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Recebido em 5/4/2018 Aprovado em 18/5/2018 A prólepsis de Epicuro e seus significados The Prólepsis of Epicurus and its Meanings Marcos Roberto Damásio da Silva 1 e-mail: [email protected] orcid: http://orcid.org/0000-0002-0719-8414 DOI: http://dx.doi.org/10.25187/codex.v6i1.16636 Resumo: O presente artigo investiga a noção de prólepsis (πρόληψις) na filosofia de Epicuro a partir dos termos empregados por Diógenes Laércio no parágrafo 33 do 10º livro de Vida e doutrinas dos filósofos ilustres. O termo prólepsis é um neologismo de Epicuro, como afirmou Cícero, e que, para explicá-lo convincentemente, Diógenes Laércio recorreu a outros termos consolidados na tradição filosófica: katálepsis, dóxa orthé, énnoia e katholikè nóesis. Segundo Epicuro, a prólepsis é uma retenção mnêmica νήμη) formada empiricamente a partir do que afeta os sentidos (αἰσθήσεις) e constitui-se de diversas experiências vivenciadas no decurso do tempo, isto é, de uma pluralidade de experiências que deixaram marcas (τύποι) na psykhé, vindo a ser acionadas pelo entendimento (διάνοια) sempre que necessárias. Muito cara à sua filosofia, a prólepsis como o segundo “critério da verdade” (κριτήρια τῆς ἀληθείας) garante a passagem da sensibilidade ao entendimento, legitimando assim a capacidade de produção de conhecimento “confirmado” (μαρτύριον). Palavras-chave: prólepsis; antecipação; apreensão real; opinião correta; ideia universal Abstract: The present article investigates the notion of prólepsis (πρόληψις) in the philosophy of Epicurus from the terms employed by Diogenes Laertius in paragraph 33 of the 10th book of Life and doctrines of the illustrious philosophers. The term prólepsis is a neologism of Epicurus, as Cicero put it, and that, to explain it convincingly, Diogenes Laertius resorted to other terms consolidated in the philosophical tradition: katálepsis, dóxa orthé, énnoia and katholikè nóesis. According to Epicurus, prólepsis is a mnemonic retention (μνήμη) formed empirically from what aects the senses (αἰσθήσεις) and consists of several experiences experienced in the course of time, that is, a plurality of experiences that left marks (τύποι) in the psykhé to be actuated by the understanding (διάνοια) whenever necessary. Much to its philosophy, prólepsis, as the second “criterion of truth” (κριτήρια τῆς ἀληθείας), guarantees the passage of the sensibility to the understanding, thus legitimizing the capacity to produce “confirmed” (μαρτύριον) knowledge. Keywords: prólepsis; anticipation; real apprehension; correct opinion; universal idea Doutorando em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia, linha de pesquisa Filosofia Antiga e 1 Medieval, da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, sob orientação da Profa. Dra. Miriam Campolina Diniz Peixoto. Codex – Revista de Estudos Clássicos, ISSN 2176-1779, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 146-181 146

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  • Recebido em 5/4/2018 Aprovado em 18/5/2018

    A prlepsis de Epicuro e seus significados The Prlepsis of Epicurus and its Meanings

    Marcos Roberto Damsio da Silva 1e-mail: [email protected]

    orcid: http://orcid.org/0000-0002-0719-8414

    DOI: http://dx.doi.org/10.25187/codex.v6i1.16636

    Resumo: O presente artigo investiga a noo de prlepsis () na filosofia de Epicuro a partir dos termos empregados por Digenes Larcio no pargrafo 33 do 10 livro de Vida e doutrinas dos filsofos ilustres. O termo prlepsis um neologismo de Epicuro, como afirmou Ccero, e que, para explic-lo convincentemente, Digenes Larcio recorreu a outros termos consolidados na tradio filosfica: katlepsis, dxa orth, nnoia e katholik nesis. Segundo Epicuro, a prlepsis uma reteno mnmica () formada empiricamente a partir do que afeta os sentidos () e constitui-se de diversas experincias vivenciadas no decurso do tempo, isto , de uma pluralidade de experincias que deixaram marcas () na psykh, vindo a ser acionadas pelo entendimento () sempre que necessrias. Muito cara sua filosofia, a prlepsis como o segundo critrio da verdade ( ) garante a passagem da sensibilidade ao entendimento, legitimando assim a capacidade de produo de conhecimento confirmado ().

    Palavras-chave: prlepsis; antecipao; apreenso real; opinio correta; ideia universal

    Abstract: The present article investigates the notion of prlepsis () in the philosophy of Epicurus from the terms employed by Diogenes Laertius in paragraph 33 of the 10th book of Life and doctrines of the illustrious philosophers. The term prlepsis is a neologism of Epicurus, as Cicero put it, and that, to explain it convincingly, Diogenes Laertius resorted to other terms consolidated in the philosophical tradition: katlepsis, dxa orth, nnoia and katholik nesis. According to Epicurus, prlepsis is a mnemonic retention () formed empirically from what affects the senses () and consists of several experiences experienced in the course of time, that is, a plurality of experiences that left marks () in the psykh to be actuated by the understanding () whenever necessary. Much to its philosophy, prlepsis, as the second criterion of truth ( ), guarantees the passage of the sensibility to the understanding, thus legitimizing the capacity to produce confirmed () knowledge. Keywords: prlepsis; anticipation; real apprehension; correct opinion; universal idea

    Doutorando em Filosofia pelo Programa de Ps-Graduao em Filosofia, linha de pesquisa Filosofia Antiga e 1

    Medieval, da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil, sob orientao da Profa. Dra. Miriam Campolina Diniz Peixoto.

    Codex Revista de Estudos Clssicos, ISSN 2176-1779, Rio de Janeiro, vol. 6, n. 1, jan.-jun. 2018, pp. 146-181

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    mailto:[email protected]://orcid.org/0000-0002-0719-8414http://dx.doi.org/10.25187/codex.v6i1.16636

  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    y

    Introduo: A criteriologia epicrea

    Digenes Larcio foi o responsvel por transcrever em sua obra, Vida e doutrinas dos

    filsofos ilustres , o que restou da imensa obra de Epicuro: suas trs Epstolas endereadas aos seus 2

    discpulos Herdoto, Ptocles e Meneceu e as Mximas Capitais . Entretanto, ele no apenas 3

    transcreveu suas Epstolas e Mximas, mas tambm empreendeu esforos para torn-las

    compreensveis aos interessados em sua obra. Os primeiros 34 pargrafos so dedicados a uma

    introduo sobre: a vida de Epicuro (1-16), seu Testamento (17-21), uma ltima e pequena carta

    a Idomeneu (22), uma lista de alguns discpulos prximos (23-26), um catlogo de suas

    melhores () obras (27) e uma breve exposio doutrina de Epicuro (28-34). Nesta

    ltima parte, Digenes Larcio introduz seu leitor aos temas das trs Epstolas a fsica, a

    meteorologia e sobre a vida humana, respectivamente , trplice diviso da filosofia epicrea a

    cannica, a fsica e a tica e, por fim, cincia dos critrios, isto , a criteriologia.

    As citaes so tradues de Mrio da Gama Kury (1987) eventualmente modificadas para melhor compreenso. 2Foram usados os estabelecimentos e as tradues de Hermann Usener (1887); Ettore Bignone (1920); Grazziano Arrighetti (1973); e Jean Bollack-Andr Laks (1977). Doravante abreviados para DL quando se tratar de comentrios de Digenes Larcio seguido do livro (I X), 3

    EHe (Epstola a Herdoto), EPi (Epstola a Ptocles), EMe (Epstola a Meneceu), MC (Mxima Capitais) e SV (Sentenas Vaticanas). Para os textos gregos consultamos todos aqueles estabelecidos pelos autores citados na nota anterior.

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    Denomina-se de criteriologia a compreenso sistemtica do conjunto de fundamentos 4

    que do suporte tanto aos ajuizamentos seguros, numa esfera gnosiolgica, como tambm s

    reflexes sobre os modos de vida , campo da tica ou, mais precisamente, como se opta 5

    interpretar aqui, da sabedoria . Foi a isto que chamou Epicuro de critrios da 6

    verdade ( ). Esses critrios situam-se na primeira parte da trplice diviso

    da filosofia de Epicuro, descrita por Digenes Larcio como Cannica (), a qual

    denominaram os primeiros epicuristas de cincia do critrio [de verdade] e dos princpios

    primeiros, e tambm doutrina elementar , definio que se assemelha quela de filosofia 7

    primeira ( ) de Aristteles como cincia das causas e dos princpios

    primeiros ou supremos (Arist. Met. A 1-2).

