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FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe, Então você pensa que é humano? São Paulo, Cia das Letras, 2007 Introdução A arena da condição humana, por Fernández Armesto Aqui está um paradoxo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos investido muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que chamamos valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade humana e da vida humana. Ao longo do mesmo período, silenciosa mas devastadoramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência de nosso entendimento do que significa ser humano está agora em .discussão. E se o termo "humano" é incoerente, o que acontecerá com os valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça conceitual. O desafio tem vindo de seis fontes principais. Primeiro, a primatologia tem acumulado exemplos de como nós, humanos, somos semelhantes a outros macacos.É difícil encontrara hoje em dia qualquer capacidade supostamente que os primatólogos não digam que está replicada em outros macacos: uso da linguagem, fabricação de ferramentas, imaginação simbólica, auto 9 consciência - imagine qualquer uma, sempre haverá macacos não humanos que a exercem. Os chimpanzés e os humanos são objetivamente tão parecidos que um antropólogo de Marte poderia classificá-los numa mesma categoria-concordando com os cientistas humanos que gostam de chamar o Homo Sapiens de "o macaco nu" ou "o terceiro chimpanzé", ou que exigem que as fronteiras do gênero Homo sejam retraçadas de maneira a incluir macacos não humanos. Estamos no estágio mais desconcertante de uma discussão que tem feito furor por séculos sobre as diferenças entre humanos e outros primatas ("homens degenerados" em muitas caracterizações medievais). Os humanos são "macacos nus", distintos dos outros macacos por características físicas peculiares, ou "macacos encantados", diferenciados por inspiração divina ou contemplados por algum mistério da evolução com uma espécie de consciência que os outros animais não conseguem atingir? 1

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FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe, Então você pensa que é humano? São Paulo, Cia das Letras, 2007

IntroduçãoA arena da condição humana, por Fernández Armesto

Aqui está um paradoxo. Durante os últimos trinta ou quarenta anos, temos investido muitos pensamentos, emoções, riqueza e sangue no que chamamos valores humanos, direitos humanos, a defesa da dignidade humana e da vida humana. Ao longo do mesmo período, silenciosa mas devastadoramente, a ciência e a filosofia se combinaram para solapar o nosso conceito tradicional de humanidade. Conseqüentemente, a coerência de nosso entendimento do que significa ser humano está agora em .discussão. E se o termo "humano" é incoerente, o que acontecerá com os valores humanos? A humanidade está em perigo: não pela ameaça familiar da destruição em massa e da devastação ecológica, mas por uma ameaça conceitual.

O desafio tem vindo de seis fontes principais. Primeiro, a primatologia tem acumulado exemplos de como nós, humanos, somos semelhantes a outros macacos.É difícil encontrara hoje em dia qualquer capacidade supostamente que os primatólogos não digam que está replicada em outros macacos: uso da linguagem, fabricação de ferramentas, imaginação simbólica, auto

9consciência - imagine qualquer uma, sempre haverá macacos não humanos que a exercem. Os chimpanzés e os humanos são objetivamente tão parecidos que um antropólogo de Marte poderia classificá-los numa mesma categoria-concordando com os cientistas humanos que gostam de chamar o Homo Sapiens de "o macaco nu" ou "o terceiro chimpanzé", ou que exigem que as fronteiras do gênero Homo sejam retraçadas de maneira a incluir macacos não humanos. Estamos no estágio mais desconcertante de uma discussão que tem feito furor por séculos sobre as diferenças entre humanos e outros primatas ("homens degenerados" em muitas caracterizações medievais). Os humanos são "macacos nus", distintos dos outros macacos por características físicas peculiares, ou "macacos encantados", diferenciados por inspiração divina ou contemplados por algum mistério da evolução com uma espécie de consciência que os outros animais não conseguem atingir?

Segundo, o movimento dos direitos dos animais tem obtido um sucesso extraordinário em nos desafiar a identificar aquilo, se é que existe alguma coisa assim, que nos dá direito a um tratamento privilegiado em relação aos outros animais. Para além da diversidade humana existe uma fronteira indistinta entre os reinos humano e animal que outrora se imaginava serem mutuamente excludentes. Nos tempos modernos, o problema de distinguir os humanos dos animais tem inspirado algumas soluções radicais. De acordo com Descartes, todos os animais se assemelhavam a máquinas, mas na máquina humana havia um espírito. Seus seguidores foram além: o grito de um cachorro espancado não eramais prova de dor do que o som produzido pelas teclas de um órgão. Isso não era uma inferência de fatos observáveis - o homem simples persistia em acreditar, insistia lorde Bolingbroke, na diferença entre o “touro da cidade e o relógio da paróquia”-, mas, como disse o historiador Keith Thomas, a idéia de enxergar os animais como máquinas poderia fornecer uma racionalização do modo

