giorgio agamben: a condiÇÃo da vida humana no …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA-UFPB CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA AMANDA CRISTINA PACÍFICO GIORGIO AGAMBEN: A CONDIÇÃO DA VIDA HUMANA NO ESTADO DE EXCEÇÃO João Pessoa PB Agosto de 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA-UFPB

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

AMANDA CRISTINA PACÍFICO

GIORGIO AGAMBEN: A CONDIÇÃO DA VIDA HUMANA NO

ESTADO DE EXCEÇÃO

João Pessoa – PB

Agosto de 2018

AMANDA CRISTINA PACÍFICO

GIORGIO AGAMBEN: A CONDIÇÃO DA VIDA HUMANA NO ESTADO DE

EXCEÇÃO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba – UFPB

– como requisito parcial para a realização de

Qualificação no Mestrado em Filosofia, linha de

pesquisa: Ética e Filosofia Política.

Orientador: Prof. Dr. Giuseppe Tosi.

João Pessoa – PB

Agosto 2018

P117g PACIFICO, Amanda Cristina. Giorgio Agamben: a condição da vida humana no estado de exceção / Amanda Cristina Pacifico. - João Pessoa, 2018. 96 f.

Orientação: DR Giuseppe TOSI. Dissertação (Mestrado) - UFPB/CCHLA/PPGF.

1. Vida Nua. Soberania. Direito. Estado de Exceção. I. TOSI, DR Giuseppe. II. Título.

UFPB/CCHLA

Catalogação na publicaçãoSeção de Catalogação e Classificação

ATA DA REUNIÃO DA SESSÃO PÚBUCA DA DEFESA DE DISSERTAÇÃO PARA OBTENçÃO

DO GRAU DE MESTRE EM F]LOSOFIA DA CANDIDATA AMANDA CRISTINA PACíFICO.

Aos vinte e quatro dias dc mês de agosto do ano de dois mil e dezolto Q /08120L8) às

15:00 horas, na Sala 4048 do Centro de Ciências l{umanas, ietras e Artes da

Universidade Federal da Paraíba reuniram-se os membros da Ccmissão constituídapara exan'linar a Disser:ação ee t\4estrado de AMAI\DA CRISTINA P.,\CÍF|CO, can,iidataao grau de [\lestre em Filoscfia. A banca examinadora foi constituída pe!osprofessores: Dr. Giusepae Tcsi (orientador/UFPB), Prof. Dr. Giri'ranco Lucena dosSantos (Membro lnterno/UFPB), Prof. Dr. Castor Maria Martín Bartolomé Ruiz

(Membro Externo/LlNISINOS - via Skype) e Prof. Dr. Narbal ce Marsillac Fcntes(Membro lnterno/UFPB}" Dandc início à sessão, o professor Dr. Giuseppe Tcsi, naqualidade de presidente da banca examinadora, fez a apresei',tação dos dernaismembros e, sí"n seguida, paisoJ a palavra para a rnestrandaIr.MANDA CRISTINA

PACíFlCO, para que fizesse cralrnente a exposição de sua Disser-:ação intitulada "OSENT|DO DO ESTADO DE EXCEÇÃO NO PENSAÍV|ENTO DE G|ORG|O ÂGAMBEN". Após a

exposição da candidata a mesma foi sucessivamenta argüida oor cada urr oosmembros da barrca. Ternr.nadas as argüições a banca retirou-se p:ra deliberar acercado trabalho apreser.tadc. /rpós urn bom intervalo, a banca er.:arn!nadora retornou à

sala e o presidente Dr. Gi.rseppe Tosi, comunicou que, de ccrnLrm acordo com os

demais rrembros, procl:rnou APROVAD.A a Dissertaçãc "O SENTItTO DO ESTADC DE

EXCEÇÃO NC PENSAMth.I-O Di: G|ORGIO AGAMBENI", têndo declaiado que seu autorAMANDA CRISTINA PACIflcô fa:z jus ao título de Mestre em Fi:osofia, devenJc a

Universidade Federal da Paraíba, de acordo com o Regulamer:to Geral de Pós-

Graduação prirnunciar-se no s,entidc; da Expedição do Diploma de Mestre. Nada rnaishavendo a tratan, fci encerrada a reunião tendo eu, Francisco Ca Costa Alrneida,lavrado a presente ata que ser"á assinada por mim, e pelos cienrais membros. JoãoPessoa, 24 de agostc de ?018.

_ ./, y' ,

F r,rnciscofo á Câsta A! m :ida- Secretário

.,/. " -'

Prof. Dr. Giuseppé Tosi (Fresidente/UFPBI

Prof. Dr. Castor Maria Martín Bartolomé Ruiz

or/tr à- rá

Mpppro Externg à instituição/UNISINOS

rôf. Dr. Gilfranco Lucena dos SàíÍosMembro lnterno/UFPB

Prof. Dr. Narbal de Marsillac FontesMembro lnterno UFPB -

xterng à instituição/UNISINOS r4,.)2^.t** l,-:*

M€ /;'sa'!'D %/íá á g*ron az€*aaçito,w fulfrd*:.?Sf' Á6Á/tÀí?á4/t'âr4-g'

";::í ;;;;' i)"* Da üBrt tl/t«pA tr6 4ere@ tÉ &"'é rÁo'

Dedico esta dissertação com carinho ao amor incondicional e

oportunidade de vida, aos meus pais, Marcos Luís Pacífico (in

memoriam), e a minha madre, Maria de Fátima Correia Nunes

Pacífico.

E ao jardim da minha existência, meus filhos: Heithor, Giovanna

e José Neto.

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam

diu etiam furor iste tuus nos eludet? Quem ad finem sese

effrenata iactabit audacia?”1 Marcos Tulio Cícero

1 “Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há-de zombar de nós

essa tua loucura? A que extremos há-se precipitar a tua audácia sem freio. ” (Catilinárias – discurso de

Cícero contra Catilina, livro I).

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, quero agradecer a existência. Aos 41 anos de vida, aos anos

antecedentes desta tenra idade de minha existência, caminhando à realização desse propósito

almejado. Uma história de vida precedente que me aproximou e me despertou para a busca do

verdadeiro conhecimento, antecedente de todo saber, a filosofia. O sentido de existir está na

vida, passageira e finita, de infinitas possibilidades.

Digo sim, sim à filosofia, ao seu movimento, possibilitando, revelando,

questionamentos, indagações, na liberação do pensamento, fora da moldura, a condição do livre

pensar não determinado, mas determinando o livre pensamento.

Agradeço a este conhecimento, campo do saber primeiro, à possibilidade de buscar a

compreensão de nossa existência no mundo e o modo como nos encontramos inseridos na vida

da política e do direito.

Ao professor Doutor Giuseppe Tosi, italiano, cidadão paraibano de reconhecimento,

meu orientador do Mestrado, quem me apresentou a filosofia política e me inspira a sempre

lutar pela democracia, toda admiração, respeito e gratidão. Aos membros do grupo de pesquisa

Teoria e História dos Direitos humanos e Democracia do Núcleo de Cidadania e Direitos

Humanos, vinculado ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal

da Paraíba, com eles cresci em conhecimento e maturidade.

Ao professor Doutor Castor Bartolomé Ruiz, pela oportunidade de nos conferir um

minicurso em nosso Programa de Pós-Graduação em Filosofia no ano de 2016.2, juntamente

ao Professor Dr. Giuseppe Tosi e o Professor Robson Cordeiro, coordenador do mestrado em

filosofia a época da realização do minicurso em nossa Instituição.

Aos professores Doutores Enoque Feitosa e Lorena Freitas, e aos demais membros do

grupo Marxismo e Direito e Realismo Jurídico, do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade

Federal da Paraíba, pelo apoio e troca de conhecimento.

Às turmas de Introdução ao Direito, do estágio docência, trabalhando a abordagem

filosófica do Direito, na acolhida carinhosa pelos discentes, motivação de permanecer no

almejado sonho do magistério superior. Alguns olhinhos brilhantes aspirando a construção de

uma carreira jurídica, no entanto, dois ou três buscando outros cursos, não se identificando de

início com o Direito.

A minha turma de Mestrado 2016.2, pela confiança, a representação, de nossa turma,

nas reuniões do Colegiado de nosso Programa, assim como demais atribuições conferidas ao

longo do mestrado que se fizeram necessárias.

Ao coordenador, do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, gestão 2018.1, Professor

Doutor Bartolomeu Leite, por conferir-me a possibilidade, dentro dos atributos legais

conferidos pela resolução do Programa, a continuar na construção deste trabalho, apesar de

todas as dificuldades, em determinado momento circunstanciado.

À bolsa de demanda social financiada pelo CNPq, possibilitando a existência desse

trabalho.

Ao professor Doutor Gilfranco Lucena, estimado mestre presente em minha banca de

qualificação e defesa.

Ao professor Doutor Marconi Pimentel Pequeno, membro participante de minha banca

de qualificação, contribuindo com muita paciência e sensibilidade para o amadurecimento deste

trabalho.

Ao professor Doutor Narbal de Marsillac, por aceitar fazer parte da banca de defesa

final, minha gratidão!

Ao professor Doutor Luciano da Silva da Universidade Federal de Campina Grande,

pelo apoio na continuidade desse trabalho, em um momento de tensão.

À professora Mestra Maria das Neves (Nevita), do Centro Universitário de João Pessoa

– Unipê, e demais professores que fazem parte desta Instituição na qual tive a honra de receber

minha formação jurídica, gratidão pelo incentivo e carinho desde a minha graduação.

Ao querido professor Dr. Giovanni Queiroz (in memorian), do qual, em pouco tempo

de amizade, sinto eterna gratidão.

Ao Centro de Referência de Apoio às mulheres vítimas de Violência Doméstica da

cidade de Campina Grande e João Pessoa – PB.

Aos meus irmãos, Cristiano, Renato, Leonardo, Antônio Luiz e Andréia.

A minha cunhada, Luana. Aos meus sobrinhos que titia ama muito, Aninha, Tomaz e

Nicolas.

A Dona Maria, moradora do prédio que resido, me acolhendo no dia de minha mudança

tão conturbada, em algumas vezes, proporcionando, durante a construção desse trabalho, um

carinho incondicional, com seus dotes culinários.

A Eliene Antunes, secretaria aposentada do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos,

à acolhida profissional e fraterna, minha gratidão.

A Fátima, Chico, Graça e Paulo, da Coordenação do Programa de Pós-Graduação,

minha estima e carinho.

A professora Doutora Josélia, das aulas de piano, que muito me acalmaram nos

momentos de tensão, deixando fluir através da música, toda minha sensibilidade.

Aos amigos e amigas que encontrei e que também perdi nessa caminhada, não fazendo

referência a nomes, mas guardando a todos e todas em meu coração, para em nenhum momento

hierarquizar afetos ou desafetos, deixando subentendido o livre pensar.

Ao criador de todo o Universo, de tudo o que é, o todo existencial, patrono de toda

sabedoria, quem me mantém nesta existência, permanecendo na incerteza, pois minha única

certeza é a morte, nossa condição final nessa dimensão.

Por fim, aos meus paradigmas do amor-fati, meus ex-companheiros, Josinaldo Lira

Freire e Emmanuel Pedro Sormmany Gabino Ribeiro (quem me apresentou com muita paixão

– a Filosofia do Direito), minha eterna gratidão!

Afinal, ninguém nos ensina a complexidade da vida, a não ser vivendo por ela mesma.

Viver é estar à deriva no mar, sem boias, nem salva vidas, esta é nossa impotência, não prover

o futuro, mas viver o presente, superando o passado, não nos negligenciando.

Assim, finalizo meus agradecimentos, deixando meu testemunho de um percurso na

concretização dessa pesquisa, as experiências vividas, algumas visíveis, outras invisíveis,

compartilhando com meus afetos e desafetos que de alguma forma contribuíram positivamente

e até mesmo negativamente para o êxito desta caminhada, um ciclo que se encerra, mas apenas

se inicia, na trajetória de minha existência imanente.

RESUMO

O propósito desse trabalho é analisar, a partir do pensamento do filósofo italiano Giorgio

Agamben, o fenômeno do Estado de exceção. A proposta de nossa investigação é analisar a

seguinte questão: Como o estado de exceção torna-se o paradigma de governo da vida humana,

nas sociedades modernas? Para Giorgio Agamben, o estado de exceção é o paradigma de

governo da contemporaneidade, sendo a exceção o paradigma fundante do Estado Moderno,

tanto na versão totalitária ou democrática. Numa primeira aproximação, podemos dizer que o

estado de exceção é o dispositivo original por meio do qual o poder soberano captura a vida

humana. Agamben capta uma tensão simultânea na política e no direito, em sua relação com a

vida humana. O objetivo geral dessa pesquisa é analisar as categorias de vida nua, dispositivo

e soberania, segundo o filósofo, termos presente na definição do estado de exceção. Nossa

pesquisa bibliográfica se inicia com as obras de Giorgio Agamben, pertencentes ao seu projeto

filosófico denominado HOMO SACER, especificamente a obra Estado de Exceção, objeto de

nossa investigação. Inicialmente, articulamos o caminho utilizado pelo filósofo na compreensão

da denominação do Estado de exceção. A partir dessa investigação, descrevemos acerca da

condição da vida humana, a polaridade existente entre o Estado democrático de direito e o

Estado de exceção, abordando a seguinte hipótese: o Estado democrático de direito como um

Estado de exceção e o estado de exceção como regra. Nossa intenção é, a partir desta pesquisa,

contribuir aos debates da filosofia política e da filosofia do direito acerca desse objeto.

PALAVRAS-CHAVE: Vida Nua. Soberania. Direito. Estado de Exceção.

ABSTRACT

The purpose of this work is to analyze, from the thought of the Italian philosopher Giorgio

Agamben, the phenomenon of the State of exception. The purpose of our investigation is to

analyze the following question: How does the state of exception become the paradigm of

government in the condition of human life, of modern societies? For Giorgio Agamben, the

state of exception is the governance paradigm of contemporaneity, with the exception being the

founding paradigm of the Modern State, both in the totalitarian or democratic version. At first

glance, we can say that the state of exception is the original device by which sovereign power

captures human life. Agamben captures a simultaneous tension in politics and law, in his

relation to human life. The general objective of this research is to analyze the categories of bare

life, device and sovereignty, according to the philosopher, terms present in the definition of the

state of exception. Our bibliographic research begins with the works of Giorgio Agamben,

belonging to his philosophical project called HOMO SACER, specifically the State of Exception

work, object of our investigation. Initially, we articulate the path used by the philosopher in

understanding the denomination of the State of exception. Based on this research, we describe

the polarity between the democratic rule of law and the state of exception, by addressing the

following hypothesis: the democratic state of law as a state of exception and the state of

exception as a rule. Our intention is, from this research, to contribute to the debates of the

political philosophy and the philosophy of the right about this object.

KEYWORDS: Bare life. Sovereignty. Law. State of Exception.

SOMMARIO

Lo scopo de questo saggio è ricercare, a partire del pensiero di Giorgio Agamben,

filósofo italiano, il fenomeno dello Stato di eccezione. La proposta della nossa investigazione

è analizzare la seguente questione: Come lo Stato di eccezione diventa il paradigma del governo

della vita umana, nelle società moderne? Per Giorgio Agamben, lo Stado di eccezione è il

paradigma del governo della contemporaneità, essendo la eccezione il modello fondante dello

Stado Moderno, sia nella versione totalitária, come nella democratica. In una prima

approssimazione, possiamo dire che lo Stato di eccezione è il dispositivo originale per mezzo

del quale il potere sovrano coglie la vita umana. Agamben percepisce una tensione simultanea

nella politica e nel diritto, nel suo rapporto con la vita umana. Lo scopo generale di questa

ricerca è analizzare le categorie della vita nuda, dispositivo e sovranità, secondo il filósofo,

termini presenti nella definizione dello Stato di eccezione. Nostra ricerca bibliografica comincia

con le opere di Giorgio Agamben, incluse nel suo progetto filosofico nominato HOMO SACER,

soprattutto il libro Stato di Eccezione = Estado de Exceção, argomento della nostra indagine.

Per cominciare, abbiamo abbozzato la via utilizzata per il filósofo nella comprensione della

denominazione dello Stato di eccezione. Da questa investigazione, descrivemmo a proposito

della condizione della vita umana, della polarità esistente tra lo Stato democratico di diritto e lo

Stato di eccezione, abbordando la seguente ipótesi: “Lo Stado democratico del diritto come uno

Stado di eccezione e lo Stato di eccezione come regola”. La nostra intenzione con questa ricerca

è contribuire com i dibbatiti dela filosofia política e della filosofia del diritto sul questo soggetto.

PAROLE-CHIAVI: Vita Nuda. Sovranità. Diritto. Stato di Eccezione.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12

1 POLÍTICA, DIREITO E VIDA HUMANA SOB A ÓTICA DO ESTADO DE

EXCEÇÃO................................................................................................................

19

1.1 O projeto HOMO SACER......................................................................................... 19

1.2 O método arqueológico agambeniano........................................................................ 33

1.3 Homo Sacer, a Vida Matável e Insacrificável......................................................... 40

2 O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO CAPTURA DA VIDA HUMANA.............. 46

2.1 A vida da política....................................................................................................... 46

2.2 Formas de vida........................................................................................................... 50

2.2.1 A vida dividida entre Bios e Zoé............................................................................... 55

2.3 A (Bio) Política da Vida............................................................................................ 60

3 O ESTADO DE EXCEÇÃO ENQUANTO PARADIGMA POLÍTICO DA

CONTEMPORANEIDADE......................................................................................

63

3.1 O estado de exceção................................................................................................. 63

3.1.1 A Exceção Soberana.................................................................................................. 67

3.2 A Soberania em Agamben......................................................................................... 70

3.3 O Campo Matriz Oculta do Nomos e a Inoperosidade da Concepção Liberal de

Direito........................................................................................................................

75

CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................ 82

REFERÊNCIAS........................................................................................................ 92

12

INTRODUÇÃO

Nossa investigação tem a pretensão de analisar, a partir do pensamento do filósofo

italiano Giorgio Agamben, o fenômeno do Estado de exceção, procurando compreender um

fenômeno que em nenhum momento é obvio.

Para alcançarmos nosso objetivo, faremos uso do método arqueológico de Giorgio

Agamben, no qual seu procedimento é baseado em acontecimentos representados através de

paradigmas, símbolos autoexplicativos da linguagem, provenientes da contingência entre

política e direito sobre a vida humana.

O filósofo que nos direciona em nossa pesquisa pensa a contemporaneidade a partir da

reflexão sobre as implicações existentes entre direito e política e a função que essa relação

exerce sobre a vida humana, em seu sentido amplo e alcance geral, articulando o seu

pensamento dentro da história da filosofia na perspectiva de capturar uma realidade existente.

Para Agamben, o Estado de exceção não está desvinculado do Estado democrático de

direito, ambos não são antagônicos, como pensa o senso comum, mas paralelos, sendo este

caráter relacional entre ambos o sentido proposto de nossa investigação no movimento de

apreensão do nosso objeto a ser analisado em sua relação com a vida humana.

Quando abordamos o caráter relacional estabelecido em nossa investigação entre

Estado democrático de direito e Estado de exceção (quando nos referimos a Estado com E

maiúsculo), estamos nos direcionando a demonstração desses, tanto o Estado dito democrático

de direito, quanto o Estado de exceção, como um corpo político, efetivando seu poder em meio

à relação de exclusão da vida. Assim, em nossa pesquisa, direcionaremos nossa explicação a

esta relação de poder, em três capítulos a serem descritos; 1) Política, Direito e Vida Humana

sob a ótica do estado de exceção, 2) O Estado de exceção e a captura da vida humana, 3) O

estado de exceção enquanto paradigma político da contemporaneidade.

Agamben, em sua primeira obra do seu projeto filosófico HOMO SACER - Homo sacer;

poder soberano e vida nua - que antecede a investigação do Estado de exceção, concentra suas

investigações em premissas de uma abordagem voltada aos problemas tradicionais

predominantes no Ocidente e relacionadas ao poder, baseadas em “modelos jurídicos

institucionais (a definição de soberania, a teoria do Estado), na direção de uma análise dos

modos concretos com que o poder penetra no próprio corpo de seus sujeitos e em suas formas

de vida” (AGAMBEN, 2007, p.13).

Partindo dessa premissa para a investigação do que vem a ser o estado de exceção,

conforme Agamben, podemos afirmar que é na obra homônima ao sentido proposto na

13

investigação de nosso trabalho que o filósofo propõe uma arqueologia do direito na

contemporaneidade, analisando os paradigmas propostos ao longo da história da filosofia.

Na concepção de Estado, tradicionalmente seguida pela filosofia política, “o Estado é

uma junção de elementos materiais e formais: povo, território e governo. Temos assim uma

privilegiada análise do Estado como sistema político e jurídico sob o viés das relações de poder

na sociedade” (BARRETO, 2009, p. 286), legitimando o seu poder político e jurídico nos

grupos sociais da vida humana que se encontram concentrados em um determinado território

regulado por um sistema de leis e governado por representantes políticos.

Entretanto, podemos dizer que o Estado é um núcleo de conflitos e interesses

contraditórios dentro de uma sociedade política. Em geral, podemos afirmar este como uma

organização jurídica coercitiva de determinada comunidade política: “na verdade, o que

devemos colocar em questão não é a definição do termo Estado, nem mesmo o que o compõe,

mas sim sua finalidade” (BARRETO, 2009, p. 286). Por isso, a definição do termo Estado, deve

ser compreendido a partir de uma contextualização filosófica e política e não com base em sua

evolução histórica e linear, ou seja, a passagem de um Estado Absolutista para um Estado

Democrático de Direito, mas compreendido a partir de sua finalidade enquanto Estado, sem

denominação.

O estado de exceção no pensamento de Giorgio Agamben “é essa terra de ninguém,

entre o direito público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida, que a presente pesquisa

se propõe a explorar” (AGAMBEN, 2004, p.12), uma zona incerta de desequilíbrio, e o seu

efeito recai sobre a vida humana, em condição de exceção.

Entretanto, na intenção de nos demonstrar esse desequilíbrio existente entre o direito

público e o fato político e entre a ordem jurídica e a vida, Agamben propõe erguer o véu, a

camada, que cobre e desequilibra a relação da ordem jurídica e do fato político, numa zona de

incerteza, de objetificação da vida humana, “em jogo na diferença-ou na suposta diferença-

entre o político e o jurídico e entre o direito e o vivente”. (AGAMBEN, 2004, p.12).

Assim, chamamos a atenção de nosso leitor para o fato de que aqui, quando nos

referimos ao estado de exceção, não estamos nos referindo a Estado, com E maiúsculo, mas

estado com e minúsculo. Em nossa investigação, cabe frisar a atenção para o uso da

terminologia, nos dois sentidos, Estado e estado2 termos imprescindíveis para a demonstração

do que vem a ser o sentido do estado de exceção no pensamento do filósofo Giorgio Agamben.

2 Grifo nosso.

14

O estado com e minúsculo “significa uma condição, modo de ser ou uma situação, o

significado da expressão, estado de coisas”3.

O estado de exceção, abrangendo o significado de modificar, regular ou manter uma

determinada condição da vida humana sobre a pretensão de um Estado integrado, assume o

cuidado da vida natural dos indivíduos, na condição de um dispositivo original.

Verificaremos em nossa pesquisa o ponto de intersecção no qual o poder totalizante do

Estado, através de suas técnicas de individualização e procedimentos, se aproxima com seus

dispositivos na dominação e controle da exclusão e inclusão da vida, apreendendo

“precisamente este oculto ponto de intersecção entre o modelo jurídico institucional e o modelo

biopolítico do poder” (AGAMBEN, 2007, p.14).

A categoria “dispositivo”, para Agamben, é um termo técnico legitimador da exceção

no campo político e jurídico. A exceção é um dispositivo original, no qual a política e o direito

capturam a vida humana incluindo-a a partir de sua exclusão.

Assim, explicando a relação entre vida e dispositivo, partimos de um todo, sendo a

existência, um conceito fundamental em toda filosofia primeira. Segundo Agamben, a “filosofia

primeira deve, no entanto, em primeiro lugar, fazer as contas com o fato singular de que, a partir

de um momento para o qual o nome de Kant pode servir de guia, é justamente a impossibilidade

de uma filosofia primeira que se tornou o a priori histórico” (AGAMBEN, 2017, p.137), o

constitutivo do tempo que vivemos, impossibilitando trazer a luz os a priori históricos que

condicionam a história da humanidade e definem suas épocas.

Pensando em como se ter acesso a uma filosofia primeira, ou seja, a uma ontologia,

Agamben verifica essa possibilidade através de uma arqueologia. Para Agamben “a ontologia

é grávida do destino histórico do Ocidente” (AGAMBEN, 2017, p.136). A arqueologia busca

alcançar o a priori histórico, este a priori, é o lugar originário da articulação empreendida entre

a linguagem e o mundo.

Para Agamben, é na ontologia que encontramos a memória do humano, o momento que

articulamos o mundo e a linguagem de determinada época, e cada vez que a ontologia recebe

mudanças, não de destino, mas mudanças entre as diferentes possibilidades de encadeamento

3 O termo estado significa em latim: status; em inglês: state; francês: état; alemão: zustand; italiano:

stato. Estado de coisas, pela qual se pode traduzir o alemão Sachverhalto e o inglês state of affairs

(ABBAGNANO, 2000, p. 366).

15

do mundo e da linguagem, essas mudanças determinam e se inauguram como história, a história

do Homo sapiens4.

O tornar-se humano, como bem definido por Agamben, não se encerra em um evento

único no passado, mas “ele, é sim, um evento que não cessa de acontecer, processo ainda em

curso no qual o homem está sempre em ato de tornar-se humano e de continuar sendo (ou tornar-

se) inumano” (AGAMBEN, 2017, p.136).

“Ser”, escreve Aristóteles, “para os seres vivos, significa viver”. Séculos depois,

Nietzsche5 esclarece: “Ser: não temos outra representação dele senão viver” (AGAMBEN,

2004, p.12), trazendo a luz longe de qualquer vitalismo, o íntimo entrelaçamento entre ser e

viver na qual Agamben divide o todo existente em duas grandes categorias, ou seja, tanto a

categoria dos viventes (seres vivos) quanto a categoria das substâncias (o “Ser-aí”), ou seja, a

noção mais geral que tudo é, os viventes e ou as substâncias mas, em específico, quando

pensamos substância enquanto ser, sem nenhuma determinação, o que vem a nossa mente é a

noção de nada.

A noção de ser produz, portanto, dialeticamente, a noção de não ser do nada. Entretanto,

nesta passagem do ser para o nada e do nada para o ser e do não ser, surge a noção do vir a ser,

do tornar-se e, assim, essas categorias que não são sinônimas em um processo de relação com

a categoria dos dispositivos, resultam em um modo de ser e viver, conforme demonstração da

observação no pensamento filosófico e político do Ocidente.

O que acontece com o ser na tradição do pensamento filosófico? Segundo Agamben, o

ser “implica necessariamente um deslocamento do a priori histórico do evento antropogenético

(articulação entre mundo e linguagem) para o conhecimento, de um ser que não é mais animal,

mas ainda não é humano” (AGAMBEN, 2017, p.138), dando origem ao sujeito cognoscente.

Agamben propõe a seguinte demonstração: “[...], a existência de duas grandes classes,

a classe dos seres viventes e das substâncias e a classe dos dispositivos. E, entre estas categorias,

4 Termo que deriva do latim “homem sábio”, ser humano. Na taxonomia, a ciência que classifica os

organismos vivos, é uma disciplina biológica, que define os grupos dos organismos biológicos, sendo

um de seus núcleos centrais, a nomeação e classificação dos grupos de organismos, o humano, nesta

disciplina, é classificado taxonomicamente: Homo sapiens. 5 Para Agamben, foi através de filósofos não profissionais, como Nietzsche, Benjamin e Foucault, e, em

sentido diverso, um linguista Émile Benveniste, que se procurou uma saída com relação ao

transcendental. E, fizeram-no deslocando para trás o a priori histórico, indo do conhecimento para a

linguagem; com isso, não se atendo ao plano das proposições significantes, mas isolando cada vez uma

dimensão que questionava o puro fato da linguagem, o puro dar-se dos enunciados, antes ou para além

do conteúdo semântico. O falante ou o locutor, substituiu, assim, o sujeito transcendental de Kant, e a

língua assumiu o lugar do ser como a priori histórico. (AGAMBEN, 2017, p.138).

