a abordagem textual no ensino de latim - giovanna longo

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175 A ABORDAGEM TEXTUAL NO ENSINO DE LATIM TEXTUAL APPROACH IN LATIN TEACHING Giovanna Longo 1 Resumo: O estudo do latim está essencialmente voltado à aquisição de uma competência receptiva escrita. Por essa razão, o ensino dessa língua antiga deve ter como objetivo principal a formação de leitores. A eficaz compreen- são de textos antigos depende de um processo de aprendizagem que passe por três níveis de competência: o nível linguístico, o nível textual e o nível inter- textual. Como parte desse encaminhamento metodológico para o ensino de latim, que procura estreitar o distanciamento cultural existente entre o mun- do antigo e o contemporâneo, evitando anacronismos na leitura e na inter- pretação de textos latinos, apresentam-se estratégias que permitem trabalhar com o estudo da gramática sem dissociá-la da leitura de textos autênticos. Palavras-chave: Língua Latina, Ensino, Leitura, Cultura Clássica. Abstract: e study of Latin is essentially focused on the receptive writing skills acquisition. For this reason, the teaching of this ancient language should have the readers’ training as its main objective. e effective understanding of ancient texts depends on a learning process that is based on three competence levels: the language level, the textual level and the intertextual level. As part of this teaching methodology, which seeks to narrow the cultural gap between the ancient and the contemporary world, avoiding anachronistic interpreta- tion of Latin texts, this paper presents strategies that allow students to learn grammar from authentic texts. Keywords: Latin language, Education, Reading, Classical Culture. “o latim é uma língua viva do passado” e, portanto, só em relação a esse passado cabem as providências que diferenciam o seu ensino do de qualquer outra língua estrangeira do presente. Alceu Dias Lima, Uma estranha língua?, 1995 1 Professora do Departamento de Linguística da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP – Araraquara.

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A Abordagem Textual No Ensino de Latim - Giovanna Longo

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    A ABORDAGEM TEXTUAL NO ENSINO DE LATIMTEXTUAL APPROACH IN LATIN TEACHING

    Giovanna Longo1

    Resumo: O estudo do latim est essencialmente voltado aquisio de uma competncia receptiva escrita. Por essa razo, o ensino dessa lngua antiga deve ter como objetivo principal a formao de leitores. A e caz compreen-so de textos antigos depende de um processo de aprendizagem que passe por trs nveis de competncia: o nvel lingustico, o nvel textual e o nvel inter-textual. Como parte desse encaminhamento metodolgico para o ensino de latim, que procura estreitar o distanciamento cultural existente entre o mun-do antigo e o contemporneo, evitando anacronismos na leitura e na inter-pretao de textos latinos, apresentam-se estratgias que permitem trabalhar com o estudo da gramtica sem dissoci-la da leitura de textos autnticos.Palavras-chave: Lngua Latina, Ensino, Leitura, Cultura Clssica.

    Abstract: ! e study of Latin is essentially focused on the receptive writing skills acquisition. For this reason, the teaching of this ancient language should have the readers training as its main objective. ! e e" ective understanding of ancient texts depends on a learning process that is based on three competence levels: the language level, the textual level and the intertextual level. As part of this teaching methodology, which seeks to narrow the cultural gap between the ancient and the contemporary world, avoiding anachronistic interpreta-tion of Latin texts, this paper presents strategies that allow students to learn grammar from authentic texts.Keywords: Latin language, Education, Reading, Classical Culture.

    o latim uma lngua viva do passado e, portanto, s em relao a esse passado

    cabem as providncias que diferenciam o seu ensino do de qualquer outra lngua

    estrangeira do presente.Alceu Dias Lima, Uma estranha lngua?, 1995

    1 Professora do Departamento de Lingustica da Faculdade de Cincias e Letras da UNESP Araraquara.

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    A fala legtima dos antigos romanos deixou de ser produzida h muitos sculos. Por essa razo, o estudo da lngua latina est essencialmente volta-do recepo escrita, ou seja, deve objetivar a aquisio de uma competn-cia que habilite leitura de textos escritos por falantes naturais.

