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ISSN 0034.8007 – RDA – Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 259, p. 89-121, jan./abr. 2012 O direito constitucional à educação e a exceção do contrato não cumprido nas relações educacionais (comentários à margem dos arts. 5 o e 6 o da Lei n o 9.870/1999)* The constitutional right to education and the exceptio non adimpleti contratus applied to educational relations (comments on articles 5th and 6th of Federal Act n o 9.870/1999) Amauri Feres Saad** RESUMO O objetivo do presente estudo é investigar os limites da aplicação da ex- ceptio non adimpleti contractus nas relações educacionais. Para tanto, ado- tam-se as premissas contidas na Constituição Federal, segundo as quais os serviços educacionais constituem serviço público e sua prestação por entes * Artigo recebido em março de 2011 e aprovado em maio de 2011. ** Mestre e doutorando em direito administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em São Paulo.

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Artigo "O direito constitucional à edução e a exceção do contrato não cumprido nas relações educacionais (comentários à margem dos arts. 5º e 6º da Lei nº 9.870/1999)", publicado na Revista de Direito Administrativo, nº 259, jan./abr. 2012, p. 89-121.

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ISSN 0034.8007 – rda – revista de direito administrativo, rio de Janeiro, v. 259, p. 89-121, jan./abr. 2012

o direito constitucional à educação e a exceção do contrato não cumprido nas relações educacionais (comentários à margem dos arts. 5o e 6o da lei no 9.870/1999)*the constitutional right to education and the exceptio non adimpleti contratus applied to educational relations (comments on articles 5th and 6th of Federal act no 9.870/1999)

Amauri Feres Saad**

Resumo

O objetivo do presente estudo é investigar os limites da aplicação da ex-ceptio non adimpleti contractus nas relações educacionais. Para tanto, ado-tam-se as premissas contidas na Constituição Federal, segundo as quais os serviços educacionais constituem serviço público e sua prestação por entes

* Artigo recebido em março de 2011 e aprovado em maio de 2011.** Mestre e doutorando em direito administrativo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Advogado em São Paulo.

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privados pressupõe um regime de livre-iniciativa mitigado pelo interesse público.

PalavRas-chave

Educação — exceptio non adimpleti contractus — matrícula — direito subje-tivo — inadimplência

abstRact

This study aims to investigate the limits of the application of the exceptio non adimpleti contractus in the educational relations. For such, the premi-ses contained in the Federal Constitution are adopted, according to which the educational services constitute public service and its installment for private entities estimates a regimen of free initiative mitigated by public interest.

Key-woRds

Education — exceptio non adimpleti contractus — school registration — sub-jective right — insolvency

1. Introdução

O presente estudo tem por objetivo investigar os limites constitucionais da liberdade das instituições de ensino para a recusa de matrícula de alunos inadimplentes. A análise ora empreendida não nega a constitucionalidade de tal recusa — haja vista que, na iniciativa privada, ninguém pode ser compeli-do a exercer qualquer atividade sem a correspondente remuneração —, mas centra-se justamente nos seus limites. Afinal, o universo das relações educa-cionais não se limita à linearidade de um contrato não adimplido que gera a recusa à matrícula do aluno para um determinado curso, situação que se amolda à literalidade das disposições legais pertinentes. A questão de direito que ora se coloca consiste em se verificar a solução constitucional para situa-ções anômalas: quid juris se um contrato de prestação de serviços educacionais for descontinuado pela instituição de ensino em decorrência de débitos alheios a este contrato? Tal recusa é permitida pela Constituição? Do mesmo modo, deve-se investigar se o direito sufraga o comportamento errático de institui-

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ção de ensino que, após admitir estudante em curso diverso daquele em que ele possui débito, decide invocar a exceptio non adimpleti contractus, impedindo sua continuação no novo curso, como modo de coação para o pagamento de débito anterior, absolutamente diverso da relação jurídica de que ora se trata. A resposta a ser dada a tais questões deve levar em conta, inevitavelmente, o texto da Constituição Federal e o contexto principiológico que dela se irradia, conforme se passa a demonstrar.

2. o modelo constitucional dos serviços de educação prestados por pessoas privadas

A Constituição Federal faz referência à educação em mais de uma centena de dispositivos, sendo este certamente um dos temas mais prestigiados pelo constituinte de 1988. Selecionando os dispositivos mais relevantes, temos que, logo no art. 6o, a educação é arrolada como um dos direitos sociais, cabendo à União, nos termos do art. 22, inciso XXIV, legislar privativamente sobre as “diretrizes e bases da educação nacional” e sendo competência comum dos entes federativos “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (art. 23, inc. V) e dos municípios “manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental” (art. 24, inc. VI).

Além da distribuição de competências amplas entre os entes federativos, de se ressaltar a consagração de capítulo específico para a educação, compre-endendo os arts. 205 a 214, os quais estabelecem:

(a) a importância da educação para o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, consignando ser ela “direito de todos e dever do Estado e da família” e “promovida e incentivada com a colaboração da sociedade” (art. 205);

(b) o ensino será ministrado com base nos princípios da (i) “igualdade de con-dições para o acesso e permanência na escola”; (ii) “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber”; (iii) “plu-ralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de institui-ções públicas e privadas de ensino”; (iv) “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”; (v) valorização dos profissionais da educação escolar; (vi) “gestão democrática do ensino público, na forma da lei”; (vii) “garantia de padrão de qualidade”; (viii) “piso salarial profissional nacio-

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nal para os profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei federal” (art. 206);

(c) autonomia universitária (didático-científica, administrativa e de gestão fi-nanceira e patrimonial) (art. 207);

(d) garantias mínimas do ensino gratuito na rede pública (art. 208), determinan-do o “acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um” (inc. V) e elevando o acesso ao ensino obrigatório e gratuito à categoria de direito público subjetivo (§ 1o);

(e) o estabelecimento de conteúdos mínimos para o ensino fundamental “de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores cultu-rais e artísticos, nacionais e regionais” (art. 210), sendo facultativo o ensino religioso e garantida a identidade cultural dos grupos indígenas;

(f) obrigação de aplicação mínima de recursos por parte de União, estados e municípios na manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 212) e a ne-cessidade de que tais entes organizem seus sistemas de ensino em regime de colaboração (art. 211);

(g) a possibilidade de inversão de recursos públicos para estabelecimentos de ensino sem finalidade lucrativa e que, concomitantemente, apliquem seus excedentes financeiros em educação e assegurem a reversão de seus bens a outra instituição sem fins lucrativos ou ao Estado, em caso de sua extinção, podendo tais recursos ser aplicados na concessão de bolsas de estudos a alunos carentes (art. 213); e

(h) a obrigatoriedade da definição, por lei, do plano nacional de educação decenal,

com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regi-me de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades por meio de ações integradas dos poderes públicos das diferentes esferas federati-vas que conduzam a: I — erradicação do analfabetismo; II — universa-lização do atendimento escolar; III — melhoria da qualidade do ensino; IV — formação para o trabalho; V — promoção humanística, científica e tecnológica do País; VI — estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto (art. 214).

O ensino prestado por instituições privadas é facultado nos termos do art. 209 da Constituição Federal: “Art. 209. O ensino é livre à iniciativa privada, aten-

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didas as seguintes condições: I — cumprimento das normas gerais da educação nacional; II — autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público”.

A prestação de serviços de educação por pessoas privadas não deve ser confundida com a prestação dos serviços em regime privado. Esta afirmação contém consequências importantes. A maior delas talvez seja a de que se descarta de antemão a compreensão que defende a aplicação de um regime de mercado às ativi-dades de ensino, quando estas sejam executadas por pessoa de direito privado. Acei-tar uma coisa pela outra é erro tão grosseiro quanto, permita-se a expressão, confundir um rojão com um cometa, e só demonstra a pouca familiaridade de seu defensor com relação ao texto constitucional. Concorda-se inteiramente, neste aspecto, com Eros Roberto Grau que, retificando sua posição sobre o assunto, leciona:

Embora, como se viu, resulte sempre dificultosa a identificação desta ou daquela parcela de atividade econômica em sentido amplo como serviço públi-co ou como atividade econômica em sentido estrito, hipóteses há nas quais o próprio texto constitucional eleva algumas delas à primeira categoria.Cumpre distinguir, desde logo, os serviços públicos privativos dos servi-ços públicos não privativos. Entre os primeiros, aqueles cuja prestação é privativa do Estado (União, Estado-membro ou Município), ainda que admitida a possibilidade de entidades do setor privado desenvolvê-los, apenas e tão somente, contudo, em regime de concessão ou permissão (art. 175 da Constituição de 1988). Entre os restantes — serviços públicos não privativos — aqueles que em edições anteriores deste livro equivo-cadamente afirmei terem por substrato atividade econômica que tanto pode ser desenvolvida pelo Estado, enquanto serviço público, quanto pelo setor privado, caracterizando-se tal desenvolvimento, então, como modalidade de atividade econômica em sentido estrito. Exemplos típicos de serviços públicos não privativos manifestar-se-iam nas hipóteses de prestação dos serviços de educação e saúde.O raciocínio assim desenrolado era evidentemente errôneo, visto ter partido de premissa equivocada, qual seja, a de que a mesma ativida-de caracteriza ou deixa de caracterizar serviço público conforme esteja sendo empreendida pelo Estado ou pelo setor privado. Isso, como se vê, é inteiramente insustentável.1

1 GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 153.

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E prossegue o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titu-lar aposentado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo:

Assim, o que torna os chamados serviços públicos não privativos distintos dos privativos é a circunstância de os primeiros poderem ser prestados pelo setor privado independentemente de concessão, permissão ou au-torização, ao passo que os últimos apenas poderão ser prestados pelo setor privado sob um desses regimes.

