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1 A ÁGUIA DOS VENTOS Primeira Parte: O LEÃO DO MIRANTE

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A ÁGUIA DOS VENTOS

Primeira Parte:

O LEÃO DO MIRANTE

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À minha família

... que o tempo jamais tirará do meu coração

“O passado é algo que não se pode mudar.

O que muda é a forma como o vemos

e isso é o que determina o nosso futuro.”

Maxx Zendag

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PRÓLOGO: ZOOLÓGICO

Piracicaba

3 de abril de 2004

As três amigas estavam em um barzinho na badalada Avenida Carlos

Botelho, endereço da vida noturna mais agitada da cidade e point preferido

da juventude. B.O. Era costumeiramente chamada de B.O. pelos que a

frequentavam.

Suelen bebia um coquetel, e passou o copo para Frida, sentada ao seu lado:

- Beba. Só um golinho não vai te deixar louca como eu!

Retraída, a garota negou, afastando o copo com a mão. Mas logo voltou

atrás e, lançando um sorriso maroto à amiga, pegou-o e experimentou a tal

bebida.

- Nossa! – exclamou, e bebeu um segundo gole – Isso é muito bom! Como

se chama?

- Sex On The Beach. – Suelen respondeu – Quer que eu peça um pra você?

Frida pensou um pouco e assentiu. De imediato, a amiga chamou o

garçom.

- Você pode trazer outro desse pra minha amiga? – ela pediu, piscando de

forma provocante para o rapaz que veio à mesa – E se quiser, pode trazer um

pra você tomar com a gente... Tem um lugar vago aqui. – mostrou a cadeira

onde as meninas deixaram suas bolsas. Acanhado, o garçom riu enquanto

acabava de anotar o pedido, e em seguida foi embora.

- Mas como você é sonsa! – contestou com ironia Victória, sentada à frente

das outras duas – Deixa o moço trabalhar em paz! Agora, por sua culpa, ele

não vai mais conseguir equilibrar a bandeja na mão!

Todas riram, e Suelen completou, exibindo um sorriso maroto:

- Tomara que ele derrube tudo... em mim! Aí ele me leva a um lugar

reservado... só para eu me limpar.

- Ai, Su, você não tem jeito mesmo... – comentou Frida, divertindo-se com

a amiga.

Um Golf preto passou bem devagar em frente ao bar naquele momento,

com o som nas alturas.

- Escutem! – gritou Suelen – É a minha música! – e levantou-se da mesa,

começando a rebolar de forma provocante ao som de Baby Boy da Beyoncé,

ante o olhar incrédulo das outras duas. Quase todos os garotos presentes no

bar começaram a olhar para a dançarina da vez.

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- Quer fazer o favor de se comportar e voltar pro seu lugar? – Frida

ordenou à amiga exibicionista, demonstrando certo constrangimento, mas a

garota sequer a ouvia.

- Venha, Índia! – Suelen chamou amiga pelo apelido, dançando, ante o seu

olhar incrédulo. – Vai dizer que não curte Beyoncé?

- Claro... – Victória concordou com a cabeça, aos risos, e completou –...

Que não! Meu negócio é eme, pê, bê!

Quando o Golf já estava distante, e a música já era abafada por outro

veículo que passava tocando Qual É? do Marcelo D2, Suelen finalmente se

sentou. Ela já estava suando e ofegava um pouco.

- Mas que mico, Su! – reclamou Frida, que ria, mas estava encabulada com

tantos olhares voltados para a mesa em que elas estavam – Precisava de tudo

isso?

- Me deixa ser feliz! – quase gritou Suelen, bebendo o último gole de seu

Sex On The Beach no momento em que garçom trazia o de Frida – Ei,

gatinho, o meu acabou... – a jovem mostrou o copo vazio e sorriu para o

rapaz – Quero mais um!

- Gente, não passa um GC nessa avenida! – reclamou Victória, a olhar para

os carros que passavam – E a segurança desse lugar, como fica?

As amigas riram dela, e Frida fez questão de comentar, enquanto bebia seu

coquetel:

- Você quer mesmo é um guarda civil só pra você, que eu sei!

Índia juntos as mãos e olhou para o alto, como se sonhasse acordada.

- Uau, já pensou que tudo? Eu morreria feliz!

Nisso, uma motocicleta enorme estacionou bem em frente ao barzinho.

- Nem olhe, que não é nenhum guarda! – avisou Suelen, observando o

ocupante da moto com certa curiosidade.

- Ah, ele nem é tããão gato assim . – Frida comentou ao ver homem tirar o

capacete, e se encabulou quando seu olhar cruzou com o dele, que lhe sorriu.

- Tá com tudo hem, amigaaaa!!! – brincou Victória, percebendo a rápida

troca de olhares, mas a amiga discordou.

- Até parece mesmo que ele ia se interessar pela gordinha da mesa! –

menosprezou-se, com as maçãs do rosto avermelhadas.

Só que Frida estava enganada: o homem da motocicleta estava interessado

nela. Claro que a jovem não conseguia acreditar, afinal se achava gorda e

pouco atraente. No entanto, quando ela novamente olhou para o

desconhecido – que ainda estava montado em sua Harley-Davidson – este

acenou discretamente, chamando-a para conversar.

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- Acho que ele quer te conhecer... – Suelen a cutucou, de olho em toda a

cena.

- Vai lá, sua tartaruga sonsa! – sugeriu Índia, em tom de comando, quase

empurrando Frida com o cotovelo. Esta, porém, não estava de olho nele

naquele momento.