16

o resultado de uma nova categoria. Sendo esta categoria o sujeito que resulta da relação corpo

a corpo entre os viventes e ou as substâncias e os dispositivos (AGAMBEN, 2009, p.41) ”.

O filósofo demonstra o resultado da relação entre as substâncias e ou viventes e os

dispositivos, o resultado de um condicionamento capaz de moldar os seres viventes e ou as

substâncias, resultando em sujeitos originários desta relação na modernidade.

Como exemplos podemos citar: “[...] um mesmo indivíduo, uma mesma substância,

pode ser o lugar de múltiplos processos de subjetivação resultante da relação indivíduos

(substância e ou viventes) e diversos dispositivos; o usuário de telefones celulares, o navegador

na internet, o escritor de contos, etc.” (AGAMBEN, 2009, p.41).

O processo de subjetivação, ou seja, o processo social de construção da identidade de

um indivíduo a nosso tempo prolifera-se de modo indeterminado e disseminado. Uma realidade

de alienações em massa, uma sociedade condicionada por fatores externos, ou seja, aquilo que

somos como resultado de um produto subjetivado nunca esgotado aos modos contingentes de

subjetivação, em formas sociais de constituir-se como pessoa em variadas formas de vida.

Assim, Agamben releva a importância deste entendimento em relação ao ser,

fundamental para a compreensão, resultado da percepção do que ocorre no processo de

subjetivação da política e do direito e sua relação com a vida. A relação que se estabelece entre

indivíduo (vivente e ou substância) e a exceção (dispositivo original) determina a categoria do

que vem a ser vida nua (sujeito), categoria imanente de nossa investigação, oculta no objeto

investigado.

Os termos “vida nua”, “dispositivo” e “soberania” são categorias imprescindíveis para

o filósofo na definição ainda imprecisa do Estado de exceção. “Somente erguendo o véu que

cobre esta zona incerta a ser compreendida em jogo na diferença - ou na suposta diferença -

entre o político e o jurídico e entre o direito e o vivente” (AGAMBEN, 2004, p.12) ”. É que

podemos compreender o que vem a ser o Estado de exceção em seu pensamento, demonstrando

na construção histórica o eixo de sua desconstrução, apreendendo, através da observação, seu

sentido originário.

O campo de nossa investigação parte da análise das obras de Giorgio Agamben,

pertencentes ao seu projeto filosófico, assim denominado HOMO SACER 6, especificamente a

obra Estado de Exceção, assim como demais obras concernentes ao mesmo projeto filosófico

6 Em nossa investigação, quando nos referirmos ao HOMO SACER, em letra maiúscula estaremos

destacando o projeto filosófico de pensador em pesquisa e no momento que nos referirmos ao homo

sacer, em letra minúscula, estaremos abordando a figura arcaica do direito romano.

17

do autor em foco, que se fazem necessárias para a apreensão de nossa investigação, dentre elas:

Homo sacer: poder soberano e vida nua, frontispício I, e O uso dos corpos, frontispício IV, 2.

A proposta de nossa investigação é analisar a seguinte questão: O estado de exceção no

sentido demonstrado por Giorgio Agamben pode ser tomado como paradigma de governo em

nossa contemporaneidade? Numa primeira aproximação, podemos dizer que o estado de

exceção é o dispositivo por meio do qual o poder soberano captura a vida humana, ou seja,

Agamben consegue captar uma tensão simultânea entre a política e o direito na relação com a

vida humana.

Nossa intenção nesta pesquisa é contribuir aos debates da filosofia política e da filosofia

do Direito acerca desse objeto em apreensão na construção no campo de nossa pesquisa.

Começamos articulando o caminho utilizado pelo filósofo na compreensão da denominação do

fenômeno Estado de exceção. Assim, a partir desta investigação, descreveremos os limites

paralelos entre o Estado democrático de direito e o Estado de exceção em análise, abordando a

seguinte hipótese: o Estado democrático de direito como um Estado de exceção e o estado de

exceção como regra.

Em nosso primeiro capítulo, faremos uma breve apresentação do filósofo italiano

Giorgio Agamben, a motivação e preocupação que o levou a construção de um projeto

filosófico e político, um projeto voltado a preocupação das questões essenciais à política, sua

relação de filósofo com a filologia, a noção de contemporaneidade a partir de seu pensamento,

e as perspectivas agambenianas quanto aos métodos fluentes na formação do conhecimento na

modernidade. Ao final desse primeiro capítulo, vamos procurar descrever o método

arqueológico do filósofo encerrando a primeira seção de nossa investigação, onde

descreveremos a figura jurídica e política do Homo Sacer, paradigma da política moderna e

terminologia de seu projeto político e filosófico.

No segundo capítulo de nossa dissertação, vamos trabalhar o estado de exceção como

captura da vida humana. Para alcançarmos esse objetivo, descreveremos a vida da política, não

como esta foi pensada em sua origem, mas, como esta se apresenta na modernidade enquanto

finalidade da contemporaneidade. Analisaremos, a partir da compreensão do conceito de vida,

as suas formas de vida, e as decorrências políticas e jurídicas da divisão entre bios e zoé na

contemporaneidade. Após isso, encerraremos o segundo capítulo fazendo uma interpretação da

biopolítica, ou seja, a condição da vida nua incluída na política.

Por último, faremos a interpretação do Estado de exceção enquanto paradigma político

da contemporaneidade, através da descrição do estado de exceção: um dispositivo originário de

captura da vida humana na modernidade, paradigma do governo face à vontade oculta da

18

autoridade soberana, premissa lógica da soberania e sua efetiva relação com o estado de

exceção.

Finalizaremos nosso último capítulo demonstrando nossa interpretação através do

paradigma do campo de concentração comparando-o analogicamente ao espaço político na

modernidade, matriz oculta do nomos e inoperosidade da concepção liberal do direito.

Após, finalizarmos os três capítulos dessa investigação, encerraremos nossa pesquisa

no âmbito do mestrado com nossas considerações devidas na quais sintetizaremos a expressão

do nosso percurso reflexivo e confirmaremos o cabedal argumentativo que sustentou nossa tese

a partir dos objetivos delineados.

19

1 POLÍTICA, DIREITO E VIDA HUMANA SOB A ÓTICA DO ESTADO DE

EXCEÇÃO

1.1 O projeto HOMO SACER

Giorgio Agamben, jurista de formação, é considerado um dos maiores filósofos

contemporâneos. Um pensador sui generis, considerado um dos primeiros filósofos do século

XXI, encontrando-se em plena atividade intelectual da construção do seu pensamento.

Para a construção de seu pensamento, o filósofo segue “uma rede intricada de

referências de diversas correntes do pensamento do século XX” (CASTRO, 2012, p.221),

pensadores que exerceram influências conceituais na construção do seu projeto ou sistema

filosófico, entre eles há Martin Heiddeger7, Walter Benjamin8, Hannah Arendt, Michel

Foucault, Carl Schmitt, entre outros, mas especificamente estes foram influências para a

investigação do objeto que aqui nos detemos na busca de seu sentido, ou seja, o fenômeno do

Estado de exceção.

Na introdução de Homo Sacer: poder soberano e vida nua, frontispício I, Agamben

afirma que deu início a esta obra com a intenção de buscar uma resposta à “sangrenta

mistificação da ordem planetária” (AGAMBEN, 2007, p.09), e foi a partir do desenvolvimento

desta obra que o mesmo defrontou com problemas, tais como a “sacralidade da vida”, “haveria

uma coimplicação9 originária entre a sacralidade da vida e o poder soberano. Essa

coimplicação, vai além da origem religiosa de nossas sociedades (incluídos o direito e a

política), embora pouco percebido em nossas sociedades secularizadas” (RUIZ, 2012, p.5.),

confirmando-se, a partir de então, a elaboração de seu projeto filosófico.

Mas, o que seria esta sangrenta mistificação da ordem planetária, segundo a

compreensão e observação do filósofo Giorgio Agamben?

7 Dos anos de 1966 a 1968, Agamben foi aluno de Martin Heiddeger, nos cursos de Zollikon, com quem

estudou Heráclito e Hegel. Em 1974, transferiu-se para Paris onde, de 1986 a 1993, dirigiu o College

Internacional de Philosophie. Entre 1974 e 1975, pesquisou no instituto de Walburg em Londres. De

1988 a 2003, lecionou nas Universidades de Macerata e de Verona. De 2003 a 2009, lecionou Estética

e Filosofia, no Instituto Universitário de Arquitetura (IUAV) de Veneza. Atualmente administra a

coleção “Quarta Prosa” da Editora Neri Pozza, na Universitá IUAV em Veneza e Professor da

Universidade de Roma “ La Sapienza”. 8 AGAMBEN foi responsável pela tradução das obras de Walter Benjamin na Itália. 9 Segundo Ruiz, Fustel de Coulanges desenvolveu um estudo clássico sobre a coimplicação originária

do sagrado com o direito e a política na matriz indo-europeia das cidades ocidentais. (COULANGES,

1998, apud RUIZ, 2012, p.5.).

20

Agamben observa determinados problemas da política10, compreendendo

analiticamente uma constante mudança no sentido do que vem a ser a política nos dias atuais,

apresentando-a conforme sua interpretação, de modo subalterno à religião, à economia e até

mesmo ao direito (direito no sentido de um direito positivo). Suas alegações partem da premissa

de que a política perdeu o seu sentido ontológico.

Agamben apoia suas afirmações relacionando o sentido da política a partir de

paradigmas genuinamente políticos demonstrados por experiências e fenômenos que, muitas

vezes, não são considerados políticos e quando são reconhecidos como problemas políticos, se

efetivam de modo marginal, tais como:

A vida natural dos homens ( a zoé, por muito tempo excluída do âmbito

propriamente político) restituída segundo a biopolítica foucaultiana ao centro

da pólis, o estado de exceção (suspensão temporária do ordenamento, que

revela, ao contrário, constituir a sua estrutura originaria em todos os sentidos);

o campo de concentração suspendendo (zona de indiferença entre público e

privado e, ao mesmo tempo, matriz escondida do espaço político em que

vivemos); o refugiado, que, rompendo o nexo entre homem e cidadão, deixa

de ser uma figura marginal, para se tornar um fator decisivo da crise Estado-

nação moderno; a linguagem, objeto de uma hipertrofia e, juntamente, de uma

expropriação, que definem a política das sociedades democrático-

espetaculares nas quais vivemos; a esfera dos meios puros ou dos gestos (isto

é, dos meios que, mesmo que permaneçam como meios, emancipam-se de sua

relação com um fim) como esfera especial da política. (AGAMBEN, 2015,

p.09-10).

Assim, a partir desses problemas colocados, na busca de encontrar o verdadeiro sentido

destas questões, nosso filósofo repensa todas as categorias da tradição política-filosófica à luz

da relação entre poder soberano e vida nua.

Em entrevista concedida a Flávia Costa, e também tradutora desta, o filósofo explicita

seu projeto político-filosófico. Assim, Agamben releva que:

Quando comecei a trabalhar em HOMO SACER, soube que estava abrindo um

canteiro que implicaria anos de escavações e de pesquisa, algo que não poderia

jamais ser levado a termo e que, em todo caso, não poderia ser esgotado

certamente em um só livro. Daí que o algarismo I no frontispício de Homo

Sacer é importante. Depois da publicação do livro, frequentemente me acusam

de oferecer ali conclusões pessimistas, quando na realidade deveria ter ficado

claro desde o princípio que se tratava somente de um primeiro volume, no qual

expunha uma série de premissas e não de conclusões. [...] talvez tenha chegado

o momento de explicitar o plano da obra, ao menos tal como ela se apresenta

10 Seu sentido originário de uma política que busca o bem comum da coletividade encontra-se na

modernidade cerceada de rupturas. (Nota nossa)

21

agora em minha mente. Ao primeiro volume (o poder soberano e a vida nua,

publicado em 1995 na Itália), seguirá um segundo, que terá a forma de uma

série de investigações genealógicas sobre os paradigmas (teológicos, jurídicos

e biopolíticos) que tem exercido uma influência determinante sobre o

desenvolvimento e a ordem política global das sociedades ocidentais. O livro

Estado de exceção (publicado em 2003 na Itália e no Brasil em 2004) não é

senão a primeira dessas investigações, uma arqueologia do direito que, por

evidentes razões de atualidade e de urgência ´pareceu me que devia antecipar

em um volume à parte. Porém, inclusive aqui, o algarismo II, indicando a

sequência da série, e o algarismo I no frontispício indicam que se trata

unicamente da primeira parte de um livro maior, que compreenderá um tipo

de arqueologia da biopolítica sob a forma de diversos estudos sobre a guerra

civil, a origem teológica da oikonomia, o juramento e o conceito de vida (zoé)

que estavam já nos fundamentos do Homo Sacer I. o terceiro volume, que

contém uma teoria do sujeito ético como testemunha, apareceu no ano de 1998

com o título O que resta de Auschwitz. O arquivo e a testemunha. No entanto,

talvez será somente com o quarto volume que a investigação completa

aparecerá sob sua luz própria. Trata-se de um projeto para o qual não só é

extremamente difícil individualizar um âmbito de investigação adequado,

senão que tenho a impressão de que a cada passo o terreno desaparece debaixo

dos meus pés. Posso dizer unicamente que no centro desse quarto livro estarão

conceitos de forma de vida e de uso, e que o que está posto em jogo ali é a

tentativa de capturar a outra face da vida nua, uma possível transformação da

biopolítica em uma nova política.11 (COSTA, 2006, p.131).

As investigações de Agamben no campo da filosofia política iniciaram praticamente há

mais de duas décadas e meia, a partir dos anos de 1990. O projeto filosófico de Agamben

consiste em desenvolver sua filosofia política, seu modo de observar e compreender a política

no Ocidente.

As obras que constituem seu projeto filosófico denominado HOMO SACER são as

seguintes: Homo Sacer: poder soberano e a vida nua, frontispício I (1995); O que resta de

Auschwitz: o arquivo e a testemunha, frontispício III (1998); O Estado de exceção, frontispício

II, 1 (2004); O reino e a glória, frontispício II, 2 (2007); O sacramento da linguagem,

frontispício III, 3 (2008); Altíssima pobreza, frontispício IV, 1 (2011); Opus dei, II, 5 (2012);

Stasis: La guerra civille come paradigma político (2015) e , O uso dos corpos, frontispício IV,

2 (2017).12

Giorgio Agamben, além de filósofo, é um filólogo, e busca nos evidenciar a verdade, ou

mesmo buscar a verdade repensando a filosofia através de paradigmas genuínos frente à

11 Publicação feita no Brasil pela Revista do Departamento de Psicologia-UFF. 12 As obras pertencentes ao projeto HOMO SACER consultadas em nossa investigação são publicações

feitas no Brasil, portanto, divergentes da data de publicação no original em italiano, língua materna do

autor.

22

ontologia. Agamben13 reconhece a importância do uso da linguagem, não separando na

construção da linguagem e dos conceitos filosóficos evidências em relação ao uso correto do

seu sentido, significantes e significados.

Para Agamben “ à incerteza do conceito corresponde exatamente a incerteza

terminológica” (Agamben, 2004, p.15). A terminologia é o momento poético próprio do

pensamento subjetivo, então as escolhas terminológicas nunca podem ser neutras (Agamben,

2004, p.15). Sua manifestação, ocorre na e pela linguagem, em suas variadas formas de

linguagem, sendo a imaginação, a percepção, a observação, a compreensão, a arte, a escrita,

dentre outras formas, não apenas o som ou a voz, o meio de comunicação humana expresso na

e pela linguagem.

Salientamos também a partir da modernidade, o ápice do desenvolvimento das ciências

humanas e das ciências tecnológicas, estudos recentes revelam animais não humanos com a

capacidade de reprodução da fala, ou seja, o uso da linguagem não sendo apenas mérito do

homem. De forma geral sobre esse aspecto, Agamben propõe as seguintes observações:

No Ancien Régime, os limites do humano são bastante mais incertos e

flutuantes do que quando aparecem no século XIX, após o desenvolvimento

das ciências humanas. A linguagem, que se tornaria a marca por excelência

do humano, até o fim do século XVIII estavam submetidas as ordens e as

classes, por que se suspeitava que também as aves falassem. Uma testemunha

certamente confiável como John Locke se refere como coisa mais ou menos

certa a história do papagaio do Príncipe de Nassau, que era capaz de manter

uma conversa e de responder as questões como uma criatura racional.

(AGAMBEN, 2013c, p.47).

Com isso, qual nossa real pretensão? Em nossa sociedade, nas circunstâncias atuais, a

ciência demonstra a possibilidade do uso da linguagem, também pelos animais não humanos,

meio a ação dada através da comunicação reproduzida do animal não humano e o humano.

Entretanto, a negação ou a abstração da subjetividade humana na constituição dos

conceitos na investigação histórica da filosofia, nos revela na contemporaneidade a

possibilidade de hipertrofia na construção dos conceitos, ou seja, se há a possibilidade de um

animal reproduzir uma fala quiçá o humano independente de sua análise. Através de estudos

recentes, das mais variadas áreas das ciências14, cabe ao pensamento filosófico contemporâneo

13 Ressaltamos em nota que Giorgio Agamben foi intérprete das obras de Walter Benjamin na Itália. E

essas traduções, afirma o filósofo italiano, serviram de antídoto à época em que fora aluno de Heiddeger

nos anos de 1966 e 1968, nos cursos de “Le Thor”. 14 Entre elas, a neurociência, a psicologia social, as ciências da saúde, humanas e sociais aplicadas, etc...

23

maior critério de observação na constituição da linguagem conceitual, dado a relevância do

aspecto conceitual constituir nas deliberações racionais influências determinantes na vida

humana .

Assim, Agamben meio a sistematização do conhecimento, o amor à palavra e ao que os

seus significados podem nos evidenciar, sintetiza:

A filologia sempre foi parte essencial da minha pesquisa. E não porque me

aconteceu de fazer trabalhos filológicos em sentido técnico-penso na

reconstrução do livro de Benjamin sobre Baudelaire e na edição dos poemas

póstumos de Caproni, mas porque filologia e filosofia15, amor pela própria

palavra e amor pela verdade não podem de modo algum ser separados. A

verdade permanece na língua e um filósofo que não tivesse cuidado com essa

permanência seria um péssimo filósofo. Os filósofos, como os poetas, são,

antes de tudo, os curadores da língua e essa é uma tarefa genuinamente

política, sobretudo numa época, como é a nossa, que procura de todo modo

confundir e falsificar o significado das palavras. (GNOLI, 2017).

Contudo, Agamben chama a nossa atenção para a importância do uso da linguagem e

sua construção ao longo da história do conhecimento, interpretando através de suas obras, como

de fato, estas, ao longo da história da filosofia, se materializaram na construção do pensamento

Ocidental, refutando exclusivamente o sentido técnico dos significados e significantes de cada

categoria analisada, evidenciando em cada definição a precisão conceitual de seus termos.

Em setembro de 2005, o autor quando esteve no Brasil, destacou em uma de suas

conferências a importância do uso terminológico das palavras na filosofia:

As questões terminológicas são importantes na filosofia. Como disse uma vez

um filósofo16 pelo qual tenho maior respeito, a terminologia é o momento

poético do pensamento. Isto não significa que os filósofos devam

necessariamente a todo momento definir os seus termos técnicos. Platão nunca

definiu o mais importante dos seus termos: idéia. Outros ao invés, como

Spinoza e Leibniz, preferem definir more geométrico os seus termos técnicos.

E não apenas os substantivos, mas qualquer parte do discurso pode adquirir

para um filósofo dignidade terminológica. Tem se afirmado que o advérbio

gleichwol em Kant é usado como terminus technicus. Assim, em Heiddeger,

o hífen em expressões como in-der-Welt-Sein tem um evidente caráter

terminológico. E no último escrito de Gilles Deleuze, “ L. immanence: une

vie...”, tanto os dois pontos quanto as reticências são termos técnicos

essenciais para a compreensão do texto. (AGAMBEN, 2009, p.27).

15 Grifo nosso. 16 Agamben não pronuncia em sua conferência no Brasil o nome do filósofo no qual tem o maior

respeito, mas seu nome é “Gilles Deleuze”, conforme pesquisa no dicionário “The Agamben

Dictionary” (2011, p.7).

24

Agamben, a todo momento provoca nos escritores para uma clara sensibilidade para a

sútil questão de atenção, ou mesmo advertência para com a escrita filosófica. Os escritos do

filósofo que antecederam o projeto HOMO SACER foram obras e ensaios, no qual o autor

procurou construir sua filosofia amiga da poesia. Sendo Agamben, um filósofo amigo de poetas,

para ele, um dos momentos mais traumáticos do pensamento no Ocidente é a separação que

ocorre entre filosofia e poesia e, em nenhum momento, o filósofo “separa a construção da sua

filosofia política da poesia” (CASTRO, 2012, p.221).

Agamben, não faz poesia, mas também não a separa de seu pensamento, o filósofo alerta

para a ruptura entre filosofia e poesia, essa advertência provém de suas observações em relação

à passagem da poíesis a práxis. Sendo a poíesis a produção na presença, é o que nos permite

que algo passe do não ser ao ser, do ato à potência, e a práxis nada mais é do que o espaço da

reprodução da produção.

Na modernidade, tudo é reduzido ao campo da práxis perdendo o seu sentido originário,

entendidos ambos os gêneros de forma distintas; a poíesis reflete o espaço da produção de algo

originário, diferente de sua própria produção, e a práxis, não é o campo da reflexão, mas o

espaço da manutenção de si própria, de sua própria reprodução.

A reprodução da própria produção do conhecimento, na modernidade é reduzido ao

campo da práxis, remetendo ao nosso entendimento, à noção de experiência. Essa experiência,

segundo Agamben, não condiz a uma experiência compreendida conforme a ciência e a filosofia

moderna, apenas concebendo-a como uma condição de possibilidade do conhecimento.

Para Agamben, a experiência perdeu seu sentido originário, ocorrendo uma

expropriação do que vem a ser a experiência. Na modernidade, toda a experiência é antecipada

pelas regras do método, entretanto, a produção se efetiva em condições idênticas ou quase

idênticas, não legitimando seu desenvolvimento.

O que ocorre na expropriação da experiência é a negação da experiência singular, de

apreender na realidade o acontecimento antecipável e repetível capaz de legitimar a

transformação de uma vida.

Através da obra de arte, podemos identificar a condição do homem na história, é para

este sentido que Agamben nos chama a atenção.

25

Para Agamben, a poíesis está ligada à verdade, à presença pura, esse é o campo da arte,

do belo, e a práxis está ligada à vida, à uma existência biológica nua17 (nuda esistenza biológica)

terminologia que antecipa o sentido de vida nua (nuda vita), um espaço do produtivismo de

repetição da técnica, o local do esvaziamento do sentido do que é belo e contemplativo, o espaço

de uma visão mecanicista do homem, como se esse não fosse um ser orgânico, mas uma

máquina de engrenagem, um corpo dócil, o campo da estética e da sociedade do espetáculo.

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de

produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o

que era vivido diretamente tornou-se uma representação (n.1). Quanto mais a

vida do homem se torna seu produto, tanto mais ele é separado da sua vida

(n.33). A vida nas condições espetaculares é uma falsa vida (n.48), uma

sobrevivência (n.154), ou, ainda, um pseudo uso da vida (n.49). Contra essa

vida alienada e separada, defende-se algo que Guy chama de vida histórica

(n.139) (DEBORD, 1997, p. 13-25-33-34-97-106).

E, essa vida histórica defendida por Guy Debord, na urgência do resgate de seu sentido,

é o campo de reflexão para Agamben, deslocando seu pensamento como tarefa urgente e

necessária para o resgate do sentido da vida, a partir do pensamento grego, uma vida dividida

e articulada, a bios e a zoé e sua inserção na pólis, na vida da política e seus reflexos na vida

contemporânea.

O que ocorre na modernidade é um vazio, uma ruptura com a tradição, não implicando

sua desvalorização, mas o passado “perdeu a sua transmissibilidade, até que não se encontre

um novo modo de acesso a ele, este apenas vem se tornando objeto de acumulação”.

(AGAMBEN, 2013, p. 174).

A crise18 da poíesis e a época da estética, refletem a condição de possibilidade da vida

humana na modernidade. Evidências que se deslocam por meio de rupturas, não devendo ser

deixadas de lado, sendo, de fato, relevante para nosso objetivo, afinal, de fato, o Estado é

17 Agamben passou a chamar a vida que se efetiva na práxis de existência nua biológica, a partir do ano

de 1970, quando este escreveu a obra: O homem sem conteúdo. 18 Nos referimos em nosso trabalho, a pensar a realidade como essa de fato se apresenta no mundo

concreto, alijando um pensamento filosófico abstrato que contradiz a realidade. O termo Crise é um

conceito grego (crisis), que serve para expressar uma base filosófica, buscando na etimologia da palavra

a resposta para a pergunta “o que é Crise? ”. Segundo Mario Ferreira dos Santos, essa terminologia nos

lembra que Crise é separação, abismo, juízo e decisão. Ou seja, Crise é escolha, a vida humana é uma

crise, pois é escolha. Crise não é catástrofe, nos alerta o filósofo, os que assim a interpretam, distorcem

o sentido da etimologia da palavra. Para aprofundamento do termo, consultar a obra: SANTOS, Mario

Ferreira dos. Filosofia da Crise. 2017.

26

governado pelos humanos para os humanos e inumanos19, esse é o significado de sua existência

e o significante de sua finalidade.

Como exemplo, em conformidade à crise da poíesis, Agamben observa evidências a

partir da dissertação sobre “A genealogia da moral”, de Nietzsche, que radicalmente critica a

definição kantiana do belo como prazer desinteressado:

Kant – ele escreve – achava que estava honrando a arte quando, entre os

predicados do belo, concedeu uma posição privilegiada aqueles dos quais o

conhecimento se orgulha: a impessoalidade e a universalidade. Este não é o

lugar para examinar se isso não foi um erro capital; quero apenas fazer notar

que Kant, como todos os filósofos, em vez de considerar o problema estético

fundando-se na experiência do artista (do criador), meditou sobre a arte e o

belo apenas como espectador e, insensivelmente, introduziu o espectador no

conceito de beleza. Se, ao menos, esse espectador tivesse sido suficientemente

conhecido pelos filósofos do belo! – Se tivesse sido para eles um fato pessoal,

uma experiência, o resultado de uma quantidade de vivencias originais e

sólidas, de desejos, de surpresas, de arrebatamentos no território do belo! Mas

foi sempre – temo – exatamente o contrário: de modo que, do início ao fim,

eles nos dão definições do belo de Kant, há uma falta de uma sutil experiência

pessoal que se assemelha muito ao grande verme do erro fundamental. O Belo,

diz Kant, é aquilo que agrada sem que isso se misture o interesse. Sem

interesse! Comparem com essa definição esta outra, que pertence a um

verdadeiro espectador e a um artista, a Stendhal, que certa vez chamou a

beleza de uma promessa de felicidade. Em todo caso, encontramos aqui

refutado e posto de lado exatamente aquilo que, segundo Kant, dá

particularidade do estado estético: le désintéressement. Quem tem razão? Kant

ou Stendhal? Se os nossos professores de estética lançam incessantemente na

balança, a favor de Kant, a firmação de que, sob o fascínio da beleza, se pode

olhar, de modo desinteressado, até uma estátua feminina nua, ser – nos –á

permitido rir um pouco as suas custas: as experiências dos artistas, quanto a

esse ponto delicado, são, pelo menos, mais interessantes, e Pigmaleão20 não

era necessariamente um homem inestético. (NIETZSCHE, 1998, p. 93-94)

Para Nietzsche, a experiência da arte, expressa através da linguagem, não é, de modo

algum, uma estética, mas um conceito de beleza, purificada através da sensibilidade do

espectador, considerando a arte do ponto de vista de seu criador, a apreensão do belo através

do mundo sensível daquele que a admira. Será mesmo que se contempla o belo de forma

desinteressada?

Podemos, entretanto, compreender o porquê de Kant conceder à arte, a abstração da

sensibilidade, a impessoalidade e a universalidade ao seu real sentido, a negação do mundo

19 Morto-vivo, representado segundo Agamben, na figura do muçulmano, conceito que abordaremos no

terceiro capítulo de nossa investigação. 20 Segundo Ovídio, Pigmaleão era um escultor e rei de Chipre, que se apaixonou por uma estátua que

esculpira ao tentar reproduzir a mulher ideal. (OVÍDIO. Metamorfoses, 243). (N.T).

