condiÇÃo humana e educaÇÃo

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CONDIÇÃO HUMANA E EDUCAÇÃO Regis de MORAIS1 No âmbito de sua historicidade, o ser humano tece a existência relacionando-se com o mundo natural, com o mundo humano e consigo mesmo. E faz-se o homem muitas perguntas acerca do seu estar no mundo. Ora, como observa Lewis Mumford, "... é na maneira como constrói sua resposta a tais perguntas que cada época da cultura humana, cada geração, deixa sua marca característica" (1958: 09). Há dois verbos latinos que, embora guardem algumaseme- lhança ortográfica, apresentam significações bem distintas. Um deles é CUNDIRE, o qual dá origem à palavra "condimento" (cunditio); o outro é CUNDERE, do qual deriva o vocábulo "condi- ção" (tambémcunditio). Condiçãosignificarásempre "circunstân- cia e modo de ser" dentro de certas possibilidades, como infor- mam os dicionários. Condição é uma palavra sinônima de situa- ção. Situar implica, para o homem, certas operações do espírito como: 1) reconhecer a existência de algo, constatando sua vigência; 2) identificar e explorar, ainda que com limitações,esse algo; 3) principalmente buscar integrar esse algo a seu contexto ou ao seu nicho paramétrico para, mediante a obtenção de uma estrutura de plausibilidade, chegar a uma compreensão mais plena. Caberá, portanto, ao ser humanoem sua situação, reconhe- cer a complexa relação que este mantém com seu mundo e seu tempo, investigar em extensão e profundidade, os variados as- pectos de tal relação, bem como buscar os liames sutis desse relacionamento, mediante uma reflexão de totalidade, (istoé, não-compartimentalizada), coisas estas que deixam claro ser, a "questão da condição humana" ontológica, filosófico-social e histórico-política. Aqui somos levados a recordar Ortega y Gasset que, nas Meditações do Quixote (1914), celebrizou a frase: "Eu sou eu e a minha circunstância" (Obras Completas, tomo I, p. 322). Em tal assertiva há que entender-se "circunstância" (circum-stantia) 11)Doutor em Educação, Livre Docente em Filosofia da Educação. Professor Titular aposentado da Unicamp, atual Professor Titular da PUC-Campinas. Artigos Revista de Educação, PUC-Campinas, v. I, n. 4, p. 7-14, junho 1998

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CONDIÇÃO HUMANA E EDUCAÇÃO

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No âmbito de sua historicidade, o ser humano tece aexistência relacionando-se com o mundo natural, com o mundohumano e consigo mesmo. E faz-se o homem muitas perguntasacerca do seu estar no mundo. Ora, como observa Lewis Mumford,"... é na maneira como constrói sua resposta a tais perguntas quecada época da cultura humana, cada geração, deixa sua marcacaracterística"(1958: 09).

Hádois verbos latinosque, emboraguardem algumaseme-lhança ortográfica, apresentam significações bem distintas. Umdeles é CUNDIRE, o qual dá origem à palavra "condimento"(cunditio); o outro é CUNDERE,do qual deriva o vocábulo "condi-ção" (tambémcunditio). Condiçãosignificarásempre"circunstân-cia e modo de ser" dentro de certas possibilidades, como infor-mam os dicionários. Condição é uma palavra sinônima de situa-ção. Situar implica, para o homem, certas operações do espíritocomo: 1) reconhecer a existência de algo, constatando suavigência; 2) identificare explorar, ainda que com limitações,essealgo; 3) principalmente buscar integrar esse algo a seu contextoou ao seu nicho paramétrico para, mediante a obtenção de umaestrutura de plausibilidade, chegar a uma compreensão maisplena.

Caberá, portanto,aoser humanoemsuasituação, reconhe-cer a complexa relação que este mantém com seu mundo e seutempo, investigar em extensão e profundidade, os variados as-pectos de tal relação, bem como buscar os liames sutis desserelacionamento, mediante uma reflexão de totalidade, (istoé,não-compartimentalizada), coisas estas que deixam claro ser, a"questão da condição humana" ontológica, filosófico-social ehistórico-política.