Do outro lado da avenida, na cobertura de uma loja luxuosa de calçados

femininos, havia um pássaro. Parecia ser uma águia; tinha penas marrons e

brancas, e um tamanho descomunal. Ao vê-lo, Frida ficou quase hipnotizada,

num misto de fascinação e temor; não era um tipo de ave comum de se ver na

cidade.

- Amigaaaa... – era Suelen quem a chamava – Você está aqui no nosso

planeta?

De súbito, Frida “acordou”, e olhou para a outra que a tirara de seu

momento de distração, com um aspecto misterioso.

- Desculpe... Eu estava olhando... Você viu aquele pássaro? – ela indicou

para o alto de loja da outro lado da avenida, mas quando se virou para lá, não

havia mais nada.

- Do que você está falando? – Suelen riu – Nossa... Essa bebida está

subindo bem rápido à sua cabeça!

Victória, como sempre mais atenta às coisas, observava o comportamento

estranho de Frida e achou muito estranha a “visão” da amiga, mas preferiu

não comentar nada com ela, e a cutucou com o cotovelo novamente:

- Vai lá, sua sonsa! – disse, em tom de quase ordem – Ele ainda está

olhando pra você.

Ainda confusa com aquilo que pensou ter visto, Frida levantou-se da mesa,

percebendo que suas pernas tremiam e mal sustentavam seu corpo. Ela estava

nervosa – nunca saíra com um rapaz antes. Ajeitou a calça de tecido colante e

caminhou olhando para os lados. Algumas pessoas ainda observavam as três

moças e, embora Frida pensasse que comentavam sobre ela, na verdade o

assunto era a dancinha sexy de Suelen.

O homem da Harley sorria, de cabeça baixa, quando a moça se

aproximava. Parecia tímido – ledo engano, como ela constataria a seguir.

- Tudo bem com você, moça? – cumprimentou o motociclista ao descer do

veículo, olhando para a jovem com ar enigmático. Eram olhos verdes,

pequenos, mas de um olhar intenso; seriam, talvez, a única coisa que

chamaria a atenção de alguma garota naquele homem baixinho e que em nada

lembrava um galã de novela.

- Oi... – disse apenas a garota, sorrindo embaraçosamente.

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- Deixe que eu me apresente. – o homem aproximou-se mais dela, e a

cumprimentou com um leve beijo em seu rosto – Meu nome é André.

- Muito prazer... Frida.

Da mesa, Victória e Suelen observavam tudo. Logo, os dois já

conversavam de forma um pouco mais descontraída. E poucos minutos

depois de falarem coisas banais como “Vem sempre aqui?”, “Mora onde?”,

“Você é muito bonita” e outras do gênero, André tomou a iniciativa:

- Quero te pedir duas coisas... – disse a Frida, ao pé do ouvido; antes que

ela tivesse tempo de perguntar o que era, ele a tomou em seus braços e deu-

lhe um longo beijo na boca.

Na mesa do bar, as duas amigas vibravam:

- Viu aquilo, Índia? Acha mesmo que ela é uma sonsa?

- Claro!... Que não!!!!

Por um momento, Frida até pensou em reprimir a ousadia de André, mas

ficou inesperadamente entregue a ele. Após o beijo ele nada disse; apenas

sorriu.

- Não seria agora o momento em que você pede desculpas por forçar a

barra? – a garota perguntou, com ironia.

- Mas não estou arrependido! – disse o homem da Harley, na maior cara-

de-pau, e a abraçou bem forte – E eu ainda nem pedi a outra coisa...

- Tenho até medo de ouvir... – balbuciou Frida, num ímpeto de sinceridade

aguda.

- Calma aí, mocinha! – André levantou as mãos, como se precisasse se

defender de um ataque – Eu só pretendia convidá-la para um passeio... Só

nós dois. – indicou com a cabeça a sua motocicleta.

- Agora?

- Por que não?

Frida ficou sem graça, mas explicou mesmo assim:

- Já são quase oito da noite e se eu não voltar até as dez, a minha mãe me

mata! – fez um olhar maroto – Ela acha que estou estudando na casa da

minha amiga...

André riu do jeito de menina dela, e reformulou o convite:

- Vamos ao Zoológico amanhã. De lá, podemos descer para a Rua do Porto

e beber alguma coisa.

Frida aceitou o convite e os dois combinaram tudo.

04 de abril de 2004

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No dia seguinte, um domingo de céu sem cor e vento frio, Frida mentiu à

mãe que voltaria à casa de Victória para revisar a matéria estudada no dia

anterior. E não é que ela acreditou?

André foi buscar a moça a poucas quadras de sua casa. Foi uma

emocionante viagem para ela: nunca andara de moto antes – o que diria,

então, numa Harley! Ele corria muito, deixando-a assustada. Todavia, à

medida que crescia o seu medo, aumentava o êxtase.

No Zoológico, os dois olhavam para uma águia:

- Vê como ela é observadora? – comentou André – É uma ave

extremamente inteligente. Nada escapa aos seus olhos.

- Você parece se identificar com ela...

- Não, mocinha. Eu me identifico mais com outro animal.

- É mesmo? E qual seria?

- Quando chegarmos lá, eu mostro a você.

Mais à frente, eles passaram por uma jaula onde havia um lobo-guará.

- Que fofinho! – Frida falou, olhando para o animal que estava adormecido

– Parece mais um cãozinho do que um animal selvagem!

- Não se deixe enganar. – André interrompeu – Esta fera não dorme em

serviço. Se entrasse lá, ele acordaria e pegaria você antes que conseguisse

sair. É muito rápido no ataque.