    Termo tomado de Miguel Spinelli em: Epicuro e as bases do epicurismo, 2013, passim, o qual se julga, aqui, a 4melhor concepo dos critrios da verdade, como tambm, por ora, opta-se por rejeitar a querela em torno da concepo da cannica, se esta uma teoria do conhecimento ou uma lgica, ou at mesmo uma propedutica para a physiologa epicrea. BOLLACK; LAKS, 1976, pp. 26-27. Opta-se pela traduo de Andr Laks, na qual ' 5

    (DL, X, 30) melhor traduzido por: on y trouve les rflexions sur les modes de vie que tratado das concepes da vida humana, como traduziu Mrio da Gama Kury. H uma distino entre vida humana e modos de vida; esta segunda apontando claramente para uma concepo tica da vida, j a primeira podendo sugerir vida biolgica. Tambm antes e depois da EMe Digenes Larcio usa a expresso , 117 e 135. Quando Digenes Larcio se refere epstola endereada a Herdoto, ele diz sobre a fsica ( ); 6

    quando se refere epstola endereada a Ptocles ,sobre as coisas suspensas no ar ( ), numa referncia aos fenmenos celestes; mas, quando se refere terceira epstola, escrita a Meneceu, escreve apenas sobre os modos de vida ( ), no fazendo referncia ao termo no sentido estrito do termo, visto que a tica para Epicuro mais se assemelha a uma sabedoria enquanto , uma sabedoria prtica e no sistemtica. Digenes Larcio cita uma obra de Digenes de Tarsos intitulada Eptome da doutrina tica de Epicuro ( ), na qual usa o termo . Essa noo assemelha-se a uma espcie de conhecimento tpico, por exemplo, da sabedoria hebraica, expressa pelo termo hokmh e traduzido para o grego como , que traz consigo habilidades de fazer escolhas certas no momento oportuno (VINE; UNGER; WHITE, 2003, p. 271), como bem demonstra o Provrbio 12: Eu, a sabedoria, habito com a prudncia e disponho de conhecimentos e conselhos, traduzido pra a LXX como: , . DL, X, 30: , .7

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    Segundo Benjamin Farrington, era bastante comum, j no perodo helenista, entender a

    filosofia dividida em partes () distintas, pressupondo momentos internos diferenciados, como

    ele bem apresenta: as escolas antigas, de hbito, reconhecem trs partes da filosofia: a racional, a

    natural e a moral (FARRINGTON, 1968, p. 111).

    Todavia, importante perceber que essa diviso da filosofia epicrea apresentada

    apenas por Digenes Larcio e no encontrada em nenhuma das cartas de Epicuro a nenhum 8

    dos seus discpulos. As partes da sua filosofia foram denominadas de cannica, fsica e tica. Na

    cannica, segundo Digenes Larcio, so expressas como critrios da verdade: as sensaes, as

    antecipaes e as afeces , acrescentando os epicuristas, posteriormente, um quarto critrio, o 9

    das projees representativas do entendimento . Vale salientar tambm e dar o devido crdito 10

    observao feita por Markus Figueira de que Digenes Larcio interfere no pensamento de

    Epicuro quando o subdivide em trs partes. Ele tambm aponta que a raiz dessa interferncia

    encontra-se no tpico problema doxogrfico e que se deve distinguir a obra e o pensamento

    remanescentes de Epicuro de seus comentadores. Ora, uma coisa a exposio do filsofo

    Epicuro, outra so os comentrios do historiador Digenes Larcio:

    DL, X, 29: Aps afirmar que exporia a filosofia de Epicuro, Digenes Larcio diz: dividir-se em trs partes: a 8

    cannica, a fsica e a tica ( , ). DL, X, 31: 9

    [...]. Idem: [...] ' . Na MC XXIV, Epicuro usa a 10

    expresso no lugar de .

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    Para comear, ele [Digenes Larcio] j interfere na compreenso que o leitor pode ter do pensamento em questo quando subdivide a filosofia em cannica, fsica e tica. preciso discordar dessa diviso. Note-se que em nenhum momento na Carta a Herdoto Epicuro faz meno a esta diviso estabelecida por Digenes Larcio (FIGUEIRA In: MARQUES, 2012, p. 278). 11

    Os critrios (), da forma como so pensados por Epicuro e os epicuristas, so

    princpios ou fundamentos necessrios para se estabelecer um discurso possvel e verdadeiro

    tanto da realidade aparente () como dos elementos inteligveis () e dos

    princpios () fundantes de toda realidade possvel, pois o todo so corpos e vazio (

    , EHe, 39). Portanto, verdade () no a descrio exata da

    realidade dos entes e suas relaes no mundo, nem tampouco a captao do em si () dos

    entes mesmos, mas sim a demonstrao de como estes aparecem na realidade sensvel e como so

    confirmados pela sensibilidade e o entendimento, ou seja, se esto em conformidade com os

    critrios postulados na Cannica. Afirmar como possvel postular o conhecimento de algo

    mediante critrios seguros o ponto inicial para se formular um mtodo legtimo de

    investigao desde os elementos mais corriqueiros do cotidiano, como um cavalo, um boi ou

    uma pedra, at os entes intelectivos mais nobres, isto , aqueles que s o pensamento pode

    alcanar e asseverar: o tomo e o vazio. Logo, verdade ou falsidade diz respeito a enunciados

    derivados da confirmao sensvel () e no a enunciados submetidos apenas a

    apreciaes lgicas ou conceituais.

    Embora se aprecie aqui tal observao e se endossem os cuidados em distinguir entre os comentrios e atribuies 11

    de Digenes Larcio e a exposio filosfica prpria de Epicuro, no se chega a tanto aqui ao ponto de discordar dessa diviso; talvez o melhor procedimento seja se precaver de possveis excessos que essa interveno de Digenes Larcio possa infundir no leitor. Vale salientar tambm que essa diviso est na esteira da filosofia helenstica e aparece em todas as escolas desse perodo.

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    Etimologicamente, segundo Chantraine (1970, p. 493), um , donde deriva 12

    , denota um pedao de madeira comprido ou uma vara reta, frequentemente

    usada como o instrumento de trabalho do pedreiro ou de um marceneiro, como uma rgua de

    medir, um molde ou at mesmo como uma linha reta, usada com a pretenso de manter

    algo reto, isto , ela prova a retitude, como a rgua de um carpinteiro; da seu uso metafrico

    expressar o que serve para medir ou determinar qualquer coisa (VINE; UNGER; WHITE,

    2003, p. 912). Ainda, no sentido tico, a palavra veio a servir para qualquer coisa que regula as

    aes humanas, como um padro ou princpio (VINE; UNGER; WHITE, 2003, p. 912)

    moral. Lucrcio refora este sentido de quando introduz a metfora da construo,

    comparando uma edificao com um conhecimento estruturado sobre falsos critrios, ou seja,

    segundo Lucrcio, um conhecimento que procede de erradas sensaes est fadado ao engano,

    semelhante a uma edificao construda atravs de clculos errados e mediante uma rgua torta:

    Finalmente, se uma construo comea com uma rgua torta, se o esquadro enganador se afastar de uma linha reta, se um nvel em algum ponto falha por pouco que seja, fatal que tudo fique errado e de travs, malfeito, deitado, inclinado para frente, deitado para trs, com os telhados discordantes, de tal modo que tudo parece querer cair, e cai, trado pelos primeiros clculo errados. (LUCRCIO. De Rer. Nat., IV, 513 et seq.)

    Assim sendo, nesse sentido que a cannica epicrea se estabelece mais que como uma

    mera introduo ao sistema doutrinrio , como diz Digenes Larcio, e sim como uma regra 13

    prescritiva, isto , um instrumento que rene elementos preceituais a serem guardados na mente;

    Havia, entre as obras escritas por Epicuro e que no sobreviveu, uma, segundo o relato de Digenes Larcio (DL, 12

    X, 27), intitulada de Sobre o critrio ou Cann ( ). DL, X, 30: .13

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    tudo aquilo, portanto, que caracterizado como o essencial dos princpios mais importantes . 14

    Tal afirmao se fundamenta j no incio da Epstola a Herdoto , quando Epicuro expe o 15

    mtodo a ser utilizado em sua investigao (), mostrando a pertinncia da sensao e a

    necessidade de se conjecturar, atravs dela, o universo imperceptvel (). , sobretudo, a

    partir da physiologa (cincia dos fundamentos fsicos) que a cannica pode ser elaborada como 16

    regra prescritiva, a qual intenta como finalidade munir o physilogos de um tipo de conhecimento

    que supera as explicaes mitolgicas e que se apega s elaboraes conceituais provenientes do

    sensvel, do que aparece e que, num segundo momento, salta uma capacidade imaginativa

    (representativa) dos entes percebidos, demonstrando, assim, que a natureza humana forjada de

    sensao e entendimento ou percepo e reflexo.

    Para Epicuro, evidente que as sensaes () primeiro critrio de verdade

    iniciam a atividade do conhecimento. Assim sendo, a existncia da funo intelectual no

    negligenciada; antes necessria em sua gnosiologia, mas apenas dependente () das

    sensaes, posto que todo raciocnio enunciado a partir das sensaes . Isso fica claro numa 17

    outra passagem citada por Digenes Larcio: todas as reflexes tm sua origem nas sensaes e

    se formam por conjuntura, por analogia, por semelhana e por composio, colaborando

    Tanto na EHe 35 como na EPi 84, Epicuro recorre estratgia de escrever uma eptome de todo seu sistema a 14

    fim de que possam conservar bem guardado na memria o essencial dos princpios mais importantes como tambm uma exposio sumria e suficientemente clara [ ..] a fim de que possas fix-la facilmente na memria. Isto se d pelo fato de as suas obras maiores serem difcil de recordar (EPi, 84). Digenes Larcio parece usar o mesmo mtodo usado por Epicuro; qual seja, sintetizar o contedo mais importante da doutrina.

    cf. EHe, 38. Deve haver, necessariamente, uma dedicao constante do physilogos na contemplao da 15

    natureza ( ). Diz-se, a princpio, e descompromissadamente, da cincia que investiga a phsis de um modo geral (Cf. EHe, 37), 16

    mas que, no decorrer dessa investigao, ganha corpo e o objeto a ser investigado especificado, a saber, os elementos primeiros, o tomo e o vazio. Outro termo utilizado por Epicuro que caracteriza essa investigao , DL, X, 80, 82 e 97.

