condiÇÃo humana · condição humana consideração s obre a evolução da humanidade, por...

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EMÓBIA e SOCIEDADE Norbert Elias nasceu: na 5HIII"™"™ tendo feito estudos de medicina, psK em diversas universidades. IniciouLos. seus trabalhos de sociologia com Karl Mannheim, tendo elaborado as suas obras de base A Sociedade de Corte c O Processo de Civilização ainda nos anos 30". Refugiado em Inglaterra devido ao nazismo, se manteve até aos anos 60 a leceíonar na Universidade de Leicester. O reconhecimento internacional da sua obra dá-se apenas a partir dos anos 70, facto que o levou a iniciar um novo ciclo de publicações que o transformaram numa das grandes figuras de referência do pensamento contemporâneo ainda antes da sua morte em 1990. A Condição Humana, um dos textos mais significativos dessa fase, apresenta uma reflexão profunda sobre o problema do controle da violência nas relações internacionais. \-*f ÍO l CD o : OO Coleccão coordenada por Francisco Beitíencouri e Diogo Ramada Curto r- \ ! ,—< w™ l 4,2 c . NORBERT ELIAS EMÍRU e S.BCIEOABE •H DIFEL -^^ Difiifcàn Frtnf~,*\ l Ednonal. Lda

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E M Ó B I A e S O C I E D A D E

Norbert Elias nasceu: na 5HIII"™"™ tendo feito

estudos de medicina, psK em diversasuniversidades. IniciouLos. seus trabalhos de sociologia com

Karl Mannheim, tendo elaborado as suas obras de base— A Sociedade de Corte c O Processo de Civilização •—

ainda nos anos 30". Refugiado em Inglaterra devido ao nazismo,aí se manteve até aos anos 60 a leceíonar na Universidade

de Leicester. O reconhecimento internacional da suaobra dá-se apenas a partir dos anos 70, facto que o levou ainiciar um novo ciclo de publicações que o transformaram

numa das grandes figuras de referência do pensamentocontemporâneo ainda antes da sua morte em 1990.

A Condição Humana, um dos textos mais significativos dessafase, apresenta uma reflexão profunda sobre o problema

do controle da violência nas relações internacionais.

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Coleccão coordenada por Francisco Beitíencouri e Diogo Ramada Curto

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NORBERT ELIAS

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A colecção MEMÓRIA ESOCIEDADE dirige-se a umpúblico diversificado, compostopor professores dos diversosgraus de ensino, estudantes dosanos terminais do ensino secun-dário e do ensino universítáric,quadros e empregados de servi-ços, novas profissões urbanas,profissões liberais, agentesculturais de diferentes sectores,etc. Cobrirá um campo muitovasto, procurando apresentar es-tudos de teconhecida qualidadesobre problemas pertinentes dopresente e do passado.Os autores previstos para a pri-meira fase da colecção consti-tuem uma garantia da diversida-de de temas e de pontos de vista.As suas obras têm vindo a insta-lar rupturas e a pôr em causa asdivisões tradicionais do saber.Ao mesmo tempo, está em pre-paração um conjunto de obrassobre a realidade portuguesaque, elaboradas no silêncio dogabinete ou no colorido trabalhode campo, interessam vastoscírculos de opinião. Contra umafalsa idéia que faz da obra dedifusão sinônimo de simplifica-ção forçada, serão dados a conhe-cer os resultados de cuidadasinvestigações, porque só estasestimulam reflexões aprofunda-das.Finalmente, haverá que revalori-zar textos clássicos, tanto no seuestatuto, como na força da suaactualidade. Critério que impli-ca recuperação do olvidado ourecolocação do demasiadoconhecido, na linha da concilia-ção das obras pertencenres aopatrimônio internacional com asobras portuguesas.

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NORBERT ELIAS

CONDIÇÃO HUMANAConsiderações sobre a evolução da humanidade,

por ocasião do quadragésimo aniversário do fim de uma guerra(8 de Maio de 198 5)

Tradução deMANUEL LOUREIRO

Revisão literária e técnica deRAFAEL GOMES FILIPE

Memória e Sociedade

DIFEL

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Elias* Norbert

Condição humana consideração sobre a evolução da humanidade,por ocasião do q.uadragesimo a

3I6/E42c

v _ (153931/99)Titulo original: Humana Conditio© 1985, NORBERT ELIASTodos os direitos para publicação desta obra em língua portuguesa reservados por:

DIFELDilusáo EBiloiial, Lda

Denominação Social — DIFEL 82 — Difusão Editorial, Lda.Sede Social — Rua D. Esteíania, 46-B

1000 LISBOATelefs. 53 76 77 - 54 58 39 - 352 23 10Telex: 64 030 DIFEL PTelefax:(01)545886

Capital Social - 60 000 000$00 (sessenta milhões de escudos)Contribuinte n." - 501 378 537Matrícula n.° 3007 - Conservatória do Registo Comercial de Lisboa

Todos os direitos de comercialização no mercado brasileiro reservados a:

EDITORA BERTRAND BRASIL, S.A.Av. Rio Branco, 99-20°20040 - Rio de Janeiro - RJTel.: (021) 263 20 82 Telex (21) 33799 Fax(021)263 61 12

8ISU0TBCA

Memória e SociedadeColecção coordenada por Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto

Capa: Emílio Távora VilarSeteccão de cores: Meiotam, Lãa.Revisão: Ayala MonteiroComposição: Textype — Artes Gráficas, Lda.Impressão e acabamento: Tipografia Guerra, Viseu, 1991Depósito Legal n.D 43958/91

ISBN 972-29-0201-6

PgoibidaàxeprcidHCão total ou parcial sem a prévia autorização do Editor

Para Micbael Scbrõter,

cuja amizade tornou possível

esta publicação

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NOTA DE APRESENTAÇÃO

Norbert Elias nasceu em 1897 na Alemanha, tendo feito estudos de medi-cina, de psiquiatria e de filosofia em diversas universidades. Seguiu os cursosde Honigswald, Rickert, Husserl ejaspers, tendo defendido a sua tese de dou-toramento sobre Idéia e Indivíduo. Uma pesquisa crítica sobre o conceitode História. A ascensão do nazismo obrigou-o a abandonar a Alemanha noinício dos anos 30, não tendo sequer defendido a sua tese de «habilitation»sobre A Sociedade de Corte que lhe teria dado acesso ao posto de assistente dacátedra de Karl Mannheim na Universidade de Frankfurt. Depois de umabreve estada em França estabeleceu-se definitivamente em Inglaterra. Aí encon-trou trabalho como psicoterapeuta de grupo, profissão que exerceu durantevários anos até ser convidado a leccionar sociologia na Universidade deLeicester.

O reconhecimento internacional da obra de Norbert Elias é tardio.Durante os anos 30 trabalhou, com o apoio de Mannheim, numa vasta obrasobre O Processo de Civilização, publicada em dois volumes por um pequenoeditor suíço em 1939, tendo sido muito limitada a sua difusão. Só em 1969,sete anos depois da sua jubilação de Leicester, foi feita uma reedição alemãdesta obra, que permitiu a sua «descoberta» pela comunidade científica emesmo pelo grande público: seguiram-se traduções em França (1973-75), emInglaterra (1978) e em Itália (1982-83). Também em 1969 foi publicado otexto inédito sobre A Sociedade de Corte, que passou a constituir com os doisvolumes de O Processo de Civilização um tríptico de referência obrigatóriano quadro das ciências sociais. Contudo, a actividade de Norbert Elias nãoficou por aqui. Estabelecido em Amesterdão, onde criou uma espécie de acade-mia platônica com um conjunto de discípulos, continuou a proferir conferências

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em universidades, nomeadamente em Bielefelã. Paralelamente, iniciou umlongo ciclo de publicações até à sua morte em 1990 que o transformou num doscasos de longevidade criativa mais significativos deste século: O que é a socio-logia (1970), A solidão dos idosos (1982), Envolvimento e distancia-ção (1983), Ensaio sobre o tempo (1984), A Condição Humana(1985) e A Busca da Excítação (com Eric Dunning, 1986).

Este breve excursus biobibliográfico permite situar melhor o sentido deuma obra como A Condição Humana; trata-se de uma espécie de testamentoespiritual de uma das grandes figuras do nosso século, formada no rico ambi-ente intelectual da Alemanha de Weimar, onde o contacto com as primeirasabordagens fenomenologistas da teoria do conhecimento caminha a par dareflexão sobre a obra de Freud ou da análise crítica dos legados de AugusteComte e de Max Weber. A sua tripla formação — filosófica, psiquiátrica esociológica — está inscrita, desde logo, na sua obra sobre O Processo deCivilização (traduzido pela Dom Quixote), onde coloca no centro da evoluçãohumana a passagem de mecanismos de coacção externa para mecanismos deautocontrolo. Já então procura identificar as raízes sociais do domínio cres-cente dos sentimentos e das emoções no processo de curialização dos guerreirosmedievais. Este método inovador de abordagem sociogenética já tinha sidoensaiado na Sociedade de Corre (traduzido pela Estampa), onde Elias mos-tra como as refaçoes de interdependência forjadas pelos círculos de corte impli-cam a criação de novos modelos de comportamento baseados no domínio daspulsões, na dissimulação, no cálculo estratégico e na vigilância mútua dosactores envolvidos.

O Ensaio sobre o Tempo assinala a aplicação deste método a um pro-blema mais geral: a origem das concepções do tempo, materializadas na elabo-ração de calendários e na definição de períodos cíclicos modelados pelo movi-mento aparente ao sol e da lua. De novo deparamos com uma valorização dasfunções reguladoras da actividade humana, representadas aqui pela interiori-zação do tempo cíclico — o homem pode dominar o ciclo das actividades agríco-las ou organizar o ciclo das actividades religiosas, geralmente ligadas às pri-meiras. Mas se Elias sublinha, por um lado, a necessidade de previsão queimplica o trabalho da terra, por outro, alerta para o significado social da cri-ação e da gestão deste poderoso sistema regulador, protagonizado pelo grupo dossacerdotes, como função suplementar de poder.

O caracter inovador do pensamento de Norbert Elias reside, em grandemedida, na análise dos sistemas de conhecimento e dos modelos de comporta-mento enquanto quadros de experiência socialmente produzidos. No seu percurso

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encontramos a revalorização crítica da obra de Auguste Comte, explicitada nolivro O que é a sociologia (traduzido pelas Edições 70) e incorporado nassuas abordagens de longuíssima duração, como na célebre conferência realizadaa 26 de Novembro de 1985 no Collège de France a convite de Pierre Bourdieu,onde falou sobre «Continuidades e descontinuidades da transmissão do saber»da Babilônia aos nossos dias. Mas esta perspectiva, que fundamenta uma crí-tica cerrada, tanto às visões compartimentadas da historiografia tradicionalcomo à transferencia selvagem do relativismo cultural antropológico para oestudo do passado, é cruzada pela assimilação do legado de Max Weber, como odemonstra a análise dos agentes interessados nos processos de conhecimento ou daorigem social das formas de comportamento.

A importância da obra de Norbert Elias na renovação das ciências sociaisé atestada pela influência exercida no trabalho de alguns dos autores mais sig-nificativos da actualidade, como Pierre Bourdieu, Roger Chartier ou VitorinoMagalhães Godinho. A sua longevidade criativa, já atrás referida, permitiudesenvolver um pensamento original e produtivo. E por isso que considerámosA Condição Humana como um texto duplamente significativo, por um ladodo pensamento de Elias, por outro, de uma conjuntura específica, o final dopós-guerra. E no contexto da celebração do 40." aniversário do termo daSegunda Guerra Mundial que devem ser compreendidas as numerosas referen-cias aos dois blocos e à ameaça de uma catástrofe nuclear provocada pela suarivalidade — traços anacrônicos que mostram à saciedade como a análise pros-pectiva trabalha sempre e apenas com possibilidades. Mas a reflexão profundasobre o recurso constante à violência nas relações internacionais ganha umanova actualidade no quadro da fragmentação do Estado soviético, da emergên-cia de conflitos nacionais no leste europeu e da ameaça de guerras regionais.Com efeito, Norbert Elias retoma neste texto um dos temas centrais da suaobra, a violência e os meios de a controlar. As suas considerações sobre a guerracomo a expressão mais brutal das relações de violência inserem-se na linhaanterior de raciocínio: incorporada até aos nossos dias na «condição humana»,a guerra constitui o último reduto de relações entre povos marcadas pela imposi-ção bruta da força. Se a evolução da humanidade é caracterizada, como pensaNorbert Elias, pelo domínio crescente das pulsões, trata-se agora de estender osprocessos de autocontrolo ao relacionamento entre os povos, introduzindo de umamaneira sistemática mecanismos de regulação pacífica dos conflitos em lugar dadestruição massiva.

Memória e Sociedade - Os coordenadores

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Por vezes é útil, para compreender melhor as questões da actuali-dade, afastarmo-nos delas em pensamento para depois, lentamente, aelas regressarmos. Compreendemo-las, então, melhor. Pois quem seembrenha apenas nas questões do momento, quem nunca olha paraalém delas, é praticamente cego.

Este é um dia em que celebramos a paz, a paz depois do fim deuma guerra terrível. Este dia é também, propriamente, o dia do nasci-mento da nova República Federal da Alemanha, cujo aniversário,assim, simultaneamente, festejamos. Celebramos, portanto, um períodode quarenta anos de paz — nós, povos da Europa. Outros povos da Terrasão menos felizes — onde não cessam as guerras e as revoluções, as vio-lências dos homens entre Estados ou dentro deles. Podemos conside-rar-nos felizes por vivermos numa região da Terra em que durante qua-renta anos não houve uma única guerra. Mas que espécie de mundo éeste em que nos podemos congratular por durante quarenta anos,menos de meio século, não termos sido atingidos directamente pela

* Este pequeno livro nasceu da elaboração duma conferência sobre o mesmo temaque proferi, a convite da Universidade de Bielefeld, em 8 de Maio de 1985. Umregisto gravado da conferência propriamente dita será publicado no n.° 2 dos BielefelderUniversitátsgespráche.

A Rudolfo Knijff devo um particular agradecimento pelo seu auxílio na prepara-ção do trabalho. Também Gottrief Hermelink me prestou uma grande ajuda, pelo quelhe estou muito agradecido.

O volume aparecerá no âmbito dum projecto editorial (dirigido por HermannKorte, Rhut-Universitat, Bochum) patrocinado pela Fundação Fritz Thyssen, à qualdirijo, igualmente, os meus agradecimentos.

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ameaça e pela fúria do homicídio recíproco a que chamamos guerra, eonde, além disso, temos permanentemente de contar com o deflagrarde um próximo conflito, ainda mais terrível que os anteriores? Queespécie de homens são esces que não cessam de se ameaçar com aguerra, o assassínio e o extermínio?

Humana conditio, o destino do homem. Escolhi este título comoponto de referência para o que me proponho dizer, entre outras razões,porque os conflitos violentos entre homens a que chamamos guerras,até onde os podemos observar retrospectivamente, fazem parte do des-tino, das condições de vida dos homens. São sofrimento criado pelohomem, horror criado pelo homem. E, contudo, até hoje, as guerrastêm ido e vindo como as inundações e as tempestades, e sem que ohomem as possa controlar. Sejam quais forem as particularidades quedistinguem a guerra de Hitler de todas as outras, não faremos justiçaao problema humano de que aqui se trata se o nosso olhar se detiver,fascinado, nesta última guerra européia ou na possível próxima guerramundial, se não perguntarmos: porquê, em geral, a guerra?

O homem elevou o assassínio recíproco dos povos a uma institui-ção permanente. As guerras pertencem a uma sólida tradição da huma-nidade. Estão arraigadas nas suas instituições sociais, assim como nohabitus social, na imagem colectiva dos homens, mesmo dos que maisamam a paz. Masf agora, chegámos ao fim do caminho. Vivemos numaépoca de evolução da humanidade em que uma próxima guerra trariaconsigo a destruição de uma parte significativa dessa humanidade,quando não mesmo de coda a Terra habkável, incluindo os própriosbeligerantes. Muitos homens sabem-no e, provavelmente, também osabem alguns membros dos governos que preparam a próxima guerra.No entanto, a pressão das instituições sociais e do babitus social, quecompelem à guerra, é tão grande e, ao que parece, tão inevitável, que omedo duma próxima guerra, ainda mais horrível, começa novamente aatormentar-nos, a nós que recordamos com lutuosa tristeza a últimaguerra, ao mesmo tempo que festejamos, com alívio, um escasso pe-ríodo de quarenta anos de paz.

Curiosamente, se pensarem nisto a longo prazo e numa perspectivaampla - os homens aprenderam, em muitos aspectos, a domar as forçasselvagens da natureza. Os espíritos e os deuses imaginários com que amente humana povoava, outrora, a Terra indomada, com as suas flores-tas sombrias, as suas montanhas solitárias e os seus mares perigosos,regressaram aos sonhos dos homens, donde tinham saído.

O desenvolvimento das ciências naturais — o que não deveriaesquecer-se em especial nas universidades — pôs nas mãos dos homens,em relação a vastos domínios do acontecer natural, um saber sobre osfenômenos naturais relativamente objectívo e próximo da realidade.Estas ciências trouxeram à luz do dia, como dantes se dizia, a «ver-dade» acerca da natureza, acabando tanto com o temor-pânico face ànatureza demoníaca como com a representação idealizada de uma sem-pre generosa Mãe Natureza.

Segundo parece, há muita gente que não pode perdoar às ciênciasda natureza o facto de terem desencantado a natureza. Também istopertence à humana conditio. Creio que, no contexto do que tenho paradizer, não deixa de ser importante mencionar expressamente este facto.Muitos homens dizem que querem saber a verdade, que querem sabercomo é, efectivamente, o mundo em que vivem. No entanto, obser-vando com mais rigor, revela-se com freqüência que o mundo, talcomo ele é realmente, está longe de corresponder aos desejos humanos.Quando se apercebem disso, muitos homens ficam assustados com averdade e recuam. Preferem embalar-se nos seus sonhos e enganar-se asi próprios. Esta é, de facto, uma das questões centrais da existênciahumana: será que se quer ver o mundo, na medida do possível, como

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ele é realmente, mesmo quando se revela pouco satisfatório do pontode vista emocional, e se verifique que não está feito como se desejaria?Ou preferiremos envolver-nos nos nossos desejos e ideais como numagasalho quente que nos protege do frio da vida, correndo o risco deque a realidade não desejada irrompa um dia, subitamente, nos sonhosacalentadores, de modo a termos depois de continuar a viver amargu-rada, desiludida e cinicamente dos sonhos perdidos e dos ideais carco-midos e despedaçados?

Dou-vos um exemplo, talvez suficientemente distante para poderser entendido sem grande dificuldade. A visão global do universo emque vivemos, tal como ela emerge, lentamente, do progressivo traba-lho de investigação dos cosmólogos, está muito longe da imagem domundo suave e harmônico de Newton - é tudo menos atractiva. A medade lenha atômica do Sol, que consome continuamente o seu própriomaterial combustível e que um dia se há-de transformar num «anãobranco»; as formações, chamadas «buracos negros», que absorvem elaspróprias raios de luz e não os devolvem — numa palavra, o automa-tísmo brutal e sem orientação do universo real, que os cosmólogoscomeçam a descobrir, está deveras distante da harmoniosa uniformi-dade da bela natureza regida por leis, cuja imagem imperava no Séculodas Luzes e inspirava a fantasia dos seus filósofos.

Para exprimi-lo numa frase: aquilo que os homens das sociedadesmais desenvolvidas sentem e experimentam nesta mesma Terraenquanto natureza, nada tem a ver com a natureza indómita e nuncadesbravada pelo homem; trata-se, exclusivamente, da natureza jádomesticada pelos homens, transformada por eles para alcançar finshumanos. Refiro-o, aquí, pelo facto de esta circunstância possuir umcerto valor simbólico. Hoje em dia, muitos homens das sociedadesmais desenvolvidas divinizam a natureza. No entanto, dificilmente ofariam se tivessem de viver na natureza ainda não trabalhada peloshomens, ainda não domesticada pelos seres humanos. Visto não teremplena consciência do papel que o trabalho dos homens, tanto o traba-lho físico como o científico, desempenhou para lhes tornar suportávelo processo da natureza, no meio da qual eles vivem, pensam segundouma escaía de valores invertida. Fecham os olhos ao facto de que,para os homens, o mais importante neste mundo, pelo menosenquanto não formos alvo de uma chuva de meteoros, não é o pro-cesso físico, o processo pré-humano da natureza. O mais importante

CONDIÇÃO HUMANA 17

•para os homens são os próprios homens. Eles podem domesticar eembelezar a natureza selvagem, ou, também, estropiá-la.

Talvez eu esteja a remontar demasiado longe no tempo. Noentanto, parece-me importante, para o que tenho a dizer sobre as ques-tões da actualidade, ajustar correctamente o quadro amplo em que sedesenrolam os problemas de hoje. Não é por acaso que «ConditioHumana» é o título de um poema que resume, do seu ponto de vista,alguma coisa do que eu procuro aqui dizer. E um poema pequeno.Permitam-me que o cite:

Nór não ouvimos o bramião da Terra peregrina

fechamos os olhos perante a distância inconcebível

e perante a viagem sem fim nem nome

só às vezes quando lá em cima a calva Lua

irradia o brilho da sua luz emprestada

quando a hoste cintilante das estrelas sem vida

nos olha do alto na sua fria beleza

quase sentimos na língua este sabor da Terra solitária

com a carga viva que transporta

e a tarefa inconcebível dos homens industriosos

na sua viagem pelo deserto do mundo é-nos familiar

então o tempo funde-se, os falsos portões

desencantados ficam o princípio e o fim

e cai o bastidor

que dissimula os fins homicidas dos homens.

Onde estamos?

Aí têm a humana conditio, nua e crua — a Terra solitária com a suacarga viva. O universo em desenvolvimento ou, o que significa omesmo, a «natureza», donde os homens saíram para nela nascerem,este universo é completamente insensível. Não é nem bom nemmau para os homens; trata-se de uma evolução cega, sem sentido esem objectivo, cuja violência e cuja força, comparadas com as dahumanidade, são avassaladoramente grandes. Este acontecer decorrenuma indiferença perfeita face à humanidade e a cada ser humano.Os processos naturais que ocorrem em todos os homens e que mui-tas vezes designamos, metaforicamente, como o seu corpo, seguemcom bastante freqüência o seu próprio rumo sob a forma de doenças,

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ou de um declínio genético predeterminado, rápido ou lento — quedetermina o envelhecimento e a morte.

Os homens procuram sempre dissimular esta completa indiferençado curso cego e não humano dos fenômenos da natureza através deimagens fantasiosas que correspondem melhor aos seus desejos. Euconsidero esta tendência para ocultar o conhecimento da realidade ou,se quiserem, da «verdade», por ela ser inoportuna, com imagens idea-lizadas, uma atitude perniciosa e perigosa. Através de um tal encobri-mento da indiferença para com os homens de todo este mundo nãohumano, oculta-se, simultaneamente, o facto de, dentre todos os seresdo mundo, os únicos que, em todo o caso, podem não ser indiferentesao destino dos homens são, precisamente, os outros homens. Nestemundo nu e indiferente, é somente dos homens que os homens podemesperar dedicação, calor de sentimentos e ajuda nas dificuldades davida.

Seja por puro desejo de saber, seja na busca de ajuda ou consolofora da humanidade, os cientistas procuram hoje, neste universo semvida, sinais de outros seres que, como os homens, sejam capazes decomunicar uns com os outros por meio de símbolos aprendidos, dearmazenar conhecimentos e de os utilizar na prática. Mas é perfeita-mente possível que somente na Terra se tivessem reunido as circuns-tâncias que permitiram que do processo cego, sem desígnio nemobjectivo, da natureza emergissem homens dotados de conhecimento,de sentimentos e de imaginação, e capazes de estabelecerem metas.É perfeiramente imaginável que, em todo o universo, não existam maisnenhuns seres desta espécie, mais nenhumas «inteligências superio-res». Pode ser que estejamos a gritar inutilmente para um universovazio: «Está aí alguém?» Talvez os homens façam isso na esperança deencontrar algures alguém que seja mais forte e sábio do que nós,alguém que nos alivie do peso da responsabilidade. Já não somos,porém, nenhumas crianças. Ali, não está ninguém.

Talvez,pensem que, para a comemoração de uma paz de quarentaanos, eu esteja a remontar demasiado no tempo. No entanto, a minhapercepção do significado momentoso deste dia da paz não é perturbadapela minha preocupação de compreender a situação da humanidadeneste mundo. A insensatez das guerras, e portanto, também, da que osnacionais-socialistas fizeram, o significado singular que os homensrevestem uns para os outros, só se tornam plenamente evidentes se se

tiver perante os olhos a imagem de uma humanidade ávida de saber,em busca do sentido e da alegria, habitando um pequeno planeta dosistema solar, no deserto gigantesco deste universo desprovido de sen-timentos.

É certo que os homens também podem destruir a habitabilidadedo seu planeta para os seres humanos, e talvez já estejam em vias de ofazer. Não deixa, porém, de ser um tanto assustador ver-se que muitoshomens tiram daí a conclusão de que a natureza ainda não tocada pelohomem é amiga e generosa, e de que só a intervenção dos homens nosprocessos da natureza é perceptível de provocar os perigos que amea-çam a humanidade. A verdade é que, devido ao mal-estar que a natu-reza neles provoca, os homens vêm trabalhando, há muitos milhares deanos, com objectivos a curto prazo, no sentido de domesticarem a sel-vática, indómíta e perigosa natureza da Terra. Eles desbravaram as flo-restas primitivas e transformaram-nas em campos de cultivo e em jar-dins. Em algumas regiões, lograram exterminar os lobos, os gatosselvagens, as cobras venenosas, tudo o que lhes era hostil. Agora, nes-tas regiões, podem caminhar pacificamente e sem perigo pelos campose achar bela a natureza, entretanto domesticada e pacificada peloshomens. As feras podem ver-se no jardim zoológico, atrás das grades.Só os próprios homens, por exemplo, quando se encontram ao volantede um carro, constituem um perigo uns para os outros. Todavia, aameaça indubitável que representam para os homens as modificaçõesque eles involuntariamente provocam no seu habitai natural — emparte devido à sua quantidade incontrolavei, em parte devido ao seugosto pelos automóveis e a outras características sociais do nossotempo — é apenas a última fase de um processo milenário de transfor-mação do meio natural pelos homens.

Em todas as épocas, esta progressiva transformação realizada peloshomens do seu habitat não humano teve conseqüências imprevistasque, a longo prazo, se revelaram em parte favoráveis e em parte desfa-voráveis para os seres humanos. O facto de, actualmente, as conseqüên-cias prejudiciais da transformação do habitat natural pelos homens pos-suírem uma dimensão eventualmente superior à de outros temposprende-se com duas particularidades do desenvolvimento da humani-dade que, parece-me, também são importantes neste contexto. Queroreferir-me a elas sucintamente.

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A situação dos homens na fase actuai do seu desenvolvimentosocial é fortemente influenciada por uma peculiar desigualdade nodesenvolvimento do seu arsenal de conhecimentos. E sobretudo nasuniversidades onde melhor se pode observar esta desigualdade, emboraela não seja, de uma maneira geral, entendida nestes termos. O saberobjectivo, próximo da realidade, sobre as conexões não humanas danatureza aumenta hoje devido ao crescimento dos institutos de investi-gação, numa proporção que ultrapassa em muito o saber acumuladoem todos os séculos anteriores. Ao mesmo tempo, regista-se um aná-logo crescimento da tecnologia física, um aumento imenso do controloe da manipulação pelos homens de processos naturais não humanospara fins militares e pacíficos que, simultaneamerite, determinam mo-dificações significativas da vida social e colectiva dos homens. A apli-cabilidade prática, não só no domínio da técnica mas, principalmente,no da medicina, é a melhor prova da adequação à realidade de umaparte considerável do saber das ciências da natureza.

Ponderem, por favor, sobre o que neste domínio está a acontecer.Através do avanço do trabalho científico, a natureza tem vindo a ser,progressivamente, desmitificada. Neste âmbito, os homens aprende-ram que, quando a sua busca de saber é influenciada por ideais precon-cebidos, por ilusões e por fantasias, o caminho para um conhecimentoajustado às coisas, próximo da realidade ou, como antes se dizia, paraum saber «verdadeiro», fica obstruído. As ciências da natureza jádesistiram, efectivamente, há muito de aceitar como ponto de partidaque o universo natural corresponda aos seus próprios ideais ou aosdesejos dos homens. Talvez não seja ainda uma coisa muito divulgada,

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mas eu já chamei a atenção para o seguinte: a imagem global do uni-verso que vem gradualmente emergindo do trabalho de investigaçãodos cientistas não é particularmente atraente para os homens. Tivemosum pequeno antegosto disso quando vimos de perto, na televisão, apaisagem lunar. O satélite da Terra, que, visto de uma grande distân-cia, brilha qual astro dourado dos namorados num céu de Verão, obser-vado mais de perto revela-se como um deserto sem vida e coberto decalhaus. Considero perfeitamente possível quef no decorrer do próximoséculo, os homens comecem a enriquecer este miserável deserto complantas, a criar atmosferas onde possam viver e, assim, a transformarpaulatinamente a Lua numa residência agradável para os seres huma-nos. A recompensa oferecida aos homens pelo abandono dos seusmedos e desejos quando da busca de conhecimentos, portanto, a cora-gem de ver e descrever a realidade deste mundo sem véus embelezado-res, é a capacidade de, dentro dos limites da sua esfera de poder, trans-formarem o mundo assim conhecido de modo a ele correspondermelhor aos seus desejos e necessidades.