27

sensível através da razão, sendo o apreço à arte uma paixão e, na visão kantiana “as paixões são

más em sua natureza, já que fazem o indivíduo perder o senso da realidade, desvirtuando, com

isso, os fins da razão. Elas geram julgamentos errôneos e atitudes viciosas, corrompendo a razão

prática, condicionando o raciocínio ao erro” (PEQUENO, 2017, p.75).

Através dessa observação, deparamo-nos com mais uma questão predominante na

história da filosofia no Ocidente, um pensador de relevância no desenvolvimento da filosofia

moderna no pensamento ocidental, “Kant, a fim escapar às armadilhas do sensível, pretende

integrar a sensibilidade ao entendimento, pois, se por um lado o homem faz parte da natureza,

por outro a afirmação da liberdade pela razão lhe permite ir além da ordem natural das coisas”

(PEQUENO, 2017, p.77).

Enfim, interpretar a nossa realidade a partir de uma perspectiva kantiana na

contemporaneidade, leva-nos a compreender a realidade? É possível um conhecimento ir além

da ordem natural das coisas?

Nessa perspectiva, Agamben também nos convida a refletir nas figuras do terrorista e

do retórico, não que o filósofo tenha a pretensão de resgatar tais sentidos da arte, da linguagem,

ou mesmo buscar solução para tais problemas, mas podemos observar que sua intenção está em

nos evidenciar o lugar do homem na história, o seu fazer humano delineando o campo da análise

em relação à vida humana na contemporaneidade.

Agamben retoma de Jean Paulhan, nas Fleurs de Tarbes (PAULHAN, 1990), partindo

de uma ambiguidade da linguagem, a linguagem pura que, por um lado, podemos expor os

signos dando voz aos nossos sentidos, que evocam os escritores e, por outro lado, os Retóricos,

que associam ideias aos signos, “dissolvendo todo o significado na forma e fazem desta a única

lei da literatura” (AGAMBEN, 2013, p.29).

Entretanto, “os terroristas21, se recusam a se dobrar a essa lei e perseguem o sonho

oposto de uma linguagem que não seja mais que sentido, colocando o escritor em contato com

21 O pintor Frenhofer, em “A obra-prima desconhecida de Balzac”, é o tipo perfeito do Terrorista.

Frenhofer, buscou por dez anos criar sobre a tela algo que não fosse apenas uma obra de arte, mesmo

que genial[...] ele apagou a arte com a arte para fazer de sua Banhista não um conjunto de signo e cores,

mas a realidade vivente do seu pensamento e da sua imaginação. A minha pintura, ele diz aos seus dois

visitantes, não é uma pintura, é um sentimento, uma paixão! [...] onde está a arte? [...] gritou o jovem

Poussin: mas cerdo ou tarde se dará conta de que não há nada em tela[...] um sinal de alarme[...] o Terror

começa a fazer parte da arte ocidental. [...] observemos[...] todo sentido se dissolveu, todo conteúdo

desapareceu, com exceção da ponta de um pé que se destaca do resto da tela[...] a busca de um

significado absoluto devorou todo significado para deixar sobreviver apenas signos, formas privadas de

sentido. [...] então, a obra-prima desconhecida não é, ao contrário, a obra-prima da retórica? É o sentido

que apagou o signo ou é o signo que aboliu o sentido? Eis o terrorista colocado em confronto com o

paradoxo do Terror. Para sair do mundo evanescente das formas, ele não tem outro meio senão a própria

28

o absoluto” (AGAMBEN, 2013, p.29). Assim, para o “Retórico, como o espectador, a obra de

arte é um conjunto de elementos sem vida; para o terrorista, como para o artista, ao contrário,

ela deve ser uma realidade vivente” (CASTRO, 2012, p.17).

. A finalidade do retórico é a persuasão, “o terrorista é um misólogo e, na gota d’água

que resta na ponta de seus dedos, não reconhece mais o mar no qual acreditava ter imergido”.

(AGAMBEN, 2013, p.29).

Os questionamentos elaborados por Agamben noz conduz a repensarmos a nossa

contemporaneidade. Sendo assim, nos pergunta Agamben, em seminário:

A pergunta que gostaria de escrever no limiar deste seminário é: De quem e

do que somos contemporâneos? [...] ler textos cujos autores de nós distam

muitos séculos e outros que são mais recentes ou recentíssimos: mas, em todo

caso, essencial é que consigamos ser de alguma maneira contemporâneos

desses textos. O tempo do nosso seminário é a contemporaneidade, e isso

exige ser contemporâneo dos textos e dos autores que se examinam. [...] uma

primeira indicação para orientar a nossa procura por uma resposta nos vem de

Nietzsche. Numa anotação dos seus cursos no Collége de France, Roland

Barthes resume-a deste modo: “O contemporâneo é o intempestivo”. Em

1874, Friedrich Nietzsche, um jovem filólogo que tinha trabalhado até então

sobre textos gregos e, dois anos antes, havia atingido uma inesperada

celebridade com o Nascimento da tragédia, publica as Unzeitgemasse

Betrachtungen, as “Considerações intempestivas”, com as quais quer acertar

as contas com o seu tempo, tomar posição em relação ao presente[...]

Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, a sua contemporaneidade em

relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertencer

verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que

não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e

é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente

através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os

outros, de perceber e apreender o seu tempo[...]. Contemporâneo, portanto, é

uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este através de uma

dissociação e um anacronismo. Aqueles que coincidem muito plenamente

com a época, que em todos os aspectos a este aderem perfeitamente, não são

contemporâneos porque, exatamente por isso, não conseguem vê-la, não

podem manter fixo o olhar sobre ela. (AGAMBEN, 2009, p.57-59)

Para o filósofo, contemporâneo ou ser contemporâneo é a singular relação estabelecida

entre o observador, o tempo e o espaço geográfico, ou seja, um estar situado de fato no momento

presente, observando, a partir deste, as marcas históricas e culturais presente no objeto

observado.

forma; e quanto mais quer apaga-la permeável ao indizível que quer exprimir. [...] fugir da retórica o

conduziu ao terror, mas o terror o reconduz ao seu oposto, isto é, mais uma vez a retórica. A misologia

‘ódio, aversão a arte do raciocínio, a lógica, ao raciocínio lógico’, deve-se transformar, invertendo-se,

em filologia, e signo e sentido se perseguem em um perpétuo círculo vicioso. (AGAMBEN, 2013, p.32).

29

Porém, defrontando-se com suas limitações em situações de exceção, sendo as

situações de exceção o momento no qual o observador não consegue captar na sutileza de suas

vivências humanas o verdadeiro sentido da linguagem.

Na apreensão do objeto observado, o observador, para atingir o seu objetivo, revira

avidamente a trajetória civilizatória na busca de paradigmas, exemplos, “nem particular nem

universal, o exemplo é um objeto singular que por assim dizer, se dá a valer como tal, mostra a

sua singularidade” (AGAMBEN, 2013, p.18), possibilitando, dessa forma, a compreensão dos

problemas contemporâneos em relação ao objeto de observação.

O movimento de apreensão do objeto é dado através do passado, deslocando-se para o

presente, defrontando com os mesmos problemas, porém, quando esses foram pensados no

passado, seus observadores pensavam o próprio tempo. Podemos interpretar o tempo no sentido

de um corte, uma ruptura na realidade dada através da consciência do observador na construção

ou interpretação do conhecimento, permanecendo o conhecimento na eternidade.

Nesse sentido, tudo o que está registrado na linguagem genérica da filosofia

corresponde a demonstrações de experiências intelectuais e existenciais concretas, a

experiência invisível de um conjunto de seres humanos, passando para outros seres humanos,

conforme a evolução da humanidade através de suas percepções de mundo nessa realidade, uma

realidade distópica transmutando a realidade.

Giorgio Agamben, procede na busca de um futuro anterior, partindo do presente ao

passado, paralelamente, desvelando exemplos paradigmáticos. O futuro anterior tem a ver com

hábitos passados reproduzidos ao longo da história e deslocados ao momento presente.

O futuro anterior se faz presente por repetições que permanecem encobertas sobre os

véus que ocultam a realidade do pensamento Ocidental. Sendo a construção do pensamento ou

mesmo as suas mais variadas interpretações, processos de subjetivações do passado, vistos e

observados, através das lentes do observador no momento presente repetindo os mesmos

métodos.

Agamben repensa a tradição política do Ocidente fazendo uma inflexão na história da

filosofia. Ainda que conteste ceticamente a história da filosofia, esta serve de pressuposto para

um novo filosofar. “[...] este caminho para a resposta a nossa questão não representa uma

ruptura com a história, nem uma negação da história, mas uma apropriação e transformação do

30

que foi transmitido”.22 Por meio da inflexão crítica da história da filosofia, o filósofo reconstrói

suas reflexões a partir da filosofia da história, na busca de uma compreensão e elucidação da

filosofia política e seus reflexos na construção do pensamento político no Ocidente.

Ao longo do desenvolvimento de nossa pesquisam partimos do pressuposto de que o

filósofo articula seu projeto a partir da epistemologia frente à ontologia clássica, a política e a

ética contemporânea, pelo viés do conceito de vida, a relação dessa centralizada com a política

e o direito no pensamento filosófico Ocidental, tema de maior relevância para a filosofia do

final do século XX e início do século XXI, e o modo como esta problemática da definição do

conceito de vida repercute no paradigma da política contemporânea (AGAMBEN, 2012,

p.193). Bazzanella (2010, p.19), em sua tese de doutorado, também nos esclarece:

[...] o projeto filosófico de Agamben desenvolve-se na perspectiva de uma

inversão do “cogito” cartesiano que funda a modernidade filosófica,

afirmando a primazia da dimensão epistemológica como tarefa filosófica

primeira. A famosa assertiva do filósofo: “ Cogito, ergo sum” (Penso, logo,

existo), determina que o fundamento, o princípio primeiro que avaliza a

condição de existência do ser humano, do mundo e dos seres nele existentes é

intrínseco ao ser humano. A existência do “Eu” pensante é o fundamento da

realidade, a condição “sine qua non” de determinação dos modos de

existência. O mundo, os entes que nele se apresentam passam a ter suas

existências fundadas e determinadas pelo tribunal da razão humana. A res

cogitans passa a ser determinante na relação com a res extensa, na medida em

que, com a afirmação do cogito Descartes “(...) pretende encerrar o

conhecimento do ser humano na reflexão da consciência fundadora de

si”.23 (Grifo nosso) (SCHAEFFER, 2009, p.55).

Então perguntamos: Porque o projeto filosófico de Agamben desenvolve-se numa

perspectiva de inversão do cogito cartesiano? Agamben constrói seu projeto, elucidando

observações conceituais através da epistemologia frente à ontologia, ocorrendo de fato a

primazia da epistemologia, sendo esta a base para a construção do conhecimento.

O filósofo analisa os conceitos da filosofia através de paradigmas (no grego para-

deigma, exemplos, hábitos)24, ou seja, o paradigma observado em nosso contexto, a partir de

22 "Cette chemin à la réponse à notre question ne représente pas une rupture avec l'histoire, ni un déni

de l'histoire, mais une appropriation et une transformation de ce qui a été transmis". (HEIDDEGER,

2005, p.35-36). 23 “(...) pretende encerrar el conocimiento del ser humano em la reflexividad autofundadora de la

consciência de si”. (Citação original). 24 Nesse sentido, Aristóteles disse: faz se por hábito aquilo que se faz por se ter feito muitas vezes, e

acrescenta que o hábito é de certa forma semelhante à natureza, já que frequentemente e sempre são

próximos: a natureza é daquilo que é sempre; o hábito é daquilo que é frequentemente. Com isso,

Aristóteles viu no hábito uma espécie de mecanismo análogo aos mecanismos naturais, que garante de

31

exemplos, é uma infinidade de hábitos que nos conduzem a determinadas ações sem o uso da

nossa consciência, hábitos estes que, ao longo da história da filosofia, foram se perpetuando,

indicando uniformidade aos acontecimentos, podendo não apresentar uma uniformidade

rigorosa ou absoluta, mas provável nos dias atuais, através do viés da vida humana, desde o

início da história da filosofia.

René Descartes25 é considerado o pai do racionalismo moderno. O seu método prioriza

o racionalismo que passa a residir na consciência subjetiva, sendo a premissa fundante de seu

pensamento a dúvida hiperbólica: posso duvidar de tudo o que me apresentam, mas não duvido

de minha capacidade de duvidar, e se duvido penso, pensando então, existo, esta é a verdade

revelada através do método cartesiano.

Esse saber passa a ser introduzido no pensamento Ocidental como fundamento do saber

constituído pela própria razão, tornando-se uma questão de fundamentação ao nível de uma

filosofia da consciência26, pressupondo como coisa óbvia a idéia do pensamento abstrair das

coisas algum juízo como um tribunal racional, o império da razão em detrimento do sensível,

legislando os limites do conhecimento no racionalismo e não no sensível sobre as coisas.

Como todo pensamento, a filosofia cartesiana está enraizada no passado (a

escolástica medieval). Como todo pensamento, também paga a dívida que tem

com seu próprio tempo (a geometrização da física). E, como todo grande

pensamento, fomentou o futuro: algumas de nossas evidências

epistemológicas melhor consolidadas sempre lhe são afluentes. (...), reivindica

a concepção de um Sujeito que funda a si mesmo na certeza de si. A tese

ontológica, então, está doravante sob a dependência de uma tese

epistemológica. Um segundo deslocamento importante diz respeito ao

gnoseocentrismo27. Ao contrário do ideal cognitivo medieval, Descartes,

apesar do ressurgimento da prova ontológica, já não está mais inclinado para

o conhecimento da natureza divina, mas se concentra em dois objetos profanos

complementares: a auto elucidação da consciência e o conhecimento da

natureza concebida como outro desta consciência. (...) o terceiro ponto pelo

qual o cartesianismo fomentou a filosofia moderna reside no fato de que

certa forma, a repetição uniforme dos fatos, atos ou comportamentos, eliminando ou reduzindo nestes

últimos o esforço e o trabalho, tornando-os, assim, agradáveis. (ABBAGNANO, 2000, p. 494). 25 Renatus Cartesius (em latim), o verdadeiro nome de Descartes, por isso a definição de método

cartesiano. 26 O cogito ergo sum é a auto evidência existencial do pensamento como consciência de sua própria

existência. Diz Descartes: ” com o nome do pensamento entendo todas as coisas que acontecem em nós

com consciência, enquanto temos consciência delas. Assim, não só entender, querer e imaginar, mas

também sentir é o mesmo que pensar. Pois se digo: vejo ou ando, logo sou, e pretendo falar da visão e

do andar que se faz com o corpo, a conclusão é certa porque então se refere a mente, que só sente ou

pensa que vê ou anda”. (ABBAGNANO, 2000, p.188). 27 A transferência do conhecimento antes dominado pela religião para o campo da filosofia.

32

pretendeu (e conseguiu) transferir o segregacionismo epistêmico do campo da

teologia à filosofia.28

O desenvolvimento da filosofia moderna recebe significativa influência de Descartes,

que influencia outros filósofos na construção de seus sistemas filosóficos, tornando-se estes,

herdeiros de seu pensamento, enquanto outros caminham na corrente contrária dessa tradição.

Seguir o pensamento de Descartes é mergulhar em um “solipsimo metódico, ou abstractive

fallacy” (LEITE, 1996, p.122). Segundo Karl-Otto-Apel, uma consciência solipsista separada

de uma realidade comunicativa-pragmática na qual vive o sujeito, o que é próprio da filosofia

do sujeito e da consciência, capturando a compreensão do objeto como produto do sujeito, um

eu solipsista que argumenta e contra-argumenta consigo próprio.

Ou seja, na filosofia da Consciência, a realidade está do lado de fora, é constituída por

linguagem aparente, mas não real. Então, perguntamos: como a realidade é constituída? Como

construir um conhecimento que não se limita a apenas conhecer o que está posto, mas sobretudo

o que está oculto na própria construção do conhecimento? Utilizando, apenas de nossa

linguagem, visão do mundo, não estariamos nos limitando, a compreender a realidade dos fatos?

A interdisciplinaridade do conhecimento, não nos possibilita maior capacidade de abstração do

que vem a ser o mundo? Argumentar e contra-argumentar conosco mesmo, não nos leva a

enxergar o mundo através de uma garrafa de vidro? De modo deturpado?

A essas questões não iremos dar respostas, mas vejamos um exemplo: nós vemos um

coqueiro, à primeira vista, vemos que este é verde. Vemos ele verde. Mas, tudo o que ele não

é, é verde. Para ele sobreviver, este sobrevive através do processo da fotossíntese, ele não

absorve o verde, antes este o repele, no dia em que o coqueiro absorver o verde, ele morrerá.

Dentro, ele não é verde, apenas fora. E, assim vamos construindo nossa linguagem, nosso

conhecimento, agrupando conceitos, categorias, conforme nossos referenciais, não apenas nos

28 Citação original no espanhol: Como todo pensamiento, la filosofia cartesiana se arraiga en el pasado

(la escolastica medieval). Como todo pensamiento, también paga la deuda que tiene con su propria

epoca (la geomatrización de la física). Y, como todo gran pensamiento, fecundo el porvenir: algunas

de nuestras evidencias epistemológicas mejor afianzadas siempre le son tributarias. (...), reinvidica la

concepción de un Sujeto que se funda a sí mesmo en la certidumbre de si. La tesis ontológica, pues, se

encuentra en adelante bajo la dependencia de una tesis epistemológica. Un segundo desplaziamento

importante concierne al gnoseocentrismo. Contrariamente al ideal cognitivo medieval, el Descartes,

pese a la reactivación de la prueba ontológica, ya no está inclinado hacia al conocimiento da la

natureza divina, sino que se centra en dos objetos profanos complementarios: la autoelucidación de la

conciencia e el conocimiento de la natureza concebida como otro de esta consciencia. (...) el tercer

punto por el cual el cartesianismo fecundó a la filosofía moderna reside en el hecho de que emprendió

(y logro) transferir el segregacionismo epistémico del campo de la teología hacia el de la filosofia.

(SCHAEFFER, 2009, p.57).

33

limitando a nossa percepção, mas em comum a outras percepções, nos aproximando do

verdadeiro conhecimento.

Agamben assume uma posição cética quanto ao método do conhecimento racionalista,

frente as fissuras do próprio conhecimento, predominante na história da filosofia, assim como

também demonstra em suas investigações a relevância em compreendermos a filosofia da

linguagem e suas provenientes ambiguidades, e como a filosofia da linguagem, assim como o

racionalismo, contribuíram na construção do pensamento filosófico do Ocidente, utilizando-se

de paradigmas, fonte de conhecimento, para a compreensão dos reflexos dessa construção na

história da filosofia.

É a partir da filosofia contemporânea que a linguagem encontra seu lugar de mérito,

como formadora da história e do próprio gênero humano, uma superação ao solipsismo

metódico, ou seja, o paradigma linguístico superando o logocentrismo ocidental. A linguagem,

a partir do século XIX, não é mais um simples objeto da filosofia, “mas que pela primeira vez

se considera seriamente como condição de possibilidade da filosofia”. (LEITE, 1996, p.122).

É a partir deste movimento que Agamben vai construindo o seu projeto filosófico com

raízes na divisão clássica da filosofia a partir de Aristóteles, partindo de um sujeito cognoscente,

frente a ontologia em transição com as bases epistêmicas da gnosiologia, em uma compreensão

efetiva da filosofia primeira, berço da filosofia do conhecimento, procurando indicar o mundo

como este se apresenta de fato. Ademais, para chegarmos a essa apreensão, faremos uma breve

descrição do método arqueológico de Giorgio Agamben.

1.2 O método arqueológico agambeniano

Agamben parte de uma investigação genealógica do conceito vida, como esta se

apresenta na cultura Ocidental. Entretanto, para empreender suas investigações, após a

modernidade, essa investigação só se fará possível através do método arqueológico.

O conceito de vida, é um conceito impreciso, permanecendo indeterminado,

apresentando-se dividida por meio de “uma série de cortes e de oposições investidas de uma

função estratégica decisiva em âmbitos aparentemente afastados como a filosofia, a teologia, a

política e tempos depois na medicina e na biologia” (AGAMBEN, 2013, p.29).

Agamben parte da premissa de como a vida se apresentou ao longo da história na

tradição do pensamento filosófico político desde os gregos até a contemporaneidade, ou seja,

como algo que deva se apresentar sempre dividida e articulada, sem uma definição precisa na

cultura Ocidental.

34

Nesse intuito, faz-se necessário inicialmente, entendermos o sentido e a relevância do

método arqueológico e paradigmático de Agamben, um método histórico-filosófico que se

distancia de maneira cética29 das ideias de evolução e progresso, uma arqueologia histórica do

passado, uma sombra na interrogação histórica do presente. Assim, define-se o método de

investigação agambeniano a partir do pressuposto de que seu método não caminha no mesmo

movimento da arqueologia foucaultiana, embora se aproximem.

Ruiz (2012) assim demonstra que, “[...] a arqueologia procura reconstruir as

singularidades históricas, as rupturas epistêmicas dos conceitos em uma determinada época[...]

sem uma consciência crítica arqueológica de nossas crenças e práticas, nos manteremos na

inércia do status quo” (RUIZ, 2012).

Foucault e Agamben possuem uma maneira singular na construção da arqueologia,

sendo que, em nossa pesquisa, limitar-nos-emos a descrever o que é para Agamben o seu

método arqueológico, ou seja, como seu método se efetiva para a construção do conhecimento.

Por arqueologia devemos entender “a prática que, em toda investigação histórica, não

se ocupa da origem, mas do ponto de insurgência do fenômeno” (AGAMBEN, 2008b, p.90).

A relevância em demonstrar o método de Agamben se dá através do modo por meio do qual o

filósofo considera buscar em suas investigações não a sua origem histórica das definições, mas

o ponto de insurgência de sua origem e manifestação do fenômeno.

O método agambeniano se apresenta na perspectiva de uma investigação ontológica,

uma filosofia primeira, fundamentada na linguagem com base na origem da gênese humana, o

devir humano e as implicações da linguagem na política, no direito e na ética no mundo

contemporâneo.

Para o filósofo, a metafisica é a responsável pela divisão antropocêntrica da definição

do conceito de vida humana, atrelada do início ao fim, a partir da separação que se deu entre

homem e animal. Para Agamben, esse acontecimento não ocorre repentinamente, de forma

imediata, tudo é uma construção em desenvolvimento, decisivo em cada indivíduo, do animal

ao humano, da natureza a história, da vida a morte (AGAMBEN, 2013, p.129-130).

29 Posicionar-se de uma maneira cética é opor-se ao dogmatismo, despertar do sono dogmático. Na lição

de Miguel Reale, enquanto os dogmáticos afirmam a possibilidade de atingir-se a verdade com certezas

e sem limites a priori, o ceticismo implica numa constante atitude dubitativa ou em todas as formas e

graus de conhecimento, convertendo a incerteza em características essenciais dos enunciados, tanto na

Ciência, quanto na Filosofia. O cético não acredita em nada, ou desacredita de tudo. Seu pensamento se

reduz a um pêndulo a oscilar entre polos dogmáticos opostos, sem se deter em qualquer um deles. E a

dúvida, não implica o conhecimento, trata-se de suspensão do juízo. Cético não é o que nega, nem o que

afirma, mas o que se abstém de julgar.

35

O filósofo demonstra a possibilidade de uma investigação arqueológica de todo saber,

uma reflexão metodológica em suas investigações, nos permitindo enfrentar com radicalidade

questões que envolvem a filosofia contemporânea; suas tensões, dicotomias, pares conceituais,

que estruturam nossa cultura, exemplos: Esquerda/Direita, Identidade/Verdade, Bom/Mal,

Estado de Direito/Estado Absoluto, Emoção/Razão, superando a lógica binária.

Porém,

Superar a lógica binária é sermos capazes de superarmos as dicotomias

existentes em nossa tradição política e em nossa linguagem por campos de

bipolaridades, atraindo forças opostas em uma permanente tensão sem

demarcações de separação. A lógica de um campo em detrimento da lógica

substancial envolvida, ou seja, que entre A e A não se deva surgir desta relação

um novo elemento, e nem mesmo um elemento igual aos anteriores, mas a

neutralização e transformação dos elementos constitutivos em um único

elemento (ROBERTO, 2008, p.04).

Ocorrendo uma transformação das dicotomias em polaridades, neutralizando as

exceções que por elas são produzidas, não sendo a intenção demarcar um estado cronológico

da definição dessas dicotomias, mas, ao contrário, analisar a compreensão de nossa realidade,

no momento contemporâneo, a partir de uma análise analógica anterior, ou seja:

Em La linea e il circolo (A linha e o círculo), Melandri30 demonstrou que a

analogia se opõe ao princípio dicotômico que domina a lógica ocidental.

30 Enzo Melandri nasceu em Gênova em 14 de abril de 1926. Um pensador de esquerda, excluído da

década de 70 a 80 da esquerda italiana. Agamben procura dar voz ao trabalho de Melandri, através da

construção de seu método, em sua obra: Signatura rérum: él método com forte influência do mesmo.

Enzo, depois de inicialmente conduzir estudos técnicos com experiência em química, aprendeu "a arte

do autodidata", obtendo o diploma de maturidade clássica em 1954. Ele freqüentou a Universidade de

Bolonha, graduando-se em Filosofia em 1958. De 1958 a 1961 ele foi um leitor italiano na Universidade

de Kiel (Alemanha). Em 1962, obteve a posição de Filosofia teórica na Faculdade de Letras e Filosofia

da Universidade de Lecce, enquanto em 1963 ocupou o cargo de Filosofia na Faculdade de Magistério

da Universidade de Bolonha, onde ocupou o seu cargo. Todo o curso acadêmico, com exceção dos anos

entre 1972 e 1974, nos quais - como resultado do ordinariato - ele também lecionou Filosofia Moral na

Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Trieste. Desde 1983, seu ensino foi emprestado da

Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha. Ele morreu em 25 de maio de 1993 em

Faenza, onde residia. Paralelamente à atividade universitária, ele trabalhou extensivamente - desde o

final dos anos cinquenta - com a editora Mulino, para a qual ele realiza traduções e curadores de

numerosos volumes e publica algumas de suas obras mais importantes (veja a bibliografia completa dos

escritos). Por Enzo Melandri em Id., A Linha e o Círculo: Estudo Lógico-Filosófico sobre Analogia

(1968), especificamente nesta obra, consta a introdução de Giorgio Agamben, influenciando o mesmo

na construção de seu método arqueológico, em Quodlibet, Macerata 2004). Em 1979, ele estabeleceu

um grupo interdisciplinar de estudos leibnizianos, mais tarde filiado ao nome "Sodalitas Leibnitiana" à

Leibniz-Gesellschaft em Hannover. Ele colaborava ativamente, nos anos 80, com as atividades do

Centro de Estudos para a Filosofia da Europa Central (baseado em Trento); participou em 1982 na

realização de «Topoi», revista internacional de filosofia. Naqueles anos, ele deu vida aos "Anais do

36

Contra a alternativa drástica <ou A ou B>, que exclui o terceiro, a analogia

sempre faz uso do seu tertium datur, seu obstinado <nem A nem B>. A

analogia intervém, portanto, nas dicotomias lógicas (particular/universal,

forma/conteúdo, legalidade/exemplar etc.) não para constituí-las em uma

síntese superior, mas para transformá-las em um campo de forças atravessadas

por tensões polares, em que, da mesma forma que ocorre em um campo

eletromagnético, estas perdem sua identidade substancial. Mas em que sentido

e de que maneira um terceiro termo se dá aqui? Certamente não como um

termo homogêneo para os primeiros, cuja identidade poderia ser definida, por

sua vez, por uma lógica binária. Apenas do ponto de vista da dicotomia, o

análogo (ou o paradigma) pode aparecer como um tertium comparationis. O

terceiro analógico afirma aqui, em primeiro lugar, através da desidentificação

e da neutralização dos primeiros, que então se tornam indiscerníveis. O

terceiro é essa indiscernibilidade, e se alguém a procura por meio de cesuras

bivalentes, deve necessariamente alcançar um indefinível. Nesse sentido, é

impossível separar com clareza em um exemplo sua condição paradigmática,

seu valor para todos, de ser um caso singular entre os demais. Como em um

campo magnético, não se trata de grandezas extensas e diretas, mas de

intensidades vetoriais.31

Agamben afirma o momento presente como pressuposto para a investigação

arqueológica, sendo a prática linguística, uma constituinte originária de uma verdade

organizada em diferentes formas de vida, uma condição de possibilidade própria do humano

enquanto agente de comunicação humana.