Há, portanto, serviço público mesmo nas hipóteses de prestação dos serviços de educação e saúde pelo setor privado. Por isso mesmo que os arts. 209 e 199 declaram expressamente serem livres à iniciativa privada a assistência à saúde e o ensino — não se tratassem, saúde e ensino, de serviço público razão não haveria para as afirmações dos preceitos constitucionais.

Não importa quem preste tais serviços — União, Estados-membros, Municípios ou particulares; em qualquer hipótese haverá serviço pú-blico.2

Sendo verdade que a atividade de ensino, mesmo quando prestada por pessoas privadas, mantém seu caráter de serviço público, isto é, de atividade sobre a qual recai necessariamente e com maior intensidade o interesse pú-blico, não há como não se concluir senão pela limitação do princípio da livre-iniciativa consagrado no art. 170 da Constituição Federal, que não terá, pois, a mesma amplitude que se verifica nas atividades econômicas em sentido estrito (para usar a terminologia de Grau).

Deve-se relembrar, a propósito, pertinente trecho de voto proferido pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal Moreira Alves no julgamento da Adin no 319-4/DF, que tratava da intervenção estatal na fixação dos valores das mensalidades escolares (este e outros julgados sobre o assunto serão abor-dados nos tópicos seguintes), nos termos do qual:

Ora, sendo a justiça social a justiça distributiva — e por isso mesmo é que se chega à finalidade da ordem econômica (assegurar a todos existência digna) por meio dos ditames dela —, e havendo a possibili-dade de incompatibilidade entre alguns dos princípios constantes dos

2 Ibid., p. 153-154.

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incisos desse artigo 170, se tomados em sentido absoluto, mister se faz, evidentemente, que se lhes dê sentido relativo para que se possibilite a sua conciliação a fim de que, em conformidade com os ditames da justiça distributiva, se assegure a todos — e, portanto, aos elementos de produção e distribuição de bens e serviços e aos elementos de consumo deles — existência digna.

E prossegue Moreira Alves, amparado na lição de José Afonso da Silva:

E conclui [José Afonso] com a observação de que o Poder Público, nos termos da lei, pode legitimamente regular a “liberdade de indústria e comércio, em alguns casos impondo a necessidade de autorização ou de permissão para determinado tipo de atividade econômica, quer re-gulando a liberdade de contratar, especialmente no que tange às re-lações de trabalho, mas também quanto à fixação de preços, além da intervenção direta na produção e comercialização de certos bens”.

Essas conclusões se justificam ainda mais intensamente quando a atividade econômica diz respeito à educação, direito de todos e dever do Estado, disci-plinada, em si mesma, no título da Ordem Social, ordem essa que tem como objetivo, além da justiça social, o bem-estar social, nos termos expressos do art. 193. (grifos aditados)

Tudo isto para demonstrar que o bem jurídico educação, por sua nature-za intrínseca relacionada à formação do indivíduo para a vida comunitária e para o amplo desenvolvimento de suas capacidades subjetivas, conta com especial atenção da parte do constituinte de 1988. Não se submete às regras de mercado como outro bem qualquer: não é livre, neste sentido, à iniciativa privada. Se não chega a res extra commercium, porque pode ser objeto de explo-ração com finalidade lucrativa, é certamente res publicae. Quer seja pública ou privada, a instituição de ensino é obrigada a garantir e observar “a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola”, a liberdade do ensino e do aprendizado e o compromisso com padrões mínimos de qualidade (art. 206) e com a observância das normas gerais de educação, submetendo-se à autorização, fiscalização e regulação por parte do poder público (art. 209). Seu desempenho pela iniciativa privada — para nos utilizarmos de uma me-táfora da teoria musical — é melodia a ser executada na tonalidade do interesse

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público. É esta a chave para a compreensão do modelo instituído pela Cons-tituição Federal para os serviços de educação quando prestados por agentes privados.

3. a exceptio non adimpleti contractus nas relações educacionais

3.1 Preliminar: os julgamentos do STF

O Supremo Tribunal Federal produziu interessantes precedentes acerca da disciplina das instituições privadas de ensino ao longo da década de 1990. A combinação de um cenário inflacionário, estagnação econômica, planos econô-micos malogrados e descontrole na edição de medidas provisórias por parte do presidente da república propiciou o ajuizamento de uma série de ações diretas de inconstitucionalidade, que questionavam a constitucionalidade de interven-ções do poder público na fixação de preços das mensalidades das instituições de ensino privadas, bem como na disciplina de aspectos contratuais das rela-ções de tais instituições com os alunos/usuários dos serviços prestados.

A primeira delas, a ADI no 319-4/DF questionava a constitucionalidade da Lei no 8.039, de 30 de maio de 1990, resultante da conversão em lei da Medida Provisória no 183/1990, que dispunha sobre os critérios de reajuste de mensa-lidades escolares. O tribunal, de modo pacífico (vencido, porém, o ministro Marco Aurélio), admitiu a constitucionalidade da ingerência estatal sobre os preços das mensalidades escolares. Assim consignou na ementa do acórdão que consubstanciou o julgado:

Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre-ini-ciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consu-midor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames de justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econô-mico que visa ao aumento arbitrário dos lucros.

Isto posto, decidiu o tribunal suspender a eficácia de dispositivo que fa-zia referência a período pretérito, por considerar que isto significaria a ofen-sa a atos jurídicos perfeitos e a direitos adquiridos, conferindo interpretação

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conforme a Constituição a outros dispositivos para afastar sua vigência retroa-tiva. Neste caso, não se tratava de uma consideração sobre o mérito das inter-venções do poder público — que foram reconhecidas como legítimas —, mas sim sobre a questão formal da impossibilidade de sua retroação para atingir situações constituídas sob legislação anterior.

A ADI no 1235-3/DF foi ajuizada para questionar a constitucionalidade da Medida Provisória no 932/1995, que dispunha sobre a conversão das men-salidades escolares de URV para real. Os dispositivos impugnados diziam respeito à alteração da disciplina dos eventos autorizadores dos reajustes de mensalidades (a MP passou a admitir a data base de reajuste de salários dos professores), alterando a regra anterior que vedava reajustes em periodici-dade inferior a um ano e à introdução de uma permissão à aplicação de san-ções pedagógicas e administrativas a alunos em situação de inadimplência (no regime anterior a vedação era absoluta e por meio da medida provisória autorizava-se a adoção de tais penalidades quando a inadimplência superasse 60 dias). Ambos os dispositivos tiveram sua eficácia suspensa cautelarmente pelo tribunal, já reproduzindo decisões idênticas sobre dispositivos similares contidos em edições anteriores de medidas provisórias sobre o mesmo assun-to (ADIs nos 1.117 e 1.176).

A ADI no 1992-9/DF de certa forma encerrou a fase dos intensos questio-namentos às medidas provisórias que dispunham sobre mensalidades esco-lares e sobre a vedação à aplicação de sanções pedagógicas e administrativas por parte das instituições de ensino privadas. Interessante colacionar trecho das informações prestadas pelo Ministério da Educação, que foram integral-mente acatadas pela Corte Suprema, verbis:

Assim é que o art. 6o que proíbe sanções por motivo de inadimplemen-to: “são proibidas a suspensão de provas escolares, e retenção de do-cumentos escolares, inclusive os de transferências, ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas”, objeto específico da ação em apreço, vem sendo mantido, na sua íntegra, nas sucessivas medidas provisórias, uma vez que o Supremo Tribunal Federal, ao apreciar a cautelar requerida nas ADIs 1.117, 1.176 e 1.370, indeferiu a medida com relação a idêntica disposição.

