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Página 1 de 15 A actividade das enzimas e o seu controlo na regulação do fluxo das vias metabólicas Índice 1. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente reversíveis é controlada pelas concentrações dos seus reagentes e produtos 1 2. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente irreversíveis é controlada por efectores que podem não ser os reagentes e os produtos da reacção em que são catalisadores 2 3. A actividade enzímica aumenta proporcionalmente com a quantidade de enzima 2 4. A modulação da actividade das enzimas pode ser feita por substâncias que se ligam, de forma não covalente e reversível, ao centro activo ou a um centro alostérico 4 5. A existência nas células de actividade simultânea em enzimas que têm papéis biológicos opostos levou à cunhagem da expressão “ciclos fúteis” que uma análise mais atenta mostrou ser inadequada 6 6. A regulação da actividade das enzimas pode envolver modificações de tipo covalente catalisadas por outras enzimas 7 7. A actividade das enzimas pode ser afectada pela concentração do substrato na sua vizinhança podendo esta depender da actividade de transportadores ou de enzimas que afectam o transporte transmembranar 8 8. O pH tem um papel menor na regulação do metabolismo normal 10 9. A temperatura tem, no homem, um papel menor na regulação do metabolismo normal 10 10. A actividade das enzimas pode ser afectada por múltiplos factores numa teia de interferências muito complexa 11 11. Anexo 1 – Significado das expressões cofactor, grupo prostético e coenzima. 11 12. Anexo 2 – Exemplo de estudo do efeito de uma hormona na actividade de uma enzima cuja síntese é reprimida 12 13. Anexo 3- A fosforilação/desfosforilação de uma proteína com actividade catalítica pode alterar não só a velocidade da catálise como a própria natureza da reacção catalisada 13 14. Anexo 4- O controlo da oxidação dos ácidos gordos 14 15. Anexo 5 – Muitos fármacos com acção no metabolismo são inactivadores enzimáticos 15 1. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente reversíveis é controlada pelas concentrações dos seus reagentes e produtos Numa determinada via metabólica há enzimas cuja actividade é tão elevada que as reacções por elas catalisadas se encontram próximas do equilíbrio químico (G0; Keq/QR1; constante de equilíbrio/quociente de reacção 1), ou seja, as velocidades das reacções directa e inversa, embora com sinais contrários, têm valor absoluto parecido. Nestas enzimas, quer o sentido em que a reacção se desenvolve, quer a velocidade efectiva da reacção são controladas por variações no valor do QR, ou seja, pelo valor das concentrações dos reagentes e produtos na vizinhança da enzima. Estas enzimas são dramaticamente controladas pelos intermediários do metabolismo com que directamente interagem (reagentes e produtos da reacção) de tal forma que o próprio sentido da reacção se pode inverter. Têm também um papel determinante na manutenção das concentrações estacionárias desses intermediários do metabolismo já que, se os reagentes aumentarem de concentração dentro da célula, o aumento da velocidade no sentido directo fará com que o valor da sua concentração desça para um valor mais próximo do original. No entanto, sendo controladas apenas pela “lei da acção das massas”, têm um papel que se crê ser irrelevante na velocidade de fluxo (J) das vias metabólicas em que intervêm. Porque a actividade destas enzimas é muito maior que a das enzimas da mesma via metabólica que catalisam reacções fisiologicamente irreversíveis, crê-se que variações não demasiado drásticas na sua actividade (causadas por diminuições fisiológicas na concentração de enzima, por exemplo) não perturbarão de forma apreciável o fluxo na via metabólica em questão.

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A actividade das enzimas e o seu controlo na regulação do fluxo das vias metabólicas

Índice

1. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente reversíveis é controlada pelas concentrações dos seus reagentes e produtos 1

2. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente irreversíveis é controlada por efectores que podem não ser os reagentes e os produtos da reacção em que são catalisadores 2

3. A actividade enzímica aumenta proporcionalmente com a quantidade de enzima 2 4. A modulação da actividade das enzimas pode ser feita por substâncias que se ligam, de forma não covalente

e reversível, ao centro activo ou a um centro alostérico 4 5. A existência nas células de actividade simultânea em enzimas que têm papéis biológicos opostos levou à

cunhagem da expressão “ciclos fúteis” que uma análise mais atenta mostrou ser inadequada 6 6. A regulação da actividade das enzimas pode envolver modificações de tipo covalente catalisadas por outras

enzimas 7 7. A actividade das enzimas pode ser afectada pela concentração do substrato na sua vizinhança podendo esta

depender da actividade de transportadores ou de enzimas que afectam o transporte transmembranar 8 8. O pH tem um papel menor na regulação do metabolismo normal 10 9. A temperatura tem, no homem, um papel menor na regulação do metabolismo normal 10 10. A actividade das enzimas pode ser afectada por múltiplos factores numa teia de interferências muito

complexa 11 11. Anexo 1 – Significado das expressões cofactor, grupo prostético e coenzima. 11 12. Anexo 2 – Exemplo de estudo do efeito de uma hormona na actividade de uma enzima cuja síntese é

reprimida 12 13. Anexo 3- A fosforilação/desfosforilação de uma proteína com actividade catalítica pode alterar não só a

velocidade da catálise como a própria natureza da reacção catalisada 13 14. Anexo 4- O controlo da oxidação dos ácidos gordos 14 15. Anexo 5 – Muitos fármacos com acção no metabolismo são inactivadores enzimáticos 15

1. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente reversíveis é controlada pelas concentrações dos seus reagentes e produtos

Numa determinada via metabólica há enzimas cuja actividade é tão elevada que as reacções por elas catalisadas se encontram próximas do equilíbrio químico (G0; Keq/QR1; constante de equilíbrio/quociente de reacção 1), ou seja, as velocidades das reacções directa e inversa, embora com sinais contrários, têm valor absoluto parecido. Nestas enzimas, quer o sentido em que a reacção se desenvolve, quer a velocidade efectiva da reacção são controladas por variações no valor do QR, ou seja, pelo valor das concentrações dos reagentes e produtos na vizinhança da enzima. Estas enzimas são dramaticamente controladas pelos intermediários do metabolismo com que directamente interagem (reagentes e produtos da reacção) de tal forma que o próprio sentido da reacção se pode inverter. Têm também um papel determinante na manutenção das concentrações estacionárias desses intermediários do metabolismo já que, se os reagentes aumentarem de concentração dentro da célula, o aumento da velocidade no sentido directo fará com que o valor da sua concentração desça para um valor mais próximo do original.

No entanto, sendo controladas apenas pela “lei da acção das massas”, têm um papel que se crê ser irrelevante na velocidade de fluxo (J) das vias metabólicas em que intervêm. Porque a actividade destas enzimas é muito maior que a das enzimas da mesma via metabólica que catalisam reacções fisiologicamente irreversíveis, crê-se que variações não demasiado drásticas na sua actividade (causadas por diminuições fisiológicas na concentração de enzima, por exemplo) não perturbarão de forma apreciável o fluxo na via metabólica em questão.

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2. A actividade das enzimas cujas reacções são fisiologicamente irreversíveis é controlada por efectores que podem não ser os reagentes e os produtos da reacção em que são catalisadores

Existem enzimas cuja actividade é relativamente baixa na célula, de tal forma que a reacção por elas catalisada se encontra afastada do equilíbrio químico (G<<0 e Keq>>QR). Ou seja, as velocidades das reacções directa (v1; AB) e inversa (v2; BA) são muito diferentes entre si, v1>>v2 e reacção evolui sempre no sentido AB. Se o QR é, para todas as situações metabólicas possíveis no ser vivo, sempre inferior à Keq, a reacção AB é fisiologicamente irreversível. São estas enzimas que determinam o sentido e a velocidade de fluxo (J) numa determinada via metabólica. Variações na actividade destas enzimas, a que poderíamos chamar enzimas “marca-passo”, têm como resultado modificações na velocidade de fluxo das vias metabólicas. O controlo da velocidade de fluxo nas diferentes vias metabólicas é uma condição indispensável à sobrevivência e não deve surpreender-nos que, nas enzimas “marca-passo” e nos genes que as codificam tenham sido seleccionadas características específicas que os tornam sensíveis a modificações na célula que não são meras variações da concentração dos seus reagentes e produtos. As enzimas “marca-passo” e os genes que as codificam funcionam como sensores da concentração de determinadas substâncias (efectores) aumentando ou diminuindo a sua actividade em função da concentração dessas substâncias. Directa ou indirectamente, a concentração desses efectores é um indicador do estado metabólico da célula (alta concentração de AMP como indicador de alta velocidade de consumo de ATP, por exemplo) ou do organismo como um todo (glicemia alta ou baixa, insulinemia alta ou baixa, etc.).