    DL, X, 32: .17

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    tambm, em algo, o raciocnio . Em uma palavra, os fenmenos () fornecem o 18

    material necessrio para inferir ou sinalizar () o que no da ordem do sensvel

    ().

    a partir das sensaes que sua filosofia se funda e seu quadro conceitual se configura,

    isto , h grande recorrncia a um variado nmero de termos retirados do universo sensvel e

    que apontam a inteno de Epicuro. Por outro lado, as reflexes epicreas no permanecem

    apenas no mbito esttico, mas se elevam esfera do entendimento, onde as imagens ()

    introjetadas na sensibilidade e percebidas pela experincia direta e particular podem se elevar a

    um status de ideia universal ( ), isto , podem se apresentar o mais distante da

    experincia direta e imediata que nos proporcionam as sensaes e os sentimentos (MORAES,

    1998, p. 31). Evidentemente, tal superao aponta para uma praenotio, como traduziu Ccero as

    prolpseis, anteriormente formadas pelo entendimento e utilizadas pelos raciocnios em forma de

    sons, palavras e toda espcie de linguagem.

    No que tange atividade do entendimento e no que diz respeito formao das 19

    prolpseis, esto implicados de forma necessria os dois momentos fundamentais da gnosiologia

    epicrea; a saber, a percepo sensvel () e a reflexo (). Para Epicuro,

    somente o que se observa pela sensao e o que se compreende pela projeo do entendimento

    verdadeiro . Ora, o mbito da prolptica epicrea precisamente o mbito do entendimento 20

    DL, X, 32: 18

    , . O conceito de entendimento (dinoia) desdobra-se a partir da noo de nos: compreenso, razo, intelecto. 19

    Diversos outros conceitos vinculados mesma raiz no- denotam o lugar da conscincia reflexiva, compreendendo as faculdades da percepo e entendimento (Cf. VINE; UNGER; WHITE, 2003, p. 784.). Tambm, originalmente, refere-se ao sentido interior que se dirige a um objeto [...], o entendimento pertence, sendo a capacidade para pensar (Cf. COENEN; BROWN, 2007, p. 1920).

    DL, X, 62: (traduo 20

    levemente modificada).

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    () inferido do universo sensvel. Dito de outra forma, diz-se do trato conceitual-universal

    com as formas das coisas externas, isto , trata-se da atividade racional prpria da psykh, a qual

    difere da atividade irracional ou no discursiva () prpria da asthesis, isto porque a psykh

    participa tanto da sensibilidade como do entendimento. Tambm Plato, no Fdon, sugere-nos que,

    semelhantemente a Epicuro, a alma se serve do corpo (PLATO, Fdon. 79c), isto , dos

    sentidos, e, atravs da viso, da audio... (PLATO, Fdon. 79c) inicia (e apenas inicia) o

    processo de conhecimento. Este, iniciado no sensvel, chega ao inteligvel dialeticamente, como

    sugere o Mnon. Em Epicuro, portanto, trata-se da capacidade que o entendimento dispe para

    discernir, no de forma dialtica, pois no h um alm-mundo, os particulares que se apresentam

    faculdade da sensibilidade por meio da introjeo das imagens (); logo, universalizados

    esses particulares, chamar-se-o antecipaes, isto , .

    As antecipaes (Prolpseis)

    O termo (prlepsis) ser aqui sempre traduzido por antecipao. Seu campo 21

    semntico no to extenso, mas evidente que contempla outras tradues. Pretende-se, com

    essa traduo, evitar possveis relaes indevidas com os conceitos idealistas da filosofia clssica

    anterior, como, por exemplo, ideia, forma, essncia e outros. Muito cara ao seu

    Etimologicamente, o termo um substantivo preposicional, isto , um substantivo composto e 21prefixado, formado pela preposio pr: antes, diante, prematuramente, com preferncia, e acoplado ao verbo lpsis: ao de colher, receber, percepo. Tambm lambno, compreender, apreender com os sentidos (PABN, 2002, p. 364). A prlepsis, portanto, significa receber antecipadamente, da antecipao, isto , diz-se de uma percepo guardada na psykh. Tambm se relaciona com prolambno, adiantar, surpreender, receber antes, levar adiante, perceber, tomar, tomar posse de, agarrar (Cf. ISIDRO, 1998, pp. 486, 478, 347). Nesse sentido, diz-se da capacidade que a faculdade da memria (mnme) tem de antecipar ou de receber antecipadamente (prolpseis) as sensaes por j t-las fixadas na psykh por intermdio das sensaes.

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    pensamento, a prlepsis constitui um neologismo introduzido por Epicuro no pensamento 22

    filosfico e, consequentemente, na cultura e na lngua gregas, caracterizando assim um conceito

    fundamental em sua filosofia. As prolpseis garantem a passagem da sensibilidade ao

    entendimento, legitimando a capacidade para se armazenar experincias passadas na psykh.

    Portanto, as prolpseis so contedos inteligveis, so ideias, noes ou conceitos formulados a 23

    partir das experincias sensveis.

    Uma breve anlise etimolgica do termo ajudar muito na compreenso

    desse conceito, j que nenhuma outra tradio havia se utilizado deste. Portanto, nem a

    platnica nem a estica abarcam devidamente a compreenso epicrea

    desse termo, talvez por isso a necessidade de Epicuro de formular outra concepo. Ora,

    diz respeito a uma operao do entendimento pautado sempre na sensao, logo, para

    reivindicar a objetividade das sensaes que se d a alcunha desse termo. se refere ao

    de guardar, receber ou aquilo que prende. J a preposio indica algo anterior,

    antes, antecipadamente, aponta sempre para uma anterioridade, nunca a priori, mas tomando

    sempre a experincia como ponto de partida. Quando ligada , indica uma ao de

    captao das representaes recebidas ou apreendidas previamente, como diz Epicuro na Epistola

    a Herdoto, uma representao que recebemos com a impresso direta no entendimento ou nos

    rgos sensoriais . 24

    CCERO, De Nat. Deor. I, XVII, 45: preciso, portanto, colocar nomes novos em coisas novas, assim como fez 22

    Epicuro com o termo , termo que ningum antes dele designou com este sentido. [sunt enim rebus novis nova ponenda nomina, ut Epicurus ipse appellavit, quam antea nemo eo verbo nominarat].

    Jean Brun rejeita o termo conceito por julg-lo estranho filosofia de Epicuro: Ccero traduz o termo grego 23[prlepsis] por anticipatio ou por praenotio; se as duas tradues portuguesas antecipao ou pr-noo so aceitveis, a de conceito, algumas vezes, no o ; nada mais estranho filosofia de Epicuro do que essa terminologia racionalista (BRUN, 1987, p. 52).

    EHe, 50: .24

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    Epicuro usa o termo apenas quatro vezes. Uma vez no passo 72 da Epstola a Herdoto,

    quando trata da investigao acerca do tempo: segundo Epicuro, o tempo no pode ser

    considerado como prolpseis em ns mesmos, mas como evidncia imediata . E outra vez no 25

    passo 124 da Epstola a Meneceu relativo s prolpseis dos deuses. Em relao aos deuses, Epicuro

    contrasta a veracidades das antecipaes com as falsas suposies: portanto, no so

    antecipaes, mas falsas suposies as afirmaes da maioria sobre os deuses . Outras duas 26

    vezes o termo usado nas Mximas Capitais XXXVII e XXXVIII. Curiosamente, na Mxima

    XXIV, Epicuro usa , ao mencionar os cr i tr ios, projeo imaginat iva do

    entendimento ( ) juntamente com a sensao ()

    e a afeco (), no usando, portanto, o termo antecipaes. Tambm nos passos 55 (

    ) e 68 ( ) curiosamente no aparecem as

    antecipaes.

    Os usos do termo aparecem, portanto, em contextos bem diferentes. Nas Mximas, por

    exemplo, embora avesso poltica, Epicuro no deixou de tratar das questes sobre o justo e o

    bem comum. Para Epicuro, s pode haver leis justas se estiverem em conformidade com as

    antecipaes dos justos, isto , se houver precedentes de justia ou mesmo se atos justos forem

    reincidentemente vivenciados. Aqui h, mais uma vez, uma clara recusa ao idealismo clssico de

    cunho platnico, pois para ele no h leis justas ou injustas em si, s so justas ou no, teis ou

    prejudiciais conforme prenoo de justia ( ), conforme os

    fatos e no segundo as noes vazias ( ). Em outras palavras, a justia

    legitimada nas aes dos justos.

    EHe, 72: , ' (traduo levemente modificada).25 EPi, 124: ' (traduo 26

    levemente modificada).

