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Artigo educação musical

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  • Niteri, v. 11, n. 1, p. 143-164, 2. sem. 2010 143

    VIVER NO FEMININO: ESCRITA EPISTOLAR DE LIDDY CHIAFFARELLI MIGNONE PARA MRIO DE ANDRADEIns de Almeida Rocha

    Universidade do Estado do Rio de JaneiroE-mail: [email protected]

    Resumo: O texto analisa aspectos da escrita epistolar de Liddy Chiaffarelli Mignone para Mrio de Andrade, na inteno de revelar formas do viver no feminino desta que, alm de cantora, desenvolveu significativos trabalhos em Educao Musical e formao de professores de msica no perodo entre as dcadas de 1930 e 1960. Em sua escrita para o amigo, h evidncias de formas particulares de viver de uma mulher que buscava sua realizao intelectual, profissional, afetiva, enfim, sua felicidade. Nesta prtica de escritura, revelam-se facetas de Liddy Chiaffarelli Mignone como filha, me, esposa, cantora, professora, escritora e amiga.

    Palavras-chave: escrita epistolar, Liddy Chiaffarelli Mignone e Mrio de Andrade.

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    Introduo

    Mrio amigo.

    Antes de mais nada devo contar a voc qual a causa da demora da minha resposta sua

    primeira carta: o Mignone andou cansado e nervosinho, com desejo de solido completa e

    com grande misantropia e, naturalmente, com isto me afligi moralmente. Fisicamente andei

    [ilegvel] de cansao pois faz 3 semanas que a minha empregada est doente e durante uma

    semana inteirinha tive que aguentar sozinha com todos os servios caseiros, que eu fazia

    de cara amarrada e debaixo de protestos, mas que remdio? Agora tenho uma mulatinha

    simptica me ajudando e s me ficou a obrigao da arte culinria na qual o Chico me

    ajuda e nos divertimos os dois a inventar coisas!! Felizmente o Chico j est mais descansado

    e alegrinho! At j tivemos uma reunio do desfalcado 6teto., e como desfalcado! O Chico

    criou uns ravilis que estavam divinos. Oh, que pena voc no ter podido experimentar!

    [...] Liddy Chiaffarelli Mignone, 1941a.1

    O cotidiano de uma dona de casa, uma mulher com seus afazeres domsticos, desempenhando funes femininas caseiras que a sociedade da poca esperava, contrasta com a profissional ativa, que exercia diferentes atividades no campo da educao musical e com a mulher que sabe decidir o rumo de sua prpria vida. Liddy envia cartas para o amigo, escritor modernista brasileiro Mrio de Andrade, contando detalhes de seu dia a dia, da lida domstica, de seus sentimentos, das preocupaes com seu companheiro, o compositor Francisco Mignone,2 e de acontecimentos que envolviam os amigos em comum.

    Neste texto, analiso alguns aspectos da escrita epistolar de Liddy Chiaffarelli Mignone para Mrio de Andrade na inteno de revelar formas de viver no feminino de uma mulher que buscava sua realizao intelectual, profissional, afetiva, enfim, sua felicidade. Esta escrita demonstra facetas de Liddy Chiaffarelli Mignone como filha,

    1 Neste texto, optei por uma transcrio atualizada das cartas, mantendo algumas marcas de escrita, como os traos para a mudana de assunto, a abreviatura 6teto. para a palavra sexteto, uso de aspas e palavras sublinhadas. A ortografia e acentuao foram atualizadas, visando tornar a leitura mais gil e facilitar a compreenso do contedo do texto. Adotei tais procedimentos, por considerar que no comprometeriam, na presente anlise, as reflexes que ora me proponho a realizar. Em minha tese de doutorado, em fase de redao, pretendo incorporar discusses tericas feitas no campo da Lingustica e da Histria da Cultura Escrita, para a transcrio de cartas, especialmente as contribuies e anlises de Antonio Castillo Gmez, Vernica Sierra Blas, Laura Martnez Martn, Jordi Curbet, Rita Marquilhas e outros autores que discutem estas questes, debatidas em Congressos como: IV Xuntanza da Rede de Arquivos e Escrita Popular: Memoria Escrita, Historia e Emigracin (6 a 8 de novembro de 2008, Santiago de Compostela) e The Fifth International Conference of the European Society for Textual Scholarship: Personal Writings and Textual Scholarship (20 a 22 de novembro de 2008).

    2 O casamento de Liddy Chiaffarelli e Francisco Mignone s foi oficializado em 1 de fevereiro de 1947 (SILVA, 2007), sendo, portanto, posterior ao perodo da correspondncia que analiso. Entretanto, neste texto, utilizarei a denominao companheiro(a) para caracterizar a unio dos dois, j que nesta correspondncia, ela no se refere a Mignone chamando-o de marido ou esposo. Todavia, na carta escrita em 21 de maio de 1940, ela faz a nica referncia a uma denominao do relacionamento deles, chamando-o de companheiro de vida, por isso optei por utilizar este termo.

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    me, esposa, cantora, professora, escritora e amiga. Recorro, ento, autores que se dedicam ao estudo de cartas para compreender melhor esta prtica de escritura.

    Muitas outras mulheres dedicaram horas a escrever cartas em diferentes pero-dos. Antonio Castillo Gmez (2001, p. 203), ao analisar cartas do sculo XIV, mesmo observando um nmero maior de missivas de mulheres neste perodo ressalta que esta no uma prtica de escrita eminentemente feminina. Considera, contudo, que neste espao elas se dedicavam escrita puesto que se trataba de una actividad privada que no alteraba ninguna de las convenciones sociales impuestas por la mentalidad patriarcal. Assim, diversas mulheres encontraram neste espao uma possibilidade de expresso, em uma sociedade que pouco lhe permitia interferir e se expressar, e o fizeram com muita propriedade. Ou, pelo menos, foram consideradas melhores escritoras de cartas que os homens, como observa Meri Torras Francs (2001) ao analisar cartas de mulheres.

    No trecho da carta que inicia este trabalho, percebe-se a necessidade de uma constncia na escrita e troca de mensagens que se revela logo no princpio da mis-siva quando Liddy se desculpa pela demora em responder mais de uma carta que j se acumulava sem retorno. Parece ser importante que o dilogo epistolar no se interrompa entre os correspondentes, pois Mrio no espera a resposta da amiga para lhe redigir outra. Para compreender melhor esta prtica de escrita feminina h que investigar os fatores que desencadeiam esta necessidade de envio de cartas e possveis motivos que levaram os dois amigos a alimentar laos atravs da troca de correspondncia.