A crítica da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino ao Poder Executivo de “que o país atravessa uma fase de ditadura branca, com o exagerado fortalecimento do Executivo e o amesquinhamento do

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Legislativo, através de sucessivas e repetidas medidas provisórias e a nítida tentativa de subordinar, desmoralizar e amedrontar o Judiciário” há que ser repelida de forma enérgica, uma porque a Suprema Corte já indeferiu a cautelar pleiteada em relação ao art. 6o e outros dispositivos da Medida Provisória em apreço, o que, por enquanto, está implicita-mente reconhecida a sua constitucionalidade, e outra porque, tendo a Requerente ajuizado sucessivas e repetidas Ações Diretas de Inconsti-tucionalidade, tendo o mesmo objeto e fundamento de matéria já apre-ciada pelo Supremo Tribunal Federal, padece de autoridade para fazer acusação de tal natureza.

A educação é um direito social assegurado pelo art. 6o da Constituição Federal, peculiaridade essa que por si só demonstra a constitucionali-dade da medida adotada pelo Poder Executivo.

E mais, a maioria da clientela das instituições de ensino é composta de crianças e adolescentes, os quais hão de ser colocados a salvo de toda forma de discriminação e opressão, sendo esse o dever da família, da sociedade e do Estado imposto pelo art. 227 da Carta Magna.

Idêntico dever estabelece a Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), em seu art. 18, verbis:

“Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adoles-cente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”.

É evidente que a suspensão de provas escolares, a retenção de docu-mentos escolares e a aplicação de penalidades pedagógicas, por motivo de inadimplência, a crianças e adolescentes, constitui em tratamento vexatório e constrangedor, o que é vedado pelo art. 227 da Carta Magna e art. 18 da Lei no 8.069.

A pretensão da requerente de que as instituições de ensino particular possam aplicar tais penalidades nada mais é do que uma forma de coa-ção para a cobrança de dívidas, submetendo o devedor a uma situação constrangedora, o que, também, é proibido pelo art. 42, da Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, verbis:

“Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangi-mento ou ameaça”.

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A síntese do posicionamento do STF no que tange aos limites à liberdade das instituições de ensino privadas consiste (i) na compreensão de que o Esta-do poderá, mediante lei, disciplinar inclusive no tocante ao cerne da liberdade de iniciativa, a saber, os preços e regras de reajustes e demais disposições contratuais;3 e (ii) sendo o ensino uma atividade ligada diretamente à realiza-ção da dignidade humana e da justiça social, não pode seu exercício resultar em desvirtuação de tais valores, vedando-se por isto, no caso específico de inadimplência, a aplicação de penalidades pedagógicas ou administrativas com vistas a coagir o aluno inadimplente ao pagamento desejado pela insti-tuição de ensino.

De se ressaltar que, em tais ações diretas de inconstitucionalidade, muitas vezes a argumentação do autor da ação centrava-se num suposto privilégio que se instituiria, em favor do aluno inadimplente, com a vedação à aplicação de penalidades pedagógicas ou administrativas. O argumento segundo o qual os “bons” (adimplentes) “seriam prejudicados pelos maus” (inadimplentes) era uma tentativa de justificar a imposição de tais penalidades, como se os débitos eventualmente existentes somente pudessem ser cobrados por este meio. Havia, pode-se dizer, nesta linha de argumentação, o defeito funda-mental de não diferenciar entre a exceptio non adimpleti contractus razoavel-mente aplicada e as formas de coerção ilegítimas. Faça-se justiça, tal confusão somente pôde existir durante tanto tempo (praticamente uma década) porque a legislação — sob a precária forma de medidas provisórias — era omissa ou de técnica sofrível (ou ambos). As instituições de ensino utilizavam-se, pois, deste argumento ad terrorem para defender seus interesses, o que é legítimo. Mas, naturalmente que as consequências que daí advindas não poderiam, em face de nosso sistema constitucional, prevalecer, tendo sido acertado, de modo geral, o posicionamento do STF quanto ao assunto, notadamente no que tange à vedação às penalidades pedagógicas.

3.2 A exceptio, propriamente

As obrigações de pagamento nas relações de ensino superior obedecem atualmente ao que dispõe a Lei no 9.870, de 23 de novembro de 1999, que foi

3 Veja-se a Súmula 643 do STF (DJ 9-10-2003, p. 2): “O Ministério Público tem legitimidade para promover ação civil pública cujo fundamento seja a ilegalidade de reajuste de mensalidades es-colares”.

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resultado da conversão da Medida Provisória no 1.890-67, de 22 de outubro de 1998.4 Para a devida colocação da matéria objeto do presente estudo, importa destacar a redação dos arts. 5o e 6o, caput, em seguida transcritos:

Art. 5o Os alunos já matriculados, salvo quando inadimplentes, terão direito à renovação das matrículas, observado o calendário escolar da instituição, o regimento da escola ou cláusula contratual.

Art. 6o São proibidas a suspensão de provas escolares, a retenção de documentos escolares ou a aplicação de quaisquer outras penalidades pedagógicas por motivo de inadimplemento, sujeitando-se o contra-tante, no que couber, às sanções legais e administrativas compatíveis com o Código de Defesa do Consumidor, e com os arts. 177 e 1.092 do Código Civil Brasileiro, caso a inadimplência perdure por mais de noventa dias.

§ 1o O desligamento do aluno por inadimplência somente poderá ocor-rer ao final do ano letivo ou, no ensino superior, ao final do semestre letivo quando a instituição adotar o regime didático semestral.

(omissis)

(grifos aditados)

Tais dispositivos equacionam, e de modo bastante adequado, os interes-ses das instituições de ensino, que efetivamente não podem ficar obrigadas a prestar serviços sem a correspondente remuneração, com os dos respectivos alunos, que a seu turno não podem ser penalizados, por meio de sanções pe-dagógicas e outros constrangimentos, em caso de inadimplência.

Na Lei no 9.870/1999 produziu-se o que nas medidas provisórias anterio-res não era tão nítido: tratou-se de deliminar o momento do exercício da exce-ção do contrato não cumprido, considerando-o em consonância com o direito à educação dos alunos, constitucionalmente protegido. Assim, em caso de inadimplemento, a instituição de ensino pode descontinuar o curso; mas tal faculdade será exercida ao fim do semestre ou do ano letivo. O propósito evi-dente de tal regra é justamente evitar que o aluno tenha de se transferir, de um estabelecimento a outro, no meio do período letivo considerado, o que acarre-taria uma série de transtornos, mesmo no caso dos cursos com programas mí-

4 Esta medida provisória descende, em linha reta, da Medida Provisória no 550, reeditada por incríveis 66 vezes.

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nimos vigentes nacionalmente (ensino fundamental e médio), haja vista que as atividades acadêmicas variam de estabelecimento para estabelecimento, bem como os respectivos níveis de exigência e métodos de ensino. Assim, em nenhuma hipótese será a instituição de ensino privada obrigada a arcar com o custo de alunos inadimplentes: ela tem o direito de crédito reconhecido, mas não pode descontinuar a prestação — que é, lembre-se, serviço público — sem um mínimo de previsibilidade. Ponderou o legislador que o direito à educação sobrepõe-se ao de crédito da instituição de ensino neste particular, e o fez de modo acertado, pois os prejuízos pessoais ao universo de alunos seriam muito maiores e permanentes do que os eventualmente suportados momentaneamente pela instituição privada. E ainda este suposto “prejuízo” é garantido pelo recurso aos meios ordinários de cobrança, que são os únicos disponíveis à maioria das pessoas.

Assim, a intelecção do dispositivo legal acima transcrito supõe (i) que o aluno adimplente com seu curso tem direito subjetivo à renovação de matrí-culas; (ii) se houver o seu inadimplemento, no âmbito do contrato, no curso do ano ou semestre, conforme o caso, em que esteja matriculado, incide a vedação à aplicação de penalidades pedagógicas por parte da instituição de ensino; e (iii) em persistindo a inadimplência por mais de 90 dias, a instituição de ensino pode recusar-se a matricular o aluno para o ano ou semestres subse-quentes, vedadas, ainda neste caso, as penalidades pedagógicas. De se notar que, se a inadimplência for menor que 90 dias, não pode a instituição de ensi-no utilizar-se da exceptio non adimpleti contractus, sendo obrigada a promover a matrícula ou rematrícula do aluno para o período seguinte.

Os limites da exceção ao contrato não cumprido nas relações educacio-nais são claros e, mesmo, intuitivos. Tanto para fins de identificação do direito à matrícula e rematrícula do aluno, tanto para a aplicação da recusa da ins-tituição de ensino em proceder à mesma matrícula ou rematrícula do aluno, deve ser considerado o universo das relações jurídicas em sua individualidade sinalagmática.