E este, se assim quiserem, o segredo da ciência: através da renúnciaao pensamento guiado pelo desejo, às fantasias embelezadoras ou, even-tualmente, também ao receio e à angústia, desenvolver o saber sobre omundo de modo a que ele se adapte o mais rigorosamente possível aomundo real. Se possuirmos um tal saber, poderemos empreender atransformação de um mundo não desejado e, talvez, até atemorizador,por forma a fazê-lo melhor corresponder às necessidades humanas.

Os homens têm memória curta. Nos países mais desenvolvidos jáquase se desconhece como foi difícil e cheia de perigos a vida dos nos-sos antepassados no meio das estepes selvagens, dos rios indomáveis— que, com freqüência, inundavam de repente as terras — e das florestasgigantescas, onde todos os seres vivos, plantas, animais e homens, seencontravam permanentemente em guerra entre si. A omnipresençados perigos e do medo perante as incompreensíveis forças da naturezaencontrou a sua expressão na multiplicidade de espíritos com que aprevidente imaginação dos homens povoou o mundo ameaçador eopaco. A desmitificação da natureza foi um longo processo, um traba-lho esforçado e não planeado, que durou séculos. Hoje, já quase oesquecemos. A dèsmítifícação da natureza tornou-se óbvia. Are mesmoa doença mais dolorosa já não é atribuída aos feitiços de uma bruxa; aloucura só raramente é atribuída à possessão por espíritos malignos.

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Mesmo a erupção de um vulcão ou um terramoto devastador já não sãoatribuídos à ira dos espíritos da montanha ou da Terra. Em muitos paí-ses, os homens tornaram-se a tal ponto senhores da natureza que asuperioridade e a periculosidade não mitigadas desta só excepcional-mente, e como que à margem da sua vida, lhes vêm à consciência. Elesvêem agora os tremores de terra e as inundações como acontecimentosnaturais, cuja causa e ocorrência se podem investigar cientificamente ecujo perigo pode ser diminuído com a ajuda de previsões científicas.

Estamos actualmente ainda tão pouco conscientes da morosidadedeste processo de desmitificação, deste desenvolvimento de um saberaltamente ajustado à realidade no domínio da natureza não humanaque, para muitos homens, a elevada adequação à realidade destes seusconhecimentos sobre a natureza parece-lhes ser, simplesmente, o resul-tado da sua razão natural ou, mais geralmente, da racionalidadehumana universal, Por isso, mostram-se depois perfeitamente incapa-zes de explicar porque é que os seres humanos, apesar de serem capazesde pensar e actuar «racionalmente» em relação ao processo da naturezaexterior, não estão manifestamente habilitados para se comportaremcom igual «racionalidade» em relação à sua própria vida social e colec-tiva. Se se tratasse aqui, verdadeiramente, de uma questão de «raciona-lidade» humana, da «razão», natural ou do «entendimento» universal,seria pura e simplesmente incompreensível porque é que os homensfazem uso da sua «razão» da sua «racionalidade», apenas em relação ànatureza, mas não, ou pelo menos não em igual medida, em relação àsua vida social colectiva. A inevitabilídade com que os homens, preci-samente na altura em que festejam uma paz de quarenta anos, seencontram de novo confrontados pelo perigo de uma nova guerra aindamais terrível que as anteriores é um bom exemplo desta típica diversi-dade de comportamento e de pensamento em relação à natureza e àsociedade. Se conceitos como «racionalidade» ou «razão» tivessem, dealgum modo, um significado claro — e eu duvido que seja esse o caso —,então, teríamos de explicar porque é que, actualmente, a «racionali-dade» humana se restringe à orientação no domínio dos processos danatureza, parecendo, porém, recuar ante a ponderação e o comporta-mento relacionados com a vida social colectiva dos homens, à qual, deresto, também pertencem as relações entre os Estados. B bastante evi-dente que, com conceitos como «razão», «racionalidade» e «irraciona-lidade», não avançamos muito no sentido da solução de tais problemas.

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A diferença com que aqui somos confrontados é elucidativa. Se umfenômeno da natureza, como, por exemplo, uma epidemia ou ummeteoro que se aproximasse da Terra, colocasse a humanidade peranteum perigo tão grande como aquele a que ela esrá exposta pela utiliza-ção de armas atômicas para fins militares, muitas equipas de cientistasver-se-iam então confrontadas com a tarefa de investigar a melhormaneira de fazer frente a este perigo natural e, caso ele não pudesse serafastado, de como se poderia reduzir a grandeza do perigo, proce-dendo, por exemplo, à transferência de grupos humanos. Por outraspalavras, tentar-se-ia, sem se deixar enganar por ilusões e outras fanta-sias, encontrar uma explicação do perigo o mais próxima possível darealidade e, com base neste saber ajustado às coisas, seriam tomadas ascorrespondentes medidas práticas. Assim, quando se trata de debelarperigos a que estão expostos pelo acontecer não humano da natureza,os homens, unidos em determinadas organizações sociais, já quase secomportam como adultos. Já não se põem à procura de terceiros que ospossam ajudar. Não praticam nenhuma política de avestruz. Não seiludem, pensando que o perigo irá desaparecer, desde que proclamemem coro o desejo de que ele desapareça. Nestes casos, ao enfrentaremperigos de ordem física e biológica, os homens já adquiriram o discer-nimento de que só eles podem fazer alguma coisa para conjurar operigo, ou para reduzi-lo, precisamente com base num saber o maispróximo possível da realidade. Deste saber faz parte, no entanto, comoé óbvio, um distanciamento consciente do fenômeno ameaçador, umaexclusão de todas as fantasias e ilusões.

Com isto, já nos aproximamos mais do cerne da questão. Em facede uma ameaça por fenômenos naturais exteriores ao homem, os sereshumanos são já capazes de refrear os seus desejos e fantasias. A evolu-ção que para tal os habilitou foi prolongada e trabalhosa. Agora,porém, nos países industriais mais desenvolvidos, alcançou-se umpadrão social do falar e do saber que possibilita até mesmo às criançasdestas sociedades sentirem e experimentarem a natureza domesticada,no meio da qual vivem, sem medo dos espíritos ou de feiticeiros. Elasaprendem muito cedo que as criaturas que se movem no ecrã não sãonenhum feitiço, que os computadores são aparelhos criados pelohomem e que podem ser por ele reparados quando teimam em falhar,E, para os adultos destas sociedades, a desmitificação da natureza nãohumana, bem como uma intervenção colectiva dos homens relativa-

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mente audaciosa e ajustada às coisas, no caso de perigos naturais denatureza física e biológica, são já, em geral, uma coisa óbvia. Eles jáquase se não dão conta de que os homens de gerações anteriores experi-mentavam e sentiam a natureza muito menos domesticada e muitomais ameaçadora, tanto à sua volta como neles próprios, num graumuito superior, através do véu dos seus desejos e do seu medo, por-tanto, de uma maneira mítico-mágica.

Todavia, no que respeita ao esforço para debelar os perigos que oshomens representam uns para os outros e, particularmente, em face daameaça recíproca de grupos associados em Estados marcados por tradi-ções militares, os seres humanos comportam-se de maneira inteira-mente diferente. Verificai-o vós mesmos: relativamente aos perigosterríveis a que os homens se expõem uns aos outros — sobretudo, masdecerto não só, através da ameaça recíproca com a força física ou, direc-tamente, através da sua utilização -, a humanidade encontra-se hoje,fundamentalmente, ainda tão desamparada como os nossos antepassa-dos perante as ameaçadoras forças da natureza, como, por exemplo, osrelâmpagos, as epidemias ou as inundações gigantescas, a que devemoso mito da Arca de Noé. Numa palavra, na fase actual do desenvolvi-mento da humanidade, faz parte do destino dos homens o ter-se conse-guido em alguns países, graças, sobretudo, às ciências da natureza,tanto puras como aplicadas, diminuir muito substancialmente asintempéries e os perigos a que os fenômenos naturais incontroladosexpõem os seres humanos. Em resumo, pode, por isso, hoje dizer-seque são os próprios homens que constituem o maior perigo uns para osoutros. Levados pela emoção, muitos homens responsabilizam hoje oscientistas pelo facto de os Estados se ameaçarem com armas nuclearesde uma força destruidora até agora desconhecida. Isso, porém, é apenasum dos mitos com que se dissimula a realidade social. O impulso parao desenvolvimento de armas nucleares militarmente utilizáveis foidado pela corrida aos armamentos desencadeada pela guerra cujo fimhoje festejamos. Tal como hoje acontece, na véspera de uma possívelguerra, também durante o último conflito uma das parte em guerra, osAmericanos, receava que a outra parte, Hitler e as suas hostes, se lhesantecipasse no desenvolvimento de uma arma nuclear utilizável. E ainimizade recíproca entre grupos humanos e, particularmente, a insti-tuição social das guerras que impulsionam o desenvolvimento cientí-fico de armas sempre mais perigosas. E de supor que, já na Idade da

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Pedra, grupos humanos rivais se estimulavam reciprocamente no sen-tido do aperfeiçoamento das suas armas de pedra. Nessa altura, porém,a ameaça que as forças da natureza representavam para os gruposhumanos era, provavelmente, tão grande, se não mesmo maior, que ade outros grupos de homens. Hoje, como já se disse, nas áreas habita-das por muitas sociedades, aquela primeira ameaça decresceu. Assim, aameaça que os homens representam uns para os outros surge-nos, comparticular acuidade, como o maior perigo ainda não debelado e queurge conjurar.

Talvez devêssemos ainda acrescentar que a atitude dos homens emrelação a novas descobertas, ao alargamento dos seus conhecimentossobre o mundo desconhecido, em que estão inseridos, nem sempre éalegre e positiva. Os mitos antigos dão testemunho de que os novosconhecimentos foram desde sempre suspeitos aos olhos dos homens.Era melhor aferrar-se ao velho. Nunca se podia estar seguro de que osdeuses omniscientes não ficariam zangados se os homens presunçososse apropriassem de mais um pouco do seu saber. Nunca se podia preverque perigos acarretaria a nova descoberta, que vingança os deusesiriam perpetrar sobre os homens, por estes se terem apropriado de umpouco* do seu saber. Chamo a isto o complexo de Prometeu. Prometeuroubou o fogo aos deuses e confiou-o aos homens. Eis, pois, um grandebenfeitor da humanidade. Mas ele foi, por isso, punido pelo deussupremo da maneira mais terrível. Foi agrílhoado a um rochedo, e umaáguia devorava-lhe diariamente um pouco das entranhas. TambémAdão foi expulso do Paraíso porque provou o fruto da árvore da sabe-doria, ainda por cima instigado pela sua mulher. Igualmente neste casohavia o perigo de os homens poderem compartilhar do saber divino.

Do mesmo modo, não são poucos os que, ainda hoje, suspeitamdos homens e das mulheres de ciência que continuamente promovemnovos conhecimentos. Falando com mais rigor, eles esquecem as ciên-cias quando os respectivos frutos contribuem para o seu bem-estar,quando elas contribuem para que os jovens cresçam mais saudáveis eos velhos vivam mais tempo, e apenas lhes imputam a responsabili-dade pelo que não lhes agrada, como, por exemplo, as chuvas ácidas oua poluição dos rios. No entanto, em relação a muitos destes fenômenosque, justamente, são objecto de reprovação geral, trata-se não de pro-blemas científicos, mas de problemas sociais, ou, mais precisamente,de problemas de poder. Investigá-los nessa qualidade e apresentá-los à

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opinião pública é a função das ciências sociais. No entanto, é difícil aosseus representantes penetrarem o envoltório dos mitos encobridoresque actualmente ainda condicionam em larga medida a imagem que oshomens formam das sociedades por si constituídas.

Como vêem, depara-se-nos aqui o rasto de uma singularíssimacisão do saber, altamente caracterizadora da actual situação dos homensnas sociedades mais desenvolvidas. Ela tem conseqüências do maioralcance para a nossa vida e para o nosso habitus, que não poderei agoraabordar. A nossa relação com a natureza não humana está marcada poruma desmitificação e uma secularização muito avançadas do sabersocial sobre as conexões da natureza. O alto grau de adequação destesaber à realidade torna possível um exrenso controlo do acontecernatural e a sua sempre maior plasmação em conformidade com asnecessidades humanas. Em contrapartida, a atitude dos homens emrelação à sua vida em comum, em sociedades de diversos níveis, éainda muito determinada por imagens de desejos e de medos, porideais e contra-ideais, numa palavra, por representações mítico-mági-cas. A orientação objectiva das representações é muito menor no domí-nio da sociedade do que no da natureza, sendo tanto maior a sua sub-jectividade e o peso do seu significado emocional para o respectivosujeito do saber.

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O nacional-socialismo foi, por certo, um exemplo particularmenteterrifícante e perigoso de um mito social. Mas foi apenas um exemplo,entre muitos outros. Claro que é assustador que um mito social tãobárbaro e implacável, só por lisonjear o egoísmo nacional do seu pró-prio povo e satisfazer a necessidade de confirmação do valor incompa-rável da própria nação, pudesse encontrar aceitação entre tantoshomens. No entanto, tratou-se apenas de um exemplo particularmenteterrível da insaciável necessidade dos homens de criarem mitos sociaisque demonstrem o valor incomparável da sua nação. Homens que seemanciparam, em larga medida, dos mitos naturais entregam-sedepois, repetidas vezes, a semelhantes mitos sociais. Olhem só à volta.Acaso, hoje em dia, não somos de novo impelidos para uma guerra emnome de mitos colectivos ou, como também se diz, em nome de ideo-logias sociais que, ao mesmo tempo, também justificam o valorincomparável da própria nação? Não serão esta enredada teia e estaderiva em direcção à guerra tão inevitáveis, devido precisamente aofacto de a substância real do conflito, sobre a qual se poderia discutir,ter sido de tal maneira exagerada por mitos sociais repletos de cargasemotivas que se torna impossível falar sobre ela? As estratégias dosresponsáveis políticos são, elas próprias, com freqüência, determinadasdecisivamente por esses mitos e ideologias. Serão eles dignos de que,em seu nome, se condenem de novo à morte milhões de homens e setornem inabitáveis enormes extensões da Terra?

Permitam-me que diga duas palavras sobre a função destes mitos.Penso que eles se coadunam com o contexto destes dias comemorati-vos. Além disso, elas não serão inteiramente prescindíveis, caso se

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queira, como é minha intenção, falar um pouco sobre o futuro daEuropa e, portanto, também, sobre o da República Federal. Antes demais, algumas idéias quanto ao diagnóstico do nosso passado próximo.

Tem-se dito de vez em quando, mas talvez valha a pena repeti-lo,que o terrível episódio do nacional-socialísmo só pode ser entendidono contexto duma situação social que sempre se nos depara no desen-volvimento das relações entre os Estados, bem como, em geral, entreunidades de sobrevivência relativamente autônomas. Repetidamente severifica que semelhantes unidades de sobrevivência, sejam elas Estadosou tribos, se organizam, ao cabo de uma série de lutas, no sentido deuma hierarquia de status e de poder. No decurso duma série de lutaseliminatórias, dois ou três dos Estados envolvidos ascendem ao topodesta configuração de Estados como os mais poderosos e envolvem-se,então, a isso forçados pela própria configuração, numa luta entre sipeia supremacia. O desfecho duma tal luta hegemônica pode ser muitodiverso. Pode conduzir, como no caso das antigas cidades-estado gre-gas, a uma situação de empate. Nem Esparta, nem Atenas, nem Tebasou Corinto alcançaram a hegemonia na respectiva esfera estatal pelaqual tinham lutado. Já este exemplo, porém, mostra bem o caracterforçado da situação. Se, numa tal esfera, outros Estados se tornam maisfortes através de alianças ou da dominação sobre outros grupos huma-nos, então os Estados que não se tornam mais fortes ficam, obvia-mente, mais fracos.

A história de Roma é um bom exemplo da ascensão dum poderhegemônico durante uma série secular de lutas eliminatórias. Roma é,também, um bom exemplo daquilo que eu gostaria de chamar aembriaguez hegemônica, o furor begemomalis, a febre da hegemonia. Seum Estado conseguiu vencer em lutas eliminatórias anteriores dois outrês concorrentes mais ou menos da mesma força e logros forçá-los auma aliança ou a prestarem-lhe vassalagem, as suas camadas dirigentessão, quase invariavelmente, arrebatadas pela idéia de que para a suasegurança é necessário ser mais forte do que qualquer outro Estado àsua volta. A configuração que formam com outros Estados exerce cons-tantemente sobre eles, em cada etapa da luta eliminatória, uma fortepressão no sentido de desafiarem qualquer possível adversário damesma igualha e garantirem, com uma vitória sobre ele ou com a suadestruição, a segurança do seu próprio Estado. O que conduz então,precisamente, à afirmação da sua posição hegemônica face a Estados e a

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tribos que se encontrem no seu horizonte e ao seu alcance, e à integra-ção forçada destes em formações estatais sempre maiores.

A Terra, porém, é demasiado vasta, e a humanidade é constituídapor uma abundância demasiado grande de tribos e de Estados hetero-gêneos. Até hoje, todas as tentativas de um povo para alcançar a segu-rança absoluta através da hegemonia sobre todos os possíveis rivais aca-baram por fracassar devido ao facto de, para além de cada fronteiraalcançada por um Estado hegemônico - graças à derrota de cada umdos adversários que, eventualmente, poderia pôr em perigo a sua pró-pria segurança -, aparecerem sempre novos grupos humanos, até entãoainda não derrotados, que, por isso, representam para o povo conquis-tador uma possível ameaça às suas fronteiras e, assim, a sua segurança.O destino do Império Romano, progressivamente mais dilatado, mos-tra com muita clareza o caracter ilusório mesmo da mais bem sucedidasérie de lutas eliminatórias com possíveis rivais. Evidentemente, osRomanos tornaram-se incrivelmente ricos graças à longa série deguerras, na sua maioria bem sucedidas, bem como aos despojes deguerra, aos escravos, aos tributos ou às contribuições de povos subjuga-dos e por fim integrados no Império Romano. Porém, no que diz res-peito à segurança do seu Estado, foram confrontados com aquilo comque, nos tempos modernos, se deparou a todos os povos que se deixa-ram ganhar pela febre hegemônica. Descobriram que, para lá de cadafronteira que tinham alcançado através da derrota dum povo que,eventualmente, ameaçasse a segurança do seu Estado viviam povosainda independentes e que representavam uma renovada ameaça à suaprópria segurança, enquanto se não conseguisse chegar com eles, aquem porventura animaria o mesmo desejo de viver em paz, a umentendimento pacífico sobre relações de vizinhança.

Um dos exemplos mais ilustrativos desta pressão de luta concor-rencial entre unidades humanas de sobrevivência no sentido da dilata-ção ilimitada do respectivo espaço de dominação, e, assim, da formaçãode unidades de dominação sempre maiores sob a égide dum povo con-quistador hegemônico, é o destino de Alexandre, o Grande.

As luras eliminatórias das cidades-estado gregas entre si, apesar doperigo comum de serem conquistadas pelos reis persas, ficaram empa-tadas. O pai de Alexandre, Filipe da Macedónia, e depois o próprioAlexandre obrigaram, em parte pela persuasão, em parte graças ao seupoder militar superior, os Estados gregos, tão diferentes entre si pelo

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seu caracter nacional e pelas suas tradições, a submeterem-se à hege-monia macedónica e, assim, à unificação. Os exércitos gregos, reunidossob o comando macedónico, viraram-se então contra aquela porênciaque havia séculos ameaçava de facto a segurança e a independênciatanto das cídades-estado gregas como do reino macedónico e dos seusvizinhos tessálios e rrácios. Sob o cornando de Alexandre, os exércitosgregos invadiram os domínios senhoriais dos reis persas, como que emvingança pela constante ameaça e pelas invasões ocasionais dos Persasnos territórios dos povos de língua grega.

No entanto, uma vez definitivamente derrotado o rei persa,Alexandre não se satisfez com o facto de, com a destruição do ImpérioPersa e a edificação dum império unificado greco-persa, ter eliminadoo perigo para os Gregos. Nos confins asiáticos do Império Persa, depa-raram-se-lhe povos que ainda não estavam submetidos ao seu domínioe que, por isso, representavam um perigo para as suas novas fronteiras.Depois de ter derrotado também estes povos e de ter assim alargado asfronteiras do seu império ainda mais para o interior da Ásia desconhe-cida, encontrou outros povos, do outro lado das novas fronteiras, quepoderiam pôr em perigo a segurança do império. E, depois de tambémter Vencido estes últimos, o processo repetiu-se. Alexandre esperava,manifestamente, através da sua marcha, atingir algures os confins daTerra ou, em todo caso, o fim do continente habitado pelos homens, ooceano que rodeava a Terra, garantindo, assim, ao seu império, umafronteira absolutamente segura. Quando ele, levado por esta febrehegemônica — e certamente também por uma curiosidade toda pessoal,quase científica, por este vasto mundo desconhecido —, chegou à índia,os seus fiéis veteranos opuseram-se ao constante prolongamento da suacampanha de conquista. O sonhado oceano não estava à,vista, a fron-teira absolutamente segura era inalcançável. Eles estavam fartos.Alexandre foi obrigado, depois de ter garantido a segurança de frontei-ras tão dilatadas, a voltar para trás e a contentar-se em consolidar aorganização do império gigantesco que ediflcara através de uma série

de conquistas bem sucedidas.Recordamos o destino de Alexandre, neste contexto, como uma

parábola. Na ânsia de chegar aos confins da Terra e, assim, encontrar afronteira absolutamente segura do seu império, Alexandre reunira umvasto domínio que, muito provavelmente, em face do nível do saber deentão, era demasiado extenso e povoado por demasiados povos para

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que pudesse ser dirigido com eficiência e em paz a partir de um únicocentro, bem como defendido duradouramente de ataques exteriores.Existe uma relação muito estreita entre a grandeza do território con-quistado e a população de um Estado governável a partir de um centroúnico e o respectivo nível do desenvolvimento do saber, de que depen-dem, entre outras coisas, o estado dos meios de comunicação e detransporte, da técnica física em geral, mas também das técnicas deadministração, bem como a produtividade da agricultura. A grandezae as fontes de poder do povo conquistador também têm nisso um papelimportante. Talvez a desintegração do império de Alexandre pudesseter sido retardada, se ele tivesse vivido mais tempo. No entanto, éimprovável que pudesse ter sido impedida.

O mesmo se aplica, mutaiu mutanãis, ao Império Romano. A con-quisca deste império processou-se muito mais devagar do que a doimpério de Alexandre, e o seu declínio foi também lento. Todavia, aestrutura do desenvolvimento do Império Romano foi, em certo sentido,a mesma. Em primeiro lugar, aos Romanos também se deparou, em cadafase, uma potência rival que ameaçava a existência dos seus domínios.Finalmente, também eles, na sua embriaguez hegemônica, chegaramao ponto de considerar qualquer grupo ainda independente, situadopara lá das fronteiras por eles sucessivamente alcançadas, como umperigo para a segurança dos seus domínios, a eliminar através de umacampanha militar e de uma conquista. As tribos celtas independentesda Gália representavam uma ameaça para o território até então conquis-tado pelo Estado romano na Península Itálica. Por isso, toda a Gália tevede ser conquistada e submetida à dominação romana. Algumas tribosceltas da Bretanha prestaram auxílio as tribos gaulesas durante a suaresistência contra Roma. Logo, a Bretanha teve de ser conquistada. Já nasIlhas Britânicas, tornou-se necessário defender o patrimônio romano dastribos selvagens do Norte. Até à época de Trajano, prosseguiu a dilata-ção do império sob o estímulo da ameaça constante. Ele consolidou oDanúbio oriental como fronteira do império e repeliu ainda as tribosrebeldes do Norte dos Bálcãs para lá do Danúbio. No entanto, já notempo de Marco Aurélio os Marcomanos e outras tribos atravessaram oDanúbio, penetraram profundamente no território do império e só comgrande esforço puderam ser repelidos. Seguindo as pisadas de Alexandre,Trajano procurou estancar a ameaça que representavam para o impérioos sucessores dos Persas, os Partos, e sofreu uma derrota devastadora.

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O império gigantesco desmoronou-se tão gradualmente quanto osRomanos o tinham edificado. Já o imperador Diocleciano reconheceuque o império de então era demasiado extenso para poder ser eficiente-mente administrado, pacificado e defendido de inimigos externos, apartir de um único centro. Ele próprio entregou Roma, onde rara-mente pôs o pé, enquanto capital do império ocidental, a um impera-dor adjunto, e limitou-se, tanto quanto possível, à governação das pro-víncias orientais do império. Constantino transferiu depois, oficialmente,a capital imperial para Bizâncio, cuja situação à entrada do Bósforo,juntamente com as fortificações necessárias, conferia doravante à capi-tal do império um grau de segurança contra os inimigos externosimpossível de encontrar na velha Roma, mesmo com as melhores forti-ficações.

Roma é um exemplo, extraído da Antigüidade, de um Estadocujos grupos dirigentes — primeiramente, por uma exigência de segu-rança e de integridade físicas, depois levados cada vez mais por umsentimento de superioridade e de invencibilidade — são impelidos»sucessivamente, para novas lutas com Estados rivias, eventualmenteameaçadores, ou então com tribos que lhes parecessem perigosas. Elessão impelidos de uma guerra para outra, de conquista em conquista,até uma derrota os deter ou uma nova expansão do seu campo de sobe-rania ameaçar com a ruptura os seus recursos militares e econômicos,fazendo assim, talvez, perigar o controlo das áreas até então conquista-das. Para a sua ascensão de pequena cidade-estado até se converter nocentro de um império mundial, o maior da Antigüidade, Roma preci-sou de uns bons quinhentos anos de guerras eliminatórias. A derrotana floresta de Teutoburgo impediu a expansão do Império Romano atéao Elba a decidiu a sua limitação às fronteiras do Reno e do 'Danúbio.É difícil dizer como é que tudo acabaria se os Romanos lograssemestender o seu domínio aos territórios a norte do Danúbio, até ao marBáltico e até ao Elba.

Há muitos exemplos posteriores de lutas hegemônicas deste tipo.Houve, por exemplo, a luta pela hegemonia entre a Suécia e a Rússia,ou a luta entre os Habsburgos e os Bourbons, numa altura em que osgrupos de Estados do Norte e do Sul da Europa, em conformidade como nível dos armamentos e dos meios de transporte e do conjunto dastécnicas organizatívas, ainda formavam duas hierarquias de poder e deconcorrência relativamente independentes. Na época da Guerra dos

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Trinta Anos, as duas hierarquias de Estados começaram a fundir-seuma na outra e o império alemão tornou-se no teatro das guerras deambos. A França foi a primeira a ascender à posição de mais fortepoder militar, alcançando, assim, uma posição hegemônica entre osEstados do continente europeu. Napoleão faria, mais tarde, com o seuexército revolucionário, a última tentativa para unificar a Europa sob ahegemonia francesa. A tentativa fracassou devido, em larga medida, auma política muito coerente da Grã-Bretanha em relação a todas astentativas de unificação dos Estados do continente europeu.

A Inglaterra ocupou um lugar especial neste jogo terrível das lutaseuropéias pela hegemonia. Os Ingleses, na sua ilha, nunca procuraramexercer a hegemonia sobre a Europa, e também não estavam em situa-ção de a obter. Em vez disso, seguiam a célebre política do equilíbriode poderes, que começou por se impor aos estadistas ingleses em cadacaso concreto, mas que se transformaria depois numa espécie de princí-pio teórico. A Inglaterra considerava ser seu interesse vital impedir pormeios diplomáticos e, se necessário, militares que uma única potênciacontinental obtivesse a hegemonia sobre todos os outros Estados docontinente. Assim, aliava-se sempre à segunda potência mais forte,para impedir a vitória do pretendente mais poderoso da altura à hege-monia sobre a maioria dos outros Estados continentais, bem como aunificação deste pela força. E, deste modo, vendo as coisas pelo outrolado, nunca se alcançou a unificação da Europa. Esta foi uma das razõesmais importantes pela qual a Europa não foi unificada pela força, nemsob a hegemonia da França nem, mais tarde, da Alemanha.

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Os pormenores das subsequentes lutas hegemônicas européias sãosuficientemente conhecidos. No entanto, a estrutura destas lutas hege-mônicas, a sua dinâmica específica, o seu variável automatismo nemsempre são hoje, segundo me parece, pensados com aquele rigor con-ceptual que tão útil é à compreensão de tais fenômenos, tanto no pas-sado como no presente.