- Como você? – ela brincou.

- Não, não... – ele sorriu – O meu bichinho está logo mais à frente.

Os dois chegaram ao serpentário, e Frida logo avisou:

- Eu nem quero chegar perto! Tenho horror a cobras!

- Até parece! – André provocou, puxando-a pelos braços na tentativa de

levá-la até a vitrine das serpentes.

- Você é um sem-vergonha mesmo! – ela o repreendeu, levando a conversa

para um lado malicioso, e lhe deu tapinhas de brincadeira.

- Deixa de ser boba, menina! De que cobra você acha que eu tô falando? –

o homem contestou, num tom aparentemente sério – Vocês, garotas, estão

cada vez mais abusadas!

Frida riu de si mesma, espantada com a própria ousadia, e aproximou-se do

serpentário, abraçada a André.

- Garotas como você convivem com cobras todo dia. – ele disse – Mas

costumam chamá-las de amigas.

- Ah, agora entendi. – ela suspirou aliviada – Então você é do tipo machista

que pensa que quando tem muita mulher em um lugar só pode sair briga e

fofoca?

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- Hum... Viu só? – ele piscou, no momento em que os dois já deixavam o

serpentário para trás – Sou um profundo entendedor das mulheres. E ali está.

– mostrou uma jaula mais à frente – O meu preferido.

Era a jaula onde ficava o leão e sua fêmea. O espaço mais concorrido pelos

visitantes, que se apertavam para encontrar um espaço onde pudessem

fotografar o animal.

- É o grande rei. – continuou André, aproximando-se da jaula com o olhar

fixo no felino, sem perceber que quase deixara Frida para trás - Está acima de

todos os outros. Nada o ameaça.

- Por isso você se identifica com ele? – ela quis saber, depois de dar uma

pequena acelerada no passo para alcançar o homem da Harley – Você gosta

de estar sempre acima, não é isso? Quer estar no comando.

- Que é isso, mocinha? Não é nada disso, não. – ele virou-se para ela

novamente – É um bicho astuto. Estuda muito bem sua presa. Quando parte

para o ataque, a vítima não tem escolha! – repentinamente agarrou Frida, que

deu um gritinho, e a beijou.

- Sou sua presa então. – ela ironizou – Nossa... Estou rendida a você.

- A verdade é que me identifico com ele pelo charme. – André finalizou, e

então os dois deixaram de lado as filosofias animais para dar espaço a

assuntos triviais.

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CAPÍTULO I: RUA DO PORTO

11 de fevereiro de 2012

Era como um sonho...

O céu era de um azul intenso, rasgado por nuvens brancas, e o sol ardia;

em nada se parecia com a nebulosidade cinzenta dos últimos dias. Naquele

ano a temporada de chuvas prometera ser longa. Começara em dezembro, e

as previsões meteorológicas diziam que isso se prolongaria até março. Era

assim, quase que diariamente: após um dia inteiro de sol forte, nuvens negras

se formavam já no início da tarde e, antes que a noite chegasse, começava a

chover. Como acontecia quase todo ano, o Rio Piracicaba transbordara,

desabrigando dezenas de famílias que moravam na Rua do Porto; só que

dessa vez a enchente fora ainda pior que o habitual, chegando a atingir outros

bairros delimitados pelo manancial, como as partes baixas do Jardim Jupiá,

Vila Rezende e Algodoal.

Fazia semanas que não se via uma tarde tão bela – e seca – como aquela.

Era um sábado alegre, com a típica movimentação nos bares e restaurantes da

Rua do Porto – pelo menos aqueles que conseguiram reabrir depois que as

águas baixaram. E com toda aquela agitação, o vaivém de pessoas, os carros

que passavam com o som no volume máximo, ainda assim Frida se sentia

como se estivesse em um local deserto. Estava ela à beira do rio, próxima à

passarela pênsil que dá acesso ao Parque do Engenho Central, sentada na

grama, ao lado de André, a quem a jovem sempre se referia como “affaire”.

Não era um namorado, pois eles não tinham dia certo para um encontro; e

também porque não havia nenhum compromisso de fidelidade entre eles.

Cada um tinha sua vida, o que também significava que cada um poderia ter

outros casos e encontros. “Nada combinado, para ninguém dar furo”, repetia

ela às amigas. E com isso, a química entre os dois se mantinha sempre no

ápice. Ou pelo menos deveria ser assim. No entanto, em alguma parte de

Frida, em algum lugar secreto, algo lhe dizia que para ela não era bem assim.

Afinal, mesmo tendo a certeza – sem que André lhe desse qualquer motivo

para tanto – de que ele tinha outras garotas, ela nunca teve um caso sequer

com outro homem desde que o conheceu.

André, à primeira vista, não era daquele tipo que chamava a atenção das

garotas. Não aparentava mais que trinta e poucos anos de idade – embora

tivesse quarenta e quatro –, era baixo e ligeiramente calvo, e certamente

conquistava corações pelos olhos verdes e pelo carisma – além, é claro, de

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sua atraente Harley-Davidson. Tinha jeito de homem livre, não exatamente

volúvel, mas despreocupado, desprendido de tudo; e incrivelmente romântico

nos gestos e palavras. Foi assim que conquistara Frida havia oito anos. Nesse

meio tempo ficaram quase três anos sem se ver, algo estranho para ela: ele

simplesmente despareceu sem dar notícia, não telefonou mais e trocou o

número do celular. Em dada ocasião, André reapareceu ali mesmo, na Rua do

Porto, e apenas disse que estava com saudades, mas que precisou colocar a

própria vida em ordem. Frida nunca entendeu o que isso significava, mas

também não perguntou, porque não se achava no direito de fazê-lo. Na

verdade, a alegria da jovem em rever André foi tamanha que ela engoliu o

orgulho e as mágoas, preferindo matar as saudades em vez de buscar

respostas. Sendo assim, o hiato no relacionamento aberto que os dois

mantinham permaneceu um mistério sem explicação. No entanto, o dia do

reencontro marcou a vida da garota de tal forma que era para ela uma data

mais importante do que quando se conheceram – este dia, aliás, ela sequer se

lembrava de qual foi. E naquele sábado tão belo, fazia exatos dois anos que o

casal voltou a se ver – com uma freqüência variável, mas quase semanal.