Ou seja, a instituição de ensino somente pode recusar-se a matricular ou renovar a matrícula do aluno caso este esteja inadimplente naquele específico contrato, não havendo qualquer comunicabilidade desta situação individual-mente considerada com quaisquer outras, pretéritas ou vindouras. Decorrên-cia lógica de tal raciocínio — de correção inegável — é que o aluno adimplente com o seu curso possui direito subjetivo à renovação das matrículas, independen-temente de qualquer outra circunstância que não seja oriunda e pertinente àquele específico contrato.

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Tanto isto é verdade que o próprio art. 6o da Lei no 9.870/1999, ao abordar a hipótese de inadimplementos superiores a 90 dias, menciona expressamente a regra do exceptio non adimpleti contractus, prevista no art. 1.092 do Código Civil de 1916, que estabelece que “[n]os contratos bilaterais, nenhum dos con-traentes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro”, disposição esta que foi reproduzida integralmente no art. 476 do atual Código Civil. Tal dispositivo é inequívoco ao estabelecer que a recusa de uma parte em cumprir com seus encargos na relação contratual depende de o sinalagma ter sido, antes, quebrado pela outra parte. Ou seja: a bilateralidade a ser considerada é a do con-trato individualmente compreendido como núcleo de obrigações e direitos recíprocos e não, por óbvio, de qualquer outro que com ele nada tenha que ver.

Interessante, nesse propósito, a lição de Maria Helena Diniz, para quem

[i]sto é assim porque nesses contratos há uma dependência recíproca das prestações que, por serem simultâneas, são exigíveis no mesmo momento; p. ex.: na compra e venda à vista, o dever de pagar o preço e o de entregar a coisa estão ligados, funcionalmente, numa relação de interdependência, pois o preço será pago com a entrega do bem e esta efetuada ante o pagamento do preço estipulado; logo, cada contraen-te poderá recusar-se a cumprir a sua obrigação, opondo a exceptio non adimpleti contractus, mas se não cumpriu o dever contraído, lícito não lhe será exigir que o outro cumpra o seu.5

Orlando Gomes ensina, com propriedade, os limites da figura:

A natureza da exceptio non adimpleti contractus é controvertida. Trata-se, segundo a opinião dominante, de genuína exceptio, no sentido romano do termo, isto é, um direito que o devedor opõe ao credor, dilatando seu exercício. Em síntese, constitui um contradireito, na expressão feliz de Enneccerus.

A natureza desse direito não é pacificamente definida. Sustenta-se que é direito de retenção, acrescentando alguns que, devido às suas particula-ridades, é um direito de retenção “sui generis”. Rejeita-se, porém, essa opi-nião com bons fundamentos, argumentando-se que o direito de reten-ção é uma garantia concedida no caso de dívidas recíprocas e conexas,

5 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 3, p. 137.

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mas que supõe, necessariamente, a independência respectiva das duas obrigações, o que não ocorre nos contratos bilaterais, visto que neles a obrigação de uma parte é a causa jurídica da outra; por isso, quem invoca o direito de retenção se julga provido de uma garantia de paga-mento que o direito lhe assegura como medida de equidade, enquanto o devedor de um contrato sinalagmático que exige a execução simultâ-nea se prevalece de um dos efeitos próprios do contrato que celebrou. A exceção de contrato não cumprido não é pura e simples aplicação do direito de retenção, mas uma exceptio propriamente dita.6

Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda, sempre de modo agudo, obser-vava que a exceptio non adimpleti contractus poderia, em situações excepcionais, ser invocada por obrigações não cumpridas de diferentes contratos, mas des-de que houvesse uma união interna deles (contratos mistos) ou se tratasse de contratos combinados ou ainda se se tratasse de contrato típico com presta-ções subordinadas. Na hipótese de contratos independentes entre si, concluiu o mestre alagoano, de modo irretocável, ser inaplicável a exceptio.7-8

Com efeito, nos contratos que envolvam a prestação de serviços educa-cionais, o dever de pagar as mensalidades do aluno é causa para o dever de prestar o serviço por parte da instituição e vice-versa. Somente quando elimi-nada, ainda que temporariamente, uma dessas causas, é que se torna lícito à outra parte invocar a exceção.

Veda-se, neste passo, o raciocínio que algumas pessoas pretendem fa-zer, no sentido da possibilidade do “cruzamento” de obrigações de diversos contratos, a exclusivo talante da instituição de ensino credora, de modo a jus-tificar sua recusa em efetivar a matrícula ou rematrícula de alunos. Casos si-milares ao objeto do presente estudo já foram decididos pelo Poder Judiciário e constituem uma daquelas felizes coincidências entre a boa técnica jurídica e

6 GOMES, Orlando. Contratos. 26. ed. atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 110-111.7 Cf. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado. São Paulo: Booksell-er, 2007. t. 26, p. 5620-5621: “Se o contrato é uno, por haver união interna de contratos (contratos mistos), ou por se tratar de contratos combinados ou gêmeos, ou por haver contrato típico com prestações subordinadas de outra espécie, cabe a exceptio non adimpleti contractus ou a non rite ad-impleti contractus. Aliter, se os contratos são internamente separados (2.8 Turma do Supremo Tri-bunal Federal, 22 de outubro de 1946, R. F., 110, 396: “autônomos”)” (grifos em negrito nossos).8 Cf. VELTEN PEREIRA, Paulo Sérgio. A exceção do contrato não cumprido fundada na violação de dever lateral. Dissertação (mestrado) — Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2008. 213p. passim.

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o entendimento jurisprudencial. Em tais julgados restou pacífico o entendimento no sentido, ora esposado, de que é vedada a recusa à efetivação de matrícula de alunos em razão de débitos que não sejam relativos ao curso cuja matrícula se pleiteia.

São variados os julgados nos quais este entendimento é sufragado:

ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. INSTITUIÇÃO PRIVADA. MATRÍCULA. PROUNI. EXISTÊNCIA DE DÉBITO ANTERIOR REFE-RENTE A OUTRO CURSO. Os débitos relativos a outro curso dizem respeito a celebração de outro contrato. Não há amparo legal para a universidade impedir a realização da matrícula do impetrante uma vez que sendo os fatos distintos, cada um gera direitos e obrigações recíprocas que não se confundem. (TRF4, REOMS 200671040011842, rel. desembargadora federal MARIA LÚCIA LUZ LEIRIA, TERCEIRA TURMA, D.E. 29-8-2007) (grifou-se)

ADMINISTRATIVO. MATRÍCULA EM INSTITUIÇÃO DE ENSINO SUPERIOR. APROVAÇÃO NO CONCURSO VESTIBULAR. INADIM-PLÊNCIA EM CURSO ANTERIORMENTE FREQUENTADO. 1. Tendo a impetrante comprovado a aprovação no concurso vestibular e a con-clusão no Segundo Grau, não pode a universidade recusar sua matrí-cula ao argumento de existir débito anterior de sua responsabilidade, relativo a outro curso, o qual pode ser cobrado pela via ordinária. 2. Existe suporte legal para que as Universidades deixem de proceder à rematrícula do estudante faltoso com seus compromissos financeiros (art. 5o da Lei 9.870/99), desde que a inadimplência seja concernente a semestres anteriores, mas não para que a instituição de ensino se recu-se a admitir a matrícula de candidato aprovado em Vestibular. (TRF4, AMS 200371100002310, rel. desembargador federal LUIZ CARLOS DE CASTRO LUGON, TERCEIRA TURMA, DJ 19-5-2004 PÁGINA: 964)

REMESSA EX OFFICIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPERIOR. RECUSA DE MATRÍCULA. CANCELAMENTO POR ALE-GAÇÃO DE INADIMPLÊNCIA EM CURSO TRANCADO. IMPOSSIBI-LIDADE. APROVAÇÃO EM NOVO EXAME SELETIVO. SENTENÇA CONFIRMADA. 1. A existência de débitos relativa às mensalidades em curso trancado não constitui motivo legítimo para a recusa de ma-trícula, tendo em vista o Impetrante ter sido aprovado em novo ves-tibular. 2. Por se tratar de uma relação sinalagmática, a realização da

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matrícula não obsta a Instituição pleitear os débitos relativos às mensa-lidades do curso trancado pela via ordinária. 3. Remessa oficial despro-vida. (TRF1, REOMS — REMESSA EX OFFICIO EM MANDADO DE SEGURANÇA — 9601085947, rel. JUIZ FEDERAL WILSON ALVES DE SOUZA (CONV.), TERCEIRA TURMA SUPLEMENTAR (INATIVA), DJ DATA: 16-12-2004 PÁGINA: 87) (grifou-se)