Sob a liderança de Bismarck, o reino da Prússia conquistou a hege-monia dentro do império alemão dividido através de uma luta elimi-natória com a monarquia austríaca. Os Habsburgos, dantes imperado-res do grande império alemão, retiraram-se da confederação de Estadosalemães com todos os seus domínios dinásticos. Num império alemãotão reduzido, a Prússia, enquanto potência militar mais forte desseimpério, foi-se guindando, sempre mais inequivocamente, a uma posi-ção de hegemonia.

Em correspondência com a dinâmica imanente às lutas eliminató-rias entre Estados, ao império alemão, agora sob a liderança da Prússia,oferecia-se, assim, a oportunidade duma luta concorrencial com o maisforte poder militar da Europa continental - a França. Os pormenoreshistóricos são, para o caso, secundários. Basca mostrar a coerência dadinâmica do desenvolvimento das relações entre os Estados. Corres-pondeu perfeitamente à tradição até agora vigente o facto de a fede-ração de Estados alemães, agora fortalecida pela liderança militar eeconômica da Prússia, não ter começado por promover, no seu interior,uma maior unificação e integração dos Estados alemães, antes prefe-rindo desafiar o império francês. O esforço da França para alcançar umaposição hegemônica da Europa fracassara devido à vitória da Inglaterra

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e dos monarcas absolutistas coligados do continente europeu sobre osexércitos revolucionários de Napoleão. Agora, porém, um novoNapoleão reinava como imperador dos Franceses e como símbolo vivoda tradicional posição hegemônica da França no continente europeu.Os homens de Estado do império inglês — envolvido desde há séculos,dentro e fora da Europa, numa luta concorrencial com o poder conti-nental mais forte, com o seu inimigo hereditário, a França - tinhamvisto geralmente a ascensão da Prússia com bons olhos. Como sempre,simpatizavam com a segunda mais forte potência do continente. Elaera-lhes bem-vinda como contrapeso às pretensões hegemônicas daFrança. No entanto, a Alemanha saiu unida e fortalecida, enquantoimpério, da guerra de 1870/71, e a França, pelo contrário, enfraque-cida. Assim, o equilíbrio de poderes na Europa alterou-se.

É um pouco assustador ver a precisão com que os estadistas fazemas jogadas que lhes são sugeridas por uma tal modificação da estruturadas relações entre os Estados. Para as camadas dirigentes alemãs, nãofoi suficiente terem alcançado, finalmente, a unificação estatal e a pari-dade com os velhos grandes Estados europeus, acompanhados de umdesenvolvimento econômico acelerado. Surpreendentemente depressa,no decorrer de menos de trinta anos, desenvolveu-se também, em lar-gas camadas da nobreza e da burguesia alemãs - para o que não terácontribuído pouco a liderança ainda fortemente autocrática de umnovo imperador alemão -, a partir da exigência de paridade com asoutras grandes potências européias, agora satisfeita, a pretensão a umahegemonia entre os Estados da Europa. «A Alemanha à frente!»«A segurança da Alemanha exige o exército mais forte e, sobretudo,também uma armada que seja tão forte e, se possível, ainda mais forte doque a inglesa.» Não posso traçar aqui em pormenor a dinâmica socialque sempre conduz os Estados a passarem da exigência de liberdadeem face da hegemonia de outros Estados e da igualdade perante eles àpretensão a serem mais fortes do que todos os outros e a alcançarem ahegemonia sobre eles - numa palavra, que os conduz a uma luta pelahegemonia que, mais cedo ou mais tarde, acabará sempre por ter de serdecidida pela força das armas. Todavia, a regularidade, digo-o maisuma vez, com que os Estados, e talvez já antes as unidades de sobrevi-vência pré-estatais, se envolvem, se de qualquer modo o podem fazer,em lutas eliminatórias pela hegemonia é, se a observarmos ao longo demilhares de anos, precisamente nestes dias, um tanto assustadora.

No caso da Alemanha, acrescentava-se o facto de muitos dos seuscidadãos terem sofrido com a situação decorrente da multiplicidade eda pequenez dos respectivos Estados, bem como com a fraqueza tantasvezes humilhante da Alemanha no concerto dos Estados europeus.O sentimento nacional, talvez exacerbado à sombra da grandeza pas-sada, foi durante muito tempo ofendido e ferido. Logo após a unifica-ção do império, certamente já nas últimas décadas do século XIX, elecomeçou a transformar-se no oposto. O pêndulo oscilou para o outrolado. Em vez da consciência nacional humilhada, surge agora, sobmúltiplas formas, uma consciência nacional que excede em muito arealidade. O exagero da autovalorização nacional nos tempos do Kaiserainda não ia tão longe quanto o mito da raça de senhores dos temposde Hitíer. No entanto, a embriaguez com a imagem da própria gran-deza, que se podia encontrar na Alemanha da época do Kaiser, por-tanto, antes da Primeira Guerra Mundial, foi, certamente, uma formaprecursora da embriaguez desmedida dos tempos que antecederam aSegunda Guerra Mundial. Como esta última, embora ainda não nasmesmas proporções, o reforço do sentimento nacional na época doKaiser fez-se acompanhar de um notório crescimento do anti-semi-tismo. A imagem ainda não estabilizada e, por isso mesmo, muito exa-gerada do valor da própria nação, e, também, do próprio indivíduo,encontrou a sua formação numa contra-imagem, na imagem do grupominoritário mais visível do império do Kaiser, os Judeus, cuja perver-sidade e inferioridade ilimitadas deveriam fazer sobressair, por con-traste, a grandeza e o valor superior dos Alemães.

O período antes da Primeira Guerra Mundial foi, também, umperíodo de corrida aos armamentos. Também neste caso, as potênciasdominantes se envolveram reciprocamente numa corrida aos armamen-tos que tornava sempre mais próximo o perigo de um conflito bélico.Depois da fundação do império do Kaiser, os Ingleses compreenderambastante depressa que o seu inimigo figadal, agora, já não era a França,mas sim o império alemão, que constituía o poder militar mais fortedo continente; e as palavras do Kaiser, as vozes dos pangermanistas ede muitos outros grupos nacionalistas mostravam bem claramente quese reclamava para a Alemanha uma posição hegemônica na Europa.Mais uma vez em perfeita correspondência com a dinâmica das coníi-guraçoes entre Estados, a rápida embriaguez hegemônica da Alemanhaconduziu a uma aproximação e, finalmente, a uma aliança entre a

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Inglaterra e a França. A Inglaterra reivindicava a hegemonia no mar, eos seus estadistas não permitiam a ninguém duvidar de que qualquerameaça a essa hegemonia conduziria à guerra. No entanto, o imperadorda Alemanha, em colaboração com o almirante Tirpitz, dedicougrande parte da sua considerável energia a igualar o potencial militarda marinha de guerra alemã ao da inglesa. Camadas dirigentes cegaspela embriaguez da hegemonia! Vendo as coisas com realismo, era segu-ramente uma imprudência fazer da Inglaterra um inimigo. De facco,pode talvez dizer-se que isso foi o princípio do fim do império alemão.

Quando hoje olhamos para esta época anterior à Primeira GuerraMundial, temos uma imagem particularmente impressionante decomo é difícil, não só naquele tempo mas na generalidade dos casos,para os governantes e os governados, que são arrastados para a guerraenvoltos no manto protector dos respectivos mitos nacionais, fazeremuma idéia de algum modo ajustada à realidade do possível curso daguerra e das suas próprias possibilidades de vitória. Eles, sobretudo,dificilmente serão capazes de imaginar o aspecto que o seu país e ahumanidade em geral terão depois da guerra. De facto, é como se nostempos anteriores a guerra de 1914 o mito nacional e a embriaguez dehegemonia que ele despoletou — parafraseando a conhecida expressãodo «sonho americano», poderia dizer-se «o sonho alemão» — tivessemlesado fortemente o sentido da realidade dos responsáveis militares epolíticos da altura pelo destino alemão, mas também, muitas vezes, odas camadas dirigentes inglesas, francesas e russas. Igualmente na vés-pera da Segunda Guerra Mundial, deparam-se-nos, entre homens emposições de chefia, como Hitler, Chamberlain, Pérain e mesmoEstaline, perdas semelhantes do sentido da realidade, com perturba-ções desse sentido devido às próprias ilusões. As camadas dirigentes daAlemanha do Kaiser não faziam, manifestamente, uma idéia clara doque poderia significar para o decurso da guerra a possível — e, em faceda ofensiva alemã, provável — entrada dos Estados Unidos na guerra.Sociologicamente impreparados, não faziam, certamente, urna idéiadas possíveis e talvez prováveis conseqüências sociais de uma guerra.

Bismarck tinha uma idéia definida de que a política externa alemãnecessitava de um cuidado especial para evitar que a Alemanha,enquanto «país do meio», se visse envolvida numa guerra em duasfrentes, ou seja, a oeste e a leste. Ele entendia mesmo que a solidarie-dade lingüística e histórica da América com a Inglaterra, e assim, tam-

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bem, a sua posssível intervenção numa guerra ao lado da Inglaterra,poderia ter uma influência decisiva no equilíbrio de poderes naEuropa.

A Guilherme II e aos seus conselheiros faltava, manifestamente,este sentido da realidade. Pode parecer estranho dizer-se isto do repre-sentante duma velha linhagem aristocrática - mas o certo é que esteimperador tinha algo de arrivista, como, aliás, Hitler, que o era defacto. O Kaiser ajustava-se a uma época em que o ouro velho e a sólidapatina do antigo povo civilizado tinham sido reiteradamente ultrapas-sados pela ascensão da nova riqueza, em conseqüência das rápidasindustrialização e modernização. Face ao velho imperador, ao avô, queainda se mantivera aferrado à simples tradição militar da nobreza prus-siana, o neto encarnava a nova mentalidade arrivista, que encontravarepresentantes por todo o país. Os novos alemães de então falavamalto, eram fanfarrões, enérgicos e brutais.

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E não estavam sozinhos. Na Inglaterra, manifestavam-se tendên-cias análogas. No entanto, ali, tal era designado com uma palavra algoridicularizadora —jingoism:

We don't want tofight;but, byjingo, ifwe do!

A Grã-Bretanha tivera um desenvolvimento do Estado bem menosacidentado do que a Alemanha. Os Britânicos de então tinham o seulugar ao sol e estavam muito seguros do seu próprio valor. Em Françahavia grupos bastante activos que reclamavam uma desforra da derrotade 1871. Havia monárquicos inteligentes que advogavam a restaura-ção da Grande França mediante o reatar da velha e gloriosa tradiçãomonárquica francesa.

A febre hegemônica alemã revestia-se de um tom peculiar, talvez,entre outras razões, porque para os Alemães se tratava de uma coisanova. Isto tornou o avanço da Alemanha em direcção a uma posição dehegemonia, para além da paridade com as outras grandes potênciaseuropéias, particularmente arrebatador. E sobejamente conhecidocomo muitos milhares de jovens, quando a guerra esperada veio porfim em Agosto de 1914, marcharam cheios de entusiasmo para ocampo de batalha. No entanto, os militares de ambos os lados tinham-seenganado nos cálculos. Como se sabe, eles haviam especulado sobreuma guerra curta, na base de um poder militar muito concentrado,que acabaria numa vitória rápida e esmagadora. De uma maneira geral,a imagem de guerra que se tinha à frente dos olhos era a da guerra de1870/71. Ao embate das duas massas de exércitos inimigos, sucedeu o

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martírio da extenuante guerra de trincheiras. Todavia, o sentimento deque a Alemanha estaria predestinada para a vitória não se desvaneceuimediatamente. «Venceremos, porque temos de vencer», dizia cadaum para si.

Não é de todo inútil recordarmos a aparente segurança fornecedorade certezas deste mito social. Se não levarmos em consideração a cer-teza absoluta na vitória que tinham largas camadas dirigentes aristo-cráticas e burguesas no ano de 1914 e ainda em 1915, não poderemosentender a reacção destas camadas à derrota de 1918. Aqueles gruposda burguesia e da aristocracia particularmente atingidos pela embria-guez da hegemonia, e que mesmo quando a derrota já estava próximaainda reclamavam a anexação de territórios econômica e estrategica-mente importantes da Bélgica e, talvez até, da França, nunca tinhamsequer considerado a possibilidade de um desastre. O mito da vocaçãonatural da Alemanha para a grandeza estava profundamente arraigadoem muitos espíritos. Por fim, quando aconteceu, a derrota era incom-preensível. As pessoas negavam-na. Não fora propriamente uma der-rota. A Alemanha tinha sido traída. Uma punhalada nas costas, sobre-tudo por parte do operariado (e talvez também dos judeus), tornouimpossível aos soldados da frente impedir a ruptura das linhas peloinimigo. Desejaríamos às gerações de hoje que tivessem experimen-tado a firmeza de convicção com que muitos homens, naquele tempo,para se enganarem, para ocultarem de si próprios a embriaguez hege-mônica subjacente, acreditavam na lenda da punhalada, por forma aque vissem como uma tal embriaguez pôde arrebatar tantos homens,também na Alemanha.

Já referi, noutro contexto, que, se os mitos desapareceram em largamedida devido ao saber sobre a natureza, já o conhecimento dos acon-tecimentos sociais ainda está muito impregnado de mitos. A célebrelenda da punhalada é um exemplo do papel e da função dos mitos navida social dos homens. A lenda pode ter sido posta conscientementeem circulação pelos homens, porque a idéia de uma derrota lhes erainsuportável. O encobrimento da realidade assim provocada, tenha elesido posto em circulação pela astúcia propagandística de círculos nissointeressados ou não, correspondia a uma situação emocional que jáestava presente em largos círculos da nobreza e da burguesia alemãsenquanto força determinante da acção política. Esta situação emocio-nal explica a disposição para acreditar no apunhalamento; explica a

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receptividade a mitos sociais mais globais, de que a lenda da punha-lada foi um primeiro ensaio.

Em íntima ligação com a embriaguez hegemônica que, numasituação determinada, se pode propagar a vastas camadas de um povoencontram-se, normalmente, fantasias colectivas, segundo as quais opovo a que se pertence e, assim, o próprio indivíduo estão destinados àgrandeza - o que significa, habitualmente, à dominação de todos osoutros povos à sua volta -, seja por ordem divina, seja pela história oupela natureza. A luta pela hegemonia sobre outros povos encontra umalegitimação na crença numa missão desse povo entre os outros povos.Em tempos passados, esta crença na missão de um povo como justifica-ção da guerra de conquista tinha, normalmente, um caracter religioso.A embriaguez hegemônica dos Árabes encontrou a sua expressão nacrença na missão das tribos árabes de lutarem pela expansão da dou-trina de Maomé; a dos cruzados, na fé na missão de lutarem pela pro-pagação da doutrina de Cristo e, particularmente também, pela liber-tação da Terra Santa do domínio dos infiéis. Em tempos mais recentes,Franceses e Ingleses justificaram a extensão da sua hegemonia a povosde outros continentes através da respectiva missão na qualidade derepresentantes da civilização. E, nos nossos dias, tendências missioná-rias semelhantes desempenham novamente um papel na luta hegemô-nica entre a União Soviética e os Estados Unidos.

Faz parte das características da tardia pretensão hegemônica alemão facto de, tanto quanto o podemos observar, a sensibilidade dos seusrepresentantes dispensar qualquer justificação através de uma missãoobjectiva, de uma tarefe impessoal. A conversão ao islamismo levantouuma barreira às carnificinas das campanhas de conquista árabes. A lutade Napoleão pela unificação da Europa sob a hegemonia da Françaligou-se, inicialmente, a uma luta pelos ideais da Revolução Francesa,mais tarde, a uma luta contra o velho absolutismos não esclarecido e afavor do absolutismo esclarecido, que teve a sua expressão no CódigoNapoleómco. Depois de 1870f a luta da Alemanha por uma posiçãohegemônica entre os Estados europeus foi entendida pelos seus repre-sentantes, pelo que se me afigura, em maior medida que a deNapoleão, sem a idéia de uma missão objectiva, antes, directamente,como uma luta pelo poder. O que estava, talvez, ligado ao facto de osAlemães terem sofrido, nos séculos da sua impotência política e mili-tar e, particularmente, durante a Guerra dos Trinta Anos, as conse-

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quências do poder mais forte dos outros Esrados num grau muitosuperior aos outros povos europeus. O que, no encanto, conduziu a quea ambição de alcançar o poder por todos os meios parecesse a muitosalemães uma coisa justificada.

Recordo-me de que já em tempos anteriores a 1914 se ouviaexpressões do gênero: «O palavreado sobre a humanidade é um dispa-rate. O que interessa na política externa de um Estado e na políticainterna das classes e dos partidos é, simplesmente, o poder.» Estanudez na ambição de poder por todos os meios criou uma certacegueira em relação ao facto de, ao primado indubitável da luta pelopoder na política dos Estados mais velhos e, se se pode dizer assim,nacionalmente mais saciados, serem impostas determinadas barreiraspor uma mais ou menos sólida educação de consciência nacional. Já notempo do imperador Guilherme II e, depois, de uma forma maisdesenvolta, no tempo da República de Weimar, nos círculos que sedenominavam a si próprios «círculos nacionais», foi rejeitada a idéiade que pudessem existir restrições civílizacionais, fronteiras da cons-ciência em relação à ambição de poder no interesse nacional. Como tes-temunho da mentalidade do período imperial, ficou-nos na memória aexpressão «sonolência humanitária». Não era necessária nenhuma legi-timação — a Alemanha queria, simplesmente, como se dizia, ter o seu«lugar ao sol». O mito nacional-socialista desenvolveu esta atitudefundamental, já rnuito difundida entre os círculos «nacionais» duranteo último imperador, num sistema de crenças que, em conformidadecom a estrutura democrática da República de Weimar, pudesse encon-trar ressonância em largas camadas populares.

E possível que não se tenha dedicado tanta atenção quanto a devidaà característica ruptura com a tradição burguesa alemã verificada depoisde 1870. No período do absolutismo pré-revolucionário, as figurasmais representativas da burguesia alemã tinham desenvolvido uma tra-dição cultural, em que os ideais do humanismo desempenhavam umpapel central. No Segundo Império, e particularmente durante o ter-ceiro e último imperador, os expoentes desta tradição, que sem dúvidaainda existiam, foram gradualmente postos à margem no seio da bur-guesia, passando cada vez mais para o primeiro plano - talvez sob apressão de assegurar a grandeza da Alemanha e, se possível, a sua hege-monia sobre os povos da Europa — um nacionalismo anti-humanitário,sem escrúpulos de consciência.

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Já falei do choque que representou a derrota de 1918. Muitos ale-mães, sobretudo jovens oficiais e estudantes, sentiram a capitulaçãocomo um atleta que, em plena corrida, embate subitamente num muro.Eles estavam absolutamente convencidos de que a Alemanha se achavapredestinada para a guerra. Esta crença tinha para muitos alemães amesma certeza que para outros tem uma fé religiosa. Até ao últimomomento, eles não duvidaram da vitória final. De súbito, tudo acabou.Nesta situação, a idéia de que só uma traição, uma punhalada pelas cos-tas, podia explicar a derrota da Alemanha era redentora. Assim armados,podiam dedicar-se de novo a conduzi-la ao seu destino histórico, à suagrandeza, enquanto potência hegemonia natural da Europa. A tarefa,nos seus traços mais gerais, era perfeitamente clara para muitos oficiais,acadêmicos, industriais e muitos outros, desde o dia da conclusão da pazem Versalhes. Estava em jogo libertarem-se das cadeias deste acordo,procederem ao rearmamento, repararem a derrota da Alemanha, provo-cada pela traição, através de uma vitória definitiva e, assim, reconduzi-laao seu destino histórico.

Não vou investigar aqui porque é que estes objectivos, que logoapós a conclusão da paz já se achavam bem definidos entre os denomi-nados «círculos nacionais», só puderam ser seriamente promovidos porHícler e Hindenburgo, cerca de doze anos mais tarde, no contexto deuma grave crise econômica. Não faltam, porém, provas documentaisda fixação precoce destes objectivos, nem de que as intenções de Hítleriam indubitavelmente nessa direcção. Ele ficaria certamente satisfeitose fosse possível alcançar na Europa uma posição hegemônica para aAlemanha sem recorrer à guerra. No entanto, era perfeitamente evi-

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dente que não hesitaria em declarar a guerra, fazendo entrar em acçãoo novo exército alemão entretanto fortalecido, a qualquer Estado quese atravessasse no caminho da Alemanha para a posição de grandepotência. Os serviços de informação dos aliados ocidentais, bem comoos de Estaline, não poderão ter feito um bom trabalho, ou, então, nãoencontraram audiência. Como se poderá explicar de outro modo quetanto Chamberlain como Estaline, segundo parece, acreditassem real-mente que podiam, através de acordos e sempre mais concessões,impedir Hitler e os seus de compensarem a derrota de 1918 com umaguerra vitoriosa?

Se observarmos mais atentamente, descobriremos, também aqui, acegueira peculiar dos homens que conduzem os destinos dos povos. Asmuitas concessões que foram feitas a Hitler, as conquistas que ele con-seguiu sem disparar um único tiro de canhão, contribuíram, apenas,pelos vistos, para nele reforçar a certeza mágica de que também ganha-ria uma guerra. Olhando para trás, reconhecemos nitidamente oenorme esforço que foi exigido a todo o povo alemão para se manterpronto e apto para a guerra. Hitler vivia, mais do que talvez se tenhanotado, num mundo semimítico. Um raro talento para ver com rea-lismo as correlações de poder entre os Estados e no interior do Estadoligava-se, nele, a um receio mágico de inimigos internos, que, muitasvezes, exagerava hiperbolicamente o perigo real. Uma organização euma vigilância extremamente eficazes e, como dantes se dizia, alta-mente racional e realista da totalidade do povo encontrou a sua legiti-mação na certeza mágica de que este povo estaria predestinado por umdestino indefinido — pela natureza? — a ser o Povo de Senhores daEuropa, se não do mundo inteiro.

Como ele procedia com aqueles que o seu mito estigmatizavacomo inimigos é sobejamente conhecido, mas talvez seja útil chamar aatenção para a ligação com o traço caracterial da época do Kaiser, a queacima me referi. Falei da ambição de alcançar a supremacia sem escrú-pulos de consciência e sem outra legitimação que não fosse o destinohistórico e o valor transcendente do próprio grupo. Nas declarações daépoca do Kaiser, encontram-se abundantes referências de que, paramuitos membros daqueles círcuíos que se consideravam «nacionais», opróprio facro de ser alemão representava o valor supremo. O mitonacional-socialista da Raça de Senhores alemã prolongou em linharecta a tradição imperial, numa forma mais adequada à popularização e

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mais elaborada enquanto sistema de argumentação. Os indivíduos deraça germânica eram chamados pela natureza e pela história a consti-tuir um escol de senhores, uma espécie de aristocracia da humanidade.As outras raças, sobretudo os Judeus e os Negros, eram inferiores e,por isso, inimigos naturais. O melhor seria exterminá-los.

Aquilo cuja recordação, ainda hoje, deixa muitos homens preo-cupados é o íacto de, entre os Alemães, ter revivido um mito que nãosó contrariava os principais esforços da nossa época por uma maiorigualdade entre os homens na Terra como, indo mais longe, com basena referência ao valor superior do próprio grupo, instituía a desigual-dade entre os homens como um valor em si. A humanidade desenvol-vera-se a muito custo até um ponto em que, embora ainda existissemde facto desigualdades gritantes entre diferentes grupos, a igualdadeexistencial e a paridade social eram largamente reconhecidas como overdadeiro objectivo a atingir. Este trabalho de gerações era, agora,explicitamente refutado.

Além disso, o que, na nossa memória, torna o nacional-socialismo,ainda hoje, tão intolerável não é simplesmente a brutalidade dos seusrepresentantes. Brutalidades de toda a espécie são, no nosso mundo,uma coisa trivial. O que ainda hoje assusta é, por um lado, a edificaçãominuciosa, quase racional ou realista, de uma grande organização e dautilização de tecnologias científicas e, simultaneamente, a neutraliza-ção e a anulação radicais da consciência face ao sofrimento e à morte demilhões de homens, mulheres e crianças - de seres humanos que nãorepresentavam qualquer perigo para o grupo dominante, que não pos-suíam quaisquer armas e que foram chacinados pior do que reses nummatadouro, de uma maneira abominável.

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Gostaria muito de poder dizer que tudo isto, que os horrores dotempo de Hitler e da Segunda Guerra Mundial estão agora, passadosquarenta anos, mais ou menos esquecidos. Eles não estão, porém,esquecidos. A recordação de Hitler e da grande matança acha-se aindaextremamente viva por toda a Terra, em muitos grupos de homens,como símbolo de algo extremamente sinistro, e há poucas perspectivasde que a recordação do domínio de Hitler e dos muitos milhões dehomens que, de todos os lados, perderam a vida em conseqüência dassuas decisões desapareça num futuro previsível da memória da huma-nidade. Hoje, choramos estes mortos — eu, sobretudo, os meus, outros,os seus. Eles não foram esquecidos. Este dia do quadragésimo aniversá-rio da conclusão da paz é um dia em que nos propomos tudo fazer paraque, dentro de oitenta anos, possamos comemorar o mesmo dia empa2, como um dia de festa. Mas não se trata de um dia do esqueci-mento.

Não se presta ao povo alemão um bom serviço quando se pretendeque, agoraf com a celebração conjunta por todos os povos beligerantesdo dia em que a Segunda Guerra Mundial terminou, também a pró-pria guerra e a grande matança a ela ligada se acham esquecidas. Eu seique há muitos alemães que dizem: «Eu não quero ouvir falar mais detudo isso.» Esse é, porém, o caminho errado. Hitler e os seus actos nãodesaparecem da memória da humanidade pelo facto de não se falarmais deles. A forte tendência para vencer o passado reprimindo-o temcomo conseqüência, segundo me parece, o não se conseguir vencê-lo.A maioria dos alemães hoje vivos não teve nada a ver com Hitler ou comos nacionais-socialístas. Todavia, é um equívoco acreditar que a incri-

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minação do nome alemão através da memória da época hitleriana possaser dissipada pelo facto de muitos alemães de hoje, enquanto indiví-duos, nada terem a ver com os accos dos nacionais-socialistas. O queacontece é que todos os homens transportam consigo, no seu habitaspessoal, particularidades do babítus do seu grupo, e que o destino decada homem singular é determinado também pelo destino e pela repu-tação dos grupos a que ele ou ela pertencem.

Eu sei demasiado bem em que medida o meu destino pessoal foideterminado por eu ser tanto alemão como judeu. Como judeu, tive deabandonar a Alemanha. Porém, ao seguir para o exílio na França edepois na Inglaterra, fui internado como alemão, juntamente comoutros alemães, em Inglaterra, depois do avanço dos grupos de exércitoalemães no Ocidente e o correspondente aumento do receio de umainvasão. Ainda me recordo nitidamente de como o comandante inglêsdo campo de concentração nos reuniu, um dia, com a intenção expressade nos alegrar, comunicando-nos para tanto a novidade, em seu enten-der muito feliz para nós, de que as tropas alemãs teriam tomado Paris.Não foi possível fazer entender aos Ingleses que, para nós, isso não erauma notícia feliz, visto, assim, aumentar o perigo de invasão. Simul-taneamente, porém, os nacionais-socialistas internados no campo deconcentração procuravam explicar aos judeus alemães, com os olhosbrilhantes de alegria, aquilo que as tropas de Hitler fariam com eles,caso lograssem invadir a Inglaterra. Talvez elas até decidissem vir pri-meiro à ilha de Man, onde se encontrava o campo de concentração,para começar aí a limpeza. Posso apenas fazer uma pequena idéia doque tiveram de sofrer os meus antepassados devido ao facto de os seusantepassados, séculos antes, terem sido presumivelmente responsáveispela crucificação de Cristo.

Que o destino e a reputação individual de cada homem sejam, emlarga medida, determinados pelo destino e pelo prestígio de grupos - ena nossa época, particularmente, pelo destino e prestígio dos Estados,das nações, a que pertencem os indivíduos - é, pura e simplesmente,um facto, um aspecto do mundo dos homens. Não se trata de saber seisso é bom ou mau; é assim que acontece. Em conformidade com isto,sinto muitas vezes, quando amigos e conhecidos meus cristãos medemonstram com toda a seriedade que nunca tiveram nada a ver com onacíonal-socialismo, a inutilidade dos seus esforços. Eles têm toda aminha simpatia, mas sei, também, que eles não estão a ver o principal

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da questão. A maldição deste passado alemão recente não é superávelatravés de meras referências à inocência ou à cumplicidade de indiví-duos singulares. Trata-se de um problema do destino social dosAlemães e, muito particularmente, da sua identidade nacional. Esta foimanchada por barbaridades, que não são fáceis de afastar da memóriados homens. Isto é assustador e aflitivo, pois o número de jovens ale-mães, que, de facto, não têm absolutamente nada a ver com Hitler e assuas hostes cresce constantemente. E, no entanto, também pesa sobreeles a memória deste passado colectivo da nação.