    O motivo pelo qual, ainda hoje, se formam nos cursos de Letras do Pas especialistas em Lngua e Literatura Latinas a conservao e a transmis-so da herana literria deixada pelos antigos romanos. Entende-se que o estudo do latim, nesse contexto, deve colocar o aprendiz em contato com os registros textuais, mais do que isso, porm, deve lev-lo a perceber a densidade humana nas manifestaes dessa cultura antiga. Em razo disso, entende-se que o ensino desse idioma deve prever ainda a internalizao dos conceitos necessrios re) exo sobre linguagem verbal tomada como objeto do saber humano, requisito de uma boa formao nessa rea do conhecimento (LIMA, 1992, p. 11).

    As discusses e propostas apresentadas ao longo deste artigo, as quais no se pretendem exaustivas, derivam de uma proposta mais ampla de re-novao dos estudos latinos cujos fundamentos se encontram principal-mente em Lima (1995) e Longo (2011).

    Ensino de lngua ou ensino de cultura clssica?

    Quando se tem em vista o objetivo de ler textos clssicos no original, devem entrar em jogo, nas prticas de ensino-aprendizagem, contedos que vo alm da mera descrio gramatical.

    No se pode, de fato, pensar no estudo de uma lngua em separado da cultura que a justi3 ca como natural. E isso vale para qualquer lngua. Em se tratando de um idioma antigo como o latim, para entend-lo como um idioma como qualquer outro a despeito de no ser o de uso corrente de nenhum falante da atualidade a necessidade de ancorar seu estudo no conhecimento da cultura qual pertence mostra-se ainda mais evidente. Isso se deve ao fato de haver uma gigantesca ruptura espaciotemporal entre a vida contempornea e uma manifestao legtima em lngua latina.

    Para que se possa compreender qualquer registro escrito pertencente cultura romana, preciso retom-la e buscar compreend-la tanto quanto possvel. Caso contrrio, a recepo de textos latinos correr sempre o ris-co de ser fragmentria, anacrnica e eivada de interpretaes equivocadas.

    Quando se tem em vista o estudo de uma lngua como o latim, da qual no h outra fonte seno a dos textos escritos, preciso, antes de mais nada, atentar para o fato de que a falta do discurso oral implica a impossi-

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    bilidade de se reconhecer, dentre os testemunhos da fala latina que resta-ram, o latim coloquial, aquele que o falante, qualquer que fosse seu nvel de instruo, usava na conversao do dia-a-dia (LIMA, 2000, p. 33ss). disposio do aprendizado dessa lngua antiga, ao contrrio do que ocorre com os idiomas modernos, no h muitas manifestaes desprovidas dos artifcios estilsticos prprios dos textos literrios. essa circunstncia que impe um dos principais entraves ao ensino inicial do idioma.

    Entretanto, importante no deixar de considerar um fato, tanto mais irrefutvel quanto fundado na premissa saussuriana de que a lngua uma forma, no uma substncia (SAUSSURE, 2003, p. 141): a existncia de es-critores capazes de explorar os recursos expressivos da linguagem verbal em seu mais alto grau, tanto em Roma como em qualquer outro lugar, pressupe a natural existncia de cada uma das variantes lingusticas de-correntes da lngua, sem as quais no haveria como estabelecer-se uma populao heterognea, com suas tradies, crenas, hbitos e costumes.

    Latim, lngua materna

    Em seu livro intitulado Uma estranha lngua? questes de linguagem e de mtodo, Lima (1995) estabelece os fundamentos de uma proposta de atualizao dos estudos latinos luz dos conceitos da moderna teo-ria da linguagem da lingustica saussuriana, e seu desenvolvimento por Hjelmslev, Semitica de Greimas.