Como fizera em outras ocasiões, Frida enviou uma mensagem de texto ao

celular de André, logo pela manhã. Ela iria para a aula na faculdade caso ele

não respondesse. Mas a resposta veio em poucos minutos: “Estou na cidade,

minha querida. Esteja às duas no Mirante”. A ela isso significava: nada de

aula hoje. E como morreria de vergonha de encontrar-se com ele, em pleno

sábado, carregando material da faculdade – para despistar a mãe – Frida teve

que optar pela possível “bronca de fim-de-semana” e deixou o material todo

em casa; não demoraria a Marisa perceber que a filha não foi estudar.

- Vamos procurar uma mesa perto daquele trailer? – ela sugeriu ao affaire

– Não gosto de ficar sentada na grama quando uso vestido.

André sorriu, enquanto acariciava suavemente os cabelos longos e negro-

azulados de Frida; esta permaneceu por um momento como estava, quieta,

sem retribuir o carinho. Ele já sabia o que ela queria dizer.

- Venha. – convidou, estendendo sua mão para ajudá-la a se levantar – Tem

uma mesa vazia ali. Aí tomamos uma gelada.

Frida assentiu, pegando na mão de André, e se levantou, sem se esquecer

de olhar rapidamente para os lados a fim de perceber se alguém reparava

nela. Tão logo estava de pé, já arrumava a barra do vestido deveras curto ante

a sua timidez.

Mas a jovem, do alto de seus vinte e seis anos, não era apenas tímida.

Tinha problemas com seu corpo – achava-se sempre obesa, embora apenas

tivesse uma silhueta robusta e sequer sofresse com a presença dos pneuzinhos

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tão temidos pelas moças da sua idade. Sua pele era deveras branca, do tipo

que seria mais apropriado que não visse a luz do sol para não avermelhar

ardentemente. Esses complexos de Frida, no entanto, não afetavam sua

vaidade, o que se resumia a tingir seus cabelos ondulados de um negro

oriental, usar um par de brincos pequenos e um discreto contorno de lápis nos

olhos. Batom nem pensar – os lábios carnudos já eram suficientemente

chamativos, bastando um gloss e nada mais, ou ela se sentiria uma

personagem pin-up de história em quadrinhos. Não fosse André, Frida sequer

usaria vestido justo com comprimento acima do joelho. Só que num certo dia

ela acabara por comprar um desses modelos em uma liquidação, e arriscara

usá-lo em um encontro com ele; diante de sua visível surpresa, demonstrada

com olhares e elogios naquele dia, ela decidira incluir mais destes vestidos

em seu guarda-roupa – para vestir somente quando fosse vê-lo. No mais,

Frida era habituada ao básico blusinha-e-calça-jeans, abusando apenas de

algumas estampas multicoloridas.

Claro que a jovem gostou do convite. Jamais dispensaria um chope no fim-

de-semana, ainda mais na companhia de quem lhe era tão agradável. É

possível que André acreditasse que alguns copos a deixariam mais solta, mais

à vontade. No entanto, após mais de dois anos de relacionamento aberto com

ela, já a conhecia suficientemente para saber que um pouco de álcool

somente a faria sorrir mais.

- Dois chopes e uma porção de calabresa. – pediu André ao rapaz que veio

à mesa atender o casal, logo que se sentaram. Qualquer garota da idade de

Frida preferiria um homem que a levasse a um restaurante, mas ela era

diferente; era uma garota simples, e valorizava mais a companhia que o lugar,

por isso não gostava de ambientes requintados.

- E então... Tem trabalhado muito? – perguntou a ele, um tanto

constrangida pela falta de assunto. André sorriu nervosamente.

- Bom, mocinha, é sobre isso que eu quero falar. – baixou a cabeça como

se procurasse as palavras soltas – Eu vou viajar hoje. Tenho um evento para

cobrir em Campinas.

André trabalhava com uma equipe de promoção de eventos. Ou pelo

menos é o que sempre disse a Frida. E por que querer saber de mais detalhes?

Isso não importava, pois ele não era e jamais seria seu namorado.

- Isso quer dizer que... – ela interrompeu a própria fala, esperando que

fosse completada por ele, que assim o fez.

- ...Não ficaremos juntos esta noite. – ou seja, nada de comemorar o

“aniversário do reencontro” com uma noite ultrarromântica em um luxuoso

quarto de motel com decoração temática indiana, cama giratória, hidro e teto

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com abertura eletrônica para poder admirar as estrelas (era o preferido dela) –

Não desta vez.

André já sabia como Frida se frustrava quando as coisas não saíam como

ela esperava. E principalmente, que ela sempre achava que o motivo para o

fim prematuro de um encontro seria outro encontro com outra mulher. Por

isso ele sempre tomava cuidado com as palavras. E a moça mais uma vez

mudou o semblante, deixando transparecer sua chateação.