Aqui somos levados a recordar Ortega y Gasset que, nasMeditações do Quixote (1914), celebrizou a frase: "Eu sou eu ea minha circunstância" (Obras Completas,tomo I, p.322). Emtalassertiva há que entender-se "circunstância" (circum-stantia)

11)Doutor em Educação, Livre Docente em Filosofia da Educação. ProfessorTitular aposentado da Unicamp, atual Professor Titular da PUC-Campinas.

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como tudo aquilo que encontro em meu hori-zonte de vida, o que está à minha volta,levando-se em conta que, para mencionarmosuma circunstância, tem que ficar claro que eusou o ponto central que define minha circuns-tância. Somos, portanto, eu e a minha circuns-tância, realidades reciprocamente definidoras.Na frase acima aludida de Ortega y Gasset,deve ficar claro que o primeiro eu da sentençadifere do segundo, no sentidode que o primeiroeu é dotado da concretude de uma declaraçãocategórica de presença no mundo. "Eu sou eue a minha circunstância". Nesta frase, o segun-do eu é já um ingrediente da minha circunstân-cia; trata-se de um eu cognoscível em termosabstratos, uma vez que abstraído do globalconcreto de minha circunstância. Como disse-mos, a circunstância é o horizontede umavida.

Julián Mariás, ao estudar a sentençaortegueana, pondera com muito acerto: "Ve-mos, portanto, que a distinção entre um mundofísico ouexteriore um mundointeriorou psíqui-co é apenas secundária; o mundo é essencial-mente exterior ao sujeito no sentido de que ésempre sua circunstância,o outro que não ele;mas, ao mesmotempo, essa exterioridade nãoé alheiaao eu, mas,constitutivadele. Oerro doidealismo foi identificar o ego com suas cogita-ções e opor a estas, as coisas extensas, sem

advertirque a imagemque cruzaa minhamenteneste instante ou o raciocínioque faço não sãomenos circunstância do que meu braço ou apaisagem à minha volta" (1966: 205-206).

Nesta linha de pensamento, a qual nesteponto tenho por acertada, o homem é a suacondição - por ser esta a indissociávelligação

entre um ego que existe pelo entorno, e umentorno que existe em relação ao ego. Eisporque o contexto sócio-cultural, em suas va-riadas características, define a condição huma-na, da mesma forma que é definido por esta.Encontroa históriado meutempocomo compo-nentede minhacircunstância,do mesmomodo

que ocorre com meus semelhantes contempo-râneos. Daí não ser difícil compreendermos a

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dialética entre condicionamento e liberdade,que tipifica as relações culturais.

O irracionalvive encarcerado nas gradesestreitasdo prazer e da dor; como diz a interes-sante expressão de Paulo Freyre, vive o irra-cional sob o "presente esmagador". Por issopode ser identificado a um sistema fechado.Aprisionando-se uma cobaia (ratinho) em umaCaixade Skinner,tal cobaia só se ocupará comsobreviver semfome, sede ou outros sofrimen-tos, isto é, se alimentada, hidratada e deixadaem paz, estará muito bem no interior de suaprisão. Noentanto,o ser humano,encarceradoe limitado em sua liberdade, necessita planejarcomo fugir ou romper com seus constrangi-mentos; isto porque o homem deve ser vistocomo umsistema abertoque cria,desenvolve ecultiva valores, tendo certamente, comosupre-mo valor, a liberdade - condição básica parasua felicidade.