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    Ccero foi o primeiro a verter o termo grego prlepsis para o latim, traduzindo-o por

    antecipatio, praenotio e innatas cognitiones . A traduo para innatas cognitiones parece resultar de 27

    uma m interpretao da filosofia de Epicuro por parte de Ccero ou, no mnimo, de um

    equvoco muito sutil que acabou passando imperceptvel pela tradio que se debruou sobre a

    filosofia de Epicuro. evidente que conhecimento inato, a priori no sentido rigoroso do termo,

    o que traduz innatas cognitiones, na fsica epicrea seria impossvel, uma vez que, como j fora

    afirmado, todo conhecimento deriva das sensaes (DL, X, 32); logo, uma perspectiva a

    posteriori, na experincia sensvel, e nunca algo j existente no indivduo e que anteceda o

    intelecto humano. bem verdade que Ccero tinha conscincia de que o conhecimento, para

    Epicuro, derivado necessariamente das sensaes, por isso aponta Spinelli acerca do equvoco

    de Ccero:

    quanto ao suposto equvoco promovido por Ccero, pode ter sido apenas resultado de uma m interpretao de suas proposies, visto que ele manifesta plena conscincia de que as ideias em Epicuro no so derivadas de outra fonte seno das sensaes: da experincia natural humana perceptvel. (SPINELLI, 2013, p. 4)

    Destarte, para evitar o equvoco promovido por Ccero, deve-se ter em mente que as

    antecipaes ou prenoes no devem ser pensadas como conceitos inatos, mas sim como uma

    ideia universal ( , DL, X, 33), ou seja, universalizada pelo entendimento,

    formulada a partir das vivncias, dos sentimentos ou das afeces ( ) reincidentes

    devendo se opor a uma ideia particular ( ) j experimentados sensivelmente e

    acumulados na psykh. O filsofo francs e historiador da filosofia mile Brhier tambm chama

    ateno para que no se confunda a prlepsis com uma coisa imaginria, mais sim deve-se

    DND, I, XVI, 44; I, XVII, 45.27

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    entend-la como uma coisa realmente existente . A noo de conceitos inatos, como muitas 28

    vezes se traduz o termo prlepsis, remonta a uma concepo metafsico-inatista, encontrada

    desde Plato, a qual deve ser afastada de todo contexto filosfico epicreo, para que no se

    confundam os limites sensistas da filosofia de Epicuro. Tambm nas palavras de Jos Luiz Garcia

    Ra (1996, p. 42): recusamos, j de entrada, qualquer procedimento que recorra a

    descontextualizar o pensamento de Epicuro, situando-o em um mbito inatista-intuicionista.

    Portanto, embora tenha sido infeliz a escolha do termo innatas cognitiones por Ccero, fato que

    o sentido originrio foi mantido, no devendo se perder na tradio posterior.

    Lucrcio tambm props suas tradues para o termo prlepsis. A concepo lucreciana

    mais consistente e melhor compreendida para alm de uma traduo, ou seja, antes de tudo

    uma interpretao do processo ao qual a prlepsis se refere. Ele no se prendeu apenas ao

    processo de converso do termo de uma lngua para outra, preferindo, por sua vez, como um

    bom epicurista que era, no apenas compreender o significado literal do termo, mas,

    diferentemente de Ccero, entendeu-o dentro de suas pretenses filosficas mais abrangentes,

    levando em conta a proposta sensista segundo a qual, para Epicuro, o fluxo das imagens, isto , a

    descrio da teoria da emisso dos simulacros na qual as pelculas arrancadas da superfcie [dos

    corpos] e que voejam de um lado a outro pelos ares (De Rer. Nat., IV, 35-36) como uma

    transmisso de contedos reais, que chega a seu destino final transforma-se em informaes

    (notitiai). Para Lucrcio, a prlepsis epicrea antes de tudo notificao ou noo, o que

    traduz os termos por ele utilizados no De rerum natura, a saber, notitia e notities . Acertadamente 29

    la prnotion nest jamais la notion dune chose imaginaire, mais celle dune chose existante; [] lappelle 28perception ou opinion droite: la prnotion implique un jugement dexistence vident ; notre exprience passe (Cf. BREHIER, 1928. p. 233).

    Para mais informaes, conferir a nota 36 do captulo III da II Parte de SPINELLI, 2013, p. 216: De Rer. Nat.: a) 29notities, IV, v. 479, V, VV. 182 e 1045; b) notitia: II, v. 745, IV, vv. 476 e 857, V, v. 124.

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    compara a prlepsis a um exemplar (exemplare): o exemplar das grandes coisas e o vestgio para

    as notitiai que a respeito das coisas podemos ter (De Rer. Nat., IV, 35-36).

    Todavia, uma noo fundamental une ambos os pensadores romanos, embora sejam to

    antagnicos, isto , tanto para Ccero como para Lucrcio, a prlepsis vincula-se necessariamente

    s experincias adquiridas na sensibilidade. Ela motivo de crtica negativa para Ccero e

    positiva para Lucrcio. E, portanto, incita a pergunta propriamente pela origem do

    conhecimento: o que o conhecimento e como se conhece? Epicuro responderia da seguinte

    forma: ter no entendimento um conceitual universal correspondente ao sensvel particular

    tantas vezes sentido e experienciado. Essa noo est de certa forma presente em outros autores

    antigos, como, por exemplo, Sexto Emprico e, com umas poucas diferenas, tambm em

    Aristteles, que, embora pense a experincia derivada da memria, reconhece a formao de

    uma unidade conceitual:

    Enquanto os outros animais vivem com imagens sensveis [phantasais] e com recordaes [mnmais], e pouco participam da experincia, o gnero humano vive tambm da arte e do raciocnio [tkhne ka logismos]. Nos homens, a experincia deriva da memria. De fato, muitas recordaes do mesmo objeto chegam a construir uma experincia nica (Metafsica, 980b).

    Segundo Digenes Larcio, Epicuro entende que a prlepsis uma reteno mnmica

    ( ) constituda empiricamente a partir do que afeta os sentidos e nunca uma simples 30

    recordao () do que desde sempre esteve impresso na alma. Portanto, trata-se de

    uma atividade da psykh, de um acionamento das diversas experincias vividas, isto , de uma

    pluralidade de experincias que deixaram marcas () impressas na psykh, como precisa Jean

    A afirmao de que a antecipao uma memria deixa clara a funo tanto da faculdade da sensibilidade, que no 30produz memria, e a operao do entendimento, que supera as sensaes e guarda na psykh as diversas experincias, ou seja, produz memria do que foi experimentado na sensibilidade.

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    Brun (1987, p. 52): uma sensao vrias vezes repetidas deixa em ns uma marca () que

    clara, evidente (), d-nos a possibilidade de preceder () a sensao em

    funo das marcas que deixaram em ns as anteriores sensaes semelhantes. So essas

    experincias guardadas que garantem a possibilidade da articulao coerente da linguagem entre

    as coisas percebidas e os conceitos ou significados empregados para designar cada coisa. Mas no

    s isso; so elas tambm garantidoras da existncia humana. Dessa forma, as diversas culturas,

    cincias e todo conhecimento humano so constitudos a partir das prolpseis e so transmitidos

    s geraes futuras. Para se verificar a correta aplicao dos conceitos s coisas, basta buscar na

    sensao sua correspondncia sensvel, e este, enquanto um significado bvio, isto , uma ideia

    primeira ( ), o que, por sua vez, como afirma Epicuro, no necessita de

    demonstrao ( ); em outras palavras, as antecipaes 31

    so evidentes ( , DL, X, 33).

    Assim sendo, deve-se rejeitar toda e qualquer correspondncia com a teoria da

    anmnesis de Plato, visto que na reminiscncia platnica h um carter dialtico-metafsico

    presente na sua concepo de psykh, a qual consegue recordar, extraindo de si mesma, apenas

    com o auxlio da sensibilidade, o verdadeiro conhecimento, isto , aquele que conforme a

    essncia eterna. A relao com os particulares, embora necessria, no o suficiente para se

    chegar ao conhecimento da forma (), segundo Plato. Ora, questiona Scrates a Smias:

    mas o que diremos das aquisies da inteligncia? O corpo ou no um obstculo, quando se

    associa com esta anlise? [...] Visto que, se estes dois sentidos [olhos e ouvidos] so inseguros,

    ento, os outros o sero ainda mais, uma vez que so inferiores a eles (Menon, 87b). Se, para

    Esse carter de obviedade da primeira ideia (prton ennema) rejeita toda e qualquer necessidade de 31demonstrao. EHe, 38.

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    Epicuro, o que h so impresses sensveis guardadas na psykh, introduzidas por intermdio do

    corpo (), em Plato, predominam os aspectos eidticos e eternos vivenciados pela psykh e

    estranhos ao corpo e de outra natureza, mas que so autorizados pela faculdade da percepo

    () na sua relao com os particulares (); isto , para Plato, trata-se de

    relacionar-se com os particulares para que haja a recordao de um conhecimento (ou formas) j

    preexistente na psykh e anterior ao corpo,

    de forma que necessrio, ou que nasamos com esse conhecimento e que os preservemos no decorrer de nossa existncia, ou que aqueles que aprendem, da mesma maneira que ocorre conosco, s lembram, e o aprendizado uma mera recordao [...] Portanto, Smias, nossas almas existem antes de que surgissem sob a forma humana, e mesmo quando no possumos corpo j tinham o conhecimento (Menon, 86a).