    Esse encaminhamento, que prope uma abordagem renovada em rela-o s prticas tradicionais de ensino do latim, tem em vista no s colocar o especialista em contato direto, o mais cedo possvel, com as realizaes textuais autnticas desse idioma, mas tambm garantir uma compreenso sistmica da lngua dos antigos romanos.

    Essa compreenso sistmica do latim, proporcionada pela cincia da linguagem, tem um aspecto fundamental que vai alm da questo necess-ria apreenso de todo objeto do conhecimento. A compreenso da lngua como um sistema, tal como ensinou Saussure (2003, p. 117ss.), implica a noo de coletividade. A coletividade , pois, uma condio necessria para a existncia de uma lngua.

    Se houve, como o dado histrico no permite negar, uma populao heterognea, com suas crenas, tradies, hbitos e costumes, habitando uma determinada regio do mediterrneo, porque houve uma lngua na-tural em torno da qual essa populao pde organizar-se para expressar e transmitir seus valores culturais.

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    Compreender o latim sistemicamente , pois, entend-lo como lngua natural e, portanto, como lngua materna. A ideia , em si, bastante sim-ples. Talvez at simples demais. O que pode parecer pouco condizente com algo relacionado ao latim.

    As circunstncias histricas em que se encontra esse idioma reduziram seu aprendizado a prticas pouco naturais limitadas aos domnios esco-lares. Essa secular dependncia de uma tradio escolar contribuiu para que se criasse no a imagem de uma lngua como qualquer outra, que se pudesse aprender desde a infncia, atravs de conversaes cotidianas, mas sim a imagem de um cdigo de doutos.

    Assim, parece mesmo difcil se convencer da simples ideia do latim como lngua materna, quando o que resta comprovao de sua existncia so textos como os de Ccero, por exemplo. Mas a compreenso sistmica de uma lngua que permite entender que o fato de haver escritores, capazes de explorar com tamanha propriedade os recursos expressivos da lingua-gem verbal, pressupe a natural existncia de cada uma das variantes lin-gusticas decorrentes desse sistema.

    essa a grande questo trazida pelas re) exes de Lima. O latim de Ccero, de Csar, de Ovdio, Horcio e Virglio o latim de todo o povo de fala latina, o latim materno dos romanos:

    Quem, dentre ns, imagina uma criana, um campons, uma mulher do povo de fala latina, exprimindo-se naquele latim ci-ceroniano das nossas aulas? O que sensato pensar que, se esse latim, o de Csar, de Ccero ou de Tito Lvio existe porque existiram tambm variveis populares que exprimissem sobre-tudo a presena de um povo com todas as diferenas lingusti-cas de regio, de classe social, de idade, e demais que se possam imaginar constituindo a comunidade no seio da qual somente cada escritor pde existir e se formar como falante de excepcio-nal competncia. Ou seramos to ingnuos a ponto de pensar que, em Roma, as pessoas comuns falavam como Ccero escre-via? Ou, ainda, que simplesmente se falasse como se escrevia? (LIMA e THAMOS, 2005, p. 126).

    A condio de que desse latim s restaram, nos dias atuais, textos dei-xados por aquela pequena parcela da populao que dominava a escrita no pode fazer pensar na possibilidade de existncia de uma lngua fora da coletividade. Pensar assim separar o latim daquilo que a razo da sua existncia: a cultura romana.

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    O estudo do latim e a recepo escrita

    Considerando a lio de Saussure (2003, p. 117ss.) segundo a qual uma lngua, sendo um sistema de valores, s pode existir na coletividade, deve--se entender que o latim, como lngua materna, perdeu sua unidade lin-gustica no momento em que a civilizao romana deixou de ter represen-tantes com suas necessidades de comunicar e expressar seus valores, seus anseios, sua Cultura.

