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    Os servios de

    As recentes acusaes

    de um suposto envolvimentoda Agncia Brasileira de

    Inteligncia (Abin) em atividades

    de escuta ilegal os chamados

    grampos no Senado

    e no Supremo Tribunal Federal

    (STF) suscitaram um debate

    pblico sobre a natureza,

    as atividades e a legalidadedos sistemas nacionais

    de inteligncia. Mesmo que

    a crise em si j tenha passado,

    ela poderia trazer benefcios

    para a democracia brasileira,

    ajudando a redefinir as misses

    e prioridades desses servios

    no pas e a criar mecanismosmais aperfeioados de controle

    de suas atividades pelo

    Estado e pela sociedade.

    Marco Cepik

    eChristiano AmbrosNcleo de Estratgia e Relaes Internacionais,

    Universidade Federal do Rio Grande do Sul

    www.ufrgs.br/nerint

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    Os servios de inteligncia, ou servios secretos, existem em praticamente

    todos os pases, inclusive aqueles em que a democracia conso-

    lidada. Embora muitas de suas atividades, por razes bvias, no

    tenham divulgao pblica, espera-se que operem sob a super-

    viso rigorosa do Poder Executivo e estejam submetidas aos con-

    troles dos poderes Judicirio e Legislativo. Por isso, qualquer

    suspeita de descontrole desses servios gera grande preocupao

    do pblico. Entre os brasileiros, o repdio e a desconfiana cos-

    tumam ser imediatos quando existem tais suspeitas. Tais reaes

    so razoveis, considerando os tempos da ditadura (1964-1985)

    e o papel que os rgos de represso subverso armada e

    oposio pacfica, em especial o Servio Nacional de Informaes

    (SNI), tiveram no regime militar.

    intelignciano BRASIL

    ILUSTRAESWALTERVASCONCELOS

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    O regime militar deixou marcas profundamen-te negativas no imaginrio brasileiro em relaoaos servios secretos e seus arapongas, como so

    apelidados os agentes, alm de ter afetado de for-ma prejudicial o prprio relacionamento entreEstado e sistemas de inteligncia no perodo ps-autoritrio. Desde o perodo de transio polticaexistiam correntes de pensamento que defendiama extino ou a minimizao dos servios de inte-ligncia na democracia brasileira. Assim, sejamquais forem as razes especficas, quando o presi-dente Fernando Collor de Mello, o primeiro eleitopelo voto popular aps a redemocratizao, extin-guiu o SNI em 1991, no houve oposio a essamedida. A Agncia Brasileira de Inteligncia e o

    Sistema Brasileiro de Inteligncia (Sisbin) s foramcriados em 1999, aps longo processo de negocia-o. Durante esses oito anos de hiato, o servio deinteligncia ficou extremamente deficitrio no pas,limitado a um pequeno departamento da Secreta-ria de Assuntos Estratgicos (SAE), na Presidnciada Repblica, ainda que os componentes de inte-ligncia das foras armadas e da Polcia Federaltenham continuado a existir.

    Ao longo desses 10 anos (1999-2009) desde acriao da Abin, houve algum debate sobre asfunes, misses e mandatos especficos dos dife-rentes servios de inteligncia brasileiros, mas, demodo geral, como a trajetria institucional temsido positiva, at agora no havia surgido umquestionamento to forte sobre o grau de controledemocrtico, no pas, sobre o sistema como umtodo e a Abin em particular.

    Esse questionamento foi levantado aps asalegaes do ministro Gilmar Mendes, presidentedo Supremo Tribunal Federal, de que teria sidoalvo de escutas ilegais e de que a chamada opera-o Satiagraha, uma investigao criminal daPolcia Federal, teria contado com agentes da Abinrealizando operaes no autorizadas pela Justiaou pelos rgos decisrios superiores no prprioPoder Executivo. Embora as preocupaes sejamlegtimas e isso possa ter acontecido, precisoconhecer melhor o tema, para que no se incorraem especulaes infundadas que, longe de contri-burem para minimizar o problema, sirvam decortina de fumaa para outros problemas reais.