Permitam que me detenha um momento para vos dizer que, se meesforço por desvendar esta realidade, não é porque tenha censuras ouacusações em mente. Nada está mais longe de mim. Falo, um pouco, àmaneira de um médico. A participação do indivíduo no destino e nareputação do respectivo grupo é, como já foi referido, um facto. Fazparte do destino dos homens, é um aspecto da conditio humana. Nadamais perigoso do que o pendor para evitar uma tal realidade pelo enco-brimento ou pelo recalcamento. Só olhando-a de frente, com toda acoragem e dererminação, podemos colocar-nos a questão: que fazer emtal situação? E esta é, de facto, a questão decisiva. A identidade nacio-nal dos Alemães foi manchada. Os alemães ocidentais têm a possibili-dade de discutir abertamente esta questão. Não creio que o modocomo os alemães orientais procuram ultrapassar o problema possa terêxito. Eles parecem actuar segundo a máxima: «O nosso fato velhotem nódoas. Então, façamo-lo desaparecer e vistamos um novo.» Nãoestou totalmente certo de, neste contexto, poder dizer muita coisasobre as tarefas que se impõem quando se coloca o problema damaneira como eu o tentei colocar. No entanto, talvez seja útil esboçarmais claramente o problema em causa através de uma comparação.

Trata-se, sem dúvida, de um problema ttágico. Por acaso, tive hápouco tempo ocasião de reler a tragédia de Sófocles Edipo Rei. Umagrande desgraça, uma peste, abateu-se sobre o povo de Tebas. O reiÉdípo fala ao seu povo. E fala-lhe com um calor, com uma simpatiaque comovem o leitor duma maneira particular, talvez porque elesestejam, muitas vezes, totalmente ausentes das relações contemporâ-neas entre dirigentes e dirigido. «Meus filhos», é assim que Edípotrata os Tebanos reunidos. Ele diz-lhes que partilha as preocupaçõesdeles e que tudo fará para descobrir porque é que os deuses condena-ram Tebas à maldição da peste. Gradualmente, torna-se evidente que o

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culpado é ele próprio. Ele próprio, sem o saber, assassinou o pai e casoucom a mãe. Sófocles torna bem claro que Édípo cometeu este crimeodioso com toda a inocência. Ele não sabia que o ancião que o desafiou,e que ele acabou por matar, era o seu pai. Não sabia que a mulher, comquem acabou por casar era a sua mãe. Pior ainda: os deuses, na suaarbitrariedade incompreensível, tinham imposto a Edipo, enquantomembro de uma família maldita, este mesmo destino já antes do seunascimento; eles haviam predeterminado que ele seria o assassino dopai e o marido da mãe. Inocente, ele tornou-se culpado por decisão dosdeuses, como castigo por um delito que os seus antepassados tinhamcometido. O manchar do bom nome dos Alemães pela desumanidadedo Terceiro Reich não assenta numa maldição dos deuses. Os diferentesgrupos de povos da Terra têm imagens colectivas mais ou menos exac-tas uns dos outros. A imagem colectiva dos Alemães na memória deoutros povos, e talvez na sua própria memória, foi manchada peloTerceiro Reich. Noutros países, as vozes da recordação deste passadotornaram-se menos audíveis. A República Federai muito fez para queisso fosse possível. O regime parlamentar, antes odiado e combatido pelamaioria dos alemães, funciona muito bem. O «milagre econômico»contribuiu muito para fortalecer a autoconfiança dos alemães federais.E foi também graças à prosperidade econômica que a Alemanha se tor-nou para outros países um aliado e um parceiro bem-vindo, em espe-cial no caso dos países menos desenvolvidos da África e do resto domundo. Todavia, a questão sobre que gênero de tradições nacionais e,principalmente, que características do caracter nacional alemão torna-ram possíveis as barbaridades do Terceiro Reich, assim como a outraquestão sobre se esta tradição nacional poderá de novo prevalecer, nãose tornou, decerto, ociosa.

O problema de que aqui se trata será mal entendido, se for apre-sentado como um caso de culpa colectiva. O problema para que tentochamar a atenção não é de culpa, mas de factos. A sociedade alemãcontemporânea saiu da anterior. Como noutros Estados nacionais, tam-bém na Alemanha existe uma continuidade na tradição dos comporta-mentos. A grande linha desta tradição é bastante mais quebrada doque a da maioria dos outros Estados nacionais europeus — por razõesque não posso aqui abordar. Por conseguinte, também o sentimento deidentidade nacional, a consciência do valor próprio dos Alemães,muito particularmente na República Federal, são mais vacilantes, maisinseguros, numa palavra, mais problemáticos do que na maioria dosoutros Estados europeus. Os Dinamarqueses, os Franceses, os Ingleses,apesar da perda de poder e de ítatus que sofreram todos os países euro-peus, ainda não têm, actualmente, grandes dificuldades com a suaidentidade nacional. Os Alemães, e principalmente os alemães fede-rais, têm dificuldades consideráveis. Não se fala muito disso, em parte,porque, devido à consciência nacional convulsivamente exagerada doTerceiro Reich, quaisquer tentativas dos Alemães para falarem publi-camente da sua consciência nacional levanta a suspeita de que se estaráa querer reavivar a exagerada consciência nacional do Terceiro Reich.A este respeito, sou totalmente insuspeito. É mais fácil para mim doque para muitos outros alemães dizer que o problema da identidadenacional da República Federal deveria, sem convulsões e, se possível,sem ligação à tradição do nacionalismo alemão posterior a 1870, serexaminado a fundo e discutido publicamente como um problemahumano, particularmente das gerações mais jovens.

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O problema de identidade nacional da República Federal tem,como noutros casos, duas facetas que se completam. Primeiro, temos oproblema da nossa identidade: que espécie de homens somos nós,enquanto alemães federais? Quais as características, qual o sentido e ovalor da nova vida colectíva alemã federal? Como podem os Alemãescriar novos valores dentro do concerto europeu? Estas questões nãoserão tão simples como parecem, precisamente porque a imagem doTerceiro Reich, ao cabo de quarenta anos, ainda lança uma sombrasobre a identidade actual dos Alemães.

Estas questões são difíceis, em segundo lugar, porque uma identi-dade separada dos alemães federais, para a maneira de sentir de algunsdeles, parece consagrar a divisão do velho império alemão. Todavia,talvez não se devesse estar tão receoso a este respeito. A Baviera, aSaxónia, a Prússia também já foram Estados autônomos, com umadeterminada identidade própria, e talvez a possuam ainda hoje, o quetornou a unificação final, talvez, mais difícil, mas de modo algumimpossível. Num futuro previsível, não é de esperar uma análoga uni-ficação dos dois Estados alemães contemporâneos. Ela não será impe-dida pelo facto de a República Federal começar a promover, final-mente, -com a maior determinação, o seu valor próprio e, assim, a suaidentidade própria.

Seja qual for o problema nacional da República Federal a que sealuda, ele é sempre doloroso e não isento de perigos. E, por conse-guinte, não se fala disso. No entanto, o problema de identidade na-cional da Alemanha Ocidental é um problema sério, e eu acho que sedeveria falar sobre ele. Talvez não achem incorrecto referi-lo neste dia,pois, (k facto, embora não formalmente, o 8 de Maio de 1945 foi o diado nascimento da República Federal, o dia que tornou possível o apa-recimento de uma Alemanha relativamente livre, governada por umregime parlamentar e, neste sentido, democrática. Talvez se possa dizerhoje, ao fazer a retrospectiva após quarenta anos, que a formação esta-tal que então saiu da três zonas ocidentais de ocupação era algo novona história da Alemanha. Pode ser que não se tenha aproveitado sufi-cientemente a oportunidade de renovação. Trata-se de uma falta queainda se poderá, certamente, reparar.

Neste contexto, lembro-me sempre de um episódio da história daDinamarca. Em 1866, a Dinamarca foi derrotada pela Prússia. As per-das territoriais, principalmente no Schleswig-Holstein, foram conside-

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ráveis. Na altura, houve na Dinamarca homens que perceberam que ofuturo do país estaria ameaçado, caso não se facultasse o acesso a umnível de formação superior à massa da população camponesa.Grundtvig, para contrabalançar a derrota, que fora sentida quasecomo uma catástrofe nacional, lançou os alicerces de um extenso movi-mento de criação de universidades populares, no fundo, portanto, ummovimento de renovação de toda a nação. A par disso deu-se tambémum fortalecimento da consciência nacional, até então moderada einofensiva. As conseqüências deste movimento de renovação são hojeainda perceptíveis. Ele permitiu aos Dinamarqeuses sobreviverem,com um sentimento de tranqüila coesão nacional, até mesmo ao pe-ríodo da ocupação na guerra de Hitler, para outros povos tão desesta-bilizador.

A Alemanha não tem só uma, mas duas pesadas derrotas militaresatrás de si. Os seus dirigentes, primeiro o Kaiser e depois Hitler,mobilizaram por duas vezes todo o potencial do povo alemão para con-quistarem para a Alemanha uma posição hegemônica na Europa.O objectivo era atraente — tão atraente que talvez só um estadista docalibre de Bismarck poderia ter compreendido que o potencial bélicoda Alemanha, enquanto «país do meio», não era suficientementegrande para conduzir uma guerra prolongada e, ao fim e ao cabo, vito-riosa contra a maioria das outras grandes potências européias, e, princi-palmente, contra os Estados Unidos da América.

Bismarck foi um grande homem. No entanto, a sua política foi,no essencial, uma política de moderação. Após ter vencido aÁustria, ele apercebeu-se imediatamente da necessidade de conquis-tar a amizade da Áustria, de fazer do inimigo de ontem o amigo dehoje. Ainda não estava cego pelo mito nacional da época do Kaiser ede Hitler. Mais tarde, as camadas dirigentes da Alemanha, embria-gadas com a idéia de uma hegemonia alemã, perderam a noção dagrandeza do risco que faziam correr ao povo alemão. Nunca foi muitoprovável que os Estados Unidos assistissem passivamente ao nasci-mento de um grande império alemão sob uma direcção imperial oumesmo ditatorial, portanto, de um possível rival no espaço euro-asiá-tico, com uma ideologia perigosamente agressiva. Todavia, a cegueiraprofissional, tanto do Governo imperial como da chefatura de Hitler,impediu-os de tomarem seriamente em consideração o potencial deguerra americano.

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No fim de cada uma das duas guerras hegemônicas perdidas pelosAlemães, os seus dirigentes safaram-se, um para a Holanda, o outro namorte, deixando ao povo as migalhas que para ele tinham esboroado.Depois de Bismarck, o povo alemão não teve grande sorte com os seusdirigentes.

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A luta pela hegemonia perdida pela Alemanha foi, tanto quanto édado ver, a última tentativa de um Estado europeu para conquistar asupremacia na Europa. A Alemanha foi a grande derrotada dessaguerra, mas não a única. Também a França e a Inglaterra, nominal-mente vencedoras da Segunda Guerra Mundial, pertencem, de facto,aos Estados que a perderam. Oa verdadeiros vencedores foram a UniãoSoviética e os Estados Unidos. Ambas estas potências passaram, no fimda guerra, para o vértice da hierarquia dos Estados não só da Europamas do mundo inteiro. Estes dois Estados possuíam, agora, as duasorganizações militares mais fortes do mundo.

Não estou bem certo de que seja suficientemente claro o problemaperante o qual se viram as chefias americana e russa quando Hitler eGoebbels se furtaram pelo suicídio à responsabilidade pelos Alemães,que eles durante tanto tempo tinham chamado a si, e quando a resis-tência alemã se desmoronou. As tropas russas vindas de leste e as tro-pas americanas e aliadas vindas de oeste marcharam através daAlemanha ao encontro umas das outras. O que não deixava de seruma situação perigosa, pois os vencedores ocidentais e orientaispodiam, facilmente, durante o seu avanço, entrar em conflito entre si.Era, portanto, necessário que se chegasse a um acordo sobre as frontei-ras entre as zonas de ocupação das forças militares oriental e ociden-tal, caso se quisesse evitar um possível confronto armado entre ambosos exércitos.

Não era necessário ser-se particularmente arguto para prever que

uma fronteira instituída por acordo entre os exércitos oriental e oci-dental se transformaria numa fronteira duradoura. Podia-se antever

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que os Russos nunca se retirariam dos territórios conquistados pelo seuexército sem pressão militar; que não prescindiriam voluntariamenteda hegemonia sobre os territórios por eles ocupados, sobretudo sobreos territórios alemães. Eles tinham sofrido perdas gigantescas e que-riam a maior segurança possível para o seu território central. Nadaestava, porém, mais longe dos Americanos e dos seus aliados do que aidéia de se envolverem numa guerra com os Russos por causa da uni-dade da Alemanha ou da liberdade de outros territórios ocupados pelaUnião Soviética. Em contrapartida, para outros Estados europeus,cujos cidadãos tinham sofrido sob a ocupação alemã e que haviamsaboreado antecipadamente através das SS e da Gestapo o que seriauma hegemonia da Alemanha de Hitler - particularmente os Fran-ceses -, era apenas justo que a Alemanha fosse dividida em duas partespela fronteira entre as tropas ocupantes. O colosso alemão, no Centroda Europa, tinha tentado por duas vezes obter a hegemonia no conti-nente europeu por meio da guerra. Esta tentativa fracassou por duasvezes, depois de guerras devastadoras. Os Alemães, ao ocuparem outrospaíses, particularmente durante a guerra de Hitler, apresentando-secomo uma raça de senhores, tinham feito poucos amigos e muitos ini-migos.* No fundo, todos estavam muito satisfeitos por este temívelcolosso militar do Centro da Europa ter sido dividido em dois e ter-setornado, assim, menos ameaçador para os seus vizinhos.

Todavia, a divisão da Alemanha em duas zonas de ocupação e,depois, em dois Estados, tal como a divisão da Coréia, foi, em últimaanálise, apenas uma conseqüência da rivalidade que foi crescendo apouco e pouco entre as duas potências militares mais fortes da Terra, aUnião Soviética e os Estados Unidos. Chamei atrás a atenção para aregularidade com que, numa hierarquia de Estados, após uma série delutas eliminatórias, dois ou, às vezes, também três Estados se encon-tram à cabeça deste grupo de Estados como rivais na luta pela hegemo-nia, normalmente sem que o tenham pretendido ou planeado. Elesvêem-se, assim, confrontados com um dilema, pois cada um dos doisou três candidatos à hegemonia tem forçosamente de recear que a suaindependência e a sua liberdade de decisão lhe venham a ser roubadaspelo outro, caso este se torne mais forte do que ele. Eu referi os casosde Esparta e Atenas, dos Gregos e dos Persas, de Roma e de Cartago,dos Habsburgos e dos Bourbons, e poderia apresentar ainda muitosoutros exemplos. Nos nossos dias, os Estados Unidos e a União

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Soviética encontram-se, nolem volens, nesta situação dilemática, comorivais na luta pela hegemonia entre os Estados da Terra.

Em épocas passadas, a par de tais lutas bipolares pela hegemonia,ocorriam também contrastes entre formas internas de dominação e desociedade. A longa luta eliminatória pela hegemonia entre Esparta eAtenas, por exemplo, travou-se a par do antagonismo dos sistemas soci-ais e das classes sociais que imperavam em ambas as cidades-estado.À Atenas democrático-popular opunha-se a Esparta aristocrático-oli-gãrquica. Quando venceu, Esparta impôs aos Atenienses a forma dedominação aristocrático-oligárquica dos chamados Trinta Tiranos.Do mesmo modo, a diferença entre as formas de dominação e de soci-edade também desempenham, actualmente, um papel decerto impor-tante nos conflitos pela hegemonia entre a União Soviética e osEstados Unidos, travados na antecâmara de uma possível guerra.Nestas lutas pela supremacia, desempenha um papel relevante o factode a União Soviética ser uma ditadura de um partido, os EstadosUnidos um regime parlamentar bipartidário e o facto de, em ambosos países, dominarem ideologias com concepções antagônicas domundo.

No entanto, o grande perigo que a ameaça recíproca destes doiscandidatos à hegemonia representa para nós, para toda a humanidade,assenta, em primeiro lugar, naquilo que o seu antagonismo tem emcomum com as lutas anteriores pela hegemonia. Esse perigo assenta nofacto de os dois Estados militares, que são de longe os mais fortes, seconfrontarem como rivais. A corrida aos armamentos entre estes doisEstados, que justificadamente nos preocupa, conheceu incontáveis pre-cedentes. Todos eles mostram como é extremamente difícil quebrar omecanismo social deste movimento recíproco de escalada. Só quandose deixar de considerar este antagonismo crescente entre a UniãoSoviética e os Estados Unidos como algo de singular, só quando se virque há centenas de casos precedentes, que se trata de uma configuraçãosocial com certas regularidades, com processos que se repetem, sóentão se poderá destacar claramente o que há de original na situação dehoje. Entre as regularidades desta configuração conta-se uma tendênciapolarizadora de muitos outros Estados da hierarquia estatal, cujo vér-tice é constituído pelas duas potências militares antagônicas. Apesarde todas as variações, que podem sempre ocorrer, os outros Estados doconjunto geral dos Estados mostram uma forte tendência para se um-

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tem a um ou a outro dos dois Estados hegemônicos e para se agrupa-rem à sua volta como limalha de ferro em torno dos pólos de umgrande íman.

Às regularídades desta configuração pertencem igualmente as mano-bras, por agora sem derramamento de sangue, de ambos os Estadoshegemônicos para obterem as melhores posições de assalto em caso deguerra; as manobras com vista a alcançarem posições nos territórios,maiores ou menores, situados entre os núcleos centrais dos dois própriosEstados. O conflito bélico entre ambos os Estados hegemônicos, quandoacontece, começa habitualmente por desenrolar-se nestes territóriosintermédios, situados entre as regiões centrais das potências rivais.Normalmente, cada uma delas procura formar uma zona de segurança omais ampla possível de aliados e Estados vassalos nas regiões adjacentesaos seus próprios territórios e, simultaneamente, ganhar para si aliados eEstados vassalos na zona de segurança que rodeia as regiões centrais doadversário. A constituição de uma zona de segurança em torno da suaprópria região central deve tornar o acesso a esta região o mais difícilpossível ao adversário. Em contrapartida, os aliados ou Estados vassalosda zona que rodeia o adversário devem facilitar o mais possível a pene-tração no.terrítório central do adversário ou a sua destruição.

Deixemos em suspenso a questão de saber se estas manobras comvista a uma melhor posição de assalto no período anterior à guerraainda têm, na época das armas nucleares e dos mísseis, o mesmo signi-ficado que na época dos canhões e das espingardas ou das lanças, dassetas e das espadas. Mas o determinismo da configuração e decertotambém a tradição militar, que se prolonga ininterruptamente desde otempo dos príncipes até ao dos chefes partidários e dos presidentes,exercem uma forte pressão nesse sentido. Já os czares tentaram assegu-rar bases no Afeganistão para a defesa do seu território central. Jáentão os Ingleses tentaram impedi-los. Os Americanos são agora osseus herdeiros. Por seu lado, os Russos estão contentes com as suasbases em Cuba e na Nicarágua e, não nos esqueçamos, no Vietname.E os Americanos não se poupam a esforços para os desalojar, se possívelsem intervenção do seu próprio exército, da sua perigosa proximidadena América Central. Este jogo perigoso é tão velho como os própriosEstados. Já na Antigüidade, Assírios e Egípcios procuraram ganhar ahegemonia na Palestina, Romanos e Cartagineses na Sicília, antes depenetrarem nos respectivos territórios centrais.

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Há muitas outras regularidades destas lutas bipolares pela hege-monia, que se podem observar em quase todos os casos. Quero referirainda uma delas, que pode ser assustadora, mas não tem qualquer sen-tido fecharmos os olhos. Não conheço um único caso, no desenvolvi-mento da humanidade, em que um tal conflito entre as duas potênciasmilitares mais fortes, situadas no vértice de uma hierarquia de Estados,não conduzisse, mais cedo ou mais tarde, a uma guerra, à solução doconflito latente pela força das armas. E mesmo que existisse o prece-dente de um desanuviamento pacífico, da desescalada de uma guerrapela hegemonia em fase de preparação, não poderíamos deixar deestudar mais rigorosamente a regularidade com que uma tal configu-ração conduz a um conflito armado. Na verdade, por maiores quesejam as semelhanças com processos anteriores deste tipo, a luta pelahegemonia dos nossos dias tem também, ao mesmo tempo, determi-nadas particularidades estruturais que lhe são absolutamente pró-prias. Encontramo-nos, hoje, numa situação para a qual não háquaisquer precedentes. Chegámos, assim, num duplo aspecto, ao fim

do caminho.

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Já disse que não conheço nenhum caso em que a constelação dasduas ou três potências militares mais fortes no vértice de uma pirâ-mide de Estados, em que cada uma das potências címeiras se senteameaçada na sua segurança pela outra, não conduzisse, mais cedo oumais tarde, a graves conflitos bélicos. Entre as singularidades da cons-telação actual de poderes, conta-se o facto de uma guerra entre ambosos Estados hegemônicos, no estado actual da técnica dos armamentos,ter como conseqüência a destruição generalizada de ambas as potênciashegemônicas e dos seus aliados e, possivelmente, também, uma dimi-nuição temporária ou permanente da habitabiiidade da Terra.

Muitos são da opinião de que a grandeza do perigo irá, só por si,trazer à razão os dirigentes políticos dos dois grandes Estados milita-res. Mas eu não creio que se possa imaginar a passagem da luta deposições relativamente incruenta para a guerra sangrenta entre os doisgrupos de Estados, simplesmente como resultado do que, hoje, mui-tas vezes se designa por «decisão racional». Nesta constelação daspotências ha tantas possibilidades de uma passagem irreflectida,dominada por desejos e temores, da guerra fria à guerra quente que aesperança de que a razão humana, mais cedo ou mais tarde, possa pôrtermo à imensa pressão de uma tal constelação no sentido da guerra seme afigura francamente ilusória. Eu tenho, decerto, uma ídeia do quese poderia fazer para inverter o movimento do mecanismo, que se ali-menta a si próprio, da ameaça recíproca crescente das grandes potên-cias militares na direcção oposta, no sentido de uma desesc01a"a-Talvez, mais adiante, ainda tenha tempo para dizer alguma coisasobre isso.

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Referi que a guerra pela hegemonia entre os dois maiores Estadosmilitares, que começou no fim da Segunda Guerra Mundial, nos anos40 do século xx, é singular, pois com ela a humanidade chegou ao fimde um caminho. Esta metáfora do fim do caminho não se refere só aoperigo da autodestruição da humanidade numa próxima guerra.Mesmo se abstrairmos do caracter inaudito deste perigo, descobrimosque as lutas contemporâneas pela hegemonia entre os dois Estadosmilitares mais fortes têm um caracter singular.

Os exemplos de épocas anteriores tornam claro que as lutas destetipo podem terminar num empate ou numa ascensão do Estado vence-dor à supremacia integral sobre o grupo de Estados no seu conjunto.As lutas eliminatórias das cidades-estado sumárias, assim como as dascidades-estado gregas, terminaram num empate, portanto sem queEsparta, Atenas, Corinto ou Tebas tivessem logrado conquistar umahegemonia sobre as outras cidades-estado e, desse modo, conseguissemreuni-las num Estado grego unificado. Tal aconteceu, finalmente, porintermédio de um Estado estranho, através dos soberanos do reino daMacedónía, Filipe e Alexandre, que conduziram as cidades-estado,unidas com relutância, à luta final contra o inimigo mortal de há mui-tos anos, conrra o ameaçador Estado persa.

Se, actualmente, uma das duas potências hegemônicas pudessealcançar a vitória sobre a outra sem destruição recíproca, seria possívelque, também assim, se atingisse o fim de um caminho. A UniãoSoviética ou os Estados Unidos poderiam então ser promovidos apotência hegemônica de toda a humanidade. Diferentemente de todosos vencedores anteriores das lutas pela hegemonia dentro de um grupode Estados — portanto, diferentemente da China ou dos Romanos, que,embora se julgassem senhores de um império mundial, se limitaram defacto a unificar e pacificar uma parte limitada da humanidade —, o ven-cedor da luta contemporânea pela hegemonia, caso não sobreviva a estaluta demasiado enfraquecido, estaria em situação de controlar meiosmilitares e econômicos de uma dimensão tal que tornariam impossívela concorrência de qualquer outro Estado.

E improvável que uma tal situação possa realmente ocorrer. Mas ofacto que aqui se investiga, e sobre o quaí eu disse que também elesignificava o fim de um caminho, é bem real. Deveria dizer-se talvez:ele significa o fim de um caminho e o começo de um novo. O desen-volvimento da humanidade alcançou um ponto ou, melhor dizendo,

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atingiu um período em que os homens, pela primeira vez, se encon-tram perante a tarefa de se organizarem globalmente, ou seja, comohumanidade. Esta tarefa coloca-se-lhes em conseqüência de umalonga evolução. Ao mesmo tempo, ela faculta-lhes as possibilidadestécnicas de uma organização da humanidade. Por favor, não me enten-dam mal. Não estou a falar aqui do que normalmente se chama umautopia. A tarefa de desenvolver uma ordem da vida em comum queabranja toda a humanidade coloca-se hoje, efectivãmente, aos homens,quer se tenha consciência dessa tarefa quer não. Ninguém pode preverquanto rempo a humanidade precisará para realizar esra tarefa.Ninguém pode prever se a humanidade, durante as lutas preparatóriasnessa direcção, se destruirá a si própria e tornará a Terra inabitável.

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Durante as etapas anteriores, a pacificação de um grupo de Es-tados ocorreu sempre, em princípio, devido ao facto de, na seqüênciade lutas eliminatórias no interior de um grupo de Estados, emergirum único Estado como vencedor e, assim, como potência hegemônica.A pax romana é disso um exemplo bem conhecido. Indicações nestesentido mostram-se também no caso das duas maiores potências mili-tares que, durante a segunda metade do século XX, ocuparam em todoo mundo o primeiro plano nos conflitos entre Estados.

Ainda meio encoberto, o sonho nacional de uma posição hegemô-nica sobre toda a humanidade anuncia-se já nas ideologias nacionais dasduas potências militares mais fortes da segunda metade do século XX.É útil, neste contexto, usar um pouco a inteligência para imaginarsituações possíveis, mesmo que elas não tenham nenhuma ou só umamuito pequena possibilidade de se tornarem situações reais.

Imaginemos o seguinte: se os Estados Unidos não existissem, aUnião Soviética ter-se-ia tornado hoje, depois da vitória sobre aAlemanha, provavelmente a potência militar de longe mais forte nãosó da Europa mas também da humanidade. Naturalmente, permaneceem aberto a questão de saber se a União Soviética poderia ter alcançadoa vitória sobre a Alemanha sem a ajuda dos Estados Unidos e dos seusaliados. Mas imaginemos que isso tivesse acontecido. O poderio mili-tar soviético teria alcançado um avanço tão grande sobre o poder mili-tar de todos os outros Estados da humanidade que a União Soviética seteria tornado, de facto, na potência hegemônica da humanidade. Nestecaso, os chefes dos partidos comunistas de todos os países seriam ossoberanos efectivos desses países. A direcção do Partido Comunista da

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União Soviética, do Estado militar mais forte da Terra, ocuparia entãouma posição hegemônica sobre toda a humanidade. Presumivelmente,ela tentaria impedir os conflitos armados entre os Estados vassalos,graças ao seu poderio militar preponderante, e, deste modo, realizar apacificação da humanidade, implantar a pax soviética,

O sonho de uma hegemonia mundial russo-soviética está con-tido, sob uma forma um tanto oculta, na doutrina oficial dogmáticarusso-soviética. A doutrina marxista, que se restringe algo unilateral-mente às relações econômicas e de classes, oculta-o. Esta doutrina fala,pura e simplesmente, da necessidade social, com que, mais cedo oumais tarde, revoluções comunistas darão origem a ditaduras do prole-tariado ou, mais exactamente, a ditaduras da direcção do PartidoComunista. A unilateralídade da doutrina marxista, que não reconheceàs fontes estatais e, principalmente, às fontes militares do podernenhum significado social autônomo, oculta um facto que Marx certa-mente não poderia ter previsto: o facto de uma vitória do comunismona Terra inteira acarretar consigo a posição hegemônica da potênciamilitar comunista mais poderosa, ou seja, da União Soviética.

A pax soviética, considerada como possibilidade hipotética, tem oseu equivalente na pax americana. O sonho americano, the americanarcam, muito freqüentemente objecto de controvérsia nos própriosEstados Unidos, não está até hoje orientado, expressamente, para umaposição hegemônica americana. Mas não faltam indicações neste sen-tido. Também no caso dos Estados Unidos, à semelhança do que ocorrena União Soviética, e como resposta à ambição comunista de hegemo-nia mundial, o zelo posto na defesa do próprio sistema capitalista epluripartidário adquire, com muita freqüência, o caracter de uma mis-são mundial. Tal como na União Soviética, também nos EstadosUnidos a preocupação com a própria segurança corre a par da exigênciade que o seu próprio poder militar tenha de ser o mais forte do mundopara poder garantir a integridade militar do país.

