da competÊncia da psychÉ para a ‘criteriologia’:...
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REVISTA REFLEXES, FORTALEZA-CE - Ano 5, N 9 - Julho a Dezembro de 2016
ISSN 2238-6408
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DA COMPETNCIA DA PSYCH PARA A CRITERIOLOGIA: SENSO-
PERCEPO (ASTHESIS) E O PROBLEMA DO ERRO EM EPICURO
Marcos Roberto Damsio da Silva1
Resumo: O objetivo deste artigo elucidar a competncia da psyche sua relao com as
senso-percepes [] e com o entendimento [] na aquisio do conhecimento,
especificamente na criteriologia,onde Epicuroexpe a fundamentao do conhecimento
seguro, isto , a cincia do critrio de verdade.Para Epicuro apsych exerce a funo mais
importante no processo do conhecimento, aquela de traduzir os dados advindos de
fora[] tornando-os realidades discursivas. Uma vez compreendido o lugar da psych
e a inalienabilidade das senso-percepes, perguntar-se- pelo lugar doerro
[]em sua gnosiologia, uma vez que as senso-percepes so irrefutveis.
Palavras-chave:Psych, criteriologia, sens-percepo, erro, Epicuro.
Abstract:Theaim of this paperis to clarifythe expertise of thepsych and its relation
tosenseperceptions [] and with the understanding [] in the acquisition of
knowledge, specifically incriteriologywhereEpicurusexposesthe reasoning ofcertain
safeknowledge, in this case the "scienceof thecriterion of truth." In the point of view of
Epicurusthepsychplaysthe most importantrole inthe process of knowledge, that of'translate'
the data fromthe'outside'[] making themdiscursiverealities. Once we understandthe
place of thepsychandtheinalienabilityofsenseperceptions, it will beaskedfor thepinpoint of
the error[] in hisgnosiology, since thesenseperceptions are irrefutable.
Keywords:Psych, criteriology, sense-perception, error, Epicurus.
1 Doutorando em filosofia pelo Programa de Ps-Graduao em filosofia da UFMG. E-mail:
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Por criteriologia2, na filosofia de Epicuro, entende-se a compreenso sistemtica
do conjunto de fundamentos que do suporte tanto aos ajuizamentos seguros, numa esfera
gnosiolgica, como tambm s reflexes sobre os modos de vida3, campo da tica, ou
mais precisamente como se opta traduzir aqui, da sabedoria4. Foi a isto, que chamou
Epicurode critrios da verdade []. Estes critrios situam-se na primeira
parte da trplice diviso da filosofia de Epicuro, descrita por Digenes Larcio como
Cannica [], a qual denominam os epicuristas de cincia do critrio de verdade e
do primeiro princpio, e tambm doutrina elementar(DL, X, 315). Diviso esta, segundo
Farrington, comum no perodo helenista: as escolas antigas, de hbito, reconhecem trs
partes da filosofia, a racional, a natural e a moral (FARRINGTON, 1968. p. 111).
Na esfera prpria do conhecimento, Epicuro empreende um procedimento
filosfico necessrio para a articulao de uma nova proposta gnosiolgica e que configura
um perodo histrico-filosfico. Este perodo, denominado de helenstico, tm em vista a
centralidade da senso-percepo [] como ponto de partida para se considerar a
natureza do real (). A forma como a psych6 encarada, tambm marca uma distino
considervel em relao ao perodo clssica. Esta discusso se estabelece a partir do
naturalismo ds filsofos pr-socrticos na tentativa de superar um idealismo vigente que
submete a senso-percepo simples competncia de percepo do mundo, ou seja,
necessria para formulao do conhecimento, mas secundria, pois, pensando com Plato,
quando da arguio ao escravo de Mnon, ele assevera: [...] se sempre teve [a cincia que
tem agora], ele sempre foi algum que sabe (PLATO, Mnon, 85d), tendo na sensibilidade,
portanto, a ao de rememorar[] o que j existia na psychapriori.