A arché não é um dado ou uma substância, mas um campo de forças históricas

bipolares, tensionadas entre a antropogênese e a história, entre a emergência

e o devir, entre um arquipassado e o presente. E, como tal, na medida em que,

como a antropogênese, a arché é algo que se supõe, necessariamente

acontecido, mas que não pode ser hipostasiado em um fato dentro da

cronologia, só pode garantir a inteligibilidade dos fenômenos históricos,

Instituto de Disciplinas Filosóficas" da Universidade de Bolonha, em seguida, transformou - a partir de

1991 - na revista semestral "Disciplinas Filosóficas", da qual ele é o primeiro diretor. 31 Citação original em espanhol: En La linea e il círcolo [la línea y el círculo], Melandri há mostrado

que la analogia se opone al princípio dicotómico que domina la lógica occidental. Contra la alternativa

drástica < A o B>, que excluye al terceiro, la analogia siempre hace valer su tertium datur, su obstinado

<ni A ni B>. La analogia interviene, pues, em las dicotomias lógicas (particular/universal;

forma/contenido; legalidade/ejemplaridad,etc.) no para componerlas em uma sínteses superior, sino

para transformarlas em um campo de fuerzas recorrido por tensiones polares, em el cual, del mismo

modo em que ocorre em um campo electromagnético, éstas pierden su identidade sustancial. Pero...en

que sentido y de qué modo se dá aqui um tercer término? Ciertamente, no como um término homogéneo

a los primeiros, cuya identidade podría definirse a su vez por uma lógica binaria. Sólo desde el punto

de vista de la dicotomia, el análogo (o el paradigma) puede aparecer como um tertium comparationis.

el terceiro analógico se afirmar aqui ante todo a través de la desidentificación y la neutralización de

los primeiros, que se vuelven entonces indiscernibles. El terceiro es esta indiscernibilidad, y si se busca

aferrado a través de cesuras bivalentes se llega necessariamente a um indecidible. Em este sentido, es

imposible separar com claridade em um ejemplo su condición paradigmática, su valer para todos, de

su ser um caso singular entre los otros. Como em um campo magnético, no se trata de magnitudes

extensivas y garduales, sino de intensidades vectoriales. (AGAMBEN, 2008b, p.08-09).

37

salvá-los arqueologicamente em um futuro anterior na compreensão, não de

uma origem – em todo caso inverificável, mas de sua história, a uma só vez,

finita e impossível de totalizar (AGAMBEN, 2009, p.151).

A arché ocupa um lugar central no pensamento agambeniano influenciando sua visão

cética ao objeto observado. A estratégia de Agamben por meio desta é articular o passado e

deslocar este para o futuro, ou seja, através do reflexo do passado no momento presente, impedir

que este permaneça como projeção do futuro na contemporaneidade, explicando os fenômenos

históricos sem situá-los cronologicamente, mas tornando possível a compreensão e a

acessibilidade ao momento presente, sendo esse o tempo que nos resta, o sentido do tempo que

caminha para a eternidade.

Segundo Castro, o tempo para Agamben é um tempo divergente do sentido de tempo

messiânico32 (o tempo da ressurreição-parusía), com o final dos tempos, a escatologia, mas, do

ponto de vista de uma representação espacial, e quase exclusivamente linear, o tempo

escatológico33 representado pelo ponto extremo da linha, o momento que esse trespassa a

eternidade, encerrando o tempo profano-chronos que se contrai (CASTRO, 2012, p.180).

Assim, considera-se o tempo que nos resta a partir de nossa finitude, este que nos

permite buscar historicamente a compreensão do presente, a visão do futuro voltada ao passado

no momento presente.

O paradigma é, para Agamben, o fio condutor do seu pensamento, servindo de

orientação, elucidando por meio da compreensão do passado do objeto, e o presente do

pesquisador é a apreensão do objeto investigado.

Exemplo em grego quer dizer para-deígma, o que se mostra ao lado, o paradigma é um

conceito não aliado à separação entre o universal e o particular, escapando dessa antinomia34,

consequentemente, neutralizando as falsas dicotomias entre universal e particular. Segundo

Agamben:

[...] o lócus clássico de uma epistemologia do exemplo é encontrado

nos Primeiros Analíticos. Aqui, Aristóteles distingue o procedimento

por paradigmas, da indução e da dedução. Está claro que ele escreve

que o paradigma não funciona como uma parte em relação ao todo (hos

32 A volta do Messias, da Ressurreição do Cristo. Onde uns irão ressuscitar para a vida e outros

ressuscitarão para o juízo final. 33 O estudo das coisas futuras ou das últimas coisas. 34 A palavra antinomia indica a existência de uma contradição dentro de um sistema que possua a

pretensão de ser coerente. Antinomia pode, ainda, dizer respeito aos paradoxos propiciados pelo uso de

noção de “todos” na matemática ou na lógica, mais especificamente no âmbito jurídico, o termo se

relaciona com um conflito entre normas jurídicas dentro de um determinado ordenamento jurídico.

(ABBAGNANO, 2000, p.63).

38

meros prós hólon), nem como um todo em relação às partes (hos hólon

prós meros), mas como uma parte em relação à parte (hos meros prós

meros), uma vez que ambos estão sob o mesmo, mas um é mais

conhecido que o outro (Primeiros Analíticos, 69a, 13-14). Enquanto a

indução procede, então, do particular para o universal e a dedução do

universal para o particular, o que define o paradigma é uma terceira e

paradoxal espécie de movimento, que vai do particular para o particular.

O exemplo constitui uma forma peculiar de conhecimento que não

procede articulando universal e particular, mas permanece no plano do

segundo. O tratamento aristotélico do paradigma não vai além dessas

observações vagas, e o status de um conhecimento que permanece no

particular não será mais questionado posteriormente. Aristóteles não só

parece sustentar que o gênero comum preexiste aos particulares, mas

também que o status de maior conhecimento (gnorimóteron) que diz

respeito ao exemplo permanece indefinido. [...] o status epistemológico

do paradigma só se evidencia se, radicalizando a tese de Aristóteles,

entende-se que pode ser questionada a oposição dicotômica entre o

particular e o universal que estamos acostumados a considerar como

inseparável dos procedimentos cognitivos e apresenta uma

singularidade que não se deixa reduzir a nenhum dos termos da

dicotomia. O regime de seu discurso não é a lógica, mas a analogia,

cuja teoria foi reconstruída por Enzo Melandri em um livro

clássico. E a analogia que produz não é nem particular, nem geral.

Daí seu valor especial, que tentaremos compreender

(AGAMBEN, 2008b, p.08).

Agamben explica um paradigma como algo único, neutro, não dito, à parte de seu

contexto, e, conforme sua neutralidade torna-se inteligível para um novo conjunto,

possibilitando um novo horizonte para a investigação histórica do presente, assim como ele é.

Um paradigma é um exemplo sendo, de fato, um exemplo, o mesmo se torna um modelo,

sendo o paradigma agambeniano um modelo analógico base para sua compreensão. Vejamos

abaixo um exemplo conforme Agamben nos demonstra:

Pensemos agora no exemplo da assinatura impressa na moeda, que determina

seu valor. Nem neste caso tem alguma relação substancial com o pequeno

objeto metálico de forma circular que temos em nossas mãos, não acrescenta

qualquer propriedade real. E, no entanto, mais uma vez, isso muda

decisivamente nossa relação com esse objeto e sua função na sociedade. Como

no caso da pintura de Ticiano, a assinatura que, sem alterar em nada sua

materialidade, a inscreve na complexa retícula das relações, que pela

'autoridade', transforma um pedaço de metal em moeda, fabrica-o como

dinheiro35.(AGAMBEN, 2008b, p.20.)

35 Citação original no espanhol: Pensemos ahora em el ejemplo de la signatura impresa em la moneda,

que determina su valor. Tampoco em este caso ésta tiene relacion sustancial alguna com el pequeno

objeto metálico de forma circular que tenemos entre las manos, no le añade ninguna propriedade real.

Y sin embargo, uma vez más, esta cambia de modo decisivo nuestra relación com ese objeto y su función

en la sociedad. Como em el caso del cuadro de Tiziano, la signatura que, sin alterado em modo alguno

em su materialidad, lo inscribia em la compleja reticula de las relaciones, que de ‘autoridad’,

39

Para apresentar um exemplo (paradigma), ele utiliza um único exemplo capaz de

demonstrar uma regra geral: o exemplo da moeda. Sabemos que a moeda em sua forma material

é única, sendo um exemplo único enquanto forma material e sentido único, ou seja, uma moeda

com valor de câmbio pode ser representada como uma regra geral, não havendo distinção nessa

categoria quanto ao seu lugar de origem, ou seja, se essa é uma moeda de valor financeiro

americana ou de valor financeiro brasileira, por exemplo.

A partir dessa demonstração podemos compreender que as regras do jogo não partem

de uma dedução ou indução, mas de um paradigma, que vai do sentido de sua origem a unidade

de sua forma, transformando cada caso singular, exemplo de uma regra geral a partir das mais

diversas sociedades.

Uma regra não antecede o seu enunciado, para esta se constituir, é necessário existir o

motivo que fundamenta a necessidade do seu surgimento, sendo essa deliberada para a

ordenação de cada caso singular, não existindo a necessidade de uma regra específica para cada

caso singular, mas uma regra geral, de abrangência para todos os casos singulares, possuindo

cada caso singular um caráter histórico ao elemento que se manifesta como regra. A mesma

regra, no presente, ressignifica-se, sem suprimir as assinaturas do passado, nesse sentido, nos

questionamos sobre o que, e como podemos compreender as assinaturas no pensamento

agambeniano?

Para Agamben, o sentido das assinaturas deve ser observado a partir das investigações

arqueológicas, a observação dessas implica uma relação de complexidade entre a filosofia e a

história realizada através da linguagem, sendo efetivada na relação homem e linguagem, ou

seja, pelo discurso.

A linguagem com suas divisões, cisões, são manifestadas por meio do discurso

materializando em enunciado. O enunciado é uma categoria de análise efetivada pelo homem

(signator) em assinaturas, resultado de uma categoria analisada, sendo assim, “a arqueologia, é

nesse sentido, uma ciência da assinatura” (AGAMBEN, 2008b, p.66).

Na arqueologia, os enunciados ocupam papel coadjuvante, e as assinaturas ocupam o

protagonismo da investigação. As assinaturas são premissas fundantes dos enunciados.

transforma a hora um pedazo de metal em moneda, lo produce como dinero. (AGAMBEN, 2008b,

p.20.)

40

Mas onde queremos chegar com tal descrição? Pretendemos tornar compreensível o

pensamento de Agamben, que em suas investigações não se atém unicamente ao enunciado,

mas as assinaturas que resultam do processo de elaboração dos enunciados.

As assinaturas, premissas fundantes dos enunciados, se validam como regra geral, nos

conduzindo à compreensão do fio condutor de seu projeto filosófico.

Entretanto, Agamben ressalta a relevância da obra Estado de Exceção, em seu projeto,

demonstrada através de seu método arqueológico, parte integrante do projeto HOMO SACER,

que, por evidentes razões de compreensão e urgência do momento presente, antecipou em

volume à parte a sua investigação e edição. Ou seja, devemos entender seu método como a

prática que em toda investigação histórica não se ocupa da origem, mas do ponto de insurgência

do fenômeno. (CASTRO, 2012, p.148). Agamben procura superar em suas investigações as

dicotomias presentes na linguagem da tradição do pensamento civilizatório do ocidente

Segundo o filósofo, a vida perdeu seu sentido originário na política e no direito,

encontrando-se em uma zona de indeterminação. Em nossa investigação, não abordaremos o

sentido de vida na sua definição enquanto conceito científico na biologia e na medicina, mas

sua definição enquanto conceito político, que sob o aspecto da exceção no qual habita a vida

nua, adquire um significado preciso resultante de uma decisão política, “estando em jogo a

própria redefinição do conceito entrecruzando sua legitimidade com as ciências médica e

biológica” (AGAMBEN, 2007, p. 171).

1.3 Homo Sacer, a Vida Matável e Insacrificável

Agamben define terminologicamente o seu projeto filosófico político a partir da

definição romana do HOMO SACER, ao mesmo tempo, acrescentando em suas investigações,

esta figura arcaica jurídico-política do direito romano.

As bases que servem de herança para a compreensão e construção de suas reflexões são

retomadas a partir do pensamento aristotélico e das fontes do direito romano, paradigmas que

demarcam com precisão a compreensão do conceito vida e de sua inserção na vida da política

e do direito.

Para o filósofo, esta figura jurídico-política do direito romano, representa a vida incluída

no ordenamento jurídico, unicamente na forma de exclusão. O paradigma do HOMO SACER,

desse modo, não é apenas resgatado no sentido de uma figura jurídica e política, mas sobretudo,

uma figura essencial para a compreensão da política moderna, denunciando as bases do poder

político.

41

A política moderna e o poder político têm a sua disposição a vida nua (nuda vita). O

poder de decisão sobre a vida natural e biológica, as bases para a compreensão da biopolítica

contemporânea.

A figura do homo sacer caminha de encontro a modernidade na perspectiva

agambeniana de uma vida nua, sendo ambos equiparados por Agamben, analogicamente.

A vida nua é uma forma de vida sem vida em estado de exceção permanente, entretanto,

a figura do homo sacer, não é uma forma de vida, mas uma vida destituída de sua forma,

havendo um ponto de convergência entre vida nua e homo sacer. O ponto de convergência entre

ambos nada mais é do que a vida natural, a sua zoé.

A figura do homo sacer, representa para o filósofo, a tentativa de incluir a zoé na bios,

ou encontrar a zoé da bios confiando, dessa forma, superar a distinção dessa com a vida nua e

a vida qualificada ou vida política.

Se em Aristóteles essa distinção era bem definida, a zoé da oikos e a bios da pólis, na

política contemporânea não é isto que podemos observar. A zoé não é a vida nua, mas sim a zoé

egressa que, ao sair do âmbito da oikos, regressa à vida da polis como vida qualificada no

sentido de uma vida nua, não sendo mais zoé, mas também não se definindo como bios, uma

pretensa vida a ser capturada na exceção soberana.

Uma vida nua que não mais usufrui das experiências da zoé e, ao mesmo tempo

encontra-se afastada das condições de possibilidade de convivência e relações que podem ser

adquiridas na forma de vida da bios, ocorrendo a exclusão da vida nua, mas tornando-se esta,

uma forma de vida a partir de sua condição de inclusão na pólis.

Assim, quando a zoé é chamada ao abandono da oikos na busca de seu lugar na pólis,

essa passa a permear um limiar de indistinção entre pólis e oikos, não sendo mais zoé, mas uma

forma de vida, uma vida nua, atraída pela política, na construção de um projeto de vida feliz e

social, pertencente às variadas formas de vida, ao alcance de uma forma-de-vida.

Essa vida nua, não sendo incluída na pólis, passará a ser considerada um risco à

construção racional do projeto de vida feliz, a ela será atribuída uma denominação de exclusão,

tornando-se assim uma aberração ou perigo para sua inclusão, um ideal almejado por essa forma

de vida nua frustrada, encontrando o seu lugar de permanência em um estado de exceção. Para

Castor, 2013, p.332, a figura jurídica do Homo sacer representaria:

O paradigma biopolítico originário através do qual a vida humana foi

capturada pelo direito sob a forma da exceção. A exceção seria, então a

categoria biopolítica originária que ameaça a vida através de uma exclusão-

inclusiva. Exclui a vida do direito incluindo-a em uma zona de anomia onde

42

se encontrava totalmente vulnerável e pode ser controlada pela arbitrariedade

da vontade soberana.Para Agamben, o direito mostra toda sua potência na

exceção sobre a vida.

Segundo Agamben, o Homo sacer é uma figura enigmática conservada por Festo em

seu tratado Sobre o significado das palavras, conservando em sua obra “a memória dessa figura

do direito romano, na qual o caráter sagrado é, pela primeira vez, premissa à existência humana”

(AGAMBEN, 2007, p.79). Para Castor, 2013, p.335, “a fórmula de Festo, transparece a tríplice

conexão entre a sacralidade, o direito e a vida humana, pela qual a vida humana é capturada e

abandonada pelo direito na forma da sacralidade”. Assim, diz o texto de Festo:

[...]36 ter tomado um fenômeno jurídico-político (a insacrificável matabilidade

do homo sacer) por um fenômeno genuinamente religioso é a raiz dos

equívocos que marcaram no nosso tempo tanto os estudos sobre o sacro como

aqueles sobre a soberania (AGAMBEN, 2007, p. 93).

Muito se discute em relação a esta figura por se tratar de uma antiga figura presente na

ditadura romana, uma figura jurídica representada na pena mais antiga do direito criminal do

direito romano.

Sua interpretação torna-se muitas vezes contraditória por nela encontrarmos um sentido

que se diferencia do seu termo. “Esta enquanto evidencia em seu significado a sacralidade da

vida, sanciona, autoriza a sua morte” (AGAMBEN, 2007, p.79).

O filósofo, evidenciando, através de suas observações, a importância dessa figura

enigmática, resgata-a, no sentido que esta represente a vida nua no direito e na política,

porquanto, o Homo sacer é um paradigma que se evidência na relação existente entre o direito

e a política. “ A interpretação de Agamben do Homo sacer consegue resgatar o genuíno sentido

jurídico político da sacralidade no contexto das cidades antigas, descartando as leituras

meramente antropológicas da ambiguidade” ( CASTOR, 2013, p.335).

Nesse contexto, para melhor compreensão em nossa investigação, buscamos as raízes

que levaram o filósofo a escavar arqueologicamente esta figura.

O Homo sacer do direito romano possui suas raízes na fonte do código do direito

romano, especificamente em uma lei que, a seu tempo, era efetivada legitimamente. Sua origem

36 [...] homo sacer is est quem populus iudicavit ob maleficium: neque fas est eum immolari, sed qui

occidit parricidi nom damnatur; nam lege tribunicia prima cavetur “si quis eum qui eo plebei scito sacer

sit, occiderit, parricida ne sit” Ex quo quivis homo malus atque improbus sacer apellari solet. (Original)

43

advém da Lei das XII Tábuas, no Baixo Império Romano, cujas constituições eram

denominadas de leges (leis), sendo essas a única fonte do direito à época.

Tito Lívio dela costumava dizer que era “fons ominis publici et privatique iuris” (fonte

do direito público e do direito privado), eram leis originárias que regulavam os conflitos e as

desigualdades sociais entre patrícios e plebeus (SANTOS, 2010, p.38-40). Assim, transcrevo

abaixo a lei em que o filósofo italiano identifica-a como representação de um paradigma:

Tábua sétima: Dos Delitos-De Delictus: 13. Artigo. Se um patrono (patrício)

causa dano a seu cliente, que seja declarado Homo sacer (podendo ser morto

como vítima devotada aos deuses). (SANTOS, 2010, p.41)

Agamben abstrai deste artigo especificamente a figura do Homo sacer, fazendo uma

incursão na história através do direito romano. Então, para esclarecimento perguntamos: quem

é o Homo sacer?

Interpretando este artigo podemos dizer que a declaração de Homo sacer a um patrono

(patrício) se trata de uma sanção aplicada à violação deste na relação com seu cliente, causando

algum tipo de dano a esse último.

Os patrícios eram considerados cidadãos de Roma, constituíam a elite romana.

Desempenhavam altas funções públicas, no exército, na religião, na justiça e na administração

da cidade urbis. Os patrícios dominavam grandes propriedades de terra e eram os credores dos

plebeus ou clientes.

A relação entre plebeus e patrícios gerava relações de direito, deveres e obrigações. Os

clientes eram os plebeus, homens vencidos na guerra ou antigos escravos libertados, associados

aos seus credores patrícios, mas vivendo com esses, sob constante ameaça. “Sendo que seus

benfeitores patronos não podiam ameaçar os seus clientes, pois estes deveriam exercer a função

de protetores, benfeitores destes” (MEIRA, 2010, p.32).

Os clientes davam seu voto a seus patronos nos interesses, da busca de seus negócios e

também dos negócios de seus amigos, havia, entre eles, uma relação de respeito aos clientes e,

reciprocamente, os seus patronos garantiam a eles proteção e segurança.

Os patrícios ou patrono (predecessor de padrinho, patrão), descendentes das famílias

mais antigas da cidade de Roma, eram os únicos a possuírem as melhores terras e direitos

políticos. Quando violavam os direitos de seus clientes ou plebeus, recebiam como sanção a

declaração de Homo sacer, perdiam sua condição de cidadão romano e passavam ao estado de

Homo sacer, sendo definido como um facínora, um sacrílego, privado de todas as esperanças

de entrar na comunidade dos homens e da religião (IHERING, 1943, p.64).

44

Entretanto, Homo sacer era a condição que uma pessoa recebia ao ser declarada sacer,

o estado de Homo sacer, excluído de forma legítima do direito e, consequentemente, da política

da cidade (AGAMBEN, 2007, p.79).

O Homo sacer era a vida abandonada pelo direito, um conceito limite cujo sentido

encontra-se delimitado no limiar da ordem política e jurídica estabelecida e a vida humana.

Agamben, investigando a enigmática figura do sacer, observa que nela se concentram

posições contraditórias para se compreender (AGAMBEN, 2007, p.79). As contradições

inerentes ao Homo sacer implicam quanto a sua punição de morte e a autorização quanto à

sacralidade do indivíduo ou, mais precisamente, tornando impunível a sua morte.

Para melhor compreensão desta ambiguidade, Agamben faz uma análise do sagrado

(sacratio), cuja interpretação não é clara, nem nos antigos, nem nos modernos.

Outra interpretação comparada a esse está na ambiguidade da noção de tabu, um termo

polinésio, divergindo em dois sentidos contrários, significando sagrado, consagrado e, portanto,

por outro lado referindo-se a misterioso, perigoso, proibido, impuro, seu inverso em polinésio

é noa, significando comum ou geralmente acessível, um termo com duplo sentido expresso em

restrições e proibições, levando nossa acepção ao termo como temor sagrado (FREUD, 1999,

p.28), digno de veneração e suscitante de temor, sendo a impunidade do homem sacro entregue

aos deuses desde o início.

A questão colocada em relação ao Homo sacer é porque ele pode ser impunemente

sacrificável, ou seja, diante da limitação de suas interpretações, colocando em questionamento

a condição do Homo sacer, contradizendo a condição de impuro e propriedade dos deuses, o

sacer era matável por qualquer um, não havia punição para o homicida, nem perante a lei dos

homens e nem perante a lei divina.

Esta zona de indistinção entre o direito humano e o direito divino, para Agamben, indica

a estrutura originária da política. O Homo sacer é o representante mais arcaico da vida nua,

sendo anterior ao sagrado e ao profano. Assim, descrevemos conforme o filósofo:

Se isto é verdadeiro, a sacratio configura uma dupla exceção, tanto do ius

humanum quanto do ius divinum, tanto do âmbito religioso quanto do profano.

A estrutura topológica, que esta dupla exceção desenha, é aquela de uma

dúplice exclusão e de uma dúplice captura, que apresenta mais do que uma

simples analogia com a estrutura da exceção soberana. Daí a pertinência da

tese daqueles que interpretam a sacratio em substancial continuidade com a

comunidade. Assim na exceção soberana, a lei aplica se de fato ao caso

excepcional desaplicando se, retirando-se deste, do mesmo modo o homo

sacer pertence ao Deus na forma da matabilidade. A vida insacrificável e,

todavia, matável, é a vida sacra. (AGAMBEN, 2007, p.90).

45

Agamben, assim, estabelece a ligação do poder soberano ao Homo sacer, dispondo

ambos no mesmo ordenamento jurídico.

Esta é a finalidade da política moderna, capturar a vida nua, no âmbito político e

jurídico, disseminando a prática de efetivação legítima da vida humana, tanto na representação

da figura do Homo sacer, quanto da vida nua, equiparando analogicamente ao paradigma do

Homo sacer.

O Homo sacer pode ser morto, esta é a sua capacidade passiva, a partir de um enfoque

formal do direito positivo, quando ele comete crime, é submetido a uma norma penal

incriminadora punitiva, porém, ao mesmo tempo, recebe como incapacidade passiva a condição

de não ser sacrificado, porém insacrificável na perspectiva do direito natural ou direito divino,

na dualidade perpetuada entre o direito divino e o direito humano.

O Homo sacer é o protagonista da vida nua, o primeiro paradigma de vida nua na

história, a partir do direito romano. Portanto, o Homo sacer refere-se a alguém que não cometeu

um homícidio, mas que, ao mesmo tempo, está submetido à ordem jurídica do direito romano

em estado de exceção, resultando em uma exclusão enquanto cidadão romano, sendo que este,

após a sua morte, passava a ser incluso à ordem divina, considerado sagrado digno de não ser

sacrificado, prerrogativa de um direito divino, mas sendo matável conforme o direito humano

(AGAMBEN, 2007, p.81).

Ocorrem duas premissas que estabelecem a condição de Homo sacer, conforme o direito

romano: a) a exclusão legalmente da ordem política, ainda que julgado e condenado não pode

ser sacrificado e, b) quem o matar não comete parricidium, não comete crime. No texto de

Festo, este afirma: “ aquele que matar ou assassinar o Homo sacer não será punido porque não

comete parricidi. O parricidium, é um termo podemos dizer, técnico, para designar um tipo

peculiar de morte” (CASTOR, 2013, p.337). O crime de parricidium designava a morte de um

parente de um par, ou memo do pater. Festo narra que promulgou a lei de Numa, segundo a

qual: “ se uma pessoa mata de forma intencional e ilegal um homem livre, ele será um

parricida”. A Fórmula de Festo é clara: “ aquele que matar o Homo sacer não cometerá

parricidium, assim como a lei Numa afirma que aquele que matar um homem livre, se torna

parricida” (CASTOR, 2013, p. 338).

Assim podemos concluir nesta exposição que a lei cria o delito, sem lei não há delito.

“O Homo sacer era aquele que tinha o estatuto de pessoa e os direitos de cidadania, porém

sofreu a retirada desse direito, por decreto do soberano” CASTOR, 2013, p.339). Quando se

perdia seus direitos enquanto pessoa e cidadão, este automaticamente extinguia a sua condição

jurídica de pessoa.

46

Revisto por Agamben, a figura do Homo sacer é o ponto de surgimento, intersecção, “o

primeiro paradigma do espaço político do ocidente” (AGAMBEN, 2007, p.16). No qual a vida

humana somente encontra a sua inclusão no ordenamento sob a forma de exclusão da ordem

política. Este paradoxo revela “ o limiar que conecta a vida humana com a soberania através da

exceção” (CASTOR, 2013, p.345).

Após essa explanação sobre a figura do Homo sacer, daremos continuidade a nossa

investigação no segundo capítulo aproximando-nos cada vez mais aos contornos do sentido do

estado de exceção na política contemporânea.

2 O ESTADO DE EXCEÇÃO COMO CAPTURA DA VIDA HUMANA

2.1 A vida da política

Conforme o pensamento agambeniano, o filósofo não se refere à política no sentido

grego do termo, como essa foi pensada por Aristóteles a partir de sua origem, mas como esta

se apresenta enquanto finalidade política na modernidade. Nesse sentido, podemos

compreender o pensamento do filósofo em nos direcionar a refletir em direção à finalidade da

política.

Hannah Arendt, filósofa da modernidade, é referência para o pensamento de Agamben

em relação a finalidade da política, em fragmentos da obra (ARENDT, 1999) póstuma da

autora, O que é política? Esta nos adverte:

A filosofia tem duas boas razões para não se limitar a apenas encontrar o lugar

onde surge a política. A primeira é: a) Zoon politikon ‘animal político’como

se no homem houvesse algo político que pertencesse a sua essência-conceito

que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-homens;

portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma

substância política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece

como relação. Hobbes compreendeu isso; b) A concepção monoteísta de Deus,

em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem,

e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem

criado à imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as a war

of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos, odiados

porque existem sem sentido, sem sentido exclusivamente para o homem

criado a imagem da solidão de Deus. A solução dessa impossibilidade da

política dentro do mito Ocidental da criação é a transformação ou a

substituição da política pela História. Através da idéia de uma história

mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem,

depois também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da

47

História, que só em seu final se afirmar plena e vigorosamente política

(ARENDT, 1999, p.23).