No Prólogo de sua importante obraintitulada A condição humana, Hannah Arendtfaz ponderaçõesmuitopertinentesquanto a umcerto sentimento de aprisionamento que sem-pre inquieta o ser humano, acentuando-se so-bremodo no homem contemporâneo. Arendtchama nossa atenção para o fato do primeirosatélite artificialposto agirar naórbita terrestre,em 1957;ora, aqueleextraordinário feito huma-no que lhe deveria dar uma alegria plena deorgulho por sua capacidade, provocou reaçãomuito diferente e surpreendente para muitos.Não houve assombro ou encantamento, masuma reação chocante. Diz Arendt: "A reaçãoimediata,expressaespontaneamente,foi alívioanteo primeiro 'passo para libertaro homem desua prisão na terra'" (1991: 9). Isto ao ponto dea filósofa lembrar palavras gravadas décadasatrás,noobeliscofúnebredeumgrande cientis-ta russo:"Ahumanidadenãopermanecerá parasemprepresaàterra" (Ibid.,9). Insatisfeitocomsua condição e posição cósmica, assomava adeclaraçãohumanaquevianossoplanetacomouma prisão e explicitava um desejo de liberta-ção.

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...Hannah Arendt prossegue em seus co-

mentários. Agorafocalizaos esforços para criarvidas em proveta, utilizandosemens de gran-des inteligências; e focaliza isto para demons-trar outro aspecto da insatisfação do homemcom as restrições de sua condição. Ora, aslutas para o aumento da longevidadesão outrastantas exibições de que o homem contemporâ-neo quer superar os limitesda situação que atéaqui a vida lhedeu (Ibid.,10). Arremata,porém,a pensadora ao interpretar o advento dainformática (da automação, melhor dizendo)como o gesto máximo de descontentamentocom os limites que sua condição há muitoimpusera ao homem; segundo Arendt há fortecontradição na possibilidade de que computa-dores e robôs em poucas décadas esvaziem asfábricas, ante uma era moderna que glorificouotrabalho, pondo-ocomo a chave do sentidoparaa vidado homemcomum."Oque se nos depara,portanto,é a possibilidadede umasociedade detrabalhadores sem trabalho, istoé, sem a únicaatividade que Ihes resta. Certamente nada po-deria ser pior" (Ibid., 13).

Nestas ponderações, oque impressionaapensadora em foco - e nos impressiona aolê-Ia-é a constatação de umhomemcontempo-râneo claustrófobo, insatisfeitocom sua condi-ção e talvez prontoa atirar-se acriticamenteaosbraços terríveis de uma engenharia genética àsvezes, sem preocupações éticas. Comoo euro-peu do século XVIque, às vésperas das gran-des navegações, sentia-se emparedado na es-treiteza do seu continente e do seu cotidiano,saindo atrás de um sonho até encontrar o Novo

Mundo, o homem contemporâneo mostra-setambém, cerceado pela condição na qual lhefoidado viver. Assimque, cumpre-nos, no âmbitoda Filosofiada Educação, indagar acerca dasrazões que historicamentetrouxeramo homematual a tanta angústia e insatisfação. Uma talindagação deve ser feita à zona de confluênciaentre a História e a Filosofia, à medida quedirigirmosao evolver histórico, a questão pro-priamente filosóficado sentido.

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1. INTERROGANDO ASPECTOS DAHISTÓRIA

Tenho repetido muitas vezes, estaobviedade: o presente século não surgiu donada; ele é resultado da evolução histórica. Éfilhoprincipalmenteda modernidade, com seuimaginário ântropo-científico; no entanto, emrazão do princípiode contigüidade, nosso tem-po é sobretudo herdeiro direto do século XIX.Ora, George Steiner, em seus brilhantes en-saios do livrointitulado No castelo do Barba

Azul - notas para uma redefinição da culturaanalisa o século passado em suas aparênciase em sua realidade,afirmandoter sido,acentúriapassada, umedifíciomagníficoem cujas estru-turas íntimas havia perigosas frinchas etrincamentos (Steiner, 1991: 13-36);afinal,umé o luminoso e poético século XIXposto emnossa imaginação por Charles Dickens ou porRenoir,e outro é aquele marcado pelas miséri-as do operariado na primeirafase da RevoluçãoIndustrial,ou aquele embebido na sexualidadehipócritade uma burguesia vitoriana(Ibid.,17).