    Muitos so os motivos que impulsionam uma pessoa a estabelecer uma comu-nicao epistolar. Este outro aspecto que Castillo Gmez (2002, p.103) observa ao tratar da dualidade que as cartas encerram, pois, cada intercambio epistolar tiene sus propias razones, pero todos en conjunto participan de una caracterstica que define esta modalidad de escritura: la complementariedad entre la ausncia y la presencia. A carta surge da necessidade de superar uma ausncia causada por um distanciamento fsico. A correspondncia entre Liddy e Mrio travada em perodos de afastamento um do outro, seja por mudana de residncia para outra cidade, ou pelas viagens que ela realiza. Deslocamentos motivados por guerras e imigrao tm sido tambm responsveis por desencadear a redao de cartas, mesmo por aqueles que nunca tinham recorrido a essa forma de comunicao (MARTNEZ MARTN, 2006; SIERRA BLAS, 2007). Contudo, escrever cartas no apenas uma forma de aproximao com o destinatrio das letras. Muitas vezes, a necessidade de escrev-las est ligada a vivencias dolorosas y a las zozobras interiores de la persona, lo que significa que dichas escrituras solo sirvan para superar las distancias y para dar seales de vida, sino que van mucho ms all (CASTILLO GMEZ, 2003, p. 270). Para aquele que escreve, as cartas podem representar uma forma de estruturar seus pensamentos e expressar

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    sentimentos. Ao pesquisador que agora entra em contato com esses documentos, novas perspectivas de anlises se abrem, proporcionando novas reflexes sobre es-pecificidades da vida dos escriventes manifestada naquelas palavras.

    A trajetria destas cartas nos faz conhecer um pouco do destinatrio, de como ele conservou a correspondncia recebida de seus amigos e da amizade entre Liddy e o escritor. Elas esto agora arquivadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de So Paulo (USP), no Fundo Pessoal de Mrio de Andrade, integrando a Srie Correspondncias3 e estiveram guardadas por muito tempo, fora de acesso a pesquisadores.

    Mrio de Andrade faleceu com problemas cardacos, e em seu testamento pedia para que a correspondncia por ele recebida, e cuidadosamente guardada em pastas, fosse lacrada por 50 anos para proteger a intimidade de seus correspondentes. Este pedido foi atendido por sua famlia e pela Universidade de So Paulo, que comprou sua biblioteca e coleo de obras de arte em 1968. Este acervo, juntamente com outras doaes da famlia, se tornou, a partir de ento, propriedade do Instituto de Estudos Brasileiros desta Universidade. A correspondncia ativa de Mrio de Andrade, a correspondncia passiva, a correspondncia de terceiros e cartes postais, segundo Moraes (2001), estavam dentre as doaes da famlia e estes documentos, aps o prazo de espera, foram organizados, catalogados e disponibilizados para pesquisa.4 Dentre eles, estavam as cartas que Liddy Chiaffarelli Mignone escreveu ao amigo. So 93 documentos catalogados, datados entre 1937 e 1945, sendo 89 cartas assinadas por ela, um telegrama, dois bilhetes e um carto, este com nome impresso de seu primeiro casamento com o professor de piano italiano radicado no Brasil, Agostino Cant: Liddy Chiaffarelli Cant. Este o nico documento que difere dos demais, assinados com seu nome de solteira: Liddy Chiaffarelli. Mesmo j vivendo com Fran-cisco Mignone, ela no acrescenta seu sobrenome ao assinar estas cartas. O grande montante de cartas, mais de sete mil, no deixa dvidas quanto ao hbito dirio de escrever cartas que Mrio de Andrade cultivava, o cuidado e a importncia que dava conservao destas cartas, e sua importncia como homem pblico.

    Os dois correspondentes nasceram na cidade de So Paulo, mas as cartas con-servadas so do perodo em que Liddy Chiaffarelli se transferiu para o Rio de Janeiro. Mrio de Andrade nasceu em 9 de outubro de 1893, e faleceu aos 51 anos, na sua cidade natal, no dia 25 de fevereiro de 1945. Foi um intelectual de muitas facetas, entretanto, dentre todas, se destaca o pensador e formador de opinio. Tornou-se

    3 No IEB (USP), a Srie Correspondncias do Fundo Pessoal de Mrio de Andrade, compreende docu-mentos datados de fevereiro de 1914 a fevereiro de 1945, em trs subsries: Correspondncia passiva, Correspondncia ativa e Correspondncia de terceiros, totalizando 7.796 documentos.

    4 A catalogao eletrnica da correspondncia de Mrio de Andrade encontra-se disponvel em: www.ieb.usp.br .

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    uma importante referncia para artistas, escritores e msicos de seu tempo. Mrio de Andrade atuou em diferentes reas de conhecimento, sempre de maneira marcante e expressiva. H o escritor, o poeta, o ensasta, o jornalista, o folclorista, o terico da arte, o lder do Movimento Modernista de 1922, o defensor do patrimnio cultural, o promotor de polticas pblicas na rea da cultura e o msico. Sua formao musical tambm era diversificada, pois era cantor, pianista, compositor efmero, musiclogo, folclorista, professor de matrias tericas do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo e professor particular de piano (TONI, 2004, TRAVASSOS, 1997). Foi, tambm, importante cronista e crtico da vida musical da poca com artigos publicados em peridicos brasileiros e diversas obras publicadas de cunho musicolgico.

    A remetente, Liddy Chiaffarelli Mignone, nasceu em 9 de maio de 1981 na capital paulistana, onde viveu at 1933, quando mudou para o Rio de Janeiro. Nesta cidade, esteve ligada a diversos projetos pedaggicos que, apesar de terem surgido em uma escola de formao de msicos, tiveram reflexos em outros espaos sociais, levando o ensino musical para escolas de formao geral (ensino infantil e fundamental), clubes, hospitais e instituies teraputicas e programas de rdio e televiso. frente do Curso de Iniciao Musical, desenvolveu metodologia para a fase primeira do apren-dizado formal de msica infantil. Criou o Curso de Especializao de Professores de Iniciao Musical, tambm com metodologia prpria, fundou um Centro de Estudos e organizou festivais, concursos e palestras. Atuou como professora de canto e piano, sendo responsvel pela formao de msicos, professores e diferentes profissionais de msica. Publicou dois livros sobre a metodologia de ensino para crianas. O primeiro, Iniciao Musical: Treinos de Ouvido, Ritmo e Leitura, foi escrito com sua aluna e assistente Marina Lorenzo Fernandez e publicado em 1947. O segundo, Guia para o professor de recreao musical, foi publicado em 1961 e teve como colaboradoras suas assistentes Ceclia Conde, Elizah Penna e Marina Espanha. Liddy levou tambm o Curso de Especializao de Professores de Iniciao Musical e o Centro de Estudos para a cidade de So Paulo e a Iniciao Musical para o interior paulista. No incio da dcada de 1960, viajava para dar aulas nos cursos de formao de professores que criou em So Paulo e visitar escolas de msica que ministravam cursos de Iniciao Musical. Em uma dessas viagens, retornando ao Rio de Janeiro, faleceu em trgico acidente de avio, no dia 26 de novembro de 1962. 5

    A historiografia da educao musical no Brasil registrou alguns trabalhos de-senvolvidos por esta professora de msica, entretanto, pouco se fala do perodo em que viveu em So Paulo e de outras dimenses de sua atuao profissional, de sua formao e sua personalidade que a correspondncia que ora me propronho a estudar revela. Este mais um motivo pelo qual me debruo sobre estas cartas, voltando meu

    5 Sobre anlise da trajetria profissional de Liddy Chiaffarelli Mignone no Rio de Janeiro e a metodologia de Iniciao Musical desenvolvida por ela, (ROCHA, 1997).