Pensar a finalidade da política é não pensar nessa enquanto essência, mas sim enquanto

experiência. A pergunta a qual podemos formular nos dias atuais, portanto é: não

permanecemos estagnados em relação à política? A descrença na política e na vida política nos

condiciona a vivermos em bolhas? Será que estamos perdidos no mundo de Alice?

Não temos respostas para estas perguntas, mas assim como Dorothy37, podemos

escolher o caminho que daremos a nossa vida e à vida das outras pessoas; através de nossas

escolhas, o objetivo da política é o governo da vida humana, e sua finalidade é nossa

responsabilidade, pois o perigo em permanecermos como estamos é “a coisa política

desaparecer do mundo”. Mas os preconceitos se antecipam, por não nos movermos

politicamente, “jogando fora a criança junto com a água do banho” (ARENDT, 1999, p.25),

uma metáfora atemporal, não confundindo o que seria o fim da política com o seu sentido

originário.

Segundo Arendt, o sentido da política é a liberdade (ARENDT, 1999, p.38). Nossa

liberdade não é pautada exclusivamente em um pensamento crítico, mas sobretudo no

desenvolvimento de nossa consciência enquanto liberdade.

Assim, a vida segue pautada na política contemporânea, como uma forma de vida

derivada da existência das diversas formas de vida. A existência da vida segue em um sentido

permanente de captura pelo poder soberano.

Então perguntamos, a vida capturada pelo poder soberano corresponde ao sentido da

vida política? Conforme Agamben demonstra, a política na modernidade, não corresponde ao

sentido da política do pensamento grego, que tem como finalidade o bem comum da vida da

pólis, a partir do momento em que a vida é capturada, na efetiva relação de exclusão-inclusiva,

a partir dos atos do governo e de sua máquina antropológica.

Para Agamben, a máquina antropológica é constituída por uma série de espelhos,

quando o homem consegue observar a sua imagem, a vê de forma deturpada. O Homo é um

animal constitutivamente antropomorfo38 “isto é, semelhante ao homem, [...] que deve, para ser

37 É a protagonista da obra infantil, O mágico de Oz, um clássico da Literatura Americana do autor

Lyman Frank Baum. Dorothy, é uma personagem definida por ações e reações e não uma personagem

de história de princesas e nem de longas narrativas descritivas. A obra de Baum é repleta de imagens,

fantasias, humor, e verdade na integridade da natureza humana da personagem, embora escrita para

crianças, mas não no sentido infantil. 38 O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a

animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral.

48

homem, reconhecer-se em um não homem” (AGAMBEN, 2013, p.51) na visão política do

Ocidente, semelhante ao Homo sapiens39que não é “nem uma substância , nem uma espécie

claramente definida: é, sobretudo, uma máquina ou um artifício para produzir o reconhecimento

do humano” (AGAMBEN, 2013, p.50).

Segundo Agamben, a máquina antropológica da modernidade estabelece a função de

instituir, institucionalizar o homem, a vida humana, como estratégia política de potencialização

da vida, numa zona de indiferença, empreendendo a vida humana, na articulação entre animal

e humano, homem e não homem, falante e vivente, em um permanente estado de exceção,

situado em um espaço impreciso de definição, vazio, refém de uma definição, a partir de uma

decisão política.

Assim, na modernidade, o que ocorre é uma dicotomia existente entre a máquina de

governo e a máquina antropológica, ambas são transformadas em dispositivos de polaridades,

sendo a máquina que produz o humano, em sentido amplo, um dispositivo de produção de

gestos, condutas e discursos girando em torno de um centro vazio, evidenciando tensões

situadas numa zona indiscernível entre a política e o direito. Para melhor compreensão

elucidamos como paradigma, conforme Ruiz:

O poder moderno opera articulando dispositivos de soberania e

governamentabilidade. Enquanto a soberania tem permanecido na

sombra como recurso último para manutenção da ordem, as tecnologias

governamentais proliferam em todos os espaços da vida, visando

administrar as condutas humanas numa espécie de servidão voluntária

em que os sujeitos se alinham voluntariamente com as estratégias dos

dispositivos de poder. As técnicas governamentais produzem modos de

subjetivação produzidos pela governamentabilidade. Distingue-se a

figura do funcionário. O funcionário é um modo de subjetivação

estritamente moderno. Ele emerge concomitantemente com o governo

do Estado e as técnicas corporativas de gestão de mercado. A figura do

funcionário e o seu modo de subjetivação são essenciais para que a

máquina governamental opere com eficiência. Sua docilidade substitui

a obediência servil do súdito (RUIZ, 2018, p.192).

39 Somos seres em constante evolução, estudos científicos comprovam a evolução de nossa espécie. Não

somos máquinas de reprodução, o próprio nome Homo sapiens, a espécie pensante, torna-se enganoso

em nossos dias à luz da nova apreciação e opinião do lugar das emoções em nossas vidas, a influência

dos nossos sentimentos em nossas ações e decisões, contam exatamente o mesmo, e muitas vezes mais

que o nosso pensamento. (GOLEMAN, 1995, p.18).

49

O centro vazio de articulação que resulta da relação entre a máquina de governo e a

máquina antropológica é a produção de uma vida nua, uma vida que se articula entre o humano

e o animal, entre o homem e não homem, entre o falante e o vivente.

A vida nua, não é uma vida animal, nem uma vida humana, mas tão somente uma vida

separada e excluída de si mesma, submissa voluntariamente a “ operatividade da máquina

governamental” (RUIZ, 2018, p.192).

E, conforme expomos acima, a vida humana, encontra-se em um vazio, em uma zona

de indiferença, oscilando em uma tensão da obediência servil do súdito para a docilidade

funcional do funcionário moderno “a diferença entre as duas obediências é que o funcionário

opera com a eficiência da competência funcional, livremente, exercida, enquanto o súdito

obedece às ordens de comando por constrição” (RUIZ, 2018, p.192).

Para Agamben, a vida nua fruto da política no Ocidente, encontra seu singular

privilégio de ser aquilo no qual a sua exclusão é o fundamento da cidade dos homens e a

perspectiva da política contemporânea, demonstrando, dessa forma, a inclusão da vida na

política como excluída, ao passo que abrange a intensidade estrutural da política a partir da

exclusão da vida nua na captura de inclusão (AGAMBEN, 2007, p.80).

Em princípio, forma-de-vida não é uma vida nua. A vida nua é uma categoria no qual a

captura da vida na exclusão é incluída pelo direito. Sendo que essa encontra, a partir de sua

exclusão, lugar privilegiado de atuação nas democracias modernas. E, pensar uma forma-de-

vida é desativar a operatividade da máquina governamental na produção da subjetividade da

vida humana.

Isso ocorre em dois processos interligados através da máquina antropológica,

primeiramente no momento que ocorre a subjetivação que inclui o vivente, a vida humana,

como objeto dos planos de estratégia política, e a conversão dessa vida capturada em sujeito de

direito, apresentando-se antes na condição de excluído, transmutando para uma condição de

pertencimento à vida política. Assim, Agamben define a máquina antropológica afirmando que:

Em nossa cultura, o homem sempre foi pensado como a articulação e a

conjunção de um corpo e de uma alma, de um vivente e de um logos, de um

elemento natural (o animal) e de um elemento sobrenatural, social ou divino.

Devemos, ao contrário, aprender a pensar o homem como o que resulta da

desconexão desses dois elementos, e não investigar o mistério metafisico da

conjunção, mas o mistério prático e político da separação. Que é o homem, se

ele é sempre o lugar-e conjuntamente o resultado de divisões e cesuras

incessantes? Trabalhar sobre essas divisões, perguntar-se em que modo-no

homem- o homem foi separado do não homem e o animal do humano é mais

urgente que tomar posições sobre grandes questões, sobre os chamados

valores e direitos humanos. E, talvez, também a esfera mais luminosa das

50

relações com o divino dependa, de algum modo, dessa mais obscura-que nos

separa do animal (AGAMBEN, 2007, p.24).

Agamben desmascara a necessidade de eliminarmos do sentido da política a noção

metafísica da vida. O homem contemporâneo, encontra-se desconectado de sua condição

animal e divina, pensado a partir de sua totalidade política e prática, buscando o sentido da bios

e da zoé, eliminando as “fronteiras de indeterminação entre exclusão e inclusão, sendo esta

divisão uma estratégia política de eliminação da vida como se essa fosse coisa, nos alertando

que a vida não se encontra definida como tal, mas como objeto de divisão e articulação”

(AGAMBEN, 2007, p.22).

A inversão concreta da vida, se apresenta em um intenso espetáculo40 na sociedade

contemporânea. A dificuldade na definição do conceito de vida limita-se à exclusão da zoé,

uma forma de vida, separada de sua integralidade, a vida biopolítica capturada na exclusão,

uma vida nua, separada de sua totalidade, sequestrada por uma decisão soberana, sendo esse o

fundamento constitutivo da biopolítica, a separação da zoé da bios.

A viabilização da politização da zoé, a vida em sua “doçura natural”, capturada na forma

de vida nua, era antes reservada apenas para à vida política dos participantes da pólis.

Qual a base para chegarmos a esse entendimento? Compreender a vida, a partir de suas

variadas formas de vida é um dos caminhos que nos aproxima do real sentido da vida nua na

contemporaneidade.

2.2 Formas de Vida

A complexidade das investigações propostas por Agamben são evidenciadas na

linguagem, lembrando que forma-de-vida41 é uma categoria que, para o autor, permite enxergar

a articulação da divisão existente em nossa linguagem. Forma-de-vida nos leva à compreensão

de coisas que antes nos pareciam incongruentes, coincidindo com a procura por desativar as

noções da divisão dualística.

40 Termo apropriado de Guy Debord. 41 Forma-de-vida, empregada com hífen abrange o sentido de uma categoria de vida única em sua

totalidade, categoria que não abordaremos em nossa pesquisa, considerando-se essa um tipo de vida, de

um vir a ser, superando as cisões preexistentes nas variadas formas de vida, mas na qual esta encontra-

se inserida no pensamento agambeniano, nas diferentes formas de vida presente em nossa

contemporaneidade.

51

Forma-de-vida é uma categoria central e, muitas vezes, enigmática para o projeto

filosófico de Giorgio Agamben. Ressaltamos que estamos abordando essa categoria em nossa

investigação no intuito de facilitarmos a compreensão para nossos leitores em relação a uma

categoria relevante à nossa pesquisa: a categoria vida nua42, sendo essa uma vida sem forma

para o filósofo, capturando sua estrutura originária na relação entre vida e poder soberano.

Para Agamben, a temática forma-de-vida nos fornece diretrizes capazes de ampliar a

capacidade de compreensão sobre a captura da vida humana pelo poder soberano, sendo a

captura humana através do poder soberano uma forma de vida separada de sua forma originária.

Para o filósofo, esta forma de vida não pode ser separada de seu sentido originário de

vida. Ou seja, Agamben introduz a categoria forma-de-vida, em sua estrutura ontológica e sua

condição de possibilidade de uma construção cultural presente na história da filosofia, capaz de

dar definições a conceitos que desfaçam a cisão existente entre a forma de vida biológica e a

forma de vida espiritual, (vida espiritual entendida em seu sentido transcendente), sendo essa

transcendência a forma de uma vida contemplativa da arte, da estética, da religião, até mesmo

a filosofia como uma forma de vida, transcendendo à vida imanente do animal laborans43 .

Ressignificando a mente através da consciência, a vida e as suas formas de vida,

a natureza e a cultura, a bios e a zoé a partir de seu ponto de indeterminação, através da

constituição de uma genealogia do conceito de zoé, sendo vida, no pensamento ocidental, um

conceito estratégico na filosofia e na política, vida enquanto corpo, que não possui a mesma

abrangência de sentido e significado como nas ciências médicas. Agamben deixa claro essa

evidencia:

Dos oito textos de Corpus em que aparece a palavra zoé, três (Carta a

Damagete, o discurso do altar [Oracio ad aram] e Discurso à embaixada de

Téssalo [..] não tem caráter médico e certamente são apócrifos. Das outras

cinco ocorrências, três se referem a duração da vida do paciente com respeito

a morte iminente; Art., 63: Sua vida se prolongara por alguns dias” (zoé

oligômeros toutois ginetai); 23: Não há nenhuma esperança de vida (zoes

oldemia epes); 9: Perdem a via (metallassousi tes zoes). Por fim, em duas, o

42 O conceito de vida nua utilizado por Agamben aparece na obra Crítica da violência-crítica do poder.

(BENJAMIN, 1986, p.160-175). 43 É surpreendente na modernidade a inversão de todas as tradições, tanto na posição da ação quanto da

contemplação do agir humano e no espaço da vita activa, termo empregado por Arendt, significando de

fato a condição humana, glorificando o labor como fonte de todos os valores, promovendo o animal

laborans à posição análoga do animal rationale, questionando a ausência de uma teoria que

distinguissem claramente entre o animal laborans e o homo faber, o trabalho do corpo e o trabalho de

nossas mãos. Mas, procedendo à distinção entre trabalho produtivo e improdutivo, qualificado e não

qualificado, sobrepondo a mais fundamental de todas as atividades em trabalho manual e intelectual.

(ARENDT, 2000, p. 96).

52

sentido ficou indeterminado; 7: eles, os grandes vasos, são as fontes da

natureza humana, os rios que borrifam o corpo e trazem a vida ao homem (tem

zoe pherousi toi anthropoi); 32: potência uma e não uma, pelos quais tais

coisas e outras são administradas, uma para a vida todo e da parte (zoen hollou

kai merou), a outra para a sensação do todo e da parte. Esta última ocorrência

é a única na qual, pela oposição entre vida e sensação, o termo zoé parece

adquirir um significado menos genérico. (AGAMBEN,2017, p.221.)

O filósofo busca, através da construção de seu projeto, despertar-nos do sono dogmático,

na compreensão da forma de biopoder44, o poder articulado sobre a vida através de mecanismos

de controles e coerção visando nada mais do que a produtividade humana e a saúde dos corpos

e das populações que se efetivam na contemplação como recurso material e objeto de troca,

predominantemente articulando e separando a vida de suas formas, em uma relação de inclusão-

exclusiva, ou seja, uma vida mecânica abstraída de seu sentido orgânico.

Em sua primeira obra do seu projeto, a obra Homo sacer: o poder soberano e a vida

nua, Agamben posiciona-se a esclarecer o conceito de vida nua. Sua preocupação está voltada

a pensar as formas de vida, entendendo formas de vida e forma-de-vida como vida humana.

E, esclarecendo por meio de suas demonstrações, a predominância de uma forma de

vida cultural, antropológica, qual seja, a categoria de vida nua.

O filósofo enuncia, a partir da modernidade, o desaparecimento da distinção clássica

entre bios e zoé no léxico de nossa linguagem, assim como em biologia e zoologia, em que vida

não apresenta mais nenhuma diferença substancial.

Partindo dos gregos, o filósofo nos revela que eles não tinham uma única categoria no

sentido de definição do que podemos entender sobre o conceito de vida, pois partiam do

princípio de que existiam dois termos para dar significado ao que seria a palavra vida, ou seja,

se valiam de dois termos bios e zoé, sendo seus significados distintos semanticamente e

morfologicamente.

Zoé manifestaria o simples fato de viver, uma vida comum a todos os seres viventes

correspondente a nossa physys (natureza), os animais, os homens e os deuses, e bios resultaria

em uma forma de vida, própria de um grupo ou de um indivíduo ao buscar uma maneira de

44 Termo formulado por Michel Foucault, no primeiro volume da Histoire de la sexualité, La volonté de

savoir e no curso de 1975-1976, no Collége de France, Il faut défrende la societé – articulava-se numa

dupla forma, como um poder ao mesmo tempo individualizante e totalizante: uma anátomo-política do

corpo, em cuja base estavam os processos de disciplinamento corporal, e uma biopolítica das

populações, isto é, uma série de mecanismos reguladores globais, que veem o corpo numa dimensão

global, levando em conta os processos biológicos da população com suas regularidades: natalidade,

mortalidade, longevidade, etc. (BARRETO, 2009, p. 107).

53

viver, no âmbito da pólis, espaço de desenvolvimento de variadas formas de vida (AGAMBEN,

2015, p.13). Como exemplo, podemos citar a forma de vida de um artesão, de um médico, de

um filósofo etc.

Assim, em nosso tempo, o termo forma-de-vida encontra-se isolado das formas de vida.

A forma-de-vida não se confunde com as formas de vida. Forma-de-vida é a possibilidade de

pensarmos o comum, ou seja, a vida humana comum em sua unidade sem nenhuma distinção,

cisão ou ruptura.

Essa noção vai irradiar o fluxo do constante movimento do pensamento agambeniano

na observação de definição da vida na contemporaneidade, sua real importância e sentido,

através de sua compreensão, partindo de sua condição originária de constituição enquanto

natureza humana.

As categorias de zoé, bios e vida nua são consideradas por Agamben como formas de

vida. Segundo Agamben, a vida nua é uma forma de vida, mas se encontra em uma oposição

oposta em relação aos outros tipos de formas de vida.

A vida nua é a vida capturada através do dispositivo da exceção soberana, “explicando

o modo no qual o direito está em relação com a vida” (CASTRO, 2012, p.213). A vida nua é

um exemplo de uma forma de vida capturada que, em sua totalidade, nos representa em uma

condição de exceção.

Simplificando, a zoé é a vida da oikos, a bios e suas categorias é a vida da pólis, e a vida

nua é uma categoria, em relação as demais, que em sua totalidade nos representa em uma

condição natural da vida humana capturada na política.

Portanto, a categoria de vida nua vai evidenciando-se à medida que tornamos

compreensível sua relação com o soberano, na captura da vida humana, sendo, para Agamben,

a dominação da vida humana capturada pelo dispositivo originário da exceção, condição

permanente da tradição política e jurídica do Ocidente.

Continuando nossa investigação, interpretando o pensamento de Agamben, indagamos:

o que vem a ser um dispositivo, e porque o mesmo tem a capacidade de capturar a vida humana?

E, qual a relação entre dispositivo e o estado de exceção?

Para o filósofo, dispositivo é qualquer coisa que venha de algum modo disciplinar,

capturar, orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões

e os discursos, ou seja, subjetivar o ser humano com mecanismos e técnicas que venham a

constituir a subjetividade humana, não apenas se limitando aos espaços de disciplina, tais como:

as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as medidas jurídicas

etc.

54

É evidente, em nosso contexto, que esses dispositivos conectam- se em relação de poder

com os seres viventes, a vida humana, mas, em nenhum momento, os dispositivos encontram-

se limitados a esses exemplos.

Podemos considerar como formas de dispositivo o que nos constituem e nos serve como

referenciais; por exemplo, as canetas, a nossa capacidade e forma de escrita, a literatura que

apreciamos, a filosofia que aderimos percorrer, a agricultura que nos leva a uma forma de vida

própria do campo ou atividade profissional, o cigarro que nos limita a uma dependência, a

navegação em suas variadas formas de vida, ou seja, profissional, turística etc., os

computadores, os telefones celulares que nos aproximam, mas que, ao mesmo tempo nos

distanciam através dos corpos, nossa linguagem, veículo condutor da condição humana de

comunicação e inteligibilidade, meio que nos aproxima e, ao mesmo tempo, nos afasta, em

nossa relação com o mundo, conforme possibilidade de expressão e comunicação.

Quando nos referimos ao dispositivo linguístico, o mais antigo de todos, servimo-nos

desse como paradigma de captura, em que a inconsciência do animal humano, o primata45,

nosso irmão de caminhada evolutiva, deixou capturar-se em sua integridade originária,

“sujeitando a vida humana por meio desses dispositivos na implicação de um processo de

subjetivação” (AGAMBEN, 2009, p.41).

O dispositivo, quando relacionado à vida, torna-se o responsável por sua divisão e

fragmentação em suas variadas formas de vida, que não se unificam numa verdadeira forma-

de-vida em nossa tradição Ocidental, mas em uma forma de vida controlada socialmente.

A vida humana passa a ser empreendida na forma de objeto de conquista da

governamentabilidade das condutas, dominada por um processo de subjetivação que, ao invés

de elevar o nosso ideal de valoração humana, aos poucos vai nos transformando e rompendo

45 Compõem um grupo de animais vertebrados, englobando os símios (macacos), lêmures e os seres

humanos. Estudos antropológicos nos servem para conhecer melhor o homem, apoio para entendimento

da cultura que muitas vezes determina uma classe social, compreendendo determinada sociedade.

Quando me refiro primata em contato com a linguagem, me refiro na relação do ser com o mundo.

Laplantine divide a antropologia em cinco áreas que nos servem de apoio: a) Antropologia Biológica o

estudo das mutações biológicas do homem no espaço e no tempo, influenciando o seu desenvolvimento,

b) Antropologia Pré-Histórica: o estudo do homem, meio a seus vestígios materiais, ossadas e resquícios

da atividade humana), reconstruindo sociedades desaparecidas em suas organizações, técnicas, produção

cultural e artesanal, c) Antropologia Linguística: a linguagem, os valores, preocupações e pensamentos

de uma sociedade, bem como dos meios de comunicação de massa, dialetos e cultura do audiovisual, d)

Antropologia Psicológica: estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo humano. e)

Antropologia Social e Cultural: tudo o que constitui uma sociedade (modos de produção econômica,

organização política, crenças religiosas, entre outros). Mais do que estudar uma sociedade a antropologia

estuda todas as sociedades humanas, suas culturas, diversidades históricas e culturais. Estudando outras

culturas, aprendemos sobre a nossa, melhoramos nossa compreensão (LAPLANTINE, 1988).

55

com nossa individualização, em uma constante homogeneização das variadas formas de vida,

a partir da massificação de controle da conduta humana.

A relação entre dispositivo e estado de exceção, é que este assume a fórmula através do

direito de capturar a vida a partir de sua exclusão quando esta assume ameaça a ordem

estabelecida, assumindo dispositivo de governo. “ O estado de exceção[...] continua a imperar

como dispositivo de controle de grupos e pessoas consideradas potencialmente perigosas para

a ordem social” (CASTOR, 2013, p.347).

Partindo da análise de como a vida se apresentou ao longo da história na tradição do

pensamento filosófico desde os gregos até a contemporaneidade, como algo que deva se

apresentar sempre dividida e articulada, sem uma definição precisa em nossa cultura Ocidental,

continuamos nossa investigação, descrevendo abaixo a divisão clássica do conceito de vida,

suprimido da sociedade moderna.

2.2.1 A Vida Dividida entre Bios e Zoé

O conceito de vida, como abordamos anteriormente, é condição sine qua non para

pensarmos as decorrências políticas e jurídicas da vida em sua imprecisa definição no

paradigma político e jurídico da contemporaneidade.

Agamben faz uma incursão epistemológica na política e no direito através do conceito

de vida humana. O filósofo italiano repensa a vida como uma categoria não definida em sua

totalidade verificável, a partir da definição de seu conceito, na inclusão desta categoria em nossa

linguagem, fazendo uma inflexão através do pensamento clássico da tradição histórica da

filosofia.

O filósofo evidencia o sentido desta definição a partir de Aristóteles, como esse define

o conceito de vida a partir da divisão clássica entre bios e zoé, problematizando os fundamentos

éticos da política e do direito em nossa contemporaneidade, delineando um percurso histórico

dos gregos aos dias atuais, ou seja, a origem de exclusão-inclusão da vida, e como essa

estratégia política da exclusão-inclusão repercute no direito através do dispositivo original do

estado de exceção.

Segundo o filósofo, para Aristóteles os termos zoé e bios são compreendidos em dois

tipos de vida, mas dois termos distintos, de modo a destacar o que seria próprio da política, a

bios e o que dela estaria excluído, a zoé.

Zoé é a vida natural, a vida comum a todos os seres, homens, animais e deuses, uma

forma de vida manifestada pelo simples fato de viver, a vida do ser (substância ou viventes), e

56

bios uma forma de vida, que significa forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou

de um grupo”, uma forma de vida representada, o ente do ser.

Bios é a vida qualificada, é a vida política oposta à zoé, sendo a vida segundo um bem.

Viver a vida segundo um bem, é forma de vida definida por Aristóteles com insuperável

consciência:

Este (o viver segundo o bem) é o fim supremo seja em comum para todos os

homens, seja para cada um separadamente. Estes, porém, unem-se e mantem

a comunidade política até mesmo tendo em vista o simples viver, porque

existe provavelmente uma certa porção de bem até mesmo no mero fato de

viver (katá to zên autó mónon); é evidente que a maior parte dos homens

suporta muitos sofrimentos e se apega à vida da zoé. Como se nela houvesse

uma espécie de serenidade (eumería) e uma doçura natural. (AGAMBEN,

2007, p.10)

A zoé é a vida natural, a vida desconstituída de uma forma de vida qualificada, a vida

da oikos, da casa, enquanto a bios é uma forma de vida constituída das diferentes formas de

vida; bíos theoreticós, a vida contemplativa dos filósofos; bíos apolausticós, a vida dedicada

ao prazer; e a bíos políticos, a vida política, sendo as formas de vida da bios, um modo de viver

segundo um bem.

A bios é uma forma de vida constituída de qualidades próprias do caráter humano de

viver na convivência e pela convivência de forma organizada individualmente e socialmente,

regulando suas relações através da linguagem.

Entretanto, a vida natural dos viventes não importando sua espécie, todos sendo espécie,

seres viventes, se identificam enquanto zoé.

Mas, como poderíamos interpretar o mundo humano, se este fosse visto na perspectiva

de outros viventes, a exemplo: do ouriço, da abelha, do cão ou do carrapato?

Isto comumente não seria possível, mas experiências já foram constatadas, e

metaforicamente nos causam espanto, como exemplo, podemos citar o carrapato, a partir da

observação de seu ambiente, esse é um animal desprovido de visão, conseguindo captar a sua

presa pelo odor, sua percepção é dada por um órgão sensível capaz de captar a presença quente

de sua presa, recaindo em qualquer parte quente do seu alvo de captura, o carrapato também é

destituído de paladar, não é o sangue que o alimenta, mas qualquer líquido que se encontre em

sua temperatura adequada, superando a satisfação de seu instinto, o que lhe resta é abandonar

seu alvo, cair ao solo e morrer. Ao cair, deposita suas ovas para que estas se proliferem e

perpetuem-se na cadeia alimentar dos seres vivos.

57

A vida natural é a vida condicionada de forma lógica e intencional, guiada por seus

instintos naturais de sua própria natureza, sem nenhuma qualificação em sentido puro de

sobrevivência. O carrapato é esta relação e não vive a não ser nela e para ela (AGAMBEN,

2013, p.75).

A zoé é a nossa condição natural de existência, própria dos animais humanos e

inumanos. O homem em contato com a linguagem, transita na passagem, de natural ser vivente

diferenciando-se dos demais seres viventes, mas o seu contato com a linguagem ainda não o

define como um ser de vida qualificada, mas um ser se encontrando numa vida, em processo de

qualificação.

O homem não perde sua zoé, mas essa permanece como premissa de imersão do homem

em experiências que o integram a sua qualificação fundamental.

Quando ocorre o processo de imersão da vida humana na zoé, uma vida definida por não

ser qualificada e desprovida de experiências, não significa a rejeição da bios, mas uma junção

das duas distinções, a junção entre bios e zoé, permitindo a essa vida não qualificada, a sua

reentrada no mundo aberto, em busca de sua qualificação.

A origem dessa divisão clássica é fruto dos gregos. A zoé pertence ao espaço da casa,

da oikos, garantindo a pólis, o espaço da vida política e coletiva, a experiência da bios, sendo

para essa forma de vida o espaço da vida política e coletiva, a base da origem dos ideais da

democracia no pensamento grego.

Conforme Agamben, a democracia grega, não se fundamenta no debate contínuo, na

troca de ideias. Esta democracia está baseada na alienação da vontade da maioria, excluindo

desta maioria, as mulheres, que não eram consideradas cidadãs, os escravos que não gozavam

de uma condição humana, e os metecos (estrangeiros) aos quais não era atribuído o direito de

participar da vida política, mas era obrigatória a sua participação na economia ateniense,

juntamente com os cidadãos, homens que gozavam de todos os direitos da época.