E esta, também, uma das simetrias características da luta bipolarpela hegemonia: enquanto os dois Estados militares mais poderosos semantiverem em equilíbrio, enquanto os seus meios de poder militar eeconômico se equilibrarem aproximadamente, ainda resta aos Estadosmenos poderosos um campo de manobra não despiciendo para decisõespróprias, uma margem de liberdade para a sua autonomia. Quantomais o equilíbrio dos poderes se inclinar em favor de uma das duas

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superpotências, tanto mais inequivocamente ela ganhará o caracter depotência hegemônica da humanidade. Todavia, só menciono esta possibi-lidade para tornar compreensível a dinâmica social própria deste tipo deconstelação de Estados. Na realidade, o aumento do poder de uma dasduas potências hegemônicas - quer directamente, por intermédio do cres-cimento do potencial militar, quer por intermédio de uma nova aliança,de uma vantagem posicionai no campo dos Estados não alinhados — pro-voca habitualmente, da parte da outra potência hegemônica, uma tenta-tiva de contrabalançar esse acréscimo de poder por forma a restabelecer oequilíbrio e, com ele, a única forma de segurança que ambas as potênciashegemônicas podem ter na sua relação uma com a outra. Trata-se de umasituação difícil. Cada uma das duas potências realiza, constantemente,tentativas para sobrepujar a outra; cada uma delas tenta, permanente-mente, contrabalançar toda e qualquer pequena vantagem da outra. Cadauma procura, involuntariamente, acercar-se sempre mais de uma hege-monia mundial, da posição do Estado militar mais poderoso; cada uma éconstantemente estorvada, nestes propósitos, pela jogada da outra.

Longe de mim dizer que os governos de ambos os Estados ambi-cionam conscientemente a hegemonia mundial. Digo apenas que a pe-culiar situação forçada em que se encontram ambas as potências asimpele nesta direcção. Aquilo a que chamamos escalada armamentistaé, igualmente, um resultado desta situação. Não creio também que ogoverno de um ou dos dois Estados hegemônicos nos conduza parauma guerra com plena consciência das suas conseqüências. Digo, sim-plesmente, que os governos de ambos os países, ao procurarem obterinvoluntariamente vantagens militares ou posicionais em relação àparte adversa, aproximam-se cada vez mais de uma guerra. Há boasprovas de que ambas as partes, tanto a superpotência comunista comoa capitalista - principalmente entre as camadas dirigentes, mas, talvez,também parte dos respectivos povos — sonham com o desaparecimentoda outra parte. Ambas sonham com o colapso do adversário, e talveztambém façam alguma coisa para provocar esse colapso, se possível, sema necessidade de uma guerra. Todavia, os governantes de ambos os ladosparecem não ver claramente que, se a outra parte sentir que está a serencostada à parede pelo adversário e os seus governantes não encontra-rem mais nenhuma saída, será muito grande a probabilidade de lança-rem mão da guerra como último recurso e, portanto, da utilização das

numerosas armas atômicas armazenadas.

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Durante roda a minha longa vida, pelo menos desde o meu úlrimoano do liceu, os comunistas meus conhecidos e amigos fizeram sempreos seus cálculos de modo que a crise da altura seria a última crise docapitalismo, à qual se seguiria, necessariamente, a revolução comunistae, por sobre a ditadura do proletariado, a sociedade sem opressão, tudoisto quase sem a necessidade de um governo. Ouvi isto em 1913, ouvi-o,de novo, no início desre ano; e, nos anos que decorreram entre estasdatas, ouvi-o outra e outra vez, sempre com a mesma convicção inaba-lável. O ideal comunista de que a profecia marxista do fim do capita-lismo se consumaria dentro de pouco tempo, de que a crise final docapitalismo teria finalmente chegado, inspirou ao longo de todo esreséculo a imaginação dos fiéis.

Todavia, a idéia de que o colapso do adversário se dará sem a neces-sidade de uma guerra não se restringe, de modo algum, a uma das par-tes. Também entre os Americanos e nos países europeus da aliança oci-dental se encontra com bastante freqüência a idéia de que o bloco deLeste irá conhecer dentro de pouco tempo uma crise, dissolvendo-se,então, por si mesmo. Tenho a impressão de que esta ilusão de umcolapso espontâneo do comunismo na União Soviérica e nos Estados deLeste ganhou mais força e uma mais vasta audiência nas últimas déca-das, e, como se disse já, faz-se sempre ainda qualquer coisa para dealgum modo contribuir para o desejado e iminente desmoronamentoespontâneo do comunismo.

Creio que esras idéias sobre o presumível desmoronamento auto-mático dos regimes capitalista e comunista não passam de sonhos ilu-sórios. Falta-lhes toda e qualquer base, além disso, são ilusões perigo-sas. Os comunistas desde sempre contribuíram activamente para odesmoronamento do capítaíimo, profetizado por Marx, e, nos últimostempos, um governo americano parece ter o mesmo em mente em rela-ção ao regime comunista. Se um dos dois Estados conseguisse efectiva-menre encurralar o outro, isso aumentaria enormemente o perigo deuma guerra. Já o disse atrás, mas vale a pena dize-lo duas vezes.

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Que fazer? O regime comunista e ditatorial da União Soviética nãofaz tenções de desaparecer por sua própria iniciativa. O regime capita-lista e parlamentar dos EUA também não tenciona desaparecer domesmo modo. Uma guerra entre os dois Estados não é de modoalgum impossível, mas seria uma calamidade tão grande para toda ahumanidade que, talvez, se devesse reflectir mais sobre as alternativasà guerra.

A guerra entre o grupo de Estados liderados pela União Soviérica epelos Estados Unidos acabaria, porventura, com uma vasta destruiçãoe, certamente, com um enorme enfraquecimenro de ambos os gruposde Estados. Os vencedores previsíveis de um tal conflito seriam outrospaíses - caso possam manter-se fora da guerra e salvaguardar a suapopulação, o seu território e o seu capital das conseqüências desrruido-ras de uma guerra nuclear. A índia, o Brasil e, principalmenre, a Chinaestariam então entre os candidatos às posições dirigentes na hierarquiados Estados do mundo. Vale a pena assinalar que as idéias sobre asrelações reciprocas dos Estados do mundo, caso não se comecem amodificar gradualmente antes de uma guerra nuclear, conhecerão, porcerto, uma modificação radical depois de uma tal guerra.

Actualmente, faz parte de uma quase incontestável tradição dahumanidade, e, no fundo, rambém da humana conditio, do destino ine-xorável dos homens, a idéia de que, em caso de conflito, os Estados sepodem ameaçar mutuamente com a guerra. A organização de todos osEstados assenta na possibilidade de um confliro bélico. Praticamentetodos os Estados têm instituições militares capazes de defender o pró-prio país de ataques militares de outro país ou, no caso de um conflito

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com outro país, de atacar este último. Em termos mais prosaicos: hojeem dia, praticamente em todo o mundo, os Estados estão preparadospara, em caso de conflito com outros Estados, fazerem uso da violênciafísica, ou, por outras palavras, ferirem e matarem os cidadãos e as cida-dãs de um Estado inimigo, destruírem todos os seus meios de produ-ção, o seu potencial militar e quebrarem a sua resistência, por tantotempo quanto for necessário para que o Estado inimigo fique exaustoou, pura e simplesmente, sucumba. A maneira como está tradicional-mente organizada a maioria das sociedades estatais do mundo deter-mina que, em caso de conflito nas relações entre os Estados, elas façamaquilo que é estritamente proibido e punido nas relações internas dosEstados, ou seja, tentem decidir o conflito a seu favor recorrendo à vio-lência física.

Não é absurdo supor que depois da próxima guerra, se ela ocorrer,a humanidade sobrevivente chegue à conclusão de que é necessárioquebrar com a tradição que não só faculta aos Estados como are lhesrecomenda que, em caso de conflito com um outro Estado, procuremdecidir a situação em seu favor pelo recurso à força física, através deuma luta de vida e de morte, numa palavra: pela entrada em acção deuma organização müirar que cada Estado mantém para esse fim.Então, talvez os homens possam fazer causa comum e dizer: «Não hánada pior do que a guerra. Que podemos fazer para evitar a guerra?»Sob a impressão causada por uma tal guerra, é provável que eles este-jam mais facilmente em situação de fazer aquilo que nós hoje somoscapazes de realizar: isto é, criar instâncias de arbitragem dos conflitosentre os Estados, a que todos eles se devem submeter.

Esta condição da vida humana, esta condiria humana, o vaivém dasguerras, parece ser hoje, bem como ao longo de todo o desenvolvi-mento da humanidade, inevitável. Hoje, porém, talvez o deva dizermais uma vez, encontramo-nos numa situação sem precedentes, numasituação inédita no desenvolvimento da humanidade. Nós chegámos,como disse, ao fim do caminho. Se os Estados hegemônicos da actuali-dade, ou seja, os Estados com maior poder militar, seguirem hoje a tra-dição milenária da humanidade — segundo a qual é evidente que gru-pos humanos rivais podem lurar pela sua segurança e, se possível, pelaprópria posição de supremacia entre os demais grupos humanos, recor-rendo para tanto à violência física, a uma luta de vida e de morte -,estarão a abandonar, com toda a probabilidade, não só grande parte da

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sua própria população mas ainda uma parte considerável da humani-dade a uma morte mais ou menos cruel, ao mesmo tempo que tornarãoinabitável para os homens uma vasta parte da Terra, senão mesmo aTerra inteira.

A poderosa coacção exercida por esta tradição milenar da humani-dade no sentido da solução dos conflitos entre grupos pela força dasarmas; a fraca medida em que os dirigentes dos Estados mais impor-tantes são capazes de se libertar da pressão desta tradição, da pressãodas instituições e dos hábitos de actuação que ela criou, está hojepatente com uma clareza assustadora. A guerra parece ser o destinoeterno da humanidade. Nenhuma compreensão da singularidade dasituação contemporânea parece estar em condições de quebrar a forçadesta tradição de actuação que impele para a guerra.

O que é tanto mais surpreendente quanto os Estados mais impor-tantes da Terra já não são, como muitos Estados do passado, governa-dos por homens educados na tradição da nobreza guerreira. Os diri-gentes da União Soviética legitimam-se como representantes dooperariado industrial; os dos Estados Unidos como representantes doempresariado industrial. Para ambos, a nobreza militar e agrária, anobreza feudal, como por vezes lhe chamam, fora um adversário nosconflitos internos dos respectivos Estados. Não deixa de ser instrutivover a inexorabílidade com que representantes da burguesia e do opera-riado industrial, agora que exercem funções dirigentes, seguem oexemplo dos príncipes da nobreza, sendo arrastados pelo peso das ins-tituições estatais para a tradição de actuação dos seus antecessores so-ciais. A compreensão da singularidade da situação contemporâneaparece ser completamente impotente face às pressões da tradição mile-nar de utilização da força física como meio de resolver os conflitosentre unidades de sobrevivência mais ou menos autônomas, ou, actual-mente, entre Estados independentes e soberanos.

Depara-se-nos aqui um exemplo típico de uma particularidade dodesenvolvimento da humanidade que sempre se repete. O desenvolvi-mento da humanidade realiza muito menos através de processos deaprendizagem baseados no discernimento, no conhecimento anteci-pado das conseqüências possíveis do agir colectivo de um grupohumano, do que através de processos de aprendizagem na seqüência dedecisões erradas e das amargas experiências que elas determinam. Nãoserá totalmente absurdo, como já se disse, supor que, após uma guerra

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nuclear, a humanidade sobrevivente, ensinada pela dura experiência,esteja mais inclinada a esforçar-se no sentido da criação de instituiçõesvisando resolver por meios não volentos os conflitos entre Estados.Podemos muito bem imaginar quef após uma guerra nuclear, o saberque a soberania dos Estados encontra os seus limites ali onde a existên-cia e o bem-estar da humanidade estão em jogo já não será consideradoutópico, mas, pelo contrário, extremamente realista. O governo de umpaís que, então, segundo o velho hábito, prepare a guerra contra outropaís ou que chegue mesmo a invadi-lo pela força das armas, com osconseqüentes morticínos, será levado ao tribunal mundial como umgrupo de criminosos contra a humanidade — quer através da pressãode sanções econômicas por parte de todos os países do mundo ou pelapressão da opinião pública mundial, quer mediante a intervenção deum corpo expedicionário conjunto dos Estados aliados do mundo.

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Perante a visão de uma Terra meio destruída, ou talvez somente aorecordá-la, será mais fácil habituar até mesmo os governos de Estadosmuito grandes e populosos a submeterem as suas divergências de inte-resses e de opinião, sobretudo as diferenças de opinião entre os Estadosno que se refere a questões de segurança, a um tribunal dos Estadosaliados da Terra. E em relação a diferenças de crença ou de sistemasocial poder-se-ia então esperar que todos os lados se mostrassem natu-ralmente tolerantes. O luto da humanidade pelo esplendor desapare-cido da Terra pode vir também, é certo, tarde de mais. A Terra queconhecemos pode ficar irremediavelmente perdida e os homens, casoainda existam, recuarem para um regime de vida familiar nas cavernas.No entanto, se as condições de organização estatal que se encontramnas tradições dos Estados contemporâneos ainda existirem nessa altura,talvez seja mais fácil adoptar uma providência, cuja aplicação se tornoujá hoje urgente, ante a perspectiva de uma guerra nuclear, mas que,devido a uma tradição" esclerosada, se nos afigura ainda totalmente

utópica e irrealizável.A impotência relariva do Tribunal Internacional de Haia mostra

claramente o ponto fraco da estrutura desta instituição. Ao contráriodos tribunais nacionais, os tribunais internacionais carecem de órgãosexecutivos, graças aos quais as suas decisões conseguem fazer-se cum-prir, mesmo naqueles casos em que homens ou grupos de homenspoderosos se procuram furtar à sentença. Parece-nos hoje ilusório pen-sar que se poderia levar Estados poderosos como a União Soviética e osEstados Unidos da América a submeterem as suas constantes acusaçõesrecíprocas a um tribunal de homens e mulheres cuja integridade e

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isenção são universalmente reconhecidas. É ilusório porque, apesar doperigo coleccivo de uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e aUnião Soviética, os Estados do mundo reunidos não podem falar comuma só voz, não são capazes de impor medidas econômicas ou policiaisconjuntas que pudessem garantir o respeito por uma sentença do seutribunal mesmo por parte de quem lhes resistisse.

Além disso, já se tornou hoje suficientemente claro que, nas con-versações directas entre ambas as porências hegemônicas que ameaçama paz no mundo, os argumentos apresentados por ambos os lados sãocom freqüência tão determinados pelo imperativo de ocultar as pró-prias intenções, pela pressão da propaganda e, sobretudo, por uma talincapacidade de compreender as preocupações e receios reais do outrolado, que nada parece mais desejável e necessário do que uma comissãoneutral de vigilância. Nada será também, sem dúvida, mais ilusório.Mas se uma tal comissão, como é de admitir, não poderia funcionar deimediato como tribunal de arbitragem, ela poderia, ao menos, começarpor informar a opinião pública sobre a situação real subjacente aosargumentos bem pouco transparentes e em larga medida incompreen-síveis para o público de todo o mundo apresentados por ambas as par-tes. Os media assumiram, em parte, a tarefa de informar o público dosdiversos Estados sobre o que está por detrás das ocultadoras comunica-ções oficiais das duas superpotências. Uma entidade pública dehomens e mulheres imparciais que esteja em situação de informar comgrande regularidade o público mundial sobre as intenções e os receiosque se escondem por detrás das comunicações ideologicamente veladase dissimuladas de ambos os governos hegemônicos poderia exercer, alongo prazo, uma influência substancial sobre o envolvimento das duasgrandes potências nas suas perigosas estratégias de ocultação. E seriacertamente desejável que os governos das grandes potências que amea-çam a paz procurassem diminuir os seus temores não só por meio denegociações directas — que, evidentemente, são úteis e indispensá-veis — mas pudessem, ainda, contar com a ajuda de entidades supra-partidárias com funções consultivas ou de arbitragem (como as queintervieram recentemente, por exemplo, no caso do Peru e do Chile),sobretudo quando as negociações caem num impasse e não conseguemavançar.

Todavia, como se disse, neste período de antes da guerra nuclear,até mesmo estas modestas propostas para diminuir o perigo podem ser

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irrealizáveis. Talvez só seja possível dar os passos necessários para a for-mação de organizações supra-estatais, que possam funcionar efectiva-mente como vigilantes da paz, depois de uma tal guerra.

De qualquer modo, pode desde já indicar-se onde se deverá procu-rar o núcleo da resistência à formação de instituições eficazes quediminuam o perigo de guerra. Trata-se, sem sombra de dúvida, dedeterminadas particularidades estruturais da tradicional organizaçãoestatal que entravam o desenvolvimento efectivo de instituições deprevenção da guerra. No centro desta resistência, depara-se-nos a idéiada soberania absolutamente ilimitada e inviolável de cada Estado sin-gular.

Esta idéia e as instituições que lhe correspondem também foramherdadas pelos principais Estados nacionais da actualidade ou, melhordizendo, pelos Estados governados por representantes de um partido,dos antigos Estados monárquicos. Todo o governante principesco rei-vindicava o governo absoluto e ilimitado dentro da sua esfera de domi-nação. Embora, na realidade, os príncipes mais poderosos violassem e,eventualmente, até liquidassem a soberania de príncipes menos pode-rosos, a idéia da autonomia e da soberania absoluta e ilimitada doEstado manteve-se, mesmo assim, como doutrina obrigatória de todosos Estados monárquicos absolutos. Ela conservou-se, essencialmente,devido a uma derradeira solidariedade entre todos os príncipes e gover-nos dirigidos por príncipes. Visto todos os príncipes reclamarem parasi próprios a soberantía absoluta — e assim, também, o direito dedecidirem da paz e da guerra —, todos eles tinham interesse em con-ceder aos seus pares, em princípio, uma igual autonomia e inviolabili-dade da sua soberania. As guerras anteriores já tinham tornado mani-festo que, na prática, o princípio da soberania absoluta dos príncipesera frágil. Todavia, quando o governo dos príncipes foi substituídopelo dos representantes de partidos políticos, o princípio de que todosos Estados são soberanos manteve-se.

Nesta fase do desenvolvimento, torna-se particularmente evidenteque o reconhecimento e o respeito pela autonomia absoluta de umEstado por parte de todos os outros tem, para todos eles, uma funçãoprotectora. Até um certo grau, ela salvaguarda qualquer Estado daperda ou da restrição da sua independência. Também aqui podemosobservar, de novo, uma espécie de solidariedade entre rodos. Uma vezque cada Estado atribui grande valor à sua própria soberania, à sua

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autonomia e à sua independência em relação aos outros Estado, a maio-ria dos governos respeita, na medida em que os seus interesses o per-mitem, a soberania de outros Estados, No entanto, apesar de o respeitopela soberania estatal, enquanto princípio, usufruir de um reconheci-mento universal, na realidade este princípio é sempre de novo desres-peitado e desconsiderado, em função das grandes diferenças de poderentre os Estados. Os Estados menos poderosos têm, com freqüência,apenas uma soberania limitada. A crescente interdependência econô-mica dos Estados põe, igualmente, limites à independência de cada umdeles. O grau relativamente mais elevado de independência, de «sobe-rania», e, portanto, também, um maior campo de manobra, só o pos-suem os Estados militares mais poderosos, situados no vértice da hie-rarquia de Estados.

Com este exame, aproximamo-nos do âmago do problema doactual perigo de uma guerra. Os avanços na técnica dos armamentoscriaram uma situação singular também no que diz respeito a esteaspecto da questão. Hoje em dia, os governos de ambas as potênciashegemônicas podem decidir acções, pelas quais não só se ameaçamreciprocamente com uma vasta destruição e, talvez mesmo, com o ani-quilamento total — mas poderia dizer-se que isso só a eles diz res-peito. O cartaginês Aníbal ameaçou Roma, e os Romanos, depois dasua vitória, destruíram Cartago e venderam a população sobreviventecomo escrava. O raio de destruição das armas nucleares, porém, não podeser localizado. Ambos os governos, o da União Soviética e o dos Esta-dos Unidos, têm a possibilidade de tomar decisões que comprometemo destino de toda a humanidade ou, em todo o caso, de uma partesubstancial da humanidade. E aqueles que são atingidos pelo perigomal podem, com a sua organização actual, ter influência nestas decisões.Em nome da soberania do Estado, ambos aqueles governos, talvez deacordo com largas camadas da população dos seus países, arrogam-se odireito de tomar decisões, das quais dependem não só o bem-estar dasua própria população mas também o dos habitantes de muitos outrosEstados e, talvez, a existência da Terra, enquanto morada dos homens.

Poderia pensar-se que depois da próxima guerra — partindo sem-pre da suposição de que irão sobreviver grupos de homens suficiente-menre bem organizados — o problema que se nos depara será reconhe-cido com mais clareza e resolvido mais facilmente do que hoje acontece,ou seja, antes da guerra. Hoje em dia, o desenvolvimento da técnica

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dos armamentos gerou uma situação inconciliável com o tradicionaldireito soberano de os Estados decidirem, por si sós, sobre a guerra e apaz. Por isso mencionei, atrás, o problema da criação de instânciassupranacionais e suprapartidárias que — talvez apoiadas pela opiniãomundial — possam ajudar, a nível consultivo ou pela arbitragem, aspotências militares, desesperadamente envolvidas no seu antagonismoe na corrida aos armamentos, quando os próprios governos de ambos osEstados não conseguem encontrar uma saída para o corpo-a-corpo emque mutuamente elas se imobilizaram.

O árbitro aproxima-se dos pugilistas engalfinhados um no outro esepara-os. Em nome da sua soberania, nenhuma das superpotências sesubmete a um árbitro, e pode muito bem acontecer que a embriaguezda hegemonia tape os ouvidos aos seus dirigentes. Talvez tenha, noentanto, chegado a hora de apresentar a exigência de que, se ambas aspotências hegemônicas não são capazes de, através de negociaçõesdirectas, realizar a desaceleração da corrida aos armamentos e o desanu-viamento da «sua» guerra fria, que ameaça toda a humanidade, recor-ram, para tanto, a uma entidade neutra! consultiva. E talvez esteja nahora de reflectir sobre que aspecto deverá ter uma tal entidade estrita-mente apartidária e como ela poderá ser suficientemente apoiada pelaopinião pública da humanidade. Porquê protelar a criação de uma talinstância até depois da guerra? Se os dois gigantes não estão em condi-ções de se libertarem, por si mesmos, do corpo-a-corpo imobilizado emque se encontram, então deveriam ter, pelo menos, o discernimentosuficiente para solicitarem a ajuda de peritos isentos. De outro modo,o perigo que ambos representam para a humanidade é demasiado

grande.Os homens não são capazes de eliminar a morte, mas estão, sem

dúvida, em condições de eliminar o morticínico recíproco.

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Referi já o facto de o conflito actual entre duas grandes potênciasmilitares que lideram uma hierarquia de Estados ter também, a par demuitas semelhanças com as anteriores lutas hegemônicas deste tipo,determinadas características estruturais próprias. Entre estas peculiari-dades conta-se o facto de a guerra, para a qual são accualmente arrasta-das as duas superpotências em luta, caso aconteça, ter um caracter des-truidor de dimensões superiores a qualquer luta final anterior entre aspotências militares mais poderosas.

Nos casos anteriores, é possível, como já disse, observar duas for-mas de desfecho, que se repetem, de um tal combate decisivo. Numdos casos, que se nos depara freqüentemente, a luta permanece inde-cisa, na medida em que nenhuma das potências cimeiras logra alcançara hegemonia efectiva sobre o conjunto de Estados e, assim, integrá-losa todos como membros ou súbditos de um Estado de ordem superior,de um Estado unitário, sob a direcção da potência hegemônica vence-dora. A luta pela supremacia entre Atenas e Esparta fornece o exemplode um exemplo da ascensão de uma potência hegemônica ao longo demais de quatrocentos anos. As lutas elminatórias dos Estados alemãestambém tiveram, durante muitos séculos, o caracter de um equilíbriomultipolar entre Estados. Embora os imperadores viessem formal-mente à cabeça, o poder efectivo estava nas mãos dos múltiplos prínci-pes reinantes e das cidades livres do império, até que, por fim, aPrússia, ao cabo de uma longa série de lutas eliminatórias, em que seviu freqüentemente à beira do abismo, ascendeu a potência hegemô-nica e, nessa qualidade, reuniu os diferentes Estados alemães anterior-mente autônomos num Estado unitário — renunciando ao Império

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dos Habsburgos, que, de tão multíforme que era, não se deixava inte-grar facilmente num Estado alemão unitário.

Vale a pena reflectir sobre as possibilidades que se oferecem, noplano actual, ao vencedor de uma luta pela hegemonia, quer se trate deum dos dois Estados envolvidos, ou seja, a União Soviética ou osEstados Unidos, ou — no caso de estes dois Estados se terem enfraque-cido mutuamente, como é de esperar — um dos Estados eventual-mente não envolvidos, por exemplo, a China. Será acaso verosímil queuma União Soviética vitoriosa, uns Estados Unidos vitoriosos, ou umaChina que não se envolveu na guerra, ao ascenderem então à hegemo-nia de um império mundial que abarcaria a maioria dos Estados,pudessem instituir, à semelhança dapax romana, umapax soviética, ame-ricana ousinica^

A resposta a esta pergunta não é simples, porque também aqui severifica que a tarefa que se coloca a uma potência hegemônica na faseaccual, depois de ela ter eliminado todos os possíveis concorrentes, é, emcerto sentido, diferente das tarefas análogas em todas as fases anterio-res. Actualmente, a tarefa de uma potência hegemônica consistiria emassegurar a sua dominação efectiva sobre todos os Estados do mundo e,assim, com base na sua supremacia, reuni-los num Estado mundialunificado. Nesse caso, estaríamos, de facto, perante um impertummunâi, fosse ele uma criação soviética, americana, ou mesmo chinesa.

Não é por demais ousado supor que nos próximos dois séculos— com ou sem guerra — se irá reforçar a necessidade de desenvolverinstituições estatais mundiais, de que são modelos a Sociedade dasNações e as Nações Unidas. Se observarmos mais atentamente a confi-guração total dos Estados na Terra, parece ser bastante improvável queum único Estado possa alguma vez estar em condições de obrigartodos os Estados do mundo a reunirem-se num Estado unitário sob oseu domínio. Quero, em primeiro lugar, referir brevemente que, naminha opinião, o poderio de um único Estado — mesmo o do maispopuloso, o da China, ao nível de Estado industrial plenamente desen-volvido — não bastaria para estabelecer um imperium mundi efectivo eduradouro, uma dominação do mundo por parte de um Estado ou deum grupo de Estados, e para instaurar a pacificação da humanidade, aeliminação da instituição tradicional da guerra à maneira romana, ouseja, pelo poder bélico avassalador de um único Estado e dos seus alia-dos. A configuração da humanidade, quero eu dizer com isto, dificil-

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mente permitirá que se realize uma paz global sob a forma mais tradi-cional, freqüente e generalizada da pacificação de grupos humanosanteriormente independentes e com freqüência hostis entre si porintermédio do poderio militar superior de caracter monopolista de umúnico grupo de homens. E certo que determinados aspectos do pro-gresso técnico, como, por exemplo, o desenvolvimento monopolistadas viagens interplanetárias das colônias espaciais, favorecem as ten-dências que vão no sentido de uma hegemonia militar. Mas as malhasda rede da humanidade são muito extensas e o número dos Estados,grandes e pequenos, habituados à independência, é demasiado conside-rável para que um único Estado ou grupo de Estados tenha alguma vezuma boa oportunidade de estabelecer uma hegemonia económico-mili-tar duradoura sobre toda a humanidade. O significado das diversidadesnacionais para o sentimento de identidade dos homens que formamestes Estados está demasiado profundamente arraigado para que elespossam, no seu conjunto, suportar a longo prazo a dominação autocrá-tica de um único Estado e com ela, também, a de uma única cultura,sem que surjam constantemente movimentos de resistência.

Bem entendido, não estou a dizer que uma pacificação da humani-dade baseada na hegemonia económico-militar de um único Estadoseja uma coisa desejável. Limito-me, pura e simplesmente, à investiga-ção do potencial efectivo dos Estados, e penso que a oportunidade dealcançar aquela supremacia de meios de poder de que um Estado preci-saria para instituir uma hegemonia duradoura sobre todos os outros émuito pequena. Sob este ponto de vista, também hoje nos encontra-mos numa situação singular.

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A dinâmica da constelação que, num dado momento, lança aspotências militares mais poderosas de um grupo de Estados umas con-tra as outras e que promete ao vencedor dessa «eliminatória» umaposição hegemônica nesse grupo de Estados não é hoje menor, e a febrehegemônica, a idéia embriagante da que o próprio povo possa vir a sero mais forte, o mais rico e prestigiado de todos os desse grupo deEstados não é, para os dois candidatos à hegemonia na fase de desen-volvimento actual, manifestamente menos cativante do que o foi em«eliminatórias» análogas, em fases anteriores do desenvolvimento dahumanidade. Falei da embriaguez hegemônica de Alexandre, o Grande.Referi a série de guerras que permitiram aos Romanos ascender à posi-ção de potência hegemônica dos países do Mediterrâneo. Poderia teraludido à série de lutas no decorrer das quais os pequenos reis de Parisse assenhorearam lentamente dos variados domínios, anteriormenteautônomos, que constituem hoje a França unida e internamente pacifi-cada; ou à ascensão da Inglaterra à supremacia sobre todas as IlhasBritânicas, incluindo temporariamente o Estado hoje independente daIrlanda. Vem a propósito pensarmos na luta pela supremacia dosAlemães, mais tardiamente unificados, e na embriaguez hegemônicadas épocas do Kaiser e de Hitler. Como disse, a dinâmica da configura-ção que impele, hoje em dia, a União Soviética e os Estados Unidos daAmérica, ambos preocupados com a sua própria segurança, um contra ooutro, e assim, quer o saibam quer não, para uma confrontação militardecisiva com vista a uma posição hegemônica monopolista entre osEstados do mundo, não é menos forte do que a de muitas lutas hege-mônicas análogas de tempos passados.