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    olhar para particularidades destes documentos, pensando sobre o que esta escrita pode revelar a respeito de sua forma de viver e sobre uma forma de viver no feminino.

    Ao escrever, Liddy conta novidades. Ao falar de sua vida, vai registrando parte de sua biografia, em uma prtica de escrita considerada como uma das manifestaes de escritura autobiogrfica, pois o escritor vai registrando como percebe os aconteci-mentos de sua prpria existncia. Segundo Antonio Viao (2000), na autobiografia aquele que escreve recorda e relata fatos de sua vida pessoal e o prprio autor o centro do relato. Sendo assim, podemos considerar que na escrita de cartas h uma dimenso autobiogrfica, pois o remetente ao dirigir seu relato ao destinatrio, dar notcias, escreve sobre si mesmo. Por outro lado, esta escrita autobiogrfica parte do processo no qual aquele que redige vai construindo sua identidade profissional e pessoal (GOMES, 2004). Ter acesso a estes documentos permite acompanhar este processo e pensar sobre como a educadora foi traando sua trajetria de vida.

    Ao ler uma correspondncia, podemos conhecer melhor o remetente e a imagem de si que projeta para aquele que recebe a missiva (BASTOS, CUNHA, MIGNOT, 2002). Nesse sentido, esta uma escrita muito particular, que demonstra aspectos que outros escritos no evidenciam. O uso desta fonte e anlise desta prtica de escritura ganha importncia pelas diversas possibilidades que ela encerra, e, em particular, para se refletir sobre formas de viver e como se constitui subjetividades. Segundo Vernica Sierra Blas( 2003, p. 27), o escritor de cartas mantm nesse registro estreita relao com as experincias vividas por cada pessoa, [e] a comunicao epistolar representa uma das manifestaes mais evidentes do escrever subjetivo e existencial. Aquele que escreve cartas para um amigo se mostra, se expe de uma forma diferente das de outros tipos de escritura, pois a confiana que se estabelece o permite. Pelo tes-temunho pessoal dessa escritura, podemos seguir a trama de afinidades eletivas e penetrar em intimidades alheias (MIGNOT, 2002, p. 116). Aceitando o convite que esta proposio de Ana Chrystina Mignot nos oferece, busco nestas reflexes seguir esta trama de afinidades que a educadora musical estabelece nesta troca epistolar.

    A presena de Francisco Mignone nas missivas que Liddy escreve chama a ateno. Alm de sempre mencionar algo sobre ele no corpo das cartas, ela o torna presente no cerimonial epistolar, ou seja, nas saudaes e despedidas que fazem parte da estrutura da carta. O prprio Mignone tambm escreve bilhetes ao final de algumas delas, aps a despedida da esposa, ou mesmo escreve em notao musical, melodias para as palavras finais da carta de Liddy.6 Esta forte presena de outra voz no dilogo epistolar entre os amigos levou-me a investigar se o mesmo acontece nas cartas escritas por Francisco Mignone para Mrio. Tanto as escritas por Liddy, quanto

    6 Sobre anlise do cerimonial epistolar na correspondncia de Liddy Chiaffarelli Mignone, (ROCHA, 2007).

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    as escritas por seu companheiro, podem ser consideradas como sendo parte de uma conversa epistolar entre Mrio, Liddy e Mignone, pois os temas tratados em uma carta podem ter continuao na carta do outro remetente e vice-versa.

    O que Liddy conta na carta transcrita anteriormente, sobre a rotina domstica dos cuidados com a casa, bem diferente da rotina de outros perodos de sua vida, quando morava em um palacete, no bairro Jardins, cidade de So Paulo, com vrias pessoas para executarem os servios de limpeza e arrumao, preparao das refei-es, jardinagem, sob sua orientao, enquanto cuidava dos filhos. Como veremos ao longo do texto, Liddy, ao se transferir para o Rio de Janeiro, muda completamente sua rotina. Mesmo assim, em sua forma de vida, sua casa se manteve como um lugar de encontro de msicos e artistas, sob sua hospitalidade. O sexteto que ela menciona nada mais do que o grupo de amigos que sempre se reuna para conversar, comer bons pratos preparados pelos anfitries, discutir arte e fazer msica. Um grupo no qual gravitavam o prprio Mrio e outros nomes como: Manuel Bandeira, Antnio de S Pereira, Cndido Portinari e esposa, Toms e Maria Tereza Tern.

    Uma histria de mulher

    Ti-Mrio querido.

    Quem protesta agora somos ns! Cad a minha carta prometida? Ou est voc esperando a nossa ida para So Paulo para comemorar muitssimo com a gente? Seja como for, estamos com saudades terrveis de voc e o natal sem voc aqui no vai ter graa nenhuma!! Nos ltimos trs anos tivemos a sorte de ter voc, como nosso irmo-pequeno, ao nosso lado neste dia, e amanh vai ser um caso srio sem voc!! Dia 24 de dezembro, aniversrio da minha me, ficou para mim um smbolo de bondade e generosidade, que talvez seja mais inspirada na lembrana dela, que num sentimento cristo, ou ento as duas coisas juntas, e gosto de ver gente sorridente minha volta, dar alegria, agradar, presentear! O Terans viro jantar com o Szinho, o Ti-Mrio faltar! Ah! Ti-Mrio!! [...] Liddy Chiaffarelli Mignone, 1941b.

    Nesta carta, a vez de Liddy reclamar da demora de resposta de mensagem enviada. Pelo que ela escreve, podemos saber parte do que consta nas cartas enviadas por Mrio sua amiga. Algumas lacunas sempre ficaro, pois do dilogo epistolar temos acesso apenas uma voz. Infelizmente, no podemos ler as cartas redigidas pelo escritor, pois elas j no existem mais. Durante muito tempo, Francisco Mignone as guardou, mas por fim destruiu as cartas.7 Ao falar da me, Liddy se mostra, no-vamente, uma filha que lembra dela com carinho. Esta lembrana de forma afetiva e com tanto simbolismo revela no s a ligao forte que manteve com ela, mas tambm a sua faceta como filha. Revela, tambm, ser uma mulher que gosta de ver

    7 Segundo Josephina Mignone, segunda esposa e viva de Francisco Mignone, em relato informal, seu marido rasgou as cartas, sob sentimento de melancolia, pois elas poderiam revelar detalhes pessoais das pessoas pblicas mencionadas na correspondncia.

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    sua casa como lugar de encontro entre amigos em datas festivas e que congrega pessoas para convvio social.

    Durante o perodo em que viveu em So Paulo, por sua casa circulavam os alunos de piano de seu pai e de seu primeiro marido e muitos msicos que se apre-sentavam no salo da manso onde vivia. Este salo era cercado de varandas e tinha capacidade para acomodar cerca de 150 pessoas para assistirem os concertos que ali se realizavam. Havia dois pianos de cauda e um rgo, e todos os concertistas que passavam pela cidade paulistana se dirigiam para esta casa, a fim de conhecer os professores mais reconhecidos e para se apresentarem ao pblico que frequentava as sries de concertos organizados pelos donos da residncia.8 A grande casa ge-minada foi construda para abrigar duas famlias: a de Liddy e seu primeiro marido, Agostino Cant, e a de seus pais, Luigi Chiaffarelli e Willelmine Caroline Mankel. Os dois patriarcas foram responsveis pela educao musical de muitos pianistas e pela formao de um pblico de msica erudita que acorria aos saraus nesta casa.