ADMINISTRATIVO. ENSINO. ESTABELECIMENTO PARTICULAR. RENOVAÇÃO DA MATRÍCULA. INADIMPLÊNCIA. MEIOS ADE-QUADOS DE COBRANÇA. 1. É direito do aluno de estabelecimento particular de ensino superior a renovação de sua matrícula quando sua inadimplência com a Universidade se deve a curso anterior di-verso. 2. Cabe à Universidade buscar seu crédito por meios adequados de cobrança, sem que, para isso, implemente restrições pedagógicas ao aluno inadimplente. (TRF4, AMS 200371100084582, rel. DESEMBAR-GADOR FEDERAL AMAURY CHAVES DE ATHAYDE, QUARTA TURMA, DJ 19-1-2005 PÁGINA: 210) (grifou-se)

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPE-RIOR. CRÉDITO EDUCACIONAL ROTATIVO. CONVÊNIO FIRMA-DO ENTRE O ALUNO E A FUMARC. INADIMPLÊNCIA. MATRÍ-CULA. RECUSADA PELA PUC/MG. IMPOSSIBILIDADE. PESSOAS JURÍDICAS DISTINTAS. SITUAÇÃO DE FATO CONSOLIDADA. I — A negativa de renovação da matrícula de aluno inadimplente tem previsão no art. 5o, da Lei no 9.870/99. II — Na hipótese dos autos, po-rém, o débito que o impetrante possui é junto à Fundação Mariana Re-sende Costa — Fumarc, intermediadora do convênio firmado entre a Sociedade Mineira de Cultura — SMC e a PUC, pessoas jurídicas dis-tintas, não podendo, pois, a Universidade Católica de Minas Gerais utilizar-se da autorização legal supra, por caracterizar-se de imposi-ção de sanção pedagógica ao aluno, expressamente proibida pelo art. 6o da Lei no 9.870/99. III — Ademais, deve ser preservada a situação fá-tica consolidada com o deferimento da liminar postulada nos autos, em 11/04/2005, assegurando a matrícula na disciplina Monografia I, do Cur-so de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, que, pelo decurso do tempo, provavelmente fora concluída. IV — Remessa oficial desprovida. Sentença confirmada. (TRF1, REOMS — REMESSA EX OFFICIO EM MANDADO DE SEGURANÇA — 200538000247496,

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rel. JUIZ FEDERAL MOACIR FERREIRA RAMOS (CONV.), SEXTA TURMA, DJ DATA: 26-6-2006 PÁGINA: 47) (grifou-se)

ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENSINO SUPE-RIOR. TRANSFERÊNCIA DEFERIDA. CANCELAMENTO DE MA-TRÍCULA APÓS UM ANO. INADIMPLÊNCIA JUNTO À INSTITUI-ÇÃO DE ENSINO DE ORIGEM. VIOLAÇÃO AO CONTRADITÓRIO E A AMPLA DEFESA. I — Afigura-se nulo o ato de cancelamento da matrícula de estudante, sem a observância dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, insculpidos na Car-ta Magna (CF, art. 5o, incisos LIV e LV), II — Não encontra amparo legal o cancelamento do registro do aluno, em virtude de suposta ir-regularidade da sua matrícula na universidade de origem, decorren-te do descumprimento do compromisso financeiro por ele assumido, naquela instituição. III — O fato de que “mudou-se o entendimento in-terno de que a instituição de origem não poderia ser qualificada como congênere” não atinge a transferência concedida, há mais de um ano, ao aluno, que, à época, preencheu todas as formalidades exigidas pela ins-tituição de ensino, tanto assim, que foi deferida, sem qualquer restrição, pela, ora, recorrente, apesar de ciente de que o aluno era originário de instituição de ensino privada. IV — Apelação e remessa oficial despro-vidas. (TRF1, AMS — APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA — 200038000061232, DESEMBARGADOR FEDERAL SOUZA PRUDEN-TE, SEXTA TURMA, DJ DATA: 4-7-2005 PAGINA: 62) (grifou-se)

MANDADO DE SEGURANÇA. MATRÍCULA EM CURSO. INADI-PLEMENTO COM A UNIVERSIDADE. CURSO DIVERSO. IMPEDI-MENTO. IMPOSSIBILIDADE.Não há que se falar em impedimento à renovação de matrícula quan-do a inadimplência com a Universidade se deve a curso anterior diverso. (TRF4, REOAC 200971040026883, rel. DESEMBARGADOR FEDERAL HERMES SIEDLER DA CONCEIÇÃO JÚNIOR, QUARTA TURMA, D.E. 8-3-2010) (grifou-se)

Em corroboração a tais julgados, de se trazer à colação trecho de parecer exarado pelo representante do Ministério Público Federal, dr. Carlos Fernan-do dos Santos Lima, no âmbito do processo no 2005.61.00.017894-8, que trami-tou no âmbito da justiça federal do estado de São Paulo:

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Impossível seria a aplicação do princípio ‘exceptio non adimpleti con-tractus’ para contratos diversos. Ainda, é relevante evidenciar que a Instituição de Ensino aceitou contratar novamente com o impetrante, o que não lhe dá o direito de, através de autotutela, tentar satisfazer débito diverso, passível de cobrança judicial.

Em sede de apelação, o referido processo foi assim ementado pelo E. Tribunal Regional Federal da 3a Região:

ADMINISTRATIVO — ENSINO SUPERIOR — MATRÍCULA — RE-NOVAÇÃO — INADIMPLÊNCIA DE CONTRATO DIVERSO — IN-COMUNICABILIDADE DE CONTRATOS — IMPOSSIBILIDADE DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO “EXCEPTIO NON ADIMPLETI CON-TRACTUS” PARA CONTRATOS DISTINTOS.

1. A Constituição Federal permite às instituições particulares de ensino o exercício da atividade educacional, sendo ínsito que seja realizada mediante contraprestação em pecúnia. Assim, instituição e aluno fir-mam contrato de prestação de serviços educacionais mediante o qual estipulam-se direitos e obrigações recíprocos. Ao primeiro, ministrar o ensino conforme as condições estabelecidas em lei. Ao segundo, pagar pelos serviços recebidos.

2. Não há ilegalidade ou inconstitucionalidade na negativa de renova-ção de matrícula pela instituição particular de ensino superior, em face do descumprimento de cláusula contratual de pagamento de mensali-dades, ocasionando a inadimplência do aluno. Inteligência do art. 5o da Lei no 9.870/99.

3. Porém, a existência de débito relativo ao curso frequentado an-teriormente na mesma instituição de ensino superior não constitui motivo legítimo para o indeferimento da matrícula de aluno, regu-larmente aprovado em novo concurso vestibular, quando pleiteia re-novação de matrícula para o 4o semestre de relação contratual diversa sem débitos até então.

4. A instituição de ensino tem ao seu dispor as vias adequadas para a satisfação dos seus créditos em face do descumprimento de cláusula de contrato de prestação de serviços educacionais do curso que o impe-trante deixou de frequentar. (TRF3, AMS 291260, rel. juiz conv. Miguel Di Pierro, Sexta Turma, julgado em 21-2-2008) (grifou-se)

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Considerando o exposto, e diante da ênfase dos julgados ora trazidos, é inegável a conclusão: a faculdade de invocar a exceptio non adimpleti contrac-tus pelas instituições de ensino privadas somente é lícita quando o débito se relacionar ao contrato que se pretende descontinuar. Os limites de tal facul-dade decorrem, não bastante a literalidade dos dispositivos legais aplicáveis, da própria natureza do instituto, que não pode ser estendido a obrigações que não se relacionem com o contrato analisado. A negativa de matrícula, em razão de inadimplemento pretérito, que não se relaciona em absoluto com o curso presentemente realizado pelo aluno deixa de ser exceção lícita para encartar-se no campo da autotutela, prática absolutamente vedada no estado de direito, em que o sistema jurídico prevê mecanismos próprios (de regra, o processo judicial) para a cobrança de débitos.

3.3 Argumento falacioso ou “interpretam-se dispositivos restritivos de modo ampliativo”?

Um argumento recorrente daqueles que pretendem ver no art. 5o da Lei no 9.870/1999 uma autorização genérica para que as instituições de ensino pri-vadas recusem a matrícula ou rematrícula de alunos vai na linha do “onde o legislador não distinguiu, não cabe ao intérprete distinguir”. Assim, a locução “salvo quando inadimplente” do caput de tal artigo, por supostamente não conter uma referência expressa ao contrato específico onde ocorreria o inadimple-mento, seria o elemento autorizante da recusa de matrícula ou rematrícula de alunos fundada em débitos diversos. Tal orientação, além de desconsiderar a expressa referência legislativa, que deve ser entendida de modo combinado com o art. 5o, à exceptio non adimpleti contractus (art. 6o, in fine), instituto que tem contornos próprios e não autoriza o cruzamento de obrigações distintas (contratos diversos), conforme já demonstrado, viola, igualmente, o axioma hermenêutico, da máxima relevância, segundo o qual normas que veiculem exceções ou restrinjam direitos fundamentais devem ser interpretadas restri-tivamente.