Por processos mais ou menos complexos a actividade de uma enzima “marca-passo” de uma determinada via metabólica vai variar de tal forma que a velocidade de fluxo nessa via metabólica se adapta às distintas condições metabólicas da célula e do organismo onde existe. As modificações na actividade dessas enzimas (e no fluxo da via metabólica) tendem a corrigir as variações de concentração dos compostos que estiveram na origem da modificação da actividade e, por isso, se diz que têm um papel homeostático.

Algumas enzimas “marca-passo” de vias metabólicas onde são oxidados os nutrientes são activadas pelo AMP cuja concentração aumenta nas células musculares esqueléticas sempre que há aumento da velocidade de hidrólise do ATP (aquando do exercício). O aumento de concentração de AMP que é o resultado da acção sequencial das ATPases estimuladas aquando do exercício físico (ATP + H2O ADP + Pi) e da cínase do adenilato (ADP AMP + ATP) tende a ser corrigido pela activação da oxidação dos nutrientes e pelo concomitante aumento da velocidade de síntese de ATP. O efeito do AMP e de outros efectores (como o Ca2+) na regulação do fluxo das vias onde se dá a oxidação dos nutrientes permite compreender que a concentração de ATP dentro das células se mantenha estacionária mesmo quando o exercício físico é violento.

A regulação da glicemia é também importante na sobrevivência dos seres vivos: porque os neurónios usam glicose como combustível e têm baixas reservas de glicogénio a formação de ATP depende de níveis adequados de fornecimento de glicose. O fígado desempenha um papel determinante na manutenção da glicemia normal porque, em situações em que a entrada de glicose do exterior não ocorre (jejum, por exemplo), estão activadas as vias metabólicas que levam à formação e libertação de glicose para o sangue (glicogenólise e gliconeogénese) e menos activas as que levam à sua oxidação (glicólise) ou armazenamento (glicogénese). Neste processo têm um papel importante hormonas que, ligando-se em receptores da membrana do hepatócito, levam a modificações marcadas na actividade de enzimas “marca-passo” destas vias metabólicas.

3. A actividade enzímica aumenta proporcionalmente com a quantidade de enzima

A quantidade de uma enzima pode, pelo menos teoricamente, ser medida em moles como qualquer outro composto. Contudo, dado que as enzimas catalisam reacções de forma altamente específica é frequente tirar partido desta característica para o seu doseamento. Consideremos a reacção AB catalisada pela enzima E. Se em dois tubos de ensaio adicionamos a mesma quantidade de reagente A e a mesma quantidade de enzima E é de esperar que, se as restantes condições (como temperatura, pH, volume, cofactores1, etc.) forem idênticas, a velocidade de conversão de A em B seja idêntica nos dois tubos. Mas, se a quantidade de 1 Ver Anexo 1.

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enzima E adicionada ao tubo 2 for o dobro da adicionada ao tubo 1 é de prever que também a velocidade de reacção (a actividade da enzima E) duplique; ver Fig. 1.

Dentro das células a quantidade de uma determinada enzima E depende das suas velocidades de síntese e de degradação (hidrólise). Se a velocidade de síntese e degradação forem iguais a concentração da enzima E manter-se-á constante no tempo mas, se a primeira for superior à segunda, é de esperar que a actividade aumente. Os processos de controlo da actividade enzímica em que os genes codificadores são induzidos ou reprimidos conhecem-se melhor que os processos em que varia a velocidade de degradação e por isso, não é de estranhar que, quando se discutem os mecanismos de regulação que envolvem a variação da concentração de uma enzima nas células, se dê particular atenção aos processos de controlo da expressão de genes.

Para que a indução de um gene se repercuta num aumento da actividade da enzima que é o produto desse gene é necessário que a transcrição e a tradução (e eventual processamento pós-tradução) tenham lugar e, por isso, estes mecanismos de regulação são de instalação lenta. Em geral, este mecanismo de regulação das enzimas tem relevância no caso de enzimas que têm velocidades de degradação elevadas. De facto, se uma enzima tiver uma baixa velocidade de degradação não é de esperar que a actividade seja facilmente regulada por este processo. Se, por exemplo, for necessário esperar um mês para que metade das moléculas existentes sejam degradadas então, na ausência de síntese, seria necessário esperar muito tempo para que a actividade baixasse significativamente. Por sua vez, se o processo de degradação for lento, o aumento da velocidade de síntese faria acumular enzima na célula que demoraria também muito tempo a voltar aos níveis de partida.

A carboxicínase do fosfoenolpiruvato (oxalacetato + GTP fosfoenolpiruvato + GDP + CO2) é exemplo de uma enzima com velocidade de degradação rápida (algumas horas para que, na ausência de síntese, a sua concentração desça a metade) e que é regulada ao nível da transcrição. Um outro exemplo é a glicose-6-fosfátase (glicose-6-fosfato + H2O glicose + Pi). Quer a glicose-6-fosfátase quer a carboxicínase do fosfoenolpiruvato são enzimas “marca-passo” da gliconeogénese cuja síntese é induzida no fígado quando, em consequência de valores de glicemia baixa, os níveis de glicagina são elevados e os de insulina baixos. A indução dos genes respectivos tem um papel homeostático na glicemia: contribui para que a velocidade da gliconeogénese aumente e, desta forma, se corrija a condição (hipoglicemia) que estava na origem dessa indução.

Quando se estuda o efeito de uma determinada variável na actividade de uma enzima E e o estudo inclui submeter animais de experiência a diferentes condições (jejum e dieta normal, por exemplo) e o doseamento de E num órgão desse animal, na esmagadora maioria das vezes, o que estamos a estudar é, simplesmente, o efeito da variável na concentração da enzima no órgão em questão. Aquando da realização da homogeneização do órgão (e, se for o caso, do isolamento de fracções celulares) e na montagem do sistema de ensaio (adição ao meio de ensaio de tampões de pH, substratos, etc.) os eventuais efectores alostéricos ou isostéricos da actividade da enzima existentes nas células foram de tal forma diluídos que, geralmente, deixaram de ter peso no doseamento efectuado2.

2 Ver Anexo 2.

Fig. 1: A actividade enzímica (vo) é directamente proporcional à quantidade total de enzima (Et). kcat é uma constante que tem dimensões de tempo-1. Km é uma outra constante; é uma medida da afinidade da enzima pelo substrato S e tem dimensões de concentração. kcat [S]/( Km + [S]) tem um valor constante se a concentração de substrato ([S]) for constante.

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4. A modulação da actividade das enzimas pode ser feita por substâncias que se ligam, de forma não covalente e reversível, ao centro activo ou a um centro alostérico

Um outro factor que é de prever influenciar a velocidade de conversão de A em B é a presença do produto B. B terá, se as condicionantes termodinâmicas da reacção o permitirem, a capacidade de se ligar à enzima no seu centro activo e de interagir com esta gerando A. Mas mesmo que a reacção inversa seja irrelevante, como acontece nas reacções fisiologicamente irreversíveis, a mera presença de B no centro activo de algumas das moléculas da enzima impede a ligação de A nos centros activos dessas moléculas. Por isso B pode, se a sua concentração for suficientemente elevada, ser um inibidor da conversão enzímica AB e, porque se liga no centro activo, diz-se um inibidor isostérico. Um exemplo deste tipo de inibição ocorre no caso da desidrogénase da glicose-6-fosfato (glicose-6-fosfato + NADP+ 6-fosfogliconolactona + NADPH; a primeira enzima da via das pentoses-fosfato) onde o NADPH é um inibidor isostérico que compete com o NADP+ pelo local de ligação deste composto na enzima. A concentração de NADPH condiciona a actividade da desidrogénase da glicose-6-fosfato de tal forma que, se a sua concentração diminuir, a actividade da enzima aumenta [1]. A via das pentoses-fosfato fica activada sempre que o consumo (oxidação) do NADPH aumenta.