Um fato, porém, destaca-se acima detodosno século passado; é que, não poracaso,é este hoje apelidado pelos historiadores dopensamento de "o século dos materialismos".Delírios cientificistas e tecnicistas levaramErnest Renan ao mais entusiástico hino aocientificismo materialista (L 'Avenir de IaScience). Foio materialismoevolucionista (deLamark, Darwin e Spencer), o materialismopositivista(de Auguste Comte), o materialismodialético(de K.Marxe F. Engels), o materialis-mo utilitarista(de J. Bentham e Stuart Mill),omaterialismo irracionalista (de Nietzsche) -paradetermo-nos em apenas algumas citações.

No aniversário de 70 anos do poeta WaltWhitman,o escritor MarkTwainfoiencarrega-do pela associação de literatos norte-america-nos de escrever carta de saudação a Whitman.E, em pleno climade delírios tecnicistas, MarkTwainenviouao poeta, umacarta que condensaos otimismos ingênuos e equivocados do "finde siêcle". Reproduzamos em citação parte doescrito de Twain:

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"Sem dúvida que tendes visto muito...Demorai, porém, um pouco, porque o maisgrandioso ainda está para vir. Esperaitrintaanos, e entãoolhaipara aTerra comolhos de ver! Vereis maravilhas sobremaravilhas somadas àquelas a cujo nas-cimento vindesassistindo; e em volta de-las, claramente visto, havereis de ver-lheo formidável Resultado -o homem quaseatingindo enfim,seu totaldesenvolvimen-to - e continuando ainda a crescer, visivel-mente crescendo, sob nossos olhos...Esperai até verdes surgir essa grandefigura, esurpreendei obrilhoremotodosolsobre seu lábaro; então podereis partirsatisfeito, ciente de terdes visto aquelepara quem foi feita a terra..." (ApudMUMFORD, Lewis, A condição de ho-mem, 1958: 345).

A ciência e atecnologia resolveriamtodosos problemas, e o ser humano poderia luzir emsua magnificência. Ocorre que, poucos anosdepois da carta de Mark Twain, eclodiu a 1!!Grande Guerra (1914). Adentrava-se a eradasgrandes incertezas, se comparada com o uni-verso estável de Newton e Descartes: um uni-

verso regido por leis eternas e necessárias,emritmo matemáticodo mais perfeitodos relógios.Bolzmann e W. Gibbs opuseram, ao universoestável e de certezas de Newton, a concepçãode um universo probabilístico; ora, aprobabilística considera também a probabilida-dedequeaconteçao improvável.AlbertEinstein,com suas teorias especial e geral da relativida-de, aprofunda a idéia de um mundo do "nadamuito certo" e refutaas noções newtonianasdeespaço e tempo absolutos. E, finalmente,Werner Heisenbergdá o último "canhonaço"nouniverso estável das certezas, com sua Teoriada Indeterminação.

A racionalidade moderna deu seus frutos

mais sofridos e autênticos noscamposde bata-lha da 1!!Grande Guerra, nopérfido e indecoro-so Tratado de Versalhes, que selou o fim da I!!Guerra, e em Auschwitz e nos demais camposde concentração e extermínio da li!! Grande

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Guerra. Após o que, os movimentos existen-cialistas passaram a questionar a razão - antesdivinizada, sobretudo nos séculos XVII e XVIII,quando o que devia ser questionado não era arazão,masumadadaeespecíficaracionalidade:a racionalidade cientificista e tecnicista. Dife-

rentementedoqueaconteceucom MartinBubere Gabriel Marcel, o existencialismo materialis-ta, em alguma medida, esteve sob a influênciados materialismos do século XIX; até que osociólogo Peter L. Berger, em seu livro Umrumor de anjos, na década de 60, começou aalertar para que estava acontecendo vigorosomovimentodevolta aosagradoe à mística,comquem fez coro o filósofo marxista LeczekKolakowski em seu ensaio "A revanche do

sagrado na cultura profana".