2 Termo tomado de Miguel Spinelli em: Epicuro e as bases do epicurismo, 2013, passim, o qual julga-se,
aqui, a melhor concepo dos critrios da verdade. 3BOLLACK, Jean; LAKS, Andr. (ed). EtudessurlEpicurismeantique. Cahiers de Philologie. Publications
de lUniversit de Lille III. 1977. pp. 26-27. Opta-se pela traduo de Andr Laks onde '
melhor de traduz por: on y trouvelesrflexionssurlesmodes de vie que tratada das
concepes da vida humana(DL, X, 29), como traduziu Mrio da Gama Cury, pois vida humana que modos
de vida, esta segunda, apontando claramente para uma concepo tica da vida. Tambm antes e depois da EMe
Digenes Larcio usa a expresso , 117 e 135, 4 Quando Digenes Larcio se refere epstola endereada a Herdoto ele diz sobre a fsica
[]; quando se refere epstola endereada a Ptocles sobre as coisas suspensas no ar
[], numa referncia aos fenmenos celestes; mas quando se refere a terceira epstola, escrita a
Meneceu escreve apenas sobre os modos de vida [ ], no fazendo referncia ao termo no
sentido estrito do termo, visto que a tica para Epicuro mais se assemelha a uma sabedoria enquanto,
uma sabedoria prtica e no sistemtica. Digenes Larcio cita uma obra de Digenes de Tarsos intitulada:
Eptome da doutrina tica de Epicuro [ ], onde usa o termo. 5 Doravante a obra de Digenes Larcio ser abreviada para DL; a Epstola a Herdoto para EHe; Epstola a
Ptocles para EPi; Epstola a Meneceu para EMe. 6Opta-se pela transliterao de (psych) e nunca traduzir por alma.
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Para Epicuro, portanto, esta competncia []das senso-percepes no se
restringe apenas percepo do mundo, sendo este, apenas o primeiro e natural movimento
prprio da o que no caso de Plato limita-se a ajudar a rememorar algo j existente
na psych mas tambm confirmao [] desta percepo num segundo
movimento (Cf. DL, X, 34), onde participa apsych, ou seja, onde ela, de posse do dado
sensvel e j transformado em afeces [] retorna senso-percepo enquanto uma
representao [] carente de confirmao, isto , carente de uma prova ou um
testemunho positivo. a psych, portanto, a responsvel natural pelo gerenciamento do
conhecimento que parte sempre da senso-percepo (de forma direta ou via analogia) e
encontra no entendimento [] sua formulao ltima e necessria.
Antes de qualquer afirmao acerca da natureza da psych, faz-se importante,
tomando como pressuposto a compreenso de que ela um complexo corpreo [EHe, 63:
] no devendo confundir com a noo platnica de somatoeidea, nem to
pouco como imagina Homero, descrevendo-a como uma sombra [] que sai voando
como um morcego para o Hades (HOMERO, 2001. 22. 467), tornando-se visvel e bebendo
sangue, numa clara atribuio fsica (ROBINSON, 2010. p. 17), para Epicuro impossvel
atribuies comportamentais humanas para a psych sem a unio com o corpo, alis, para os
atomistas de um modo geral a psych no existe fora do corpo. Ela formada integralmente
de tomos (corpos) e vazio [ ], um agregado atmico diferenciado dos
outros corpos sensveis, constituda de partculas sutis, dispersa por todo o organismo [EHe,
63: ], logo, na perspectiva de Epicuro, composta de tomos
lisos e arredondados [EHe, 66:
7]. tambm de
natureza imperceptvel, isto , , no entanto, no da mesma ordem de
imperceptibilidade que os princpios8[] constituintes de toda , pois embora
tambm seja (invisvel) no de natureza simples nem imorredoura [] como
o tomo. A bivalncia da natureza dapsych composta e no perceptvel o que a pe
como participante direta tanto das senso-percepes como do entendimento.
7Aqui, acentua-se a distino entre a natureza da e a natureza do , embora sejam ambas as
naturezas agregados atmicos (). 8 Faz-se distino entre imperceptveis de primeira e segunda ordem. Os de primeira ordem so aqueles
imperceptveis-no-compostos, os tomos e o vazio; j os de segunda ordem so imperceptveis-compostos, a
psych e as imagens.
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Todavia, embora no seja comum pensar a noo de psych inserida no estudo dos
critrios da verdade (criteriologia), e mais precisamente como parte inerente da senso-
percepo [], primeiro critrio de verdade, vale salientar que a psych o eixo central
de toda operacionalidade do sujeito9 detentor do, possibilitando assim os outros
critrios, as antecipaes e as afeces, frutos diretos da relao com o entendimento,
levando-a a uma segunda concepo, isto , alm de corprea, detentora da faculdade do
sentir, tambm uma faculdade intelectiva: tudo isto evidenciado pela faculdade da
psych [EHe, 63: ], ou seja, tem uma competncia
racional que a caracteriza e que pe a diferena entre o homem [] e os outros seres
da natureza [], aproximando assim, Epicuro de Aristteles no que diz respeito natureza
humana.