Frequentemente, quando uma substância que não é o substrato (não tem de ser o produto, pode ser um outro análogo estrutural do substrato, por exemplo) se liga de forma reversível ao centro activo de uma enzima ocorre um tipo de inibição que se diz competitiva. O que se passa é que a presença do inibidor impede a ligação do substrato às moléculas de enzima que têm o inibidor ligado no centro activo. No entanto, tendo em conta que ambos, substrato e inibidor, competem pelo centro activo, a probabilidade de uma molécula de enzima estar ligada a uma molécula de inibidor depende quer da concentração de inibidor quer da concentração de substrato. Se a concentração de substrato aumentar, a probabilidade de haver moléculas de enzima que, em vez de estarem ligadas ao substrato, estão ligadas ao inibidor diminui. Na prática isto significa que o grau de inibição exercido por uma determinada concentração de um inibidor competitivo diminui quando a concentração de substrato aumenta. Na inibição de tipo competitivo, a presença do inibidor não afecta o valor do Vmax mas faz aumentar o valor aparente do Km do substrato com o qual o inibidor compete.

Há, contudo, outras substâncias que podem interferir com a velocidade de reacção e que, de acordo com as evidências experimentais, não se ligam no centro activo da enzima mas num local diferente do centro activo: um sítio (ou centro) alostérico. Consideremos uma substância X que, quando adicionada ao meio de ensaio enzímico, aumenta a velocidade da reacção. O facto de o efeito ser activador constitui desde logo uma evidência contra a ideia de se ligar no mesmo sítio onde se liga o substrato; se fosse esse o caso devia interferir com a ligação do substrato e inibir a reacção. Neste caso podemos referir-nos a X como um activador alostérico porque se admite que se liga num local distinto do centro activo: um sítio (ou centro) alostérico. Às vezes, existem substâncias (Y) que são, estruturalmente, muito diferentes dos substratos e dos produtos e que também inibem a reacção enzímica. É de presumir, pelo menos numa primeira abordagem, que Y se ligue à enzima num local distinto do centro activo e que modificando de alguma maneira a sua estrutura secundária, terciária ou quaternária interfira negativamente na sua capacidade de catalisar a reacção que a enzima em questão catalisa. Y seria neste caso um inibidor alostérico. Frequentemente, os inibidores alostéricos competem com os activadores alostéricos pelo mesmo sítio alostérico mas, enquanto os activadores induzem modificações na conformação da enzima que a tornam mais activa, os inibidores, ao impedir a ligação do activador alostérico, impedem que essa alteração conformacional tenha lugar. O inverso também é verdadeiro: a modificação alostérica que leva à formação de uma conformação menos activa por ligação a um inibidor pode ser impedida se, no mesmo local, se ligar um composto que impede a ligação do inibidor e que será, consequentemente, um activador alostérico.

Nos últimos anos, o reconhecimento da complexidade dos fenómenos de regulação da actividade biológica das proteínas (não só enzimas mas também transportadores de membranas, canais iónicos ou receptores de hormonas ou neurotransmissores) levou à generalização do uso da expressão “domínios reguladores” para referir sítios na proteína alvo onde se podem ligar substâncias que, ao ligarem-se, induzem modificações conformacionais e alterações funcionais (activadoras ou inibidoras) na proteína alvo. Na verdade, quando a proteína alvo é uma enzima e os domínios reguladores interagem com ligandos de

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Fig. 2: O gráfico actividade da cínase 1 da frutose-6-fosfato versus concentração de ATP tem o aspecto de um sino na ausência de AMP e ADP mas já tem um aspecto mais “normal” quando o meio de ensaio contém AMP (ou ADP).

forma reversível envolvendo ligações não covalentes podemos dizer que esses domínios reguladores correspondem à designação clássica de sítios alostéricos.

Na regulação por ligandos (activadores ou inibidores alostéricos e inibidores isostéricos), a ligação entre a enzima e o ligando é de tipo não covalente envolvendo ligações facilmente reversíveis (de van der waals, iónicas ou de hidrogénio) e de estabelecimento rápido. Assim, a razão entre as forma ligadas e desligada é condicionada pelo equilíbrio químico na ligação ligando + Enzima ligando-Enzima que se estabelece de forma praticamente instantânea. Compreende-se por isso que quando a concentração do ligando se modifica as modificações induzidas nas enzimas sejam imediatas.

É um exemplo clássico de regulação alostérica de enzimas a acção do AMP, do ADP e do ATP na actividade da cínase da frutose-6-fosfato (ATP + frutose-6-fosfato ADP + frutose-1,6-bisfosfato; ver Fig. 2) [2]. Em princípio, não esperaríamos que o substrato de uma enzima pudesse agir como inibidor da actividade dessa enzima mas, no caso da cínase da frutose-6-fosfato (cuja actividade tem uma enorme importância na velocidade de fluxo na glicólise), parece ser exactamente isto que acontece. A cínase da frutose-6-fosfato catalisa a transferência do fosfato do ATP para a frutose-6-fosfato originando frutose-1,6-bisfosfato mas, estudos in vitro usando a enzima purificada mostraram que, para concentrações fisiológicas dos substratos ela é, praticamente, inactiva. Embora a concentração estacionária de ATP varie de célula para célula, os valores fisiológicos são, dependendo da célula, de cerca de 1 a 5 mM, variando muito pouco ao longo do tempo. Curiosamente, a actividade da cínase da frutose-6-fosfato aumenta com a concentração de ATP quando as concentrações de ATP utilizadas em ensaios in vitro se mantêm abaixo de 1 mM mas, para concentrações fisiológicas de ATP a actividade baixa de forma muito marcada. Curiosamente, o ADP (que é um produto da actividade da cínase da frutose-6-fosfato) e o AMP (que se pode formar a partir do ADP por acção da cínase do adenilato: 2 ADP ATP + AMP) podem, em concentrações adequadas, contrariar o efeito inibidor do ATP. Na origem destas acções está um sítio alostérico que, quando ligado ao ATP, induz uma alteração conformacional inibidora e esta acção inibidora pode ser contrariada pela competição do AMP e do ADP por esse centro alostérico.

Uma reflexão sobre os fenómenos apontados acima pode revelar-se muito interessante. A glicólise é uma via metabólica que inicia o processo de oxidação da glicose e que, mesmo em regime anaeróbio, permite a acoplagem da cisão da molécula de glicose com a da síntese de ATP. Numa fibra muscular esquelética em actividade de contracção rápida, a velocidade de hidrólise de ATP está muito aumentada e as concentrações de ADP e a de AMP sobem relativamente à situação de repouso. Um animal só poderá fugir aos seus inimigos ou agarrar a presa se conseguir manter a concentração de ATP em níveis fisiológicos mesmo quando a velocidade de hidrólise do ATP no sistema contráctil actina-miosina está muito aumentada. Nesta situação, fazem parte do sistema sensor-resposta homeostática o aumento da concentração de AMP e ADP no citoplasma das células, a estimulação da cínase da frutose-6-fosfato pelo AMP e ADP com a consequente estimulação da oxidação da glicose e fosforilação do ADP (formação de ATP). Sendo a cínase da frutose-6-fosfato uma enzima reguladora da velocidade da glicólise pode já não parecer tão estranho que

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uma enzima com um centro alostérico com as características apontadas tenha sido positivamente seleccionada.