Tal raciocínio apenas traz para o caso concreto da interpretação do art. 5o da Lei no 9.870/1999 o que é cediço em nossa doutrina e jurisprudência: sempre que se restringir um direito fundamental por norma jurídica, a inter-pretação desta última deverá ser restritiva, de modo que o direito individual seja atin-gido na mínima intensidade possível. É o que explica, de forma exemplar, Tércio Sampaio Ferraz Jr., in verbis:

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Uma interpretação restritiva ocorre toda vez que se limita o sentido da norma, não obstante a amplitude da sua expressão literal. Via de regra, o intérprete se vale de considerações teleológicas e axiológicas para fundar o raciocínio. Supõe, assim, que a mera interpretação es-pecificadora não atinge os objetivos da norma, pois lhe confere uma amplitude que prejudica os interesses, ao invés de protegê-los. Assim, por exemplo, recomenda-se que toda norma que restrinja os direi-tos e garantias fundamentais reconhecidos e estabelecidos constitu-cionalmente deva ser interpretada restritivamente. O mesmo se diga para as normas excepcionais: uma exceção deve sofrer interpretação restritiva. No primeiro caso, o telos protegido é postulado como de tal importância para a ordem jurídica como um todo que, se limitado por lei, esta deve conter, no seu espírito (mens legis), antes o objetivo de assegurar o bem-estar geral sem nunca ferir o direito fundamental que a constituição agasalha. No segundo, argumenta-se que uma exceção é, por si, uma restrição que só deve valer para os casos excepcionais. Ir além é contrariar a sua natureza.9 (grifos aditados)

A regra constante do referido dispositivo (art. 5o) é que há direito sub-jetivo à matrícula e rematrícula, podendo tal direito ser restringido quando houver inadimplemento. Entre o inadimplemento em geral (outros contra-tos, quaisquer contratos) e o inadimplemento específico do curso ou contrato, considerados como hipóteses interpretativas, é óbvio que se deverá preferir a solução mais estrita, que é a que se refere apenas ao sinalagma de um dado contrato, o que na verdade corrobora a tese ora esposada e rechaça cabalmen-te o posicionamento contrário.

4. o direito constitucional à educação: da irrecusabilidade da prestação de serviços educacionais

Já foi dito no início do presente trabalho que os serviços de educação não são prestados em regime privado e que sua compreensão deve ser a partir do sistema constitucional brasileiro. Desta premissa fundamental extraem-se ou-

9 SAMPAIO FERRAZ JR., Tércio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. p. 295.

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tras razões para justificar a impossibilidade de recusa da prestação de serviços educacionais por parte das instituições privadas, fora da estrita hipótese da exceção do contrato não cumprido. Voltemos ao texto constitucional. O art. 6o da Constituição Federal fixa expressamente como um dos direitos sociais a se-rem prestigiados e garantidos o direito à educação. Mais adiante, em seu art. 205, o Texto Constitucional refere expressamente que “[a] educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. No art. 209, I, seguinte, disciplina a Constituição Federal o ensino privado, condi-cionando-o ao “cumprimento das normas gerais da educação nacional”.

A profundidade do conceito de educação plasmado na Constituição Fe-deral é bem destacada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, in verbis:

[O termo “educação”] é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao de-senvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático.10 (grifou-se)

Assim, o direito constitucional à educação, quando transposto à relação jurídica firmada entre o indivíduo e instituições de ensino privadas, pressu-põe não a gratuidade da prestação, o que seria incompatível com a exploração econômica de tais atividades, mas sim uma peculiar obrigação de legalidade, que se traduz, de forma muito palpável, em três aspectos inegáveis:

(i) a necessidade de atendimento estrito à legislação regente da matéria, o que, no presente caso, deve ser entendido como o dever de respeito à veda-ção de aplicação de penalidades pedagógicas (art. 6o da Lei no 9.870/1999);

(ii) da impossibilidade de recusa da prestação dos serviços de determinado contrato quando o aluno estiver adimplente com as obrigações oriundas daquele contrato; e

10 MELLO FILHO, José Celso de. Constituição federal anotada. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 533.

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(iii) da irrecusabilidade da prestação dos serviços educacionais em outros cursos a alunos que tenham débito anterior; como a exceção do contrato não cumprido não tem o condão de ser invocada por contratos indepen-dentes, os únicos critérios de admissão lícitos nas instituições de ensino privadas devem ser os educacionais (vestibular ou processo seletivo de conhecimento, projeto de pesquisa etc.), sob pena de invalidade de con-duta contrária. As instituições privadas não podem, portanto, recusar-se a priori a prestar o serviço (isto só pode acontecer na hipótese da exceção do contrato não cumprido, que pressupõe, naturalmente, a assinatura de um contrato).

Entendimento diverso levaria a equívocos gravíssimos, no sentido de en-tender que a instituição privada pode, a seu exclusivo talante, descontinuar a prestação de serviços ou recusar-se a prestá-los, negando a admissão a aluno por motivos estranhos àquela relação contratual (isto é, fora da hipótese estri-ta da exceptio non adimpleti contractus).

E não se pense que, correlatamente ao reconhecimento do direito à edu-cação do aluno, estar-se-ia infligindo prejuízo à instituição de ensino. Na verdade, nenhum prejuízo acomete a instituição de ensino que poderá, se a inadimplência se verificar em determinado contrato, recusar-se a prestá-lo (desde que de acordo com o disposto na legislação aplicável), sem prejuízo da realização da cobrança de tais débitos pela via própria. O que não se pode é colocar em risco o próprio acesso do indivíduo aos bens educacionais, o que certamente ocorreria ao sustentar-se a recusabilidade da matrícula nas hipóte-ses do presente trabalho. Lembre-se que os bens educacionais transcendem à própria instituição que os produz; projetam-se sobre a sociedade e não podem ser negados aos indivíduos. Imagine-se a situação de indivíduo que tenha concluído sua graduação com débito pendente em determinada faculdade, que negou proposta amigável de acordo e está cobrando o débito pelas vias próprias (ou tem a possibilidade de vir a fazê-lo). Este mesmo indivíduo, para a condução de sua vocação ou de sua vida profissional, tem a necessidade de vir a realizar um curso de pós-graduação na mesma universidade: ele deverá ter sua matrícula recusada sumariamente, sem ter sequer a chance de acessar a tais bens, ainda que possa vir a arcar com as anualidades? Ou pior: se ele for admitido e se mantiver adimplente com este contrato, deverá ser excluí-do de seu curso? É óbvio que, em tais casos, a resposta não pode ser senão a negativa, ainda mais se considerarmos que os bens educacionais são muitas vezes singulares, somente prestados por uma única entidade ou com grande

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desnível de qualidade entre as várias instituições (a qualidade é também um atributo de individualização de um bem). É comum em muitos casos simples-mente não haver para o indivíduo a opção de procurar, para a continuação de seus estudos (o que deve ser a regra numa sociedade que valorize a educa-ção), outra instituição de ensino que não aquela com a qual ele possui débito de outro contrato, afinal muitas vezes (para não dizer a totalidade delas) não há fungibilidade entre tais entidades — os serviços que prestam serão sempre diversos entre si. Do mesmo modo, imagine-se caso em que o pai tem dois fi-lhos matriculados em escola e, por questões financeiras, fica inadimplente em um dos contratos: poderá haver aí a recusa da matrícula de ambos os filhos? É obvio que também não.

É muito fácil argumentar-se que, com tal solução, estar-se-ia estimulando o “risco moral” da inadimplência e colocando em risco a própria existência das instituições de ensino privadas. O argumento ad terrorem tem seu apelo. Mas é falso. Ocorre que, em verdade, com a simples solução da exceptio non adimpleti contractus, conforme acima abordada, este risco já é evitado, por-quanto o inadimplente contumaz, que de má-fé descumpre com suas obriga-ções perante a instituição de ensino, não será capaz de concluir qualquer curso, pois terá sucessivamente as matrículas recusadas se se tornar inadimplente nos contratos que firmar. A instituição privada não será obrigada a arcar com a educação de quem não paga, possuindo rigorosamente os mesmos meios de executar seus créditos que possuem as demais pessoas privadas. A inadim-plência nos serviços educacionais tem seu meio próprio de tutela. A “autotu-tela”, realizada fora de tais limites e tendo por objeto a negação do acesso a bens educacionais garantidos constitucionalmente, configura comportamento ilícito da máxima gravidade, que deve ser coibido energicamente, em face da importância da matéria à qual se relaciona.