na Epstola a Herdoto, nos passos 63 a 68 onde Epicurodiscute
especificamente a natureza da psych. Estes passos encontram-se repletos desta relao de
mtua dependncia entre a e o , ou entre sentir e pensar, levando a compreenso
necessria que a , enquanto faculdade propriamente o aparato sensitivo na
dependncia da composio atmica da psych imiscuda no corpo [] como um todo,
reservando psych uma importncia sem precedentespara a percepo sensvel. A
implicao disso que nenhum dos cinco sentidos sentem sem a psych, logo, sentir no
se restringe ao choque ou a impresso, mas o que isto resulta ajuizado ou traduzido pela
psych:
Tampouco a alma [psych] jamais teria sensao se no fosse de certo modo contida no resto do organismo. Mas, todo o resto do organismo, ao fornecer
alma a causa da sensao, participa tambm dessa propriedade que atinge a
alma, embora no participe de todas as faculdades da alma. Por isso, com a perda da alma o organismo perde tambm a faculdade de sentir. De fato, o
corpo no possua em si mesmo tal faculdade, que lhe era suprida por
alguma outra coisa, congenitamente afim a ela, ou seja, a alma, que com a
realizao de sua potencialidade determinada pelo movimento, produz imediatamente por si mesma a faculdade da sensao e torna participante o
organismo, ao qual, como j dissemos, est ligada por uma estreita relao
de vizinhana e consenso (EHe, 64).
Todavia, neste particular que se refere relao do corpo dentro do processo
cognitivo, Epicuro se mantm muito prximo tambm a Plato. Para este a alma se serve do
9Sujeito no sentido de atividade racional ou o ser que detm uma faculdade para entender e atuar sobre o
mundo. um termo sem correlato e estranho ao universo grego. Procurei us-lo de forma descartvel, e sempre
que aparecer no corpo do texto exerce esta funo meramente didtica.
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corpo [PLATO, Fdon. 79c: , ], isto , das senso-
percepes, atravs da viso, da audio [Idem: ], para se
relacionar com os particulares [], e afirma: de fato, a investigao atravs do corpo
quer dizer investigao atravs dos sentidos [Idem: ,
].Em ltima instncia, portanto, a funo do corpo no processo
cognitivo perceber os particulares pelos sentidos, e num segundo momento, para Epicuro,
ajuiz-los depois de confirmados. A afirmao de que a senso-percepo a estrutura que
torna possvel a relao com os particulares, tambm aproxima Epicuro do pensamento de
Aristteles.
No tocante a Aristteles, ele afirma no incio do livro da Metafsica que a
experincia o conhecimento dos particulares, enquanto a arte o conhecimento dos
universais [ARISTOTELES. Metafsica, A 1. 981a 16-17:
], e que tanto o homem quanto os animais compartilham
dassenso-percepes, pontuando uma distino fundamentalmente necessria, isto , enquanto
os animais se contentam com imagens sensveis [] e com as recordaes
[], unicamente ao homem, que ama as sensaes [], pertencem a
tcnica e os raciocnios [ ] prprios na psych humana. Assim afirma
Aristteles:
demais, consideramos que nenhuma das sensaes seja sapincia. De fato,
se as sensaes so, por excelncia, os instrumentos de conhecimento dos
particulares, entretanto, no nos dizem o porqu de nada: no dizem, por exemplo, por que o fogo quente, apenas assinalam o fato de ele ser quente.
(ARISTOTELES, Op. Cit., 981b 10-15)
Epicuro, semelhana de Plato e Aristteles, tambm divide a psych em trs
partes: a primeira no nominada (akatonmaston)10
por ele, composta de partculas muito
sutis [], bem mais sutis que as que compem o restante do corpo composto [
], o que a coloca em um contato mais ntimo [] com o resto do
organismo (EHe, 63); a segunda parte da phych por ele descrita como no-discursiva
[], a qual encontra-se espalhada por todo o corpo operando na imediatidade do sentir; e
uma terceira, a parte discursiva [], ou racional a qual est situada no centro do peito
[EHe, 66: ], indicando, todavia, que da ordem do discurso e detm
10Vale salientar que esta terceira parte [] da psych no nominada por Epicuro e no que ela
fora predicada de sem nome como alguns costumam indicar.