    Afinal, ento, o que so sistemas de inteligncia?Para que servem? Os servios de inteligncia soincompatveis com os princpios democrticos?O Brasil realmente precisa de servios de inteli-gncia?

    OBTER/NEGARINFORMAESPrimeiro preciso definir o que inteligncia. Al-guns a designam como qualquer informao cole-tada e analisada que seja til para a tomada dedeciso dos agentes polticos. Entretanto, adotamosaqui uma definio mais restrita, em que inteli-gncia designa um conflito entre atores sociais, oqual lida predominantemente com obteno/nega-o de informaes. A informao coletada semo consentimento, cooperao ou mesmo conheci-mento por parte do alvo. Aqui, o termo intelign-cia refere-se ao que servios de inteligncia fazemconcretamente em contextos poltico-organizacio-nais especficos, e no a uma funo informacionalgenrica.

    E o que fazem os servios de inteligncia? Aprimeira imagem que vem cabea quando ou-vimos as palavras servio secreto a do espiovestido de terno preto e usando culos escuros,com uma cmara fotogrfica do tamanho de umboto de camisa e uma pistola embutida na caneta ao estilo agente 007, consagrado em romances efilmes. Embora a espionagem seja parte integrantedas atividades de inteligncia entre os diferentespases, os sistemas de inteligncia, j descontadosos exageros literrios, esto longe de se restringira essa atividade.

    Servios de inteligncia so organizaes go-vernamentais especializadas na coleta e na anlisede informaes sobre temas, indivduos e organi-zaes relevantes para os processos decisrios nas

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    reas de poltica externa, poltica de defesa nacio-nal e manuteno de ordem pblica. So rgosdo Poder Executivo que trabalham, na maior partedo tempo, para os chefes de Estado e de governoe, dependendo da legislao de cada pas, podemrealizar tarefas para outras autoridades pblicas,at para os parlamentos. Por causa da naturezaofensiva e defensiva das atividades dos serviosde inteligncia na rea das informaes, pode-sedizer que essas organizaes fazem parte do apa-rato coercitivo dos Estados contemporneos, jun-tamente com as foras armadas e as polcias.

    Por meio dos servios de inteligncia, os Estadosbuscam maximizar seu poder relativo, ou seja, suascapacidades em relao s outras potncias, cole-tando e analisando informaes que contribuampara obter ganhos relativos em interaes estrat-gicas continuadas e contextos complexos. O quese espera dos servios de inteligncia que elescontribuam para que a tomada de decises, emreas relevantes como poltica externa, defesanacional e ordem interna, seja o mais racional erealista possvel.

    DEMOCRACIAE INTELIGNCIAComo se sabe, a funo primordial do estado dedireito promover o interesse pblico, o bem-estarda populao e a segurana dos cidados. No que se

    refere segurana, os servios de inteligncia soparte essencial, juntamente com as foras armadas,as polcias e a diplomacia, do aparato burocrti-co de qualquer Estado soberano que pretenda terautonomia no cenrio internacional. Estados comregimes polticos democrticos no so exceo aessa necessidade, no sentido de que no podemprescindir desse tipo de capacidade e poder.

    Os sistemas de inteligncia so, portanto, umarealidade concreta na mquina governamentalcontempornea, necessrios para a manutenodo poder e da capacidade estatal. Entretanto,representam tambm uma fonte permanente derisco. Se, por um lado, so teis para que o Es-tado compreenda seu ambiente e seja capaz deavaliar atuais ou potenciais adversrios, podem,por outro, se tornar ameaadores e perigosos paraos prprios cidados se forem pouco regulados econtrolados.

    O perigo do descontrole dos servios de inteli-gncia no existe apenas em regimes democrticos.Um exemplo interessante disso ocorreu na fricado Sul durante o perodo do apartheid (a antigapoltica de segregao racial daquele pas), quandoo servio de inteligncia conquistou tanta autono-mia que muitos estudiosos chegaram a consider-loum Estado de segurana independente dentro doprprio regime autoritrio. Alguns analistas, entreeles o prprio criador do Servio Nacional de Infor-maes (SNI) no Brasil, general Golberi do Coutoe Silva (1911-1987), viam com preocupao umaagncia com excessivo poder mesmo sob um con-texto institucional no democrtico. No obstante, oque nos interessa a todos, como integrantes de umacomunidade poltica democrtica, que os serviosde inteligncia sirvam para proteger o Estado, aConstituio e a segurana dos cidados.