No caso do fígado, onde não ocorrem variações marcadas na velocidade de hidrólise do ATP, as variações nas concentrações estacionárias de AMP e ADP são discretas mas a actividade da cínase da frutose-6-fosfato pode, também aqui, sofrer marcadas variações de actividade. O mais importante regulador da cínase da frutose-6-fosfato no fígado é a frutose-2,6-bisfosfato que é o produto da actividade de uma outra cínase da frutose-6-fosfato existente nas células. Para as distinguir passou a associar-se o número 1 à primeira (a cínase 1 da frutose-6-fosfato forma frutose-1,6-bisfosfato e é uma enzima da glicólise) e o 2 à segunda [a cínase 2 da frutose-6-fosfato forma frutose-2,6-bisfosfato (ATP + frutose-6-fosfato ADP + frutose-2,6-bisfosfato) e não é uma enzima da glicólise].

Quando se realiza um estudo para provar se uma enzima é afectada por um determinado ligando (efector isostérico ou alostérico) é necessário realizar, pelo menos, dois ensaios em tudo idênticos (pH, temperatura, concentração de substratos e de enzima, etc.) excepto no que respeita ao ligando em estudo: um dos ensaios é feito na presença do ligando e o outro na sua ausência. A observação de diferenças na actividade da enzima nas duas condições apenas mostra que a enzima pode ser afectada pela presença desse ligando. A relevância biológica da observação dependerá das concentrações de ligando usadas no ensaio e da sua aproximação às concentrações que se crêem existir na vizinhança da enzima na célula viva. No entanto, apesar de alguns ligandos com acção inibidora ou activadora não existirem sequer nas células não transforma a observação em irrelevante: eventualmente esse ligando poderá ser usado como um fármaco modulador da actividade dessa enzima ou num importante instrumento no estudo da actividade da enzima em análise ou no estudo do metabolismo. Às vezes, a relevância biológica da descoberta pode não ser evidente numa primeira análise, mas descobrir-se depois que, afinal, a substância existe nos seres vivos ou que é um análogo de uma substância que existe nos seres vivos ligando-se no mesmo sítio onde se liga o composto natural ainda por descobrir.

5. A existência nas células de actividade simultânea em enzimas que têm papéis biológicos

opostos levou à cunhagem da expressão “ciclos fúteis” que uma análise mais atenta mostrou ser inadequada

De facto, a activação induzida pelo AMP e pelo ADP na cínase da frutose-6-fosfato não é suficiente para explicar o aumento explosivo da velocidade de fluxo na glicólise nas fibras musculares esqueléticas aquando do exercício físico. Apesar de as variações de concentração de AMP e ADP serem apreciáveis os aumentos observados são mais modestos que os que teriam de existir para explicar o aumento da velocidade de fluxo na glicólise nessas condições.

Curiosamente, uma das explicações para o aumento da velocidade de fluxo na glicólise tem por base um fenómeno que, quando observado pela primeira vez, pareceu tão estranho que os seus autores o apelidaram de “fútil”. Na maioria das células, incluindo as fibras musculares esqueléticas, estão simultaneamente activas a cínase-1 da frutose-6-fosfato (ATP + frutose-6-fosfato ADP + frutose-1,6-bisfosfato) que catalisa a conversão de frutose-6-fosfato em frutose-1,6-bisfosfato e uma outra enzima, a frutose-1,6-bisfosfátase, que tem um papel biológico oposto: a hidrólise da frutose-1,6-bisfosfato (frutose-1,6- bisfosfato + H2O frutose-6-fosfato + Pi). O somatório dos dois processos leva, simplesmente, à hidrólise de ATP o que, à primeira vista, parece não fazer nenhum sentido. Se em cada 10 moléculas de frutose-6-fosfato que se converteram em frutose-1,6-bisfosfato por acção da cínase, 9 voltarem a formar frutose-6-fosfato por acção da frutose-1,6-bisfosfátase então, 9 em cada 10 moléculas de ATP gastas na acção da cínase foram desperdiçadas aquando da acção da fosfátase. Se a actividade da cínase for de 10 moles/min e a da hidrólase de 9 moles/min a velocidade de fluxo na glicólise será de 1 mol/min. Se a actividade da cínase, estimulada pelo AMP aumentar de 10 moles/min para 90 moles/min o aumento na actividade da cínase foi apenas de 9 vezes mas o aumento de fluxo na glicólise aumentou de 1 mol/min para 81 (90-9) moles/min: um aumento de 81 vezes na velocidade de fluxo foi conseguido com uma variação muito mais modesta (9 vezes) na actividade da enzima (a cínase da frutose-6-fosfato) que catalisa a conversão da frutose-6-fosfato em frutose-1,2-bisfosfato. Esta potenciação dos efeitos da variação da

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actividade de uma enzima componente de um ciclo “fútil” no fluxo de uma via metabólica explica porque é que estes ciclos se tenham deixado de chamar fúteis e se passassem a chamar “ciclos de substrato”.

Na realidade, no caso do ciclo de substrato frutose-6-fosfato/frutose-1,6-bisfosfato, o AMP é não só activador da cínase-1 da frutose-6-fosfato mas também inibidor da frutose-1,6-bisfosfátase e os dois efeitos antagónicos nas duas enzimas do ciclo potenciam-se mutuamente permitindo um aumento no fluxo da glicólise muito superior ao que seria de prever tendo em conta o efeito do AMP em cada uma das duas enzimas analisadas isoladamente.

O mesmo ciclo de substrato frutose-6-fosfato/frutose-1,6-bisfosfato também existe no fígado e também aqui a actividade das duas enzimas que o compõem é regulada de forma antagónica pelo composto regulador hepático pertinente: a frutose-2,6-bisfosfato. Já foi referido (ver Capítulo 4) que a frutose-2,6-bisfosfato é activador da cínase-1 da frutose-6-fosfato mas este composto é, simultaneamente, inibidor da frutose-1,6-bisfosfátase. No fígado, a diminuição de concentração de frutose-2,6-bisfosfato que ocorre durante o jejum faz com que o somatório (de sinais opostos) das actividades da cínase-1 da frutose e da frutose-1,6-bisfosfátase inverta o sentido do fluxo: quando a concentração de frutose-2,6-bisfosfato está baixa nos hepatócitos a velocidade de fluxo passa a favorecer a formação de glicose (gliconeogénese). A regulação da concentração intracelular de frutose-2,6-bisfosfato, complementando a informação apresentada nos Capítulos 4 e 6, é explicada no Anexo 3.

6. A regulação da actividade das enzimas pode envolver modificações de tipo covalente

catalisadas por outras enzimas

A conformação das proteínas e em particular das enzimas depende do ambiente em que existem e em particular da ligação não covalente de substâncias nos seus centros alostéricos ou no seu centro activo. No entanto, algumas vezes, as modificações sofridas pelas enzimas podem ser menos subtis e envolverem modificações de tipo covalente. Muito frequentemente, essas modificações são fosforilações catalisadas por cínases de proteínas (enzima E + ATP enzima E-fosforilada + ADP) ou desfosforilações catalisadas por fosfátases de proteínas (enzima E-fosfato + H2O enzima E + Pi). Se a forma fosforilada da enzima E for mais (ou menos) activa que a forma desfosforilada então a cínase terá um papel activador (ou inibidor) da enzima E e a fosfátase o papel inverso. Consideremos que a enzima E só tem actividade catalítica quando contém grupos fosfatos ligados num determinado resíduo (por exemplo o resíduo serina14) e que uma outra enzima C pode catalisar a transferência do fosfato do ATP para o resíduo serina14 de E. A enzima C seria uma cínase de E e, se adicionarmos a enzima C e ATP a um meio de ensaio contendo a enzima E, é de esperar um aumento da velocidade da reacção AB catalisada pela enzima E. Se pelo contrário existe uma enzima F capaz de catalisar a hidrólise da ligação serina14 – P então a adição da enzima F (fosfátase de E) ao sistema reverteria a activação acima referida. Para designar a porção da proteína onde ocorre a fosforilação/desfosforilação também se usa, frequentemente, a mesma expressão a que já nos referimos a propósito da regulação alostérica: domínio regulador (ver Capítulo 4).