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as prerrogativas para emisso de juzos, assim acrescenta Epicuro: como podemos perceber
claramente em nossos temores e em nossas alegrias (EHe, 66).
Sendo assim, Epicuro conclui que perceber e ajuizar um corpo externo so
competncias da mtua atividade entre ae o, onde unidas compem a senso-
percepo11
. Esta trplice diviso da psych segundo Epicuro12
tambm ratificada mais tarde
pelo seu seguidor latino Tito Lucrcio Caro: [...] e este est colocado na regio mdia do
peito [...] aqui, portanto, esto o pensamento e o esprito. A outra parte, a alma, disseminada
por todo o corpo, obedece e move-se segundo a vontade e a impulso do esprito (DRN, III,
140-145).Para Lucrcio, o homem divide-se em trs partes, corpo, alma e esprito, diviso
esta no encontrada textualmente em Epicuro, pois no h distino entre alma e esprito. O
corpo (corpora) cede objetiva da sensao; a alma (anima), dispersa por todo o corpo, ligada
diretamente senso-percepo; e o esprito (animus), pensamento ou mente, o qual encontra-
se no meio do peito.
Destarte, a importncia da psych na gnosiologiaepicrea vai alm de sua relao
com assenso-percepes, desdobrando-se numa relao direta com o entendimento [],
relao esta mais refinada e, sobretudo o que constri os ordenamentos para alm da esfera
fsico-natural, a saber, as relaes humanas, como linguagem, poltica, cincia, cultura, etc. Se
na operacionalidade junto senso-percepoparte da psych limita-se competncia de sentir,
isto , por ser e no produzir discurso, pois no participa da memria [DL, X, 31:
], quando atua junto com o entendimento
detm outra competncia, a de emitir juzos sobre o que sente, ou seja, por ser tem a
prerrogativa de julgar os dados da percepo sensvel e diz o mundo munida com os critrios
da verdade, a saber:as sensaes, as antecipaes e as afeces [DL, 31:
] armazenados no entendimento.
Todavia, com os dados guardados em si mediante a reincidentes percepes
sensveis, a saber, as antecipaes []do entendimento ou as ideias universais
[], que a psychopera a partir das experincias e as externam por meio da
11 Denomino aqui esta atividade de participao, onde os tomos da psych espalhados por todo organismo
participa do conhecimento, neste primeiro momento, ainda um sentir desajuizado, mas que s possvel
porque a psych participa. Para uma ilustrao modernizada, uma vez que a composta pelos poros
(), ou passagens, a fosse o sistema nervoso espalhado por todo corpo e responsvel por conduzir
todos os estmulos ao crebro. Logo, no , mas ambas por estarem unidas participam
mutuamente. 12 Esta diviso assemelha-se a proposta por Aristteles, que tambm a divide em trs partes: a nutritiva, a
sensitiva e a racional, esta ltima exclusiva dos seres humanos. (ARISTTLES. De Anima. Apresentao,
traduo e notas: REIS, Maria Ceclia Gomes, 1 ed. So Paulo: Editora 34, 2006. II, 2).
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linguagem ou simplesmente das das palavras [], evitando assim, no deixar
tudo incerto e no ter de continuar explicando tudo at o infinito, ou ento usar palavras
destitudas de sentido (EHe, 37). , sobretudo, uma reteno mnmica [13
]constituda
empiricamente. Logo, so estas experincias guardadas que garantem a possibilidade da
articulao coerente das diversas formas de saberes e meios de se fazer cincia, entre as coisas
percebidas e os conceitos ou significados empregados para designar cada ente. Nas palavras
de David Konstan, a parte da alma localizada no peito, em contrapartida, concentra
processos racionais mais sofisticados14
.
Conceder a primazia senso-percepo dentro do processo cognitivo , no entanto,
admitir o movimento e a multiplicidade, os dois principais aspectos da experincia
sensorial15
, e mediante tais propriedades do real, poder legitimamente, emitir juzos acerca
do mundo sem incorrer no erro [], que, por sua vez, tem sua origem, na
verdade, mediante uma opinio [], isto : o falso [juzo] e o erro
encontram-se no que colocado pela opinio [EHe, 50:
], e nunca pela senso-percepo, a qual no possui,
sozinha,competncia alguma nos ajuizamentos e por isso Epicuro a predica de , aquilo
que no articula discurso.