    Neste perodo, o piano havia se tornado uma pea decorativa obrigatria nas residncias mais abastadas do pas, assim como o seu estudo, mesmo que a quali-dade das performances no fosse das mais admirveis. Tudo indica que a superfi-cialidade do conhecimento musical parecia suficiente para as exigncias dos seres

    familiares, onde a execuo de rias, modinhas e outras formas musicais tiveram seu

    lugar, havendo, nesse campo, preferncia pela msica italiana (JUNQUEIRA, 1982, p.12). No havia, ainda, um estudo do instrumento que pudesse formar concertistas e msicos de projeo internacional, assim como o conhecimento de um repertrio variado. Jorge Americano retrata este universo que cercava o instrumento musical na formao feminina:

    Ah, o piano [...] Casa que se prezasse ostentava, em lugar de destaque, um vasto piano de cauda, importado da Frana ou da Alemanha: Bechstein, Pleyel, Steinway, Gerard. Prenda indispensvel, tanto quanto a culinria, o estudo do piano era imposto a quase todas as moas. E quase todas, quando casavam, traziam o piano como parte do mobilirio da casa. As que aprendiam s para mostrar que eram prestimosas deixavam a msica no primeiro ms de gravidez, e o piano era vendido para auxiliar o parto, [...] As que no se casavam continuavam a tocar com a janela aberta, na esperana de que se interessasse pela msica um esprito de artista que passasse pela calada. As que tocavam bem e no se casavam, faziam-se professoras de piano (NOSSO SCULO, 1985, p.135).

    8 Entrevista com Maria Azevedo von Ihering, filha da ex-aluna de Luigi Chiaffarelli, Isabel Azevedo von Ihering; conviveu com Liddy Chiaffarelli acompanhando a me em suas aulas e nas reunies na casa da rua Padre Joo Manuel. Esta entrevista foi concedia autora, na residncia da entrevistada, na cidade de So Paulo, no dia 12 de janeiro de 2008.

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    Estudar piano para se mostrarem prendadas, tocar um instrumento musical para esperar e atrair um bom marido ou lecionar para ganhar sustento de uma vida de solteira, fizeram parte do universo feminino de algumas moas desse perodo.

    A educao feminina durante muito tempo privilegiava a educao dos senti-mentos, das emoes e de atividades manuais. Considerava-se que aos homens cabia uma educao voltada para a razo, enquanto que para a mulher destinava-se uma educao das emoes. Segundo Ana Mae Barbosa (1995, p. 39), no Brasil, a ideia comum era a de que o estudo da Arte ameigaria o carter, refinaria a sensibilida-de da mulher, alm do que, atravs da prtica da Arte, ela assimilaria os princpios elementares da esttica, to teis vida feminina, desde o arranjo da toilette at a formao interior da casa, o efeito decorativo dos mveis, tapearias, tapetes e, sobretudo, a boa escolha dos objetos, estatuetas e quadros. Tocar piano, fazer perfeitas cpias de paisagens, embora de mau gosto, a leo ou carvo, e bordar com perfeio, eram indicadores de educao refinada e de alta classe. A Arte nas escolas femininas de elite, nos Estados Unidos e nas escolas catlicas do Brasil, no sculo XIX, esteve a servio da educao dessas moas prendadas.

    Nesse contexto, Luigi Chiaffarelli exerceu decisivo trabalho para a formao e reconhecimento internacional de nossas primeiras pianistas que seguiram carreira internacional. Entre as moas talentosas que procuraram sua orientao, estavam Guiomar Novaes e Antonietta Rudge. Filho de msicos, o mestre Chiaffarelli nasceu na Itlia, na cidade de Isernia, em 1856. Desenvolvia carreira de pianista e professor na Europa quando conheceu, na Sua, um casal de fazendeiros de caf da cidade de Rio Claro, estado de So Paulo, que o convidou para ser professor de seus filhos. Assim, ele iniciou sua trajetria brasileira, ensinando idiomas e piano. Diplomado em italiano, francs e alemo, sua paixo pelas letras o levou a estudar 13 idiomas, inclusive o japons.9 Sua noiva, alem, veio ao seu encontro. Casaram-se e, pouco tempo depois, mudaram-se para a cidade de So Paulo (JUNQUEIRA, 1982).

    Liddy, segunda filha do casal, iniciou seus estudos de msica e lnguas com o pai. Ele foi o responsvel por sua formao musical e humanstica, pois ela no frequentou escolas. Chegou a dominar cinco idiomas, fluentemente. Alm do por-tugus, lia, falava e escrevia em alemo, italiano, francs e ingls. Com seu pai, tambm estudou piano, mas se apresentava nos sales de So Paulo como cantora. Estudou canto com Madame Bourron, professora francesa que lecionou na capital paulistana (ROCHA, 1997). Cantava nos saraus organizados por seu pai em sua casa e, eventualmente, em outros espaos.

    9 Verbete Luigi Chiaffarelli, (ENCICLOPDIA ..., l977, p. 188).

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    Em 1908, chegou cidade Agostino Cant. O professor, organista, pianista, compositor e maestro italiano, vinha convidado pelo maestro Comes Cardim para trabalhar no Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo.10 Liddy se casou com ele e seu pai construiu uma grande casa na rua Padre Joo Manuel, no. 57, para abrigar as duas famlias. Em 30 de novembro de 1912, nasceu a filha do casal, Elza Cant, a qual todos chamavam de Zitu,11 e em 1917 se mudaram para aquele endereo.

    A nova casa passou a ser o cenrio dos concertos pblicos que seu pai j havia iniciado a organizar para divulgar o trabalho de seus alunos e um novo repertrio musical que os paulistanos no estavam acostumados. Segundo Junqueira, que analisa a escola pianstica de Chiaffarelli, ele foi responsvel por uma mudana no repertrio executado pelos pianistas da poca, que estavam muito acostumados a um rias de operetas italianas, substituindo por autores como Rameau, Couperin, Bach, Mozart, Beethoven, Mendelssohn, Chopin, Saint-Sans, Debussy, os brasileiros contemporneos, como Henrique Oswald, Alberto Nepomuceno, Heitor Villa-Lobos, Agostino Cant, Francisco Mignone, entre outros. Neste salo, tocaram seus alunos mais famosos: Guiomar Novaes, Joo de Souza Lima, Antonieta Rudge, Menininha Lobo e Alice Serva. Passaram tambm por l, msicos estrangeiros de destaque: Henrique Oswald, Francisco Braga, Harold Bauer, Pablo Casals, Jos Viana da Motta, o bailarino Vaslav Nijinski, Darius Milhaud, Magdalena Tagliaferro, Arthur Rubinstein, Alexander Brailowsky e Alexander Borovsky (JUNQUEIRA, 1982), e Paderewsky, Frie-dman, Miercio Horzowski, Moreira S, Cesar Thompson.12

    Sirinelli (1986, p. 249) , ao analisar a importncia que os sales exerceram na vida cultural brasileira, observa que na virada do sculo XIX para o sculo XX, eles eram importantes espaos de convvio social, tanto para artistas como para intelec-tuais. Dependendo da poca e do grupo social, as estruturas de sociabilidade variam, e esses sales constituam uma casa importante no jogo de ludo dos intelectuais, com suas musas da sociabilidade. Estes sales no figuram mais entre os elementos decisivos que hoje quadriculam e subtendem a intelectualidade.