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    Assim, os dilemas inerentes convivncia entredemocracias e servios de inteligncia exigem acriao de mecanismos eficientes de vigilncia ede avaliao desse tipo de atividade pelos cidadose/ou seus representantes. Tais dilemas decorrem,por exemplo, da tenso entre a necessidade de

    segredo governamental versuso princpio de aces-so pblico informao ou, ainda, do fato de nose poder reduzir a segurana estatal seguranaindividual, e vice-versa. Vale lembrar que essesdilemas se manifestam, com intensidades variadas,tambm nos pases mais ricos e democrticos domundo. Basta lembrar os recentes escndalos, nosEstados Unidos, sobre a manipulao de relatriosde inteligncia para justificar a invaso do Iraqueou sobre o uso de tortura em interrogatrios daAgncia Central de Inteligncia (CIA).

    Ou seja, o risco existe. Mas ser que ele to

    grande assim no caso do Brasil, onde se chegou afalar recentemente em descontrole das atividadesde inteligncia e uso poltico da Polcia Federal eda Abin? No cremos que seja esse o caso. NoBrasil, o atual desenvolvimento poltico apontapara a consolidao democrtica, com a subordi-nao dos rgos de segurana do Estado (forasarmadas, polcias, servios de inteligncia) aosprocedimentos polticos normais do jogo democr-tico. No se quer dizer, com isso, que no existamproblemas e casos de abusos ou de dficits deinstitucionalizao. Mas a caracterizao de des-

    controle parece claramente exagerada.Se houve utilizao indevida de agentes daAbin em operaes de investigao da Polcia Fe-deral, se houve ou no interceptao de conversastelefnicas do presidente do Supremo TribunalFederal, so de fato questes importantes e graves. importante perceber, no entanto, que elas solevantadas e debatidas em pblico, sem limitaesao exerccio de direitos fundamentais dos atorespolticos e, mais importante, existe razovel expec-tativa do pblico de que tais alegaes podem seresclarecidas e os eventuais abusos punidos sem

    que o tecido institucional da democracia brasileiraseja esgarado. Este o ponto central, que colocaas coisas em sua real dimenso.

    Durante o processo de institucionalizao da in-teligncia brasileira, denncias de violaes de regrasdemocrticas apareceram e continuaro a aparecer.Algumas tero fundamento, muitas no. Para o pas,seria importante se tais crises, as reais e as imagina-das, fossem aproveitadas para aumentar, e no dimi-nuir, a eficcia dos servios de inteligncia brasi-leiros, e ao mesmo tempo para melhorar a supervi-so das autoridades do Poder Executivo e a fiscali-zao do Poder Legislativo sobre tais agncias.

    APERFEIOAMENTOE FISCALIZAOA seguir mencionaremos algumas reas em que preciso aperfeioar os servios de intelignciabrasileiros e a respeito das quais baixssima aincidncia de debates pblicos ou manifestaesdos rgos de fiscalizao (a Comisso Mista doCongresso Nacional, o Tribunal de Contas daUnio etc.).

    Em primeiro lugar, passados 10 anos da criaodo Sisbin e da Abin, parece necessrio investirpesado para melhorar a qualidade das anlisesproduzidas pelas diversas agncias civis e militares,federais e estaduais. Em segundo lugar, precisofocar melhor as reas de especializao dos diferen-tes rgos, devido ao peso inercial que sempre seatribuiu no Brasil s chamadas ameaas internas segurana institucional. Hoje, por exemplo, osrgos de inteligncia do sistema de justia criminal(polcias, Ministrio Pblico, sistema prisional etc.)tm um foco muito mais claro de sua misso, assimcomo as sees de inteligncia das foras armadas.Mas falta ao Brasil mais capacidade de olhar parao exterior, de produzir inteligncia estratgica ettica relativa a eventos e processos cruciais parao Estado brasileiro e que se desenrolam fora denossas fronteiras.