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Sem dúvida que a consciênca da alta recompensa que representariapara o vencedor de uma tal «eliminatória» a conquista de uma posiçãohegemônica sobre os Estados do mundo é, em ambos os casos, algoperturbada pelo reconhecimento do risco terrível que comporta umaguerra nuclear. Todavia, a pretensão de ambos os lados de serem mili-tarmente mais fortes do que o respectivo rival e de se tornarem, assimáefacto, social e militarmentef o Estado dirigente e modelar da Terra, éclaramente perceptível em ambos os casos.

Como noutros, esta pretensão exprime-se na crença numa missãomundial própria. Em fases anteriores, de que também já falámos, acrença na missão de difundir ou de fazer prevalecer uma religião sobre-natural associou-se muitas vezes ao ideal de dilatar o próprio domínio.A entrada de Napoleão na luta pela hegemonia ocorreu sob a bandeirada difusão dos objectivos da Revolução e, mais tarde, também, em nomeda pátria francesa, da sua tarefa civilizadora e da sua glória. No caso deHitler, cal ocorreu em nome da própria raça. As potências hegemônicasdo fim do século xx legitimam a sua luta pela hegemonia sobre a huma-nidade através da missão que se arrogam de expandir uma determinadaordem social, capitalista ou comunista, segundo o lado que se considere.

Quajido na Rússia, a seguir a uma revolução, um grupo de políticosde partido, para quem a doutrina social de Marx servia de guia, tomouo comando, a função desta doutrina modificou-se. A doutrina de Marxprognosticava que os conflitos sociais entre empresários industriais eoperários terminariam, mais cedo ou mais tarde, em todo o mundo,com a vitória e a ditadura temporária do operariado. A doutrina ali-mentava a esperança no advento inevitável de uma sociedade sem clas-ses e, por fim, de uma humanidade sem ricos nem pobres, sem explora-dores nem explorados. A doutrina de Marx da vitória final do comunismoem todo o mundo, exactamente como a doutrina oposta do liberalismoeconômico clássico, revelava uma peculiar cegueira teórica relativa-mente à função própria do Estado e às fontes específicas de poder de umgoverno estatal. Esta afinidade entre ambas as classes industriais noséculo XIX, e talvez ainda no século xx, é facilmente compreensível.Do ponto de vista dos operários, o Estado, no século xix, não passavade um aliado dos empresários; do ponto de vista dos empresários, oEstado, sobretudo o governo, através dos seus decretos, intervinha comfreqüência no curso dos processos econômicos de uma maneira apenasperturbadora e sem critério.

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Na seqüência da Revolução Russa, políticos de partido, cujo prin-cipal meio teórico de orientação era uma teoria que não entendia a fun-ção específica de um Estado e do seu governo, viram-se na posição demembros do governo e de representantes do Estado. Eles sofreram nopróprio corpo as conseqüências da autonomia das funções estatais e,particularmente, das governamentais — autonomia que não era redu-tível a funções econômicas —, e depressa aprenderam com a prática autilizar os instrumentos de política interna e externa do poder estatal.No entanto, eles não puderam modificar as estruturas fundamentais dadoutrina social delineada por Marx, e aperfeiçoada por Lenine, quelegitimava a sua revolução.

Estas estruturas fundamentais eram economícistas e assentavamnas relações entre classes. Enquanto, na prática, o governo do Estado e,sobretudo, a utilização do monopólio da força física, representadopelos militares e pela polícia, tiveram uma influência determinante nodesenvolvimento do Estado comunista, conservou-se, ao mesmotempo, a crença ortodoxa de que o governo tinha apenas uma funçãosuperstrutural, ou seja, em primeiro lugar, uma função de defesa deuma classe exploradora. Enquanto o Estado conquistado pelos políticosrevolucionários de partido se envolvia inevitavelmente no turbilhãodas relações de força da política internacional, tal era interpretado,pura e simplesmente, em conformidade com a orientação teórica, comouma continuação da luta de classes. Enquanto, na prática, a ditadurada classe operária, que talvez fosse pretendida de início, há muito quese tornara já numa ditadura do Partido Comunista, os meios de orien-tação teórica mantiveram-se largamente inalterados, tal como tinhamsido desenvolvidos por Marx e Lenine. A ditadura do proletariado,como estes tinham previsto, desaparecerá quando o capitalismo tiversido vencido definitivamente, ou seja, em todos os países. E, assim,defendia-se a ditadura do partido e, principalmente, a da cúpula dopartido, referindo-se, a propósito, a necessidade de proteger o Estadosoviético dos ataques dos países em que o capitalismo ainda subsistia,nos quais a esperada revolução ainda não se consumara.

A função da doutrina de Marx foi, assim, como que curiosamentealterada. A idéia da transição nacional para uma ordem social comu-nista, que, segundo Marx, deveria ocorrer em todos os países capitalis-tas devido à lógica interna do capitalismo, convertia-se agora numaarma da política externa soviética, em larga medida determinada pelos

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interesses do próprio Estado. O Estado soviético estava agora envol-vido, como outros Estados antes dele, na luta pela hegemonia. A profe-cia marxiana da Revolução Mundial era-lhe, agora, útil. Mas tambéma função desta foi alterada, provavelmente sem que se tivesse plenaconsciência disso. Na prática, ela significava, agora, a dilatação dasupremacia de um Estado — a União Soviética.

O facto de a profecia marxiana de uma revolução bem sucedida daclasse operária de todos os países ter adquirido, durante algum tempo,uma nova função — a de profetizar que a União Soviética revolucio-nária e, em especial, a sua nação hegemônica, a República Socialistada Rússia estariam destinadas a alcançar a supremacia sobre todos osEstados do mundo — desempenhou, seguramente, um papel de pesono crescente conflito entre a União Soviética e os Estados Unidos.Tinha-se, assim, a impressão, que até certo ponto ainda hoje persiste,de que à direcção do Partido Comunista Russo não seria inteiramenteestranha a idéia de uma hegemonia da União Soviética sobre osEstados do mundo. Actualmente, os porta-vozes da União Soviéticaacentuam constantemente o seu desejo de igualdade e de coexistênciacom os Estados Unidos. O que é, em si, promissor. E o caminho cor-recto.-Todavia, não se pode esquecer tão depressa que, até há poucotempo, a União Soviética não propagandeava a igualdade e a coexis-tência com o mundo capitalista, mas a ruína deste. A profecia deuma futura revolução em rodos os Estados capitalistas e, assim, dasua sintonização com a União Soviética, não foi, certamente, a causado antagonismo tantas vezes acerbo entre as duas superpotências e daescalada armamentista, da corrida aos armamentos. Mas a propa-ganda ofensiva, a agressiva doutrina dogmática soviética, contribuiu,sem dúvida, para uma agudização da luta pela hegemonia com osEstados Unidos.

O governo americano procura, agora, pagar da mesma moeda. Paratanto, serve-se igualmente de uma crença ofensiva, que reivindica oprestígio e a validade mundial do sistema econômico e político, para oefeito um tanto embelezado, dos Estados Unidos. Até há pouco, fal-tava aos Estados capitalistas sob a égide destes um traço humanistauniversal. Nos últimos tempos, o credo capitalista, um tanto árido noque respeita a humanitarismo, adquiriu um rosto mais humano eganhou força combativa, graças ao empenho dos seus representantes nadefesa dos direitos humanos no mundo inteiro.

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É bonito que a exigência de respeito pelos direitos humanos ele-mentares encontre hoje mais audiência. Tal significa um fortaleci-mento da consciência humana, da simpatia e da compaixão doshomens uns para com os outros, que na Alemanha sob o domínio nazidesapareceu temporariamente por completo. Ainda hoje não se encon-tram vestígios desta elementar simpatia entre os homens e, por maio-ria de razão, para com os adversários, nas câmaras de tortura e noscampos de concentração das numerosas ditaduras. E encorajador que ogoverno de um Estado milítarmente tão poderoso como os EstadosUnidos intervenha tão decididamente em defesa dos direitos dohomem. Todavia, assim como os lemas da propaganda soviética de lutapela igualdade entre os homens e contra a opressão se destinam, essen-cialmente, à exportação, também o empenho do governo americano nadefesa dos direitos humanos visa, sobretudo, a exportação. Por maissérios que sejam estes objectivos, não nos podemos furtar à suspeita deque eles estejam a ser utilizados por este governo para, sobretudo,reforçar a sua pretensão a uma posição hegemônica entre os Estados domundo.

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Eis, pois, duas potências que lutam entre si pela hegemonia a nívelglobal e que começam por empregar meios relativamente pacíficos.Tenho boas razões para crer que estas diligências no sentido de con-quistar uma posição hegemônica entre os Estados da Terra podem ser,no caso de uma potência singular, bem sucedidas temporariamente,mas nunca a longo prazo. As tentativas de fundar um Estado mundialdominado pela União Soviética, pelos Estados Unidos, pela China, ouseja por quem for, portanto, um imperium romanum global, podem, tal-vez, resultar a curto prazo, mas, a longo prazo, estão irremediavel-mente condenadas ao fracasso. E importante afirmá-lo claramente, poisseria uma grande calamidade, caso alguma potência quisesse empreen-der uma tal tentativa de hegemonia mundial. Actualmente, ao queparece, nem os dirigentes da União Soviética nem os dos EstadosUnidos são imunes aos ataques da febre hegemônica. Eles não sãoinvulneráveis à tentação do sentimento exaltado, que se pode exprimirassim: «Queremos, temos de ser a potência mais forte da Terra!», ouentão: «Nós somos a potência mais forte da humanidade.»

Peco-vos, mais uma vez, que não me interpretem mal. Não faloaqui dos meus próprios desejos. E certo que não me sentiria bem nummundo em que um Estado ou um grupo de Estados dominasse toda ahumanidade. Apesar disso, poderia reflectír-se sobre se a hegemonia deum Estado, que fosse o mais poderoso de todos, seria realmente umpreço demasiado alto a pagar pela pacificação da humanidade e, conse-quentemente, pela abolição das guerras enquanto instituição perma-nente nas relações entre os Estados. Poderia mesmo dizer-se que, se umdeterminado Estado obtivesse a supremacia militar sobre todos os

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outros - ao ponto de possuir de facto um monopólio global da violênciafísica e de o seu exército, convertido numa espécie de polícia do mundo,poder impedir todos os outros Estados de utilizar a sua própria organi-zação militar em caso de conflitos —, se, pois, este Estado fosse tão pode-roso que realizasse a pacificação da humanidade, a sua libertação dasguerras, valeria a pena pagar por isso, pelo menos por algum tempo, opreço da subjugação a um Estado hegemônico e suportar a soberba dopovo dominante, que nunca deixa de surgir nestes casos. E bastante cor-rente que um povo, militar e economicamente mais poderoso do que osoutros, desenvolva uma imagem orgulhosa de si próprio. Afigura-se aosseus cidadãos, habitualmente, serem eles os melhores por nascimento, eterem, portanto, mais valor do que os outros povos. Digo, mais uma vez,que não desejo para mim, nem para vós, que vivamos num mundo comuma semelhante estrutura da humanidade.

Todavia, quando disse acima que pensava ser muito improvávelque um Estado singular conseguisse obter uma hegemonia efectivasobre todos os outros Estados do mundo, não o disse por não o desejar.Falava e falo-vos como sociólogo, que investiga problemas da socie-dade humana da mesma maneira e com a mesma atitude com que ummédico procura estabelecer diagnósticos sobre o estado de saúde deuma pessoa. Se um médico, ao fazer um diagnóstico, se deixa influen-ciar pelos seus desejos, o diagnóstico não vale nada e não passa, prova-velmente, de urn diagnóstico errado. O mesmo se passa em relação aum diagnóstico sociológico.

Neste sentido, puramente do ponto de vista diagnóstico, já chameia atenção para o facto de a configuração social da humanidade — princi-palmente a sua divisão em mais de cento e cinqüenta Estados, unsmaiores outros mais pequenos, dos quais muitos possuem uma mar-cada tradição nacional, uma conformação nacional personalizada —torna improvável a hegemonia permanente de um único Estado. Já asduas guerras mundiais, em que a Alemanha procurou realizar a suaaspiração a uma posição hegemônica na Europa mediante uma vítótiamilitar, fracassaram pelo facto de o potencial na Alemanha não ter sidosuficente para fazer frente aos meios de poder somados da França, daInglaterra e dos Estados Unidos, e, na Segunda Guerra Mundial, tam-bém aos da União Soviética. Não vejo que haja um único Estado nomundo cujos meios de poder bastem para lhe garantit a hegemonia emface de uma aliança entre um número considerável de Estados mais

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fracos. Além disso, o caminho para uma posição hegemônica de umasó potência, no actual estado de coisas, passa com toda a certeza poruma guerra nuclear e desembocará, provavelmente, como conseqüênciadisso, num ciclo de actos de violência.

Para entender esta situação, não é de modo algum necessário suporque os governos dos actuais pretendentes a uma hegemonia mundialanunciem franca e expressamente o objectivo de alcançar uma posiçãohegemônica global, seja por intermédio de estratégias não bélicas, sejapor meio de uma guerra. Eu constato, simplesmente, que a situaçãoem que eles se encontram os empurra, a ambos, nesta direcção. Paraganhar segurança, cada uma das duas potências hegemônicas aumentaconstantemente o seu potencial militar. O crescimento deste potencialafasta-as cada vez mais da esfera de concorrência de todos os outrosEstados, que, assim, ficam em posição sempre mais desvantajosa.Simultaneamente, cada uma das potências hegemônicas tenta suplan-tar o seu adversário na corrida aos armamentos. E o que pretendo fazerver quando digo que ambas são impelidas pelo automatismo da suasituação para uma posição hegemônica. Ao constatar que ambos osEstados são forçados, por uma situação compulsiva, a assumir umahegemonia global, quando a probabilidade de um único Estado vir aexercer uma hegemonia efectiva e duradoura sobre todos os outros édiminuta, estou a tentar tornar compreensível o caracter paradoxaldesta situação e, também, o seu perigo.

Em fases anteriores do desenvolvimento dos Estados, como sedisse, as coisas nem sempre se passaram assim. Os Britânicos, porexemplo, no decorrer de quatro ou cinco séculos, conseguiram umaintegração, orientada a partir da Inglaterra, dos povos que viviam nasIlhas Britânicas. A Inglaterra transformou-se na potência hegemônica,e o inglês na língua unificadora das ilhas. Os dialectos celtas sobrevi-veram, aqui e ali. A consciência nacional escocesa e galesa enfraqueceu,para o que não terá contribuído em último lugar a comparticipaçãonos dividendos do império mundial britânico. Só a tradição própriados Irlandeses, em parte sob a influência da religião, impôs, mesmo aocabo de vários séculos, uma fronteira ao movimento britânico de inte-gração. Este é um dos muitos exemplos de processos prolongados deassimilação e de integração.

Um breve relance de olhos pelo processo de integração, quase ple-namente conseguido, por parte de um país hegemônico mais antigo,

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corna mais compreensível o processo de integração em curso sob aégide de uma potência hegemônica actualmente em ascensão, queainda não vingou, mas que poderá vir a resultar. Observo com atençãoredobrada os esforços que a Rússia Soviética investe na integração, outalvez melhor dizendo, na russificação dos diferentes povos da UniãoSoviética e, para além disso — ainda de forma hesitante —, do bloco deEstados do Leste. O que de modo algum implica que os dirigentes daUnião Soviética entendam este acontecimento como um processo deassimilação e integração. Influenciados por uma teoria de Estaline queacentua a autonomia das nações, eles poderão não estar conscientes dadinâmica a longo prazo destes processos de formação de Estados. Umaintegração dos povos da União Soviética, que avance ao longo de sécu-los até se tornar irreversível, situa-se, em todo o caso, no domínio dopossível. A russificação da Bulgária também é imaginável, mais difícil,porém, será conceber a da Romênia, da Hungria ou da Polônia.

Mas poderemos, acaso, imaginar que a União Soviética - partindoda premissa de que numa possível guerra futura algum dos partici-pantes pudesse sair vencedor —, sendo a vencedora de uma tal guerra,estaria em condições de levar os partidos comunistas ao poder emtodos os países da Terra? Seria, acaso, provável que a União Soviéticatambém então estivesse em condições de enfraquecer, por meio daassimilação e num espaço de tempo razoável a consciência nacionaldos povos por ela dominados em toda a Terra, dos Indianos e dosChineses, dos Senegaleses e dos Nigerianos, dos Ingleses, dos Italianose dos Franceses, dos Brasileiros e dos Argentinos, de tal modo que elescessassem de sentir a posição hegemônica dos Russos no mundo comouma dominação estrangeira? Será, acaso, imaginável que mesmo umahegemonia indirecta da União Soviética sobre os Estados do mundo,por intermédio de presidentes autóctones do partido colocados àcabeça de uma hierarquia de partido que abrangesse a totalidade decada país, seria suportável, a longo prazo, por parte de muiros Estados,com os seus perfis nacionais bem marcados, sem provocar constante-mente a mais veemente das resistências? Mas se a possibilidade deuma dominação comunista de todos os Estados do mundo por um par-tido, mesmo que sob a hegemonia de um império soviético que abran-gesse toda a Europa, é improvável e torna, de facto, provável o surgi-mento de renovados movimentos de oposição por parte dos povosoprimidos, para quê, então, a vitória? E então para quê, sobretudo, a

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guerra? Poderá esperar, realmente, a União Soviética uma maior segu-rança de fronreiras tão alargadas? Não seria de admitir que, duranteséculos, iriam deflagrar sempre novas lutas de libertação dos povosrefractários à assimilação e que estas iriam consumir as forças do paíshegemônico?

E o mesmo se passaria no caso de uma supremacia mundial dosEstados Unidos da América. Um considerável trabalho de assimila-ção é-lhes já hoje exigido, mesmo quando se trata apenas de absor-ver no interior do Estado os muitos grupos de emigrantes. Nemsequer é ainda previsível se a população de língua inglesa dosEstados Unidos estará em condições de absorver a população quefala espanhol, ou se a língua espanhola se irá estabelecer nos EUAcomo segunda língua, em ligação com elementos da tradição cultu-ral latino-americana. Partamos, também neste caso, da idéia ilusóriade que um dos dois Estados hegemônicos inimigos do mundoactual, os Estados Unidos, pudesse sobreviver a uma guerra nuclearcomo vencedor. Também este Estado estaria, então, em condiçõesde providenciar, dando o exemplo ou exercendo pressão, para queem todos os Estados do mundo fossem criadas instituições políticase econômicas que correspondessem aos ideais dos grupos americanosdominantes, ou seja, sobretudo, formas parlamentares de governo euma economia de mercado livre. Se, por um curro espaço de tempoe na pior das hipóteses, ainda seria possível que a União Soviéticaconseguisse manter todos os Estados do mundo sob a sua vigilânciamilitar e policial e, desse modo, fundar provisoriamente um mono-pólio do poder, um Estado unificado abrangendo toda a Terra, talseria, para um país regido por instituições parlamentares, umatarefa quase impossível. Não podemos excluir a possibilidade de osEstados Unidos, como aconteceu com Roma, sob a pressão da neces-sidade de garantir a sua hegemonia no mundo, se transformarem deuma república oligárquica num país governado ditatorialmente ou,eventualmente, numa ditadura presidencial. Todavia, seja qual for aforma do seu governo, o potencial militar, econômico e populacio-nal dos EUA seria ainda menos suficiente do que o da UniãoSoviética para criar uma pax americana, um Estado global unificado,governado a partir de um único centro, que abranja toda a multifa-cetada humanidade e que assuma o papel de polícia dessa mesmahumanidade.

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O que procuro demonstrar com estes ensaios de reflexão é oseguinte: em todas as fases anteriores do desenvolvimento da humani-dade foi possível que o vencedor de uma luta pela hegemonia realizassea integração efectiva de unidades de sobrevivência mais pequenas,anteriormente autônomas, no quadro de uma organização mais abran-gente de dominação, e esse foi, de facto, em numerosos casos, o cami-nho pelo qual uma multiplicidade de tribos mais pequenas se transfor-maram em tribos maiores ou também em Estados, e uma variedade deEstados mais pequenos se transformaram num Estado maior. Todavia,a união, e com ela também a pacificação da humanidade, não é realizá-vel deste modo - por intermédio de uma guerra. Muitas guerras passa-das foram guerras pela hegemonia. Fossem quais fossem os fins a curroprazo dos próprios beligerantes, estas guerras tiveram freqüentementecomo conseqüência a integração e, com ela também, a pacificação degrandes regiões. Os homens, na sua inevitável cegueira, só raramenteencontraram, até hoje, outro meio para levar a paz a grandes regiõesque não fosse o do conflito bélico. Esta longa tradição chegou até aosnossos dias. Instituições como o exército permanente e todo um com-plexo tradicional de meios de orientação que impelem constantementepara conflitos bélicos entre os Estados são disso o indicio.

Agora, porém, encontramo-nos, nós, a humanidade — repito-o —,perante um problema sui generis. Trata-se de um problema que é, emdeterminados aspectos, diferente dos que se colocaram aos homens emfases anteriores do seu desenvolvimento. Antigamente, a questão quese punha era a da união e, habitualmente também, a da pacificação departes da humanidade. Agora, alcançámos um nível em que a questão

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é a pacificação num plano global, portanto, de toda a humanidade.Esta tarefa não é realizável de modo tradicional, com as instituições eos modos de pensar tradicionais, que em boa parte remontam à épocados Estados dos príncipes. O paradoxo desra nova situação assenta nofacto de a humanidade, devido às distâncias de tempos remotos, se tertornado extremamente multifbrme, e, por outro lado, simultanea-mente, devido ao actual encurtamento das distâncias e ao facto de oslaços de interdependência se tornarem sempre mais longos, complexose sólidos, se terem aproximado extraordinariamente todas as suas par-tes, mesmo as mais recônditas. As duas grandes potências da actualhumanidade desenvolvem o seu armamento em concorrência uma coma outra, como se para elas, à semelhança das potências de outros tem-pos, ainda existisse a possibilidade de uma vitória e de obterem umamaior segurança para o seu território central por intermédio da anexa-ção de territórios ou da incorporação de grupos da população do adver-sário derrotado. Mas a idéia de que se pode conseguir maior segurança,como aconteceu por vezes em períodos anteriores, por intermédio deuma guerra é ilusória. Quando se pensa assim e se age também emconseqüência, é porque se procura, pura e simplesmente, enfrentaruma,situação nova com meios intelectuais antiquados.

Talvez soe como uma trívialidade se eu disser que a segurança deum Estado já não é alcançável, na situação actual, pelos meios da esca-lada armamentista, ou até mesmo da guerra. Que fazer, então? Qual éo problema? Ele é quase insolúvel, pelo menos, por agora. Uma vezque a coacção do exterior, na forma de um poder hegemônico, já nãoparece ser muito prometedora para assegurar a paz a nível mundial, ospovos da Terra encontram-se, hoje, perante a rarefa alternativa de con-tribuir gradualmente para a renúncia às instituições bélicas tradicio-nais, mediante a sua auto-restrição voluntária e, eventualmente, tam-bém pela subordinação voluntária à arbitragem da humanidade. Talveza massa dos homens e, em particular as camadas dirigentes dosEstados, possam evoluir muito gradualmente até este nível civilizacio-nal. Todavia, face à dura hostilidade, à aversão tenaz e selvática, ao des-respeito infundado, que determinam hoje com bastante freqüência,aberta ou encapotadamente, a conduta de membros de Estados diferen-tes nas relações entre si, a tarefa de uma pacificação da humanidadenão imposta do exterior, mas assente em decisões voluntárias, começapor afigurar-se insolúvel. Ela poderá apenas ser divulgada como a

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única alternativa possível à catástrofe — embora, claro, sem grandeesperança. E bem possível que os homens só possam ser motivadospara um corte com a tradição rotineira, para uma renúncia voluntária,inclusivamente por parte dos Estados mais poderosos, à defesa da segu-rança dos respectivos territórios por meios violentos, através da calami-dade de uma nova guerra. Mas, então, pode ser já demasiado tarde.

Chamei já, várias vezes, a atenção para as peculiaridades da embria-guez hegemônica. A política das duas grandes potências actuais só éexplicável neste sentido, nomeadamente pela esperança secreta dos seusdirigentes de que poderiam liquidar, desta ou daquela forma, o adversá-rio sem serem atingidos no centro do seu próprio potencial, de modoque o seu próprio Estado se tornaria, então, com toda a segurança, napotência dominante da humanidade. Tais esperanças só se podem acalen-tar na base de um sentido reduzido das realidades. Não é difícil admitirque, na situação actuaí, as armas de ataque ou de defesa não podem ofe-recer a um país a segurança suficiente que lhe permita sair de umaguerra sem os mais graves prejuízos para o seu potencial de poder, por-tanto, sem perder por longo espaço de tempo, talvez para sempre, o seupapel dirigente entre os Estados do mundo. Nesta situação, só acordos éque podem oferecer segurança aos Estados. A ratificação de acordos vin-culativos entre os Estados pressupõe, porém, um grau considerável deconfiança recíproca. Mas é em relação a este aspecto que estamos mal.A extrema desconfiança, constantemente alimentada por uma maré depropaganda, determina hoje em dia as relações entre muitos Estados e,em particulat, entre as duas grandes potências.

Surge, assim, no centro do nosso campo de visão, uma tarefa quetalvez não seja totalmente irrealizável e sobre a qual, em todo o caso, sepode trabalhar: a da redução da desconfiança. Se se quiser evitar asupremacia de um só povo, ou seja, a coacção vinda do exterior, seránecessário colocar exigências maiores a si mesmo, à própria capacidadede tolerância. A diminuição da desconfiança entre os Estados não é rea-lizável de hoje para amanhã. Ela exige o esforço conjunto e paciente demuitos homens, que lutem nos seus países para que cresça a disponibi-lidade para resolver os conflitos entre os Estados, seja por meio de com-promissos não violentos, seja por via da arbitragem exercida por órgãossupra-estatais. A diminuição multilateral e não apenas unilateral dashostilidades absolutas entre grupos humanos é, sem dúvida, uma dastarefas que a guerra que nos ameaça coloca aos homens ainda vivos.

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Em última análise, todo este trabalho visa criar uma confederaçãopacífica dos Estados a nível mundial, assente na união voluntária des-tes e que possua órgãos eficientes para a resolução de conflitos enrreEstados e para a penalização daqueles que desrespeitem a paz. Ela é aalternativa à corrida aos armamentos das duas potências hegemônicas,à sua dominação e à muito freqüente paralisação dos esboços de umatal confederação, além de ser também, com toda a certeza, a alternativaà hegemonia de uma única grande potência sobre todos os Estados domundo.

Uma tal confederação válida de todos os Estados começa por serapenas, seguramente, uma grande palavra. Muita água correrá sob aspontes antes que essa palavra se traduza em actos. Todavia, talvez nãoseja inútil continuar a ter em vista este mesmo objectivo, como algoem direcção ao qual se trabalhe com muita paciência e cautela, mesmoque ele não seja realizável durante o tempo de uma vida. Muitoshomens cometem, a este respeito, um erro. Fundamentalmente, eles sóse sentem capazes de se responsabilizar por objectivos a curto prazo. Sóse interessam por aquilo que crêem que se possa realizar amanhã,depois de amanhã ou, em todo o caso, durante o tempo da sua própriavida. «Depois de nós, o dilúvio», é o que eles dizem; «o que acontecerdepois da minha morte não me diz respeito.» Porém, é precisamentedisso que se trata: trabalhar pela paz entre os homens é uma tarefa alongo prazo.

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Além disso, esta tarefa não é realizável sem uma compreensão inte-ligente das relações de equilíbrio muito instáveis da hierarquia dosEstados. Tomemos, por exemplo, o caso actual dos Estados europeusocidentais. Eles são aliados dos Estados Unidos. Uma tal posição exigeuma elevada compreensão das questões relativas ao equilíbrio político.Nos países europeus, alguns grupos exigem o abandono completo daaliança americana. Se esta exigência fosse satisfeita, isso significariauma oscilação muito significativa do equilíbrio do poder em favor daUnião Soviética. Porém, ao mesmo tempo, mantém-se o perigo, nãopequeno para os Estados europeus, de resvalarem do papel de aliadospara o de Estados vassalos. Esre perigo seria certamente mais pequeno,se os Estados da Europa ocidental ou, pelo menos, alguns deles, seunissem. Por outras palavras, a situação mundial actuai põe os Estadoseuropeus, e talvez muito particularmente a República Federal, emrisco de se tornarem defacto Estados vassalos da União Soviética ou dosEstados Unidos. Manter o justo equilíbrio entre estas duas possibilida-des talvez só seja possível em associação com os outros países europeus.