Agora, os mais avançados resultados daRevolução Científica Contemporânea - a qualse inicioucom afísica e acabou expandindo-seporquasetodo setorcientífico - produziu novasaberturas metafísicas e também religiosas;assimsendo,os movimentosde volta aosagra-do vêm tendo apoios da ciência. O fato é quehoje vivemos certa turbulência, pois, caminha-mos das orgias materialistas do século XIX acertas orgias místicas do século XX; afinal, ospontos extremos são sempre muito problemá-ticos. Em nome de uma volta ao sagrado, onossotempo tem assistido a não poucosdispa-rates.

2. A DINÂMICA DO IMAGINÁRIO SOCIAL EA EDUCAÇÃO

O problemaéque,em umtão intensojogode tensões, a educação parece ter-se mantidomuito alienada. Se isto é verdade para o todo,mais verdade é para o Brasil, apesar deJean-Jacques Rousseau haver dito que: "Dis-cutir a educação é debater a própria condiçãohumana" .

Descontado um ou outro aspecto técnico-po-lítico, ainda temos - não em termos de conteú-

do, pois nisto nosso tempo está bem pior - uma

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educação à século XIX. Com o movimento dapedagogia nova, com montessorismo, freine-tismo, piagetismo, labanismo, freyrismo e ou-tras boas influências, vimos a investida dacriatividade e da inovação encontrar as resis-tências de certa inflexibilidade conservadora

das sociedades. Eaqui háquefrisar-sedenovonossas heranças recebidas da modernidade,tais como:

a)os conservadorismospolíticosdasclas-ses dirigentes, no poder;

b) a chamada "educação moralizante",advinda do vitorianismo, que hipocritamentesilenciava sobre fundamentais aspectosda se-xualidade humana, procurando nutrir-sede umemocionalismo quase mórbido, como o deEdmundode Amicis, no livroescolar Coraçãoeoutros;

c) uma "educação intelectualista",de mol-de o mais cartesiano, supervalorizando a inteli-gência racionalcomo expressãoda rescogitanse mostrando desprezo pela temática do corpovivente, como configuração da res extensa hu-mana;

d) a arrogância do humanismo, tal como aestuda David Ehrenfeld,que cria uma oposiçãoartificial homem X natureza, desenvolvendo,apartir de crenças judaico-cristãs, uma relaçãoparanóica e destrutiva do ser humano com anatureza (Ehrenfeld, 1992: 12-16).

e) Certos traços esquizóides, muito típi-cos do vitorianismo, que põem estranhas dis-tâncias entre "discurso" e "prática cotidiana".

Ora, comtais heranças- dentre outras- osmovimentos criativos funcionam como umaespécie de troca de prateleiras numa loja,man-tendo-se a mercadoria básica a ser oferecida.No entanto, não devemos desconsiderar tam-bém ideologias políticas vindas do século pas-sado, as quais insistiam sempre no banimentodo sagrado na educação. RudolfOtto e MirceaEliade demonstraram, com precisão e exausti-vamente, que um mundo destituídodo sagradoé um mundo enlouquecido. Emmeu livroStressexistencial e sentido da vida,anotei: "SegundoRudolfOtto, MirceaEliade e, mais recentemen-

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te, G. Kujawski e P. Berger, o sagrado é umconstitutivo ontológico da vida humana. O sa-grado é um elemento tão central à vida que sefaz em sua possibilidade de saúde, bem aocontrário do que os materialismos afirmam"(1997: 37).

Eis a condição humana levada à perplexi-dade. A uma perplexidadeainda maior com osefeitos, sobrea educação,dos valores (ouanti-valores?) da sociedade consumista e de umamídia ideologicamentemanipulada- emtermoséticos, políticos e de marketing. E aí pergunta-mo-nosse teremos chegado ao apocalipse emeducação. Será que alguma coisa de efeitospositivos ainda pode ser feita, em meio a tantaperplexidadee desnorteamento?