    Dessa perspectiva, qualquer realizao discursiva em lngua latina que no seja a de um falante natural no ser latim, uma vez que no se pode ter o domnio de uma lngua natural, somente estando de posse do conhe-cimento das regras gramaticais fornecidas arti3 cialmente por manuais es-colares. Apenas os indivduos contemporneos quela coletividade, e que por isso puderam compartilhar as mesmas experincias, eram dotados da capacidade ilimitada de criar e compreender enunciados.

    Se lngua e sociedade no se concebem uma sem a outra (BENVE-NISTE, 1975, p. 31), o fato de no haver mais falantes naturais de latim atualmente impe, como nico testemunho da fala viva desse povo, os re-gistros escritos que chegaram at os dias atuais.

    Mas a razo de no se poder mais falar o latim dos romanos no impe-de que se possa assimilar o sistema formal dessa lngua. Se o uso sempre a manifestao de um esquema (HJELMSLEV, 1991, p. 81ss), cada um dos textos legtimos do latim um registro de escolhas particulares dentre as possibilidades daquele sistema lingustico. Daquela perspectiva que prev que para a fala ser inteligvel e produzir todos os seus efeitos pressuposta a existncia da lngua (SAUSSURE, 2003, p. 27), todo e qualquer texto lati-no, desde que escrito por um falante natural, uma prova material nica remanescente , da existncia dessa lngua que foi, para aquele povo anti-go, sua lngua materna.

    por essas razes que o estudo do latim deve estar voltado essencial-mente para a recepo escrita2. Mas a3 nal, o que necessrio para propor-cionar a leitura efetiva de um texto antigo?

    Sabe-se que, malgrado as di3 culdades impostas pelas prticas tradicio-nais de ensino, que enfatizam a descrio da substncia em detrimento

    2 Diferentemente do estudo das lnguas modernas em que se trabalham as duas modalidades, oral e escrita, em suas formas receptivas e produtivas; ou seja, aprende-se a falar, a ouvir, a ler e a escrever no idioma.

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    daquilo que sistmico3, o intuito de proporcionar o contato com o texto original alcanado pelos mtodos tradicionais.

    Mas o fato que, ao tomar como base a anlise da substncia e no da forma, o ensino acaba por distorcer a imagem da lngua latina, fazendo com que ela seja vista no como uma lngua materna, que serviu expres-so e comunicao de uma cultura particular, e sim como um complexo conjunto de regras de um cdigo de eruditos.

    nesse sentido que se prope uma reviso das prticas tradicionais de ensino. Qual o real proveito que pode ser tirado da leitura de um texto latino, mesmo que original, depois de se passar por todos os obstculos impostos por um ensino feito nesses moldes tradicionais? A viso do latim como um cdigo, a ser memorizado a todo custo, no pode levar seno ideia de que a leitura de seus textos no passar de uma mera decodi3 cao da palavra escrita. E essa prtica deixa de ser entendida como a de aquisi-o de conhecimento, uma vez que

    A memorizao mecnica da descrio do objeto no se cons-titui em conhecimento do objeto. Por isso que a leitura de um texto, tomado como pura descrio de um objeto e feita no sentido de memoriz-la, nem real leitura nem dela, portanto, resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala. (FREI-RE, 1987, p. 18).

    Assim, sem negar o papel cumprido pela tradio de ensino do latim, qual seja, o de propiciar o contato com o texto original, vale a ressalva de que para ler, de fato, um texto numa lngua, qualquer lngua, no basta co-nhecer as suas regras gramaticais, visto que a compreenso crtica do ato de ler no se esgota na mera decodi3 cao da escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligncia do mundo (FREIRE, 1987, p. 11).

    A compreenso do texto em uma dimenso mais aprofundada depende de outros fatores, que devem necessariamente fazer parte das preocupaes do ensino, sobretudo o de uma lngua antiga como o latim. Entende-se que

    A leitura um ato de linguagem, assim como a relao do ho-mem com o mundo tambm o . As relaes humanas que se estabelecem no seio de uma sociedade so sempre regidas pelo

    3 Levando, por exemplo, a pensar que as tais declinaes e conjugaes sejam prprias da natureza da lngua (LIMA, 1995, p.67).