    Portanto, esse neologismo epicreo engendrado em sua filosofia , de certa forma, uma

    ruptura com um possvel inatismo legado posteridade pela filosofia clssica fortemente

    idealista, sobretudo a filosofia platnica marcada pela Teoria das Ideias, algo que Epicuro

    relutantemente recusa a aceitar em sua filosofia marcadamente sensista e anti-idealista. Jean-

    Franois Balaud, por exemplo, v tambm o termo prlepsis como uma resposta ao paradoxo do

    Mnon , no qual Plato introduz a hiptese da reminiscncia (Menon, 82a-86c), ou seja, quando 32

    Scrates leva o jovem escravo de Mnon a rememorar (), superando ideia

    por ideia, contedos que j antes conhecia ( , Menon, 81c); neste caso, as

    linhas e figuras do quadrado que o leva ao problema que consiste na aquisio do conhecimento.

    Embora o dilogo se inicie com o questionamento se a virtude () algo que se ensina ou

    no, o resultado do interrogatrio conclui-se da seguinte forma:

    BALAUD, Jean-Franois, in: PICURE. Lettres, maximes et sentences, 1994, p. 36. 32

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    SO. Mas se no por ter adquirido [a cincia] na vida , no evidente, a partir da, que em outro tempo as possua e as tinha aprendido? MEN. evidente. SO. E no verdade que esse tempo quando ele no era um ser humano? MEN. Sim. (Menon, 86a)

    A noo de prlepsis, portanto, evita esse modelo platnico que concebe as ideias

    existentes em si e por si ( ) ou, como bem se expressa nas palavras de Scrates,

    ou seja, que o escravo (em sua alma) as tinha quando ele no era um ser humano (

    , Menon, 86a), mas que necessitaria das sensaes para record-las com auxlio de um

    mestre que lhe faa pensar nas proposies enunciadas. Tpico da dialtica platnica. Na

    gnosiologia epicrea nada precisa ser relembrado, pois no h uma psykh que uma vez

    contemplou as ideias antes mesmo de encarnar um corpo humano. Para Epicuro, no h vida

    (psykh) fora do corpo e a morte entendida como a perda das capacidades subjetivas, ou seja,

    nas palavras do prprio Epicuro: a morte , portanto, privao das sensaes . Como visto 33

    anteriormente, tudo est dado nas experincias objetivas. Ora, o que Plato chama de anmnesis,

    isto , a rememorao das ideias antes conhecidas, Epicuro chama de prlepsis, a antecipao, ou

    seja, uma noo-imagem na psykh a partir das reincidentes experincias. Dessa forma, o contato

    com os entes particulares no pressupe uma forma eterna e imutvel, isto , um , mas sim

    representaes imagticas () destes entes particulares no entendimento, fruto da

    experincia com o mundo dado.

    Portanto, Epicuro chama de prlepsis o resultado adquirido proveniente das sensaes, e

    que se fundamenta como o conjunto das elaboraes intelectivas que o objeto do

    entendimento. As prolpseis so responsveis pelo raciocinar e pelos ajuizamentos dos entes

    EMe, 124: .33

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    confrontados na percepo sensvel, isto , afirmar que todo corpo exposto ao sol aquece

    resultado de uma relao entre diversas prolpseis: a de corpo, de sol e da ao de aquecer. Ora,

    todos esses conceitos foram uma vez experienciados, portanto, o enunciado todo corpo exposto ao

    sol aquece verdadeiro por serem todos esses conceitos advindos das recorrentes experincias.

    Tambm, pela prpria articulao da linguagem tanto dos sinais sonoros ( ) como 34

    dos visuais (). No entanto, um dado ente particular jamais poderia ser nomeado caso o

    entendimento no dispusesse da capacidade de guard-los por causa das experincias passadas.

    Sendo assim, h um trabalho concomitante entre o entendimento () e as sensaes

    (), e juntos possibilitam a apreenso real ( ) dos entes e a criao dos

    conceitos que se referem a estes entes. Portanto, isto resultado direto dos contedos

    preexistentes e impressos na psykh, ou seja, como afirma Epicuro: mediante a impresso das

    coisas externas em ns ( , EHe, 49). Esta relao

    explicitada de forma muito clara e direta por Hegel em suas Lies sobre a histria da filosofia

    (1955, v. 1, p. 383):

    Epicuro [...] sente uma metafsica acerca das relaes entre ns e os objetos, pois a sensao e a intuio so consideradas por ele em seguida como uma relao entre ns e as coisas exteriores, de tal modo que Epicuro estabelece as

    representaes em mim e os objetos fora de mim.

    Nesse sentido, diz-se da capacidade que o entendimento () tem de projetar-se,

    antecipando as sensaes por j t-las fixadas na psykh; assim, possvel falar verdadeiramente

    de algo ausente, embora presente no entendimento. possvel, por exemplo, precisar que a Tour

    , som, palavra, voz, refere-se a todo som claro e distinto, principalmente o som pronunciado pelo 34

    homem, por isso palavra.

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    Eiffel uma trelia de ferro construda nofinal do sculo XIXe localizada noChamp de Mars,

    emParis, estando em qualquer parte do mundo. Percebe-se, portanto, que a antecipao de algo

    depende tanto da receptividade passiva dos rgos sensoriais, receptores de imagens (),

    como da atividade do entendimento, caracterizado pelo que chamou Epicuro de projees do

    entendimento ( ). Epicuro afirma ainda em sua Epstola a Herdoto que

    necessrio considerar que pela penetrao em ns de qualquer coisa vinda de fora que

    vemos as formas das coisas e fazemos delas objetos de nosso entendimento . Logo, a ideia 35

    nunca precede a experincia, mas o ser humano nasce potencializado pelas faculdades da

    sensibilidade e do entendimento para adquirir, o que Epicuro chamou de as primeiras

    imagens mentais ( ) dos entes percebidos e universalizar conceitualmente tais 36

    imagens, isto , guard-las na psykh como ideias universais.

    Ora, esta prton ennema, pode-se dizer, uma primeira afetao, ou seja, antes mesmo

    de ser um conceito ou uma ideia () uma imagem-impresso () nos rgos

    dos sentidos. Vale ressaltar ainda que essas imagens-ideias, uma vez armazenadas, podem

    insurgir nas vises dos loucos e nos sonhos , muitas vezes desordenadas, mas sempre 37

    verdadeiras, pois movem () o interior. Tambm as esttuas, quadros ou

    pinturas (, EHe, 51), as obras dos artistas que imitam a realidade, so tambm frutos das

    antecipaes, pois, uma vez percebidas e guardadas no pensamento, so reproduzidas

    sensivelmente em representaes quase idnticas, como La Gioconda (Mona Lisa) de Da Vinci ou

    EHe, 49: 35

    (traduo levemente modificada). EHe, 38. Imagem mental representa bem o contedo propriamente filosfico epicreo, pois os conceitos 36

    () so, antes de tudo, imagens dos corpos externos que penetram a estrutura sensitiva convertendo-se em dados noticos, isto , conceitos ou ideias discursivas.

    DL, X, 32. ' . (Cf.: BOLLACK; LAKS, 1976, p. 30)37

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    o David de Michelangelo. Digenes Larcio, entendendo a dificuldade desse neologismo

    epicreo e suas aplicaes, muito se esforou para tornar clara a noo de prlepsis:

    Em relao prlepsis, fala-se dela como se de uma apreenso real ou uma opinio correta, ou intuio ou ideia universal residente em ns, diz-se como memria do que muitas vezes se h mostrado no exterior, como por exemplo: aquele de tal aspecto um homem. Porque enquanto se pronuncia a palavra homem imediatamente de acordo com a prolpsis a imagem deste pensada, sendo os sentidos seus introdutores prvios . 38

    Como visto, Epicuro usou o termo, mas coube a Digenes Larcio especific-lo,

    tornando-o claro e compreensvel para o grego. Da mesma forma procedeu Lucrcio vertendo-o

    para o latim. A descrio de Digenes Larcio no passo supracitado evidencia quatro formas

    terminolgicas para se referir noo de prlepsis usada por Epicuro, sendo, portanto:

    compreenso ou apreenso real (), opinio correta ( ), pensamento

    ou conceito () e ideia universal ( ). Todavia, como compreenso

    tambm uma representao evidente, uma opinio correta, diz-se de um ajuizamento pautado

    nas sensaes ou obtido por inferncia; j pensamento ou conceito e, tambm, ideia universal se

    referem, provavelmente, a uma nica noo, repetida por Digenes Larcio como um recurso

    prprio da lngua grega para enfatizar e reforar esta noo que seria, muito provavelmente, a

    que melhor abarca a noo de antecipao ().

    Discordo, portanto, de alguns comentadores como Jean Brun, Alain Gigandet e Miguel

    Spinelli, os quais entendem as quatro formas de compreenso, atribudas a Epicuro, como

    absolutamente distintas, ou seja, para eles seriam dois conceitos distintos que se referem a

    DL, X, 33: 38

    , , .

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    elementos diferenciados no mbito do entendimento. Isto porque a compreenso de conceito 39

    (), separada de ideia universal ( ), torna-se demasiada estranha ao

    sensismo epicreo, uma vez que prlepsis o resultado intelectivo proveniente das sensaes

    (independente de ser qualquer coisa acrescida pelas intervenes de Digenes Larcio) e que se

    fundamenta como o conjunto das elaboraes intelectivas que o objeto do entendimento.