3. PERSPECTIV ANDO O DEVIR DA

EDUCAÇÃO

Uma primeira coisa é importante: que oquestionamento educacional, quando não émero esnobismo intelectual, expulsa o mito deummundoresolvidocriado pordesvios damen-talidade tecnológica. Ante a complexidade domundo atual, não há fórmulas sagradas; hádesafios e exigência de flexibilidade.

Hoje há teóricos que, tomando por baseas inegáveis mutaçõesculturais operadas pelaevolução científica, gostam de discursar apre-sentando um século XXI necessariamenteróseo, no qual as contradições e dificuldadeshumanas serão resolvidas como que por en-canto. Isto me preocupa maximamente, poisquem entra nesse clima mental sente-se dis-pensadode trabalhare achaque podepassar avida a queimar incensos e ouvir músicasestelares.Noentanto,conquantoos novostem-pos que se anunciam sejam promissores, otrabalho para merecê-Ios está apenas come-çando.

Hoje,a perspectivaeducacional se divideporduasvertentesdistintas:uma,aindamarcadapelo pragmatismo industrial; outra, mais densae antropológica que quer retomar o utopismo

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em educação. O administradorde empresas enotável pensador Peter Drucker,em sua obravastaAs novas realidades,argumenta que umanova sociedade está se formando:a knowledgesociety (sociedade do conhecimento), cujasexigências de qualificação laboral serão muitomaiores do que se conhecem até aqui; a socie-dade do conhecimento exigirá o knowledgeworker (trabalhador do conhecimento), dentrode pouco tempo, não bastando mais que setenha saúde, disposição e dois braços. Trata-se de uma visão muitoverdadeira, a de PeterDrucker;por esta razão, os dois últimoscapítu-los do seu referido livropropõem-se a conven-cer-nos de que, em termos sócio-culturais, aeducação nunca terá representado papel tãoimensamente importante, como representaráneste fimde século XXe século XXIa dentro.

Esta é a vertente do pragmatismoindustrialque,de um ponto de vista prático, não podemosignorarou dizer que não é verdadeira (1989: 2capítulos finais,passim).

Nós,educadores, precisamos no entanto,ir além das exigências industriais, dimen-sionando um ser humano integral. Na medidaem que a ação educacional precisa visar aqualidade de vida, o crescimento íntimo e oprocesso de maturação das personalidades,ela não pode se reduzira responder às exigên-cias do industrialismo, o qual de fato requerhoje, um ''trabalhador do conhecimento". Ora, a

educação tem que se voltar para um projetocultural, inovador, resultante de uma crítica sen-

sata, mas radical, dessa realidade cultural, pre-cária que a tem abrigado.

Conquanto se fale às vezes, namortedasutopias,continuamos postos ante o terríveldile-ma: "autopiaou nada"; afinal,como gostava desublinhar Lamartine, as utopias são verdadesprematuras, ou, no dizer de Alceu AmorosoLima, "as utopias de um século são, normal-mente, os lugares-comuns do século seguinte".Como é sabido, o vocábulo utopia vem daexpressão grega ou topói, expressão que não

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tem voz de futuroe diz apenas daquiloqueaindanãoteve lugar.OfilósofoErnstBlochdiziaque no futuro, moram todas as possibilidades:as ótimas e as péssimas. E, à pergunta sobrecomo sabermos quais se concretizarão, res-ponde-se avaliando a dignidade com queestamos assumindo o nosso presente.