- Mas minha querida, eu poderia encontrar você numa quarta-feira... – ele

completou, segurando nas mãos da garota – Claro, se isso não acarretar em

problemas com a sua mãe. Posso te pegar no lugar de sempre, às sete da

noite.

- Por mim tudo bem. – foi a frase final de Frida. – Afinal, hoje é um dia

como outro qualquer.

E pronto. André já sabia que ali se estabeleceria um silêncio difícil de

quebrar; e isso o aborrecia, ainda que ele demonstrasse que não se importava

com as manhas dela. Geralmente, quando as coisas ficavam assim, ele

procurava mudar de assunto. Mas nesse dia ele sentiu que deveria expressar o

que pensava:

- Moça, você é muito difícil! – reclamou com voz branda – Eu sei como

essas datas são importantes pra você. Pra mim também são. Mas hoje não dá!

– encarou Frida com um olhar de apelo. Ela parecia distante.

A jovem olhava para o véu da noiva, como chamavam a queda d’água que

separava a área do Engenho Central – com a exuberante arquitetura

centenária dos grandes barracões de tijolos aparentes, e algumas chaminés

que resistiram ao tempo e ainda permaneciam em pé – da área onde ficava o

Parque do Mirante – um lugar construído havia décadas, para se admirar o

salto do Rio Piracicaba, composto por vários caminhos e mirantes em

diversos níveis, com muitas árvores nativas, e onde já funcionara um

restaurante que agora dava lugar às obras do futuro Aquário Municipal.

No que ela observava, viu pousar em uma das árvores um pássaro

gigantesco. Parecia uma águia, mas era tão grande que chegava a lembrar

uma mitológica Fênix. O galho em que ela descansava pendeu de tal forma

que parecia não ser capaz de suportar seu peso. E Frida teve a estranha

sensação de que, mesmo de longe, aquela ave parecia olhar em sua direção.

Nisso, chegou o rapaz com os chopes.

- A porção já está a caminho. – ele avisou, enquanto servia o casal.

A garota sequer percebeu a presença do garçom, e André chamou sua

atenção:

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- Oi mocinha... – ele disse, sorrindo forçosamente – Está tudo bem? Parece

tão longe daqui...

Para o alívio dele, Frida lançou-lhe um sorriso, e pegou seu copo para

beber o primeiro gole.

- Desculpe, eu me distraí com aquele pássaro... – ela olhou para a direção

onde estava a misteriosa ave, mas esta havia sumido.

- Cadê? – indagou André, tentando olhar na mesma direção que a garota -

Não estou vendo.

Ela riu novamente para ele e disse:

- Esqueça isso.

Foi a deixa para que ele puxasse um assunto: começou a falar sobre sua

turma de amigos motociclistas de Campinas, e as reuniões semanais que

faziam naquela cidade.

Apesar de tudo, foi uma tranquila – e mágica para Frida – tarde de sábado.

Restava a ela fazer daquele momento simples a verdadeira comemoração.

Bastaria, para isso, não querer mais do que André estava disposto a oferecer.

E sorrir para ele.

///

Já era noite quando Frida voltou para casa. Como já era esperado, sua mãe

lhe preparara uma recepção. Sentada no sofá da sala, quase adormecida

enquanto assistia a um filme na televisão, Marisa despertou ao perceber que a

filha abria o portão da frente. Ajeitou-se rapidamente e, sentando-se com a

coluna ereta, ela se pôs em posição de ataque.

- Boa noite. – disse com frieza, no momento em que a garota abria a porta

da sala. Esta tentou agir com normalidade:

- Oi, mamãe...

- “Oi, mamãe”? – repetiu Marisa com ironia, sem tirar os olhos da TV –

Não deveria me chamar assim.

- Eu não entendi... – Frida mentiu; claro que ela entendera.

- Você não dá valor a sua mãe. – nisso, a mulher virou-se para a filha, com

seu típico olhar de vítima raivosa – Não entende que eu sempre lutei pelo

melhor pra você. Não entende que eu me preocupo. – ela se levantou do sofá

e se pôs à frente da filha, como que para impedi-la de passar e ir para o

quarto; afinal, agora a jovem teria que ouvi-la até o fim – E nem dá valor

para a bolsa de estudo que conseguiu.

- Mamãe...

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- Não me chame assim! – gritou Marisa, inclinada em direção à filha,

levando-a a imaginar que faltava bem pouco para levar uma surra, como em

tantas outras discussões – Você não deve ser minha filha! Eu nunca fui

vagabunda! Nunca faltei a uma aula para sair com homem por aí!

- Mam... Você nem mesmo sabe se eu estava... – Frida tentou se defender,

aumentado só um pouquinho o tom da voz.

- Não grite comigo!!!! – berrou a mãe, descontrolada, e levantou a mão

direita, ensaiando o primeiro tapa. Como sempre quando Marisa perdia o

controle, ela gritava e dizia que os filhos estavam gritando. – Cadê a

educação que eu te dei? É nisso que dá ficar em companhia dessa biscate aí

do lado! – ela se referia à vizinha, Suelen, melhor amiga de Frida e também

sua colega de classe na Escola Superior de Piracicaba; as duas foram

contempladas com a Bolsa de Estudos Integral.

Quando viu que o “diálogo” caminhava rumo ao abismo da ignorância,

Frida desviou da mãe, que ainda estava bem à sua frente, e seguiu rumo ao

seu quarto. Nesse momento, Marisa ainda berrava:

- Vai me deixar aqui falando sozinha? MALDITA!!! Antes nascesse morta,

se fosse para me dar tanto desgosto!