    Ainda no que tange a essa descrio, Digenes Larcio afirma que tambm aquilo que

    constitui uma opinio nova depende de uma viso anterior imediatamente evidente, qual j nos

    referimos, quando, por exemplo, dizemos: como sabemos que isto um homem? . Em outras 40

    palavras, o que Digenes Larcio claramente considera nesse pargrafo que a impresso

    () homem, como qualquer outra, como, por exemplo, a figura de um cavalo e de um

    boi ( ), j havia sido conhecida mediante experincias anteriores atravs

    das projees imagticas, por isso poderia ser assim denominada e conclui, afirmativamente, que

    nada poderia ser nominado se anteriormente no fosse percebida sua impresso por

    antecipao . 41

    Por fim, Epicuro tambm trata das prolpseis relativas s divindades ( ), mas que,

    por questo de delimitao do tema, no ser abordado aqui, seno despretensiosamente.

    Destarte, para fazer jus ao que se pode investigar, vale salientar, e recorrer acertadamente ao

    fragmento de Herclito: a maioria das coisas divinas escapa ao conhecimento por falta de

    confiana e que, segundo Epicuro, se diria por falta de confirmao () dos sentidos. 42

    Um conceito () uma universalizao de ideias provenientes das sensaes, isto , ao ponto que essas ideias 39

    surgem com base nas aparies possvel nomear o que aparece ao ponto da universalizao conceitual ( ).

    DL, X, 33: , ' , 40

    DL, X, 33: ' .41 DK 22 B 86; PLUTARCO, Coriolano, 38: , , 42

    .

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    Deve-se considerar verdadeira por tambm no ser refutada pelos mesmos sentidos, ou seja, a

    evidncia dos sentidos no a contradiz ( ), logo, no se pode explicar a

    divindade com base nica no critrio da sensibilidade (), quesito necessrio para a

    fundamentao do conhecimento verdadeiro, mas apenas se admite sua evidncia pelo simples

    fato de que de alguma forma no bem explicada por Epicuro e largamente criticada por

    Ccero (De Nat. Deor. I, XXV, 71-72) essas impresses chegam estrutura sensitiva, o que

    levou Epicuro a distinguir uma (antecipao real) de uma

    (suposies falsas) (EMe, 124). Todavia, so as prolpseis derivadas das experincias, ou

    seja, das projees presentes ( ) que caracterizam o objeto fundamental da

    gnosiologia epicrea.

    1. Compreenso Imediata (Katlepsis)

    Por compreenso ou apreenso () entende-se tambm uma representao

    evidente (embora, para representao, Epicuro use ), ou imediata, uma apreenso

    assentida. Segundo Digenes Larcio, os estoicos Crsipo, Antpatro e Apolodoro definem o

    critrio da verdade como apreenso imediatamente realidade, ou seja, que procede do

    existente . No X livro de Digenes Larcio, dedicado a Epicuro, o termo katlepsis s aparece 43

    no pargrafo 33 como referncia a prlepsis. Diz-se, tambm, de uma ao de agarrar com a

    inteligncia , logo, compreenso, percepo , no sendo, portanto, para os estoicos, uma 44 45

    impresso sensvel. Esse termo fora introduzido pelo estoico Zeno de Ctio tambm como um

    DL, VII, 54: , 43

    , . : diz-se do que est ao alcance do entendimento.44

    Segundo o dicionrio Bailly Grego-Francs, action de saisir par lintelligence, conception, comprhension.45

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    termo tcnico para designar toda e qualquer apreenso da realidade com a qual o entendimento

    se relaciona. Tanto a prlepsis epicrea como a katlepsis dos estoicos fazem referncias ao de

    apreender algo, portanto, a distino entre os termos marcada pela preposio escolhida.

    indica que algo antecipado; no caso de prlepsis, o dado antecipado como conhecimento pela

    faculdade do entendimento. J , prefixo em katlepsis, indica um elemento intensivo de

    efetividade , e no apenas traduz a ideia de abaixo de, atravs de; ou seja, refere-se a uma 46

    apreenso completa e efetiva, sendo portanto e aqui marca sutilmente a distino com Epicuro

    a kataleptik phantasa o critrio de verdade para os estoicos.

    bem verdade que est posta por Digenes Larcio, ao se referir ao termo katlepsis, j

    no incio do pargrafo 33, uma clara relao entre a filosofia de Epicuro e a dos estoicos no que

    diz respeito concepo de critrio de verdade. A sensao () tem basicamente a

    mesma funo em ambas as filosofias, desdobrando-se em duas imagens distintas a imagem

    fsica [que se desprende dos corpos], o simulacro, e a imagem psquica, a representao

    (phantasa) (PESCE, 1981, p. 51). Todavia, essas rplicas () que se desprendem dos

    objetos e que reproduzem figurativamente suas cavidades () e superfcies

    (), como uma estrutura atmica objetiva, constituda somaticamente, e que

    produzem as impresses pelo impacto de um corpo sobre a sensibilidade, este impacto refletido

    pelo entendimento e transformado em uma noo mais geral, um conceito derivado da

    sensibilidade, ou seja, uma representao (); assim explica, portanto, Digenes Larcio

    no livro VII de sua obra dedicado aos filsofos estoicos:

    Cf. VINE; UNGER; WHITE, 2003, p. 392.46

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    A apresentao (ou impresso mental) uma impresso na alma, e tirou-se o seu nome adequadamente da marca feita por um sinete na cera. H duas espcies de apresentao; uma apreende imediatamente a realidade, e a outra apreende a realidade com pouca ou nenhuma nitidez (DL, VII, 45, 46).

    Todavia, a noo de katlepsis parece ser de menos importncia para Epicuro. Na

    verdade, esse termo utilizado por Digenes Larcio apenas em relao aos epicuristas e no

    acrescenta em nada ao uso do termo na filosofia epicrea propriamente. Defender-se- aqui,

    portanto, que a utilizao desse termo por parte de Digenes Larcio tem o mero intuito

    comparativo, ou seja, ele pretende explicitar e tornar claro um novo termo, como tambm

    marcar uma relao distinta entre o trato dos epicuristas e dos estoicos em relao a tudo aquilo

    que, derivando-se das sensaes, capaz de ser objeto do entendimento, sendo, portanto, parte

    explicativa da frase e contribuindo, assim, com alguma coisa o raciocnio . Como contribui o 47

    raciocnio () dentro dessa perspectiva sensista? Tendo em vista que o significado mais

    expansivo do termo logisms ato ou operao do pensamento por meio da psykh , a esta 48

    pergunta responde Digenes Larcio introduzindo a noo de prlepsis; ou seja, aquilo que o

    entendimento opera, manipulando os dados sensveis, tem como resultado as noes gerais que

    so obtenes por meio do logisms, o que chega a afirmar Figueira:

    O logisms, ou clculo, raciocnio, ou ainda mecanismo ou instrumento do pensar , para Epicuro, o que torna possvel a elaborao do pensamento (dinoia). tambm o que possibilita as analogias que conduzem o pensamento desde as impresses sensveis s elaboraes de explicaes sobre tudo o que no percebido pelos sentidos. (FIGUEIRA, 2012, p. 118)

    DL, X, 32: . (Traduo nossa).47

    Cf. FIGUEIRA, 2013, pp. 72-74. Nessa perspectiva, Figueira ainda acrescenta que enquanto uma operao da 48alma tem a finalidade de, na medida do possvel, livr-la do erro e do engano nos julgamentos e opinies que ele venha a manifestar, o que, em certa medida, justifica cham-lo o instrumento da parte racional da psykh (logisms).

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  • Marcos Roberto Damsio da Silva A prlepsis de Epicuro e seus significados

    Reconhecendo a insuficincia do tratamento dado por Epicuro ao termo katlepsis,

    como tambm a falta de interesse por grande parte dos diversos comentadores da filosofia de

    Epicuro, vale afirmar que o prprio Epicuro recusa a utilizao do termo katlepsis e prefere

    forjar seu prprio conceito, este, por sua vez, mais significativo e carregado de um carter

    discursivo que garante ao pensamento no apenas agarrar, isto , apreender, mas tambm

    comunicar-se. Todavia, a prlepsis epicrea no apenas d incio, mas constitui o universo da

    linguagem numa esfera natural, rompendo com a proposta platnico-transcendentalista. Ora,

    Epicuro um pensador da imanncia e seus conceitos so mundanos.