Aeducação tem sidouma espécie de terradevassada, onde qualquer um se atreve a pon-tificar.Piorainda numa realidade como a brasi-leira,na qual, em quase 500 anos, a educaçãonunca foiprioridade;uma realidade que expul-sa, exila e debocha de grandes utopistas edu-cacionais. Hoje,o meioeducacional não supor-ta mais politiqueirose imediatistas pragmáti-cos, ainda que estes pululempelas instituiçõesescolares e poroutros meiosde educação. Sãoassustadoras as deformações de caráter entreaqueles que deveriam ser os orientadores dasnovas gerações. Mesmo assim, isto não devesoar como uma condenação ou como um fata-lismo,pois, como advertiu Ernst Bloch,a reali-dade é muito mais do que o cárcere do jáexistente;a realidade ultrapassa de muitooqueos realistas estão dispostos a admitir.

a real não se esgota no imediatamentedado, pois,se assim fosse, viveríamos como asabelhas em sua vida social que é pura fatalida-de genética. Há que despender-se força e an-seio humanos, a fim de que se explorem ospossíveis concretos existentes nas vastidõesdo real. Investirno pensamento utópico não écultivarfantasias alienantes de 311milênio,e aestas denominar utopias; é querer a transfor-mação que dá ao nosso presente, a força inova-dora, capaz de levar-nos aos possíveis concre-tos que realizarão o ser humano no futuro(Morais,1993: 73-86).

Há vintee cinco anos aproximadamente,umdia,o Canadáresolveupegaro tema dacidadania e tirá-Ioda condiçãoelementardeapenas discurso. Suas autoridades educacio-nais, usando tal tema como centro, fizeram um

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projeto educacional que passou a ser aplicadoàs crianças com responsabilidade, competên-cia e esforço; e, hoje, todo o povo canadensecolhe os frutosbrilhantes e saborosos que nas-ceram numa inicialárvore de utopias; há naque-le país, uma juventude de grande consciênciaecológica, de indiscutível respeito pelos direitoshumanos, com capacidade de articular de for-

ma muito razoável, aspectos como trabalho,sexualidade e ética.

Houve a vontade (vontade popular e von-tade política); ninguém poupou investimentosno ser humano e... chegou-se a nível invejávelde qualidade de vida. O Canadá é, hoje, umaacusação aos zombadores do utopismo - emespecial do utopismoeducacional. Istoporque,na linhado pensamentode Rousseau,nuncasepoderá priorizar e valorizara educação, semque isto signifique grande aperfeiçoamentodacondição humana.

PALAVRASCONCLUSIVAS

Numa manhã de novembro de 1995, noPrograma de Educação para a Paz -estimuladopela UNESCO e desenvolvido na FundaçãoPeirópolis, perto de Uberaba (MG) - coube-mea honra de dividir momentos de uma aula com

nosso ímpar Paulo Freyre. Este, ao discorrerbrilhantemente sobre uma educação para apaz, arrematou com a seguinte ponderação:"Porque, amigos professores, o caminho queleva à paz sempre passa pela Educaçãoe pelaJustiça".

Houve época em que se rejeitavam solu-ções individuais para a problemáticaeducacio-nal, tendo-se como eficientes, apenas as gran-des soluções político-estruturais. Atualmente,o utopismo educacional, que sempre articulaeducação com justiça social, ensina-nos quetodo reducionismoé um empobrecimento; nemse deve dar lugar às reduções individualistas,que são idealizaçõesdesarticuladasdoproces-

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so histórico-social, nem se devem aceitar as

reduções coletivistas, que são idealizaçõespolítico-sociais desarticuladas de realidadessubjetivas profundas. Porque o indivíduo, emsi mesmo considerado, não passa de umaabstração inútil, da mesma forma que a cole-tividade tomada em si mesma é outra abstra-

ção sem serventia real; o individual e o cole-tivo estão em tramada relação dialética, dan-do condição de possibilidade um ao outro.

Mercenários da educação escolar nuncavão entenderestas reflexões. Todavia, ponha-mos nossas esperanças napequena quantida-de de fermento que pode levedar o alqueire defarinha; creiamos nasdiscretas forças utópicasque podemdesentranhardo porvir, umcidadãointegralmente educado, e, assim, capacitadopara educar por inteiro, a outro. Se a educaçãopuder ter um belo futuro, este resultará - comosempre - da guerra cultural de guerrilhas dosidealistas e apaixonados que, sem descuida-rem dos seus direitos e dos seus bens de

subsistência,perseguirão seuvisionarismo ge-neroso.

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