Afinal, que tipo de democracia é essa? Uma democracia cujo fundamento encontra-se

centrado na minoria? Uma democracia da minoria? A democracia ateniense, é esse tipo: uma

democracia de exclusão da oikos e inclusão da polis.

Agamben, analisando em suas investigações desde as origens greco-romana a partir

dessa divisão clássica entre bios e zoé, passa a questionar-se sobre a política e o direito na

atualidade, constatando que essa divisão se perfaz no mundo contemporâneo, e

consequentemente esta divisão imprecisa reflete na democracia contemporânea cindindo o que

nos foi repassado, enquanto conhecimento do que é democracia. A democracia não é um regime

de governo para todos.

58

Antes, como bem descreve Bobbio, a possibilidade de chegar a um acordo definido do

que vem a ser democracia é “ esta ser compreendida em contraposição a todas as formas de

governo autocrático, considerar seu enunciado por um conjunto de regras (primárias ou

fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais

procedimentos” (BOBBIO, 2000, p.30).

O que entender por Democracia? Podemos falar em democracia, em nosso atual

contexto político? Esta reflexão nos remete a compreensão do homem inserido na pólis grega,

fonte da democracia ateniense.

Para o filósofo, a análise se faz da seguinte maneira: “no homem dois animais coabitam,

um dentro, aquele que possui uma vida orgânica que começa no feto antes da vida animal,

sobrevivendo na velhice ao animal de fora” (AGAMBEN, 2013, p.32). Ou seja, o animal de

dentro é a vida pura, natural, ao nascer, essa se torna zoé e, em seu primeiro contato com a

linguagem, ela se torna uma vida não qualificada na busca permanente do encontro com a sua

bios, a vida qualificada, mas em face a sua condição natural de finitude e, algumas vezes, por

circunstâncias acidentais, retoma em um processo de imersão da sua zoé.

Agamben, observando em suas investigações a exclusão da zoé do âmbito da oikos e a

sua transgressão para a pólis, captura essa exclusão-inclusiva como problema central do projeto

Homo sacer.

O filósofo nos adverte em não pensarmos o conceito de vida exclusivamente no seu

sentido médico ou científico, mas sobretudo no sentido político filosófico.

A articulação estratégica do conceito de vida, segundo Agamben, encontra seu momento

decisivo na história da filosofia Ocidental quando Aristóteles, em sua obra De anima, separa o

termo viver de forma geral e separável.

O animal assume a sua distinção do inanimado a partir do seu modo de viver,

existindo inúmeras formas de viver, o pensamento vive, a sensação, o

movimento e o repouso segundo o seu lugar, o movimento que se dá através

da nutrição, a destruição e o crescimento em diversos aspectos [...] as espécies

vegetais parecem viver, possuem em si uma potência que de fato crescem e se

decompõem de formas opostas, sendo impossível este tipo de manifestação

para os seres mortais (ARISTÓTELES apud AGAMBEN, 2013, p.21-24).

Agamben, retomando Aristóteles em obra à parte de seu projeto filosófico, observa que

o estagirita não define o que vem a ser vida, buscando explicar a limitação e divisão da vida

59

por meio do isolamento de sua função nutritiva46, rearticulando essa em diferentes potências,

faculdades distintas e correspondentes (nutrição, sensação, pensamento), “conseguindo

identificar o dispositivo que articula o pensamento de Aristóteles, qual seja, não identificar uma

questão pelo o que é, mas sim como esta pode se dividir, algo que possa se desmembrar em

outra coisa” (AGAMBEN, 2013, p. 30-31).

Para Agamben, a análise imprecisa do conceito vida, a partir de Aristóteles, fica

demonstrada, a partir da análise conceitual do termo vida, a exclusão da zoé ou a vida isolada

em detrimento de sua função nutritiva, na política e no direito, deixando essa em uma categoria

excluída das formas de vida e não incluída em uma forma, mas isolada e excluída

historicamente de sua definição.

Platão, no Filebo, menciona três gêneros de vida e Aristóteles, na Ética a Nicomâco,

distingue a vida contemplativa do filósofo, da vida de prazer e da vida política, ambos, em

nenhum momento, empregaram o termo zoé (uma vida desconstituída de forma, a vida natural,

não qualificada) pelo fato de se considerar a vida qualificada como único modo de viver, isto

segundo tradição do pensamento filosófico e político do Ocidente.

Segundo Agamben, essa indistinção da vida (zoé), ausente na definição da política

contemporânea, encontra-se presente no pensamento de Michel Foucault e Hannah Arendt.

O político não é um atributo do vivente e é em referência a esta definição que Foucault

resume o processo de subjetivação da vida natural, nos limiares da Idade Moderna, como

inclusão dos mecanismos de disciplina e cálculo do poder, a transformação da vida e da política

em biopolítica.

Desse modo, Agamben, analisando a definição imprecisa de vida a partir de Aristóteles,

nos demonstra, a partir da análise conceitual de vida, a exclusão da zoé ou a vida isolada em

detrimento de sua função nutritiva, na política e no direito, indicando, conforme Foucault:

Por milênios, o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal

vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um

animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”. [...]o

homem moderno é um animal político em cuja prática está a questão de ser

vivente” E, em seguida, o complementa: “[...] na modernidade, a espécie e o

indivíduo enquanto simples corpo vivente tornam se a aposta que está em jogo

nas estratégias políticas (FOUCAULT apud AGAMBEN, 2007, p.11).

46 Comentadores de Aristóteles, em gerações passadas, denominavam a Vida Nutritiva de Vida

Vegetativa.

60

Agamben, para reforçar seu diagnóstico quanto à distinção imprecisa da categoria vida

na modernidade, pontua dois momentos cruciais da produção intelectual de Arendt, constatando

a presença da zoé. Em sua obra, A condição humana, a pensadora alemã pontua a vitória do

animal laborans e, em seus estudos sobre o totalitarismo, demonstra o advento do totalitarismo,

mas não estabelecendo nenhuma relação entre esse e a vitória do animal laborans.

Assim, o filósofo italiano estabelece essa relação entre o advento do totalitarismo na

modernidade e o animal laborans demonstrando em suas investigações do projeto Homo Sacer,

a presença do vínculo entre o poder totalitário e o fato da vida natural tornar-se objeto da política

através da experiência do campo de concentração como paradigma do espaço público

contemporâneo.

2.3 A (Bio) Política da Vida

Em sua primeira obra do projeto HOMO SACER, a vida nua é questão central nas

investigações do filósofo, a vida nua incluída na política, torna-se biopolítica, o paradigma de

gestão da vida na política contemporânea.

A gestão da vida humana na modernidade, o governo da vida é retomado por Agamben,

a partir das investigações de Foucault. Entretanto, para o filósofo, a gestão da vida antecede o

exposto por Foucault na modernidade.

Para Agamben, as relações de poder sobre a gestão da vida, a gestão dos nossos corpos,

remontam à antiguidade, tão antiga quanto a exceção soberana, o controle efetivo da vida, dos

corpos nos cálculos do poder, a vida sempre dividida, como nos referimos no capítulo anterior

em suas variadas formas de vida.

O surgimento da vida nua resulta em implicações no campo da política e do direito em

condição de vida capturada na política por meio do direito no espaço de exceção.

[...] essa zona é em verdade, perfeitamente vazia, e o verdadeiramente

humano que deve surgir é apenas o lugar de uma decisão incessantemente

atualizada na qual a separação e a sua rearticulação são sempre deslocalizadas

[...] uma vida humana, mas somente uma vida separada e excluída de si

mesma-apenas uma vida nua. (AGAMBEN, 2013, p.65).

Com o surgimento do Estado moderno, a vida humana é fundamento, um corpo, inserido

no cálculos e estratégias do poder político.

61

A convergência da vida nua na esfera política constitui o núcleo originário

ainda que oculto do poder soberano. A produção de um corpo biopolítico é

uma contribuição originária do soberano. Entretanto, a biopolítica é tão antiga

quanto a exceção soberana. A vida nos cálculos do poder resgata vínculos

entre moderno e arcaico. (AGAMBEN, 2007, p.14).

A figura arcaica do Homo sacer é o paradigma que podemos comparar à vida nua, fonte

originária da biopolítica, a condição da vida humana como mero cálculo de poder no direito e

na política.

Como consequência, o direito não é o responsável pela condição de Homo sacer

(homem sacro, sagrado) a figura arcaica, matável e insacrificável analogicamente comparado à

condição da vida nua, mas, sobretudo, ao estado de exceção, um dispositivo decretado além do

direito, sobretudo na política.

A política no Ocidente desde suas origens é biopolítica, uma vida pensada no sentido

prático e útil da vida humana, articulando a negação das liberdades políticas nos direitos do

cidadão, a vida nua é “a vida indigna de ser vivida” (AGAMBEN, 2004, p.148). [...] é um

conceito político, no qual está em questão a extrema metamorfose da vida matável e

insacrificável do Homo sacer, reconhecida pelo direito como um ato de exceção.

Cada vez mais a vida humana está centralizada na política, tornando essa biopolítica,

que, a partir da análise de Agamben, revela o núcleo originário da esfera política, a inclusão da

vida através da exclusão.

A forma de vida biopolítica, não conseguiu construir a articulação entre zoé e

bios, [...], que deveria recompor a fratura de sua divisão. A vida nua continua

presa a ela [a aporia] sob a forma da exceção, isto é, de alguma coisa que é

incluída somente através de uma exclusão. Como é possível politizar a

“doçura natural” da zoé? (AGAMBEN, 2007, p.18).

O dispositivo da exceção utilizado na biopolítica é uma técnica eficiente de governo, a

exceção como norma de governo, normatizando excepcionalmente a vida.

A inclusão da vida nua na biopolítica é o objetivo último da política no Ocidente, vitória

esta concedida ao poder soberano, tanto nas democracias contemporâneas, quanto no

totalitarismo, sendo essa parte do todo.

Segundo Agamben, na biopolítica e no Estado Moderno, o homem não está livre e

consciente da passagem de súdito a cidadão, encontrando nesse espaço de transição a

indeterminação de sua condição. Então, qual a condição do homem, súdito ou cidadão?

Essa resposta, segundo Agamben, é concebível no momento que compreendermos o

significado político do ser puro (segundo Aristóteles, se diz de muitos modos), isolando as

62

multíplices formas de vida concreta. “Decifrando o significado do ser puro, poderemos

conceber a vida nua que exprime nossa sujeição ao poder político, assim como, inversamente,

compreenderemos as implicações teoréticas da vida nua solucionando o enigma da ontologia”

(AGAMBEN, 2007, p.188), pois é sobre o limiar da vida nua, a transgressão da política em

teoria perpetuada na contemporaneidade.

A “vida nua é uma espécie de rendimento47 fundamental do poder soberano, a produção

da vida nua, um elemento político original, articulando seu poder sobre a vida dividida, entre

natureza e cultura, zoé e bios” (AGAMBEN, 2007, p.187).

Agamben destaca na biopolítica, a definição da vida que não merece viver, a decisão

sobre a vida e a morte concedida ao poder soberano, implicando a decisão soberana na

identificação daquele que merece morrer ou viver, provocando uma constante instabilidade aos

viventes.

Podemos apresentar como paradigmas situações extremas de controle da vida e da

morte, tais como a proibição do suicídio, da eutanásia, do aborto, estando em jogo, como

estratégia política, o poder soberano do indivíduo sobre seu corpo, não estando mais a vida nua

confinada a uma categoria definida, mas no corpo biopolítico de cada ser vivente, resultando

uma relação de vida indigna a ser vivida.

Para Agamben, a origem da política é uma origem biopolítica, ela se coloca na

intersecção entre a decisão soberana sobre a vida matável e a tarefa de cuidar do corpo biológico

da nação, assimilando, desse modo, uma forma de vida em que a biopolítica, se converte em

tanatopolítica, a política da morte.

O soberano régio da nação na biopolítica, não apenas decide sobre a vida no estado de

exceção, mas indica quando a vida deixa de ter valor, decidindo o momento que esta vida deixa

de ser politicamente relevante, denunciando a politização de sua morte política.

Para melhor compreensão deste capítulo, seguimos intensificando nossa argumentação,

de forma objetiva em nosso terceiro e último capítulo de nossa investigação.

47 No sentido de conotação financeira, per capita.

63

3. O ESTADO DE EXCEÇÃO ENQUANTO PARADIGMA POLÍTICO DA

CONTEMPORANEIDADE

A arqueologia do estado de exceção inicia-se na obra Homo Sacer I, obra na qual

Agamben se debruça acerca do Poder Soberano e a Vida Nua, nessa obra, o filósofo se dedica

a pensar a rede de conexão do estado de exceção, fundamento da ordem jurídica e política,

efetivado na captura da vida nua que atinge sua máxima indeterminação dentro e fora do direito.

Logo após, dando continuidade as suas investigações, escreve a obra Estado de

Exceção, uma obra relevante, face aos acontecimentos políticos do Ocidente na

contemporaneidade, delineando a arqueologia do direito, como este é constituído na

modernidade e seus reflexos no pensamento contemporâneo.

Segundo Agamben, o estado de exceção é o paradigma da política contemporânea, é

quem manipula a máquina governamental que produz o político e a máquina antropológica que

produz o humano, nas relações éticas e política do Ocidente.

3.1. O Estado de Exceção

O tema em torno a discussão e debates acadêmicos da exceção na modernidade

ressurgem após o 11 de setembro, um acontecimento que chocou a modernidade, com o retorno

de uma política de restauração do estado de exceção, antes oculto, mas, centralizado no coração

da política contemporânea.

Para Agamben, o estado de exceção como vimos é um dispositivo original da

modernidade e não pode ter forma jurídica, mas, a própria definição do termo tornou-se difícil

por se situar entre os limites incertos da intersecção entre o jurídico e o político e a disputa do

lócus que lhe cabe.

O estado de exceção define os limiares que vinculam os fundamentos políticos da

ordem, e a legitimidade de qualquer direito demonstrando a anomia da vida em sua relação com

o direito, um espaço vazio criado pelo soberano em nome da manutenção do poder e da ordem.

Segundo Agamben, “as medidas excepcionais encontram-se em uma situação paradoxal

de medidas jurídicas incompreensíveis no plano do direito, e o estado de exceção apresenta-se

como forma legal daquilo que não pode ter forma legal”. (AGAMBEN, 2004, p.12)

Por outro lado, se o estado de exceção é o dispositivo original segundo o qual o direito

se refere à vida e a inclui em si por meio de sua própria suspensão, uma teoria do Estado de

exceção é condição sine qua non para a compreensão da definição da relação que liga e, ao

64

mesmo tempo, abandona o vivente ao direito. “ O sistema jurídico do Ocidente apresenta-se

como uma estrutura dupla, formada por dois elementos heterogêneos e, no entanto,

coordenados” (AGAMBEN, 2004, p. 130). Ou seja, no ordenamento encontra-se um elemento

normativo e jurídico em sentido estrito e um elemento metajurídico, este designado a partir da

autorictas do soberano, aquele quem decide sobre o estado de exceção.

O exercício do poder do Estado e do soberano não se encontram separados, contudo a

exceção é fundada na vontade soberana que suspende a ordem jurídica total ou imparcialmente.

O filósofo parte da concepção que vivemos um momento de anormalidade, tendo como

objetivo nos mostrar “ a ficção que governa o arcanum imperii por excelência de nosso tempo.

O que a “arca” do poder contém em seu centro é o estado de exceção” (AGAMBEN, 2004,

p.131).

Nos tempos atuais, há a consolidação de um novo paradigma de governo. Que

paradigma de governo é este? Este paradigma é o estado de exceção. Nos debates políticos

contemporâneos do Ocidente, evidencia-se uma apologia ao Estado Democrático de Direito.

Mas diante a insurgência de um estado de exceção no qual nos encontramos, é preciso se

contrapor a esta concepção hegemônica e demarcar os limites entre o Estado democrático de

direito e o estado de exceção “ um espaço vazio, onde uma ação humana sem relação com o

direito está diante de uma norma sem relação com a vida” (AGAMBEN, 2004, p.131).

O estado de exceção tende a se firmar como paradigma hegemônico da política

contemporânea, mesmo em regime democrático. Nenhum regime democrático elimina a

exceção, revelando seu fundamento oculto no Estado de direito e em sua soberania.

Tal fundamento pode ser confirmado por meio da promulgação de uma medida

provisória e excepcional, transpondo para uma técnica permanente de governo, tornando se

cada vez mais visível no parlamento democrático.

Enquanto as medidas excepcionais se tornam habituais, a exceção tende a normalidade

efetivando esta no sentido de norma, “ exatamente por que se trata de poderes de fato, precisam

eles, ou de muita força ou de circunstancias excepcionais particularmente favoráveis. Não

podem ser invocados como se invocam os direitos em qualquer circunstância em que se

considere tenham sido eles violados” (BOBBIO, 2009, p.94), embora a publicidade dos atos é

regra em um Estado Democrático de Direito, mas acreditar nisto é “ ilusório [...] leva a crer que

estas medidas, como os demais direitos, garantidos, quando na verdade não são garantidos, e

quem se arrisca a acreditar nisso, arrisca-se a parar na cadeia” (BOBBIO. 2009, p. 94).

Nos regimes autoritários e totalitários, a exceção é evidente ao ponto de se tornar norma.

O que Agamben coloca é que a exceção não se limita apenas aos regimes autoritários, mas que

65

permanece como potência e técnica de governo no Estado Democrático de Direito, ou seja, uma

exceção regulada por leis (medidas provisórias) que não permitem devidas exceções, leis que

suspendam direitos inalienáveis, uma constante na experiência humana, valendo que a exceção

confirma a regra.

Agamben define o estado de exceção como paradigma de qualquer tipo de governo e da

ordem constitutiva do direito. Como exemplo, o estado nazista, começando suas análises sobre

a legalidade daquilo que não pode ter forma legal. O totalitarismo moderno por meio do estado

de exceção ficou na penumbra do Estado de direito, ou seja, numa zona cinzenta, num vazio do

ponto de vista jurídico, que durou 12 anos. Vejamos sua definição:

O totalitarismo moderno pode ser definido como a instauração, por

meio do estado de exceção de uma guerra civil legal que permite a eliminação

física não só dos adversários políticos, mas também das categorias inteiras de

cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político.

(AGAMBEN, 2004, p.13).

Esta definição não integra exclusivamente os regimes totalitários, mas também para

regimes democráticos na modernidade. A proposta arqueológica que nos propõem Agamben é

expor as raízes históricas e concretas sobre aos quais se construiu a democracia contemporânea,

se contrapondo a fundamentos não evidenciados de fato.

O filósofo nos afirma que: “Em todo caso, é importante não esquecer que o estado de

exceção moderno é uma criação da tradição democrático-revolucionária e não da tradição

absolutista” (AGAMBEN, 2004, p.16).

O Estado moderno surge em contraposição à ordem estabelecida, a partir de um ato de

resistência e violência ao poder Soberano, o novo regime torna-se em um único tempo,

constituinte e constituído do Estado moderno, tornando esse limiar entre o político e o jurídico

a origem de um ato extrajurídico com força de lei. Conforme indica Agamben:

O problema do estado de exceção apresenta analogias evidentes com o do

direito de resistência [...]. De fato, tanto no direito de resistência quanto no

estado de exceção, o que realmente está em jogo é o problema do significado

jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica. (AGAMBEN, 2004, p.24)

O estado de exceção pode ser invocado em circunstâncias que a vontade soberana

considere necessária para manter a ordem. Sendo a exceção uma potência permanente do Estado

democrático de direito, tornando-se uma constante ameaça sobre a vida de todos os cidadãos.

Agamben nos demonstra essa possibilidade da seguinte forma:

66

Desde então, a criação voluntaria de um estado de emergência permanente

(ainda eventualmente não declarado no sentido técnico) tornou-se uma das

práticas essenciais dos Estados contemporâneos, inclusive dos chamados

democráticos. Diante do incessante avanço do que foi definido como uma

guerra civil mundial, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar

como o paradigma do governo dominante na política contemporânea. Esse

deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de

governo ameaça transformar radicalmente e, de fato, já transformou de modo

muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os

diversos tipos de constituição. O estado de exceção apresenta-se, nesta

perspectiva, como um patamar de indeterminação entre democracia e

absolutismo. (AGAMBEN, 2004, p.13)

De acordo com Agamben, o estado de exceção encontra-se nessa fronteira de

indeterminação entre a democracia e o absolutismo. Um dispositivo original que, em nome da

segurança, articula e mantém o aspecto jurídico-político para a democracia, instituindo um

limiar de indecisão entre a vida e o direito.

O direito, segundo o filósofo italiano, surge como força de lei sem lei, como um

dispositivo de exceção, além do direito, mas, sobretudo na política, como técnica do governo e

instrumento de coerção do poder soberano sobre os cidadãos na democracia contemporânea.

No estado de exceção, divergindo do estado dito democrático de direito, temos uma

visão invertida do que realmente o direito é na sua forma jurídica e política.

O significado imediatamente biopolítico do estado de exceção como estrutura

original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria

suspensão aparece claramente no militay order, promulgada pelo presidente

dos Estados Unidos no dia 13 de novembro de 2001, e que autoriza a infinite

detention e o processo perante as military comissions (não confundindo com

os tribunais militares previstos pelo direito de guerra) dos não cidadãos

suspeitos de envolvimento em atividades terroristas. (AGAMBEN, 2004,

p.14)

Para compreendermos o direito como dispositivo de poder e violência no estado de

exceção, precisamos fazer uma análise em torno a relação deste e o poder soberano

estabelecendo do ponto de vista da organização da vida, como um risco permanente à

organização desta, um conflito originário da política, inerente à convivência em sociedade e às

mudanças que dessa derivam. Como bem salienta Castor, 2013, p.346:

Uma vida sem direito é uma vida abandonada a pura violência. O direito

defende da violência não legal com a violência legal. Contudo, a definição do

que seja violência legal é uma decisão que compete ao próprio direito. Quando

67

instrumentalizado como dispositivo utilitário da ordem, o direito se torna uma

ameaça violenta para todos que se opõem a ordem estabelecida”.

No pensamento filosófico ocorrem divergências quanto às teses naturalistas da violência

na qual poder e violência interagem, sendo o poder uma forma de violência, e a violência a

consequência desse poder, legitimando a naturalização da violência na biopolítica que se efetiva

através do Estado na captura da vida humana, sobre a potencial ameaça da exceção. “ A vida

humana ou mera vida natural parece que se dilui na medida em que as filosofias naturalistas,

neurociências, naturalismo biologista, entre outros impõem o critério científico de que a vida

humana é, strict sensu, uma vida biológica” (CASTOR, 2013, p.346).

É nesse sentido que o filósofo italiano encontra o fundamento do nexo entre direito e

violência, e quando este se efetiva ocorre o rompimento entre direito e violência, ou seja, a vida

biológica excluída na exceção em um Estado Democrático de Direito, se caracteriza como um

ato de violência do Estado frente a vida humana, e quando o Estado captura esta vida humana,

frente a sua inclusão, o nexo entre violência e direito é rompido, fundamento de um paradoxo

permanente do estado de exceção.

A vida é normatizada pelo direito, que controla sua conduta sujeita as normas ditadas

em nosso ordenamento. Caso esta vida não siga tais normas, esta estará excluída na esfera de

uma vida que ameaça a ordem, porém perigosa e exposta a exceção. A normalização da vida a

partir das técnicas biopolíticas é a regra do dispositivo da exceção do poder contemporâneo.

3.1.1 A Exceção Soberana

Conforme Agamben, a autoridade da decisão soberana em relação a vida nua, excluída-

incluída revela a exceção soberana, demarcando assim a topologia do estado de exceção que

atinge sua máxima indeterminação. A normatividade das condutas humanas sujeitas a uma

vontade soberana, possibilitando aos sujeitos uma falsa aparência de liberdade.

O poder do soberano encontra-se vinculado ao poder do estado que, quando decreta a

exceção e sai da esfera do direito, mostra o poder de suspender o direito e decretar uma nova

ordem. “ O estado de exceção, hoje atingiu exatamente seu máximo desdobramento planetário.

O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunimente eliminado e contestado por uma

violência governamental” (AGAMBEN, 2004, p. 131). Ocorrendo de fato, no interior do Estado

Democrático de Direito, negligências face ao direito internacional, produzindo no âmbito

interno do Estado,

Um estado de exceção permanente, e ainda com a pretensão de aplicar o direito.

68

A exceção não apenas revela o soberano, mas o poder da relação do dispositivo da

exceção com a vida humana. O direito como um dispositivo de poder e violência, legitimando

o dispositivo da exceção, além do direito, mas, sobretudo na política, como técnica de governo,

um instrumento da coerção do poder sobre os cidadãos nas democracias contemporâneas do

Ocidente.

O soberano não exerce sua soberania unicamente sobre as coisas, as instituições, o

território ou a riqueza, mas concomitantemente sobre a vida humana. A vida humana encontra-

se excluída pela inclusão e incluída pela exclusão no estado de exceção. Delineando a estrutura

formal da exceção soberana, podemos assim dizer.

Aquilo que é capturado no bando soberano é uma vida humana matavél e

insacrificável: o homo sacer. Se chamamos vida nua ou vida sacra a esta vida

que constitui o conteúdo primeiro do poder soberano, dispomos ainda de um

princípio de resposta para o quesito benjaminiano acerca da origem da

sacralidade da vida. Sacra, isto é, matavél e insacrificável, é originariamente

a vida no bando soberano, e a produção da vida nua, é neste sentido, o préstimo

original da soberania. A sacralidade da vida, que se desejaria hoje fazer valer

contra o poder soberano como um direito fundamental, exprime ao contrário,

em sua origem, justamente a sujeição da vida a um poder de morte, a sua

irreparável exposição na relação de abandono. (AGAMBEN, 2007, p.91)

Isso significa dizer que o poder soberano é a instância capaz de determinar e traçar o

limite entre a vida protegida e a vida sujeita à morte, realizando a politização da vida biológica

e produzindo uma vida nua, incluindo-a e, ao mesmo tempo, excluindo-a do direito. A vida

humana torna-se frágil, vulnerável e facilmente controlável, e o estado de exceção visa esse

controle político da vida humana.

O soberano, ao decretar a exceção, sai da esfera do direito e mostra o poder de suspender

o direito e, a partir de sua vontade, impor uma nova ordem.

A exceção soberana como forma de controle sobre a vida torna-se uma técnica política

de governo da vida humana amplamente utilizada pelos Estados modernos. O Estado de Direito

e o Estado de exceção não se separam, ambos se encontram paralelos um ao outro, mas suas

estruturas encontram-se vinculadas, em uma dualidade estrutural política-jurídico.

O soberano no estado de exceção encontra-se oculto no estado de direito, porém, ao

decretar a exceção, suspende as regras jurídicas sem revogá-las. Podemos citar como exemplos,

a decisão de uma exceção soberana quando nos referimos aos oprimidos políticos, os miseráveis

em condições de sobrevivência, a margem do mínimo necessário para uma vida digna,

imigrantes ilegais, combatentes-inimigos, refugiados, sendo estas vidas localizadas em um

espaço vazio de direito, em um estado de exceção que retira valores fundamentais à vida

69

humana, através de um decreto, originário de uma vontade soberana, reduzindo a vida humana

a uma mera vida nua.

E ao mesmo tempo, o estado de exceção opera outro tipo de exceção, a exceção dos

excluídos socialmente. Estes sobrevivem excluídos de direitos fundamentais, abatendo sobre

sua vida a exceção de fato, “reduzindo a uma vida indigna, que o conduz ao direito de morte

(RUIZ, 2011). A vida do excluído é uma vida nua. Na condição dos excluídos a exceção é a

norma.

Uma exceção que foi decretada por uma vontade do soberano, não havendo um decreto

jurídico ou político suspendendo o direito destes excluídos. Ao inverso, estes excluídos

possuem tais direitos garantidos em um Estado Democrático de Direito, porém:

Na verdade, o estado de exceção não é nem exterior nem mesmo interior

ao ordenamento jurídico, encontrando a sua indeterminação em um

patamar ou zona de indiferença, no qual o dentro e o fora não se

excluem, mas se indeterminam. A suspensão da norma não significa

revogá-la do ordenamento e nem a excluir da ordem, antes mantê-la

suspensa. (AGAMBEN, 2004, p.39)

Agamben considera o estado de exceção, um estado de anormalidade, é o momento da

decisão soberana capturando a vida humana em estado de exceção através do direito. Ao

soberano, é legitimado decretar a exceção, mas também suspender o ordenamento jurídico,

paradoxalmente, permanecendo dentro e fora do direito, detendo-se assim a uma anormalidade

da vida inserida no direito e na política.