Um exemplo clássico é a desidrogénase do piruvato (piruvato + NAD+ + CoA acetil-CoA + NADH + CO2) cuja actividade depende da fracção de enzima que está no estado desfosforilado (a forma activa) e na forma fosforilada (a inactiva). A

Fig. 3: Condições necessárias para permitir o doseamento da actividade efectiva (“actual”) da desidrogénase do piruvato: presença de fluoreto e de dicloroacetato. Para dosear a actividade “total” há que inibir a cínase com dicloracetato e manter a fosfátase activa.

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distribuição entre as formas activa e inactiva (e, em última análise, a actividade da enzima como um todo) depende das actividades relativas de uma cínase específica (a cínase da desidrogénase do piruvato que catalisa a sua fosforilação e consequente inactivação) e uma fosfátase específica (a fosfátase da desidrogénase do piruvato que catalisa a sua desfosforilação e consequente activação). Por sua vez a actividade da cínase e da fosfátase depende de factores a que já fizemos referência em capítulos anteriores (Capítulos 3 e 4). Quando uma fibra muscular é estimulada pelo seu nervo motor ocorre um aumento na concentração intracelular de Ca2+ que é um estimulador alostérico da fosfátase da desidrogénase do piruvato. De forma muito rápida ocorre um aumento na velocidade de desfosforilação da desidrogénase do piruvato com a consequente activação desta enzima: a actividade muscular contráctil ocorre paralelamente com aumento da velocidade da oxidação do piruvato (e a subsequente síntese de ATP) [3]. A insulina também estimula a oxidação do piruvato mas o mecanismo é de instalação lenta: a insulina reprime a expressão do gene codificador da cínase da desidrogénase do piruvato desta forma diminuindo a velocidade de fosforilação (inactivação) da desidrogénase do piruvato [4].

O estudo da actividade efectiva (“actual”) de enzimas reguladas por fosforilação/desfosforilação tem particularidades que são uma consequência do facto de os homogeneizados (ou fracções de homogeneizados) dos tecidos onde se pretende medir a sua actividade conter também as enzimas responsáveis pela sua activação e inactivação. Se durante a colheita e o processo de homogeneização dos tecidos as cínases e fosfátases pertinentes continuarem activas, a actividade que se vai medir pode não coincidir com a actividade da enzima no momento da colheita do tecido. A cínase da desidrogénase do piruvato é inibida pelo dicloroacetato e a fosfátase é inibida pelo fluoreto e, embora estas substâncias não tenham nenhum papel fisiológico na regulação da desidrogénase do piruvato, são importantes instrumentos no seu estudo. A adição de dicloroacetato e de fluoreto ao tecido em análise durante o processo de homogeneização e ao meio de ensaio onde se doseia a actividade da desidrogénase previne modificações nas proporções das formas activa (desfosforilada) e inactiva (fosforilada); ver Fig. 3 [5].

7. A actividade das enzimas pode ser afectada pela concentração do substrato na sua

vizinhança podendo esta depender da actividade de transportadores ou de enzimas que afectam o transporte transmembranar

Se, no decurso do estudo de uma enzima (AB), usarmos vários tubos de ensaio, adicionando diferentes concentrações do substrato A e mantendo constantes todas as outras condições (incluindo a quantidade de enzima E, obviamente) é de esperar que a velocidade de conversão de A em B aumente com a concentração de A. Contudo, não é de esperar que, pelo menos para concentrações “altas” de A, esse aumento seja proporcional à concentração de A. A partir de determinadas concentrações aumentos na concentração de A não implicam variação significativa na velocidade de reacção; à velocidade atingida nessas concentrações de A chama-se Vmax (velocidade máxima; ver Fig. 4). É de notar que o valor de Vmax é apenas um parâmetro que se obtém quando se estuda a velocidade de reacção (ou transporte transmembranar) variando apenas a concentração de substrato, havendo diferentes valores de Vmax quando se modificam as outras condições de ensaio. Quando a enzima tem vários substratos o que normalmente se faz é fixar a concentração de todos os outros e obter o parâmetro Vmax para o substrato cuja concentração varia. É

Fig. 4: Variação da actividade de uma enzima em que o gráfico actividade versus [S] é uma hipérbole.

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obvio que o valor do Vmax depende de todas as outras condições fixadas (pH, temperatura, concentração de enzima, etc.) incluindo a concentração dos outros substratos, podendo obter-se diferentes valores de Vmax se se escolherem diferentes concentrações dos outros substratos.

Na maioria das enzimas a representação gráfica dos resultados do estudo da actividade versus concentração do substrato A resulta numa curva hiperbólica (ver Fig. 4) que passa pelo ponto 0,0 e em que o valor no eixo que representa a actividade (tradicionalmente o das ordenadas) tende para um limite: o Vmax. Na ausência de A a velocidade é nula e existe uma concentração de A em que a velocidade de reacção é metade de Vmax. À concentração de A que proporciona uma velocidade de reacção que é igual a ½ de Vmax chama-se Km de A. Em geral, a velocidade de uma reacção enzímica é pouco sensível a variações de concentração de substrato quando estes valores de concentração são substancialmente maiores (10 vezes ou superiores) que o Km mas, quando as concentrações são mais baixas que o Km ou semelhantes ao Km a velocidade de reacção aumenta quando aumenta a concentração de substrato. Nas enzimas com “cinéticas de tipo hiperbólico” para concentrações de substrato muito inferiores ao Km a actividade aumenta de forma quase proporcional com a concentração de substrato (ver Fig. 4).

Apesar da importância que a análise do efeito da concentração do substrato tem na caracterização das enzimas e no eventual efeito que este factor possa ter nas enzimas que catalisam reacções fisiologicamente reversíveis a observação de que as variações intracelulares dos intermediários do metabolismo são discretas faz pensar que, in vivo, o efeito da concentração do substrato no controlo das enzimas “marca-passo” pode ser muito menos importante que o que se possa pensar.

Contudo, em algumas vias metabólicas a concentração dos substratos na vizinhança de enzimas que catalisam reacções fisiologicamente irreversíveis pode ter um papel determinante na velocidade de fluxo das vias metabólicas.

Exemplos óbvios são os que se relacionam com a actividade das enzimas envolvidas na conversão da galactose e frutose da dieta: as velocidades de conversão da galactose em galactose-1-fosfato e de frutose em frutose-1-fosfato (catalisadas respectivamente pelas cínases da galactose e da frutose) dependem da presença ou ausência de galactose e frutose (ou dos seus precursores, a lactose e sacarose) na dieta.

Um outro exemplo é a actividade da síntase do ATP cuja actividade é afectada (estimulada) pela concentração intra-mitocondrial de ADP [6].

Outro exemplo é a hexocínase IV (também designada de glicocínase) cujo Km para a glicose é cerca de 10 mM. A hexocínase IV existe no fígado e a alta actividade do transportador para a glicose na membrana citoplasmática dos hepatócitos (GLUT2) permite que as suas concentrações intracelulares sejam semelhantes às da glicemia na veia porta. As variações de glicemia na veia porta são muito mais marcadas que no sangue sistémico e as concentrações fisiológicas de glicose no hepatócito são mais baixas ou próximas do Km: a actividade da hexocínase IV é influenciada pela concentração de glicose. De facto, in vivo, o Km para a glicose pode ser ainda mais elevado do que apontado acima tornando ainda mais acentuado o efeito da concentração intracelular de glicose na actividade da enzima. Nos hepatócitos existe uma proteína (proteína reguladora da glicocínase) que tem um efeito inibidor competitivo relativamente à glicose [7].

Um factor que pode influenciar de forma marcada a concentração de substrato na vizinhança de uma enzima é o transporte transmembranar do substrato. Por exemplo, a actividade da hexocínase muscular está dependente da entrada de glicose para dentro das fibras musculares esqueléticas sendo este processo, por sua vez, dependente do número de transportadores para a glicose (no caso, GLUT4) presentes na membrana citoplasmática. A insulina tem um importante papel na determinação da velocidade de entrada de glicose para as fibras musculares porque promove a fusão de vesículas intracelulares que contém GLUT4 com a membrana citoplasmática. Um fenómeno idêntico e independente da insulina ocorre aquando do exercício muscular.