Todavia, esta indicação mostra, simultaneamente, como é irrealistapensar em termos de alternativas absolutas e, portanto, também, de ini-mizades absolutas. Na situação actual de polarização antagonista, é estefreqüentemente o caso. Pensa-se em termos de preto e branco, de tudoou nada: ou afastamento dos Estados Unidos, ou dedicação incondicio-nal a eles. Manter o justo equilíbrio em casos destes é uma tarefa polí-tica muito mais difícil do que fazer uma política do «tudo ou nada».

Não menos difícil para os países europeus, e, particularmente, paraa Alemanha Federal, é a compreensão de que a decisão sobre a guerra

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nuclear já quase não está nas suas mãos, mas quase exclusivamente nasmãos das superpotências e dos seus governos. De momento, não queroocupar-me dos problemas de outros países europeus que, como aInglaterra e a França, graças à posse de armas nucleares próprias, pos-suem um certo grau de autonomia. Para os cidadãos da RepúblicaFederal não deixa de ser importante que romem consciência de que adecisão sobre se irão viver em guerra ou em paz só em muito pequenamedida depende deles. Eles só têm voto no que diz respeito ao seu des-tino na medida em que possam influenciar as decisões de ambos osEstados hegemônicos e o equilíbrio de poderes entre eles. Para umpovo que estava habituado à independência, é difícil não fechar osolhos para o facto de que o seu Estado, depois de ter perdido duasguerras, perdeu boa parte da sua autonomia. Talvez seja mais difícilainda tirar deste facto as conseqüências práticas que se impõem. Entreestas conseqüências está o facro de, para os alemães federais, ser quaseimpossível realizar uma política de paz por conta própria. Façam eles oque fizerem, a questão decisiva é a do significado que isso possa terpara o equilíbrio de poderes entre as duas potências hegemônicas. Se aRepública Federal se distanciar do seu aliado americano, por exemplo,através de uma tentativa de neutralismo, tal significaria, automatica-mente, um enfraquecimento dos Estados Unidos da América e, emconseqüência disso, um fortalecimento da União Soviética.

Certamente, não caberá a toda a gente ver estes problemas políti-cos como problemas de equilíbrio de poderes. Porém, é esta a verda-deira estrutura das relações entre os Estados; só nos aproximamos donúcleo da questão se tivermos uma compreensão da instabilidade doequilíbrio do poder entre os Estados.

Na corrida aos armamentos, o problema é sempre o do equilíbrio.Ambas as potências hegemônicas receiam constantemente ficar atrásda potência adversária no que respeita às alianças ou aos sistemas dearmas. Há pouco tempo ainda, os Soviéticos tinham a iniciativa nacorrida aos armamentos. Actualmente, têm-na os Americanos.Todavia, a tentativa do governo americano de, com o desenvolvimentode novos sistemas de armas, obrigar os Soviéticos, economicamentemais fracos, a acompanhá-los — logo, a fazerem despesas com arma-mentos que dificilmente poderão suportar — não deixa de ser peri-gosa. Com isso, os Americanos obteriam, temporariamente, a posiçãode potência hegemônica sem igual, portanto, de potência militar mais

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poderosa da Terra. No entanto, com este deslocamento do equilíbriode poder em seu prejuízo, os dirigentes da União Soviética poderiamsentir-se gravemente ameaçados; poderiam sentir que, desse modo,ficariam numa posição de inferioridade permanente em relação aosEstados Unidos. Não se pode prever como reagiriam os dirigentes daUnião Soviética quando chegassem à conclusão de que estariam emperigo de não conseguir acompanhar mais a corrida aos armamentos;quando tivessem de reconhecer que estariam a perder terreno, devido auma desigualdade crescente dos potenciais econômicos e militares emrelação aos Estados Unidos. Seria perfeitamente imaginável que osdirigentes da União Soviética, num caso destes, e talvez tomados depânico, se decidiriam por uma guerra preventiva, mesmo sabendo queesta decisão seria idêntica a um acto de autodestruição.

Como é natural, o inverso também é válido. Os grupos dirigentesdos Estados Unidos, numa situação de pânico, por exemplo, devido àdescoberta inesperada de armas soviéticas até então mantidas secretas,também poderiam tomar a decisão de antecipar o ataque esperado daparte dos Soviéticos.

Estas considerações, a descrição antecipadora de futuros possíveis,não são jogos ociosos da imaginação. Se atentarmos em situaçõesdeste tipo, estaremos mais bem colocados para ponderar sobre o quese pode e o que se não pode fazer. É habitual, em face de tais perigos,como o da decisão, devido à sensação de se estar a ser encostado à pa-rede pela outra parte, de uma guerra preventiva suicidaria chamar-sea atenção para a necessidade do equilíbrio militar entre os doisEstados. O esforço contínuo no sentido de manter a paridade do ar-mento mediante negociações entre os representantes de ambas aspotências militares mais poderosas é certamente imprescindível, masdele decorre, também, que seja inevitável o receio do desequilíbrio.Quando os representantes de ambas as potências não conseguem rea-lizar progressos nos seus esforços, talvez devessem soar de todos oslados, mais alto e com mais veemência, as exigências dos outros paí-ses no sentido de as duas grandes potências recorrerem à ajuda deconselheiros e de árbitros neutrais. Com efeito, não estou certo deque se possa realmente esperar que sejam os políticos dirigentes dosdois Estados hegemônicos a decidir, sozinhos e sem a ajuda de conse-lheiros menos directamente envolvidos, sobre o destino da humani-dade.

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Estou absolutamente certo de que o problema da escalada arma-mentista não se resolve restringindo as negociações a acordos sobre osarmamentos.

O receio de uma possível supremacia militar do adversário é, hojeem dia, em larga medida reforçado pelas manifestações de uma profundahostilidade emocional por parte dos representantes de ambos os Estados.Esta hostilidade, como todos sabeis, não tem as suas raízes somente naameaça militar recíproca; tem-nas, também, no facto de as duas maiorespotências militares do mundo representarem credos sociais diferentes e,de facto, opostos. De um lado, estão os representantes de um sistemasocial comunista, inspirados pela crença no valor insuperável deste sis-tema para toda a humanidade. Do outro lado, encontram-se os represen-tantes de uma ordem social capitalista. Estes são igualmente inspiradospela idéia de que o seu sistema econômico, a instituição de uma concor-rência empresarial relativamente livre, é a melhor organização, é a orga-nização ideal, e de que só ela poderá assegurar o bem-estar crescente e oprogresso da humanidade. Esre antagonismo entre instituições e ideaissociais é depois ainda reforçado pelo facto de, com a Revolução Russa, seter instalado uma ditadura de partido que se perpetua, ao passo que ainstituição econômica da concorrência empresarial mais ou menos livre,na maioria dos Estados mais desenvolvidos e, principalmente, nos pf°~prios Estados Unidos da América, se associou à instituição política "°sufrágio individual e secreto e à concorrência relativamente livre e flao

violenta de pelo menos dois partidos, portanto, a uma emulação aos

partidos com vista a ganharem os votos dos cidadãos e, por seu interr^6"diof o acesso aos postos de governo.

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No conflito das duas grandes potências agem permanentementeum sobre o outro dois impulsos, dois receios elementares, estreita-mente relacionados, mas que podem ser claramente destrinçados naprática e na teoria. Primeiramente, temos a preocupação dos povosamericano e soviético, e dos povos seus aliados, pela respectiva segu-rança física — o receio ancestral que um grupo humano sente de serdestruído por outro. Este temor é uma condição até agora inalterávelda vida dos homens, uma conditio humana. Se a União Soviétida e osseus aliados obtivessem militarmente a supremacia, estariam em situa-ção de matar milhões de cidadãos dos Estados Unidos e dos países seusaliados na Europa ocidental e na Ásia; poderiam pôr estes países dejoelhos. O mesmo se passaria se o equilíbrio dos armamentos se modi-ficasse em favor dos Americanos. Então, os Estados Unidos e os seusaliados poderiam levar a destruição e a morte aos povos da UniãoSoviética e aos seus aliados.

Mas isto não é tudo. Ao receio da ameaça física, alia-se, em ambosos lados, um outro: o receio de serem ameaçadas as próprias institui-ções sociais e o da perda do sentido e do valor da vida, em conseqüên-cia da sua destruição. Enquanto força motriz das hostilidades, da per-manente difamação mútua, não se deverá atribuir a este receio umsignificado menor do que ao temor do extermínio e da destruiçãofísica.

Graças a um poder bélico superior, os Soviéticos poderiam imporaos Americanos e aos seus aliados as suas instituições políticas e sociais.Na base de um poder militar superior, poderiam instituir uma dita-dura do Partido Comunista nos EUA e, em cada um dos Estados seusaliados, poderiam transformar todas as empresas privadas em empresasestatais — numa palavra, poderiam abolir as formas de vida e de poderexistentes e colocar, em seu lugar, outras, segundo o seu própriomodelo.

Os livros autorizados do sistema confessional comunista, muitoparticularmente também as obras de Karl Marx, imprescindíveis paraa legitimação da ditadura comunista do partido, contêm numerosasexpressões de desprezo e de ódio dirigidas contra todos os que se recu-sam a partilhar a palavra de ordem de uma luta de classes implacávelou a crença na necessidade de uma revolução sangrenta e de uma dita-dura como sua conseqüência. No sentido da tradição que remonta aMarx e a Lenine, uma revolução, portanto, de um ponto de vista prá-

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tico, a utilização da força física, aparece como a única via para a resolu-ção dos conflitos entre trabalhadores e empresários. O sistema confes-sional comunista apresenta a queda do capitalismo como se se tratassede uma necessidade imanente ao desenvolvimento da humanidade.Esta é a razão pela qual, nos países capitalistas, ao receio da destruiçãofísica pelo poder militar comunista se alia o receio da destruição dasformas tradicionais de vida e de poder, e o da sua substituição por ins-tituições de modelo soviético. As camadas dirigentes da aliança deEstados encabeçada pelos Estados Unidos sentem-se particularmenteameaçados por este perigo. Uma vitória militar da aliança de Estadoscomunistas — partindo do princípio de que ela seria possível apenascom a utilização de armas convencionais, e sem uma contaminaçãomotivada pela utilização de armas nucleares — acarretaria consigouma completa degradação social dos grupos humanos anteriormentedirigentes e, em muitos casos, o seu encarceramento ou a sua deporta-ção para campos de concentração distantes.

Os diferentes sistemas confessionais das sociedades capitalistasapresentam contornos menos nítidos do que os das sociedades comu-nistas, que se acham expostos numa série de livros autorizados, dosquais são dados a ler excertos aos indivíduos já na escofa, e que contri-buem, em conformidade com a forma ditatorial de governação, parauma uniformização relativamente elevada das formas individuais dosaber e do pensamento. Todavia, apesar de nas sociedades capitalistasfaltarem livros que desempenhem um papel fulcral semelhante,enquanto representantes de um sistema social confessional, como asobras de Marx, Engels e Lenine o fazem na União Soviética, não falta,no entanto, um consenso ideológico bastante alargado que não seesgota, certamente, numa recusa do sistema confessional característicodos países comunistas, mas que encontra nessa recusa a sua expressãotalvez mais concisa e generalizada. Em ligação com estas expressõescolectívas de rejeição do sistema confessional comunista, que se esten-dem, com uma grande riqueza de cambiantes por todo um espectro deideais não comunistas, encontramos também contrapartidas da estig-matização e da difamação do capitalismo, para as quais Marx criou omodelo quase insuperável e que, na União Soviética, foram transferi-das, inesperadamente, do plano da política interna para o da políticaexterna. Inseridas nos diferentes sistemas confessionais dos países capi-talistas, encontram-se numerosas contrapartidas da forma de argumen-

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cação introduzida por Marx, que estigmatiza o adversário, pura e sim-plesmente, como digno de destruição, como se fosse um mal absoluto.

Assim, o receio que existe no lado americano também ocorre nolado soviético. Também deste lado não se trata só do receio da des-truição física, mas, ao mesmo tempo, do da destruição social. Umasupremacia militar irresistível dos Estados Unidos e dos seus aliadosameaça, para além da existência física dos povos do bloco de Leste,igualmente as suas formas actuais de vida e de poder. E o perigo paraas camadas dirigentes é também, neste caso, particularmente grande.Seriam, sobretudo, os membros dos partidos comunistas, que desem-penham nestes países um papel determinante, quem correria o riscode perder as suas posições privilegiadas após uma derrota militar.Grupos inteiros seriam, talvez, condenados pelos tribunais de umnovo regime — como, no caso de uma vitória comunista, aconteceriacom os grupos dirigentes dos países capitalistas — a uma vida nasprisões ou em campos de concentração. Também, neste caso, o perigoda guerra não significa para muitos homens apenas uma pura e sim-ples ameaça à sua vida, mas, ainda, uma ameaça à sua existênciasocial, representando, assim um grave perigo para tudo o que, aosseus olhos, dá sentido e valor à vida.

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Quando apelamos a uma reflexão sobre possíveis estratégias dedesanuviamento, é útil conceber, com mais clareza do que acontecehabitualmente, estas duas raízes da ameaça mútua e do receio deambos os lados um em relação do outro, o seu aspecto social e físico.Temos, por vezes, a sensação de que, freqüentemente, a alguns homensparece ser muito simples e evidente o que se poderia fazer para libertaros grupos dirigentes de ambas as superpotências, intrincadas uma naoutra, do corpo-a-corpo congelado em que se encontram e, destemodo, também, da compulsão fatal da escalada armamentista. A mui-tos parece ser suficiente mostrar ao mundo inteiro que eles própriossão pessoas de boa vontade e que, consequentemente, são pela paz.Só isso já seria um contributo significativo para evitar o perigo daguerra. Muitos homens parecem pôr, hoje, as suas esperanças nos acor-dos das duas potências militares sobre a restrição dos armamentos.Tais acordos são, sem dúvida, de grande utilidade. Porém, é precisa-mente quando estamos conscientes da dupla raiz da ameaça bilateralque devemos colocar a questão de se os acordos sobre armamentosmilitares, só por si, podem ser alguma vez suficientes, se eles sãosequer possíveis, enquanto a outra raiz da profunda hostilidade recí-proca das duas potências hegemônicas não for igualmente tomada emconsideração.

Com isto, quero dizer o seguinte: por muito úteis e indispensáveisque sejam os acordos sobre restrições dos armamentos, eles só têm umaprobabilidade muito pequena de gerarem, a longo prazo, uma para-gem na corrida aos armamentos, pois a continuação desta, sob a formade uma escalada que se incrementa a si própria, será sempre de novo

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alimentada pelo receio mútuo, pela desconfiança de ambos os lados e,sobretudo, pela inimizade implacável de ambas as camadas dirigentes,que encontra a sua expressão na contínua difamação ideológica deambas as partes, e para a qual, além disso, há, como se disse, boasrazões. Creio que a probabilidade de parar o processo de corrida aosarmamentos é pequena enquanto não nos esforçarmos, simultanea-mente, por um desarmamento ideológico. Esta é, porém, uma tarefaque exige, em larga medida, uma estratégia bem diversa do procedi-mento que se encontra no centro dos acordos sobre armamentos. Semdúvida que as negociações entre especialistas desempenham um papelfundamental nos esforços para o desarmamento ideológico entre ambosos grupos de povos que se ameaçam reciprocamente. Porém, dentrodos povos ameaçados, há também outros círculos que podem e devemparticipar nesta tarefa.

E bastante irrealista ter esperanças de que ambos os lados estejamem condições de parar, efectivamente e a longo prazo, a dinâmica auto--sustentada da corrida aos armamentos, caso eles continuem a manifes-tar, nos seus discursos de propaganda, a implacável hostilidade recí-proca que se exprime, sobretudo, na crença comum de que a outraparte, .mais cedo ou mais tarde, terá de desaparecer da face da Terra.

Se observarmos mais rigorosamente o desenvolvimento destaguerra fria, verificaremos que a força e o impacte dos insultos recípro-cos estão sujeitos a oscilações. Durante algum tempo, os comunistasestiveram por toda a parte na ofensiva em matéria de injúrias contra oscapitalistas. Em todas as crises dos países capitalistas, que de resto per-tencem à sua especificidade estrutural normal, eles viam a crise final.Todas as gerações comunistas esperavam sempre de novo que a profeciamarxista do declínio do capitalismo se consumasse durante o tempo dasua vida. Em cada esquina era vaticinada triunfalmente a revolução.Em certa medida, Marx tinha conseguido esterilizar teoricamente oprocesso de uma revolução. Por isso, poderia facilmente esquecer-seque as revoluções são acontecimentos sociais exactamente tão violen-tos, sangrentos e homicidas como as guerras. Anteriormente, falava-se,com freqüência, de uma guerra justa ou injusta; pode ser que, aosolhos de muitos comunistas, uma revolução apareça como um acto deviolência justo, e uma guerra como um acto de violência injusto. Emtodo o caso, isto é bem um exemplo da dificuldade em promover odesarmamento sem recorrer a um desarmamento ideológico. E difícil

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imaginar que os Estados com regimes parlamentares sejam capazes defazer um acordo duradouro sobre a corrida aos armamentos enquanto,simultaneamente, os seus parceiros de negociações propagam a crençana ocorrência inevitável de uma revolução sangrenta nestes Estados.Entretanto, é certo que a idéia de que os Estados capitalistas desapare-cerão por eles mesmos, com a ajuda de uma revolução, ainda durante avida dos crentes, perdeu muito da sua força persuasiva. Mas os moi-nhos da propaganda continuam a girar a toda a velocidade com os mes-mos cabeçalhos. E difícil ter esperanças na possibilidade de uma coexis-tência relativamente pacífica com outros grupos de homens a quem, aomesmo tempo, se ameaça permanentemente com o declínio e que seconsideram, do ponto de vista ideológico, como desprovidos de valor.

O mesmo é válido para o outro lado. Enquanto soviéticos e comu-nistas, os dirigentes da União Soviética têm mostrado, com freqüência,uma susceptibilidade muito especial em face de medidas ou de afirma-ções que parecem recusar-lhes o reconhecimento como grande potênciade pleno direito entre os Estados mais desenvolvidos da Terra. Comoresposta à tradicional ofensiva ideológica dos países comunistas, temvindo a reforçar-se, ultimamente, a ofensiva ideológica dos países capi-talistas, particularmente dos Estados Unidos. Fala-se do mundo civili-zado do Ocidente, visando as ditaduras de partido dos países comunis-tas, que surgem aos olhos desse Ocidente como a expressão da nãoliberdade e da não igualdade institucionalizadas. Tal como os homensse deixam muitas vezes enganar nos países comunistas pela mágicaexpectativa de que o capitalismo desaparecerá por si próprio, por obrae graça da tão ansiada revolução, também há quem se entregue espe-rançosamente, segundo parece, em muitos círculos do Ocidente, àexpectativa mágica de que o regime comunista, mais cedo ou maistarde, desaparecerá na União Soviética e nos Estados seus aliados, sejadevido à inércia inibitiva da sua burocracia, seja por eles não consegui-rem acompanhar o desenvolvimento dos Estados de regime parlamen-tar. Também aqui se multiplicam as expressões de desprezo ideológico

pelo lado oposto.É esta situação que torna necessário um desarmamento ideológico,

mas não o entendo como um abandono dos objecrivos e das convicçõessociais próprios. Não há nenhuma razão para que os comunistas nãopossam conservar a sua atitude valorativa e os capitalistas a sua.Também não recomendo o neutralismo, tudo isso está longe de mim.

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O que eu recomendo é uma política ampla e geral de moderação —uma moderação substancial da hostilidade face a grupos humanos ou aindivíduos que não partilham a convicção de outros. Em face do perigode uma guerra atômica, polêmicas apaixonadas e intolerantes entrehomens de diferentes crenças partidárias são perigosas. Penso, por-tanto, que será necessário falar mais e mais claramente sobre aquiloque diz respeito a todos nós, pois o nosso fervor e a nossa própria pai-xão no ódio ou no desprezo pelo outro lado incrementam a passíonaü-dade do conflito, que ainda hoje anima ambos os governos, os governosprincipais responsáveis, em última instância, pela guerra e pela paz.

O perigo de uma guerra nuclear é demasiado grande e as conse-qüências de uma tal guerra, para os povos da Terra que viessem a serafectados por ela, são demasiado terríveis para que, na nossa época, nospossamos continuar a dar ao luxo de uma hostilidade implacável einconciliável, de uma incessante difamação e imprecação mútuas,numa palavra: ao luxo da intolerância ideológica. Como disse, istonada tem a ver com a rejeição das convicções próprias, refere-se apenasao tom de voz com que as defendemos. Mais do que isso: exige o reco-nhecimento, no campo dos países de orientação capitalista, de que oregime-comunista dos países do bloco de Leste é demasiado forte epoderoso para que possa ser suprimido de outra maneira que não sejapor uma vitória sem ambigüidades em conseqüência de uma guerranuclear. Exige, por outro lado, o reconhecimento, no campo dos paísesde orientação comunista, de que os países governados de um modocapitalista são demasiado fortes e poderosos e de que, além disso, a ori-entação parlamentar dos homens e a economia de mercado estão alidemasiado enraizadas para que possam ser eliminadas de outro modoque não seja por meio da violência nua e crua vinda do exterior, por-tanto, por meio de uma vitória comunista numa guerra nuclear. Emambos os casos, é mais do que duvidosa a possibilidade de uma vitórianuma guerra deste gênero, e que tal guerra não tenha, em última aná-lise, por conseqüência o povoamento das regiões contaminadas poruma nova população e, assim, uma transformação completa do mapada Terra.

Os dirigentes de ambos os campos entregam-se certamente à espe-rança de que o regime adversário se irá desmoronar por si próprio den-tro de pouco tempo, devido às suas contradições internas ou à suaincapacidade burocrática, de tal modo que, no fim, talvez só seja pre-

ciso dar-lhe o golpe de misericórdia. Ambos os lados subestimam aforça e a vontade de resistência do lado oposto. Mas que acontecerá se adesejada e magicamente esperada auto-execução do adversário nãotiver lugar num espaço de tempo previsível? A probabilidade de queos sentimentos de mútua inimizade que foram acumulados, que, alémdisso, são constantemente reforçados em ambos os lados por um sis-tema cerrado de argumentação, sejam descarregados involuntariamenteem actos bélicos e abram assim o ciclo de violências é, pois, muitogrande. Não é estranho que, apesar de se estar consciente do perigo queas grosseiras armas físicas representam, não se esteja consciente doperigo que representam as armas do pensamento, da maneira de pensar,que despertam esperanças falsas e que empurram para a guerra por meiodo atiçar de inimizades mútuas? Como se poderá tomar providênciasquando só se negoceia e reflecte sobre a redução de armamentos e não,simultaneamente, sobre o que os homens que decretam o fabrico des-tas armas e eventualmente a sua utilização pensam uns dos outros?Falei anteriormente na anulação da desconfiança. Isto é imprescindível,mas trata-se de um processo difícil e longo. Não exige apenas umamaior moderação dos interlocutores envolvidos na guerra fria — naguerra de prevenção — de ambas as grandes potências, exige, alémdisso, algo muito mais difícil: a renúncia a determinados axiomas peri-gosos da concepção de mundo de ambos os partidos; assim, por exem-plo, a renúncia à esperança de que o lado adversário, a par da sua formade regime e de economia, desaparecerá brevemente da face da Terra eque será substituído pela forma oposta de regime e de economia.

Seria bom, e também muito útil para minimizar o perigo deguerra, se os Americanos e os seus aliados reduzissem a propagandaque apresenta o comunismo como algo totalmente diabólico. Talvezainda não se esteja neste bloco muito consciente de que os Estados plu-ripartidários terão de viver, num futuro previsível, como vizinhos dospaíses do bloco de Estados governados de um modo comunista e dita-torial, a não acontecer uma guerra que modifique todo o mapa daTerra. A violência não distingue entre as suas vítimas. Não se podeabominar e estigmatizar o apelo à violência da revolução no interiordos Estados e, ao mesmo tempo, preparar e louvar o emprego da força

nas relações entre os Estados.E, por outro lado, seria bom que os dirigentes do bloco soviético

pudessem de igual modo amenizar gradualmente a sua propaganda

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revolucionária. Para o bloco soviético também é válido o facto de queos homens que o constituem terão de viver num futuro previsível jun-tamente com os Estados governados de um modo parlamentar e provi-dos, em medida variável, de uma economia de mercado livre. Não sepode esperar que uma vida pacífica conjunta seja possível, que o perigode guerra diminua, enquanto no bloco soviético as crianças tiverem deaprender na escola e, mais ainda, os estudantes, nas universidades queos países do bloco de Estados capitalistas e parlamentares se irão trans-formar, mais cedo ou mais tarde, por meio de uma revolução san-grenta, em ditaduras comunistas do partido do proletariado, em con-formidade com o modelo da União Soviética. Como jã se disse, aviolência não distingue entre as suas vítimas. Não se pode esperar umadiminuição do perigo de virem a ser cometidos actos de violênciabélica nas relações entre Estados e, ao mesmo tempo, profetizar e pro-pagar, como palavra de ordem altamente louvável, uma subversão vio-lenta, uma revolução no interior de outros Estados.

A diminuição da desconfiança é, certamente, uma tarefa de algumaurgência, mas não devemos iludir-nos: trata-se de uma tarefa difícil.As duas grandes potências em luta corpo a corpo apenas poderão tentardiminuir, durante um espaço de tempo prolongado e passo a passo, ainimizade entre elas e ganhar, assim, um pouco mais de confiança umana outra.

Talve2 este processo possa ser favorecido pelo facto de elas não esta-rem a ser instigadas uma contra a outra e a fazer guerra por um daque-les conflitos de interesses que tornam impossível a coexistênciaenquanto povos autônomos. Os povos do bloco soviético, para pode-rem existir com relativa autonomia, não precisam da terra onde vivemos Americanos, e os estes, enquanto povo, não precisam das regiões daUnião Soviética. Se o conflito de interesses fosse deste tipo, seria entãosignificativamente mais difícil desviar a humanidade de uma guerra.Porém, os conflitos de interesses de ambas as grandes potências nãoassentam em reivindicações de territórios; eles baseiam-se, principal-mente, no facto de elas se ameaçarem reciprocamente na sua segurançae, ao mesmo tempo, no de se terem tornado involuntariamente rivaisna luta pela posição cimeira na hierarquia de Estados, pela posição depotência mais poderosa da humanidade. Hoje, cada uma das duasgrandes potências, a União Soviética ou os Estados Unidos, seria defacto, eventualmente, a nação mais poderosa da Terra, caso a outra não

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estivesse a obstruir-lhe o caminho. A isso acrescenta-se, naturalmente,a diferença das suas instituições e ideais sociais, que ambas tentamdifundir por toda humanidade. Não é devido a reivindicações territo-riais inconcílaveis, mas, sim, enquanto rivais na luta pela hegemoniaentre os Estados do mundo e enquanto representantes de sistemas sociaisopostos, que elas se ameaçam reciprocamente, que os grupos dirigentesde ambas as grandes potências se confrontam com a maior das descon-fianças. Cada um deles crê que o futuro lhe pertence. Os que se vêemcomo libertadores da opressão de uma classe exploradora são, para ooutro lado, opressores ditatoriais do povo. Este intrincado de atitudes esentimentos fundamentalmente hostis impregna todas as negociações edificulta todos os esforços com vista a alcançar compromissos.

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Estes sentimentos de hostilidade são, certamente, partilhados porlargas camadas de ambos os grupos populacionais. Pode ser prejudicialpara a existência social das pessoas, talvez até perigoso para a sua exis-tência física, se for posta em dúvida a sua lealdade relativamente àscrenças sociais doutrinárias sancionadas oficialmente na sua sociedade.Com uma certa margem de tolerância nas sociedades governadas demodo parlamentar, e quase sem ela nas governadas de modo ditatorial,é ainda hoje válido o velho princípio: Cuius regia, eius religto. Por outraspalavras: é aconselhável mostrar que se é partidário de uma das confis-sões sociais aprovadas na sua própria sociedade estatal e evitar a sus-peita de que se partilha uma crença social que é negada, proscrita e fre-qüentemente também odiada na sua própria sociedade.

Se se observar de uma certa distância a situação de guerra fria, atéagora característica, apesar de algumas oscilações, da segunda metade doséculo xx, verificar-se-ã, sem dificuldade, que a «guerra quente» — paraa qual nos guiam os dirigentes de ambos os blocos, na qualidade de pro-pulsores e, simultânea e irremediavelmente, de propulsionados — tem,sob muitos aspectos, o caracter de uma guerra religiosa. Ainda não foihá muito tempo que grupos de protestantes e de católicos se enfrenta-ram em muitas regiões da Europa numa inimizade inconciliável,lutando uns contra os outros pela hegemonia, em várias guerras de vidaou de morte. Relações em que os homens se odeiam e matam devido àssuas diferentes crenças religiosas prolongam-se em algumas partes daEuropa, por exemplo, na Irlanda do Norte, até aos fins do século xx.Todavia, de uma maneira geral, o furor da inimizade inconciliávelcedeu a um clima mais ameno de relações entre protestantes e católicos.