Esse estar ao mesmo tempo dentro e fora do direito determina o lugar de movimento do

soberano, atuando onde nenhuma norma é possível. Na exceção cabe ao soberano a decisão de

criar a norma. Ou seja, o direito, ou a norma, é criado a partir da exceção extraído da posição

ambígua do soberano como uma espécie de exclusão, a um caso singular, que é excluído da

norma geral.

Entretanto, esta exclusão não sugere propriamente um estar fora da relação com a

norma, antes essa relação se mantém como suspensão da norma. “[...] o estado de exceção não

é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão”

(AGAMBEN, 2007, p.24), o estado de exceção é o resultado da suspensão da ordem política e

jurídica vigente.

Ao contrário da compreensão de que a exceção é o que pode ser incluído, esta é a

situação em que algo primeiro é excluído e depois incluído. Uma inclusão por meio de uma

exclusão, reivindicando a necessidade de normatização; um incluir o excluído sem que este

70

deixe de ser excluído, chamando essa relação de exceção, um dispositivo biopolítico originário

que captura a vida natural pela exclusão e a inclui na captura (a vida nua), na representação de

uma vida equiparada ao paradigma da figura do Homo sacer.

3.2 A Soberania em Agamben

Agamben em suas investigações buscando compreender o momento presente, o

movimento48 de nossa realidade, partindo da lógica da Soberania e a sua relação com o estado

de exceção, evidencia como base de seu pensamento, uma intensa reflexão a oitava tese da

história enunciada por Walter Benjamin, que aqui citamos na íntegra:

A tradição dos oprimidos nos ensina que o estado de exceção em que vivemos

é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que

corresponde a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa

tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa

posição ficara mais forte na luta contra o fascismo. Este se beneficia da

circunstancia que seus adversários o enfrentam em nome do progresso,

considerado como uma norma histórica. O assombro com o fato de que

os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis, não é

um assombro filosófico. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser

o conhecimento de que a concepção de história da qual emana

semelhante assombro é insustentável (BENJAMIN, 2004, p.04).

Agamben desta tese de Benjamin conclui que, o estado de exceção em vivemos é a regra.

As premissas que norteiam historicamente seu pensamento, que o levam a encarar esta forma

de pensar, o estado de exceção como uma técnica de governo e paradigma da constituição da

ordem jurídica.

48 Este é um conceito nobre, pouco analisado na história da filosofia Ocidental, nos inflexionando a

refletir do proeminente debate entre Heráclito e Parmênides, acreditando Kant ter solucionado este

problema na modernidade, este mesmo debate é retomado por filósofos contemporâneos, entre eles

Agamben. Para Agamben, este termo não possui uma definição, embora entendido. “ O conceito de

movimento, que na ciência e na filosofia tem uma longa história, porém na política adquire um

significado técnico relevante apenas no século XIX. Um dos primeiros aparecimentos ocorre na

Revolução de julho de 1830 na França, na qual defensores de mudança denominavam do “ partie du

moviment” e os seus adversários do “partie de l’ordre”. De modo breve, sabe-se que tanto Marx, quanto

Schmitt, foram influenciados por Lorenz Von Stein, e a partir deste pensador, o conceito movimento

torna-se preciso e adquire definição no âmbito estratégico de aplicação. Von Stein contrapõe o

movimento a noção dialética do Estado. O Estado é o elemento estático, legal, enquanto o movimento é

a expressão das forças dinâmicas da sociedade. Dessa forma, o movimento é sempre movimento social,

em antagonismo com o Estado, e expressa o primado dinâmico da sociedade sobre as instituições

jurídicas e estatais. Assim, nem Von Stein define o que entende por movimento; ele atribui a ele uma

dinâmica e descreve sua função, mas não lhe dá uma definição ou uma tópica (AGAMBEN, 2005, p.02).

71

Para explicar a lógica da soberania, Agamben tem por base a leitura de Carl Schmitt.

Em sua obra Estado de Exceção, o mesmo dedica um capítulo ao debate entre Benjamin e

Schmitt, aprofundando cada vez mais suas investigações em relação ao estado de exceção.

Benjamin49 e Schmitt50, desenvolveram análises em relação os séculos XVI e XVII,

Agamben na busca de compreender o século XX, ou melhor, compreender o Estado moderno,

os retoma como base para o seu pensamento. O debate entre os gigantes, dos anos de 1925 a

1956, são as premissas que contribuíram para o esclarecimento de conceitos basilares da

investigação de Agamben, o esclarecimento dos conceitos de soberania e direito e como estes

se apresentam na nossa contemporaneidade.

Para Agamben, o que se encontrava no debate sobre o estado de exceção entre Benjamin

e Schmitt pode muito bem ser esclarecido. Todo debate gira em torno de uma zona de anomia.

De um lado esta deve ser mantida a todo custo em relação com o direito, porém de outro a

mesma deve ser libertada de sua relação com o direito. Estando em jogo, unicamente a relação

entre direito e violência. O direito enquanto estatuto da violência e código de conduta da ação

humana. Agamben, 2004, p.92, esclarece da seguinte forma este debate:

Ao gesto de Schmitt que, a cada vez, tenta reinscrever a violência no contexto

jurídico, Benjamin responde procurando a cada vez, assegurar a ela – como

violência pura – uma existência fora do direito. Porque, devemos tentar

esclarecer, essa luta pela anomia parece ser, para a política ocidental, tão

decisiva quanto aquela gigantomachia peri tes ousias, aquela outra luta de

gigantes acerca do ser, que define a metafisica ocidental. Ao ser puro, a pura

existência enquanto metafisica última, responde aqui a violência pura como

objeto político extremo, como coisa de política; a estratégia onto-teo-lógica,

destinada a capturar o ser puro nas malhas do logos, responde a estratégia da

exceção, que deve assegurar a relação entre violência anômica e direito.

Ou seja, para dar sentido ao mundo da vida tudo ocorre como se o direito e o logos

tivessem a necessidade de permanecer em uma zona anômica de sua suspensão para legitimação

de seu fundamento. Para o direito existir é necessário a captura deste numa zona de anomia. A

estrutura desta anomia se dá em um espaço vazio, de um lado a anomia ou o vacuum jurídico,

e do outro, o ser puro, vazio de toda determinação. “ Para o direito, esse espaço vazio é o estado

49Filósofo alemão e judeu, considerado um dos maiores críticos do regime Nazista. 50Jurista conservador, filiado as concepções nazistas. Ultraconservador, ultracatólico, filiado ao nazismo

no ano de 1933, e teórico oficial. Não foi acusado em Nuremberg, foi testemunha, porque em 1936,

devido a uma guerra interna, no interior do partido Nazista, foi afastado dos principais juristas nazistas.

Notadamente por suas concepções religiosas, mas ele não se eximiu, ele foi obrigado a se afastar por

questões ideológicas.

72

de exceção como dimensão constitutiva” (AGAMBEN, 2004, p. 93). Entre a realidade e a

norma, ocorre uma relação implicando na suspensão da norma.

De fato, o que ocorre, sendo essencial para a ordem jurídica é que “ essa zona-onde se

situa uma ação humana sem relação com a norma-coincide com uma figura extrema e espectral

do direito, em que ele se divide em pura vigência sem aplicação” (AGAMBEN, 2004, p. 93), a

forma de lei perde sua vigência e uma aplicação de lei sem vigência ganha força, uma força de

lei sem lei.

A contiguidade entre soberania e estado de exceção é muito bem definida por Carl

Schmitt. A definição do conceito de Soberania, na obra Estado de Exceção, é o conceito

schmittiano, cujo paradoxo de soberania assim se define:

O soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento jurídico. Se

o soberano é, de fato, aquele no qual o ordenamento jurídico reconhece o

poder de proclamar o estado de exceção e de suspender o direito, o mesmo

ordenamento por fim valida a sua decisão (AGAMBEN, 2007, p.23.).

Para Agamben, a soberania se define a partir de um paradoxo, um estar dentro e fora do

ordenamento jurídico. E o soberano é quem decide o estado de exceção, tendo o seu poder de

declarar o estado de exceção, a partir de um reconhecimento normativo, ou seja, na visão de

Agamben, o direito é um instrumento de técnica de decisão política na modernidade, legitimado

pelo ordenamento jurídico.

Assim, perguntamos: Quem é de fato o soberano? Como se legitima o poder soberano?

Quem exerce a soberania, o povo ou o soberano? A exceção é fundada na vontade soberana? A

vontade, é do povo, ou é do soberano?

A soberania de um Estado Democrático de Direito é exercida pela vontade do povo. O

povo é o soberano. Uma vontade, no sentido de vontade geral51, não a vontade da maioria, mas

uma vontade fundada no sentido de cumprir o que é certo. Para Rousseau, a soberania é

inalienável, isto é intransferível, indivisível, no sentido de não poder existir divisão de poderes,

infalível, porque se baseia no que é certo, e absoluta, não existe meio termo. A finalidade do

governo é cumprir e executar a lei, aos súditos cabe cumprir a lei.

Por fim, na pior das hipóteses, segundo Rousseau, caso nada de certo, surge o ditador.

Como exemplo: Na ditadura romana, o ditador surge para a resolução dos problemas, eleito em

assembleia no Senado romano, sendo função do ditador, aclamar a vontade geral.

51 Para melhor aprofundamento do tema, consultar a obra: O contrato social. J.J.Rousseau.

73

Então perguntamos: qual o fundamento do poder do senado em Roma de suspender o

direito através do senatus consultum ultimum e a consequente proclamação do iustitium52 ?

Segundo Agamben, a autoridade (auctoritas) é o que define a função específica do

Senado em Roma, a prerrogativa “ essencial do Senado em Roma não era, de fato, nem

imperium (império), nem potestas (poder), mas autorictas: autorictas patrum (de autoridade) é

o que define a função especifica do Senado na constituição romana” (AGAMBEN, 2004,

P.115).

O iusttitium proclamado pelo Senado em Roma, surgia quando algo colocava em perigo

a República romana. O senado emitia um senatus consultum ultimum, um decreto que declarava

o “ tumultus (isto é, a situação de emergência em Roma, provocada por uma guerra externa,

uma insurreição ou uma guerra civil) (AGAMBEN, 2004, p.67), dando lugar a proclamação do

iustitium significando literalmente a suspensão do direito.

Para Agambem, o Ocidente está inserido em um estado de exceção, a exceção tornou-

se a regra, e a vontade que prevalece não é a do povo, mas a vontade do soberano.

Segundo Ruiz, o Estado de direito foi instituído para pôr fim as arbitrariedades53 do

poder soberano, entretanto: “ A tese de Agamben desvela é que o Estado de direito não

conseguiu abolir plenamente a vontade soberana, senão que ela permanece oculta como

potência de Estado para ser utilizada quando necessária” (RUIZ, 2011) , seguindo a premissa

de que os fins justificam os meios, sendo a exceção fundada na vontade soberana em caso de

excepcionalidade.

Para Agamben, a estrutura da soberania tem seu fundamento legítimo na exceção

soberana, “a soberania não é, nem um conceito exclusivamente político, nem uma categoria

exclusivamente jurídica, nem uma potência externa ao direito (Schmitt), nem a norma suprema

do ordenamento jurídico (Kelsen) ” (AGAMBEN, 2007, p.35). Assim, concluímos, segundo

Agamben, a exceção é um dispositivo originário “ na qual o direito se refere a vida e a inclui

em si através da própria suspensão” (AGAMBEN, 2007, p.35). A visão que Agamben tem de

soberania diverge do conceito desta como poder do Estado.

A relação de exceção para Agamben, 2007, p. 36, é uma relação de bando “ chamemos

bando (do antigo termo germânico que designa tanto a exclusão da comunidade quanto o

comando e a insígnia do soberano) a esta potência”. Esta potência designada é a potência no

sentido próprio de dynamis aristotélica, que ao mesmo tempo se apresenta dynamis me

52 É a definição de estado de exceção na ditadura romana, o instituto originário da exceção em Roma. 53 Não confundir arbitrariedade com autoridade.

74

emergein, a potência que não passa ao ato, ou seja, permanece na sua impotência “ da lei

manter-se na própria privação, de aplicar-se desaplicando-se” (AGAMBEN, 2007, p. 36).

Quando Agamben, parte da premissa de aplicação e desaplicação da lei, o mesmo se

refere a aquele que se encontra banido da potência da lei, não está livre da lei e nem indiferente,

mas encontra-se legitimamente abandonado por ela, ou seja, exposto no limiar de indecisão

entre a vida e o direito. Nas palavras do filósofo:

Dele não é literalmente possível dizer que esteja fora ou dentro do

ordenamento (por isto, em sua origem, in bando, a bandono em italiano

significam tanto “a mercê de” quanto “a seu talante, livremente”, como na

expressão correre a bandono, e bandito quer dizer tanto “ excluído, posto de

lado” quanto “ aberto a todos, livre”, como em mensa bandita e a redina

bandita). É neste sentido que o paradoxo da soberania pode assumir a forma:

“ não existe um fora da lei”. A relação originaria da lei com a vida não é a

aplicação, mas o abandono. A potência insuperável do nómos, a sua originária

“força de lei”, é que ele mantém a vida a seu abandonando-a. e é esta estrutura

do bando que trataremos de compreender aqui, para podermos,

eventualmente, reinvoca lá a questão (AGAMBEN, 2007, p.36).

Para Agamben, o bando é uma forma da relação. Esta forma faz parte da relação que se

estabelece entre a vida e a lei em abandono, e não em sua aplicação. A lei aplica-se

desaplicando. Mas, de que relação propriamente estaríamos nos referindo, esta seria a partir do

momento em que não há nenhum conteúdo positivo, e os termos em relação parecem excluir-

se e incluir-se ao mesmo tempo? Qual a forma da lei em uma relação de bando? “ O bando, é a

pura forma de referir-se a alguma coisa em geral, isto é, a simples colocação de uma relação

com o irrelato” (AGAMBEN, 2007, p.36). Neste sentido, a forma da relação de bando se

identifica a uma forma limite da relação, o bando coloca em questionamento a própria forma

desta relação, questionando pensar o fato político além da relação, ou seja, não mais na forma

de um “relacionamento” (AGAMBEN, 2007, p.36).

Isto ocorre, porque Agamben parte da premissa que o Estado moderno não tem

fundamento em um contrato ou convenção, entre os indivíduos e o Estado. O fundamento do

Estado para Agamben, não tem suas bases nas teses contratualistas dos pensadores que seguem

esta seara de pensamento, tais como Hobbes, Locke ou Rousseau.

O fundamento do Estado para Agamben não é a transição do estado de natureza para o

estado civil através de um contrato ou uma convenção entre indivíduos. Agamben evidencia

uma zona de indiscernibilidade complexa entre physis e nomos, natureza e poder soberano.

“O estado de exceção, logo, não é tanto uma suspensão espaço-temporal quanto uma figura

topológica complexa, em que não só a exceção e a regra, mas ate mesmo o estado de natureza

75

e o direito, o fora e o dentro transitam um pelo outro” (AGAMBEN, 2007, p.43). e nesta zona

de indistinção que se mantem os olhos da justiça vedado, ao contrário, aqui deve-se manter o

olhar fixo.

O espaço aonde a lei apresenta-se ausente, o local do “juridicamente vazio” do estado

de exceção, a lei figurando na forma da ficção na sua dissolução, portanto é o local onde

acontece tudo aquilo que o soberano julgar de fato necessário. Assim “ o estado de exceção

irrompe de seus confins espaço-temporais e, esparramando-se para fora deles, tende agora por

toda parte a coincidir com o ordenamento normal, no qual tudo se torna possível”

(AGAMBEN, 2007, p.44).

Para dar continuidade a este raciocínio, vamos abranger de forma mais detalhada esta

interpretação de Agamben, no terceiro e último capítulo de nossa investigação, a partir do

paradigma do campo de concentração, local por excelência, em que a vida humana encontra a

máxima de sua indeterminação, refletindo na modernidade sua estrutura originária, enquanto

vida nua.

3.3 O Campo Matriz Oculta do Nomos e a Inoperosidade da Concepção Liberal de Direito

Os extermínios de milhares de pessoas na modernidade não se deram através do direito

e nem da religião, mas na biopolítica. “O hebreu sob o nazismo é o referente negativo

privilegiado da nova soberania biopolítica e, como tal, um caso flagrante de Homo sacer, no

sentido de vida matável e insacrificável” (AGAMBEN, 2007, p. 121). O assassinato dos

hebreus não configurava nem uma execução capital, nem um sacrifício, mas apenas a realização

da “matabilidade” por estes serem hebreus, inerente a sua própria condição humana, “ os

hebreus não foram exterminados no curso de um louco e gigantesco holocausto, mas

literalmente, como Hitler havia anunciado, “ como piolhos”, ou seja, como vida nua”

(AGAMBEN, 2007, p.121).

Com a politização da morte, surgem os campos de concentração na política

contemporânea, espaço onde a experiência do nomos moderna estrutura sua forma. “ O que

aconteceu nos campos de concentração supera o conceito de crime, que amiúde tem-se deixado

simplesmente de considerar a especifica estrutura jurídico-política na qual aqueles eventos se

produziram” (AGAMBEN, 2007, p. 173).

Neste sentido, o campo surge como um acontecimento político, não residindo nesse

espaço a forma clássica da política, mas um espaço eficaz de dessubjetivação e controle da vida

nua, longe de ser apenas um dispositivo do nazismo, mas sobretudo um dispositivo da

76

experiência política moderna, na qual a biopolítica no Ocidente efetiva sua ambição de controle

e dominação da vida capturada. ” O campo é apenas o local onde se realizou a mais absoluta

conditio inhumana que se tenha dado sobre a terra: isto é, em última análise, o que conta, tanto

para as vítimas como para a posteridade” (AGAMBEN, 2007, p. 173).

Aqueles que estavam nos campos de concentração, eram desnacionalizados. O espaço

do campo era o local da indistinção entre externo-interno, exceção e regra, lícito-ilícito, nos

quais direitos subjetivos e proteção jurídica perdiam de fato o seu sentido, os cidadãos

desnacionalizados eram despojados de seu estatuto político e reduzidos a mera vida nua. “Por

isso, o campo é o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política se torna

biopolítica e o Homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão” (AGAMBEN, 2007,

p.178).

O campo surge como evento decisório da biopolítica moderna na contemporaneidade, o

espaço do acontecimento decisivo da centralização política aderindo a partir da estratégia

política a captura da vida nua, incluindo a vida através da exclusão e, assim, despolitizando a

vida nua, apropriando-se da vida sacra na exceção, mesmo que essa se dê pela exclusão, ao

equipara-la à vida do Homo sacer.

O campo é o que resta, “ o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a

tornar-se a regra” (AGAMBEN, 2007, p. 175), enquanto espaço político quando o sistema

político entra em crise, transformando-se no novo regulador oculto da inscrição da vida no

ordenamento jurídico, ou antes, o sinal da impossibilidade de o sistema funcionar, sem antes

transformar-se numa máquina letal de exterminação da vida.

O espaço político na modernidade é equiparado analogicamente por Giorgio Agamben

ao paradigma do campo de concentração da Alemanha Nazista, este entendimento é possível a

partir da compreensão de seu método arqueológico nos permitindo apreender o nosso tempo,

refletindo a partir de uma incursão histórica na filosofia.

O campo de concentração, é o paradigma do espaço político na contemporaneidade, a

polis da modernidade, um espaço de suspensão temporária do ordenamento, com bases em uma

situação de perigo, porém excedendo a disposição temporal, tornando-se permanente, com

medidas distintas do ordenamento normal.

Para Agamben a política na modernidade é o resultado de um percurso histórico, na qual

encontramos o seu território originário no paradigma do campo de concentração, um espaço

imerso na biopolítica arrastando consigo desde sua origem o Homo sacer, de modo contínuo e

oculto, um véu invisível, imperceptível ao nosso olhar, mas, como bem salienta Bobbio;

77

É por trás do véu da invisibilidade que amadurecem e se difundem os grandes

e pequenos vícios que minam pela raiz os sistemas democráticos: as ameaças

mortais, como são os comportamentos desviantes dos serviços de segurança,

as tramas ocultas na dos corpos separados do Estado, a desestabilização das

instituições por parte de seus próprios servidores, assim como aquelas

corriqueiras, mas igualmente insidiosas, como a corrupção pública, o

peculato, a malversação, a concussão, o interesse privado em atos oficiais, que

corroem lenta mas inexoravelmente a confiança dos cidadãos. (BOBBIO,

2004, p.19).

Bobbio nos ajuda compreender de fato, a existência de um poder invisível

amadurecendo no interior das sociedades democráticas, corroendo os sistemas democráticos.

Este poder por trás do véu da invisibilidade não apenas atinge a estrutura do Estado e a

confiança dos cidadãos, mas sobretudo, controla e manipula a vida humana como bem

evidencia Agamben.

Não será este poder oculto, a vontade oculta do soberano? Entretanto, seguindo a linha

do pensamento agambeniano a definição do termo da exceção surge da relação entre direito e

soberania, sendo a exceção o dispositivo originário de captura da vida humana.

O campo de concentração é o espaço da experiência moderna, da política

contemporânea, de controle da vida nua, a vida humana submissa as relações de poder que se

convertem em biopoder no sentido foucaultiano do termo. Tornando evidente a reflexão de que:

[...] como demonstrou Foucault, o Estado moderno, a partir do século XVIII,

começa a incluir entre os seus cômputos essenciais, o cuidado com a vida da

população e transforma, assim, a sua política em biopoder é, sobretudo, por

meio de uma progressiva generalização e redefinição do conceito de vida

vegetativa54 (que se torna então o patrimônio biológico da nação) que ele

realizara sua nova vocação (AGAMBEN, 2013c, p.32).

Assim, Agamben observa a preocupação de Foucault, no século XVIII, em redefinir o

conceito de vida vegetativa após a fundação do Estado Moderno, face a condição da vida

humana na modernidade, reduzida a uma vida nua no sentido agambeniano, patrimônio

biológico da nação, incluída nos cálculos do poder. Para Agamben, 2007, p.181:

O nascimento do campo em nosso tempo surge então, nesta perspectiva, como

um evento que marca de modo decisivo o próprio espaço político da

modernidade. Ele se produz no ponto em que o sistema político do Estado-

nação moderno, que se fundava sobre o nexo funcional entre uma determinada

localização ( o território) e um determinado ordenamento ( O Estado),

mediado por regras automáticas de inscrição da vida ( o nascimento ou nação),

54 Ou nutritiva, conforme leitura de alguns interpretes de Aristóteles.

78

entra em crise duradoura e o Estado decide assumir diretamente entre as

próprias funções os cuidados da vida biológica da nação.

Entretanto Agamben, procurando intensificar suas investigações preocupa-se em

redefinir a fundação do Estado Moderno, em contraposição as teorias do Contrato Social,

propondo uma nova forma de pensar a fundação do Estado Moderno. Assim propõe Agamben:

O liame estatal, tendo a forma de bando, é também desde sempre não

estatalidade e pseudonatureza, e a natureza apresenta-se desde sempre

como nomos e estado de exceção. Este malentendido do mitologema

hobbesiano em termos de contrato em vez de bando condenou a

democracia à impotência toda vez que se tratava de enfrentar o

problema do poder soberano e, ao mesmo tempo, tornou-a

constitutivamente incapaz de pensar verdadeiramente, na modernidade,

uma política não estatal (AGAMBEN, 2007, p.116).

Pensar conforme Agamben evidencia a fundação do Estado Moderno, a partir de uma

relação de bando, entre nomos e estado de exceção, nos remete a uma relação de abandono,

gerando ambiguidades. “O que foi posto em bando é remetido a própria separação e,

juntamente, entregue à mercê de quem o abandona, e ao mesmo tempo excluso incluso,

dispensado e, simultaneamente, capturado” (AGAMBEN, 2007, p.116).

Quando pensamos o Estado Moderno, fruto de uma relação de bando, e não de um

contrato, somos movidos de nossa zona de conforto, entretanto, para justificar, Agamben nos

demonstra esta relação de bando através do paradigma do campo de concentração.

Para Agamben, o campo de concentração é o paradigma por excelência do espaço

político na modernidade, um espaço sem distinção do que é público ou privado, sendo este

espaço indeterminado, inominado, a matriz oculta do espaço político.

No campo de concentração, a experiência da existência humana, tudo o que não é, é

experiência de vida, porque? Porque a experiência da existência em um campo de concentração

é suprimida face a experiência de sobrevivência, ocorrendo de fato a produção da morte. O

campo é o local da passagem do conatus (potência de vida) para o tanathos (impotência de

vida, pulsão de morte).

O campo de concentração é o espaço político da tanatopolítica, o espaço da impotência

política e potência biopolítica, lugar onde a vida nua atinge o máximo de indeterminação em

sua relação com a política e o direito.

79

O campo de concentração55 é o espaço onde a morte perde o seu sentido originário. Em

um campo de concentração historicamente demonstrado, o que ocorre é a fabricação de

cadáveres, a inversão dos valores de vida e de morte.

Em todo caso, a expressão ``fabricação de cadáveres`` implica que aqui

não se possa propriamente falar de morte, que não era morte aquelas

dos campos, mas algo infinitamente mais ultrajante que a morte. Em

Auschwitz não se morria: produziam-se cadáveres. Cadáveres sem

morte, não-homens cujo falecimento foi rebaixado a produção em série.

(AGAMBEN, 2007, p.78)

Em Auschwitz produziam-se cadáveres em série, “o campo é, de fato, o lugar em que

desaparece radicalmente toda distinção entre próprio e impróprio, entre possível e impossível”

(AGAMBEN, 2007, p.82), a violência é a regra interna para todos que ali estão incluídos, a

essência da morte está excluída para o homem, pois a existência que precede a essência, a vida

imanente, é tudo o que não pode existir em um campo de concentração.

A exaustão que é levada o homem na busca de sua sobrevivência no campo, não tem

nada de humano “a potência humana confina no inumano, o homem suporta também o não-

homem” (AGAMBEN, 2008, p.83), carregando consigo o caos do não-humano registrando

atrozmente o seu ser capaz de tudo, fruto de uma deliberação racional.

A posição do homem em um campo de concentração, como no caso de Auschwitz, é

ambígua, isso porque o homem “ de fato, ele se apresenta como o não-vivo, como o ser cuja

vida não é realmente vida; no outro, como aquele cuja morte não pode ser chamada de morte,

mas apenas fabricação de cadáveres” (AGAMBEN, 2008, p. 87), ou seja, a inscrição na vida

daqueles que estão ali no comando da SS (corpo alemão), uma zona morta, e na morte, aqueles

que se encontram na busca de sua sobrevivência (corpo hebreu), uma zona viva. “A morte é,

nesse ponto, um simples epifenômeno” (AGAMBEN, 2008, p.91).

O Estado da República de Weimar, na perspectiva da teoria nacional-socialista, tem na

palavra do Fuhrer “ a fonte imediata e perfeita da lei” (AGAMBEN, 2007, p.179), assim como

a palavra do Fuhrer não é uma situação de fato, mas norma, viva voz, o corpo biopolítico da

Alemanhã “em seu dúplice aspecto de corpo hebreu e corpo alemão, de vida indigna de ser

55 No Brasil, os deserdados sociais chegavam a Barbacena, de várias regiões brasileiras. Eles

abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos judeus levados durante a Segunda Guerra

Mundial, para os campos de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão trem de doido surgiu ali.

Criada pelo escritor Guimarães Rosa. Um campo de concentração em pleno século XX, no território

brasileiro, o Hospital Colônia de Barbacena, cerca de 60 mil mortos no maior hospício do Brasil, mais

de 1823 corpos do Colônia foram vendidos para faculdades de Medicina do país, entre os anos de 1969

e 1980 (ARBEX, 2013). Grifo nosso.

80

vivida e de vida plena, não é um inerte pressuposto biológico ao qual a norma remete, mas é ao

mesmo tempo norma e critério de sua aplicação, norma que decide o fato e que decide a sua

aplicação” (AGAMBEN, 2007, p.180).