Todavia, por uma questo de comprometimento com o critrio da evidncia,
exclui-se das senso-percepesa possibilidade do erro, mas no a atuao da psych-logikn
junto ao entendimento (a parte da psych situada no centro do peito), aquela que d conta de
processos racionais, como se, de certa forma, parte da psychimbricada nas senso-percepes
participasse do erro embora no seja a causa dele, pois compete a ela demonstrar apenas o
fato percebido, isto , um dado bruto (BRUN, 1987, p. 44), restrito realidade factual. O
que nas palavras de Garca Ra: convm considerar, que quando na linguagem epicrea, se
diz que as sensaes no podem nos enganar no se trata de um sentido proposicional da
verdade, mas sim da facticidade de um feito (RA, 1996, p 43).Assim sendo, o que
permanece a mediao entre os sentidos-psych-entendimento no trato com o mundo, nas
palavras de Figueira:
13A afirmao de que a antecipao uma memria deixa clara a funo tanto da faculdade da sensibilidade,
que no produz memria e a operao do entendimento, que supera as sensaes e guarda na psych as diversas sensaes, ou seja, produz memria do que foi experimentado na sensibilidade(Ibidem,loc. cit.).
14 KONSTAN, David, A Almain:GIGANDET, Alain e MOREL, Pierre-Marie (Orgs). Ler Epicuro e os
Epicuristas. p.128. 15 G. S. Kirk; J. E. Raven; M. Schofield. Os Filsofos Pr-socrticos. 7 ed. Traduo: FONSECA, Carlos
Alberto Louro. Lisboa: Fundao CalousteGulbenkian. 2010.p. 431. (Doravante abreviado para KRS).
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Ao transformar sensaes [astheseis] em sentimentos, ou seja, em algo que
se manifesta ao pensamento, a alma promove a mediao homem-mundo exterior; ela d sentido realidade dos corpos naturais e os tornam
compreensveis ao pensamento, que feito do seu prprio movimento
(FIGUEIRA, 2003, p. 62).
Duas so as possibilidades que, para Epicuro (e para os atomistas de um modo
geral), induzem o homem ao erro e falsa predicao, e que consequentemente, como j fora
salientado, passa pelo gerenciamento da psych e acaba por se externar ao mbito do discurso
[], isto , nos ajuizamentos das percepes por parte da psych. Em primeiro lugar, o
erro (juzo errneo), d-se pela distncia percorrida por uma determinada imagem [] a
partir do ponto de projeo dos eflvios [] o corpo composto e a senso-
percepo16
(receptora desta imagem), isto , quanto maior a distncia entre o ente percebido
e o que percebe, maior a possibilidade do juzo-erro. Em segundo lugar o que se deriva
necessariamente do primeiro erro (a distncia) tal percurso proporciona uma
interpenetrao das imagens (EHe, 48). Ou seja, imagens de diversos corpos compostos
desprendidos e projetados no vazio infinito [ ], podem, de algum modo, se
misturarem, isto porque tambm so corpos-imagens formados por tomos, gerando assim
uma nova composio [] tambm de tomos, at tocarem assenso-percepes.
Quando isto acontece, o entendimento-psych que recebe este estmulo da impresso nos
sentidos-psych [] emite juzos equivocados, e isto acontece simultaneamente,
dando origem assim ao erro.Tendo em vista esse mecanismo imagtico, os epicuristas,
segundo Digenes Larcio,resolvem o problema com a atitude de estar em espera
[], isto , esperar uma confirmao das senso-percepes:
Se [a opinio] confirmada por outros testemunhos e no resulta
contraditada por nenhuma outra verdadeira. Pois se no confirmada por
testemunhos e contraditada, resulta falsa. Por isso introduziram a qualificao de em espera [], por exemplo, na espera de
aproximar-se torre e conhecer como ela de perto (DL, X, 34).
Neste sentido, lcito afirmar que as senso-percepes tem um domnio quase
absoluto do verdadeiro, uma vez que fundamenta a realidade pela introjeo do que externo
16 Nesta perspectiva, por faculdade da sensibilidade (), deve-se sempre entender
sensibilidade/psych, e por faculdade do entendimento (), sempre entendimento/psych. O que determina
esta compreenso a composio somtica da psych, que ora atua junto da sensibilidade, por ser parte inerente
dela, e ora com o entendimento, parte discursiva da psych imbricada com o entendimento.