A gritaria já era ouvida pela casa vizinha e gerava conseqüências ali.

Miriam e a filha jantavam, quando Suelen foi encarada pela mãe:

- Olha só o que sou obrigada a ouvir sobre a nossa família.

- Nossa família? – a garota questionou, com ar de reprovação,

interrompendo sua refeição – Pelo que ouvi, aquela bruxa se referia a mim!

- Você e sua má influência. – a mulher provocou, deixando também de

comer, e olhou fixamente para a filha - Veja o que a Frida está se tornando! E

veja como a mãe dela começou a me odiar por sua causa! Desse jeito a

reputação da nossa família vai acabar na lama!

- O que está dizendo, mamãe? – Suelen começou a levantar a voz,

disparando um olhar de fúria contra a mãe – Pelo que eu sei, aquela bruxa

oxigenada nunca gostou de você! E pare de falar “nossa família”!

Miriam sentiu o sangue ferver, porém sentia-se incapaz de levantar a mão

para a filha. Sempre achou que o diálogo seria a melhor solução para

qualquer coisa e, quando isto não resolvesse, caberia ao pai tomar alguma

providência. Só que, naquele dia, Adriano não estava lá. Ele viajara para

Minas Gerais a trabalho – trabalhava no transporte de mercadorias, com seu

próprio caminhão, para uma empresa de logística – e só voltaria no domingo.

Com o coração dilacerado pela fúria da filha, Miriam sentiu lágrimas

brotarem dos olhos. Suelen percebeu, mas não se sensibilizou com isso.

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- Que família, mamãe? O papai vive para o trabalho, e o Serginho

praticamente mora na rua! – a moça finalizou e deixou a mesa; pisando duro,

ela foi para o quarto.

Suelen mal sabia que, mais ou menos naquele instante, sua amiga e vizinha

fazia o mesmo com a mãe.

///

Quando Frida entrou no quarto, lá estava seu irmão Felipe que, como de

costume, curtia seu mundo particular – a internet – e nem pareceu notar que a

irmã entrava no quarto e trancava a porta. Foi, todavia, um engano dela – o

garoto ouvira tudo (e quem não teria ouvido?) – e quando a moça se sentava

na cama para tirar seus tamancos, Felipe virou-se para trás e falou com ela:

- Oi, Fri... Fique bem, tá?

Já deitada e se espreguiçando na cama, Frida sorriu e respondeu:

- Você sabe que nem ligo mais. Até porque eu não pretendo continuar

morando aqui por muito tempo.

- Ah... – suspirou Felipe, olhando para a parede branca do quarto – Bom, já

te falei o que eu penso sobre isso, né?

- Lipe, eu tenho certeza do que é melhor pra mim. Isso não é vida! –

afirmou a garota, estendendo as mãos para a direção onde estava sua mãe, na

sala – Eu simplesmente não compreendo esse seu conformismo! Você quase

não tem amigos, não sai no final de semana, não namora... Ou seja, não vive!

Tudo por causa dela.

- A minha escolha foi me adaptar a essa realidade, maninha. – argumentou

Felipe, em um tom que beirava o sarcasmo – Era isso... ou viver esse inferno

que você vive.

- Um dia você vai entender que a vida é sua... e não da sua mãe.

E Frida estava certa. Seu irmão tinha dezesseis anos e, pelo que ela sabia,

nunca saíra com uma garota, e nem mesmo com colegas para alguma balada.

Felipe era o tipo popularmente rotulado de C.D.F.: tirava as notas mais altas

na escola, estudava por horas em casa – quando não escrevia poesias ou

acessava a Internet – e não se relacionava com as pessoas. Ele também se

achava feio – seu complexo de inferioridade era mais crônico que o de sua

irmã – e certamente os repetidos episódios de bullying que sofria desde

criança na escola serviram apenas para aumentar o seu isolamento.

No momento em que a conversa com Frida já começava a causar um

enorme aborrecimento, Lipe se preparava para voltar ao mundo virtual,

quando ouviu alguém batendo. O portão era de lata, fechado, e como não

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havia campainha era comum baterem com força nele. Como se precisasse.

Até dos fundos da casa daria para ouvir aquele ruído metálico irritante.

Dali a pouco, Marisa batia à porta do quarto:

- Filho, o Samuel está aqui.

- Pode falar pra ele entrar, mãe... – avisou Felipe, e olhou para a irmã. Ela

conhecia aquele olhar.

- Tá bom, Lipe... Eu tenho mesmo que tomar um banho agora, então vou

sair daqui. Assim não vai dar tempo do seu amigo me conquistar com um

daqueles olhares... – comentou Frida, com ares de ironia.

Um ano mais velho que Felipe, Samuel era seu único amigo – além da

própria irmã – e praticamente o seu oposto: extrovertido, popular na escola,

baladeiro e conquistador. Obviamente não era sua aparência que atraía as

meninas. Ele era alto e corpulento, porém meio desengonçado, o rosto grande

e quadrado e ralos cabelos castanho-claros com falhas no topo da cabeça.

Não por acaso, alguns amigos o chamavam de Neandertal. Mas o que o fazia

ganhar as garotas era sua lábia. Ele sabia como elogiá-las e agradá-las, e isso

fez com que ficasse conhecido como o “pegador” da turma; a ponto de tentar

até mesmo conquistar Frida, coisa da qual logo desistiu, ao ser censurado

pelo irmão dela. Daí o costume da moça de evitar estar por perto quando

Samuel aparecia. Havia, no entanto, algo que ele tinha em comum com

Felipe: era bastante estudioso e inteligente, e mesmo tendo o hábito de matar

aula uma vez ou outra para sair por aí, tirava sempre boas notas.