A velocidade da oxidação da glicose no músculo depende, como vimos, da velocidade de entrada da glicose nas fibras musculares mas a oxidação dos ácidos gordos também é controlada através da regulação de um sistema de transporte transmembranar; no caso concreto, o transporte de acis-CoA (também designados de ácidos gordos activados) através da membrana interna da mitocôndria. Este transporte é complexo, designa-se de sistema da carnitina e é através dele que os acis-CoA têm acesso às enzimas intra-mitocondriais envolvidas na sua oxidação. Os níveis citoplasmáticos de um inibidor alostérico (malonil-

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CoA) da enzima “marca-passo” do processo de transporte (carnitina palmitil-transférase I) regulam a velocidade de oxidação dos acis-CoA: o acesso dos substratos (acis-CoA) à primeira enzima da oxidação em (a desidrogénase de acil-CoA, uma enzima intra-mitocondrial) depende da actividade do sistema de transporte dos acis-CoA do citoplasma para a mitocôndria. No anexo 4 este mecanismo é explicado com mais pormenor.

8. O pH tem um papel menor na regulação do metabolismo normal

Embora a maneira como o pH afecta a actividade das enzimas seja um dos aspectos quase sempre estudado quando o objectivo é caracterizar uma enzima, pensa-se que, pelo menos em situações normais, este factor terá um papel menor na regulação do metabolismo. Apesar de a maioria das enzimas poder ser afectada por alterações na concentração de protões na sua vizinhança, devido à existência de tamponamento, o pH no citoplasma e nos diferentes organelos celulares varia pouco no tempo.

No entanto, admite-se que em certos aspectos do metabolismo, a modulação da actividade enzímica pelo pH poderá ser importante. O exercício muscular de alta intensidade (correr rapidamente durante um período curto de tempo, por exemplo) provoca uma alteração no tipo de nutriente que é oxidado no músculo esquelético: mesmo que o indivíduo esteja em jejum e a oxidar ácidos gordos o exercício deste tipo provoca um aumento da oxidação dos glicídeos mas, estranhamente, provoca também uma diminuição da oxidação dos ácidos gordos. Tendo o aumento da velocidade de hidrólise de ATP um efeito estimulador no consumo de O2, podia esperar-se que, na origem deste aumento de consumo de O2, estivesse um aumento na velocidade de oxidação dos dois combustíveis mas não é isso que acontece. Admite-se que, na origem da diminuição da velocidade de oxidação dos ácidos gordos, esteja a acidificação do citoplasma (provocada pela estimulação da glicólise anaeróbia e consequente produção de ácido láctico) que inibiria a carnitina palmitil-transférase I (a enzima “marca-passo” do processo de transporte de acis-CoA para a matriz da mitocôndria) e, portanto, a oxidação dos ácidos gordos [8].

9. A temperatura tem, no homem, um papel menor na regulação do metabolismo normal

Porque a temperatura corporal sofre, no homem, variações que são pouco marcadas, a temperatura é, pelo menos no homem adulto, um factor relativamente pouco importante na regulação do metabolismo normal.

As reacções químicas são, em geral, tanto mais rápidas quando maior é a temperatura, e o mesmo acontece no caso das reacções enzímicas. Quando ensaiada in vitro, a actividade enzímica de uma enzima E também aumenta com a temperatura mas, porque a velocidade de desnaturação das proteínas também aumenta com a temperatura, se o ensaio for feito a uma temperatura em que a velocidade de desnaturação da enzima E é elevada observa-se uma diminuição (ou mesmo anulação) precoce da velocidade de reacção. Nestas condições a diminuição da velocidade de reacção ao longo do tempo de ensaio não é causada por consumo de substrato mas sim porque a enzima se desnaturou. O efeito da temperatura na velocidade dos processos metabólicos (incluindo a hidrólise das proteínas e lipídeos das membranas) é explorado quando se usam temperaturas baixas durante o transporte de órgãos que serão usados em transplantes.

Embora a temperatura corporal tenha um papel menor na regulação do metabolismo normal a inversa não é verdadeira; quando os processos catabólicos são acelerados porque, por exemplo, resolvemos fazer exercício físico, uma das consequências é o aumento da temperatura corporal. A oxidação dos glicídeos, lipídeos e aminoácidos são processos exotérmicos e quando estes processos estão acelerados, há aumento da velocidade de produção de calor pelo organismo.

Quando a temperatura do organismo baixa ocorrem respostas adaptativas do sistema nervoso que contribuem para manter a temperatura corporal. Estas respostas têm repercussões na actividade das enzimas e transportadores de membrana mas não podem ser entendidas como uma acção directa da temperatura na actividade dessas enzimas e transportadores. No caso dos bebés humanos (mas também em muitos adultos [9]) o frio provoca um aumento do catabolismo dos nutrientes mas não é a temperatura baixa que, directamente, activa as enzimas envolvidas nos processos catabólicos. A estimulação dos processos oxidativos ocorre no tecido adiposo castanho e resulta da estimulação da termogenina (também designada de

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UCP1, uncoupling protein 1), um transportador de protões presente na membrana mitocondrial interna desse tecido. Em situações de frio, o sistema nervoso simpático fica activado e provoca estimulação da termogenina. Esta estimulação permite dissipar o gradiente electroquímico na membrana interna da mitocôndria provocando estimulação da oxidação dos nutrientes (e a consequente produção de calor) num processo que não está acoplado com a síntese de ATP e que, portanto, não depende da velocidade de hidrólise do ATP. Por esta via, é possível aumentar a velocidade de oxidação dos nutrientes e, consequentemente, a produção de calor, sem ser necessário fazer exercício físico.

10. A actividade das enzimas pode ser afectada por múltiplos factores numa teia de interferências muito complexa

A actividade de uma enzima (a sua capacidade para catalisar a conversão AB) depende de múltiplos factores de que destacamos a quantidade de enzima (ver Capítulo 3), a existência de modificadores alostéricos ou isostéricos (ver Capítulo 4), processos de fosforilação e de desfosforilação catalisados por outras enzimas (ver Capítulo 6) e a concentração de substrato na vizinhança da enzima que, eventualmente, está dependente da actividade de transportadores de membrana (ver Capítulo 7). As variações na quantidade de enzima dependem da variação da velocidade da sua síntese e/ou da sua degradação: nestes fenómenos entre a emergência do factor desencadeante e a alteração da concentração de enzima (e consequente actividade) podem mediar horas ou dias. Nos outros casos as modificações na actividade de uma enzima resultam da variação da capacidade das moléculas de enzima pré-existentes para catalisarem a reacção e, nestes casos, essas modificações são extremamente rápidas.

Uma mesma enzima pode sofrer a influência de vários factores numa teia de interferências muito complexa. Alguns exemplos ilustrativos de factores de regulação da actividade de algumas enzimas assim como a sua importância na sobrevivência dos seres vivos já foram apontados no texto acima e outros são desenvolvidos nos anexos 2, 3 e 4. No Anexo 5 faz-se referência à acção de fármacos na actividade de enzimas e na sua acção terapêutica.

11. Anexo 1 – Significado das expressões cofactor, grupo prostético e coenzima.

A expressão cofactor é usada para designar substâncias que, não sendo reagentes nem produtos da reacção, são indispensáveis à actividade da enzima que catalisa a reacção em análise. O exemplo clássico é o Mg2+ que deve estar presente no meio de ensaio sempre que se ensaiam enzimas que usam como substrato o ATP. Esta necessidade é uma consequência do facto de a ligação do ATP às enzimas ser mediada por iões Mg2+. Pode dizer-se que o substrato das enzimas não é o ATP isolado mas sim o complexo ATP-Mg2+. No entanto o Mg2+ não sofre nenhuma transformação durante a reacção mantendo-se, em parte, ligado aos produtos (quer estes sejam fosfatos orgânicos, o Pi, ou o PPi) e em parte na forma livre.