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    mecanismo da produo dos sentidos e, por esse motivo, me-diatizadas pela linguagem. (CORTINA, 2004, p. 153)

    Nesse sentido, ler um processo cognitivo. Quando se l um texto, apre-endem-se determinadas signi3 caes; por essa razo se diz que a leitura

    inicialmente e essencialmente uma semiose, uma atividade primordial cujo resultado correlacionar um contedo a uma expresso dada e transformar uma cadeia de expresso em uma sintagmtica de signos. (GREIMAS & COURTS, 2008, p. 281, s.v. Leitura).

    Do ponto de vista lingustico, um texto um ato de fala, uma manifes-tao da lngua natural, uma escolha individual e atualizada do sistema e, portanto, dotada de uma materialidade positiva. J do ponto de vista social e prtico, um texto um objeto de signi3 cao. possvel reconhecer nele signi3 caes que vo alm daquelas que a anlise lingustica permite com-preender (LONGO, 2011, p. 35ss), pois

    s coeres inscritas no texto, acrescentam-se as do meio sociocul-tural circundante: a competncia textual do leitor encontra-se ins-crita e condicionada pela episteme que recobre um estado smio--cultural dado. (GREIMAS & COURTS, 2008, p. 282, s.v. Leitura).

    Assim, para que se possa proceder leitura efetiva de textos latinos,

    ser preciso tom-los sob a perspectiva de que o latim foi uma lngua ma-terna e que, portanto, serviu de expresso para uma Cultura.

    Nveis de abordagem do texto: balizas para o ensino

    Em um artigo intitulado Letras Clssicas no 2 grau: competncias tex-tual e intertextual, Fiorin (1991) apresenta, a partir de uma discusso sobre a legitimidade dos estudos de latim e grego, uma proposta de abordagem dessas lnguas antigas no ensino mdio. Nessa proposta, que sugere sejam levados sala de aula textos traduzidos de autores clssicos, o autor aponta, diante do fato de que o aprendizado de Letras Clssicas est voltado essen-cialmente recepo de textos escritos, trs competncias necessrias para a compreenso e3 caz desses registros textuais: a competncia lingustica, a competncia textual e a competncia intertextual (1991, p. 517).

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    Segundo o autor, a competncia lingustica est relacionada ao conheci-mento da gramtica da lngua, necessrio a um primeiro contato com o texto:

    No pode ler um texto no original quem desconhece os sons distintivos de uma lngua, sua morfologia e a sintaxe do per-odo. Alm disso, preciso que haja um conhecimento lexical mnimo, sem o que no se podem aprender os contedos vei-culados pelo texto. Os contedos gramaticais, expressos pelas categorias gramaticais e pelas matrizes sintticas, e os contedos lexicais devem ser do domnio do leitor para que ele possa fazer uma leitura de primeiro nvel [...]. (1991, p. 517).

    Entretanto, os conhecimentos dessa natureza no garantem propria-mente uma leitura do texto, pois este no simplesmente uma grande frase ou uma soma de frases. So necessrios os conhecimentos que garantam uma competncia textual, aquela que, segundo o autor, permite reconhecer os mecanismos que forjam o sentido do texto, como um todo estruturado.

    Mas esses dados, por sua vez, tambm no so su3 cientes para garan-tir o entendimento do texto de forma integral. Falta ainda a competncia intertextual, aquela que, a partir do conhecimento dos dados histricos, dos sistemas 3 los3 cos, da cosmoviso de um povo, da cultura (FIORIN, 1991, p. 518), permite perceber o dilogo entre os textos:

    Se verdade que a linguagem no se reduz ideologia (sistema de ideias e representaes produzidas numa dada poca por uma determinada formao social), porque ela tem um nvel interno de estruturao, tambm verdade que um texto assimila as an-gstias, os anseios, as expectativas, as ideias, a viso de mundo, en3 m, a cultura de uma poca. Um texto dialoga com outros, seja reproduzindo-os, seja polemizando com eles. Um texto um lu-gar de contratos e con) itos. (FIORIN, 1991, p. 518).