Ironicamente, tanto um como o outro tinham suas dificuldades nos estudos:

o terror de Samuel era o inglês, do que Felipe manjava bem; este, por outro

lado, tinha dificuldades com a matemática, na qual o amigo era um expert,

além de estar um ano à frente na escola. Do auxílio mútuo nos estudos nasceu

a amizade – que se restringia mais às visitas de Samuel à casa de Felipe, e era

menos evidente na escola, onde os dois ficavam afastados na maior parte do

tempo afastados. Felipe já pensara, por diversas vezes, que seu amigo tinha

vergonha de ser visto conversando com ele, mas nunca chegou a comentar

isso.

Frida ainda saía do quarto, e Samuel já estava próximo à porta. Os dois

apenas se cumprimentaram com a cabeça, mas ele deu aquela olhada para

trás, quando ela passou e entrou no banheiro.

- E aí, Samuca! – disse Felipe em tom alto, como que para chamar a

atenção de seu amigo, que já entrava no quarto e ria de sua cena de ciúmes –

Pode fechar a porta.

///

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Na casa vizinha, o irmão de Suelen abria a porta da sala e entrava

apressadamente.

Sérgio tinha a mesma idade de Felipe, mas já se sentia adulto o suficiente

para fazer o que lhe visse à cabeça. Rebelde e transviado, ele não parava em

casa e faltava sempre às aulas. Vestia-se como os cantores de rap, com

camisetas e bermudas grandes demais para seu tamanho, bandana na cabeça e

por cima dela o boné com a aba virada para trás, tênis Nike – o qual ele

sempre dizia ter conseguido num “rolo” com um amigo – e correntes grossas

prateadas com um gigantesco pingente de cifrão. Costumeiramente ofendia a

mãe com palavrões quando ela tentava lhe chamar a atenção. E quando se

fazia parecer mais calmo e afetuoso, era certamente porque queria dinheiro

da mãe, ou porque o pai – a quem temia e respeitava – estava em casa.

Tão logo entrou, ele foi até a mãe – que ainda estava aos prantos, apoiada

sobre a mesa da cozinha – e abraçou-a com força.

- Onde estava, filho? – Miriam indagou, enxugando as lágrimas da face -

Você nem dormiu em casa!

- Fui com a galera pro cine e dormi lá na goma do Lequinho. – respondeu o

menino, ainda agarrado à mãe.

- Que Lequinho, meu filho?

- Ah, cê não conhece. – era o que Sérgio sempre dizia quando mencionava

o nome de um amigo. De fato, Miriam não conhecia ninguém da turma com a

qual seu filho andava. Já vira alguns desses meninos baterem à sua porta

procurando por “Ginho”, e não gostava do que via. Ela sequer sabia de onde

eles eram, mas todos tinham uma aparência ainda mais decadente que a de

Sérgio. Além disso, há muito tempo a mãe já desconfiava de que os tais

“amigos que ela não conhece” poderiam ser nomes inventados; e que quando

o jovem dizia que fora, por exemplo, ao cinema... podia estar em qualquer

outro lugar.

- Então, Serginho, vá tomar um banho agora. – recomendou a mãe, já

recuperada do choro. Só que o moleque ainda não tinha se desgrudado dela,

pois queria lhe pedir algo.

- Mãe, tem dinheiro aí?

Miriam fez que não com a cabeça.

- E nem adianta me agradar. Essa semana eu já te dei dinheiro e você

sumiu com ele rapidinho. – ela falou e deu o assunto por encerrado. Para

Sérgio, no entanto, a resposta não foi satisfatória.

- Mãe, me dá só “deiz real”! – ele insistiu, em tom de súplica.

- Não! – a mulher respondeu com firmeza – Fim de papo.

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Infelizmente para ela, a conversa acabou, mas a necessidade do filho não.

Rapidamente ele se desgarrou da mãe e foi até o quarto dela. Abriu o guarda-

roupa e logo encontrou a bolsa de cor verde-folha – e dentro dela, a carteira.

Tão logo o menino colocou as duas notas de dez reais no bolso, Miriam

entrou no quarto para tentar detê-lo:

- O que você tem aí? – ela quis saber, segurando Serginho pelo braço. Ele

conseguiu escapar e correu, ignorando os gritos da mãe, que o chamava de

volta.

Incrédula, a pobre mulher abriu o guarda-roupa para se certificar daquilo

que já temia, e confirmou a suspeita ao encontrar a carteira fora da bolsa e

ver que o dinheiro que nela havia não estava mais ali. “Não pode ser”, ela

pensou. Pela primeira vez, fora roubada pelo próprio filho.

Quando Sérgio saía bem rápido de casa, esbarrou em Frida, que se

aproximava do portão:

- Ei, moleque, aonde vai com essa pressa? – a moça indagou; o garoto não

respondeu e foi embora.

Como podia ver do portão de grades grossas e espaçadas que a porta da

sala estava entreaberta, Frida supôs que havia alguém ali, e entrou. Ao passar

pela porta, ouviu um choro ao longe.

- Su, você tá aí? – chamou – Sou eu, a Frida!

Logo Suelen apareceu e, para o alívio da amiga, não era ela quem chorava.

- Entre aí. Vamos lá pro quarto. – ela convidou.

