alizado que não pode desempenhar essa função de um modo satisfatório, já quenão possui a experiência pessoal dos problemas colocados, e se mantém desli-gado da realidade vivida. Quando falamos de coletividade fazemos referência aosgrupos diretamente envolvidos numa situação problema. Nos referimos, porexemplo, às pessoas prejudicadas pela poluição, ou aos habitantes de um bairroou de um município que sofrem repetidos ataques contra bens pessoais oucoletivos.20 Seguindo alguns criminologistas, poderia se falar em “tribos” para fazerreferência, por exemplo, ao mundo empresarial, a um clube de ciclismo, ou aum bairro que possui uma vida comunitária... No extremo oposto, o Estado,que não representa nenhum grupo natural, não pode ser assimilado a nenhumacomunidade de vida.21 O termo “civil” não pode ser entendido no sentido estrito, com uma signifi-cação jurídica. Pensamos que ele está implícito em determinados procedimen-tos administrativos.22 Precisemos, porém, que num primeiro momento situamos nossa análise noque o sistema penal denomina como “delinqüência tradicional”: acontecimen-tos que atingem às coisas e ao patrimônio, à segurança das pessoas frente àsagressões, à segurança domiciliar etc., acontecimentos nos quais geralmenteexiste uma vítima conhecida, e que constituem a causa, ao mesmo tempo, damaior parte das condenações a prisão. Daqui o interesse específico que apresen-tam para nós.23 As técnicas suscetíveis de modificar os caracteres físicos e o contexto psico-lógico do entorno são ampliamente analisadas no importante Rapport sur ladecriminalisation (Comitê Europeu para os Problemas Criminais, Estrasburgo,1980).24 A extensão deste texto não nos permite entrar em todos os detalhes. Ouvi-mos sempre a reclamação de que a descriminalização não seria uma medida tãopositiva para a “grande criminalidade”. Lembremos que o que se denomina

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“crime” no sistema penal é sempre uma questão de definição. Assim, se umpolicial mata alguém, sempre se trata de um “acidente”, enquanto que se oautor de um assalto mata alguém sempre será um homicídio ou um assassinato.Um exemplo significativo referido a fatos graves pode nos fazer refletir: quan-do os molucanos seqüestraram um trem nos Países Baixos e fizeram algunsreféns, um morreu. Muitos anos depois , os antigos reféns continuam visitandoos molucanos na prisão. Sua forma de interpretar o acontecimento não coinci-de, portanto, com a do público em geral, externo a ele, que o percebe pela óticapenal. Lembremos também que, no que se refere a acontecimentos irremediá-veis, desejamos que sejam postos em prática processos de reconciliação queatualmente não existem. O sistema penal deixa no abandono, ao contrário, asvítimas de atos gravemente vitimizantes.25 Concretamente na Califórnia. Algumas associações começam a fazer o mes-mo na França, por exemplo S.O.S. Agressions-Confilcts, associação de ajuda avítimas e de mediação nos conflitos entre pessoas (108 rue de Vaugirad, 75006Paris).26 Ver Louk Hulsman e Jacqueline Barnart de Celis, 1982, op. cit.27 Isto é, os condenados, as vítimas, os agentes do sistema e, por último, toda asociedade, que sofre sem saber, devido à confiança que entrega a um sistemainadequado.28 P. Robert. Informe científico do L.A. 313 (antigo Serviço de Estudos penais eCriminológicos, Paris e na atualidade CESPID, Centro de Investigações Socio-lógicas sobre o Direito e as Instituições Penais).29 Concretamente, as realizadas pela Escola de Criminologia de Montreal.30 Este debate também não está politizado. Partidos de direita e de esquerdaestão, é verdade, em desacordo sobre o objetivo penal, sobre algumas questõesde método e sobre o lugar que devem ocupar os direitos humanos no aparelhorepressivo, mas uns e outros permanecem na ótica penal, de forma que seencontram no discurso político atual os mesmos eixos intangíveis sobre osquais giraram nos discursos políticos desde o começo do século. O debate sebeneficiou pouco da contribuição dos criminologistas modernos, e raramenteestes temas entram em relação com outras questões políticas que separam ospartidos do governo dos da oposição. Ninguém põe em questão o sistema penalenquanto tal, o modo de concebê-lo e de colocá-lo em funcionamento, comotambém o marco de referência que interliga os aparelhos constitutivos de suainfra-estrutura. Se o debate chegasse a ser politizado, o problema de fundo quetentamos esboçar aqui ficaria, sem dúvida, em evidência.

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Indicado para publicação em 8 de março de 2004.

RESUMO

O abolicionismo penal é apresentado como problematização perti-nente do sistema de justiça penal, frente, não só a este sistema esua lógica anacrônica, como também frente ao reformismo que opreserva sob o argumento da atualização. O ponto de vista doabolicionismo é desenhado como exterioridade que redimensiona aprática universalizante da criminalização enquanto situações pro-blema, que demandam a participação dos envolvidos.

Palavras-chave: abolicionismo penal, justiça penal, situação pro-blema, vitimização.

ABSTRACT

Penal abolitionism is presented as problematization within thesystem of criminal justice before, not only this system and itsanachronic logic, but also before reformism that preserves it un-der the argument of updating. The perspective of abolitionism isdesigned as an exteriority that reshapes the universalizing practi-ce of criminalization as situations-problem, which demand partici-pation of those involved.

Keywords: penal abolitionism, criminal justice, situations-problem.