    2. Opinio Correta (Dxa Orth)

    Enquanto uma opinio correta ( ), segunda definio do conceito de

    prlepsis fornecida por Digenes Larcio, deve-se, antes de tudo, estar pautada numa opinio

    preenchida (pela sensibilidade) e nunca numa opinio vazia ( , EPi, 87). Essa

    distino o que pe a sensibilidade como critrio primeiro para verificao dos enunciados,

    que podem ser verdadeiros ou falsos, nunca admitidos juntos, verdadeiro e falso ao mesmo

    tempo. Numa relao entre verdade ou falsidade, tambm Aristteles admite que ambas no

    podem subsistir ( ) juntas, afinal, toda afirmao verdadeira ou falsa (Da

    Interpretao, IX, 35) necessariamente. Epicuro trata no de enunciado () ou afirmao

    (), mas sim de opinio (), na mesma perspectiva, sempre como verdadeira

    () ou falsa () e introduz a confirmao () e a contradio

    () dos sentidos como evidncia:

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    Os epicuristas chamam tambm a opinio de suposio, e distinguem a opinio verdadeira da falsa; a opinio verdadeira se a evidncia dos sentidos a confirma ou no a contradiz; falsa se a evidncia dos sentidos no a confirma ou a contradiz . 49

    Esta segunda descrio de Digenes Larcio acerca do conceito de prlepsis trata,

    portanto, de um ajuizamento seguro, de uma maneira de dizer o mundo como quando se diz

    para citar Digenes Larcio isto aqui um homem ou aquilo que est distante um cavalo

    ou um boi . Logo, dizer que algo () ou no ( ), ou seja, corresponde ou no 50

    realidade sensvel, diz respeito confirmao dos sentidos. Da segue que s possivelmente

    legtima a traduo de Ccero de prlepsis para prenoo (praenotio, De Nat. Deor. I, XVI, 44)

    caso se leve em considerao que nesta notio esteja contida, necessariamente, a noo de uma

    ideia antecipada, conectando-a ideia de antecipao (antecipatio), que parece ser o mais

    apropriado, tendo em vista o problema gnosiolgico como um todo, partindo da sensibilidade e

    chegando a seu tlos, que o entendimento. Essas ideias de homem ou cavalo ou boi so

    antecipadas na psykh por intermdio das sensaes, que ajuzam os objetos da percepo atravs

    dos raciocnios (), reconhecendo, portanto, que todas as nossas reflexes tm sua

    origem nas sensaes , e so constitudas como uma ideia primeira ( ). 51 52

    Fala-se de um juzo () em dois sentidos. No primeiro, um juzo interno, um para-

    si, isto , quando se toma conscincia do que percebido e, imediatamente, formula-se uma

    noo conceitual (), ainda estando circunscrito a um exame, dado na relao psykh/

    DL, X, 34: , 49

    , , . .

    DL, X, 33: . (Traduo levemente modificada) 50

    DL, X, 32: .51 , no sentido de uma ideia bvia, como expressa Bollack: Cest pas lide qui se presente em 52

    premier, lide obvie.

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    asthesis. No segundo sentido, trata-se do contedo externado a partir do que pensado, uma

    emisso descritiva de um dado contedo, que mais se assemelha noo de krsis . Nas palavras 53

    de Miguel Spinelli, trata-se de um julgamento, das opinies j formadas a partir de noes

    (ennoas) derivadas do projetar-se mente de imagens (phantastikn epiboln) sorvidas no sensvel

    (SPINELLI, 2013, p. 144). Todavia, e isto importante frisar, da ordem do proferir que nasce

    o erro, ou o juzo incorreto. A natureza do falso () e do erro () se

    origina, na perspectiva de Epicuro, mediante uma opinio (), ainda

    enquanto o primeiro impulso da articulao das imagens, no mbito da dxa, afirma ele: o falso

    [juzo] e o erro encontram-se no que colocado pela opinio . Tal afirmao retira da estrita 54

    sensao a possibilidade do engano, pois no h erro no sentir nem a faculdade sensitiva produz

    erros, mas apenas na emisso de juzos sobre o que sentido.

    Como prlepsis, dxa orth diz respeito a uma opinio interna que pode ou no se

    externar mediante um discurso () ou uma opinio (), mas que reproduz,

    necessariamente, uma retido, textualmente expressa pelo uso do adjetivo orth, que indica uma

    justeza entre o ente percebido e o ser dotado de percepo, o homem. correta ()

    tambm, uma opinio por j ter passado pelo critrio da sensibilidade (), o qual

    sempre verdadeiro, tornando-se, todavia, um contedo notico que no recorre a uma idealidade

    pura, mas que antecede a experincia possvel, aparentemente respondendo tanto a Plato, que

    postula a anamnese na teoria da das ideias, num quadro mtico, como a Aristteles no que diz

    respeito s definies lgicas. A soluo de Epicuro para ambos os problemas que perpassam seu

    , deciso, juzo, sentena. Fala-se tambm de uma faculdade de separar ou discernir. Cf. ISIDRO, Pereira, 53S. J. Dicionrio Grego-Portugus e Portugus-Grego. aparece uma nica vez nos texto de Epicuro, Mxima Capital XXIV, 147. ... pois conservars toda forma de desacordo em todo juzo [krsis] sobre o que correto ou o que incorreto.

    EHe, 50: . (Traduo levemente modificada). 54

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    tempo afirmar que nada antecede o que da ordem da sensibilidade, logo, no h

    conhecimento adquirido pela psykh antes das experincias mundanas, como tambm as coisa

    no so por si mesmas, mas, necessariamente, tiveram um incio, e este a experincia.

    3. Conceito (nnoia) ou Ideia Universal (Katholik Nesis)

    Sem incorrer no que chamou Miguel Spinelli de reducionismo de alguns

    comentadores , por registrar ou enfatizar apenas um significado e no trs ou quatro noo de 55

    prlepsis, julgar-se- aqui a noo de katholik nesis associada ao de nnoia, termo que melhor

    explica o conceito de prlepsis. Tal concepo pode ser definida como delimitativa e no

    reducionista, pois intenta delimitar e cr-se que exatamente isso que faz Digenes Larcio ao

    tentar definir prlepsis com todos aqueles substantivos um conceito ainda desconhecido pelos

    filsofos de ento . Isso tambm evidencia a compreenso unitria entre pensamento ou 56

    conceito () e ideia universal ( ). A concluso a qual chega Digenes

    Larcio de que se trata, em ltima anlise, de uma recordao de algo que frequentemente se

    mostra de fora , e com isto parece que todos os comentadores concordam, como o prprio 57

    Spinelli reconhece: todos tambm esto de acordo de que se trata de rememorao organizada a

    partir do sensvel ou derivada do acmulo de percepes a respeito de uma mesma

    coisa (SPINELLI, 2013, p. 242).

    SPINELLI, 2013, p. 240. Dentre renomados comentadores, destacam-se Lon Robin, Farrington, Cyril Bailey, 55

    Jean Balaud e Andr Laks. Entendemos que Digenes Larcio se utiliza de todos esses termos explicativos para fornecer um sentido mais 56

    prximo do termo prlepsis. Seria impossvel compreender esse termo sem o auxlio de outros termos j utilizados e consolidados na tradio filosfica grega.

    DL, X, 33: . (Traduo nossa).57

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    Como ideia universal ( ), as antecipaes opem-se a uma ideia

    particular ( ). No devem nunca ser pensadas como conhecimentos

    inatos (innatas cognitiones), como traduziu Ccero. preciso entender que ideia universal

    tambm no significa ideia eterna. universal porque o conjunto das particularizaes. Essa

    vinculao situa-se na esfera da relao sujeito/objeto, sendo, na viso de Hegel, por exemplo,

    situada num proceder metafsico aos moldes da filosofia clssica o que no novidade , em

    que os objetos so tomados como os elementos do mundo fora do intelecto de tal modo que

    Epicuro estabelece as representaes em mim e os objetos fora de mim (HEGEL, 1955, p. 383).

    Todavia, um dado ente no mundo nomeado () pela concomitncia com o

    mundo j dado e do sujeito apto que opera as relaes mltiplas entre os entes do mundo e suas

    relaes, situando assim Epicuro na galeria dos filsofos da ontologia tradicional . Alm de 58

    Hegel, Kant tambm falou das antecipaes epicreas ao tratar dos seus a priori, resguardando

    noo de asthesis as formas puras da sensibilidade, ou seja, aquilo que no pode ser objeto do

    conhecimento, mas o que possibilita todo o conhecimento objetivo:

    Pode chamar-se antecipao a todo o conhecimento pelo qual posso conhecer e determinar a priori o que pertence ao conhecimento emprico e , sem dvida, com esta significao que Epicuro usava a palavra [...] segue-se que a sensao , propriamente, o que na verdade nunca pode ser antecipado (KANT, 1989, p. 202).