Lá, as duas sentaram-se em almofadas grandes e coloridas que estavam

jogadas no chão, e Frida quis logo satisfazer a curiosidade:

- Imagino que vocês ouviram o escândalo aqui ao lado... – disse, como se

não falasse de sua própria casa.

- Amiga... – Suelen suspirou, e pegou nas mãos de Frida – Acho que eu e

você temos um problema em comum. E o nome dele é mãe.

- Você também teve uma briga com a sua?

- Bom, não deve ter sido tão traumatizante quanto no seu caso, mas...

- Pelo menos a sua mãe não fala mal da minha.

- Pior, Frida! A minha mãe às vezes me culpa pela briga que as duas

tiveram. Ela deve achar que sou uma idiota!

- Mas afinal, Su, o que será que aconteceu para que elas se odiassem tanto?

- Eu não sei. Mas deve ser coisa antiga. Lembra quando a gente era

criança? Minha mãe varria a sujeira para a calçada em frente a sua casa, e a

dona Marisa logo vinha e jogava tudo dentro de um saco pra depois deixar

bem na frente do nosso portão! – nesse momento, Suelen começou a rir,

fazendo com que Frida risse também.

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- E quando a dona Miriam encontrava a sujeira, ia bater na minha casa pra

devolver o saco pra mamãe!

As duas começaram a gargalhar deliciosamente, com inocência de

meninas.

- Eu lembro que a minha mãe parou de tirar satisfações com a sua no dia

em que foi recebida com um jato forte de mangueira. – continuou Suelen,

fazendo a amiga rir ainda mais.

- Nossa... Que banho! Como eu poderia me esquecer disso?

- É... – Suelen de repente parou e mudou o semblante, ficando mais séria e

pensativa – Mas sempre me pareceu que as duas tinham certa implicância

uma com a outra. Deve ser coisa de ex-amigas.

- Como assim? - Frida demonstrou surpresa ao ouvir aquilo.

- Olha, eu nunca te disse isso, mas acho que as duas já foram grandes

amigas. Tenho certeza de que algo as separou!

- Algo? Tipo o quê?

- Eu quis dizer alguém. Um homem.

Frida ficou estática por um instante. O que Suelen acabava de dizer fazia

sentido, embora a amiga preferisse pensar que não. Afinal, se realmente as

duas mulheres se odiavam porque um dia houve um homem na jogada, com

certeza elas nunca – mas nunca mesmo – deixariam de ser inimigas. No

entanto, algo não se encaixava nessa hipótese.

- Tem uma coisa da qual você está se esquecendo, Su. – Frida começou a

explicar, sob o olhar atento da outra – Quando seus pais se mudaram para

esta casa, você já era nascida, não é?

- É mesmo! Eu tinha poucos meses de idade. Minha mãe me contou que se

casou grávida, e ficou na casa dos pais dela enquanto o meu pai construía

aqui. Mas e daí?

- Eu tinha um aninho quando nos mudamos para esta rua.

- E o que tem a ver, Frida?

- Nossas mães eram casadas quando se conheceram, Su! E nós nos

mudamos quase na mesma época. Tinha poucas casas nesta rua além das

nossas.

- Bom... Então, na sua opinião...

- Nunca houve um homem entre elas, Su!

O assunto poderia ter sido encerrado, mas Suelen ainda estava muito

convicta de sua teoria para desistir dela:

- Só porque estavam casadas, amigaaaa? – indagou, em tom de visível

ironia – Poderiam ter um amante em comum. Ou...

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- É melhor você parar por aqui. – Frida estava começando a se aborrecer de

verdade. Mesmo assim, Suelen estava tão envolvida com a conversa que não

conseguia parar:

- Ou temos um traidor.

- O que você está dizendo?

- Meu pai pode ter traído minha mãe.

Frida desatou a rir com tal absurdo.

- Você só pode estar brincando, Su!

- Quem sabe não foi o seu pai? Já imaginou? Podemos ser meias-irmãs!

- Chega, tá bom? – foi a deixa para pôr um fim à insanidade de Suelen.

Esta percebeu que tinha ido longe demais:

- Nossa, me desculpe...

- Você sabe que eu não gosto que fale do meu pai. Acredita que eu quase

não me lembro do rosto dele? – algumas lágrimas começaram a lamber a face

agora rosada de Frida – Eu era uma criança quando ele nos abandonou. Acho

que eu tinha uns nove ou dez anos. Minha mãe estava grávida do Lipe. Ela

vivia dizendo que ele foi embora porque não queria um filho homem.

Suelen ficou pasma; nunca ouvira essa história da amiga antes. Frida

costumava desconversar quando o assunto era o pai, e limitava-se a dizer que

não sabia muita coisa sobre ele.

- Então vamos deixar o passado pra lá. – a morena tentou mudar de assunto

para melhorar o clima – Diz aí, Frida, você tem aquele compromisso hoje?

Claro que ela estava falando de André.

- Não... Ele vai viajar.

- Então tenho uma boa notíciaaaa... – Suelen começou a fazer pose, como

se estivesse prestes e entregar um pacote de presente – Nós temos um

programa pra hoje!

De repente, Frida se animou:

- Demorô!

- Vamos pra Mr. Dandy. Tem um carinha que conheci. Ele vai lá hoje com

uns colegas e me convidou. Perguntei se podia levar uma amiga... E tem

outra coisa: não vamos pagar nadaaaaa!

As duas vibraram e começaram a pular. O clima de festa em nada se

parecia com a tensão de minutos atrás, tampouco com a nuvem negra que

pairava sobre Miriam que, sentada em sua cama, tentava se conformar com a

rebeldia de seus filhos.

///