4.1 Os serviços educacionais sob a ótica consumerista

O código de defesa do consumidor é explícito ao tipificar como prática abusiva a recusa à “venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento” (Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, art. 39, IX) e a proscrever a recusa ao cumprimento de oferta realizada por fornecedor de bem ou serviço, caso em que “o consumi-dor poderá, alternativamente e à sua livre escolha: I — exigir o cumprimento forçado da obrigação, nos termos da oferta, apresentação ou publicidade; II

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— aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente; III — rescindir o contrato, com direito à restituição de quantia eventualmente antecipada, monetariamente atualizada, e a perdas e danos” (art. 35, grifou-se).

Aplicando um exemplo consumerista ao presente caso, a atuação da ins-tituição privada que se recusa a prestar serviços educacionais fora das hipóte-ses da exceção do contrato não cumprido equivale à de farmácia que, em razão de débito anterior de cliente não saldado, nega-lhe a venda de medicamento na boca do caixa, após anunciar a venda de tal remédio por tal ou qual preço. Ou à de conduta de supermercado que se nega a vender à vista alimentos a pai de família que tenha um cheque devolvido perante aquela empresa. Tais exemplos coincidem com aqueles referidos por Antônio Herman de Vascon-cellos e Benjamin, ilustre comentarista do Código de Defesa do Consumidor, em trecho que se transcreve abaixo:

O fornecedor não pode recusar-se a atender à demanda do consumidor. Desde que tenha, de fato, em estoque os produtos ou esteja habilitado a prestar o serviço. É irrelevante a razão alegada pelo fornecedor. Veja-se o caso do consumidor que, a pretexto de ter passado cheque sem fun-dos em compra anterior, tem a sua demanda, com pagamento à vista, recusada. Ou, ainda, o motorista de táxi que, ao saber da pequena dis-tância da corrida do consumidor, lhe nega o serviço.11

Naturalmente que, se a recusa da venda de bens ou prestação de servi-ços é vedada no âmbito das relações estritamente privadas, com muito mais razão deve ser repelida no caso de instituições de ensino, que prestam serviço público e exercem o munus estatal importantíssimo da concretização do direito constitucio-nal à educação. James Eduardo de Oliveira, com amparo no art. 22 do Código de Defesa do Consumidor,12 entende que o prestador de serviço público não pode “negar a celebração de um contrato” envolvendo o serviço prestado, concluindo que, caso isto ocorra, “[t]al conduta seria considerada abusiva”.13

11 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e. Das práticas comerciais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 240-492, p. 369-370.12 Cf. o teor do dispositivo, verbis: “Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, conces-sionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos de descumprimento, total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma prevista neste código”.13 OLIVEIRA, James Eduardo de. Código de defesa do consumidor anotado e comentado. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 437.

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De se notar, adicionalmente, que, em razão da incidência dos disposi-tivos constantes do Código de Defesa do Consumidor, antes mencionados, a eventual recusa por parte da instituição privada de ensino para a presta-ção dos correspondentes serviços educacionais será resolvida judicialmente não por perdas e danos, conforme ocorre no direito civil, senão por execução específica, para que se obrigue à instituição infratora prestar os serviços ini-cialmente recusados. Nas palavras de Nelson Nery Júnior, ao “estabelecer a execução específica da oferta como regra”, o “CDC rompe com a tradição do Direito Privado, cujas bases estão assentadas no liberalismo que reinava na época das grandes codificações europeias do século XIX”,14 de modo que “a regra não é a resolução em perdas e danos da obrigação de fazer inadimpli-da, mas a execução específica, forçada, da obrigação de fazer, se o fornecedor não der cumprimento à oferta”.15 A adoção da execução específica pela legislação decorre da compreensão de que, em um sem-número de situações, o que é importante para o consumidor é o bem em si e não a penalização do fornecedor (por perdas e danos). Tal solução é indubitavelmente a mais adequada para as relações educacionais, em que os bens cuja prestação é recusada possuem, por sua natureza mesma, valor inestimável para aquele que se vê ilegalmente privado de sua fruição.

5. da vedação ao venire contra factum proprium e do princípio da proteção à confiança

Outra hipótese tratada no presente trabalho tem a ver com os casos em que a instituição privada admite em novo curso aluno que possui débito pre-térito e, durante a vigência de tal contrato (que é adimplido pelo aluno), de-cide invocar a exceção do contrato não cumprido e negar sua rematrícula em razão do débito anterior. Aqui, além do que já foi mencionado no presente trabalho no que tange à aplicabilidade da exceptio non adimpleti contractus no âmbito das relações educacionais e da inegabilidade da prestação de tais servi-ços, deve-se mencionar que a conduta cogitada esbarra também na vedação,

14 NERY JÚNIOR, Nelson. Da proteção contratual. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 493-627, p. 498.15 Ibid., p. 506.

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existente entre nós, do venire contra factum proprium, que nada mais é do que manifestação específica do princípio da proteção à confiança.

Almiro do Couto e Silva, com amparo na doutrina administrativista ale-mã, divide o conceito de segurança jurídica em dois. O primeiro, de natureza objetiva, incidiria sobre as situações jurídicas e fáticas constituídas, encapsu-lando-as contra atos posteriores que eventualmente lhes afetassem ou pre-tendessem afetar, correspondendo à noção corrente de segurança jurídica; o segundo, de natureza subjetiva, incidiria sobre as expectativas de comporta-mentos intersubjetivas, de modo a preservar a confiança gerada em uma parte por outra, tratando-se, neste último caso, do que se convencionou chamar boa-fé objetiva. Nas palavras do mestre gaúcho:

4. A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes, uma de natureza ob-jetiva e outra de natureza subjetiva. A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada. Diferentemente do que acontece em outros países cujos ordenamentos jurídicos frequentemente têm servido de inspiração ao direito brasileiro, tal proteção está há muito incorporada à nossa tradição constitucional e dela expressamente cogita a Constitui-ção de 1988, no art. 5o, inciso XXXVI.

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pes-soas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação.

Modernamente, no direito comparado, a doutrina prefere admitir a existência de dois princípios distintos, apesar das estreitas correlações existentes entre eles. Falam os autores, assim, em princípio da seguran-ça jurídica quando designam o que prestigia o aspecto objetivo da esta-bilidade das relações jurídicas, e em princípio da proteção à confiança, quando aludem ao que atenta para o aspecto subjetivo.16

16 COUTO E SILVA, Almiro do. O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direi-to público brasileiro e o direito da administração pública de anular seus próprios atos administra-tivos: o prazo decadencial do art. 54 da lei do processo administrativo da União (Lei no 9.784/99). RPGE, Porto Alegre, v. 27, n. 57, p. 36, 2004.

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No direito brasileiro, encontra-se positivado de modo amplo o princípio da segurança jurídica no inciso XXXVI da Constituição Federal, segundo o qual “a lei não prejudicará o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada”. O princípio da boa-fé objetiva (proteção à confiança) encontra-se positivado quer na previsão de moralidade do caput do art. 37 da Constituição Federal,17 quer no art. 422 do Código Civil, o qual dispõe que “[o]s contratan-tes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Não é lícito, sob a égide deste último princípio, que uma parte contra-te com outra, gerando nesta a expectativa de que o contrato irá se ultimar, e, após, adote comportamento que frustre tal expectativa. Os pactos existem para serem cumpridos e é moral e juridicamente necessário que sejam afasta-das condutas maliciosas ou erráticas, que ponham em risco a confiança gerada pelos atos jurídicos e pelas expectativas mútuas de comportamento que deles decorrem. Celso Antônio Bandeira de Mello bem pontuou quando afirmou que “[e]m qualquer de seus atos, o Estado — tanto mais porque cumpre a função de ordenador da vida social — tem de emergir como interlocutor sério, veraz, responsável, leal e obrigado aos ditames da boa-fé”.18 Nesta ordem de ideias é que se pode afirmar, seguindo a lição de Jorge Bermúdez Soto,19 que a pro-teção à confiança, em um sentido estritamente jurídico, significa a garantia da adequada retribuição das esperanças depositadas pelo particular na acertada atuação do Estado no tocante aos seus interesses, aplicando-se, portanto, tal princípio, a todos os âmbitos de atividades estatais.

É esta, em termos gerais, a compleição do princípio da proteção à con-fiança, que veda condutas como as referidas pela locução venire contra factum proprium. Leciona, a propósito, o jurista português António Manuel Menezes Cordeiro:

A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido an-

17 Cf. o teor do dispositivo, nodular, como se sabe, para qualquer discussão jurídica envolvendo a administração pública, em geral, e os serviços públicos, em particular (caso inegável da educa-ção): “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoali-dade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...]” (grifos aditados).18 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Segurança jurídica, boa-fé e confiança legítima. RTDP, São Paulo, n. 51-52, p. 7, 2009.19 SOTO, Jorge Bermúdez. El principio de confianza legítima en la actuación de la administración como límite a la potestad invalidatoria. RTDP, São Paulo, n. 53, p. 27, 2011.