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como as pessoas tratavam os animais, que do contrário pareceria imperdoavelmente cruel. No presente estado do conhecimento das continuidades entre os humanos e outros animais, é impossível sustentar qualquer relato da natureza humana tão nitidamente diferenciado como o de Descartes. No outro extremo, uma das conseqüências de turvar as antigas convicções sobre as diferenças entre os humanos e outros animais tem sido uma valorização da ecologia profunda. Peter Singer denuncia o "especiesismo" dos humanos e prega a "igualdade além da humanidade". O pensamento objetivo em grande parte apóia o lobby dos direitos dos animais. De uma perspectiva esclarecida pela ciência e pela filosofia, John Gray propõe perguntas igualmente difíceis acerca do que significa ser humano em relação a outros animais. Enquanto isso, têm sido propostos todos os tipos de critérios não biológicos para a determinação da condição humana (os humanos são animais que fabricam ferramentas, dotados de linguagem, que cozinham, têm auto consciência, imaginação, senso moral e assim por diante), e todos, sob um escrutínio rigoroso, revelam-se insatisfatórios.

Terceiro, o debate a respeito das implicações morais de nossa auto definição como humanos tem se tornado inseparável de uma questão da paleoantropologia: até que ponto remoto no passado evolutivo podemos distinguir os humanos de outros seres. Em todo caso, a paleoantropologia vem esvaziando os limites tradicionais do gênero Homo. Já não parece haver nada especialmente definidor sobre os espécimes que classificamos no mesmo gênero a que pertencemos, em relação àqueles que relegamos aos reinos dos australopitecos "semelhantes aos macacos". Ora, quando olhamos para trás no registro fóssil, vemos características que outrora se imaginava serem definidoramente humanas - como bipedismo, cérebro grande, uso de ferramentas, dieta onívora - partilhadas entre várias espécies, incluindo algumas de fora da nossa linha de descendência. A intensidade da atual batalha acadêmica a respeito

11dos neandertais (discutida no capítulo 4) revela o abismo da insegurança que alguns humanos sentem diante da descoherta de que outras espécies podem ser como nós, com mentes, emoções e capacidades éticas semelhantes. A argumentação sobre o status humano dos neandertais tem sido conduzida em termos que lembram surpreendentemente as controvérsias do século XIX acerca dos negros.

Quarto, no último meio século, aproximadamente, a biologia parece ter alterado o equilíbrio da questão filosófica de muitas eras sobre se as espécies são tipos naturais, com traços essenciais e universais, ou meramente conjuntos ou categorias nos quais, por conveniência, agrupamos as criaturas. No presente estado do conhecimento a respeito da evolução, é difícil continuar acreditando na existência de traços que sejam tanto gerais dentro de uma espécie como exclusivos dela. As espécies têm limites vagos e variáveis. O que as torna espécies varia de caso para caso. Se têm uma característica unificadora, não sabemos qual é. Pertencer a uma espécie é pertencer a uma classe, e não revelar uma essência; em certo sentido, é uma condição temporária, sujeita a revisão, e não um destino eterno e inevitável. Pertencemos à espécie humana não por termos algumas qualidades particulares, mas porque é assim que traçamos as fronteiras da nossa linhagem.

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Quinto, a pesquisa sobre inteligência artificial tem estimulado um repensar filosófico de conceitos outrora essenciais para a auto-definição humana, como a consciência, a razão, a imaginação e as paixões morais. Assim como o trabalho primatológico e paleoantropológico nos convence de que essas qualidades evoluíram e poderiam novamente evoluir em outras espécies que não a nossa, a busca da inteligência artificial propõe a especulação de que outros seres, de nossa própria criação, poderiam ter todas as qualidades que nos tornam humanos-e, portanto, que os robôs podem mesmo ser semelhantes ao rei Louie na versão dos estúdios Disney de Mogli, o menino lobo: macacos dançarinos, “também humanos”.12Poderíamos partilhar nosso mundo com humanos que têm criadores humanos, em vez de progenitores humanos. Talvez nunca aconteça, mas essa idéia pode nos estimular ou conduzir, pelo pânico, a repensar a natureza da humanidade antes que isso ocorra.

Por fim, a pesquisa genética tem nos oferecido um modo de medir os candidatos a membros de nossa espécie e, simultaneamente, de calibrar quanto temos em comum com todas as outras. Ser humano nunca pareceu tão bestial. E o estudo do genoma promete ou ameaça tornar realidade o projeto do Dr. Moreau: híbridos com qualidades humanas geneticamente enxertados em receptores não humanos. Como classificaríamos essas criaturas? Como é que o fato de serem concebíveis afeta o conceito que temos de nós mesmos?