No entanto, não é infrequente designarem-se também de cofactores compostos que, com maior adequação, caberiam nas designações de grupos prostéticos ou coenzimas.

Usa-se a expressão “grupo prostético” para designar os componentes de uma proteína que não são constituídas por resíduos aminoacídicos mas que estão fortemente ligados (em muitos casos por uma ligação covalente) à(s) cadeia(s) aminoacídica(s). Quando queremos distinguir os componentes de uma proteína que contém um ou mais grupos prostéticos chamamos apo-proteína à parte da cadeia aminoacídica e ao conjunto holo-proteína: no caso de uma enzima as expressões equivalentes são apo-enzima e holo-enzima. Os grupos prostéticos de uma proteína são indispensáveis à sua actividade e também não se consomem quando se completa um ciclo catalítico; por isso, não é de estranhar que a palavra cofactor também possa ser usada para os designar.

Por exemplo, o complexo desidrogénase do piruvato contém 3 grupos prostéticos: a tiamina-pirofosfato (também chamada tiamina difosfato), o ácido lipóico e o FAD. Durante o processo catalítico estes 3 grupos prostéticos intervêm directamente no processo reactivo. Num ciclo catalítico a tiamina pirofosfato fica ligada (e desligada) a um grupo hidroxietilo, o ácido lipóico liga-se (e desliga-se) a um acetilo e sofre redução (e oxidação) e o FAD também é reduzido (e oxidado). O oxidante final é uma substância que se liga de forma débil à enzima: o NAD+. O somatório das diversas reacções parciais

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catalisadas pelo complexo desidrogénase do piruvato é o seguinte: piruvato + NAD+ + CoA acetil-CoA + CO2 + NADH.

As expressões “grupo prostético” e “coenzima” não têm exactamente o mesmo significado mas podem confundir-se.

Coenzimas são substâncias que podem estar em dois estados (ou formas) interconvertíveis durante o metabolismo celular: o NAD+/NADH e o NADP+/NADPH são coenzimas porque variam entre o estado oxidado e reduzido; a coenzima A também é uma coenzima porque pode estar na forma livre (CoASH) ou ligada ao acetilo (acetil-CoA), ao succinilo (succinil-CoA) ou a diversos ácidos gordos (diversos acis-CoA). No contexto do metabolismo celular, percebe-se que, em analogia com as enzimas (que se transformam durante o ciclo catalítico mas se regeneram no final do ciclo), se chamem coenzimas ao NAD+, ao NADH, ao NADP+, ao NADPH e à coenzima A. Dois exemplos: (1) o NAD+ reduz-se a NADH durante a conversão glicose piruvato mas o NADH formado sofre re-oxidação a NAD+ na conversão piruvato lactato ou por acção da cadeia respiratória; (2) a CoASH converte-se em acetil-CoA por acção da desidrogénase do piruvato mas na “primeira” reacção do ciclo de Krebs, a catalisada pela síntase do citrato, a CoASH é regenerada (oxalacetato + acetil-CoA citrato + CoASH).

Em alguns livros de texto a expressão coenzima é também usada para incluir os grupos prostéticos. Percebe-se que assim seja se pensarmos que durante um ciclo catalítico os grupos prostéticos sofrem uma determinada transformação mas são regenerados no final. Durante o ciclo catalítico da desidrogénase do piruvato, o FAD é reduzido a FADH2 pela forma reduzida do ácido lipóico (que se oxida) mas, logo de seguida, é oxidado pelo NAD+ regenerando-se o FAD. O facto de a ligação do NAD+ (e do NADH), do NADP+ (ou do NADPH) e da coenzima A às enzimas com que interagem ser débil (e não permanente) permite compreender que a expressão “grupo prostético” não seja adequada para designar estas substâncias.

12. Anexo 2 – Exemplo de estudo do efeito de uma hormona na actividade de uma enzima cuja

síntese é reprimida

A glicose-6-fosfátase é uma enzima que catalisa a hidrólise da glicose-6-fosfato com formação de glicose e Pi. O QR encontra-se muito afastado da Keq e crê-se que a reacção é fisiologicamente irreversível. A glicose-6-fosfátase existe no fígado e no rim (e no intestino), sendo um passo importante nos processos de produção de glicose para o sangue, via conversão de aminoácidos, glicerol, glicogénio ou, eventualmente, a partir da frutose ou galactose ingeridas. Após uma refeição contendo glicídeos a concentração de glicose no sangue (glicemia) aumenta provocando a libertação de insulina nas células dos ilhéus pancreáticos. Embora, como pode ser demonstrado usando glicose marcada com isótopos de hidrogénio [10], o fígado consuma e produza glicose ao mesmo tempo, a velocidade de produção diminui e a de consumo aumenta nestas circunstâncias fazendo com que o balanço líquido favoreça o consumo. Após a ingestão de amido (ou glicose) o fígado não funciona como um órgão secretor líquido de glicose mas, pelo contrário, capta glicose do sangue. O contrário acontece durante os outros estados metabólicos, nomeadamente durante o jejum, em que o fígado é um órgão que segrega glicose, ou seja, liberta mais glicose para o plasma sanguíneo que a que consome.

Admitiu-se a hipótese de que a insulina podia, de alguma maneira, provocar diminuição da quantidade de glicose-6-fosfátase no fígado e a hipótese foi testada experimentalmente. Para esse efeito, e ainda nos anos 60, foram realizados estudos com ratos usando modelos de diabetes experimental [11]. Um grupo de ratos foi tratado com drogas que provocavam a destruição das células pancreáticas e, portanto, incapacidade para produzir insulina (diabetes); outro grupo de ratos funcionou como controlo. Os ratos foram mortos, os fígados destes foram homogeneizados e foi doseada a glicose-6-fosfátase nos homogeneizados. Para este efeito mediu-se a velocidade de hidrólise da glicose-6-fosfato quando se adicionava aos meios de ensaio contendo glicose-6-fosfato amostras dos referidos homogeneizados correspondendo a uma mesma quantidade de tecido hepático em todos os casos. Observou-se que nos ensaios em que o homogeneizado tinha sido obtido de ratos diabéticos, a velocidade de hidrólise da glicose-6-fosfato era muito superior à dos ensaios com os homogeneizados dos controlos. Os dados faziam admitir como altamente provável que na origem da diferença estaria uma quantidade aumentada de enzima nos ratos diabéticos; ou seja, para uma dada massa de fígado havia mais moléculas de glicose-6-fosfátase se o fígado

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fosse de um rato diabético. Também se admitiu que na origem deste fenómeno estaria um aumento da velocidade de síntese da enzima nos ratos diabéticos e que a insulina teria um papel inibidor nessa síntese. Contudo, só nos anos 90, depois do gene correspondente à glicose-6-fosfátase ter sido identificado, foi possível confirmar essas suspeitas. De facto foi possível confirmar que a quantidade de RNA mensageiro codificador da glicose-6-fosfátase estava aumentado no fígado dos ratos diabéticos e que a administração de insulina provocava diminuição da quantidade desse RNA mensageiro [12]. Variações na quantidade de RNA mensageiro específico induzidas por variações de sinal inverso na quantidade de insulina circulante é uma evidência muito forte a favor da acção inibidora desta hormona na expressão do gene codificador da glicose-6-fosfátase e, portanto, na síntese desta enzima.

13. Anexo 3- A fosforilação/desfosforilação de uma proteína com actividade catalítica pode

alterar não só a velocidade da catálise como a própria natureza da reacção catalisada

Considerando o balanço global, o fígado funciona alternadamente como formador líquido de glicose a partir de aminoácidos e glicerol durante o jejum (gliconeogénese) e como consumidor líquido de glicose quando a glicemia aumenta após as refeições. Na regulação do processo desempenham um papel importante a cínase-1 da frutose-6-fosfato (ATP + frutose-6-fosfato ADP + frutose-1,6-bisfosfato) e a fosfátase da frutose-1,6-bisfosfato (frutose-1,6-bisfosfato + H2O frutose-6-fosfato + Pi) e, em parte, as velocidades da glicólise e da gliconeogénese hepáticas dependem da actividade relativa destas enzimas que, por sua vez, dependem da concentração intracelular de frutose-2,6-bisfosfato.