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teriormente pelo exercente. Esse exercício é tido sem contestação por parte da doutrina que o conhece, como inadmissível. [...]

Feitas estas precisões, há venire contra factum proprium, em primeira linha, numa de duas situações: quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifeste a intenção de não ir pra-ticar determinado ato e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare preten-der avançar com certa atuação e, depois, se negue.20 (grifos em negrito aditados)

Ainda que se ignorasse a incomunicabilidade das relações jurídicas tra-vadas com o aluno, na hipótese ora tratada, resulta vedado à instituição de ensino, após ter admitido o aluno no novo curso e ter criado neste a expecta-tiva de o vir a cursar sem qualquer oposição, invocar a existência de suposto débito anterior para o fim de excluí-lo do curso, recusando-lhe a rematrícula. Importante notar que a conduta que caracteriza o venire contra factum proprium independe do tempo cursado: desde que a confiança tenha sido gerada (e isto ocorre já antes da assinatura do novo contrato, quando o estudante é aprova-do segundo critérios acadêmicos), a relação encontra-se albergada pelo prin-cípio da proteção à confiança.

Retoma-se, aqui, a propósito, a lição do jurista português:

No essencial, a concretização da confiança, ela própria concretização de um princípio mais vasto, prevê, como resulta da amostragem juris-prudencial realizada: a atuação de um fato gerador de confiança, em termos que concitem interesse por parte de ordem jurídica; a adesão do confiante a este fato; o assentar, por parte dele, de aspectos impor-tantes da sua atividade posterior sobre a confiança gerada — um de-terminado investimento de confiança — de tal forma que a supressão do fato provoque uma iniquidade sem remédio. O factum proprium daria o critério de imputação da confiança gerada e das suas consequên-cias.21 (grifos em negrito aditados)

20 MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da boa-fé no direito civil. 3. reimp. Coimbra: Almedina, 2007. p. 742-747.21 Ibid., p. 758.

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Desde que se dispôs a admitir o aluno devedor em outro contrato, inspi-rando neste a confiança de que poderia cursar e concluir o novo curso naquela instituição, e recebendo em contrapartida os pagamentos das mensalidades por parte daquele, não é permitido à instituição privada frustrar tal expecta-tiva, adotando comportamentos contrários ao inicialmente praticado. A uti-lização de nova posição jurídica, fundada na confiança da outra parte, para forçar o adimplemento de débito anterior (que possui os meios próprios de cobrança), caracteriza comportamento malicioso e desleal, vedado pelo di-reito. Adicione-se que, se isto já é vedado nas relações estritamente privadas, com muito mais razão o será nas relações que se investem de um inegável componente de interesse público, como no caso das relações educacionais.

Aqui também caminham juntos a melhor orientação teórica e a ju-risprudência. Veja-se como acertadamente decidiram os Tribunais Regionais Federais das 2a e 4a Regiões, em processos cujas ementas seguem transcritas abaixo:

PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. LIMINAR EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXCEPCIONAL ADMISSIBILIDADE DO RECURSO. ALUNA INADIMPLENTE. REMATRÍCULA AUTO-RIZADA PELA UNIVERSIDADE. DEFESO À UNIVERSIDADE APLI-CAR PENALIDADES PEDAGÓGICAS. LEI No 9.870/99. I — Agravo de instrumento interposto contra decisão que indeferiu a liminar nos autos do mandado de segurança, através da qual a impetrante preten-de a suspensão do ato que negou a efetivação de fato da sua matrícu-la, bem como seja determinado ao Reitor da Faculdade que promova a rematrícula no quadro dos alunos do 8o período noturno do curso de publicidade e propaganda e, ainda, que se abstenha de impedir a possível e futura colação de grau. II — A questão acerca do cabimen-to do recurso de agravo de instrumento contra decisão que defere ou indefere liminar em mandado de segurança é bastante controvertida. O mandado de segurança consubstancia remédio constitucional e está disciplinado pela Lei no 1.533/51, de rito especial, dada a necessidade da sua celeridade processual. O referido diploma legal não prevê a in-terposição do recurso de agravo de instrumento. Em hipótese excepcio-nal, admite-se a interposição do presente recurso, ante a probabilidade de existência da posição jurídica de vantagem afirmada pela agravante. III — Os documentos juntados aos autos comprovam que a agravante efetivou sua matrícula no estabelecimento de ensino agravado, atra-

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vés de pagamento de boleto bancário, e que a Faculdade não efetuou sua matrícula em nenhuma disciplina do período corrente, bem como não foram lançadas suas notas. Uma vez admitida a matrícula da alu-na, não pode a instituição de ensino aplicar penalidades pedagógicas, conforme prevê o art. 6o da Lei no 9.870/99. Assim, verifica-se equivo-cada a interpretação dada pela decisão agravada ao art. 5o da referida Lei. O dispositivo prevê a recusa pela instituição de ensino de reno-vação de matrícula de aluno inadimplente, o que não é a hipótese dos autos, tendo em vista que foi autorizada sua matrícula, devendo a instituição suportar os efeitos decorrentes de tal ato. IV — Decisão agravada reformada para deferir a liminar no mandado de segurança. V — Agravo de instrumento conhecido e provido. (TRF2, AG — AGRA-VO DE INSTRUMENTO — 176838, rel. desembargador federal GUI-LHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA, SEXTA TURMA ESPE-CIALIZADA, Publicado em 11-9-2009) (grifou-se)

MATRÍCULA. UNIVERSIDADE. INADIMPLÊNCIA. NEGATIVA DE MATRÍCULA NO PERÍODO FINAL DO CURSO. DIREITO À REMA-TRÍCULA. — Demonstrado que tão somente no final do período uni-versitário é que foi a aluna impedida de dar continuidade ao curso, deve ser permitida a efetivação de sua rematrícula na universidade. (TRF4, AMS 200472000007500, rel. EDGARD ANTÔNIO LIPPMANN JÚNIOR, QUARTA TURMA, DJ 17-11-2004 PÁGINA: 709) (grifou-se)

Do quanto se expôs no presente tópico, inegável a vedação à conduta de instituição de ensino privada que, após admitir aluno inadimplente em con-trato anterior, pretenda excluí-lo do novo curso em razão da dita inadimplên-cia pretérita. Os atos assim praticados violam o dever de boa-fé nas relações administrativas, conforme devidamente balizadas pelo princípio da proteção à confiança, que proíbe de forma absoluta o venire contra factum proprium. Nes-te caso, para utilizarmo-nos da metáfora de Laureano López Rodó, a institui-ção de ensino agiria a exemplo da figura mitológica de Penélope, que desfaz hoje o que ontem teceu,22 o que não se permite.

22 RODÓ, Laureano López. Presupuestos subjetivos para la aplicación del princípio que prohibe ir contra los própios actos. Revista de Administración Pública, n. 9, p. 12, set./dez. 1952.

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�. conclusões

Em breve síntese, pode-se concluir que o bem jurídico educação, a cuja disciplina se dedicou especialmente o constituinte de 1988, possui inegável importância jurídico-constitucional. A prestação de serviços de educação por pessoas privadas — que é permitida pela Constituição Federal — não deve ser confundida com a prestação dos serviços em regime privado, haja vista que tais serviços são sempre e em qualquer caso serviços públicos.

Considerando a prestação por pessoas privadas, os serviços educacionais devem ser remunerados, não podendo tais pessoas ser obrigadas a prestá-los sem a correspondente contraprestação. Assim, permite-se, conforme se depre-ende dos arts. 5o e 6o da Lei no 9.870/1999, a invocação da exceção do contrato não cumprido, desde que tal exceção não configure penalidade pedagógica e desde que se refira ao próprio contrato em que ocorreu a inadimplência (quando persistente esta por mais de 90 dias).

Assim, afasta-se a exceção do contrato não cumprido relativamente a contratos diversos, dado que não é permitido estender a figura a obrigações desconexas com as do contrato em que houve o inadimplemento.

Do mesmo modo, são vedados pelo direito: (i) a recusa à prestação de tais serviços, em face da disciplina legal consumerista, fora das hipóteses estrita-mente contempladas nos arts. 5o e 6o da Lei no 9.870/1999, conforme referido no parágrafo precedente; e (ii) o comportamento de instituição de ensino que, após admitir, segundo critérios acadêmicos, aluno que tenha débitos com ela relativos a outro contrato, venha a invocar a exceção do contrato não cumpri-do para descontinuar a prestação no novo contrato. Esta última hipótese, além de desbordar dos limites do instituto da exceção do contrato não cumprido, configura a hipótese do venire contra factum proprium, atentatória, conforme demonstrado, da boa-fé objetiva e do princípio da proteção à confiança.

Referências

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