    Estando acostumada a viver em uma casa com movimento de vrias pessoas pelo salo de concertos e pelas salas de estudo de msica do primeiro andar, pode-se imaginar o sentimento que descreve na carta para Mrio, anteriormente transcrita. O Natal, uma festa que promove o encontro em famlia e amigos, provavelmente a

    10 Verbete Agostino Cant, (ENCICLOPDIA ..., l977, p. 143).11 Entrevista autora, com Roberto Cenni, filho de Elza Cenni e Franco Cenni, neto de Liddy Chiaffarelli e

    Agostino Cant, no Sesc Pompia, cidade de So Paulo, no dia 13 de dezembro de 2006.12 Programa da 512. Seco Pblica do Auditrio Lorenzo Fernndez, em 30 e 31 de agosto de 1957, II

    Concurso de Piano, organizado por Francisco Mignone e Liddy Chiaffarelli Mignone, em homenagem ao centenrio do nascimento de Luigi Chiaffarelli. Documento consultado no acervo Liddy Chiaffarelli Mignone no Conservatrio Brasileiro de Msica em fase de organizao.

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    fazia lembrar de outras festas natalinas e de outros momentos de reunies da rua Padre Joo Manuel.

    Os concertos realizados no salo de sua casa esto documentados nos pro-gramas impressos da srie denominada Vesperais. Eram encontros musicais que aconteciam sempre s quintas-feiras tarde. Nestes programas est registrada a sua participao como cantora e pianista no perodo de 1921 a maio de 1923, com um intervalo de sete anos sem participar, retornando nos anos de 1930 a 1932. Cantava msicas de compositores brasileiros, como Alberto Nepomuceno, Agostino Cant e Francisco Mignone. Entre os estrangeiros, ela cantou: Mozart, Gluck, Chopin, Mas-senet, Grieg, Schubert, Strauss, Sibelius, Debussy, De Falla, Poulenc, e outros. Apesar do nmero mais diversificado de compositores estrangeiros, o nmero de msicas de brasileiros que ela cantou bem superior.13

    Buscando compreender o motivo do intervalo de tantos anos sem cantar nos Vesperais, constatei que os anos de 1923 e 1924 foram marcados por duas perdas que abalaram muito a cantora: o falecimento de seu pai; e, no ano seguinte, seu filho caula. O menino, segundo filho de Liddy e Agostino Cant, havia nascido quando Zitu tinha dois anos. Carinhosamente apelidado como Bida, Jos Luiz Cant faleceu aos nove anos de idade com problemas cardacos. Liddy se recolhe das apresentaes durante um perodo, provavelmente para aplacar sua tristeza, ficando sete anos sem cantar nos Vesperais. A perda deste filho a marcou sensivelmente, e, de forma simb-lica, sempre manteve consigo um pequeno ba com algumas roupinhas dele. s vezes se recolhia para olhar as peas e lembrar de seu pequeno, depois fechava o ba.14

    A morte de seu pai tambm lhe trouxe muita comoo e sobre ela que Liddy fala ao amigo Mrio, em carta de 30 de maio de 1942, declarando o sentimento e emoo em relao s comemoraes pelos 20 anos de morte de seu pai:15

    [...] Dia 13 de junho escreverei Antonietta, dizendo que terei inaugurado o retrato de meu pai, bico de pena do Carlos Oswald, na minha salinha do Conservatrio. Em comemorao ao vigsimo aniversrio da morte dele! Voc pode imaginar que misto de emoes, ser para mim! Pense em mim! [...]16 (MIGNONE, 1942a).

    13 Para maiores informaes sobre os programas dos Vesperais, (IN MEMORIAN..., 1943).14 Entrevista autora, com Ligia Mignone Gripp, sobrinha de Francisco Mignone, ex-aluna e colaboradora

    de Liddy Chiaffarelli, em sua residncia, na cidade de Campinas, no dia 11 de dezembro de 2006.15 Apesar desta comemorao no Conservatrio Brasileiro de Msica estar acontecendo no ano de

    1942, no atestado de bito de Luigi Chiaffarelli no h dvidas sobre o ano de 1943, como data de falecimento.

    16 Neste trecho, Liddy se refere pianista e amiga, Antonietta Rudge, aluna de seu pai, Luigi Chiaffarelli, que depois de sua carreira como concertista no Brasil, Europa e Estados Unidos, dirigiu o Conservatrio de Msica de Santos.

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    Em sua escrita, as palavras so de admirao, carinho e respeito pelos pais, o que nos leva a concluir o quanto eles eram importantes para ela. A perda de seus pais deve ter provocado fortes sentimentos e, talvez, possam ter sido importantes para que buscasse novas formas de viver. Willelmine faleceu em agosto de 1932, e, meses depois desta data, Liddy se muda para a cidade do Rio de Janeiro. Talvez, apenas depois da morte de sua me ela se sentisse mais livre para decidir dar um novo o rumo sua vida.

    A mudana de residncia para outra cidade teve relao com o final de seu primeiro casamento. Aps a morte de seu filho, os problemas de convivncia com o marido se agravaram e culminaram na separao do casal no incio da dcada de 1930. Em janeiro de 1933, Liddy transfere-se definitivamente para o Rio de Janeiro para unir-se ao compositor Francisco Mignone.17 A partir de ento, inicia uma atuao profissional que ter grande dimenso em sua vida.

    Outras facetas da mesma mulher

    Mrio, a sua carta!

    Depois de muito sangrar com o meu companheiro de vida, e muito meditar, no cheguei a nenhuma concluso, s uma lembrana da minha adolescncia subia tona! Minha me operada em Turim, em estado gravssimo, eu menina ainda, nica da famlia a seu lado, muda e cadavrica, completamente encerrada na minha dor e preocupao! Um amigo de meus pais, padrinho do Olindo, veio propositalmente de Florena para trazer o conforto da sua amizade a ns duas, e vendo-me naquele estado de congelamento exterior, resolveu provocar uma reao em mim e com a primeira desculpa possvel me deu uma bofetada! A reao, a revolta, foi to violenta que ele se assustou! Me consolou com tanto carinho que eu acabei acreditando na boa inteno e perdoei! [...] (MIGNONE, 1940).

    Nesta carta, confidencia, de maneira discreta, um desentendimento com seu companheiro. Revela-se novamente uma filha dedicada, mulher que perdoa e que demonstra estar pronta para desculpar o companheiro que a magoou. Seriam for-mas de uma velada submisso? Ou ela estaria por trs de outras pessoas, no por submisso, mas por no ter necessidade de estar em evidncia? Uma mulher que decide se separar de seu marido, deixar uma vida de conforto e segurana financeira e muda de cidade para iniciar uma vida totalmente diferente, no parece ser uma mulher submissa. Muito pelo contrrio.