A concentração da frutose-2,6-bisfosfato é, por outro lado, uma resultante das actividades relativas de outra cínase da frutose-6-fosfato (a cínase-2 da frutose-6-fosfato) e de outra fosfátase (a fosfátase da frutose-2,6-bisfosfato). Na realidade, as expressões cínase-2 da frutose-6-fosfato e fosfátase da frutose não se referem a enzimas independentes mas a duas actividades antagónicas de uma mesma enzima, que no estado desfosforilado funciona como cínase e no fosforilado como fosfátase e se designa de “enzima bifuncional”.

Quando a glicemia é elevada, a concentração de insulina aumenta no plasma e, ligando-se no seu receptor na face exterior da membrana citoplasmática dos hepatócitos desencadeia uma série de fenómenos que culminam na activação de uma fosfátase de proteínas que catalisa a desfosforilação da “enzima bifuncional”. A “enzima bifuncional” no estado desfosforilado funciona como cínase-2 da frutose-6-fosfato e leva à formação de frutose-2,6-bisfosfato que, aumentando de concentração no citoplasma se liga quer à cínase-1 da frutose-6-fosfato quer à fosfátase de frutose-1,6-bisfosfato, activando a primeira e inibindo a

Fig. 5: A enzima bifuncional funciona como cínase-2 da frutose-6-fosfato no estado desfosforilado e como fosfátase da frutose-2,6-bisfosfato no estado fosforilado. A PKA fica activa quando a glicagina sobe o que, no fígado, estimula a gliconeogénese e inibe a glicólise.

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segunda. Ou seja, a glicemia alta vai ter como consequência uma série de fenómenos que culminam na activação da glicólise (onde se consome glicose) e na inibição da gliconeogénese (onde se forma glicose).

Reciprocamente, quando a glicemia desce, a concentração de glicagina aumenta no plasma, liga-se ao seu receptor na face exterior da membrana citoplasmática dos hepatócitos o que leva à estimulação da adenilcíclase (ATP AMP cíclico + PPi) e à acumulação intracelular de AMP cíclico. O AMP cíclico é activador alostérico da PKA (cínase de proteínas dependente do AMP cíclico) e um dos substratos desta cínase de proteínas é a “enzima bifuncional” (“enzima bifuncional” + ATP “enzima bifuncional-fosforilada” + ADP). A “enzima bifuncional” no estado fosforilado funciona como fosfátase da frutose-2,6-bisfosfato e, consequentemente, a concentração de frutose-2,6-bisfosfato desce no citoplasma nestas condições metabólicas. Esta descida de concentração vai ter consequências antagónicas às referidas no parágrafo anterior: fica activada a fosfátase de frutose-1,6-bisfosfato (activação da gliconeogénese) e inibida a cínase-1 da frutose-6-fosfato (inibição da glicólise). O factor que está na origem do processo (a glicemia baixa) desencadeia uma complexa cadeia de eventos cujo resultado (a formação de glicose no fígado) corrige o factor que está na sua origem.

14. Anexo 4- O controlo da oxidação dos ácidos gordos

A oxidação dos ácidos gordos ocorre na matriz mitocondrial (oxidação em ) e, no caso dos ácidos gordos de cadeia longa, o passo limitante da velocidade do processo é o transporte de acis-CoA (“ácidos gordos activados”) através da membrana mitocondrial interna. Este processo de transporte é complexo e envolve a acção de (1) uma transférase da membrana mitocondrial externa (carnitina palmitil-transférase I: carnitina(fora da mitocôndria) + acil-CoA(fora da mitocôndria) acil-carnitina(fora da mitocôndria) + CoA(fora da mitocôndria)) que catalisa a transferência do acilo do acil-CoA para a carnitina, (2) um transportador da membrana mitocondrial interna que é um trocador (troca acil-carnitina que entra por carnitina que sai; acil-carnitina(fora

da mitocôndria) + carnitina(matriz) acil-carnitina(matriz) + carnitina(fora da mitocôndria)) e (3) uma outra transférase (localizada na membrana interna da mitocôndria mas cujo centro activo está voltado para a matriz) que reverte o processo catalisado pela primeira transférase permitindo a formação de acil-CoA na matriz (carnitina palmitil-transférase II: acil-carnitina(matriz) + CoA(matriz) carnitina(matriz) + acil-CoA(matriz).

A enzima “marca-passo” do processo global é a carnitina-palmitil-transférase I. Esta enzima é inibida pelo malonil-CoA que se forma no citoplasma por acção catalítica da carboxílase de acetil-CoA (acetil-CoA + CO2 + ATP → malonil-CoA + ADP + Pi). A carboxílase de acetil-CoA é inibida quando fosforilada por acção da cínase activada pelo AMP (AMPK). A AMPK é activada por fosforilação catalisada por outra cínase de proteínas e a AMPK é melhor substrato dessa cínase quando está ligada ao AMP; por outro lado o AMP é activador alostérico da AMPK fosforilada. Quando a actividade de contracção muscular aumenta, aumenta a concentração de AMP que activa a AMPK que catalisa a fosforilação e consequente inactivação da carboxílase de acetil-CoA. Esta inactivação provoca diminuição na concentração citoplasmática de malonil-CoA. A diminuição da concentração de malonil-CoA “desinibe” a carnitina-palmitil-transférase I. A activação (=desinibição) desta enzima permite a entrada dos acis-CoA para a mitocôndria e, consequentemente, a oxidação em β fica estimulada [13].

Fig. 6: Síntese e inibição da síntese de malonil-CoA e sua acção no transporte transmembranar de acis-CoA nas mitocôndrias.

Page 15: A actividade das enzimas e a sua regulacaoruifonte/PDFs/PDFs_arquivados_anos_anter… · 3. A actividade enzímica aumenta proporcionalmente com a quantidade de enzima 2 4. A modulação

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15. Anexo 5 – Muitos fármacos com acção no metabolismo são inactivadores enzimáticos

Alguns inibidores da actividade enzimática são medicamentos que são análogos de um dos substratos. Poderia pensar-se que essas substâncias funcionam como inibidores competitivos da enzima relativamente aos substratos (que diminuiriam o Km sem interferirem no Vmax) mas, na maioria dos casos, não é isso que se passa. Um inibidor competitivo clássico provocaria, dentro da célula, um bloqueio na actividade da enzima apenas enquanto a concentração de substrato de mantivesse em valores relativamente baixos mas o bloqueio faria aumentar a concentração do substrato eventualmente anulando a acção inibidora do fármaco. Na maior parte dos casos o que se passa é que os fármacos são capazes de ligar-se ao centro activo por ligações que são muito mais fortes que as que estão envolvidas na ligação do substrato à enzima sendo, às vezes, de tipo covalente. O caso do metotrexato (medicamento usado no tratamento de cancro e com acção imunosupressora) é um bom exemplo: o metrotrexato inibe a acção da redútase do dihidrofolato (dihidrofolato + NADPH tetrahidrofolato + NADP+) porque é um análogo estrutural do dihidrofolato mas a sua ligação à enzima é tão forte que o dihidrofolato não pode competir na sua ligação à enzima [14]. Quando o efeito deste tipo de fármacos é estudado em ensaios enzímicos clássicos o que se observa não é efeito nulo no Vmax e aumento no Km mas exactamente o inverso: diminuição do Vmax e ausência de alteração do Km. Uma expressão comum para designar estes fármacos é a de inactivadores enzimáticos porque as moléculas de enzima ligadas ao fármaco ficam excluídas do processo catalítico (as que não estão ligadas comportam-se normalmente).

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Este texto foi, em Novembro de 2008, escrito por Rui Fontes que agradece as críticas ([email protected]) que entenderem fazer. O texto foi revisto em Outubro de 2009 e em Novembro de 2010.