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Já no século XXI havia homens que se horrorizavam perante osexcessos de intolerância e hostilidade que ocorriam entre diferentesgrupos humanos. Porém, arautos da moderação e da tolerância, comoMontaigne e Erasmo, apesar de terem sido respeitados, encontraram,nessa qualidade, pouca audiência. O ódio e a ameaça entre os que per-maneceram fiéis à velha Igreja e os que aderiram às novas igrejas e sei-tas eram demasiado grandes, as feridas demasiado recentes para quepudesse ser posto fim às violências e ao sofrimento sem sentido que ospartidários das diferentes religiões causavam uns aos outros. Muitosséculos passaram antes que a hostilidade implacável entre os diferentesgrupos religiosos se atenuasse, bem como a rendência irresistível paraatacar com palavras e actos os homens de outra fé, e para tentar con-vertê-los, se possível, à verdadeira fé. Hoje, passados três ou quatroséculos, aquilo que então parecia irrealista, aquilo que o jovemThomas More descreveu como um ideal e que parecia ser realizável,quanto muito, no país das utopias — a tolerância recíproca entre osdois grupos religiosos — tornou-se substancialmente maior. Não fal-tam ressonâncias da velha condenação infamante entre protestantes ecatólicos, porém a inimizade profundamente sentida dissipou-se quasepor completo. Partidários de ambos os grupos religiosos são muitasvezes capazes de viver em paz e amizade. Parece ser quase incompreen-sível porque é que eles se odiavam tanto em tempos passados, a pontode se guerrearem entre si.

Que a actual inimizade, tão profundamente arraigada como a ante-rior e que é certamente alimentada por palpáveis antagonismos deinteresses, em especial os dos grupos dirigentes, possa diminuir entreos Estados em que imperam doutrinas confessionais comunistas e capi-talistas poderá parecer, hoje, uma coisa utópica. O problema, porém, éque o tempo urge. Já não dispomos de três a quatro séculos para espe-rar que os ânimos arrefeçam. Hoje, uma das tarefas mais urgentes é ade orientar os nossos esforços tanto com vista a uma diminuição doarmamento como também a uma atenuação dos amargos sentimentosde hostilidade e do respectivo receio mútuo que conduzem dois gruposde Estados, com instituições e doutrinas sociais diferentes, a uma esca-lada armamentista imparável e com ela, finalmente, a uma possíveldestruição do adversário e de si próprio. Esta é a razão pela qual meparece ser importante combinar os esforços por um desarmamentomilitar com o empenho por um desarmamento ideológico. Com vista à

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realização desta tarefa, terá também um papel decisivo a disponibilkdade dos representantes do Estado de ambos os lados para baixarem otom da voz, para moderarem os seus ataques verbais, numa palavra:para a tolerância recíproca. Todavia, como já foi referido, os governa-dos podem colaborar, em larga medida, nesta tarefa, pois não esqueça-mos o seguinte: a guerra é, em última instância, uma instituiçãosocial, um acontecimento que, sendo sempre de novo reproduzidopelos homens, não pode ser eliminado precisamente porque se trata deum hábito — tanto o hábito do ódio como o de decidir os conflitosentre Estados pela utilização do poder militar — profundamente arrai-

gado nas estruturas da personalidade.Numa época em que o desenvolvimento da técnica dos armamen-

tos e, mais ainda, da técnica em geral, lançou nas mãos dos homensmeios poderosos, com os quais eles podem destruir grande parte dahumanidade e talvez, até, tornar inabitável a Terra, é necessário sub-meter a um exame todas as formas tradicionais de vida colectiva e, par-ticularmente, os padrões de comportamento a todos os níveis. A am-plitude das destruições que os homens podem provocar com os meiostécnicos dos nossos dias é bem maior do que alguma vez no passado.Poderá mesmo dizer-se que a elevação a um nível até hoje nunca alcan-çado do perigo que os homens, nas suas unidades de sobrevivência,sobretudo nos Estados, representam uns para os outros significa a tran-sição para uma era nova. Encontramo-nos perante a necessidade deoptar enrre a autodestruição generalizada da humanidade e a supressãodas atitudes que conduzem à guerra como meio de resolver os conflitosentre Estados. A segunda alternativa exige um novo passo civilizacio-nal, exige, particularmente, uma moderação superior à que alguma vezfoi mostrada na abordagem de conflitos sociais por parte de todos os

interessados.Um dos problemas que, neste contexto, temos de enfrentar é o de

que o desenvolvimento das relações entre os homens e entre institui-ções que os enquadram se processa, actualmente, muito mais devagar,além de ser muito mais difícil, do que o desenvolvimento das relaçõesentre os homens e a natureza não humana, portanto, do que o do saberdas ciências naturais e da técnica. As dificuldades que daí resultam sãoainda reforçadas por uma tradição do saber que, apesar do seu caractermanifestamente discutível, se mantém com uma força inalterável e queconsiste no hábito tradicional da apresentar as relações dos homens

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com a natureza não humana e as dos homens entre si no seu desenvol-vimento, por intermédio da fala e do pensamento, como processoscompletamente independentes. É apenas um pequeno exemplo destatendência para classificar os novos acontecimentos arrumando-os emgavetas diferentes o facto de os representantes dos maiores Estadosmilitares da actualidade crerem poder chegar a acordos efectivos sobrea extensão dos seus arsenais e o tipo de armas aí armazenadas sem,simultaneamente, refrearem a inimizade recíproca e examinarem como maior cuidado a natureza dos conflitos e das suas próprias atitudes,que constantemente fornecem novos incitamentos à escalada arma-mentista. 23

A encapotada mas persistente inimizade entre os dois principaisEstados militares dos nossos dias empurra permanentemente ambos oslados para uma característica deturpação dos fãctos. São os governantesquem costuma dar o tom, no lançamento destas deturpações; umaparte significativa dos governados acredita piamente nelas, pois lison-jeíam o seu ego.

Ao núcleo das profissões de fé sociais de ambos os lados pertenceuma imagem idealizada da sociedade que cada uma delas legítima euma imagem depreciativa da do adversário. Como em muitos outroscasos — antigamente, por exemplo, entre protestantes e católicos — adiferença entre as instituições sociais e as doutrinas confessionais dosEstados capitalistas e comunistas apresenta-se também, hoje, aoshomens nelas envolvidos, como um antagonismo entre o bem e o malabsolutos. Parece mesmo tratar-se de um antagonismo insuperável,que radica na própria existência da humanidade. Ele duraria eterna-mente — é assím, pelo menos, que o mito se impõe à consciência demuitos homens — a não ser que o próprio lado, portanto, o lado bom,consiga a vitória sobre o mal absoluto, representado pelo outro lado.O comunismo vitorioso, ou o capitalismo vitorioso, apresentam-se,neste sentido, como o estádio final do desenvolvimento da humani-dade, como o ideal tornado realidade. No ardor da batalha, cegamentearrastados pela dinâmica desta situação de pré-guerra, muitos partidá-rios de ambos os blocos são incapazes de pensar em seja o que for queesteja para além da vitória final da sua própria crença social e da orga-nização de toda a humanidade segundo o seu modelo, mesmo quando,noutro compartimento mental, estão conscientes de que o enfraqueci-

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mento de todos os participantes, depois de uma terceira guerra mun-dial, seria, com toda a probabilidade, suficientemente grande para queo papel dirigente dos Estados Unidos e da União Soviética entre osEstados da humanidade passasse definitivamente para outras mãos.

Tal como as coisas estão, parece que ambas as potências hegemôni-cas, envolvidas no seu combate, só podem continuar a pensar, apesarda modificação das condições de luta, dentro dos parâmetros habituais.A dinâmica da configuração que ambas constituem é, de facto, tãoforte como isso. O comunismo vitorioso, o capitalismo vitorioso sur-gem como o estádio derradeiro da humanidade. Para além disso, nin-guém pensa. Os governantes de ambos os lados sentem a necessidadede preparar os seus cidadãos para uma possível guerra. Se esta vier,então, para ambos os lados, muito depende da moral dos soldados, dadisposição dos membros do grupo a que cada um pertence para sacrifi-car a vida pela boa causa do seu lado. Isso obriga a um esforço prepara-tório para consolidar profundamente na sensibilidade dos homens doseu próprio partido a crença no bem absoluto da própria causa e nomal absoluto da do adversário.

Pode aceitar-se que as camadas dirigentes de ambos os grupos deEstados agem com toda a sinceridade. Elas próprias podem estar, até,profundamente impregnadas da crença no bem absoluto do seu pró-prio ideal social e, correlativamente, da crença no mal absoluto do doadversário. Desta crença, de sinal contrário conforme o caso, parecempartilhar os grupos dirigentes e talvez, também, largas camadas deambos os blocos de Estados adversários. E ela é, manifestamente, umdos motivos ímpulsionadores decisivos da desconfiança inextinguívelentre ambos os lados, desconfiança essa que desempenha um papel depeso como o motor da corrida aos armamentos, tão difícil de parar.

A estratégia actual da argumentação em defesa do comunismo oudo capitalismo é, de facto, como se pode ver, bastante estranha. Elaseduz e desencamínha graças a uma mistura peculiar de ideal e de rea-lidade. Assim, por exemplo, nem sempre se torna claro se, aos olhosdos seus representantes, a ordem social soviética actual constitui, já, arealização do ideal comunista, portanto, se é uma ordem social comu-nista, ou se se encontra apenas a caminho dela; e, neste último caso,seria interessante saber se o caminho para a realização deste ideal éainda muito longo. Com o sistema social capitalista e parlamentarpassa-se algo não muito diferente. Habituámo-nos a falar do mundo

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livre. Seria, certamente justificável se se dissesse que os homens, nosEstados de regime parlamentar, podem levar, na generalidade, umavida individual mais livre, com todos os seus riscos, do que nos paísesde regime ditatorial. Porém, falar, simplesmente de uma sociedadelivre, em sentido absoluto, significa pura gabarolice. O que querodizer com isto é o seguinte: através da constante idealização da suaprópria ordem social, que é a contrapartida da difamação da ordemsocial inimiga, os homens dão a impressão de que a ordem socialvigente no seu lado seria um estádio último da humanidade, o ideal

realizado.Seria útil para o desanuviamento se se distinguisse, mais clara-

mente do que é habitual fazer-se, entre a imagem ideal de uma socie-dade comunista e a sociedade real da União Soviética; entre a imagemideal de uma sociedade capitalista e parlamentar e a sociedade de factoexistente nos Estados Unidos. Será então mais fácil compreender quenem o comunismo nem o capitalismo são um estádio derradeiro nodesenvolvimento das sociedades humanas. Ambos são fases de umdesenvolvimento que, com grande probabilidade, caso não sobrevenhauma guerra, conduzirá para além das formas sociais actuaís, portanto,para além do capitalismo e do comunismo no sentido actual destes ter-mos, em direcção a outras formas sociais. Assim, tal como hoje se nosapresentam na realidade, as sociedades comunistas e capitalistas estãocheias de defeitos evidentes que carecem e são passíveis de ser corrigi-dos. Não vale de todo a pena correr o risco de uma guerra em que ofuturo da humanidade está em jogo só por causa do antagonismo entreduas formas de sociedade, cada uma com os seus méritos e desvanta-gens próprias, mas que, em relação às necessidades dos homens que asconstituem, são ainda formas muito imperfeitas e transitórias da vidaem sociedade.

Uma questão inteiramente diferente é a de se, ao compararmos umasociedade comunista com uma sociedade capitalista reais, e com plenoconhecimento dos seus defeitos aqui e agora, preferimos uma destassociedades à outra. Eu, pessoalmente, estou convicto de que o sistemasocial ocidental é de longe preferível ao oriental. Os meus talentos, fos-sem eles o que fossem, teriam estiolado, quisesse o destino que euficasse na Alemanha oriental, onde nasci. Todavia, a questão que todos

f

os homens devem colocar, pertençam eles a que campo pertencerem, eesta: valerá a pena, por causa de uma opção partidária, particularmente

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de uma parcialidade emocional, racharmos as cabeças uns aos outros,lutando por dois sistemas sociais tão imperfeitos, mais exactamente:suscitar e correr o risco de uma guerra nuclear devido aos ataquesconstantes e implacáveis contra o outro lado? Este perigo, em quetodos nos encontramos, não exigirá, só por si, uma política de tole-rância?

Refiro-me aqui, portanto, repiro-o mais uma vez, a uma causa paraa qual todos os homens que se interessam activamente por tais proble-mas podem contribuir com a sua parte. O perigo de uma nova guerrade religião, de uma guerra entre partidários de confissões sociais anta-gônicas, é grande. O problema que se nos coloca é o de como pôr fim àescalada não só dos armamentos mas também da hostilidade entre osgrupos humanos que se encontram frente a frente - pois os armamen-tos não crescem por si próprios. O que provoca a sua escalada é omedo, o receio, a inimizade expressa ou tácita entre os grupos huma-nos. É aqui, pois, que temos de actuar.

Que aconteceria se se pudesse levar os dirigentes de ambos os gru-pos de Estados a demonstrar, pela prática, que a forma de sociedadepor eles criada, enquanto projecto de homens para os homens, émelhor que a outra? E possível que o que hoje se possa dizer sobre issoseja utópico, seja um mero exercício intelectual. Que aconteceria se osdois grupos adversários fizessem um pacto em que renunciassem aresolver os seus conflitos pela força e, em vez disso, entrassem em com-petição um com o outro para apurar qual dos dois grupos de Estadosestará, no decorrer dos próximos cinqüenta anos, em condições demelhor providenciar no sentido do bem-estar, da liberdade e da igual-dade dos homens que o constituem? Considero muito provável que,durante um longo período de paz, em que estaremos porventura aponto de entrar, os sistemas sociais de hoje se modificarão substancial-mente. A ser assim, afigura-se-me muito provável que, por exemplo,com base num maior bem-estar e numa maior cultura da população, aditadura dos partidos comunistas se modificaria muito significativa-mente, no sentido de uma maior reciprocidade do controlo dos gover-nantes e dos governados, e que, também nos Estados Unidos, a recipro-cidade do controlo dos governantes e governados, ainda relativamentelimitada devido às particularidades do sistema eleitoral, durante umlongo período de paz, e na base de um bem-estar e educação crescentesda população, se desenvolveria mais a favor desta última.

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Salientei já que nenhuma das duas formas de sociedade, cujosrepresentantes lutam actualmente pela hegemonia, é perfeita. Emambos os casos trata-se de fases do desenvolvimento da humanidade,que eventualmente avançará ou recuará. Pessoalmente, pode preferir-seas formas de sociedade e de governo ocidentais às do bloco soviético,mas não é indispensável que a decisão pelas formas de vida do mundoocidental se associe a uma nota de hostilidade e de menosprezo emrelação às formas de vida do bloco oriental. O bem-estar da humani-dade torna forçoso, mesmo no caso de uma tal decisão, defender umamaior tolerância em relação ao outro lado, defender o direito dos paísesde governo comunista a poderem seguir o seu próprio caminho sem sesentirem ameaçados — com uma só restrição: esta atitude só pode lan-çar raízes nos países ocidentais se assentar numa reciprocidade, se tam-bém os homens do bloco comunista se esforçarem por reduzir gradual-mente a sua ameaça aos países ocidentais, muito particularmente a queé representada pela propaganda revolucionária. Entre as teses da ideo-logia comunista, inclui-se a de que as dificuldades dos países soviéticose, principalmente, a existência prolongada de uma ditadura de partidonão podem ser eliminadas devido à inimizade dos Estados capitalistase à ameaça que eles tepresentam para os Estados comunistas. Ora o queé perigoso, em todos os grandes ciclos de violência, é precisamente ofacto de se tratar sempre de uma inimizade recíproca e de os sentimen-tos e actos de hostilidade de ambos os lados se exacerbarem mutua-mente. A violência do regime czarista encontrou o seu equivalente nasviolências da Revolução Russa; esta, por sua vez, teve a sua contrapar-tida nas violências das tropas contra-revolucionárias, em parte, de paí-ses capitalistas.

Ora bem, esta engrenagem de inimizades recíprocas, de ameaçasmútuas de dois grupos de Estados no sentido de se eliminarem um aooutro pela violência militar, conduziu a humanidade a um dilema.Não é esta a primeira vez que este dilema surge entre Estados, não eesta a primeira escalada das hostilidades numa luta hegemônica, talvezantes seja a última. Muitos homens sentirão, por certo, actualmente, agravidade desta escalada. A ameaça de uma nova guerra anda na bocade toda a gente. Os jovens, particularmente, sofrem com a perspectivade terem de viver durante toda a sua vida à sombra de uma guerranuclear. Não tenho a pretensão de dizer que conheço uma saída. Tudoo que se poderá fazer, de imediato, é explicar o nó duplo que liga uma

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à outra as duas grandes potências, a tenaz com que se prendem entresi; o que se pode fazer é preparar instrumentos intelectuais que mos-trem onde está a chave, com a ajuda da qual, gradualmente, com tena-cidade e paciência, se poderia afrouxar o aperto dessa tenaz.

Esta chave não se encontra nas armas — por muito útil e desejávelque seja uma diminuição do número de armas, tal não elimina operigo. Ela reside, como se compreenderá, nos próprios homens queutilizam as armas. Embora isto seja óbvio, nem sempre é, porém, ditoclara e distintamente. O perigo assenta, única e exclusivamente, naatitude dos homens uns em relação aos outros. Se fosse possível dimi-nuir a inimizade e a desconfiança entre os dois grupos de Estados e,particularmente, entre as suas camadas dirigentes, o perigo também seatenuaria.

No entanto, tal só teria sentido se ocorresse em simultâneo deambos os lados, o que seria, certamente, um processo lento, que exigi-ria um longo período de tempo. Teria de dizer-se no Ocidente:«Deixemos os Soviéticos mostrarem aquilo de que são capazes. Elessempre têm afirmado que a sua ordem social é a melhor. Conflrmar-se-áisso, uma vez desaparecida a ameaça da guerra?» E, nos países de Leste,deveria dizer-se: «Deixemos que os países capitalistas mostrem aquilode que são capazes. Eles também têm afirmado constantemente que asua ordem social é melhor do que a comunista. Manter-se-á essa afir-mação, durante um período de paz prolongado e de competição pací-fica entre os diferentes sistemas de Estado?» Isto é o que eu entendopor desarmamento ideológico. Ele requer, de facto, um avanço civüiza-cional, urna maior moderação e tolerância por parte dos diferentes gru-pos de Estados nas suas relações entre si.

Não digo que esta modificação de atitude e, particularmente, amodificação simultânea das atitudes, de ambos os lados do Muro, sejarealizável. Limito-me a apresentar um diagnóstico. Digo, apenas, queo perigo de uma guerra nuclear não é inevitável, que as gerações vin-douras não estão incondicionalmente condenadas a viver sob o perigoconstante de uma guerra devastadora. É certo que, para as camadasdirigentes das grandes potências, detentoras de grandes arsenais dearmas, é difícil recolher as garras. Mas não vejo outro caminho.A questão é, tão-só, a de saber se uma tal modificação do comporta-mento, se uma moderação dos Estados nas relações uns com os outros,é alcançável sem a experiência avassaladora de uma guerra.

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Só se poderá ver os problemas de que aqui falei de uma forma desfo-cada e pouco nítida se os considerarmos numa perspectiva a curto prazo,inteiramente circunscrita à actuaüdade. Tentei mostrar um pouco doque se torna visível destes problemas, quando os articulamos num con-texto de longo prazo. Permitam-me, para concluir, que volte mais umavez aos problemas da República Federal. Espero que, também estes, sepossam ver melhor se elevarmos o olhar para além das questões quoti-dianas e se, como disse, os abordarmos com uma certa moderação. Talvezse compreenda, então, melhor que é justamente na República Federalonde muito poderá ser feito para contrariar a selvajaria, a embriaguezhegemônica, que com freqüência se manifestam num ou noutro lado.

A situação actual da República Federal lembra-me muitas vezesuma história que ouvi, uma vez, há já muito tempo, e que me ficou namemória apenas nos seus traços gerais. A história trata de um grupode homens que moravam num grande palácio. Durante uma guerra, opalácio foi consumido pelas chamas. A partir daí, o grupo dos antigoslocatários revê de passar a viver em tendas. Eles instalaram-se, sofrivel-mente, na sua cidade de tendas e sentiram-se, a princípio, satisfeitos,pois os mais velhos disseram-lhes que as tendas eram uma habitaçãoprovisória, havendo apenas que aguardar uma oportunidade parareconstruir o palácio destruído pela guerra. E assim continuaram aviver nas tendas. Os jovens tornaram-se adultos. Cresceu um novageração, que perguntou aos mais velhos: «Porque é que temos de viverem tendas? Podemos construir aqui uma casa nova, em vez de viver-mos em tendas.» — «Não», disseram os mais velhos, «se construirmos,aqui, uma casa nova e modesta, perdemos a oportunidade de recons-

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truir o belo palácio antigo.» E assim se continuou a viver na cidade detendas, geração atrás de geração. Comemoram, assim, o quadragésimoaniversário da fundação da cidade de tendas, depois o quinquagésimo,o sexagésimo, o septuagésimo quinto. Os mais novos continuavam aperguntar: «Porque é que não podemos construir uma casa nova esólida, em vez desta cidade de tendas?» E os mais velhos diziam sem-pre: «Não. Se construirmos, aqui, uma casa nova, perdemos o direito dereconstruir o velho palácio, a partir das ruínas do incêndio.» E assimcontinuaram a esperar, geração atrás de geração, pelo dia em que pode-riam reconstruir o velho palácio.

Sinto, por vezes, que seria bom para o futuro da República Federal senos tornássemos conscientes de que nos transformámos lentamente numEstado nacional com as suas tradições próprias, com uma identidadeprópria. Poderíamos, então, entregar-nos a toda uma longa série de tare-fas, difíceis de realizar enquanto se viver na República Federal apenascomo num campo de tendas provisório. Ha tanta coisa para fazer...

Presentemente, a consciência de si da República Federal assentasobretudo, ao que parece, no fortalecimento da economia. Ela poderiatambém, encontrar satisfação no facto de os Alemães terem conseguidocriar, peja primeira vez e a longo prazo, na República Federal, um sis-tema pluripartidário que funciona. Não se trata de um sistema idealmas talvez veja este sistema com outros olhos, diferentemente da maioriade vós, quem tenha vivido tanto como eu. Eu recordo ainda, perfeita-mente, com que aversão conhecidos meus, que eram nacionalistas, fala-vam do regime parlamentar da República de Weimar, com que ódioeles falavam daquela câmara de tagarelas. «Nós não podemos ter»,diziam eles, «nenhum parlamentarismo na Alemanha. Isso não é ale-mão, é algo que foi imposto pelo Ocidente, algo que não está na tradi-ção alemã.» Ainda me lembro muito bem disso. Realmente, não estavanada na tradição alemã. Mas, agora, um dos grandes e novos méritosdeste novo Estado, da República Federai da Alemanha, é o ter ela umgoverno parlamentar que realmente funciona; agora, portanto, depoisde uma guerra, depois da amarga experiência de uma guerra, foi possí-vel romper com determinados hábitos. Se, finalmente, deixássemos deconsiderar esta República Federal como algo provisório, se a pudéssemosver como ela é realmente - um novo Estado alemão que, como há razõespara esperar, ainda viverá muitas décadas em paz e prosperidade —,poderia, então, mais conscientemente, começar a edificar-se na República

CONDIÇÃO HUMANA 131

Federai uma tradição de humanismo, de que já hoje existem indíçjos

Isto porque a modificação civilizacional de atitudes, que atrás rçferjtalvez já esteja realmente a ocorrer.

Então, também seria mais fácil alcançar aquilo a que, por vezçs se

chama a superação do passado. Já o disse: Hitler e a recordação de tO(jo

o horror que este nome significa não desaparecerão da história alenta" £difícil, particularmente, para os jovens, abordar e superar este pro_blema enquanto a República Federal se assumir apenas como um provj-sorium e não como um Estado alemão de pleno direito, com a sua cu]_tura e as suas tradições. E estranho que se imagine que com is$o serenunciaria à possibilidade de uma reunificação com o outro Estadoalemão. Se a oportunidade surgir, se ambos os lados quiserem e pude-rem, não representará, decerto, um obstáculo a essa tal aproximação ofacto de a República Federal fazer aquilo que a RDA já fez há muitotempo, ou seja: assumir-se como um Estado alemão com a sua própriacultura, a sua própria tradição e, ao mesmo tempo, também, com avelha tradição alemã comum. Talvez, então, também se entendessemelhor o significado que num Estado destes reveste a formação deuma cultura autônoma, o cultivo da criatividade individual e, como sedisse, do humanismo, ou seja, entre outras coisas, também o desenvol-vimento de atitudes cordiais e solidárias face a outros grupos dehomens, tanto no próprio como noutros países.

Embora os países europeus, entre eles a Alemanha ocidental, não sepossam comparar em poder militar, quer individualmente quer emconjunto, com nenhuma das grandes potências actuais, não há razãoalguma para que os habitantes de países pequenos não possam realizaralgo de grande. A idéia, ainda hoje muito difundida, de que os Estadosmilitares mais poderosos têm de estar também à cabeça da humani-dade em aspectos não militares e, particularmente, em matéria dedireitos humanos ou de criatividade artística, científica e técnica, euma lenda angustiante. A própria lenda, assim como o ferrere de infe-rioridade tão facilmente imposto aos membros de Estados menospoderosos, pode contribuir significativamente para a paralisação ou atemesmo para a estiolação da sua criatividade.

Este perigo é particularmente grande no caso dos muitos paíseseuropeus que já foram Estados hegemônicos e militares de primeiragrandeza. Não só a República Federal, mas quase todos os Estadosoeste-europeus vivem hoje à sombra do seu grande passado. Também

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eles precisam de construir uma casa nova. Todos eles têm, corno her-deiros de uma grandeza desaparecida, de superar um passado que osoprime com a sensação de, enquanto nação, terem descido na conside-ração do mundo. O que eles têm de superar é muito diferente, segundoos casos concretos. Ele coloca aos vivos de hoje, por exemplo, aosItalianos ou aos Holandeses, uma tarefa diferente da que coloca aosEspanhóis e aos Suecos. Os sucessores das seculares potências hegemô-nicas da Europa, os Franceses e os Ingleses, encontram-se colocadosperante uma tarefa de superar o seu passado em muitos aspectos dife-rente, embora não menos difícil, da dos alemães federais. Todavia, se seobservar a Europa de alguma distância, o caracter colectivo do destinodos Europeus torna-se bem nítido. Vê-se, enrão, que a Segunda GuerraMundial trouxe uma modificação mais decisiva da situação das naçõeseuropéias do que as guerras anteriores. Não foi só um único país euro-peu mas os países europeus no seu conjunto que perderam, em boaparte, a sua posição como grupo dirigente da humanidade, que tinhamocupado durante três ou quatro séculos.

Trata-se, como referi, de uma situação que não deixa de ser peri-gosa. Podia recordar-vos o caso de Estados que, mesmo ao longo demuitos séculos, não se refizeram totalmente de uma perda deste tipo eque, devido a isso, prejudicaram seriamente a sua capacidade actual decriatividade. Neste contexto, porém, temos de limitar-nos a aludir aoproblema, cingindo-nos a chamar a atenção para um dos traçoscomuns do destino europeu.

Tenho a impressão de que, nesre domínio, a República Federal estáno bom caminho. Não precisamos de esquecer o passado, nem a tarefade o superar, quando dirigimos decisivamente os olhos para o futuro.Se tal acontecer, cornar-se-ã mais claro o significado que tem o facto de,na República Federal, se fortalecer, com o tempo, a consciência: aquiterá nascido um novo Estado alemão, um Estado humano, cujos cida-dãos são capazes de associar um sentimento de filiação comum ao da suapertença ao grupo dos Estados europeus. Se esta consciência se fortale-cer, e, com ela, o sentimento da criatividade própria, não só no domínioda economia como em todos os outros sectores da actividade humana,então, parece-me, será também mais facilmente possível que as jovensgerações da República Federal, ao serem abordadas no estrangeiro a res-peito de Hitler, possam dizer com alguma serenidade: «Hitler? Sim,com certeza, isso aconteceu. Mas, hoje, nós somos diferentes.»

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El Norbert

Condição humanaobre a evoluçãopor ocasião do

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ColecçãoMEMÓRIA E SOCIEDADE

AAWEstudos PortuguesesHomenagem a Luciana Stegagno Piccbio

Almeida, Pedro Tavares deEleições e Caciquismono Portugal Oitoceníista (1868-1890)

Bourdieu, PierreO Poder Simbólico

Cabral, João de PinaOs Contextos da Antropologia

Chartier, RogerA História Culturalentre Práticas e Representações

Crespo, JorgeA História do Corpo

Geertz, CliffordNegara. O Estado Teatrono Século XIX

Ginzburg, CarioA Aíicro-História e Outros Ensaios

Godinho, Vitorino MagalhãesMito e Mercadoria. Utopiae Prática de Navegar

Oliveira, AntônioPoder e Oposição Política em Portugalno Período Filipino <1580-l640)

Revel, JacquesA Invenção da Sociedade

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Dunning, Eric eElias, NorbertA Busca da Excitarão

Elias, NorbertA Condição Humana

Shils, EdwardCentro e Periferia