No século xx, a humanidade tinha ao seu dispor a autodefinição mais inclusiva de todos os tempos: todo grupo era humano se membros de outros grupos de humanos conseguissem procriar com ele com sucesso. Entretanto, apesar desse caráter inclusivo, o século foi desfigurado pelas desumanidades mais terríveis já registradas. Como reação, surgiu o novo humanismo, enquanto o ritmo da interculturação tornava fora de moda o racismo e ajudava a estimular o impulso para tornar os direitos humanos coincidentes com o conceito de humanidade. No final do século xx, contudo, o problema de compreender o conceito adquiriu duas novas dimensões, que enriqueceram as suas complexidades e acentuaram as suas agonias. Primeiro, a pressão social para autorizar o aborto criou uma nova categoria efetivamente subumana: O bebê nascituro (que antes se supunha ser plenamente humano e participante pleno dos direitos humanos). Em conseqüência, uma nova qualidade, chamada "pessoalidade", vem sendo agora invocada para justificar a reclassificação do nascituro, e a velha questão de até que ponto a condição humana é um status biológico ou cultu ral adquiriu um novo foco de interesse. Segundo, o trabalho na 13inteligência artificial e na engenharia genética tem tornado o futuro humano tão problemático quanto o passado humano. Estamos diante do futuro "pós-humano" previsto por Francis Fukuyama? Ou, dada a história não resolvida do conceito de humanidade, podemos simplesmente forçar a sua elasticidade e prolongar o debate?

Este livro tenta confrontar esses problemas voltando o olhar para o modo como o nosso conceito de humanidade se desenvolveu historicamente. Pois eis aqui outro paradoxo: aqueles dentre nós que pensam que somos humanos sentem total confiança em

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nossa identidade humana e em nossa capacidade de reconhecê-la em outros; mal paramos para nos congratular pela amplidão de nossas visões, sentindo a humanidade comum em espécimes de nossa espécie, apesar das diferenças de cor e cultura. Mas nosso conceito atual é um artifício recente: a maioria das pessoas na maioria das sociedades durante a maior parte da história teria ficado espantada com uma categoria tão abrangente. A maioria, na verdade, teria sentido dificuldade de compreender a palavra "humano" ou encontrar um equivalente para o termo em sua própria linguagem, exceto como um modo de designar os membros do próprio grupo. Para essas pessoas, os outsiders pertenceriam a alguma outra classe, alheia, junto com os animais ou os demônios. Os limites atuais do nosso conceito de humanidade não são óbvios e não universais. Foram estabelecidos como produto de uma árdua e prolongada batalha no mundo ocidental para descobrir um modo de compreender a humanidade que abrangesse comunidades antes excluídas pelo racismo e pelo etnocentrismo, sem deixar de insistir numa distinção clara entre seres humanos e não humanos. No presente estado do debate e à luz do conhecimento disponível, essa parece ser cada vez mais uma busca incompleta e, talvez, inviável. Não é hora para um estudo conclusivo e exaustivo a respeito. O que se segue é um ensaio sobre a história da “humanidade’, e não da humanidade sem as aspas: o conceito, e não as pessoas que ele deno-14mina. É, claro, um tema demasiado grande para o formato deste livro, mas como, apesar de sua importância, nunca foi tentado antes, e a literatura pertinente é dispersa e fragmentária, parece válido apresentar um esboço geral que possa contribuir para inspirar outros trabalhos, em vez de tentar uma pesquisa exaustiva.

O fato de que tomamos nosso conceito de humanidade como natural é, para mim, causa de preocupação: é uma forma de complacência que nos deixa mal equipados para enfrentar os desafios. Suspeito, além disso, que erramos ao pensar que o conceito não precisa ser ainda mais estendido. Precisa ser examinado para que as deficiências sejam detectadas. Os paleoantropólogos que querem abranger mais hominídeos na categoria, os primatólogos que querem retraçar os limites do gênero Homo em favor dos chimpanzés, os moralistas que deploram a exclusão dos nascituros e dos moribundos em relação a alguns direitos humanos estão todos, à sua maneira, procurando alargar os limites do conceito: ele ainda pode revelar uma surpreendente elasticidade. A história do alargamento do conceito de humanidade - a história esboçada nas páginas que se seguem - ainda não está terminada. A pergunta "O que significa ser humano?" (ou a pergunta seguinte, "Então quem é humano?") agora evoca entre nós respostas diferentes daquelas oferecidas no passado ou em culturas diversas da nossa, mas continua tão difícil de responder quanto antes.

Ao que parece, nunca deixamos de ser macacos; mas aspiramos a ser anjos. Até que ponto realmente chegamos na estrada evolutiva? Até que ponto precisamos chegar, antes de ser genuinamente incluídos em toda a comunidade humana e atingir uma fronteira viável entre os humanos e os outros? Talvez a busca esteja fadada a ser interminável na medida em que todo avanço científico turva distinções outrora convincentes. 15

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