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Sergio Buarque de Holanda

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  • Resenha

  • 167 revista ieb n55 2012 mar./set. p. 167-170

    Arqueologia de um mestre Renato Martins1

    COSTA, Marcos. (org.). Srgio Buarque de Holanda. Escritos coligidos 1920-1979. So Paulo: Perseu Abramo, 2011, 2 vols., 648 p., 496p.

    Sabe-se que o historiador Srgio Buarque de Holanda (1902-1982), ao lado de suas obras de flego, sempre escreveu artigos para jornais, revistas e demandas editoriais das mais diversas, que depois foram parcialmente reunidos em coletneas admirveis. O prprio autor orga-nizou alguns deles em Cobra de vidro (1944) e Tentativas de mitologia (1979); outros foram compilados por Maria Odila Silva Dias em Srgio Buarque de Holanda, historiador (1985), por Francisco de Assis Barbosa em Razes de Srgio Buarque de Holanda (1988), por Antonio Candido em Captulos de literatura colonial (1991), por Antonio Arnoni Prado em O esprito e a letra (1996) e por Marcos Costa em Para uma nova histria: Textos de Srgio Buarque de Holanda (2004).

    Escritos coligidos, de Srgio Buarque de Holanda, tambm orga-nizado e apresentado pelo historiador Marcos Costa, rene 146 textos fundamentais e multifacetados do autor de Razes do Brasil, mas que, em grande parte, no haviam sido contemplados por aquelas publicaes. Portanto, seu lanamento animador e merece destaque: a obra, dividida em dois volumes, acolhe um vasto material produzido entre 1920 e 1979, pincelado pelo organizador durante os dez anos em que re alizou pesquisa, sobretudo para sua dissertao de mestrado e sua tese de doutorado. E o resultado surpreende ao colocar o leitor diante de uma cuidadosa seleo de textos que, no conjunto, constituem uma fonte documental indispen-svel sobre o pensamento de Srgio Buarque de Holanda.

    bom lembrar, mesmo rapidamente, que, desde cedo, Srgio Buarque manteve-se bastante articulado s questes culturais e polticas

    1 Doutorando em Histria Social pela Universidade de So Paulo (USP, So Paulo, SP, Brasil), onde desenvolve uma pesquisa sobre a obra historiogrfica de Srgio Buar-que de Holanda. Organizador do livro Encontros Srgio Buarque de Holanda. Rio de Janeiro: Azougue, 2009. E-mail: [email protected]

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    de seu tempo. Desde jovem, por exemplo, envolve-se num dilogo e atuao com o modernismo brasileiro que perdurou por dcadas. Ao mesmo tempo, passa a desenvolver anlises minuciosas da literatura brasileira, latino-americana e europeia, que revelam, para alm da crtica de obras e autores, uma reflexo sobre controvrsias intelectuais, estticas e polticas da poca. Sem falar de seu correlato empenho em incentivar a crtica herana e atualidade do autoritarismo no Brasil, mostrando-se favorvel efetiva ampliao da democracia entre ns.

    Alguns artigos de Srgio Buarque, produzidos a partir desta ampla experincia, esto reunidos em Escritos coligidos, e podem ser lidos, segundo Marcos Costa, como um momento de pausa em suas reflexes mais sistematizadas e introspectivas para lanar o olhar, no menos atento, sobre os acontecimentos do tempo presente (p. xiii). Basta lembrar, por exemplo, de Pintura no Brasil (1921) e A moderna lite-ratura brasileira (1930), que ilustram as posies militantes do autor quanto variedade de propostas acolhidas pelo modernismo brasileiro, seja em relao ao prprio movimento, seja em relao ao panorama lite-rrio e artstico do incio do sculo XX.

    Em O mito do sculo XX (1934), por sua vez, Srgio Buarque se espanta com o postulado de superioridade racial formulado pelo nacional-socialismo ao refutar a obra Der Mythos des 20 Jahrhundert, de Alfred Rosemberg, um dos seus principais formuladores. interessante notar que um juzo parecido se encontra em outros artigos, como Clima e raa (1950) e Raa, cultura e clima (1950), e que, no limite, corres-ponde a uma pronta averso ao determinismo racial e fina percepo segundo a qual a mistura de raas era indispensvel para o bom anda-mento do processo civilizador.

    A isso se somam as reflexes de Srgio Buarque sobre a democracia, presentes, entre outros, em Os problemas da democracia mundial (1949) e A democracia e a tradio humanista (1949). Para Marcos Costa, elas refletem uma forma de repensar a histria recente do Brasil e retomar aquilo que o fio da meada de sua produo historiogrfica: a questo da participao do povo na histria do Brasil (p. xxiii). Nessa direo, tambm podem ser citados, em vrios aspectos, Tradiciona-listas e iconoclastas (1946), Inatualidade de Cairu (1946), ou mesmo Mentalidade capitalista e personalismo (1947), que at trazem obser-vaes sobre o tempo presente, porm, desenhadas a partir do incmodo do autor com a herana patriarcal e personalista da colonizao ibrica na vida republicana brasileira.