    Para que o aprendizado do latim cumpra com o seu 3 m e satisfaa todas as condies necessrias realizao da leitura de textos antigos, preciso que o ensino siga um percurso que contemple os conhecimentos envolvidos nessas trs competncias, imprescindveis leitura de um texto.

    Como os conhecimentos que permitem a leitura de um texto latino fazem parte de uma competncia anterior da prpria leitura (PRADO, 1992, p. 34), entende-se que os conhecimentos da lngua enquanto estrutura o estudo das oposies bsicas do sistema oracional latino devam ser contemplados no

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    trabalho com a competncia lingustica. Em Longo (2011), demonstra-se de forma sistematizada como o texto legtimo pode ser tomado como ponto de partida para a descrio desse sistema, j que no possvel ensinar latim em latim, isto , no se podem reproduzir situaes cotidianas ou expressar relatos de experincias em aulas de lngua latina, a no ser anacronicamente.

    Uma vez apreendidas as estruturas frasais e, com elas, as oposies bsicas da lngua latina, passa-se abordagem do texto e, a partir dele, ao tra-balho com aquelas trs competncias.

    O trabalho com o texto: proposta de sistematizao

    Numa tentativa de encaminhar os principais fundamentos aqui expos-tos, e ao mesmo tempo de introduzir os dados de Cultura Clssica a partir de ocorrncias originais de textos latinos, apresenta-se a seguir uma su-gesto de material que poderia ser levado sala de aula, com exerccios de compreenso da frase latina sem desloc-la de seu contexto-ocorrncia. O contedo proposto como material apresentado em quadros (3 guras 1 a 5) 4, acompanhados de descries e comentrios. Como se trata de um modelo, as propostas de exerccios servem apenas como exemplo e no se pretenderam exaustivas, o que para um encaminhamento prtico pode e deve ser reconsiderado.

    Para a apresentao dessa proposta foi escolhido o famoso excerto de Virglio, conhecido como Hino Primavera, extrado do Livro II das Ge-rgicas (VIRGILE, 1966). Do ponto de vista metodolgico, a escolha do texto pode recair sobre qualquer texto ou autor, sendo a autenticidade o nico fator imprescindvel, ou seja, que o texto tenha sido escrito por um falante legtimo de latim.

    O modelo contm cinco partes: I) apresentao (3 g. 1); II) contextu-alizao (3 g. 2); III) traduo (3 g. 3); IV) gramatica e lxico (3 g. 4); V) interpretao (3 g. 5).

    Apresentao

    Um breve comentrio introduz o material com o objetivo de fornecer algumas informaes bsicas sobre o excerto. O intuito no outro seno estabelecer um ponto de partida para o trabalho.

    4 Os quadros apresentam partes de um material didtico em elaborao. As fontes das ilustraes que compem o projeto gr3 co so indicadas nas referncias bibliogr3 cas do original.

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    Fig. 1

    Contextualizao

    Uma pesquisa bibliogr3 ca sobre pontos considerados relevantes per-mite formar a conscincia de que os dados extratextuais contribuem para a compreenso do texto. Nesta proposta, sugere-se uma rpida investigao sobre o autor, a obra e o tema central abordado no excerto. A depender de fatores como carga-horria e objetivos pretendidos, essas informaes podem ser fornecidas pelo professor na forma de comentrio, eliminando--se esta etapa.