    Dito de outra forma, tudo pode ser antecipado pelo entendimento, ou seja, depositado

    na psykh e solicitado sempre que necessrio. Em outras palavras, ser feito um conhecimento

    objetivo a exemplo do homem, do cavalo e do boi, assim tambm como qualquer dado que afete

    essa estrutura somtica perceptiva ( ), mas essa estrutura, o corpo humano por

    Cf.: EHe, 75 e LUCRCIO, De Rer. Nat., V, 1041 et seq.58

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    excelncia, aos moldes dos a priori kantianos espao e tempo , no pode ser antecipada pelo

    entendimento, restando sensao em ato atestar sua existncia. O que isso significa para teoria

    epicrea da prlepsis que tudo percebido, mas o que a tudo percebe no percebido por ele

    mesmo nem por nenhuma outra estrutura, podendo ser apenas pensado. Logo, o conceito de

    asthesis ganha uma roupagem tambm metafsica, pois possvel falar dessa estrutura e lhe

    conferir existncia absoluta sem que ela mesma seja confirmada por aquilo que critrio

    garantidor da verdade possvel, isto , ela mesma: a asthesis . 59

    O lugar das prolpseis relativas divindade ( ) situa-se, mais precisamente, como

    uma ideia universal, no uma ideia adquirida da mesma forma como se adquirem as ideias de

    quente, doce, forte ou at mesmo belo ou bom, mas porque de alguma forma essas impresses

    ou essas imagens () chegaram at o aparato sensitivo, que na concepo epicrea faz a

    ligao do conhecimento entre os corpos externos e os seres humanos. com base nesda

    compreenso, antes de tudo onto-gnosiolgica, que Ccero afirma que h em Epicuro a crena

    de que os deuses existem, explicando por que a natureza imprimiu em todas as almas a noo

    deles [os deuses] . Aqui, natureza () pode ser entendida como o que real (). Todavia, 60

    essa ideia de divindade to forte no pensamento de Epicuro, que dela derivam duas predicaes

    inobservveis pela escassez textual, mas que Epicuro chega a afirmar, portanto, que os deuses

    Esse argumento acaba caindo numa circularidade, mas vale salientar que Epicuro no pretende em nenhum 59momento de sua exposio validar o critrio da asthesis como demonstraes racionais plausveis, recorrendo a uma nica explicao, a da sensao enquanto ato de sentir, isto , a verdade das sensaes [aisthseon altheia] garantida pela existncia efetiva das percepes imediatas [epaisthmata] (DL, X, 32). Logo, a asthesis uma estrutura fsico-somtica que se reveste de uma metafsica inerente, semelhana do motor imvel de Aristteles, do cogito cartesiano e dos a priori kantianos.

    CCERO, De Nat. Deor., I, XVI, 43. EMe, 123: ... de acordo com a noo da divindade impressa em ns pela 60

    natureza.

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    existem, e evidente o conhecimento deles ; a saber, a afirmao de que a divindade 61

    incorruptvel e feliz ( , EMe, 123). Afirmar que de alguma forma a

    divindade afeta o ser humano isto numa filosofia que reduz tudo a corpos e vazio admitir

    corporeidade a estes seres divinos, e isso caracteriza uma verdade, pois passa pelo critrio da 62

    prlepsis, como tambm a possibilidade de se referir a estes seres sem incorrer em suposies

    falsas ( ). 63

    Destarte, essa afirmao liga Epicuro a Parmnides, pois se ser e pensar deve

    necessariamente ser o mesmo, como expressa Parmnides no fragmento 3: portanto, o mesmo

    pensar e ser , logo, a afirmao de que os deuses existem ( ), na perspectiva 64

    epicrea, faz jus postulao parmendica da relao de identidade ( [...] )

    entre ser () e pensar (). Dito de outra forma, o entendimento capta as imagens dos

    deuses e os faz objeto de pensamento porque, na realidade, eles existem e suas emanaes

    () chegam no faculdade da sensibilidade, mas, como diz Veleio, o epicurista do

    Livro I do De Natura Deorum de Ccero: provm de suas imagens que impressionam no nossos

    olhos, como os objetos que observamos de ordinrio, mas diretamente nosso esprito (I, 49).

    A noo de prlepsis inaugura um conhecimento gnosiolgico que toma a inferncia

    pela semelhana e pelas reincidncias factuais, que acaba por superar as reivindicaes da

    EMe, 123: . Traduo nossa por descordar de Mrcio da 61Gama Kury quando traduz por manifesto.

    Cf. DONS, 2007, p. 183: Luego los dioses existen y tienen um cuerpo, aunque ste sea de naturaleza tan sutil que no 62puede afectar a nuestros sentidos, sino a nuestra mente.

    Isto , operaes desnecessrias da psykh e retiradas de valores no naturais, ou seja, que no levam em conta o 63critrio da senso-percepo. Da a importncia da Cannica epicuria para estabelecer critrios vlidos para essas operaes. Vale salientar que suposies falsas ( ) marcam oposio com o conceito de prlepsis, o que est claro no passo124 da Epstola a Meneceu.

    . D/K. Fr. 3. (Traduo nossa). Concordamos com a proposta de traduo 64

    de Gabriel Trindade: [...] pois o mesmo pensar e ser.

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    autonomia do indivduo pelas filosofias idealistas. Por outro lado, refora tambm uma relao

    com o velho atomismo democrteo, abrindo espao para uma atuao do entendimento

    () que, operando juntamente com a sensibilidade, possibilita definies e significaes a

    partir dos entes manifestos no devemos fazer indagaes sobre a natureza de acordo com

    axiomas vos e leis arbitrrias, e sim de acordo com o desafio dos prprios fenmenos (EPi, 87)

    , marcando, todavia, uma recusa dialtica e aos arranjos proposicionais desnecessrios fsica

    epicrea, motivo que levou Ccero a censur-la (De Finibus, passim), pois via nessa recusa da

    dialtica um conhecimento fundado na simples compreenso da linguagem

    ordinria (GIGANDET & MOREL, 2009, p. 111).

    Por fim, uma elaborao acerca das prolpseis , sem sombra de dvidas, um significativo

    ganho gnosiolgico no pensamento filosfico de Epicuro, o qual no o restringe a um mero

    empirista no sentido moderno do termo. Alm de ela articular um salto da sensibilidade, ela

    tambm insere a discusso na esfera da linguagem e acaba por permear todas as esferas de sua

    filosofia. Nas palavras de Alain Gigandet referente prlepis epicrea: a prolepse introduz

    determinaes gerais e, em suma, essncias, aquelas, por exemplo, que permitem identificar o

    homem, o boi ou o cavalo, mas tambm, em fsica, definir a corporeidade como tal ou, em tica,

    a natureza verdadeira do prazer (GIGANDET & MOREL, 2009, p. 105). O conceito de

    prlepsis cumpre perfeitamente sua funo como um critrio cannico, o que se demonstra

    claramente nas palavras supracitadas de Alain Gigandet, que dar o suporte necessrio para

    reas afins do conhecimento, pois se percebe e isso evidente na obra de Epicuro que sem as

    prolpseis no se passaria da simples observao elaboraes mais sofisticadas a nvel do

    entendimento, nem to pouco a linguagem seria articulvel ordenadamente. Seria o homem,

    portanto, semelhante aos animais, emitindo apenas sons desordenados, semelhantes aos

    grunhidos ou balbucios.

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    Consideraes finais

    Fica evidente, portanto, que o uso do termo prlepsis (), embora em sua

    grande maioria no Livro X, usado por Digenes Larcio seis vezes (uma vez em 31 e 5 vezes

    em 33), e no pelo prprio Epicuro, que o utiliza quatro vezes (72, 124, 152 e 153), est presente

    e de acordo com as trs partes de sua filosofia, a cannica, a fsica e a tica. Suas explicaes

    marcam, alm de uma distino com outras filosofias contemporneas a Epicuro, uma definio

    precisa com um significado prprio, isto , no se trata de uma recordao, lembrana ou

    memria, mas sim um sinal no entendimento () de algo que nos aparece ()

    muitas vezes () vindo de fora (). Esta definio une todos aqueles conceitos

    usados por Digenes Larcio no pargrafo 33, ou seja, a representao conceitual de um ente

    externo-fsico.

    Portanto, na reflexo epicrea sobre as pro lpse i s , tanto os corpos

    compostos () ou slidos () quanto o entendimento e a psykh,

    relacionam-se apenas com o que lhes comum, ou seja, de mesma constituio atmica. A

    psykh s se relaciona com as imagens projetadas dos corpos externos, compostas da mesma

    natureza, isto , de tomos finssimos (). O entendimento, na posse dos dados

    sensveis, opera o pensamento () e produz o conhecimento terico ( ) e a 65

    sabedoria prtica ( ). J o corpo enquanto os rgos dos sentidos ( ), ou 66

    a faculdade da sensibilidade (), relaciona-se com os entes compostos, ou seja, com

    aglomerado atmico (), tambm da mesma natureza. Em outras palavras, enquanto a

    faculdade da sensibilidade apenas permite a introjeo das imagens em seus poros, no os

    Este termo est ausente na obra de Epicuro.65

    Segundo Epicuro na Epstola a Meneceu 132, O princpio de tudo isso e o maior bem a sabedoria; 66

    consequentemente, a possesso mais preciosa da prpria filosofia a sabedoria ( ).

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    refletindo por ser inabilitada para tal funo e por sua dessemelhana, a psykh, por sua vez,

    opera as informaes recebidas via sensao, fazendo das substncias de natureza imperceptvel

    () objeto da reflexo (). Portanto, desse reflexionar sobre os particulares que

    surgem as prolpseis, contedos inteligveis e discursivos.

    A prlepsis , portanto, para Epicuro, aquela ideia primeira apreendida e universalizada

    conceitualmente mediante a capacidade da psykh. Ora, isso que se converte em puro

    pensamento e que no pode ser confundido com uma mera opinio nem uma opinio vazia ,

    portanto, melhor definido como uma correta opinio ( ), ou seja, fora confirmado

    pelo critrio da sensao. A ao de antecipar () a forma () ou a

    figura () de qualquer coisa antes percebida se d de maneira natural, prpria da

    cognio humana. Os homens no necessitam de uma maiutica nem da dialtica, de um filsofo

    que os ajude a dar a luz s ideias; eles precisam to-somente investigar a natureza e, entendendo

    sua constituio elementar, harmoniz-los com os fenmenos (

    , EPi, 86).

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