    Em outras situaes, em outras cartas, ela tambm demonstra um movimento daquela que no se posiciona como foco das atenes, dando importncia ao ou-tro. Escrevendo para o amigo, com frequncia, ela se mostrava como aquela que se preocupa com ele e como uma amiga que procura dar suporte emocional, apoio em

    17 Entrevista com Ligia Mignone Gripp. Ela relata que nasceu em 29 de janeiro de 1933 e que Liddy teria ido visit-la para conhec-la antes de sua transferncia para o Rio de Janeiro.

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    momento de crise. O que ela demonstra dar importncia, o que est em primeiro plano, justamento o outro e o bem-estar dele. o que podemos ver no trecho desta carta, escrita no ano de 1941:

    [...] agora que falei tanto de ns, chegou a sua vez! Voc dizer que o nosso estimado amigo est fazendo falta um prazer agri-doce! Queremos fazer falta a voc, isto certo, mais no uma falta contraproducente! Estou com sede de ler algo seu, Mrio, e quando a Maria Tereza me contou a proposta do Paulo [ilegvel] dei um pulo de alegria! Mrio, por amor a ns, es-creva estes folhetins que o Correio da Manh quer publicar! No comece a complicar as coisas com questes de delicadezas versus [ilegvel], porque uma coisa no tem nada com a outra e voc precisa dar a ns, seus amigos, o ensejo de ler voc Mrio! [...] (MIGNONE, 1941a).

    No ano de 1939, Mrio de Andrade morou no Rio de Janeiro, no mesmo prdio que o casal Mignone. A convivncia diria, na mesma cidade solidificou os laos j existentes. No entanto, o escritor atravessava um perodo de crise aps sua exonerao da direo do Departamento de Cultura e Recreao do Municpio de So Paulo. Liddy escrevia em suas cartas palavras de estmulo para o amigo, tentando reanim-lo e faz-lo escrever, produzir para sair da crise. Confia em sua capacidade criadora e, ao declarar que o pensamento dele importante contribuio que deve ser conhecida, revela sua importncia como uma referncia intelectual. Ao final daquele ano ela ainda insiste em estimul-lo, apesar do receio que demonstra de no ser bem aceita em sua inteno de amiga:

    [...] Ti-Mrio, quero que voc pense que ns somos muito, muito seus amigos, que que-remos saber e tomar parte nas suas alegrias e nos seus sofrimentos! Lembre-se Mrio, que um homem maduro tem o dever de transmitir aos que esto se fazendo, as suas experincias boas e ms! Conselho no adianta, exemplo sim!! Escreva um livro srio, muito srio! Sobre os seus experimentos na vida, as suas opinies sobre a nossa arte! O seu artigo de Clima, primeiro nmero, foi o primeiro captulo para esta fase de sua vida! Estamos vivendo um grande momento da histria do mundo e cada um de ns, por modesta que seja a pedrinha, deve contribuir uma construo de edifcios novos! Desculpe o mal jeito, um abrao de ns dois, votos aos mil, para tudo e para todos! Sua Liddy (MIGNONE, 1941b).

    A troca de correspondncia vai fortalecendo laos e estabelecendo uma con-fiana para confidncias e expresses de afeto que outros espaos talvez no favo-recessem. Segundo Castillo Gmez (2001, p. 203), cartas reflejan el recurso a la escritura para establecer lazos de unin en la distancia, as como un lugar propicio para las confidencias y las informalidades, aunque con tonos distintos segn lo fuera la condicin de los emisores y destinatarios de las mismas. Muito provavelmente, Liddy reconhecesse nesta prtica de escrita um lugar privilegiado para fortalecer laos com seu correspondente.

    Apesar destas citaes das cartas darem indcios daquela que consola, estimula, cuida, perdoa atitudes e valores muito atribudos mulher e a uma forma de viver

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    em funo do outro , Liddy demonstra ter domnio dos rumos de sua prpria vida e toma suas prprias decises. Ela se coloca frente de iniciativas pouco usuais dentre as mulheres com as quais convivia. Poucas foram as mulheres de seu tempo que se separaram, rompendo com um casamento infeliz e buscaram uma nova vida mais plena. Poucas mulheres, na segunda metade do sculo XX, iniciaram uma carreira profissional aos 40 anos de idade. Mesmo hoje em dia, tempo em que as mulheres tm mais liberdade e oportunidades de realizao profissional e pessoal, sem depen-derem de um homem, seja marido, pai ou irmo, muitas ainda se acomodam a uma situao estabilizada, mesmo que com problemas.

    Se observarmos a trajetria profissional que Liddy desenvolve depois que se uniu a Francisco Mignone, constatamos que ela vivenciava uma liberdade de ao que no pde experimentar no perodo em que viveu em So Paulo, onde sua rotina estava ligada a seu papel de esposa e me. Sua atuao como musicista se restringia aos saraus em sua manso e a muitas eventuais participaes em outros espaos paulistanos.

    Reconstruir a trajetria da vida pessoal e profissional de Liddy Chiaffarelli Mig-none no tarefa fcil. No Rio de Janeiro, sua atuao como professora se encontra melhor documentada no Espao Cultural Amlia Conde, situado no Conservatrio Brasileiro de Msica, pois foi nesta instituio de ensino que trabalhou por mais de duas dcadas. No entanto, difcil saber se atuou como cantora ou pianista neste perodo, pois no so encontrados registros. H que se considerar, tambm, um in-cndio que destruiu boa parte dos arquivos administrativos e os programas das apre-sentaes musicais desta escola em 1953. Nas outras instituies de ensino musical desta cidade, poucos, ou mesmo nenhum documento foi encontrado.18 Entretanto, na carta que escreve durante viagem aos Estados Unidos, no dia 20 de maro de 1942, em Evanston (Chicago), Liddy fala das crticas publicadas aps as apresentaes de msica dos compositores sul-americanos League of Composers. Entre as crticas que descreve, comenta que Ollins Downs havia gostado, principalmente, das msicas de autoria de Francisco Mignone cantadas por ela: Dona Joaquina, Passarinho e Coiote. Podemos concluir que ela no parou totalmente de cantar depois que passa a residir no Rio, ou que, pelo menos, fazia algumas apresentaes(MIGNONE, 1942b) .

    Em So Paulo, encontrei registros de sua atuao como musicista, apesar dos problemas que alguns arquivos apresentam e de seu deslocamento para o Rio de Janeiro ter contribudo para a disperso de sua documentao. Busquei programas de concertos em alguns arquivos e bibliotecas no perodo da dcada de 1910 at 1933,

    18 As instituies pesquisadas foram: Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Instituto Villa-Lobos da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Biblioteca Nacional, Biblioteca do Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) e Escola S Pereira.

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    data de sua transferncia. Um arquivo no qual muito provavelmente h programas de concertos e fotos em que ela aparece est interditado judicialmente consulta. Trata-se do arquivo do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo que no pode disponibilizar seus documentos para os pesquisadores.