    Fig. 2

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    Traduo

    Dada a distncia temporal e as diferenas culturais que medeiam a produ-o de um texto clssico e a atualidade, a proposta que aqui se faz a de que o texto a ser trabalhado seja apresentado parcialmente traduzido. Essa tradu-o5, que pode ser realizada pelo professor, tem dupla 3 nalidade: 1) fornecer, parcialmente, o contexto trabalhado, facilitando, entre outras coisas, o traba-lho de seleo lexical dos trechos em latim, a ser realizado a partir da con-sulta ao dicionrio; 2) selecionar as estruturas lingusticas do latim que sero trabalhadas. O excerto original aqui apresentado contm estruturas simples e complexas. Optou-se por deixar em latim apenas as simples, de modo que o material possa ser aplicado em um nvel mais elementar de aprendizagem.

    A apresentao de uma traduo parcial permite, portanto, controlar os tpi-cos gramaticais que sero trabalhados ao longo do curso. A escolha do excerto e dos trechos a serem traduzidos determinada pelos objetivos pretendidos.

    A principal vantagem deste mtodo a de permitir o trabalho com o texto em sua verso original, sem a necessidade de ferir a sua integridade 3 lolgica com aquelas adaptaes e facilitaes muito comuns nos manuais de lngua latina.

    Fig. 3

    5 O que se est chamando aqui de traduo , mais precisamente, uma traduo de referncia, i.e., o resultado de uma prtica metalingustica em que se busca transpor os componentes lxico e morfossinttico do latim para o portugus a 3 m de ajudar o leitor a ter uma primeira compreenso do texto. Ela no , portanto, um equivalente formal do texto potico, uma traduo propriamente dita. Para os propsitos deste mtodo, quanto mais a traduo puder preservar do original, mais ela cumpre com as suas 3 nalidades. A presente traduo de responsabilidade da autora.

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    Gramtica e Lxico

    Aps o exerccio de traduo, importante que o aluno volte ao tex-to de modo a con3 rmar se as estruturas lingusticas foram efetivamente compreendidas. Perguntas que levem a pensar nas escolhas lexicais, por exemplo, permitem criar a conscincia de que os correspondentes em portugus no podem ser aleatrios. Nessa etapa, podem ser trabalhadas as estruturas complexas (hipotaxe) e explorados os recursos responsveis pela coeso textual, como a anfora.

    Fig. 4

    Interpretao

    O exerccio de transposio do latim ao portugus, que por falta de termo mais preciso est-se chamando traduo, tem como 3 nalidade levar compreenso do texto em um primeiro nvel (FIORIN, 1991, p. 517). Essa transposio de contedos se faz antes com vistas compreenso das estruturas lingusticas e textuais que ao estabelecimento de um equivalente em expressividade ao original latino.

    Da a importncia de o mtodo prever uma etapa de interpretao desses contedos. interessante aqui privilegiar o enfoque do texto em latim que, nesse momento, j foi compreendido. Nesta etapa, buscam-se esclarecer tambm as referncias culturais presentes no excerto.

    Fig. 5

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    Consideraes & nais

    A viso aclarada pelos ensinamentos lingusticos permite reconhecer que muitos so os problemas impostos ao ensino do latim. Mas, em grande parte, essas di3 culdades se devem no natureza dessa lngua antiga, e sim ma-neira como ela foi tratada ao longo dos sculos pela escola. O ensino ini-cial feito em moldes lingusticos permite que se tenha a conscincia de que latim lngua materna, embora no seja a de nenhum falante da atualidade.

    Todo esforo em sistematizar um mtodo que encaminhe essas ques-tes se faz com o intuito de propiciar ao aluno o acesso a esses textos leg-timos que compem a literatura latina. Por tratar-se de trabalho desenvol-vido nos quadros de uma formao em Letras, o enfoque luz da teoria da linguagem fundamental para que se forme nesse aluno a capacidade de re) etir sobre a linguagem verbal, sua principal especialidade. E assim habilit-lo leitura efetiva desses textos antigos.

    BIBLIOGRAFIA

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    Recebido em: 10/12/2013. Aceito em: 22/03/2014.

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    Giovanna Longo