O Estado Nazista é um exemplo paradoxal de uma guerra civil legal. Hitler (Fuhrer)

assim que o poder lhe foi entregue “ promulgou no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção

do Estado e do povo, que suspendia o art.48 da Constituição de Weimar, relativos as liberdades

individuais. O decreto nunca foi revogado, de modo que o Terceiro Reich, do ponto de vista

jurídico” (AGAMBEN, 2004, p. 13) permaneceu como norma durante doze anos, sendo

considerado um estado de exceção.

Normatização, execução e a produção do direito e sua aplicação, perdem seu sentido

originário, tornando-se indistinguíveis, o “ Fuhrer é verdadeiramente, segundo a definição

pitagórica do soberano, um nomos empsykhon, uma lei vivente” (Svenbro apud Agamben,

2007, p.180).

Segundo Agamben o Estado democrático e liberal (de direito, porém os direitos

individuais suspensos) mesmo permanecendo formalmente em vigor, as características

imanentes de distinção de seu poder, perdem o sentido de sua existência, no terceiro Reich, por

isso “ a dificuldade de julgar, segundo os normais critérios jurídicos, aqueles funcionários que,

como em Eichmann, não haviam feito mais do que executar como lei a palavra do Fuhrer”

(AGAMBEN, 2007, p.180).

A tese de Schmitt (1921) segundo Agamben é: “o princípio do Fuhrung, é um conceito

do imediato presente e da real presença, e por isso ele pode afirmar sem contradição que é um

conhecimento fundamental da geração alemã politicamente atual, que justamente o decidir”

(Schmitt apud Agamben, 2007, p.180) em relação se um fato ou um gênero de coisas seja ou

não apolítico é uma decisão especificamente política.

Para o filósofo, a política é literalmente, a política do impolítico. E, quem é o impolítico?

O impolítico é a vida destituída de sua condição política, mera vida nua.

Assim, o campo é o espaço desta constante incompatibilidade, indistinção entre fato e

direito, norma e aplicação, entre exceção e regra. “ A essência do campo consiste na

materialização do estado de exceção e a criação de um espaço em que a vida nua e a norma

entram em um limiar de indistinção” (AGAMBEN, 2007, p.181).

A vida nua não é uma hipótese de vida intocada pela política, mas, uma vida desprovida

de proteção jurídica e direitos fundamentais incluída em um espaço político artificial, este

espaço é analogicamente comparado aos campos de concentração da modernidade, no qual as

estruturas de poder e os donos do poder, excluem e incluem, tanto as formas de vida submetidas

81

ao seu poder, quanto aquelas que não se submetem a sua ordem, condicionando a todos os

humanos e inumanos, a vontade do soberano, que detêm o poder legítimo de decretar o estado

de exceção.

Entretanto, para finalizar o nosso último capítulo, e assim darmos continuidade as

nossas considerações devidas, perguntamos: quem é o soberano na modernidade? O soberano

para Agamben é a figura central e enigmática na modernidade é quem governa o espaço político

e quem exerce os atos da gestão governamental, é o político analogicamente equiparado ao

soberano.

No contexto contemporâneo, a melhor definição do termo do conceito do político “ é a

definição que só pode ser obtida pela verificação e identificação das categorias especificamente

políticas” (SCHMITT, 2009, p.27). Estas categorias políticas “ a qual podem ser relacionadas

as ações e os motivos políticos, é a diferenciação entre amigo e inimigo” (SCHMITT, 2009,

p.27), não exaurindo exaustivamente o seu conteúdo como definição. “Os conceitos de amigo

e inimigo devem ser tomados em seu sentido concreto e existencial” (SCHMITT, 2009, p.29).

Para Agamben, a definição schmittiana do político através desta oposição amigo-

inimigo, na contemporaneidade vem sendo retomado de maneira banalizada, incorrendo em

implicações lógicas desprovidas de uma análise rigorosa, “ Transformando progressivamente,

de acordo com as palavras de Julien Freund, uma “ banalidade mais alta”, que é aceita ou

rejeitada sem que a coerência de suas implicações lógicas tenha se comprometido com uma

análise rigorosa”56 (AGAMBEN, 2015 a, p.89).

56 transformándose de forma progresiva, según las palavras de Julien Freund, en uma “ banalidad

superior”, que es aceptada o rechazada sin que la coherencia de sus implicaciones lógicas haya sido

cometida a un análisis riguroso.

82

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo nossa investigação, lançamos em nossas observações finais, fruto do

percurso traçado neste trabalho, a posição de um panóptico frente a nossa pesquisa.

O panóptico “ vem imediatamente a cabeça, em reflexão ao que Foucault definiu como

uma máquina para dissociar a dupla ver – ser visto” (BOBBIO, 2015, p.45). “ No anel periférico

se é totalmente visto, sem jamais ver; na torre central vê-se tudo sem nunca ser visto”

(FOUCAULT, 1987).

Essa é nossa posição enquanto intérpretes, a posição da filosofia, a posição dos

observadores que vêem tudo, sem serem vistos, mas utilizando-se deste modelo arquitetônico,

nos colocando como constantes vigilantes da produção do conhecimento.

De modo análogo, seguimos a seara de um pensador, filósofo e jurista brasileiro,

Adeodato, que assim nos apresenta uma célebre frase57: “ três penadas de um legislador

transformam bibliotecas inteiras em lixo” (ADEODATO, 2009, XV).

É fato, todo conhecimento jurídico, produção do conhecimento, se restrito e preso

exclusivamente a uma produção dogmática, limitado a regras, tende a tornar-se obsoleta, a

desaparecer, ou mesmo morrer, no sentido de um conhecimento originário, isto é o que não

ocorre com a filosofia.

Então perguntamos, agora seguindo um nobre pensador é filósofo da política, Noberto

Bobbio, que nos acende com uma pergunta clássica: uma pergunta clássica da filosofia política:

quis custodiet custodes (quem vigia o vigilante, ou quem cuida do cuidador)? (BOBBIO, 2015,

p.47.)

Giorgio Agamben58, não é um pensador na moda e da moda, mas sobretudo um pensador

contemporâneo, por alguns apreciado, e por outros, radicalmente criticado.

Agamben, é um pensador perene, preocupado com a verdade, a verdade no sentido de

que esta “ não pode manifestar a si mesma se não manifestando o falso, o qual não é separado

e rechaçado em outro lugar; ao contrário, segundo o significado etimológico do verbo

patefacere, que equivale a abrir, dando lugar a não verdade” (AGAMBEN, 2013c, p.21.) do

conhecimento e seus reflexos em nossa contemporaneidade.

57 Essa frase foi proferida, Segundo Adeodato, por um procurador prussiano. Seu nome: Julian Hermann

von Kirchmann. Registrado na memória das idéias jurídicas desde 1848. 58 Sua tese de láurea em filosofia do direito foi voltada ao estudo do pensamento de Simone Weil,

filósofa francesa e judia não praticante. Agamben descobriu Simone Weil em 1963, seu pensamento era

pouco conhecido na Itália, inclusive por seus orientadores da tese.

83

Suas bases de investigação, remontam as clássicas fontes gregas, dando vida ao

conhecimento adormecido ou pseudoconhecimento, na era do reprodutivismo técnico, ou seja,

lançando luz as trevas, e trevas a luz de nossas conjunturas e conjeturas do presente.

Como procuramos demonstrar, ao longo da nossa investigação, o seu olhar cético é

voltado à história da filosofia. A preocupação de Agamben é demonstrar a construção do

conhecimento, voltando nossa reflexão a uma inflexão histórica do passado, compreendendo

nosso presente através de observações frente a realidade.

Ou seja, o importante em uma investigação, não é manter o lugar comum, antes,

desconstruí-lo. “É boa regra que uma investigação comece com pars destruens (parte

destrutiva) e se conclua com pars construens (parte construtiva) e, além disso, que as duas

partes sejam substancial e formalmente distintas” (AGAMBEN, 2017, p.09).

A pesquisa filosófica, “não só a pars destruens não pode ser separada da pars

construens, como ambas coincidem em todos os pontos, sem resíduos, com a primeira”

(AGAMBEN, 2017, p.09).

Para fazer este retorno ao conhecimento originário, a filosofia primeira, Agamben

declara, que este só é possível, através do método de investigação, seu método arqueológico,

um método que nos possibilita retornar a ontologia através da arqueologia.

O retorno ao passado para entendermos o presente através do método arqueológico,

possibilita a compreensão de elaboração de um conhecimento, que não ignora a teoria do

conhecimento59, mas desta se faz uso para a produção original de um pensamento que

possibilite demonstrar de fato a realidade presente.

As bases que Agamben encontra na busca de interpretar a realidade do momento

presente, estão na teologia, escatologia, bases que fundaram o pensamento moderno, nos

proporcionando assim, uma inflexão na história da filosofia.

A possibilidade de entendermos o nosso presente, esta é a conlcusão no qual chegamos

através de Agamben, está em fazermos uma incursão no conhecimento através da

epistemologia, frente a ontologia. A “epistemologia - do grego episteme 60-, designa na filosofia

59 Na filosofia denomina-se gnoseologia (ou gnosiologia), do grego gnose, conhecimento.

(ADEODATO, 2009). 60 Agamben segue a trilha foucaultiana, episteme é o conjunto de saberes não ditos que subsistem como

condição de possibilidade das práticas discursivas de uma determinada época e sociedade. A episteme é

um espaço de ordenação de saberes que condiciona as possibilidades de conhecimento de certo período

histórico. Denomina-se dispositivo de saber e eixos epistemológicos entorno dos quais se articulam um

conjunto maior de discursos e práticas de uma determinada época e lugar. (AGAMBEN, 2009, p.09).

84

de Platão, a esfera mais alta do conhecimento” (ADEODATO, 2009, p.02), a epistemologia se

diz um conhecimento, por pretender ser verdadeiro, racionalizado, sistematizável e

transmissível, constituindo na modernidade, o conhecimento científico.

A filosofia nos permite refletir sobre o conhecimento, assim, a filosofia frente a

epistemologia, esta como meio, não rompe com a construção do conhecimento filosófico, mas,

nos proporciona um movimento na filosofia com base no conhecimento científico. O diálogo

paralelo entre o paradigma ontológico, o fundamento da arqueologia fornecido por Foucault e

o resgate da analogia em Melandri, possibilitaram a Agamben, a leitura da arché.

Como bem demonstramos, interpretando Agamben, a problemática da divisão

conceitual de vida na construção do conhecimento, sobrepõe problemas na modernidade que

não apenas refletem na política e no direito, mas sobretudo na ética “ dentre defensores e

detratores, o problema da ética, surge após a problematização do conhecimento e da relação do

ser humano com o mundo na filosofia” (ADEODATO, 2009, p.02).

O fato é, através das fissuras ao longo do conhecimento filosófico, o ser-em-si é quem

interessa para as questões éticas, “ o homem, não é nem há de ser ou realizar nenhuma vocação

histórica ou espiritual, nenhum destino biológico” (AGAMBEN, 2013, p.45).

Para Agamben, uma ética só é possível, contemplando o homem na sua totalidade de

potência e impotência, não estando o homem condicionado a ser esta ou aquela substância, ter

este ou aquele destino, agindo assim, não de forma condicionada, a experiência ética não

existiria, nos fadando, mas, apenas se tornaria tarefa a realizar-se.

Um exemplo que podemos elencar, na proporção de pensarmos uma ética a realizar-se

é fazermos uma analogia ao caso de Eichmann “sua eficiência funcional determinou a ascensão

de Eichmann para a logística do transporte humano dos judeus para os campos de extermínio”

(RUIZ, 2018, p.196). Não que Eichmann tivesse a intencionalidade de exterminar o povo judeu,

mas por ser um excelente funcionário, habituado no cumprimento de seu dever, “Eichmann,

como bom funcionário, não questiona os objetivos éticos de seu trabalho, mas os cumpre com

eficiência as metas propostas” (RUIZ, 2018, p. 196).

Ao longo de nossa pesquisa, constatamos as mais variadas influências de pensadores da

modernidade influenciando o pensamento contemporâneo de Giorgio Agamben, mas estes

foram fundamentais na compreensão do objeto investigado; Foucault, voltado na investigação

da biopolítica, Benjamin, nossa aproximação no entendimento de uma nova visão da história,

85

com sua célebre frase, o “estado de exceção tornou-se a regra”, Heiddeger, e sua aproximação

em relação ao ser e este ser no mundo, Schmitt na definição do soberano, Arendt seus

questionamentos frente a política na modernidade, e sua investigação do campo de

concentração, Michel Foucault, nas trilhas abertas sobre as relações de poder e seus reflexos no

direito e na política, a biopolítica, e o método arque-genealógico, implementado por Foucault.

A relação do ser no mundo, referência heiddeggeriana no pensamento de Agamben é

determinante para a compreensão da tese agambeniana da politização da vida nua, que por

excelência encontra-se fundada essencialmente em uma visão de tradição metafisica da sua

estrutura originária, este é o acontecimento predominante nas fissuras do entendimento

humano, indicada por Agamben, tornando-se perceptível para nossa observação.

Outra perspectiva a guiza de compreensão no limiar de nossa investigação, o que nos

causou espanto, é a visão que Agamben propõem em relação a fundação do Estado Moderno,

não pensado sua fundação a partir da perspectiva dos contratualistas, mas, da relação de bando,

esta é a melhor forma de podermos compreender o Estado moderno, consequentemente a

inoperosidade do Estado democrático de direito.

Chegamos à conclusão final em nossa investigação de que a preocupação central de

Agamben é em relação a política como esta se encontra na modernidade invertida, seu sentido

originário corrompido, submissa à ciência, à religião, à economia e ao direito. “ A arqueologia

da política que estava em questão no projeto Homo sacer, não se propunha a criticar esse ou

aquele conceito, essa ou aquela instituição da política ocidental; tratava-se, sim, de rediscutir o

lugar e a própria estrutura originária da política” (AGAMBEN, 2017, p.295).

A regra da política no Ocidente, conforme observamos através de Agamben é a

politização da vida na modernidade. Esta politização não apenas atinge aos súditos, mas

sobretudo ao soberano. O soberano tem sua vida condenada a uma vida nua, esta é a finalidade

e consequência da política na modernidade.

A vida nua, é uma forma de vida, uma vida dessubjetivada de sentido, que antes de ser

capturada, possuía uma forma de vida, mas capturada, torna-se excluída de sua forma, dentre

as variadas formas de vida, que compõem o espaço político da contemporaneidade “ primeiro

referente de sua investigação” (AGAMBEN, 2017, p.295).

O soberano é uma figura pública, “ a prestação fundamental do poder soberano é a

produção da vida nua como elemento político originário” (AGAMBEN, 2017, p.295), não

86

sendo possível pensarmos outra dimensão da vida e da política, se não desativarmos o

dispositivo da exceção que produz a vida nua.

O soberano, por ser uma figura pública está exposto ao pathos (paixões) da sociedade.

Para Agamben a sociedade não é uma sociedade artificial, mas uma sociedade orgânica em

constante evolução, e nela estão incluídos os súditos que partilham o mesmo ideal do soberano

e também os que dele divergem. A figura do soberano, é o representante político no sentido

hobbesiano, aquele que exerce a representação política. O político é o soberano, na

modernidade é bem definido por Schmitt, na relação amigo-inimigo.

A justiça na sociedade moderna, é a justiça da lei, a aplicação da lei. A sociedade

moderna, vive sobre o governo das leis, e é aqui o espaço da anomia que vigora na modernidade.

O estado de exceção é decretado a partir de uma vontade soberana, entretanto, não existe

uma lei, mas esta decisão legitima-se com força de lei. Então, a pergunta que não quer calar:

vivemos sobre o governo dos homens, de um poder destituído, ou governo das leis, de um poder

constituinte?

A soberania é fundada no hábito da obediência? Ou, na permanente vontade de um

soberano autoritário? As leis em tese, deveriam obrigar governantes e governados, mas, de fato

quem está submetido as arbitrariedades do poder, são os governados, os súditos. O soberano

não está isento da lei, operando em um duplo Estado, o estado em que decreta sua vontade face

a um ato discricionário, favorecendo um poder oculto (arcana imperii), revelado na exceção

soberana, e caso, o soberano, não cumpra a finalidade do arcana imperii61, está submetido as

leis, ao estado democrático de direito.

A lei, a exceção, não é apenas aplicada aos súditos, mas também ao soberano. Quando

isso ocorre, o soberano se depara com a sua morte política, e por ser vida nua, o soberano é

destituído de toda forma de vida. A sua morte política é a tanatopolítica.

Para os súditos que com ele compartilham o mesmo ideal, este permanece como

soberano no imaginário social. O soberano na política moderna, não é o ser em si, mas o ente

que não perdeu a sua onisciência, onipresença e onipotência.

61 Poder invisível, segundo Bobbio.

87

Entretanto, para os súditos que divergem do mesmo ideal, o soberano é eliminado,

destituído de sua forma de vida, colapsado a uma morte política, mera vida nua. Este é o retrato

da política contemporânea, a condição do cidadão, no espaço político contemporâneo.

A vida nua é o paradigma dos atos do governo, um objeto de produção e reprodução do

poder soberano sobre a vida humana, a vida capturada pelos agentes do governo, que exercem

a função do governo.

O espaço político da contemporaneidade, é um espaço que analogicamente é equiparado

aos campos de concentração da Alemanhã Nazista, ou mesmo, podemos também comparar com

o hospital Colônia em Barbacena.

O espaço político da contemporaneidade, é o lugar que se encontra incluída a máquina

governamental que governa o humano, e a máquina antropológica que produz o humano,

separado da vida orgânica, da vida dos corpos, tornando-se esta vida, biopolitica, objeto de

cálculo do poder e estratégia política capturada pelo direito e pela política, herança da tradição

judaico-cristã, separação dualística influência até nossos dias.

É o espaço por excelência, o terreno da realidade contemporânea, onde amigo e inimigo

interagem em uma constante guerra civil legal conforme Agamben. A guerra civil legal é a

regra da política contemporânea, dos governos dito democráticos, herança da democracia

revolucionária e não do absolutismo.

Segundo a célebre frase: “L`État c`est moi” 62(O Estado sou eu), O Estado, governado,

é de quem exerce o poder, de quem governa os homens, o representante político que representa

uma representação ideológica.

Conforme demonstramos em nossa pesquisa, a exceção é o paradigma fundante do

Estado moderno, tanto na versão democrática, quanto na versão totalitária. A exceção é

decretada, através de uma lei, que não é o direito, com força de lei, através da exceção soberana.

A exceção soberana, é um ato de vontade do poder soberano, que exerce a sua soberania,

não apenas sobre as coisas, as instituições, etc.…, mas, sobretudo sobre a vida humana, a vida

nua, considerada na modernidade biopolítica, a vida da política, que captura a vida nua, no

62 Luís XIV de Bourbon (1638-1715, Versalhes): conhecido como “ Rei Sol”, foi o maior monarca

absolutista da França de 1643 a 1715. A ele é atribuído a frase “L`Etat c´est moi” (O Estado sou eu),

apesar de grande parte dos historiadores achar que isso é apenas um mito. Construiu o luxuoso palácio

de Versalhes em Versalhes, perto de Paris, onde faleceu. (Nota do IHU On-Line).

88

limiar de indecisão entre o direito e a política. Esse limiar de indecisão, conforme nossa

apreensão, não é a suspensão, ou eliminação de um Estado democrático de direito. No decorrer

do século XX, podemos presenciar uma guerra civil legal.

Agamben, nos detalha esse acontecimento nas primeiras páginas do Estado de Exceção,

a explosão do nazismo na Alemanhã. Hitler logo que acendeu ao poder, por meio de eleições

legítimas, promulgou, no dia 28 de fevereiro, o Decreto para a proteção do povo e do Estado,

que suspendia os artigos da Constituição de Weimar relativos às liberdades individuais, “ o

decreto nunca foi revogado, de modo que todo o Terceiro Reich, pode ser considerado, do ponto

de vista jurídico, como um estado de exceção, que durou doze anos” (AGAMBEN, 2004, p.13).

O Estado de direito permaneceu, mas a democracia, desapareceu junto com os direitos

individuais suprimidos.

A vida nua capturada, é capturada pelo estado de exceção, que é um dispositivo

originário, uma técnica de governo e fundamento da ordem jurídica. O estado de exceção é um

dispositivo originário, originário porque captura a vida do soberano e a vida dos seus súditos, e

quando estes são capturados, tornam-se mera vida nua, uma vida dessubjetivada no espaço

político.

Uma vida em estado de ilegalidade, banida de qualquer direito, capturada pelo

dispositivo originário do estado de exceção, e quando se encontra na exceção, a vida é inserida

num espaço anômico, onde o que está em jogo, é uma força de lei, sem lei.

Ao direito atribui-se uma anomia, um espaço vazio, ou seja, existe uma norma, a

normatividade de um estado de direito, porém, esta não tem força, sua força está suspensa,

vigorando assim, um ato da vontade soberana, que não é lei, mas, adquire força de lei.

A partir do momento que no espaço político prevalece a vontade de um soberano,

representante ideológico de uma classe, este espaço deixa de ser democrático, e sim totalitário.

É neste momento em que poder e violência interagem, de forma naturalizada. A violência é o

aparato da ordem, e o poder, a autorictas63, a própria ordem, isto é violência que põe o direito.

Este é o espaço, do totalitarismo moderno, instituído por um estado de exceção, a guerra

civil legal, caminhando lentamente, corroendo a democracia, não apenas legitimando através

63 Autoridade, no sentido de que se trata, quer dizer: imposição da vontade de outrem à nossa vontade;

por outro lado, autoridade pressupõe subordinação. (MARX, ENGELS, 1976, p.119)

89

do direito, a eliminação física dos adversários político, mas também categorias inteiras de

cidadãos, que por qualquer razão, não são integráveis ao sistema político.

Somos herdeiros dos resquícios desta guerra, uma tradição política que permanece

submissa a uma violência infundada, não correspondente ao Estado democrático de direito, que

institui um poder, dotado de uma intencionalidade da organização da vida. Quando este poder

não corresponde a esta finalidade, ocorre um risco, uma ameaça a própria organização do

Estado. A máquina jurídico-política entra em ação transformando-se em uma máquina letal.

As relações de poder são necessárias, mas não um poder que confronta64, ameaça, e

elimina o outro “o poder é inerente aos grupos sociais e a todas as formas de governo. Não é

possível a existência de um grupo ou de um governo sem a relação de poder. O poder (potestas)

é a essência do governo, a violência não” (RUIZ, 2014, p.30).

A sociedade não é artificial como diz Hobbes “ tentativa de governar a vida humana

como recurso biológico, naturalizando a violência” (RUIZ, 2014, p.30), a sociedade é orgânica,

o homem é biológico, psicológico e social.

A produção do conhecimento na modernidade se contrapõe ao conhecimento produzido

na Contemporaneidade. Nossa sociedade não é a mesma sociedade da modernidade. Vivemos

um outro tempo, e a produção do conhecimento faz parte de um tempo escatológico, porque

perpetua na infinitude através do conhecimento, que ao longo do tempo vai adquirindo novas

formas, conforme a evolução da sociedade.

A função específica da biopolítica, herança da modernidade, não é unificar a vida

orgânica dos seres humanos aos corpos, mas manter permanentemente a sua separação em

variadas formas de vida. “O ponto nevrálgico da biopolítica a ser desconstruído criticamente”

(RUIZ, 2014, p. 30). Desde o homo sacer banido pelo direito romano, os campos de

concentração nazistas e, mais recentemente, o presídio norte-americano de Guantánamo65, em

Cuba.

64 Confronto é um comportamento humano negativo, dotado de uma intencionalidade destrutiva de uma

pessoa, uma idéia, ele é avassalador. Entretanto, o conflito diverge deste comportamento. Faz parte da

vida humana. No conflito há mudanças, no confronto há perda. O conflito busca convencer, o confronto,

busca vencer. 65 Em 11 de setembro de 2001, dois aviões puseram a roda da história, que estava parada, em movimento

novamente. O ataque ao World Trade Center despertou os Estados Unidos do triunfalismo quase

ingênuo para a fúria, que transformou Guantánamo em um campo de prisioneiros em poucos dias. Os

pioneiros prisioneiros chegaram em 11 de janeiro. Seriam tratados com fúria. Esse campo em particular

duraria apenas quatro meses, mas a transferência para acomodações menos horrendas não mudou o

90

Observamos que para Agamben, não é o Estado que desafia a democracia, mas a forma

de vida da política, uma biopolítica que se apresenta como o fim da democracia. O dispositivo

da exceção que de provisório e excepcional, resulta em uma técnica de governo, centrada no

interior dos governos democráticos, se mantém através da guerra civil legal, até que se

mantenha a ordem almejada pelo poder invisível.

Sem democracia, não há Estado, não há direito, não há sujeito de direito. O que há? Em

nossas observações ao longo do desenvolvimento de nossa pesquisa podemos constatar através

da tese de Agamben sobre o estado de exceção, que a ameaça ao Estado Democrático de Direito

é a forma de vida em que a política se apresenta na Contemporaneidade de nossa sociedade. A

biopolítica tende a eliminar o Estado democrático de direito, esvaziando-o de seu sentido

originário, de proteção e garantia dos direitos individuais e fundamentais.

Agamben não é partidário de nenhum ismo, capitalismo, socialismo, comunismo,

liberalismo, nazismo. Sua preocupação é a vida, procurando nos alertar sobre toda e qualquer

forma de poder que procure eliminar a vida. Devemos pensar a vida na sua integralidade, tanto

dos seres viventes, animais e homens, quanto das substâncias, esta é nossa responsabilidade

enquanto sujeitos cognoscentes.

Entretanto, findando nossa pesquisa, chegamos à conclusão de que o Estado

Democrático de Direito permanece nas sociedades democráticas contemporâneas paralelo ao

Estado de exceção, efetivando-se como um Estado de exceção adormecido, oculto no interior

das sociedades democráticas.

Parindo assim o sentido do estado de exceção no pensamento de Giorgio Agamben, no

qual soberano e súditos, estão submetidos a vontade soberana do poder, assim o estado de

exceção em que vivemos é a regra contemporânea. No estado de exceção o direito é fagocitado,

prevalecendo uma lei sem lei, mas, com força de lei.

tratamento. No campo de detenção, a administração Bush proclamou não se aplicarem as leis. “

Guantánamo não está claramente sob a soberania de nenhuma nação, nem aparentemente sob o domínio

da lei nacional ou internacional. Não se aplicou a Convenção de Genebra, que proíbe o tratamento

espúrio a combatentes inimigos. Porque terroristas, não tem um Estado para os patrocinar. Quem entrava

em Guantánamo era tratado como responsável direto pelo ataque do 11 de setembro. Espancamento,

waterboarding, humilhações sexuais diversas, forçados a imitarem cachorros ou obrigados a presenciar

a profanação do Corão, desumanização maior não na história do Ocidente recente. (MARTON, 2015,

p.41)

91

Se não soubermos ler os acontecimentos e textos do passado em diferentes estratos, isto

é, tirá-los de seu contexto originário e reuni-los progressivamente, não avançaremos na

interpretação da confusa realidade histórica (KOSELLECK, 2006, 248),

O estado de exceção é um centro vazio, no interior das sociedades democráticas, e não

podemos afirmar que este centro vazio, não seja eficaz. Pelo contrário, é um estado que tende

a funcionar desde a Primeira Guerra Mundial, por meio do fascismo e do nacional-socialismo.

“O estado de exceção, hoje, atingiu exatamente o seu máximo desdobramento planetário”

(AGAMBEN, 2004, p.131). Ocorrendo, de fato, no interior do Estado de direito, a suspensão

da norma justificada por uma violência governamental, ignorando no âmbito externo o direito

internacional, produzindo internamente um estado de exceção permanente, usufruindo da

aplicação do próprio direito. “ Não se trata, naturalmente, de remeter o estado de exceção a seus

limites temporal e espacialmente definidos para reafirmar o primado de uma norma e de direitos

que, em última instância, tem nele o próprio fundamento” (AGAMBEN, 2004, p. 131).

Retornar a um estado de exceção efetivo em um estado de direito, não é possível, mas

hoje, o que está em jogo nas democracias contemporâneas, são os próprios conceitos de “

estado” e “direito” (AGAMBEN, 2008, p.131). Entre violência e direito, entre vida e norma, há

um contra movimento que opera no sentido inverso da vida e do direito, instituindo em nossas

culturas forças antagônicas, sendo o estado de exceção o ponto de maior tensão destas forças,

coincidindo com a regra na indiscernível relação com a condição humana.

92

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