    Alm dos programas dos Vesperais que seu pai e primeiro marido organiza-vam e que se encontram publicados, encontrei referncia, no ano de 1913, de sua participao cantando nos concertos realizados s quintas-feiras nas instalaes da Exposio de Arte Francesa realizada no Liceu de Artes e Ofcios (ROSSI, 2003).

    Pesquisando no catlogo da Srie Programas: Musicais, Teatrais, de Dana, Ltero-musicais e Literrios, Brasileiros e Estrangeiros do Arquivo Mrio de Andrade, no IEB, busquei a presena de Liddy Chiaffarelli no perodo de 1915 (data do pri-meiro programa) a 1933.19 Entre os programas de Mrio de Andrade, encontram-se algumas referncias a ela em apresentaes do Conservatrio Dramtico e Musical de So Paulo.

    No perodo que viveu em So Paulo, Liddy teve tambm participao na Socie-dade Symphonica de So Paulo. Integravam este grupo mulheres da alta sociedade paulistana que patrocinavam alguns concertos organizados, entre elas: Olvia Guedes Penteado, Isabel Von Ihering e a pianista Antonieta Rudge. Tambm participavam dessa sociedade, msicos e personalidades importantes da cidade organizando concertos e concursos musicais. Em concerto de 20 de maro de 1931, seu nome comea a aparecer entre outras senhoras da elite social paulista que patrocinavam os concertos.20 Participando da Diretoria e do Conselho Consultivo, figuravam nomes como Mrio de Andrade, Furio Franceschini, Agostino Cant, Antnio de S Pereira, Felix Ottero e Lamberto Baldi. Pode-se ter uma ideia da rede de sociabilidade na qual Liddy participava.21

    Ao se transferir para o Rio de Janeiro, trouxe poucos pertences e o que deixou em So Paulo com o tempo foi sendo descartado pela famlia.22 Restaram, portanto, poucos registros que possibilitem a reconstruo de sua trajetria. possvel aquilatar como, nestas circunstncias, a correspondncia que escreve para Mrio de Andrade

    19 Pesquisei nos programas de concerto datados at 1933, por ser este o ano de sua transferncia para o Rio de Janeiro.

    20 As senhoras patrocinadoras so Olvia Guedes Penteado, Antonietta Penteado da Silva Prado, Renata Crespi da Silva Prado, Isabel von Ihering, Elisa de Todelo Schorcht, Mina Klabin Warchvchik, Antonieta Rudge, Carolina da Silva Telles, Maria Penteado Camargo, Liddy Chiaffarelli Cant, Alice Tibiri.

    21 Em Rocha (2007b), apresento as primeiras reflexes sobre esta temtica. 22 Entrevista com Ligia Mignone Gripp. Nesta entrevista, contou que Liddy era uma pessoa muito des-

    prendida de seus bens materiais e que, ao sair de sua casa, aps romper seu casamento, levou poucos pertences.

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    torna-se ainda mais importante para a anlise de seus trabalhos e de sua trajetria.23 Estas cartas tornaram-se os raros documentos com indcios deste perodo de sua vida.

    Quando, em 1936, o compositor e professor Oscar Lorenzo Fernandez fundou o Conservatrio Brasileiro de Msica,24 Liddy convidada a trabalhar como professora de piano e canto. Assim, inicia sua trajetria institucional como professora. Antes dessa data havia trabalhado como assistente de seu pai, dando aulas particulares de piano para alunos mais iniciantes em sua casa. No ano seguinte, Antnio Leal de S Pereira a convida para implantar uma nova proposta de musicalizao de crianas: o curso de Iniciao Musical.

    A forma como escreve para Mrio, contando sobre a nova atividade profissio-nal, indica como a mesma foi significativa para ela, pois suas palavras demonstram entusiasmo:

    [...]Pensei que voc fosse aproveitar esses 3 feriados para dar uma voadinha at c, mas o S Pereira me disse ter carta sua na mo falando nisso. Ele, com certeza, mandar a voc notcias sobre o vosso, nosso, concurso e sobre o curso que iniciaremos com as 30 crianas que escolhemos das 104 que se inscreveram. Creio que vai ser um trabalho bem interessante e til para ns _____. [...] (MIGNONE, 1937).

    Ela fala da nova parceria, do concurso que S Pereira estava prestando para o Instituto Nacional de Msica,25 atual Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que fixa este professor esta cidade, do processo de seleo para admitir crianas para o novo curso e da sua expectativa diante do novo traba-lho. Pode-se notar o grande interesse que este curso j despertava pelo nmero de alunos que se inscreveram para o teste de admisso. Esse teste selecionava crianas com maior domnio de execuo rtmica e meldica, por meio de uma avaliao na qual ela deveria repetir ritmos batidos e a entoao de melodias executadas pelo professor ou professora avaliadora.

    Liddy e S Pereira trabalharam juntos durante um ano. Ao conquistar a vaga da cadeira de Pedagogia Musical para a qual prestara concurso, S Pereira assume

    23 Sobre anlise da trajetria profissional de Liddy Chiaffarelli Mignone no Rio de Janeiro e a metodologia de Iniciao Musical desenvolvida por ela, (ROCHA, 1997).

    24 O Conservatrio Brasileiro de Msica foi fundado em 2 de abril de 1936 com o nome de Conservatrio Nacional de Msica, por iniciativa de Oscar Lorenzo Fernandez, frente de um grupo formado por Amlia Fernandez Conde, Ayres de Andrade, Rossini Costa Freitas, Roberta Gonalves de Souza Brito, Antonieta de Souza. Por uma exigncia legal, dois anos depois de sua fundao, mudou de nome para Conservatrio Brasileiro de Msica. Atualmente, denominado Conservatrio Brasileiro de Msica Centro Universitrio, pois em 2002 se estruturou como um Centro Universitrio especializado em Msica, o primeiro no pas.

    25 Em 13 de agosto de 1848, foi fundado, por Francisco Manoel da Silva, o Conservatrio de Msica. Passou por outras denominaes: Instituto Nacional de Msica, em 1890; Escola Nacional de Msica, em 1937 e Escola de Msica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1966.

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    este cargo no Instituto Nacional de Msica e, logo em seguida, a direo desse esta-belecimento. Em 1939, o curso de Iniciao Musical foi tambm implantado neste instituto, tendo Nayde de Alencar S Pereira como seu responsvel (PEREIRA, 1949).

    O cultivo da amizade entre S Pereira e Liddy, que perdurou por muito tempo, proporcionou uma colaborao entre os dois professores muito produtiva,26 entre-tanto, os dois cursos foram ganhando caractersticas diferenciadas. O Curso de Ini-ciao Musical desenvolvido por Liddy se preocupava com um ensino individualizado e voltado para a utilizao da msica na formao integral do aluno. Liddy, ao falar da proposta desenvolvida no Conservatrio Brasileiro de Msica, afirma:

    O curso de Iniciao Musical no e nunca deve ser um curso de teoria musical, mesmo quando aliviado por processos modernizantes, mas sim uma atividade musical baseada no interesse e nas necessidades da criana, desenvolvendo, a par da sua musicalidade, a sua ateno, a disciplina espontnea, servindo como meio de afirmao de sua personalidade (MIGNONE, s.d., p.1).