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    Sugestespara leitura

    BRANDO, P.SNI e ABIN:

    uma leitura

    da atuao dos

    servios secretos

    brasileiros

    no sculo XX.Rio de Janeiro,Editora FGV,2001.

    BRUNEAU, T. C. &BORAZ, S. (Eds).Reformingintelligence:

    obstacles

    to democratic

    control and

    effectiveness.Austin,Universityof Texas Press,2007.

    CEPIK, M.Espionagem

    e democracia.Rio de Janeiro,Editora FGV,2003.

    Em terceiro lugar, preciso regulamentar asoperaes de inteligncia realizadas dentro doBrasil para fins de segurana institucional e desegurana pblica que extrapolem as funes decombate ao crime organizado. O exemplo dos Es-tados Unidos, aps os atentados terroristas de 11de setembro de 2001, mostra que, mesmo sendodesejvel uma melhor integrao entre o sistemade informao policial (law enforcement, naquelepas) e o de inteligncia (national security intelli-gence), as exigncias de segurana e legitimidadeassociadas aos tipos de alvos, informaes e m-todos de obteno dos dados so bastante distintasno caso de ameaas terroristas e criminais.

    Em quarto lugar, preciso fortalecer em muitoa rea de contrainteligncia externa do Brasil,responsvel pela neutralizao de operaes deinteligncia externas contra os interesses brasilei-ros. Finalmente, em quinto lugar, preciso apro-veitar essa crise para regulamentar e coibir a in-dstria de grampos privados, escutas ilegais eoperaes clandestinas praticadas por empresas eindivduos. Isso algo que passa quase sempredespercebido no debate sobre inteligncia no Bra-sil: que o descontrole no se encontra no PoderExecutivo, mas na existncia de um grande setorprivado cinzento nessa rea.

    INTELIGNCIA NO BRASIL:ONDE MELHORAR?Como vimos, a importncia dos servios de inteli-gncia reside na defesa da soberania dos Estadosno sistema internacional e na garantia de ordeminterna e segurana dos cidados. No caso bra-sileiro, a atividade de inteligncia importantetendo em vista a pretenso de liderana regionalna Amrica do Sul e diante do padro persistentede conflitos observados nas grandes cidades e nomeio rural de nosso pas.

    Atualmente, o Brasil tem trs sistemas de inte-ligncia: o Sistema Brasileiro de Inteligncia (Sis-bin), o Sistema de Inteligncia de Defesa (Sinde)e o Subsistema de Inteligncia de Segurana P-blica (Sisp). O grande problema consiste em deli-mitar as funes e atribuies de cada um deles.A lei federal de 1999 que criou o Sisbin atribuiuao mesmo uma gama de funes, atividades emisses gerais, as quais agora precisam de orien-tao executiva e fiscalizao do Poder Legislativopara se tornarem mais eficientes e eficazes. Nossoargumento que essa busca por maior eficinciae eficcia nas reas de coleta e anlise de informa-es relevantes para a segurana do Estado e doscidados anda lado a lado com a melhoria dosmecanismos de controle que aumentam a prprialegitimidade da atividade.

    Para melhorar ao mesmo tempo a eficcia e alegitimidade preciso comear redirecionando ofoco das atividades da Abin para o ambiente in-ternacional. O Brasil no faz e no aprova o usoda espionagem, mas a atividade de inteligncia mais do que espionagem. Para comear, sem ainteligncia no possvel proteger o pas contraatos de espionagem estrangeiros. Alm disso, mui-tos processos que afetam a segurana brasileiraocorrem fora de nossas fronteiras e a quantidadede pessoas, de funcionrios pblicos treinados eespecializados na sua compreenso profunda, extremamente insuficiente. Uma Abin respons-vel pela inteligncia externa e com muito maiscapacidade analtica do que tem hoje o caminhomais rpido para um Sisbin mais forte, coeso esem riscos de desvio de funo por parte de qual-quer dos seus rgos componentes.