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a ela, e onde tambm o entendimento-psych busca suas referncias. Portanto, como afirma
Epicuro devemos nos ater em todo caso s nossas sensaes, e particularmente s projees
presentes [ ] (em ns) [...], para que possamos nos referir a esses critrios
[], tanto o que aguarda confirmao como o no evidente (EHe, 38). Tal assero
confirmada to somente pelo carter evidente e objetivo que assumem as sensaes, isto , a
existncia de percepes [] efetivas garante a verdade das sensaes
[]; pois to efetivamente d-se o fato de que vemos e ouvimos, como
tambm de que sentimos dores (DL, X, 32).
Estas sensaes que a princpio so meros dados sensveis, convertem-se em puro
pensamento [], e, que no entanto, foge a uma mera opinio vazia [], e que
se estabelece, portanto, como uma correta opinio [ ], isto porque j fora
confirmada pelas senso-percepes, detentora de tal competncia. Portanto, tudo que afeta a
faculdade de sentir precisa, necessariamente ser referenciada, ou seja, confirmadas
[], refutadas [] ou no refutadas [ ]
mediante o critrio da evidncia [], perpassando assim o estado de espera e gerando,
contudo a confirmao. Logo, o conceito epicreo de espera supera a suspenso[]
ctica que esbarra na impossibilidade da predicao como pretenso de verdade, o que para
Epicuro possvel e necessrio, embora admitindo a possibilidade de se incorrer no erro.
, todavia atribudo a Protgoras, no dilogo Teeteto de Plato uma doutrina da
senso-percepo em que o conhecer [] percepo []17
. Esta doutrina de
Protgoras atestada por Digenes Larcio, que afirma tambm que a alma nada alm dos
sentidos [DL, IX, 51:]18
. Segundo a interpretao
de Plato, diz-se do efeito do encontro [] do olho sobre o movimento apropriado
(PLATO, Teeteto, 151-186)19
. Trata-se, todavia de uma simultaneidade entre percepo e
ajuizamento (um logos discursivo), que na perspectiva do Protgoras descrito por Plato , em
ltima instncia, um efeito intermedirio que no diz respeito nem ao ente percebido nem
ao que o percebe. Esta descrio da percepo segundo Protgoras exclui a possibilidade de se
predicar algo [], restando apenas a percepo das relaes dos entes no mundo. No ,
todavia, esta proposta gnosiolgica oferecida por Epicuro, embora permanea o conceito de
encontro [], atribudo a Protgoras por Plato, mas, sim, entre a imagem []
17 PLATO, Teeteto, 152c: . 18
Para Epicuro a psych e as senso-percepes esto juntas num s corpo, mas so elementos distintos. 19
Dilogo onde Plato parece vincular Protgoras a uma doutrina sobre o mobilismo sensvel.
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desprendida do ente percebido e o ser dotado de percepo. Para Epicuro, necessrio afirmar
que h os corpos compostos [] no mundo e que estes se do a conhecer num puro
mecanismo naturalmente sensvel, o que reserva a Epicuro a designao de filsofo senssta.
Destarte, no passo 48 da Epstola a Herdoto, em que se demonstra claramente
esta simultaneidade entre sensibilidade-psych-entendimento-juzo que, no atomismo
epicreo, inicia-se com a formao das imagens [], emanao somtica
prpria dos corpos compostos. D-se, portanto, que tais corpos, projetando-se como imagens
imprimemna senso-percepo seu contedo imagtico, quando, num segundo momento, o
pensamento projeta-se sobre a imagem do ente percebido, numa ao natural do entendimento
em dizer a sensao, portanto, o que exprime Epicuro: deve-se ter em mente que a
formao das imagens to veloz quanto o pensamento (EHe, 48). Vale salientar que a
discusso de ento, referida por Epicuro, ainda no mbito da senso-percepo, logo, no
trata ainda do que efetivamente a ideia universal do ente percebido, mas sim, a imagem
desprendida deste ente, o que Epicuro chama de emanao proveniente dos corpos [EHe,
48: ]. Todavia, por via da senso-percepo que a psych encaminha
o dado percebido a imagem [] do ente externo ao entendimento, onde tambm
gerencia esta informao, convertendo-a, agora sim, numa ideia universal [],
sendo, no entanto, este processo como um todo simultneo e imperceptvel, objeto apenas de
inferncia via analogia.