    Mas outros tantos artigos de Escritos coligidos tratam, direta ou indiretamente, do processo de confeco das grandes obras de Srgio

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    Buarque de Holanda. Ou seja, o perfil da coletnea bastante marcado pela reflexo sobre os estudos histricos e literrios, no raro asso-ciados a uma slida pesquisa em arquivos nacionais e estrangeiros e, num mesmo passo, s etapas de formulao e publicao de livros como Razes do Brasil (1936), Mones (1945), Caminhos e fronteiras (1956), Viso do paraso (1959) e Extremo oeste (1986).

    A comear por Corpo e alma do Brasil: ensaio de psicologia social (1935), onde se encontram, por um lado, as bases da interpretao histrica e ensastica do pas, contida em Razes do Brasil, e por outro, ideias que logo seriam adaptadas para um de seus clebres captulos, O homem cordial. Ora, j neste ensaio o autor procura construir uma anlise voltada tanto aos dilemas do Brasil quanto o das naes ibero-americanas, que depois ser retomada e detalhada em seu livro mais famoso. Marcos Costa, alis, recorda na introduo que esse texto quase leva o ttulo de Teoria da Amrica. Esse um detalhe importante, pois revela a mal disfarada ambio de Srgio Buarque de Holanda de entender o pas em um panorama continental mais amplo.

    Muitos artigos ainda salientam, com efeito, a construo da obra historiogrfica do autor: alguns deles, intitulados Relquias das mones (I e II) (1948) e Pr-histria das bandeiras (I-VIII) (1948) ajudam a elucidar algumas questes pertencentes a Mones e Cami-nhos e fronteiras, sobretudo as que dizem respeito organizao social e econmica do bandeirantismo, tocando em tpicos como o papel do comrcio de populaes indgenas as peas da terra, como ento se dizia e a busca por metais preciosos pelos habitantes da capitania de So Paulo.

    At Tentativa de mitologia (1952), centrado num debate entre nosso autor e o historiador Jaime Corteso, acaba por enriquecer, e muito, a compreenso de Viso do paraso. Afinal, o artigo acolhe uma verso fragmentada de uma ideia por vezes esquecida, mas fundamental desta obra-prima: a relativa descrena portuguesa no mito do paraso terrestre nos trpicos. Srgio Buarque, pois, desconfia da influncia deci-siva da cosmologia paradisaca no imaginrio geopoltico da colonizao lusitana no Brasil. Da as crticas ao seu colega de ofcio, para quem a cartografia do Novo Mundo contempornea aos sculos XVI e XVII ilustra uma portentosa mitologia ednica, que, ao abrigar um modelo geogrfico da Amrica portuguesa similar futura nao brasileira, influiu fortemente na expanso continental lusitana.

    Mesmo assim, isso no tudo: o leitor ainda ver que Srgio Buarque percorre um abrangente leque de temas, muitos deles pouco visitados por pesquisadores. A prpria controvrsia entre ele e Jaime

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    Corteso em torno do imaginrio dos descobrimentos alis estendida s pginas de Tentativas de mitologia e Viso do paraso merece por certo mais ateno. O mesmo vale para a avaliao da rea de estudos brasileiros, realizada por exemplo nas resenhas de ttulos da impor-tante Coleo Brasiliana da Editora Nacional, ou de Religio e mitologia Kadwiwu, obra do ento estreante antroplogo Darcy Ribeiro, comen-tada em Mitologia e sociedade (1951); por fim, podem ser destacados artigos como Uma repblica no proclamada (I-VIII) (1979), escritos nos ltimos anos de vida e que, para dizer o mnimo, apresentam reflexo sem dvida aprecivel sobre o Imprio do Brasil.

    Nesse sentido, cabe ressaltar a interessante afirmao de Marcos Costa de que a presente coletnea traz novos elementos para uma arqueologia do pensamento de Srgio Buarque de Holanda (p. xiii): uma arqueologia que, em muitos aspectos, ainda precisa ser feita. Sentimos falta, por isso mesmo, de um balano mais apurado por parte do organizador sobre o que foi e o que falta ser investigado nesses tantos e tantos artigos, escritos sob os mais diversos interesses (lembrados na presente resenha, claro, de forma parcial e aleatria). Esse aspecto, contudo, no atenua o indiscutvel mrito investigativo e analtico de Marcos Costa, responsvel pelos Escritos coligidos, importante refe-rncia para os estudiosos da histria e da cultura brasileiras.