    Pensando nos principais trabalhos de educao musical desenvolvidos nes-se perodo, podemos destacar alguns aspectos, nos quais estas metodologias se aproximavam e se afastavam. Nos anos de 1930 a 1940, Heitor Villa-Lobos estava frente de um grande projeto de musicalizao de crianas em escolas pblicas, implementado pelo governo do presidente Getlio Vargas (FUKS, 1991; SANTOS, 1996). A proposta de musicalizao de Liddy Chiaffarelli e de S Pereira contrastava com a proposta mais totalizante do canto orfenico, que se propunha a padronizar o ensino da msica sem grandes preocupaes com particularidades, individualidades dos alunos ou regionalismos. Muito embora as duas propostas tambm lanassem mo de composies que dialogavam com a msica folclrica, os objetivos e me-todologia de ensino musical eram distintos. O canto orfenico utilizava um mesmo repertrio que era escolhido para todas as escolas cantarem e se prepararem para as grandes concentraes, padronizando a prtica musical. Na Iniciao Musical, o folclore era repertrio fundamental utilizado nas aulas: canes infantis, cantigas de roda, acalantos, danas, brinquedos cantados, canes conhecidas das crianas e professoras. Sua utilizao, entretanto, no buscava a uniformizao, a prtica de canto coletivo de um mesmo repertrio, mas desenvolver a musicalidade nas carac-tersticas singulares que se apresentavam em cada criana, motivando-a para novos aprendizados musicais.

    O canto orfenico, na perspectiva de Wisnik (1983a), pode ser analisado em suas ligaes ideolgicas, nacionalistas que buscavam elevao esttico-pedaggica do pas, valendo-se do ethos educativo e apaziguador da agitao urbana que,

    26 Entrevista com Ligia Mignone Gripp sobrinha de Francisco Mignone, ex-aluna e colaboradora de Liddy Chiaffarelli em sua residncia, na cidade de Campinas, no dia 11 de dezembro de 2006, autora.

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    acreditava-se, a prtica coral poderia proporcionar, pelo menos pela forma como era praticada. Devo concordar, contudo, com Marcus Wolff (1991, p. 19), quando diz que este pensamento no pode ser generalizado para toda a produo musical nacionalista, na medida em que esta com frequncia questionou musicalmente os fundamentos do projeto ideolgico estado-novista. Este autor se referia, mais es-pecificamente, msica de Camargo Guarnieri e Lorenzo Fernandez, objeto de sua anlise. Acredito, entretanto, que semelhante afirmativa equivale para os projetos pedaggicos musicais contemporneos proposta orfenica, e neste caso a Inicia-o Musical. Algumas caractersticas do curso e do pensamento de Liddy Chiaffarelli Mignone podem contribuir para o entendimento desta questo, uma vez que se colocavam em sentido oposto ao do canto orfenico.

    A Iniciao Musical se propunha a desenvolver a musicalidade do aluno, contri-buindo para o desenvolvimento de suas potencialidades, enquanto o canto orfenico concebia a prtica musical como uma forma de educar e disciplinar com nfase no civismo. O canto em grandes conjuntos, com grandes massas de pessoas cantando o mesmo repertrio, era valorizado como prtica musical pela metodologia de canto orfenico, enquanto a prtica musical da Iniciao Musical buscava atender a carac-tersticas individuais de cada criana e de desenvolvimento de cada faixa etria. O uso de repertrio de msica brasileira e folclrica era um ponto em comum, todavia a Iniciao Musical se apropriava apenas de msicas de cunho folclrico infantil em vez das canes cvicas cantadas tambm pelos grupos orfenicos. Meu entendimento de que a Iniciao Musical se apresentou como uma alternativa, e, conscientemente ou no, como uma forma de resistncia contra a ideologia do Estado Novo, a qual Villa-Lobos tanto se identificou.

    Para finalizar...

    Termino estas primeiras reflexes com algumas lacunas e questes que pretendo desenvolver em outros trabalhos. As principais questes dizem respeito aos aspectos grficos da escrita de Liddy Chiaffarelli Mignone e materialidade das cartas. Em que poderamos identificar sua prtica de escrita, como uma escrita feminina? Em que aspectos ela evidenciaria peculiaridades eminentemente femininas? Que aspectos grficos poderiam ser indicadores de uma forma de viver no feminino: nos caracteres grficos, no uso do espao em branco da folha, nos temas abordados?

    Mesmo com estas lacunas e questes, acredito que o trabalho com este tipo de documentao, cartas, pode apresentar contribuies importantes para a rea a Histria da Educao Musical. Sem dvida alguma, ao falar de si, ao contar fatos de seu cotidiano, projeta imagem das diferentes facetas de sua vida: companheira, amiga, me, filha, professora, cantora de uma forma peculiar que outras fontes no

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    revelam. Por outro lado, estas fontes possibilitam compreender melhor o perodo no qual Liddy desenvolveu trabalhos de ensino de msica, por conterem informaes que outros documentos no apresentam. O fato de as cartas serem uma prtica de escrita considerada autobiogrfica, tambm fornecem outras chaves para anlises deste perodo, como por exemplo, daquelas relatadas ao amigo, que vivencia em seus deslocamentos para outras cidades e nos projetos que desenvolveu. Esta escrita evidencia a imagem de mulher que desejava projetar para o amigo e, provavelmente, esta seria a imagem que projetava para outras pessoas tambm.

    Nesta correspondncia, fica destacada a forma como lembra de seus pais e de perodos de sua infncia. Estes aspectos tornam a documentao bastante peculiar, pois nos poucos documentos manuscritos de sua autoria existentes, e nos dois livros que publicou, a escrita da educadora no registra estas particularidades. Portanto, sua escrita epistolar possibilita acrescentar dados relevantes s reflexes aqui desenvolvidas.

    Longe de querer estabelecer um padro de vida feminina, uma forma nica que caracterize um gnero, pretendi destacar como percebi, a partir do que Liddy Chiaffarelli relata nestas cartas, a imagem que deseja projetar para o amigo e pensar sobre algumas relaes que estabelece como filha, me, companheira, amiga, pro-fessora, cantora e escritora. Acredito que pensar em formas particulares de viver de mulheres possa contribuir para acrescentar novos olhares sobre o ensino de msica e formas de viver conjugadas em um gnero que, muitas vezes, tem sido deixado em segundo plano pela historiografia. So histrias de vida que tm aspectos comuns, especificidades, mas sobretudo do mostras de uma forma de viver no feminino.

    Abstract: The objective of this text is to discuss some aspects of writing epistolary of Liddy Chiaffarelli Mignone for Mrio de Andrade in order to reveal ways of living in female of this woman that, as well as a singer, has developed significant work in Music Education and training of teachers of music in the period between the 1930s and 1960s. In her letters to the friend, there are evidences of particular types of living of a woman who sought her intellectual achievement, her professional and emotional improvement, and their happiness. This practice of writing shows facets of Liddy Chiaffarelli Mignone as daughter, mother, wife, singer, teacher, writer and friend.

    Keywords: Liddy Chiaffarelli Mignone; letters; Music Education.

    Recebido em junho de 2010 e aceito para publicao em outubro de 2010.

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