Ainda no texto da Epistola a Herdoto, no passo supracitado, a preposio
juntamente com que faz a ligao entre os termos imagem [] e pensamento
[] reforada pela ideia do verbo, que indica o que coincide ou
harmoniza-se (EHe, 48)20
. Portanto, explica-se gnosiologicamente a relao entre
percepo/psych/entendimento. Trata-se antes de tudo, de um mecanismo fsico, uma
emanao [] somtica em que tomos se desprendem da superfcie dos corpos
[ ] e entram em ns [] originando assim o
conhecimento do mundo e a possibilidade de um discurso seguro ou de um ordenador
possvel apenas na ordem do entendimento via analogia do sensvel. Estas imagens que se
desprendem dos corpos, diz Epicuro: nunca poderemos perceber com os sentidos [EHe, 48:
], restando apenas a inferncia submetida a
evidncia das senso-percepes, um postulado necessrio e que no encontra contradio.
20
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Mas, nada de tudo isso contraditado pelas sensaes, se nos atemos de certo modo evidncia imediata, qual devemos acrescentar o consenso
suprido pelas propriedades constantes das coisas que nos vm de fora.(EHe,
48)
Dado processo, todavia, distancia Epicuro de Parmnides, ao contrrio do que
pensa Spinelli ao traduzir gnesis tneidln por nascimento das ideias21
(SPINELLI, 2013,
p. 26.). A imagem, ou simulacro [simulacru] como traduziu Lucrcio o termo , no
deve ser confundido com ideia [], posto que, todavia, grosso modo, a imagem
[] de um ente percebido constitui-se fora []do ser dotado pela senso-
percepo e o entendimento, j a ideia uma formulao conceitual prpria do sujeito
pensante e que se d como universalizao conceitual dos entes percebidos, e isto no ser
cognoscvel dotado de entendimento, diz-se, todavia, de um segundo momento, isto , da
passagem da imagem ideia universal, conceitos radicalmente distintos na filosofia de
Epicuro. Vale salientar tambm, que por imagem, e isto traduz o termo , Epicuro
entende uma emanao de tomos sutis que conserva a disposio e a sequncia que os
tomos tinham num corpo slido (EHe, 48), isto , trata-se de uma cpia-imagem do corpo
percebido, ainda que imperfeita, e por isso se admite ainda a traduo latina de simulacru.
Sobre essa imperfeio caracterstica das imagens, Epicuro adverte: embora s vezes ocorra
alguma confuso (EHe, 48).
Apsych, portanto, constitui a noo primeira para as (segundo critrio
de verdade), que capta a imagem [] do corpo externo como objeto a ser conhecido.
a psych tambm, responsvel direta pelas analogias [] por inferncias do universo
esttico donde se chega a postular o no-conhecido mediante os entes conhecidos pelas
afeces [], sensaes convertidas em sentimentos, e pelo prprio pensamento []
ou raciocnios [], estgio ltimo da gerncia da psych-entendimento, demonstrando-
se, todavia, que sem ela nada poderia ser conhecido e resultaria mudo, uma vez que s pode
ser conhecido o que penetra o aparato sensvel e se aloja na psych. neste sentido, todavia,
que a morte [] pode ser definida como a perda da sensibilidade no nvel da
subjetividade22
, isto , a perda da capacidade de raciocinar e gerir os elementos que afetam as
senso-percepes, afastando assim a morte como uma experincia vivida, exprimvel como
21
O que, por exemplo, Epicuro escreveu a Herdoto que o nascimento das ideias se d juntamente com o
pensar. 22 Para mais detalhes sobre o referido assunto conferir o artigo: FIGUEIRA, Markus. Epicuro e a morte como
perda da subjetividade. Princpios, UFRN, Natal/RN. A. II, n. 3, p. 140-6, Jul./Dez. 1995.
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verdade. Logo, a morte no jamais uma experincia que se oferece a um particular, mas
somente um acontecimento ao qual ns podemos assistir (PESCE, 1974, p. 61). Se a
necessita do corpo-carne (soma-sarks) para realizao do seu processo, as
por sua vez, carecem do corpo-alma (soma-psich) para serem efetivadas.
Destarte, o papel das senso-percepes apresentar o que no pode ser
contrafactado[], como testemunha Sexto Emprico:
Todas as representaes so verdadeiras e com razo. [...] A sensao deve
limitar-se a captar o que est presente e a move, como a cor, por exemplo,
ela no deve julgar se uma coisa o objeto em certo lugar, outra o objeto em outro. Por isso as representaes so todas verdadeiras (SEXTO EMPRICO,
Contra os Matemticos, VII, 203-210).
Portanto, a psych a receptora das impresses sensveis junto com a parte
da sensibilidade e responsvel por conserv-las como lembranas das impresses ao
ponto que estas vo sendo reincidentes. As repetidas sensaes vo ficando mais inteligveis
no decorrer das evidenciaes, ao ponto de no restar dvida alguma e de se afirmar
categoricamente aquilo que est distncia um cavalo ou um boi (DL, X, 33), pois essa
imagem j est marcada (impressa) firmemente na psych. Logo, as impresses da alma
[] resultam de afeces que promovem sensaes, marcando-as na alma e tornando-
as inteligveis (PESCE, 1974, p. 62). A cada sensao reincidente na psych promove as
analogias devidas tirando delas seu valor de verdade (conhecimento possvel). Epicuro
ainda demonstra na Epstola a Herdoto que a faculdade de sentir prpria da alma,
devemos ainda considerar que a alma desempenha o papel mais importante na sensao
(EHe, 63: ). Esse
agregado corpreo diferenciado oferece os meios necessrios para a psych
sentir/inferir/ajuizar.
Todavia, somente quando os tomos que compem a natureza da psych se
dispersam [] num processo natural para usar um termo aristotlico de
corrupo[], que o corpo juntamente se decompe [] no
necessariamente na mesma ordem findando assim a faculdade desentir, isto , a psych-
asthesis, juntamente com o entendimento, consequentemente se desagregae se afastam a
do , deixando de ser competentes em suas funes dentro do processo cognitivo.
Ao findar-se a senso-percepo, as relaes entre o homem e o mundo-exterior j no
existem, isso demonstra o pressuposto fundamental da gnosiologia epicuria que afirma que o
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homem s enquanto na senso-percepo houver uma psych, logo, a ausncia de percepes
caracteriza a morte:
Consequentemente, a alma enquanto permanece no organismo nunca perde a
faculdade de sentir, mesmo com a perda de alguma parte do organismo. E se
a alma tambm devesse perder alguma parte sua na dissoluo total ou parcial daquilo que a contm, enquanto permanece e continua a sobreviver
no perder jamais a faculdade da sensao. O organismo remanescente, ao
contrrio, embora continuando a permanecer total ou parcialmente, j no
tem sensao, quando o abandona aquele nmero de tomos, embora pequeno, necessrio constituio da natureza da alma. Alm disso, quando
todo o organismo, a alma se dispersa e no tem as mesmas faculdades, e j
no mvel nem possui a faculdade de sentir (EHe, 65).
Por fim, o senssmo23
epicreo, como fora demonstrado, estende-se a uma
psicologia que poderia ser perfeitamente predicada de corpuscular para evitar veementemente
a designao de materialista. Tambm os dados do conhecimento, pode se afirmar, so
contedos noticos que foram antes sensveis e convertidos competentemente pela psych em
antecipaes [] e afeces[], suportando assim, tanto uma fsica como uma
sabedoria (tica) epicreasambas resultantes das competncias dassenso-percepes e do
entendimento. Todavia, mantm-se coeso o pressuposto da physiologaepicrea que resulta,
portanto, em conhecer na medida da possibilidade humana a e tambm, poder desfrutar
da vida sem os temores, fruto de uma m compreenso do real, resultando no temor dos
deuses, da morte e dos fenmenos celestes.
23 O termo sensismo no intenta reduzir a filosofia de Epicuro a um mero empirismo, mas sim,
caracteriza como uma filosofia que parte da senso-percepo sensismo neste sentido como critrio fundante
para sua gnosiologia. Fato , que sem o critrio da senso-percepo, os demais critrios seriam impossvel, as
antecipaes e as afeces (DL, X, 31), uma vez que s se antecipa e sentido o que antes fora percebido.
Pensa-se ser isto que diz Miguel Spinelli em sua obra Epicuro e as bases do epicurismo, p. 54, publicada pela
Paulus, 2013. Como tambm no d pra assegurar ser Epicuro um inferencialista, visto que a inferncia por via
esttica para se postular o imperceptvel () um processo no interior de sua filosofia e no constitui o princpio fundante de onde toda sua gnosiologia parte. Rejeita-se tambm a designao intuicionista defendida
por Norman De Witt e j criticada por Ra em sua obra El sentido de lanaturalezaenEpicuro, p. 42, publicada
pela ComaresFilosofa, 1996. Todavia, entende-se aqui que o conceito de , no diz respeito a uma
noes inatas, como erroneamente traduziram lvaro Lorencini e Enzo Del Carratore na traduo da carta a
Meneceu da Editora UNESP, 2002.
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